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  • 1 Apresentao

  • CODEX CODEX CODEX CODEX Revista discente de Estudos Clssicos Revista discente de Estudos Clssicos Revista discente de Estudos Clssicos Revista discente de Estudos Clssicos

    Equipe EditorialEquipe EditorialEquipe EditorialEquipe Editorial

    EditoresEditoresEditoresEditores

    Paulo Martins, USP Henrique Fortuna Cairus, UFRJ Julieta Alsina, UFRJ Rafael Brunhara, USP

    Comisso Editorial DocenteComisso Editorial DocenteComisso Editorial DocenteComisso Editorial Docente

    Ana Thereza Basilio Vieira, UFRJ Anderson Zalewski Vargas, UFRGS Breno Battistin Sebastiani, USP Flvio Ribeiro de Oliveira, UNICAMP Joo Angelo Oliva Neto, USP Joo Batista Toledo Prado, UNESP Roberto Bolzani Filho, USP Tatiana Oliveira Ribeiro, UFRJ

    Comisso Editorial DiscenteComisso Editorial DiscenteComisso Editorial DiscenteComisso Editorial Discente

    Elaine Maia Machado, UFRJ, Brasil Caroline Evangelista Lopes, USP Patrcia Andra Borges, USP

    Conselho ConsultivoConselho ConsultivoConselho ConsultivoConselho Consultivo

    Adriano Machado Ribeiro, USP Adriano Scatolin, USP Nely Maria Pessanha, UFRJ Agatha Pitombo Bacelar, (Doutoranda) EHESS-Paris Anderson Zalewski Vargas, UFRGS Breno Battistin Sebastiani, USP Carolina de Melo Bomfim Arajo, UFRJ Cludio Aquati, UNESP Elaine Cristine Sartorelli, USP Fernando Brando dos Santos, UNESP Fernando Jos de Santoro Moreira, UFRJ Jacyntho Jos Lins Brando, UFMG Joo Angelo Oliva Neto, USP Joo Batista Toledo Prado, UNESP Juliana Bastos Marques, UNIRIO Leni Ribeiro Leite, UFES, Brasil Marcos Martinho dos Santos, USP Marly de Bari Matos, USP Mary Macedo de Camargo Neves Lafer, USP Pablo Schwartz Frydman, USP Paula da Cunha Corra, USP Paulo Martins, USP Paulo Srgio de Vasconcellos, UNICAMP Roberto Bolzani Filho, USP Trajano Augusto Ricca Vieira, UNICAMP

  • SumrioSumrioSumrioSumrio

    ApresentaoApresentaoApresentaoApresentao

    Henrique Fortuna Cairus 4

    ArtigosArtigosArtigosArtigos Leitura do poema II, 26 de ProprcioLeitura do poema II, 26 de ProprcioLeitura do poema II, 26 de ProprcioLeitura do poema II, 26 de Proprcio

    Rafael Sento-S Falcn 7

    "O Dscolo" e o feminino"O Dscolo" e o feminino"O Dscolo" e o feminino"O Dscolo" e o feminino

    Helena de Negreiros Spinelli 16

    A noA noA noA no----contradio a medida de todas as coisascontradio a medida de todas as coisascontradio a medida de todas as coisascontradio a medida de todas as coisas

    Pedro Clemente Bessa Prado Lippmann 27

    Categorias: questes acerca do esquema aristotlico frente a discusses modernas e Categorias: questes acerca do esquema aristotlico frente a discusses modernas e Categorias: questes acerca do esquema aristotlico frente a discusses modernas e Categorias: questes acerca do esquema aristotlico frente a discusses modernas e contemporneascontemporneascontemporneascontemporneas

    Bianca Tossato Andrade 53

    A democracia entA democracia entA democracia entA democracia entre guerra e paz: o riso amargo de Aristfanesre guerra e paz: o riso amargo de Aristfanesre guerra e paz: o riso amargo de Aristfanesre guerra e paz: o riso amargo de Aristfanes

    Fernanda Yazbek Rivitti 73

    Os ArgonautasOs ArgonautasOs ArgonautasOs Argonautas, de Apolnio de Rodes, e a tradio literria, de Apolnio de Rodes, e a tradio literria, de Apolnio de Rodes, e a tradio literria, de Apolnio de Rodes, e a tradio literria

    Thais Evangelista de Assis Caldas 85

    EneidaEneidaEneidaEneida: o tempo eternamente presente: o tempo eternamente presente: o tempo eternamente presente: o tempo eternamente presente

    Rosangela Santoro Souza Amato 105

    Tirania e pensamento poltico nas Tirania e pensamento poltico nas Tirania e pensamento poltico nas Tirania e pensamento poltico nas HistriasHistriasHistriasHistrias de Herdoto de Herdoto de Herdoto de Herdoto

    Camila da Silva Condilo 126

    Pgase dEleuthres: dune lgende de transmission tardive au mythe tiologique Pgase dEleuthres: dune lgende de transmission tardive au mythe tiologique Pgase dEleuthres: dune lgende de transmission tardive au mythe tiologique Pgase dEleuthres: dune lgende de transmission tardive au mythe tiologique rererere----enactedenactedenactedenacted

    Agatha Pitombo Bacelar 145

  • 4

    Codex v.1, n.2, 2009, p.4-6

    ApresentaoApresentaoApresentaoApresentao

    Caro leitor, eis o segundo nmero de Codex - Revista discente de Estudos

    Clssicos. Sentimo-nos contentes em ver o projeto virar realidade e frutificar. A Codex

    - Revista discente de Estudos Clssicos ganhou muito rapidamente o apreo de

    docentes e discentes de Estudos Clssicos de todo Brasil. Os professores estimularam

    seus alunos e orientandos de Letras Clssicas, Filosofia, Arqueologia e Histria Antiga a

    enviarem textos relativos s suas pesquisas de Mestrado e Doutorado.

    Rafael Sento-S Falcon, orientando do Professor Joo Angelo Oliva Neto (PPGLC-

    USP/VERVE-USP), convida-nos para um breve passeio pela poesia de Proprcio,

    apresentando-nos ricos comentrios acerca do Poema II, 26. Seus comentrios

    enriquecem a discusso sobre uma questo que o prprio autor formula: "Cntia seria

    (tambm) a personificao da lira properciana?".

    Helena de Negreiros Spinelli, orientada pela Professora Adriane da Silva Duarte

    (PPGLC-USP/IAC-USP), proporciona uma leitura prazerosa acerca de um texto pouco

    estudado no Brasil, o Dscolo, de Menandro. A escolha do corpus j evidencia a

    importncia de seu trabalho, mas, alm disso, Helena Spinelli, nesse texto, dirige seu

    interesse figurao do elemento feminino nessa comdia, procurando dados que

    caracterizem esse elemento como categoria.

    O princpio da no-contradio em Aristteles recebe de Pedro

    Lippmann, orientando do Professor Fernando Santoro (PPGF-UFRJ/OUSIA-UFRJ),

    uma bem argumentada explanao em que nos apontado o contraste entre os

    tratamentos dados ao real por Aristteles e por Protgoras. Ao fim temos um texto de

  • 5 Apresentao

    bela reflexo filosfica em que a reao ao modelo protagrico aparece como motor de

    um dos pontos cruciais do pensamento aristotlico.

