col o significado de republica no

Upload: raimundo-sousa

Post on 04-Jun-2018

220 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/13/2019 COL O Significado de Republica No

    1/10

    Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 4, 1989, p. 214-224.

    O Significado deRepblica

    Celso Lafer*

    =====================================================================I

    1.O termo repblica tem mais de um significado. No seu sentido mais amplo, denotacomunidade poltica organizada. Tem como correspondente, em grego, politia - origem da

    palavra inglesapolity; tambm vertida em latim por civitas, que, em ingls, Hobbes traduziu porcommonwealth. Na terminologia das lnguas neolatinas, corresponde, grosso modo, ao atualconceito de Estado, de uso corrente a partir de Maquiavel que, semanticamente, transformou asituao - o status (de onde provm a palavra estado) rei publicae, em condio de umacomunidade poltica, assinalada pelos requisitos da existncia de um povo, de um governo e de

    um territrio.A comunidade poltica, enquanto organizao do governo de vida coletiva de um povo num

    territrio, tem, historicamente, vrias modalidades possveis. O estudo dessas modalidades e asua avaliao um dos temas recorrentes da teoria poltica, que as examina sob a rbrica deformas de governo, e neste contexto que o termo repblica passa a ter uma especificidadeconceitual que vou buscar explorar, com remisses experincia brasileira, neste trabalho.1

    2. Cabe registrar preliminarmente que, nos ltimos 60 ou 70 anos, o desaparecimentogeneralizado dos governos monrquicos tomou a distino entre monarquia e repblica umaclassificao pouco abrangente da realidade poltica. Entretanto, at o sculo XIX, Repblica,

    como forma de governo, contrape-se a Monarquia, e foi assim que em nosso pas, no sculopassado, a propaganda republicana contestou a legitimidade do poder de uma s pessoa - oImperador - exercido por direito hereditrio que, dispensando o voto do povo, no seriarepresentativo da maioria da nao.

    A contraposio entre Monarquiae Repblica remonta aos romanos que, depois da exclusodos reis, substituram o regnum - o governo de um s - pelo governo de um corpo coletivo. interessante observar que, etimologicamente, monarquia significa poder de um s e que, nestalinha, os termos correspondentes, que nos vm da tradio grega desde Herdoto, e que estoincorporados em nossa lngua, so os de aristocracia - o poder dos melhores, que so poucos - edemocracia - o poder do povo, que so muitos. O que h em comum nestes trs termos, comotambm em tirania, oligarquia e oclocracia, que so as suas formas negativas, "arch",

    * Celso Lafer doutor em cincia poltica pela Universidade de Cornell (USA) e livre-docente de direito

    internacional pblico pela Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo onde leciona direito internacionalpblico e filosofia do direito. autor de vrios livros, dos quais destacamosHanna Arendt: pensamento, persuasoe poder (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979); Comrcio e relaes internacionais (SoPaulo, Perspectiva, 1977) e Osistema poltico brasileiro: estrutura e processo(So Paulo, Perspectiva, 1975).

    1 Cf. Giuseppe Maranini e Silvio Basile, verbete "Repubblica" em Antonio Azara e Ernesto Eula (org.),Novissimo digesto italiano, vol. XV, Torino, UTET, 1968; Noberto Bobbio,A teoria das formas de governo, (trad.de Srgio Bath), Brasila, Ed. Universidade de Braslia, 1990, p. 27-30, e Estado, governo, sociedade. Para umateoria geral de poltica (trad. de Marco Aurlio Nogueira), Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, p. 65-67.

  • 8/13/2019 COL O Significado de Republica No

    2/10

    Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 4, 1989, p. 214-224.

    princpio, ou seja, o que se discute o princpio do governo por parte de um, de poucos ou demuitos.

    Neste sentido, alis, a partir do momento em que, na Idade Moderna, as monarquias naEuropa, a comear pela inglesa, constitucionalizaram-se e se parlamentarizaram, deixaram de ser

    o govemo de um s. Por isso, do ponto de vista das formas de governo em que se examina aestrutura do poder e as relaes entre os vrios orgos do Estado, a dicotomia Monarquia,governo de um s, e Repblica, governo de um corpo coletivo, deixou de ser precisa. por essarazo que, atualmente, o que pe em evidncia a diversa relao entre os poderes do Estadoincumbidos do governo da vida coletiva a dicotomia presidencialismo, na qual vigora umaseparao entre o Poder Executivo e o Legislativo, e o parlamentarismo, no qual prevalece umcomplexo jogo de interdependncia entre o Executivo e o Legislativo, que so poderes distintosmas no independentes um do outro.2No , no entanto, para o princpio do governo por parte deum, poucos ou muitos, e para a estrutura do poder e as relaes entre osvrios rgos do Estado,que aponta a etimologia de repblica que convm, por isso mesmo, referir, nesta tentativa deanlise conceitual do termo.