    O pensamento aristotlico tambm o alvo das investigaes de Bianca Tossato

    Andrade, orientanda do Professor Fernando Rodrigues (PPGF-UFRJ). Bianca tem por

    objetivo ltimo, na verdade, a recepo das proposies do livro Categorias, de

    Aristteles, pela filosofia moderna e contempornea, mas, para isso, ela faz uma acurada

    exposio do que considera ser os pontos que dominaro essa recepo. Num contexto

    em que a temtica das releituras e das representaes da Antiguidade est em pauta, a

    pesquisa de Bianca Tossato Andrade passa a ser fundamental.

    A comdia de Aristfanes volta pauta de nossa Codex, com o artigo de Fernanda

    Yazbek Rivitti, fruto de um trabalho desenvolvido sob a orientao do Professor Daniel

    Rossi Nunes Lopes (PPGLC-USP). O texto de Fernanda trata do olhar de Aristfanes

    para a falibilidade das instituies democrticas durante a Guerra do Peloponeso. A

    partir da leitura d' Os acarnenses e Os cavaleiros, a autora mostra como os

    personagens cmicos encontram por soluo para a crise daqueles tempos um tipo de

    paz "restrita".

    Thais Evangelista de Assis Caldas, orientanda da Professora Nely Maria Pessanha

    (PPGLC-UFRJ/Proaera-UFRJ), que recentemente teve aprovada a sua Dissertao de

    Mestrado com a traduo comentada do Canto I d' Os Argonautas, de Apolnio de

    Rodes, apresenta-nos um estudo minucioso e esmerado das relaes de seu texto com

    Homero, Hesodo, Pndaro e Eurpides no que tange ao mito de Jaso e Medeia.

    A memria, a prolepse, o rememoramento funcionam como elementos

    estruturadores da Eneida. Eis o que nos mostra o sensvel texto de Rosangela Santoro

    Sousa Amato, orientada pelos Professores Joo ngelo Oliva Neto e Paulo Martins

    (PPGLC-USP/ VERVE e IAC -USP).

    Em "Tirania e pensamento poltico nas Histrias de Herdoto", Camila da Silva

    Condilo, orientanda do Professor Norberto Guarinello (PPGHIS-USP/LEIR-USP),

  • 6

    Codex v.1, n.2, 2009, p.4-6

    numa aguda anlise em que Herdoto lido quase que s luzes de

    Tucdides, desenvolve a hiptese de que as narrativas dos percursos dos soberanos

    despticos, reis e tiranos, brbaros e gregos, refletem o pensamento poltico

    herodotiano.

    A Codex - Revista discente de Estudos Clssicos, em seu segundo nmero, j tem

    muito para comemorar: tanto a qualidade dos textos que lhe so enviados, prova da

    qualidade das pesquisas brasileiras desenvolvidas na rea e da qualidade da nova safra de

    pesquisadores, quanto a ateno recebida em forma de quantidade de acessos ao

    primeiro nmero.

    No momento, a Comisso Editorial da Codex - Revista discente de Estudos Clssicos

    discute a demanda de publicao de artigos de discentes de doutorado. Discute-se, no

    momento, esse tema que indica mais claramente a repercusso do veculo.

    Aproveitemos, ento, a leitura deste segundo nmero, enquanto se avizinha a chegada

    do terceiro.

    Boa leitura!

  • Codex, v.1, n.2, 2009, p.7-15. 7

    LeiLeiLeiLeitura do Poema II, 26 de Proprciotura do Poema II, 26 de Proprciotura do Poema II, 26 de Proprciotura do Poema II, 26 de Proprcio

    Rafael Sento-S Falcn Graduao USP

    Orientador: Prof. Doutor Joo Angelo Oliva Neto (VERVE -USP)

    ResumoResumoResumoResumo

    Breve tentativa de compreenso de um dos mais interessantes poemas do elegaco latino Sexto Proprcio. Pauta-se a leitura no recolhimento de recursos estilsticos pelos quais o poeta amplia a abrangncia semntica da obra. Contudo, no se trata de propor uma interpretao para o poema, mas de fazer um apanhado de possibilidades.

    Palavras-chave: Elegia; Literatura Latina; Proprcio; naufrgio.

    Readings on Propertius Poem II, 26Readings on Propertius Poem II, 26Readings on Propertius Poem II, 26Readings on Propertius Poem II, 26

    AbstractAbstractAbstractAbstract

    Brief comprehension attempt of one of the most interesting Latin elegiac poems of Sextus Propertius. The analysis of the poem is founded on a collection of stylistic features in which the poet broadens the semantic scope of his work. However, the aim of this paper is not to propose an interpretation of the poem, but present an outline of possibilities.

    Keywords: Elegy; Latin Literature; Propertius; shipwreck.

  • Rafael Sento-S Falcn Leitura do Poema II, 26, de Proprcio 8

    I. IntroduoI. IntroduoI. IntroduoI. Introduo

    O amor possua trs grandes gneros na Roma antiga: a lrica, a elegia e buclica.

    A diferena mais enfatizada entre esses gneros provavelmente o carter lacrimoso da

    poesia elegaca, o que no significa meramente "triste". que a elegia, embora ressalte

    dores e sofrimentos de amor, no fica privada de certa felicidade e mesmo de um

    estranho humor; pode-se dizer at que no raro as tristes lgrimas serem causa de

    conforto e prazer.

    Uma diferena mais concreta entre a elegia e os demais gneros o metro, o

    dstico elegaco, que consiste de um hexmetro e um pentmetro dactlico (o segundo

    verso sendo chamado, com maior exatido, um "hexmetro duplamente catalctico"). O

    primeiro feito com seis ps dctilos (slaba longa-slaba breve-slaba breve), ao passo

    que o segundo exatamente como o primeiro, exceto pela falta das duas breves no

    ltimo p de cada hemistquio. Vemos ento dois dctilos, uma slaba longa, mais dois

    dctilos e uma slaba longa.

    Sexto Proprcio foi um poeta romano do crculo de Mecenas, em que convivia

    com homens como Virglio e Horcio. Sua poesia musical e suave, prpria para a

    recitao porque agradvel aos ouvidos, tanto no som como no sentido. No obstante,

    Proprcio impressiona ainda mais por sua habilidade de usar uma palavra para expandir o

    sentido de outra. Por isso Ezra Pound considerou-o um mestre da logopeia, a dana do

    intelecto entre as palavras. Sendo poeta elegaco, Proprcio limou a forma do dstico

    rumo perfeio, como se ver adiante.

  • Codex, v.1, n.2, 2009, p.7-15. 9

    II. Texto latino e traII. Texto latino e traII. Texto latino e traII. Texto latino e traduo do poemaduo do poemaduo do poemaduo do poema

    Vidi te in somnis fracta, mea vita, carina

    Ionio lassas ducere rore manus,

    et quaecumque in me fueras mentita fateri,

    nec iam umore gravis tollere posse comas,

    5 qualem purpureis agitatam fluctibus Hellen,

    aurea quam molli tergore vexit ovis.

    quam timui, ne forte tuum mare nomen haberet,

    teque tua labens navita fleret aqua!

    quae tum ego Neptuno, quae tum cum Castore fratri,

    10 quaeque tibi excepi, iam dea, Leucotho!

    at tu vix primas extollens gurgite palmas

    saepe meum nomen iam peritura vocas.

    quod si forte tuos vidisset Glaucus ocellos,

    esses Ionii facta puella maris,

    15 et tibi ob invidiam Nereides increpitarent,

    candida Nesaee, caerula Cymotho.

    sed tibi subsidio delphinum currere vidi,

    qui, puto, Arioniam vexerat ante lyram.

    iamque ego conabar summo me mittere saxo,

    20 cum mihi discussit talia visa metus.

  • Rafael Sento-S Falcn Leitura do Poema II, 26, de Proprcio 10

    Eu te vi em sonhos, meu amor, num navio destrudo, a mover as fracas mos no

    lquido jnio, e a confessar todas as vezes que me enganaste; e sem poder levantar do

    fluido os pesados cabelos, tal como, agitada pelas ondas escuras, Hele, aquela que um

    carneiro dourado carregou sobre o dorso macio.

    Como temi que o mar ganhasse, talvez, o teu nome, e que o marinheiro,

    singrando, derramasse o pranto sobre tuas guas! As providncias que tomei a Netuno, e

    com o irmo Cstor, e todas que tomei a ti, Leuctoe, que agora s uma deusa!

    Mas tu, erguendo com dificuldade as pontas dos dedos, prestes a perecer, chamas

    continuamente meu nome. Se talvez Glauco tivesse visto os teus olhinhos, terias sido

    transformada na menina do mar jnio, e as Nereidas, a branca Neseia, a cerlea

    Cimtoe, censurar-te-iam por inveja.

    Mas eu vi acorrer em teu auxlio um golfinho; aquele, acho, que antes carregara a

    lira de Aron. E eu j estava tentando lanar-me de um alto rochedo, quando meu medo

    dissipou essas vises.

    III. Breve comentrio geralIII. Breve comentrio geralIII. Breve comentrio geralIII. Breve comentrio geral

    O poema II, 26 de Proprcio , sob muitos aspectos, um dos mais vivos e

    profundos do autor. O gosto de Proprcio pela imagem, e especificamente pela visual,

    salta aos olhos do leitor na primeira palavra: vi (uidi, v. 1). Assim a parte introdutria

    do poema, em que se cria a atmosfera fundamental: a viso durante os sonhos, Cntia

    naufragando, enfraquecida, e confessando seus crimes de amor.

  • Codex, v.1, n.2, 2009, p.7-15. 11

    O smile do verso 5 d um salto da viso do naufrgio para os pensamentos do

    poeta a respeito da viso (entendendo-se por poeta aquele que diz eu no poema, ou

    seja, um construto). Comparando-se Cntia a Hele, abrem-se portas para a poesia, que

    vem enriquecer com significado o suposto fato corriqueiro que sonhar com um

    naufrgio: a analogia com Hele o que permite que Proprcio realize o belo eufemismo

    que o mar tivesse o teu nome (tuum mare nomen haberet, v. 7), para dizer que

    morresses. Hele, afinal, deu seu nome ao Helesponto, porque l morreu afogada; Cntia

    que, no sendo figura mitolgica, no daria nome a mar algum alada a essa

    importncia por um simples smile.

    Quando o poeta diz, no verso 7, quam timui, transforma seus prprios

    sentimentos, no objeto do discurso; trata-se de transferir o interesse de Cntia para o

    que Proprcio sente e faz por Cntia. Primeiro o temor, depois as providncias tomadas a

    deuses que protegem os navegantes, tudo tem Proprcio como sujeito, e no Cntia. Esse

    movimento de tu para ego inverte-se no verso 11, que no por acaso comea com at tu,

    ou seja, uma conjuno adversativa e o pronome que marca a troca de sujeito.

    Cntia agoniza e chama o nome de Proprcio, continuamente, depois de levantar

    com dificuldade as pontas dos dedos. O momento no dura muito: no verso 13,

    sutilmente, o poema desvia a nossa ateno para uma elucubrao sobre o que

    aconteceria se Glauco tivesse visto os olhos da Cntia suplicante. Cntia teria sido

    transformada em menina do mar jnio, e criticada pelas Nereidas ciumentas. Essa

    digresso termina no verso 17, que comea com sed tibi: sistematicamente, Proprcio

    marca o retorno viso propriamente dita, usando outra conjuno adversativa seguida

    do mesmo pronome tu, embora em outro caso. No penltimo dstico, o golfinho que

    salva Cntia transforma-se em objeto de especulao de Proprcio, que imagina tratar-se

    do mesmo golfinho responsvel pelo salvamento do msico mtico Aron. O ltimo

  • Rafael Sento-S Falcn Leitura do Poema II, 26, de Proprcio 12

    dstico, comeado com iamque ego, faz o poeta retornar como sujeito, que quase se

    lana de um rochedo.

    IIIIVVVV. Alguns aspectos estruturais. Alguns aspectos estruturais. Alguns aspectos estruturais. Alguns aspectos estruturais

    Aproveita tecer comentrios sobre certas curiosidades do poema em questo, sem,

    contudo, explorar as interpretaes que suscitam. O uso de termos tcnicos e de

    possveis aluses, que sugerem leituras mltiplas, certamente interessa ao leitor de poesia

    antiga.

    Interessante verificar os termos pelos quais Proprcio designa o mar jnio

    durante o poema: ros (v. 2), umor (v. 4), mare (v. 7) aqua (v. 8), nessa ordem. Os dois

    primeiros possuem, entre as acepes possveis, a de lgrimas. A palavra mare, que a

    mais exata para mar, s usada no verso 7. Isso sem dvidas traz memria a expresso

    bebedor de gua (admoram fontibus ora; Prop. 3,3,5), usada para designar o poeta

    elegaco, em oposio ao bebedor de vinho, que o lrico1. Quando, no verso 8, as

    palavras fleret e aqua so colocadas lado a lado, a associao do mar ao pranto torna-se

    uma tentao. O elegaco bebe gua das lgrimas que chora, pois seu amor lhe traz

    sofrimento. As ambiguidades do poema 26, se consideradas intencionais, podem ativar

    uma chave de leitura que considere o mar como o prprio fundamento da elegia, isto ,

    o amor elegaco propriamente dito. Assim sendo, o naufrgio de Cntia passa a ser um

    mergulho no amor, do qual ela se impregna.

    O uso de termos tcnicos do gnero elegaco tambm chama ateno. Os versos

    4 e 6 do poema apresentam, respectivamente, o termo grauis, usado em geral para aludir

    1 CONTE, Gian Biagio, Genre Between Empiricism and Theory, p.110, e nota 8; In CONTE, G. B. Genres and Readers. Baltimore / London: John Hopkins, 1994.

  • Codex, v.1, n.2, 2009, p.7-15. 13

    ao gnero elevado, e mollis, que se refere ao gnero mdio. O primeiro adjetiva, no

    verso 4, os cabelos de Cntia, que esto pesados por causa da umidade; mas a

    proximidade com a palavra umore, designando o mar, certamente gera alguma suspeita.

    Ademais, se os cabelos ficaram pesados, foi por causa da gua; a prpria gua, ento,

    pode ser entendida como fonte da grauitas.