    3. Repblica vem do latim res publica, literalmente o bem pblico, chamando, portanto, aetimologia da palavra a ateno para a coisa pblica, a coisa comum.

    Foi Ccero quem classicamente examinou a especificidade do conceito de repblica, aodiferenciar res publica de outras, como aprivata, a domestica, afamiliaris, estabelecendo, dessamaneira, uma distino entre o pblico, isto , o comum - que corresponde, no grego antigo, sformas substanciadas do adjetivo koins (comum, pblico) e, modernamente, expresso italianail comune, ao alemo die Gemeinde - e o privado, que no comum a todos, mas particular aalguns.

    Para Ccero, o pblico diz respeito ao bem do povo que, para ele, no uma multido qualquer

    de homens mas sim um grupo numeroso de pessoas associadas pela adeso a um mesmo direito evoltadas para o bem comum. So, portanto, na concepo ciceroniana, dois os vnculos queconfiguram opopulus, como o destinrio da res-publica: consensus juris (o consenso do direito)e communis utilitatis (a comum utilidade), e so as conotaes a eles inerentes o que vou tentarexplorar, para delinear o significado de repblica .3

    4. O consensus juris ciceroniano na histria das idias polticas indica o papel do direito para quea res publica no se veja comprometida pela violncia e pelo arbtrio. Da, modernamente, o tereste conceito em Kant se precisado na constituio, enquanto idia reguladora da razo prtica,necessria para estabelecer-se um estado de direito, entre uma multiplicidade de homens em

    relao recproca na res publica.4

    2 Cf. Norberto Bobbio, Estado, governo, sociedade, cit. p. 76-77,107-108, Nicola Matteuci, verbete

    "Repblica" em Norberto Bobbio, Nicola Matteuci e Gianfranco Pasquino, Dicionrio de poltica (trad. de LuisGuerreiro Pinto Cascais et alii), Braslia, Ed. da Universidade de Braslia, 1986.

    3Cf- Cicero,De Republica, - 1 - XXV, emDe RePublica. De Legibus (trad. C. W. Keyes) London, Heinemann,1952, p. 64, Enrico Berti, Il "De Republica" di Cicero ed il pensiero politico classico, Padova, Antonio Milani,1963, p. 27 e seguintes.

    4 E. Kant, Mtaphysique des moeurs - 1 Partie - Doctrine du droit (trad. A. Philonenko), Paris, Vrin, 1971,pargrafo 43 p. 193.

  • 8/13/2019 COL O Significado de Republica No

    3/10

    Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 4, 1989, p. 214-224.

    Por obra da irradiao da Revoluo Francesa, de idia reguladora, a constituio converteu-sena ida-fra de um "consensus juris" emanado de uma constituinte livre e soberana. Esteingrediente conceitual viu-se, assim, associado ao significado de repblica, pois o direito deixoude ser visto como a expresso do poder soberano do rei, passando a ser concebido como o poder

    da nao organizada. importante chamar a ateno para a nova relao acima mencionada entre Repblica e

    Revoluo Francesa, pois corri esta a soberania deixou de ser a expresso ex parte principis deuma legitimidade dinstica e passou a ter, modernamente, como critrio, a legitimidade hauridana vontade popular. Esta perspectiva ex parte populi da soberania se expressa, tambm, no planointernacional. Dela decorre, no sculo XIX, o princpio das nacionalidades e, no sculo XX, o daautodeterminao dos povos. Ambos, com efeito, fundamentam-se na liberdade deauto-expresso individual e coletiva dos cidados e da comunidade poltica que a modernidadeerigiu como um valor a ser tutelado. Por isso passou a ser o padro para juzos, no sistemainternacional, a respeito de como a soberania de um Estado pode ser afirmada ou transferida e decomo se regula a sucesso e a secesso de Estados.5