    O segundo caso, mollis, refere-se no verso 6 ao dorso do carneiro de ouro;

    interessante que o carneiro deixou Hele cair, e a sugesto que Cntia, como Hele,

    caiu tambm de um dorso macio. O quiasma entre as expresses umore grauis e molli

    tergore (vv.4 e 6) seduz o leitor a procurar um sentido nisto. Se o mar for considerado o

    amor elegaco, que o carneiro? E qual a relao entre o carneiro, que deixa Cntia cair,

    e o golfinho, que a salva? Ambos vm acompanhados do verbo veho, carregar,

    primeiro no pretrito perfeito e depois no mais-que-perfeito. Considerando que o

    golfinho, aparentemente, o mesmo que carregou Aron, ele costuma salvar poetas. Mas

    Proprcio no diz que o animal salvou Aron, e sim a lira Arinia. Isso poderia ser usado

    para provar que Cntia (tambm) uma personificao da lira properciana? Essas so

    perguntas teis para formular uma interpretao no-literal do poema.

    V. Concluso: ironias de ProprcioV. Concluso: ironias de ProprcioV. Concluso: ironias de ProprcioV. Concluso: ironias de Proprcio

    Os dois ltimos versos do poema 26 intrigam. Proprcio estava prestes a lanar-se

    de uma rocha, para salvar Cntia, supomos. Contudo, as vises que tivera so dissipadas

    pelo medo. Que medo esse? O mesmo do verso 7, timui, em que se tratava de temer

    pela vida de Cntia? possvel. O medo tornar-se-ia to grande, que Proprcio

    despertaria do sonho a tempo de perceber que era uma iluso.

  • Rafael Sento-S Falcn Leitura do Poema II, 26, de Proprcio 14

    Contudo, impossvel no considerar que, com mais razo, o medo de morrer

    fez com que o poeta despertasse. Pois, j que ele vinha temendo pela vida de Cntia

    desde o verso 7, por que isso no despertara antes? Ora, porque essa espcie de medo no

    desperta, antes torna o sonho mais real. O medo que faz acordar o que se sente pela

    prpria vida, e no pela dos outros.

    Porm, se aceitamos essa perspectiva, no poderemos evitar imaginar o poeta

    covarde, com as pernas trmulas, entreabrindo os olhos para medir a altura do rochedo

    de onde se lanar para salvar sua amada. Se isso no for ridculo o bastante, pensaremos

    tambm que esse amor que convive com o medo no o mais nobre e puro; parece

    mesmo um pouco mesquinho e vicioso. Frustrante, na verdade. Como o dstico

    elegaco, que comea prometendo epopeias, mas perde a fora no segundo verso, assim

    o poema 26, cujas tocantes cenas de amor do lugar, no ltimo verso, a uma confisso de

    fraqueza. A urbanidade de Proprcio inclui, pelo que se v, a capacidade de caoar dos

    prprios tpoi, dando lugar a uma interpretao erudita e divertida do decorum

    elegaco.

    BibliografiaBibliografiaBibliografiaBibliografia

    ALLEN, A. "Sincerity and the Roman Elegists". In: Classical Philology, 15. Chicago:

    University of Chicago Press, 1950.

    MARTINS, P. Sexto Proprcio - Monobiblos. thos, Verossimilhana e Fides no

    discurso elegaco do sculo I a.C. So Paulo: FFLCH / USP. 1996.

  • Codex, v.1, n.2, 2009, p.7-15. 15

    OLIVA NETO, J.A. Os Amores de Ovdio e suas recusas. In: Letras Clssicas, 4.

    p.347-51. So Paulo: Humanitas, 2000.

    OVDIO. Amores. Milo: Bur, 1985.

    PROPRCIO. Elegies. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1990.

    VEYNE, P. A Elegia Ertica Romana. So Paulo: Brasiliense, 1985.

    Recebido em Agosto de 2009 Aprovado em Outubro de 2009

  • 16 Helena Spinelli - O "Dscolo" e o feminino

    O DscoloO DscoloO DscoloO Dscolo e o feminino e o feminino e o feminino e o feminino1

    Helena de Negreiros Spinelli Mestrado USP

    Orientadora: Profa. Doutora Adriane da Silva Duarte (GTA USP)

    ResumoResumoResumoResumo

    Este estudo apresenta de forma breve um panorama sobre as personagens femininas de O Dscolo, de Menandro, autor grego do sculo IV a.C. Partindo de um exame das personagens femininas na tragdia e na comdia antiga, percebemos que a comdia nova apresenta um retrato bastante fiel da mulher ateniense no que diz respeito aos diversos aspectos que envolvem a vida no apenas da cidad, mas tambm da escrava. PalavrasPalavrasPalavrasPalavras----chavechavechavechave: Literatura Grega Antiga; Teatro; Comdia Nova; Menandro; O Dscolo.

    The Dyscolos and the feminineThe Dyscolos and the feminineThe Dyscolos and the feminineThe Dyscolos and the feminine

    AbstractAbstractAbstractAbstract

    This study presents a brief overview of the female characters of The Dyscolos, by Menander, Greek author from the fourth century B.C. Starting with the examination of the female characters in Tragedy and in Old Comedy, we notice that the New Comedy presents a fairly accurate portrait of Athenian women regarding various aspects involving not only the lives of citizens but also the slaves. KeywordsKeywordsKeywordsKeywords: Ancient Greek Literature; Theatre; New Comedy; Menander; The Dyscolos.

    1 Parte desse estudo foi apresentado no II Colquio do Grupo de Pesquisa Estudos sobre o Teatro Antigo de 2008, na Faculdade de Letras da Universidade de So Paulo, FFLCH/USP.

  • 17 Codex, v.1, n.2, 2009, p.16-26

    Muito embora os papis sociais femininos no tenham se alterado na passagem do

    sculo V para o IV a.C., o modo pelo qual a mulher concebida no teatro passar por

    significativas mudanas. Na Atenas do sculo V a.C., existe a mulher que se sobressai no

    drama, tanto na tragdia quanto na comdia. Nas palavras de Foley (1981, p.133),

    Elas falam por si, reivindicam uma vasta gama de inteligncia, criticam sua situao, e influenciam os homens com sua retrica. Elas deixam o lar e at mesmo participam da esfera poltica que lhes negada na vida real. 2

    Porm, como explica a autora, no se deve esquecer que essas situaes

    extraordinrias devem-se aos enredos que retratam situaes de crise familiar, e como as

    cenas interiores so algo raro, a mulher trazida a pblico. E embora a mulher tenha um

    papel de destaque nessas situaes, ela no deixa de ser advertida por ultrapassar o limite

    do socialmente aceito, ora sendo instada a permanecer em seu lugar (Eur. Pho. 88ss.,

    193ss, ou Electra 341ss.), ora sendo alvo da resistncia masculina ante uma situao de

    confronto, como no caso da Antgona, de Sfocles (484-85).

    No caso da tragdia, a mulher, em alguns casos, pagar por suas transgresses

    submetendo-se mais uma vez ao domnio masculino, como no caso da Antgona, que

    paga com a prpria vida. J na comdia, como no caso da Lisstrata, de Aristfanes, a

    mulher assumir um papel masculino quando os homens mostram-se incapazes para

    resolver um problema que ameaa o oikos: a guerra desarmoniza o lar, logo as mulheres

    agem, e uma vez solucionado o conflito, elas retornam, pacificamente, a suas casas e

    reassumem seus papis sociais.

    3 They speak for themselves, lay claim to a wide-range intelligence, criticize their lot, and influence men with their rhetoric. They leave the household and even take action in the political sphere denied to them in life".

  • 18 Helena Spinelli - O "Dscolo" e o feminino

    No caso da comdia nova, por outro lado, o que se observa uma tentativa mais fiel

    no tratamento da imagem feminina, pois uma vez que as evidncias provenientes da

    oratria do provas da fidelidade deste tipo de comdia lei tica, as situaes retratadas

    nos seus enredos podem ser tomadas como representativas da sociedade no que diz

    respeito ao tratamento do status civil da mulher bem como no que tange s leis que

    versam sobre o casamento e o divrcio.

    Desse modo, as mulheres no desempenharo grandes papis na comdia, exceto

    pela cortes e pela concubina, as quais no se aplicam as mesmas regras que se destinam

    as cidads. Ao contrrio destas ltimas, a concubina e a cortes so independentes e livres

    para escolher e mesmo abandonar seus parceiros. Porm, deve-se notar que esses dois

    papis femininos, segundo David Konstan (Konstan, 1996), apresentam aspectos

    diferenciados que influenciam diretamente na sua caracterizao na comdia: enquanto os

    papis de cortes e esposa opem-se diametralmente, o da concubina encontra-se entre

    estes dois extremos.

    De acordo com o que apresentado na comdia nova, a corteso no uma cidad,

    e portanto no se encontra apta ao casamento, dispondo de vrios parceiros, com os quais

    estabelece uma relao unicamente comercial a despeito de qualquer afeio que venha a

    existir. Em oposio a ela h a esposa, que deve ser casta para assegurar a legitimidade dos

    filhos e totalmente desprovida de vontade, figurando como mero objeto que transferido

    a outrem, no caso o marido, como em uma transao comercial. Confinada ao lar, a

    mulher tem como funo primordial gerar herdeiros para seu marido ou ainda para seu

    prprio pai, caso este venha a falecer sem deixar um herdeiro homem para suas

    propriedades. Sendo assim, o confinamento ao interior do lar assegura a legitimidade

    desses herdeiros sem que nenhuma dvida seja lanada sobre sua reputao. Mas embora

    no participe da vida poltica, reservada apenas aos homens, a mulher participa ativamente

    da vida religiosa da cidade, atuando em funerais, casamentos e ainda em diversos festivais,

    tanto pblicos quanto privados.

  • 19 Codex, v.1, n.2, 2009, p.16-26

    J a concubina, assim como a cortes, no desfruta do status de cidad, mas a sua

    relao com seu parceiro no tem aspecto comercial, podendo freqentemente ser

    exclusiva e duradoura. Konstan (Konstan, 1996) aponta que tal como a esposa, a

    concubina participa do lar, sendo que todos os recursos materiais que advm desta relao

    no so vistos como lucro, mas sim como bens compartilhados.

    Sendo assim, dado seu carter ambguo, situado entre o papel de esposa e de cortes,

    a concubina ser representada de maneira bastante flexvel na comdia nova, apresentando

    at mesmo passvel de tornar-se apta ao casamento, sobretudo quando ela apresenta todas

    as virtudes que uma esposa deve possuir: ela casta (tem envolvimento apenas com um

    nico parceiro), demonstra afeio e no tem interesses pecunirios. Neste caso, a

    comdia se encarregar de derrubar todos os obstculos que impedem a unio

    matrimonial atravs da anagnrisis (reconhecimento), na qual se revelar que a moa, na

    verdade, uma cidad.

    Com relao ao Dscolo, muito embora a presena feminina em cena seja bastante

    reduzida, o elemento feminino apresenta-se proporcionando este quadro bastante fiel do

    status social da mulher, pois muito embora a questo da misantropia de Cnmon seja

    central comdia, no apenas o desejo de Sstrato por um casamento, mas tambm o

    ritual de sacrifcio na gruta de P propicia o contato com este universo. Entre as

    personagens da pea, as nicas a apresentarem falas so a menina, filha de Cnmon e a

    escrava Simica. Porm, no decorrer da pea, personagens secundrias aparecem, e apesar

    de seu silncio, so tambm representativas deste mesmo universo.

    Primeiramente, chama a ateno o fato no somente da menina, mas tambm de

    sua me e da me de Sstrato, essas duas ltimas, personagens secundrias, no possurem

    um nome prprio, sendo designadas apenas por suas atribuies. Todas as trs so cidads

    atenienses, e no apresentar um nome prprio pode ser tomado como um indicativo

    desse status, pois como aponta Helene Foley (1981), os indcios histricos mostram que

  • 20 Helena Spinelli - O "Dscolo" e o feminino

    cidad respeitvel no so feitas referncias, quer s suas qualidades, quer aos seus defeitos,

    como verificado na orao fnebre proferida por Pricles (Tuc. 2.45)3:

    ,

    , , pi pi .

    pi

    pi' pi

    .

    Se tenho que falar tambm das virtudes femininas, dirigindo-me

    s mulheres agora vivas, resumirei tudo num breve conselho: ser

    grande a vossa glria se vos mantiverdes fiis vossa prpria

    natureza, e grande tambm ser a glria daquelas de quem menos

    se falar, seja pelas virtudes, seja pelos defeitos.

    Alm disso, nos tribunais eram referidas apenas por meio do nome do pai ou do

    marido (filha de, esposa de), sendo que neste caso, seus nomes eram apenas citados se o

    orador quisesse lanar algum tipo de suspeita sobre sua reputao. Alm disso, David

    Schaps (Schaps, 1977) atenta para o fato de a mulher estar relacionada com os assuntos da

    casa, e por isso no ter um lugar fora do seio de sua famlia. Segundo o autor, a mulher

    por si s no era digna de respeito, mas era por ser me, filha ou esposa de algum que

    devia ser tratada de maneira respeitosa. Sendo uma mulher honrada, os jurados no a

    reconheceriam por si, mas atravs dos responsveis por ela - seu pai, marido ou filho.

    3TUCDIDES. Histria da Guerra do Peloponeso. Prefcio de Hlio Jaguaribe; trad. Mrio da Gama Kury. Braslia. Editora Universidade de Braslia, Instituto de Pesquisa de Relaes Internacionais; So Paulo: Imprensa Oficial do Estado de So Paulo, 2001.

  • 21 Codex, v.1, n.2, 2009, p.16-26

    No h como saber ao certo se Menandro suprime os nomes dessas personagens por

    tais motivos, mas bastante plausvel supor que por meio deste artifcio ele visasse

    enfatizar que essas mulheres so cidads to respeitveis que sobre elas no se deve dizer

    nada, nem mesmo seus nomes. Tal hiptese encontra respaldo ao se observar que as

    escravas Simica e Plangon, recebem nomes, pois visto que no so cidads, a elas

    dispensado outro tipo de tratamento, j que no h necessidade de proteger suas

    reputaes. E tudo isso fica mais visvel ao se comparar a freqncia com a qual a escrava

    Simica aparece em cena em relao s demais mulheres, transitando livremente entre o

    espao pblico e o espao privado.

    Essa preocupao do autor, acerca das atribuies femininas de acordo com o status

    civil de cada uma, pode ser observada ao longo da comdia, bem como a ocorrncia de

    admoestaes a respeito das transgresses que podem vir a manchar a reputao da

    cidad.