    Foi seguindo este critrio de legitimidade no plano interno e internacional que a polticaexterna brasileira, logo aps 1889, buscou afirmar no campo dos valores a identidade republicanado Brasil, tendo em vista que, nas Amricas, era tido, desde a Independncia, como o "diferente",

    por fora das instituies monrquicas.Afirmava Quintino Bocaiva, o primeiro chanceler da Repblica, que a poltica internacional

    do Governo Provisrio visava, inter alia, fazer "entrar o Brasil, antigo Imprio, na famlia dasRepblicas americanas, no como um estranho suspeito, mas como um irmo". Neste sentido, a"americanizao" das relaes exteriores do Brasil - que se aprofundou com a Repblica e quevai marcar um afastamento do "concerto europeu" - viu-se justificada pela "republicanizao" da

    poltica exterior do pas.6

    importante tambm observar que, tendo a Revoluo Francesa sido concebida como umaruptura com a histria francesa, a liberdade, na Repblica dela derivada, no foi concebida inglesa - como liberdades, ou seja, como franquias, imunidades e privilgios sedimentados pelotempo, mas sim como uma liberdade baseada na igualdade. Vale dizer: na similitude da condiohumana dos que, em conjunto, esto livremente construindo a comunidade poltica, e que, almdo mais, no so apenas livres e iguais, mas irmos, por obra da secularizao do conceito cristode filhos de Deus, do qual deriva a fraternidade, o terceiro termo da divisa da RevoluoFrancesa.7

    Estes ingredientes conceituais tiveram vigncia entre ns, pois foi nesta linha que o ManifestoRepublicano de 1870 criticou a Constituio Imperial, como uma carta outorgada, de rano

    5 Cf. Martin Wright, System of States (ed. By Hedley Bull), Leicester, Leicester University Press, 1977,

    p.153-173.

    6Cf. Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno, A Polilica externa brasileira - 1822-1985 So Paulo, tica, 1986 -cap. 5; Antonio Augusto Canado Trindade, Repertrio da prtica brasileira do direito internacional pblico(perodo 1889-1898), Braslia, Fundao Alexandre de Gusmo, 1988, p. 53.

    7 Cf. Os verbetes "Fraternit" de Mona Ozouf; "Libert" de Mona Ozouf; "Rpublique" de Pierre Nora, emFranois Furet/Mona Ozouf,Dictionnaire critique de la Rvolution Franaise, Paris, Flammarion, 1988.

  • 8/13/2019 COL O Significado de Republica No

    4/10

    Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 4, 1989, p. 214-224.

    dinstico, imposta soberania nacional.8Por terem sido tambm outorgadas ex parte principis,foram criticadas as cartas de 1937 e 1969. Tancredo Neves, no seu discurso no Estado doEsprito Santo, em 15 de novembro de 1984, sobre a Nova Repblica, seguiu esta tradio aoapontar o papel que deveria ter a Constituinte a ser eleita em 1986, eliminando, na nova

    Constituio, os resduos autoritrios impostos pelo regime de 1964, e indicativos da violncia edo arbtrio.

    =====================================================================III

    5. A busca da communis utilitatis na respublica, o outro componente de que falava Ccero,requer um populus frugal e incorruptvel. Estas caractersticas foram, na Histria das idias

    polticas, vistas como o apangio da Roma Republicana, na qual vicejavam as virtudes de umacidadania cuja ambio maior era servir ptria.

    No pensamento contemporneo, a contribuio das virtudes cvicas do cidado, comoingrediente indispensvel de uma respublica democrtica - pois no h democracia semdemocratas -foi devidamente realada pelo estadista francs Pierre Mends-France no seu livrode 1962 A Repblica moderna, que enriqueceu a reflexo sobre o tema, com a esttica de seuestilo, por ele tambm iluminada com a tica de sua ao pblica.9

    6. Na reflexo poltica, o papel dos sentimentos, inclusive os virtuosos, que fazem agir opopulus, foram sublinhados de maneira muito interessante por Montesquieu, no Esprito dasLeis. Com efeito, ao distinguir, no Livro II, o despotismo (para ele o governo de um s, sem leisfixas e estabelecidas), a monarquia (no seu entender o governo de um s de acordo com leis fixase estabelecidas) e a repblica (onde o povo - democracia - ou parte do povo - aristocracia - detm

    o poder soberano), observa, no Livro III, ao cuidar dos princpios que os impulsionam, que odespotismo depende do medo, a monarquia da honra e a repblica da virtude.

    A virtude republicana , pois, para Montesquieu, que se inspira na tradio romana, umavirtude poltica, um sentimento que passa pelo respeito s leis e pela devoo do indivduo coletividade. Neste sentido, ao contrrio da monarquia que se baseia na diferenciao e nadesigualdade (o privilgio da religio, raa, sabedoria e posio, como dir o ManifestoRepublicano de 1870), e do despotismo, que se funda na Igualdade diante do medo e naimpotncia derivada da no participao no poder soberano, a igualdade republicana, na lioaggiornata de Montesquieu, uma igualdade na virtude.

    Esta dimenso de virtude, na campanha republicana em nosso pas, est vinculada ao

    positivismo que no foi apenas um movimento de idias, a exprimir o cientificismo ento em

    8O Manifesto Republicano est reproduzido em Reynaldo Carneiro Pessoa (org.), A idia republicana no Brasil

    atravs dos documentos, So Paulo, Alfa-Omega, 1973, 39-66; para um apanhado sobre os componentesdoutrinrios da campanha republicana no Brasil, Cf. Nelson Saldanha O Pensamento polilico no Brasil, Rio deJaneiro: Forense, 1979, p. 93-106.

    9Pierre Mends-France, A Repblica Moderna (trad. de C. M. M. e Maria Manuel), Lisboa, Europa-Amrica,1963, p. 229-252.

  • 8/13/2019 COL O Significado de Republica No

    5/10

    Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 4, 1989, p. 214-224.

    voga, mas tambm uma atitude cvica, que incutiu, como observou Afonso Arinos, dignidadepblica ao procedimento de muitos prceres e adeptos da idia republicana.10

    7. interessante lembrar que, na sua reflexo, Montesquieu observa a existncia de liames entre

    o tipo de regime poltico e a dimenso da sociedade. No livro VIII do Esprito das leis, indica queum imprio de vastas dimenses territoriais pressupe o despotismo; um Estado de dimensomdia, uma monarquia, e que de natureza da repblica um territrio pequeno. Esta conexoentre o tamanho do territrio e o regime poltico est, deum lado, vinculada a uma perceposociolgica sobre os sentimentos de medo, honra e virtude que o volume da sociedade pode ouno ensejar e, de outro, observao histrica.11

    Historicamente, cabe observar que o Estado moderno, na Europa, nasceu e se consolidoucomo Estado monrquico. O mesmo, diga-se entre parnteses, ocorreu entre ns, pois foi com amonarquia que nasceu o Estado brasileiro e se consolidou o Estado nacional. , portanto,tambm por razes histricas que, de Bodin a Hegel, a monarquia aparece corno paradigma do

    Estado moderno. J o despotismo, quando discutido neste arco terico, surge como o exotismodos imprios extra-europeus, e a repblica como o regime apropriado para pequenos territrios.Da, no incio da Idade Moderna, a diviso feita por Maquiavel, no captulo 1 de O Prncipe,

    entre os principados - ou seja, os reinos - que apontavam para as novas realidades da Inglaterra,da Frana e da Espanha, e as repblicas (aristocrticas ou democrticas), como Gnova, Veneza eFlorena, que deles se diferenciavam inclusive pelo importante dado da extenso territorial. Da,tambm, a referncia por ele feita, no captulo IV de O Prncipe, ao despotismo da relaosenhor-escravo que caracterizava, na poca, o vasto Imprio Otomano.12

    8.A perfectibilidade de uma repblica, por obra das virtudes cvicas que animam a cidadania abuscar a communis utilitatis, foi tambm discutida por Rousseau que, indo alm de Montesquieu,

    deu ainda maior nfase ao papel da afetividade do populus em relao ao construdo racional davida em sociedade, apropriadamente organizada por um Contrato-social. Esta dimenso deafetividade em Rosseau inspira-se no mito de Roma e tem como modelo histrico a austeridaderepublicana da cidade de Genebra, da qual era cidado, que contrastava com a corrupo de Parisda Frana monrquica. Teoricamente, ela se traduziu na importncia de circunscrever o nmerodos que integram a res publica. Da a relao que Rousseau estabelece entre o tamanho dasociedade e a possibilidade de bom governo, que requer um crculo limitado de pessoas que,

    pelas suas relaes de proximidade, mantm as virtudes cvicas, inclusive porque o comum setorna visvel, ou seja, de conhecimento pblico.13

    10

    Afonso Arinos de Melo Franco, Osom do outro sino - um breviario liberal. Rio de Janeiro, E.d. CivilizaoBrasileira, 1978 p. 169- 171.

    11Cf- Montesquieu, De l'esprit des lois em Oeuvres compltes (org. e anotado Por Roger Caillois), v. II., Paris,Gallimard, 1951 livro Il, cap. 1, Livro III, cap. 3, 7, 9, Livro VIII, Cap. 16, 17, 19; cf. Raymond Aron, Les tapes dela pense socio logique, Paris, Gallimard, 1967, p. 27-76; Georges Vlachos, La politique de Montesquieu, Paris,Montchrestien, 1974.

    12Cf. Norberto Bobbio,Estado, governo, sociedade, cit., p. 105-107 , A teoria das formas de governo, cit., cap.VI e XI; N. Macchiavelli, IlPrincipe, Milano, Rizzoli, 195,cap. I. cap. IV-2.