    A filha de Cnmon uma menina livre, uma cidad, e portanto apta ao casamento

    para produzir filhos legtimos. Contudo, a despeito de seu status, ela no se encontra

    confinada exclusivamente ao lar, mas auxilia ao pai e escrava nos servios da lavoura e

    da casa, pois muito embora a diviso do trabalho se d segundo o gnero desde a pica

    homrica, segundo a qual trabalhos externos e agricultura caracterizam-se como tarefas

    masculinas, enquanto as tarefas domsticas, sobretudo a produo txtil, caracterizem-se

    como tarefas femininas, bastante provvel que apenas uma pequena parte das mulheres

    se encontrasse confinada ao lar, j que a maior parte da populao vivia no nvel da

    subsistncia. Segundo Walter Scheidel (1995), no menos que dois teros da populao

    dedicavam-se agricultura, e a participao da fora de trabalho feminina dava-se em

    funo da disponibilidade da mo de obra escrava, bem como da utilizao de

    implementos agrcolas. Ainda de acordo com o autor, supe-se inclusive que as mulheres

    tivessem maior participao nas lavouras que empregavam a enxada ao invs do arado,

    que exigia maior fora fsica.

  • 22 Helena Spinelli - O "Dscolo" e o feminino

    O primeiro encontro entre a menina e Sstrato no representado em cena, mas

    relatado por P no prlogo. Neste encontro no h indcio da ocorrncia de um dilogo

    entre os dois, porm Sstrato reconhece se tratar de uma cidad, o que o faz enviar

    imediatamente um mensageiro ao pai da moa para tratar do casamento. No fica claro

    como ele percebe que a moa livre, uma vez que as exatas circunstncias do encontro

    so desconhecidas.

    A primeira interao entre as duas personagens s se d entre os versos 189 a 212,

    quando a moa sai de casa para buscar gua. Existe um poo dentro da propriedade de

    seu pai, mas como a escrava deixa o balde cair l dentro, faz-se necessrio buscar gua na

    gruta do deus. Ao ver a moa, Sstrato prontamente se oferece para ajud-la com a gua.

    Ela aceita, mas consciente das restries que a ela se aplicam em virtude de se status, a

    menina sabe que no pode sair de casa, e expressa seu medo quanto a ser pega em

    pblico, sobretudo por estar desacompanhada.

    Daos, o escravo de Grgias, observa ocultamente o encontro e recai justamente

    sobre tal questo expressando sua preocupao quanto moa encontrar-se sozinha em

    um lugar remoto sendo servida por um jovem que ele toma por oportunista. Como se

    sabe, a desonra da moa implicaria na desonra da famlia, como expressa Grgias em 243

    a 246, pois o simples fato de ser vista na companhia de um desconhecido poderia lanar

    dvidas sobre sua reputao.

    Ao ser alertado por Daos sobre o que se passa, Grgias, o meio irmo da moa, vai

    ao encontro de Sstrato para adverti-lo, e ao v-lo, imediatamente reconhece se tratar de

    um sujeito da cidade por causa de suas roupas, e tendo em vista a m reputao que o

    ambiente urbano possui, por representar a luxria e a frivolidade, em oposio ao campo,

    reduto da moralidade sria, o rapaz o toma por um criminoso. Porm, aps conversar

    com Sstrato, tudo esclarecido, e Grgias, sabendo das reais intenes do jovem passa a

    ajud-lo na tarefa de falar com o pai da moa.

  • 23 Codex, v.1, n.2, 2009, p.16-26

    O contraste entre o trabalho e a ociosidade advinda do luxo tambm se reflete no

    comportamento feminino, o que permite um olhar sobre as diferenas entre classes sociais

    distintas e seus respectivos valores. Como se sabe, as mulheres viviam uma vida de

    isolamento, confinadas ao interior da casa, e, portanto, o trabalho feminino apresentava-se

    como algo degradante e embaraoso, mas aceitvel apenas em situaes excepcionais

    determinadas pela pobreza. A filha de Cnmon e a me de Grgias desempenham tarefas

    domsticas e, no caso da primeira, tambm tarefas do campo, uma vez que a manuteno

    da mo de obra escrava provavelmente se apresentava como algo bastante dispendioso e

    fora do alcance da famlia, agregando-se a isso a misantropia de Cnmon. J no caso das

    mulheres provenientes das classes mais altas, o trabalho evidentemente algo

    desnecessrio, permitindo que elas se voltem para outras atividades, mas embora essas

    mulheres sejam retratadas com a mesma dignidade conferida mulher campesina, dispor

    de infindveis recursos implicar em um olhar diferenciado e crtico do autor no que diz

    respeito a seus hbitos e valores.

    A me de Sstrato uma rica senhora da cidade, que durante o desenvolvimento da

    trama encontra-se na gruta de P a sacrificar para este deus. O motivo do sacrifcio um

    sonho que teve no qual seu filho, preso em grilhes por P, cava um terreno prximo

    daquele local. Logo, ela sacrifica com a inteno de afastar tal ameaa, demonstrado um

    profundo desprezo pelo trabalho, sem saber que na realidade isso j est acontecendo, pois

    o deus o responsvel pela paixo do jovem rapaz, uma vez que em virtude da devoo

    da filha de Cnmon s ninfas ela recebe uma ateno especial que se manifesta na forma

    do apaixonado.

    Mas apesar da me do rapaz agir de acordo com suas prerrogativas, as quais lhe

    conferem o direito de atuar no mbito religioso, nota-se uma falta de comedimento

    envolvendo o ritual de sacrifcio que expressa na fala das personagens que se encontram

    prximas a ela e que participam de seu cotidiano. O primeiro testemunho dado por seu

    prprio filho nos versos 260 a 263:

  • 24 Helena Spinelli - O "Dscolo" e o feminino

    ' 260

    " - pi ' ,

    pi

    pi"

    mas mame estava prestes a sacrificar para no sei 260

    qual deus ela faz isso todo dia:

    percorre a cidade toda

    sacrificando.

    Mais frente, entre os versos 402 a 404, o escravo Getas entra em cena, carregado de

    uma quantidade exagerada de utenslios para o sacrifcio, reclamando das mulheres por ter

    que fazer esse tipo de servio:

    [ 402

    " pi[

    .

    A carga de quatro burros 402

    as malditas mulheres amarraram

    para eu carregar.

    Esses dois indcios aludem piedade exagerada no s da me de Sstrato, mas

    tambm das demais mulheres que tomam parte nos rituais. E o excesso de superstio

    bastante deplorado principalmente por aqueles que precisam carregar toda a parafernlia

    necessria. Cnmon, o pai da moa, tambm apresenta seu ponto de vista com relao ao

  • 25 Codex, v.1, n.2, 2009, p.16-26

    exagero que envolve os sacrifcios (447-453). Segundo o velho, esses rituais so feitos por

    causa do prprio adorador, e no por causa do deus. O verdadeiro gesto piedoso, segundo

    ele, caracteriza-se pelo simples oferecimento de incenso e bolo, e no pela grande

    quantidade de vtimas consumidas quase que inteiramente pelos participantes, que

    praticamente no deixam nada para o deus. E em oposio opulncia do ritual realizado

    pela senhora da cidade, h o gesto simples da menina do campo, que quando avistada por

    Sstrato, pela primeira vez, leva apenas flores para presentear as ninfas.

    Mas, por fim, esses dois mundos acabam convergindo, uma vez que Sstrato

    consegue o casamento e ainda d a mo de sua irm Grgias, devendo-se atentar para a

    total ausncia de qualquer expresso da vontade feminina. A comdia se encerra com a

    celebrao das duas unies da qual todos participam, inclusive o velho Cnmon,

    convencido pelo escravo Getas e pelo cozinheiro Scon.