    13Cf. Jean Jacques Rousseau, Discours sur l'origine el les fondemens de l'egalit parmi les hommes, ddicace emOeuvres compltes, t.III -Du contrat social - critsPolitiques, Paris, Gallimard, 1964, p. 111- 112; Lettres ecriles

    de la montagne. 6o

    lettre, em op. Cit., p. 808; Bertrand de Jouvenel, Du principat et autres reflexions politiques,

  • 8/13/2019 COL O Significado de Republica No

    6/10

    Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 4, 1989, p. 214-224.

    =====================================================================IV

    9.As relaes de congruncia entre a repblica, como a forma de bom governo viabilizado pelapequena extenso territorial. e o nmero circunscrito dos que virtuosa e igualitariamenteintegram o populus, tiveram que ser repensados com a Revoluo Francesa e a RevoluoAmericana, pois estas ensejaram o aparecimento de repblicas modernas, em Estados cujaextenso territorial era muito superior ao padro at ento visto como apropriado para umarepblica.

    No caso da Frana, modelo europeu por excelncia da consolidao do poder central doEstado atravs de uma monarquia, interessante registrar o aparecimento da categoria esprito

    pblico. Esta substituiu a de opinio pblica, categoria usada pelos ilustrados como um tribunalde ltima instncia para reduzir o impacto dos que sofreram o impacto do arbtrio, mas que

    estava excessivamente baseada, para os jacobinos, no subjetivismo individualista de liberdade.Por isso preferiram elaborar o conceito mais homogneo e coercitivo de esprito pblico - queSaint-Just desejava ver como conscincia pblica - pois ambicionavam, com a Revoluo,refazer a unidade social, ressuscitando uma vida cvica unnime. Esta, na viso jacobina,requereria uma vontade geral ativa, apta a conduzir uma sociedade corrupta virtude, pela

    prevalncia do esprito pblico, ainda que imposto pelo terror. Este sonho jacobino de umesprito pblico onipotente viu o seu fim com Napoleo, que com o Consulado e com o Imprio,substituiu-o pela obsesso conservadora com a ordem pblica.14

    Na tradio republicana francesa, a obsesso com a ordem pblica, em contrapartida, temcomo desdobramento democrtico a idia de que possvel o progresso de uma razo pblicaatravs da instruo ao alcance de todos, na linha do que afirma o artigo 22 da Declarao dos

    Direitos de 1793. Da que deriva a tese da educao pblica e laica, asseverada pela TerceiraRepblica como um pilar necessrio de um Estado republicano. De fato, sendo este um Estado detodos, pressupe a escola para todos, tambm como um aprendizado em comum, necessrio parao progresso da razo pblica na vida coletiva.15

    No sculo XIX, a ao regeneradora da educao pblica como um caminho para assegurar asvirtudes cvicas, conter os interesses, superar a barbrie e afirmar a civilizao, foi um dos temasde Sarmiento. Com efeito, e como observa Natalio Botaria na sua anlise da tradio republicanana Argentina, a educao um dos ingredientes afirmados por esta tradio, visando, no processode nation-building, transformar uma repblica de habitantes numa repblica de cidados.16

    Paris, Hachette, 1972, P. 266-285, Denise Leduc-Fayette, J. J.Rousseau et le mythe de l'antiquit, Paris, Vrin, 1974,cap. Il e passim; Celso Lafer, A reconstruo dos direitos humanos - um- dilogo com oPensamento de HannahArendt, So Paulo, companhia das Letras, 1988, cap. VIII.

    14 Cf. o verbete "Esprit public" de Mona Ozouf em Franois Furet/Mona Ozouf, Dictionnaire critique de laRvolution Franaise, cit. Luc Ferry - Alain Renaut, Philosophie Politique -III - Des droits de l'homme l'iderepublicaine,Paris,PUF, 1985, p. 36.

    15Cf- Pierre Mends - France,La vrit guidait leurs pas, Paris, Gallimard, 1976, p. 53-69.

    16Cf- Natalio Botana, La tradicin republi cana, B. Aires, Ed. Sudamerica 1984

  • 8/13/2019 COL O Significado de Republica No

    7/10

    Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 4, 1989, p. 214-224.

    No Brasil do sculo XX, Rui Barbosa afirmaria, ao traw da instruo pblicana plataforma dasua campanha presidencial de 1910, que: "A instruo do povo, ao mesmo tempo que o civiliza eo melhora, tem especialmente em mira habilit-lo a se governar a si mesmo, nomeando

    periodicamente, no municpio, no Estado, na Unio, o chefe do Poder Executivo e a legislatura."

    Cabe tambm destacar que em nosso pas a funo pblica da educao foi afirmada, na melhortradio republicana, pelos grandes expoentes, como Fernando de Azevedo, das reformaseducacionais dos anos 20 e 30. 17

    10. Foi diferente o caminho norte-americano para lidar com o tema do relacionamento entrevirtude e extenso geogrfica. Com efeito, nos Estados Unidos, que pela sua dimensocontinental, em funo das variveis colocadas pelo pensamento poltico de Montesquieu,exigiriam o despotismo, a Repblica foi instaurada por obra de um consensus juris original, quesoube conciliar tamanho e volume com a forma republicana.

    Esta conciliao foi obtida atravs de uma frmula: ofederalismo, ou seja, graas existncia

    de uma pluralidade de centros de poder (os estados-membros da Federao) coordenados pelaUnio, visando assegurar, juridicamente, a unidade poltica e econmica sem abafar adiversidade. Desta maneira, buscou-se combinar a escala - necessria para lidar com a extensogeogrfica - e o volume da sociedade com a descentralizao e as virtudes do governo local, mais

    prximo da cidadania e, portanto, capaz de tornar o interesse comum visivel pelas relaes devizinhana entre governantes e governados. O princpio federalista animou o debate poltico deinspirao liberal no Brasil-Imprio, cabendo destacar a importncia atribuda por Tavares Bastos provncia e o projeto-de-lei de Joaquim Nabuco visando a criao de uma monarquiafederativa. Existia, em sntese, nas palavras de Rui Barbosa, a percepo de que "A monarquiaunitria e centralizadora" estava "vivendo da seiva das localidades" e gerando "em toda parte odesentendimento, a desconfiana, o desalento, cujo derradeiro fruto o separatismo".18

    O princpio federativo foi, por isso mesmo, corno sabido, um dos temas centrais dapropaganda republicana, que via na descentralizao a condio da manuteno da unidadenacional alcanada pelas instituies monrquicas. Foi seguindo esta linha, afirmada nomanifesto Republicano de 1870, que na Constituinte Republicana Jlio de Castilhos declarou:"Ns estamos aqui reunidos para instituir a Repblica Federalista. Aqueles que, como ns, porlongos anos, fizemos a propaganda da Repblica, no a queremos unitria, mas sim federativa,essencialmente federativa. Ns entendemos, como sempre sustentamos, que a RepblicaFederativa o nico meio de garantir a unidade poltica no meio da variedade e dos costumes da

    Nao. E, se a Federao no ficar instituda na Constituio, havemos de ver ressurgir, sob aRepblica, a mesma agitao que se avoluniou sob o Imprio. Pedamos a Repblica Federativa

    como condio eficaz de garantir a hornogeneidade poltica no meio da variedade dos interesseseconmicos e das circunstncias e costumes da populao."19

    17Rui Barbosa,Escritos e discursos seletos(seleo, organizao e notas de Virgnia Cortes Lacerda), Rio de

    Janeiro, Aguilar, 1960, p. 365. Cf. igualmente Maria Luiza Penna, Fernando de Azevedo: educao etransformao, So Paulo, Ed. Perspectiva, 1987; Jorge Nagle, Educao e sociedade na Primeira Repblica, SoPaulo, E. P. U., 1976.

    18Rui Barbosa, Comentrios Constituio Federal Brasileira ( coligidos e ordenados por Homero Pires), v. I,So Paulo, Saraiva & Cia., 1932, p. 54. Cf. Tavares Bastos, A Provncia - Estudos sobre a descentralizao noBrasil,Rio de Janeiro, Garnier, 1870.

    19

    Agenor de Roure,A Constituinte Republicana,v. 1, Rio de Janeiro, lrnprensa Nacional, 1920, p. 70-71.

  • 8/13/2019 COL O Significado de Republica No

    8/10

    Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 4, 1989, p. 214-224.

    A vocao federalista permeia, pois, a tradio republicana do nosso pas. A ela fez refernciaTancredo Neves, no seu j mencionado discurso sobre a Nova Repblica no qual, ao criticar aconcentrao de poder do regime de 1964, enfatizou a importncia de se assegurar odesenvolvimento da pluralidade dos estados, dos municpios e das regies, mantendo, ao mesmo

    tempo, a imprescindvel unidade nacional.

    11.A sugestividade da idia federativa teve, tambm, o seu impacto no plano das concepes deorganizao da vida internacional. Neste sentido, importa mencionar a proposta de Kant parasuperar o estado de natureza do permanente risco da guerra de todos contra todos por uma paz

    perptua, baseada num Direito Internacional. Este teria como fundamento um federalismo deestados livres, ou seja, uma federao de povos organizados internamente por constituiesrepublicanas.