    Como a comdia nova volta-se para as vicissitudes da vida privada, nada mais

    natural que o retrato dos padres da vida cotidiana, e exatamente isso o que ocorre no

    Dscolo em relao s atribuies femininas de acordo com o status de cada mulher.

    Contudo, deve ser levado em conta o fato de esta ser uma comdia de carter, o que

    significa que ao longo da ao dramtica as personagens deparam-se com escolhas s

    quais reagem de modo a deixar transparecer suas disposies morais, o que talvez confira

    um maior peso caracterizao das personagens femininas, devido necessidade de uma

    reputao sem pecha.

    BibliogrBibliogrBibliogrBibliograaaafiafiafiafia

    FOLEY, H.P. The Conception of Women in Athenian Drama. In: FOLEY, H.P.

    Reflections of Women in Antiquity. New York: Gordon & Breach, 1981. p.127-

    167.

  • 26 Helena Spinelli - O "Dscolo" e o feminino

    KONSTAN, David. The Young Concubine in Menandrian Comedy. In: Theater and

    Society in the Classical World. Edited by Ruth Scodel. Ann Arbor: The

    University of Michigan Press, 1996.

    MENANDER. Dyscolos. Edited by E.W. Handley, London, Methuen & CO LTD: 1965.

    SCHAPS, David. The Woman Least Mentioned: Etiquette and Women's Names. The Classical Quarterly, N.S., vol.27, n.2, p.323-330, 1977.

    SCHEIDEL, Walter. The Most Silent Women of Greece and Rome: Rural Labour and Womens Life in the Ancient World (I). Greece and Rome, 2nd ser., vol. 42, n.2. p.202-217, 1995.

    TUCDIDES. Histria da Guerra do Peloponeso. Prefcio de Hlio Jaguaribe; trad. Mrio da Gama Kury. Braslia: Editora Universidade de Braslia, Instituto de Pesquisa de Relaes Internacionais; So Paulo: Imprensa Oficial do Estado de So Paulo, 2001.

    Recebido em Setembro de 2009 Aprovado em Novembro de 2009

  • Pedro Lippmann A no-contradio a medida de todas as coisas

    27

    A noA noA noA no----contradio a medida de todas as coisas:contradio a medida de todas as coisas:contradio a medida de todas as coisas:contradio a medida de todas as coisas:

    sobre a crtica de Aristteles a Protgoras no Livro sobre a crtica de Aristteles a Protgoras no Livro sobre a crtica de Aristteles a Protgoras no Livro sobre a crtica de Aristteles a Protgoras no Livro da da da da MetafsicaMetafsicaMetafsicaMetafsica

    Pedro Clemente Bessa Prado Lippmann Graduao - UFRJ

    Orientador: Prof. Doutor Fernando Santoro (OUSIA -UFRJ)

    Resumo Resumo Resumo Resumo

    Neste trabalho, pretendo abordar alguns aspectos da polmica de Aristteles contra os opositores do princpio de no-contradio. Tendo em vista o posicionamento antagnico de Aristteles perante as teses atribudas a Protgoras, analisarei os argumentos apresentados pelo Estagirita nos captulos cinco e seis do livro gama da Metafsica, inseridos em um contexto que se define pela meta de situar a no-contradio como fundamento ou princpio primeiro da cincia do ser enquanto ser.

    PalavrasPalavrasPalavrasPalavras----chavechavechavechave: no-contradio; homo mensura; ontologia; fenomenismo; relativismo.

    The nonThe nonThe nonThe non----contradiction is the measure of all things: about Aristotles critic to Protagoras in contradiction is the measure of all things: about Aristotles critic to Protagoras in contradiction is the measure of all things: about Aristotles critic to Protagoras in contradiction is the measure of all things: about Aristotles critic to Protagoras in MetaphysicsMetaphysicsMetaphysicsMetaphysics

    AbstractAbstractAbstractAbstract In this work, I address some aspects of Aristotle's polemic against the opponents of the principle of non-contradiction. Given the antagonistic position towards the theories of Aristotle ascribed to Protagoras, I examine the arguments presented by the Stagirite in chapters 5 and 6 of Book of Metaphysics, embedded in a context that places the non-contradiction as a foundation or first principle of the science of being qua being.

    KeywordsKeywordsKeywordsKeywords: non-contradiction; homo measured; ontology; phenomenalism; relativism.

  • Codex v.1, n.2, 2009, p.27-50 28

    Alice was so astonished that she couldn't speak for a minute: it quite seemed to take her breath away. At length, as the Tiger-lily only went on waving about, she spoke again, in a timid voice - almost in a whisper. "And can all the flowers talk?"

    "As well as you can," said the Tiger-lily. "And a great deal louder". (CARROL, Lewis. Through the Looking-Glass, p. 168)

    O Livro da Metafsica marcado por uma notria polmica em torno da

    instaurao do princpio de no-contradio. Uma vez enunciado tal princpio,

    Aristteles se empenhar em defend-lo diante de uma multido de supostos

    adversrios, dentre os quais figura o notrio sofista Protgoras. Os captulos cinco e seis

    do Livro apresentaro essa tentativa de substituir um princpio que pe o homem

    como critrio do real e do verdadeiro por um outro que, ao estabelecer o fundamento

    de toda ontologia, fixa a no-contradio como medida da possibilidade de qualquer

    discurso.

    A escolha de tornar a no-contradio o princpio mais fundamental de toda a

    metafsica reflete uma deciso essencial. Trata-se de definir o homem como um animal

    dotado de lgos semantiks, e que, nessa condio, diz algo que significa, algo de

    determinado. Essa determinao de sentido depender da vigncia do princpio de no-

    contradio, que assumir, assim, o carter transcendental de condio de possibilidade

    de todo o discurso racional ou significativo. Recus-lo importar em no dizer algo e,

  • Pedro Lippmann A no-contradio a medida de todas as coisas

    29

    para Aristteles, aqueles que no dizem algo sequer falam, no so homens, mas se

    igualam aos vegetais.

    Diante da imperatividade da no-contradio, os adversrios tero de se

    converter ou ento ser relegados classe das plantas tagarelas1. Mas a instaurao do

    referido princpio no pode se dar por demonstrao. Por ter a caracterstica das

    evidncias primeiras, ele no pode ser contestado sem auto-refutao, nem fundado sem

    petio de princpio.2

    A defesa aristotlica desse princpio se basear na diferena entre demonstrao e

    refutao. Esta valer como aquela na medida em que revelar que os que contestam o

    princpio de no-contradio o pressupem. Para haver refutao, ser requerida a

    presena de ao menos um oponente fictcio, cujas teses sero supostas e que dever se

    submeter exigncia mnima de querer significar algo para si e para outrem, de modo a

    satisfazer a condio de possibilidade de todo o discurso. Em face desses artifcios, a

    defesa de Aristteles assumir os traos de uma encenao dialtica esquiva e astuta, de

    inspirao assaz sofstica.

    nessa arena imaginria que Aristteles simular confrontar-se com as teses de

    um Protgoras igualmente fantasioso. Em seguida, examinar-se-o os argumentos que

    o Estagirita usar para combat-las, concentrados nos captulos cinco e seis do Livro .