    Da a substituio do conceito da paz imposta por um imprio universal pela paz a ser trazidaex parte populi por uma repblica universal de Estados confederados. Estes, com efeito, na

    medida em que fossem repblicas, teriam um compromisso interno com a liberdade, que setraduziria no respeito pelo Outro, o que, por sua vez, induziria, no plano externo, a paz, pois orespeito pelo Outro sustentaria o princpio da no interveno.

    Em sntese, Kant, na sua luta contra o Estado desptico, identifica como uma das principaiscausas da guerra o arbtrio e os interesses privados dos prncipes, que seriam contidos pelasvirtudes inerentes forma republicana que, respeitando a vontade popular, faria depender doscidados qualquer deciso sobre a guerra, e estes, pondera ele, refletiriam muito ao deliberarsobre as conseqncias sobre si prprios de um jogo to grave.

    A Sociedade das Naes e a organizao das Naes Unidas so desdobramentos parciaisdestes conceitos que derivam da idia republicana, cabendo tambm observar que a prtica dasOrganizaes internacionais, hoje, tem como inspirao as Possibilidades de repartio de

    competncias que esto na raiz da frmula federativa.20

    12.No Brasil, a kantiana aspirao republicana de paz, com temperos positivistas, encontrouguarida na Constituio de 1891 que, no seu artigo 88, inserido no ttulo V, que trata dasdisposies gerais, probe, direta ou indiretamente, a guerra de conquista. Tambm merecedestaque o artigo 34 - pargrafo 11 que, ao tratar das competncias privativas do Congresso

    Nacional, estipula a de autorizar o governo a declarar a guerra "se no tiver lugar ou malograr-seo recurso do arbitramento". Cabe, igualmente, mencionar que, na primeira Constituiorepublicana, na crtica redao do artigo 14, que fala das foras armadas como instituiesnacionais permanentes, O senador Gil Goulart aporitou:

    "... a Palavra Permanentes, consignada na nossa Constituio, faz supor quequeremos imitar a Europa armada, conservando grandes exrcitos sempre em pde guerra e constituindo uma ameaa s naes vizinhas. Devemos suprimir

    palavras inteis que nos faam presu mir com veleidades guerreiras. A feiocaracterstica da nossa Constituio deve ser antes a de uma paz Permanente,Como pensa e bem o Sr. Nilo Peanha".21

    20 E. Kant , Mtaphysique des moeurs, cit., Pargrafo 53 e seguintes, p. 226 e seguintes; paz Perptua (trad.

    de Marco A. Zingaro), Porto Alegre, L&pM, 1989, p. 33-43; N. Bobbio,Estado, governo, sociedade, p. 103.

    21 Agenor de Roure, A Constituinte Republicana, Vol I , cit., p.232-233. A Postura pacifista do Apostolado

    Positivista compatvel, de resto, com a viso de Augusto Cornte sobre a paz, pode ser exemplifIcada em posies

  • 8/13/2019 COL O Significado de Republica No

    9/10

    Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 4, 1989, p. 214-224.

    Conforme se verifica, a primeira Constituio republicana estabeleceu um limite Polticaexterna - a proibio da guerra de conquista - e um estmulo soluo Pacfica de controvrsias -o arbitramento.

    Esta vocao pacfica parte da tradio republicana no Brasil. Foi afirmada pela aodiplomtica brasileira no correr deste sculo. Viu-se reproduzida no art. 4oda Constituio de1934; no art. 4o da Constituio de 1946 que, alm do arbitramento, menciona outros meios

    pacficos de soluo de conflitos por rgo internacional de que o Brasil participe; no art. 7odaConstituio de 1967 (mantido Pela Emenda Constitucional de 1969), que fala de negociaesdiretas, arbitragens e outros meios pacficos, com a cooperao de Organismos internacionais deque o Brasil participe; cabendo, finalmente, referir o art. 4oda Constituio de 1988 que, entre os

    princpios que regem as relaes internacionais do Brasil, elenca a no interveno, a igualdadeentre os Estados, a defesa da paz e a soluo pacfica de conflitos.

    =====================================================================V

    13.Em sntese, esto presentes no conceito de Repblica, que busquei delinear, fazendo tambmreferncia aos desdobramentos da idia republicana em nosso pas: (i) a nfase no bem pblico,que no se confunde com o interesse dos particulares; (ii) a importncia do papel do direito paraimpedir a violncia e o arbtrio; (iii) as virtudes cvicas de cidadania, necessrias para aperfeioara convivncia coletiva, voltada para a utilidade comum que tem como um de seus ingredientes otema da educao pblicaao alcance de todos; e (iv), o princpio federalista como frmula capazde conciliar o tamanho com a proximidade, tanto no plano interno quanto no plano internacional.

    Nesta comemorao dos 100 anos da proclamao da Repblica, no h dvida que existe um

    hiato entre os princpios republicanos e a realidade nacional. No esta a Nova Repblica comque sonhamos, podemos todos hoje dizer, repetindo o que disseram, logo em 1890, prceresrepublicanos. por essa razo que cabe aos adeptos da tradio republicana enfrentar, nas

    palavras de Jaurs, a dvida do povo, pela perseverana no devotamento, tendo, como diziaTocqueville, a preocupao salutar com o futuro, que faz vigiar e combater.22

    A referncia a Tocqueville, expoente da tradio liberal, e a Jaurs, expoente da tradiosocialista, permite concluir este trabalho contrastando a Repblica dos Antigos com a Repblicados Modernos, para, a seguir, indicar a vigncia da tradio republicana tal como construda pelamodernidade, para quem - como o meu caso - identifica-se corn a afirmaao de Tocqueville em

    assumidas na Primeira Constituinte Republicana. Assim, no debate sobre o arbitramento e a guerra, e no tema dacompetncia do Congresso Nacional para declarar a guerra, o Apostolado assim se manifestou: "Nenhuma guerra

    podendo ter lugar salvo o caso de agresso imediata, sem reconrer-se primeiro ao arbitramento". Cf. Agenor deRoure, op. cit., p. 604.

    22A citao de Jaurs foi extrada do seu perfil traado por Pierre Mends-France , La verit guidailt leurs Pas, cit.,p. 97; a de Alexis de Tocqueville encontra-se na De la drnocratie en Amrique, tomo 2. 4a. parte, cap. VII, emDeIa dmocratie en Amrique, Souvenirs, L'Ancien Rgime et laRvolution (introd. e notas de Jean Claude Lamberti eFranoise Mlonio) Paris, Laffont, 1986, p. 656, e foi referida no contexto da tradio liberal por Rayrnond Aron,De lacondition histori que du sociologue, Paris, Gallimard, 1971.

  • 8/13/2019 COL O Significado de Republica No

    10/10

    Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 4, 1989, p. 214-224.

    carta a Stuart Mill, de junho de 1835: "J'aime la libert par gout, l'galit par instinct et parraison."23

    Para os antigos, a defesa da liberdade dos cidados contra a tirania de um, poucos ou muitos,transitava, de acordo com o ideal constitucional de Polibio, pela teoria do governo misto, isto ,

    por um governo regido pelo equilbrio de componentes monrquicos, aristocrticos edemocrticos, que foi o que caracterizou a Repblica Romana.24 No este, como observaBobbio, um bom fundamento para uma repblica democrtica, que se baseia no princpio da

    perspectiva ex parte populi e que no pode deixar de levar em conta a importncia do indivduodiante do todo, instaurada pela moderndade, e positivada pela Declarao dos Direitos doHomem trazidos pelas revolues americana e francesa, instituidoras das primeiras repblicasmodernas.25

    Como sabido, na evoluo destes direitos, a herana liberal afirmou os direitos-garantia dosindivduos e a herana socialista os direitos-de-crdito, de natureza scio-econmico-cultural,conjugando cada uma dessas heranas com dificuldade, o que a outra considera relevante. , noentanto, da convergncia entre as liberdades clssicas e os direitos de crdito que depende aviabilidade da democracia no inundo contemporneo. A convergencia acima mencionada podeser apadrinhada pelo ideal republicano, encarado, como sugerem Luc Ferry e Alain Renaut,enquanto uma idia regulativa kantiana. Esta, no jogo do pensar e do conhecer, exprimesimultaneamente tanto a exigncia da solidariedade que o instinto e a razo colocam no plo deigualdade, quanto a afirmao da importncia do gosto da liberdade do indivduo no contexto daorganizao do governo da vida coletiva numa comunidade poltica.26

    23Apud Jean Claude Lamberti, Tocqueville et les deux dmocraties, Paris, PUF, 1983, p. 84.

    24Polybe,Histoire (trad. e anotado por Dennis Roussel), Paris, Gallimard, 1970, Livro VI, cap. 5. p. 480-487.

    25Cf. Norberto Bobbio, Fundamento y fuluro de la democracia (trad. de Gabriel del Favero Valds), Valparaiso,Edeval, 1986, p. 42-43.

    26 Luc Ferry - Alain Renaut, Philosophie politique - III - Des droits de l'homme l'ide republicaine, cit., p.156-181.