    A crtica a ProtgorasA crtica a ProtgorasA crtica a ProtgorasA crtica a Protgoras

    1 1006a 11-14. 2 CASSIN, Barbara. O efeito sofstico, p.87.

  • Codex v.1, n.2, 2009, p.27-50 30

    Como indica o trecho inicial do quinto captulo do Livro , Aristteles v em

    Protgoras um dos principais opositores do princpio da no-contradio, pois associa

    claramente a homo mensura negao desse princpio (1009a 6-14):

    Provm da mesma opinio tambm o argumento de Protgoras, e necessrio que ambos semelhantemente ou sejam ou no sejam verdadeiros. Pois se tudo aquilo que se reputa e aparece ser o caso verdadeiro, necessrio que tudo seja ao mesmo tempo verdadeiro e falso (pois muitos tm concepes contrrias entre si e consideram estar errados os que no tm as mesmas opinies que eles prprios; por conseguinte, necessrio que o mesmo seja e no seja o caso) e, se isso assim, necessrio que seja verdadeiro tudo aquilo que se reputa ser o caso (pois os que erram e os que dizem a verdade tm opinies opostas entre si; ora, se os entes so assim, todos ho de dizer a verdade).3

    A passagem acima indica que Aristteles parece crer que a doutrina de

    Protgoras e a negao do princpio de no-contradio derivam uma da outra.

    Aristteles insinua que, de acordo com a tese fenomenista de Protgoras, as opinies

    seriam todas verdadeiras4. Como as opinies divergem umas das outras, os elementos

    contraditrios teriam de ser simultaneamente verdadeiros (j que opinies contrrias

    seriam igualmente verdadeiras) o que viola o princpio de no-contradio. Assim, a

    negao extrema desse princpio (" necessrio que tudo seja ao mesmo tempo

    verdadeiro e falso") tida, pelo Estagirita, como conseqncia da posio de Protgoras

    3 Grifo nosso. Todas as citaes diretas do texto de Aristteles se referem edio de Lucas Angoni, especificada na bibliografia. 4 Entende-se por fenomenismo a posio metafsica segundo a qual todas as aparncias - bem como todas as crenas - so verdadeiras. Esta posio est presente na seguinte passagem, acima citada: (...) tudo aquilo que se reputa e aparece ser o caso verdadeiro (...). Para uma caracterizao pormenorizada do relativismo e do fenomenismo atribudos por Aristteles a Protgoras, cf. POLITIS, Vasilis. Aristotle and the metaphysics, pp. 156-187.

  • Pedro Lippmann A no-contradio a medida de todas as coisas

    31

    ("tudo o que se reputa e aparece ser o caso verdadeiro). Convm observar que, stricto

    sensu, a justificativa apresentada por Aristteles insuficiente. Para que a tese de

    Protgoras acarretasse a necessidade da mencionada concluso, no bastaria que muitos

    tivessem concepes contrrias entre si, mas seria preciso que, para toda crena ou

    concepo existente, houvesse pelo menos algum que a adotasse e pelo menos algum

    que a rejeitasse. Logo, a justificativa mencionada por Aristteles s d ensejo a uma

    negao mais branda do princpio de no-contradio, embora esta j seja suficiente

    para colocar Protgoras ao lado daqueles que o rejeitam5. Assim, por meio desse

    raciocnio, o Estagirita exps como a rejeio do princpio de no-contradio pode

    derivar da doutrina protagrica.

    Para mostrar que o contrrio tambm possvel, isto , que partindo-se da

    negao do princpio de no-contradio, chega-se tese de Protgoras, basta

    considerar que, uma vez rejeitado o referido princpio, ter razo seja quem negar, seja

    quem afirmar algo. Como tudo e no , todas as crenas ou opinies se tornam

    verdadeiras.

    A tese de Protgoras e a afirmao de que os contraditrios podem ser

    verdadeiros juntos esto mutuamente implicadas. Sendo assim, sustentam-se ou

    destroem-se, respectivamente, caso se negue ou afirme o princpio de no-contradio

    ou caso se afirme ou negue a posio fenomenista. Tendo em vista a impossibilidade de

    se demonstrar por via direta o princpio de no-contradio, Aristteles buscar

    confirm-lo indiretamente indicando os problemas da posio de Protgoras.

    5 Esta observao, proveniente da anlise lgica modal dos argumentos aristotlicos, encontra-se presente nos comentrios de Christopher Kirwan sua traduo do Livro . Cf. ARISTOTLE. Metaphysics: books gamma, delta and epsilon, p. 106.

  • Codex v.1, n.2, 2009, p.27-50 32

    Antes de analisar esses argumentos, deve-se mencionar uma importante

    distino traada por Aristteles6. Ele distingue entre (i) os que carecem de persuaso,

    que devem ser convencidos pela exposio dos problemas de seu pensamento, pois

    encontraram efetivas dificuldades ao investigarem a realidade; e (ii) os que carecem de

    fora, i.e., que devem ser refutados, pois negam o princpio de no-contradio por

    razes ersticas.

    Em consonncia com a classificao binria acima exposta, Aristteles situa

    Protgoras no primeiro partido, com o intuito de expor o modo de pensar que originou

    as opinies do sofista. Este modo de pensar estaria relacionado experincia sensvel.

    Mas no s Protgoras, como muitos outros - filsofos, sofistas e poetas - teriam sido

    levados a admitir a contradio por razes similares7. Alis, so tantos e to clebres

    aqueles que se equivocam sobre aquilo que deveria ser o princpio mais evidente de

    todos que se levado a suspeitar da coerncia de Aristteles. Como bem o observa

    Barbara Cassin:

    Ora, constata-se que ao longo do captulo 5, aps a instaurao da refutao, vm se situar ao lado dos adversrios, alm de Herclito, depois Protgoras, ao mesmo tempo Anaxgoras, Demcrito, Empdocles e o prprio Parmnides, Homero, Crtilo: as maiores autoridades da fsica, da cosmologia, da filosofia, da poesia, todos os que buscam e que mais amam a verdade (5 1009b 34s.). A conseqncia disso das mais penosas: Como no teriam o direito de desencorajar-se, aqueles que se dedicam ao filosofar! (37s.). A Grcia inteira constitui, assim, exceo, ignorante daquilo que todos, no entanto, sempre souberam.8

    6 Cf. 1009a 15-21. 7 O que nega uma possvel origem erstica desse modo de pensar e confirma a incluso daqueles que o representavam no primeiro grupo o dos que carecem de persuaso (i). 8 CASSIN, Barbara. O efeito sofstico, p. 113.

  • Pedro Lippmann A no-contradio a medida de todas as coisas

    33

    Aristteles escapa de tal inconsistncia recorrendo possibilidade do puro dizer

    separado do pensar: no h propriamente adversrios da no-contradio, os que

    aparentam s-lo somente o so da boca para fora. A estratgia subjacente s

    argumentaes do Estagirita consiste em provar para seus oponentes que eles no sabem

    o que dizem, pois, se dissessem o que realmente pensam ou falassem como de fato

    agem, acabariam por concordar com ele.

    Segundo Aristteles, o modo de pensar que conduziu esses pensadores a

    equvocos (Protgoras a includo) teria como seu erro bsico o excessivo papel

    conferido sensibilidade9. Cabe, ento, ao Estagirita argumentar contra aqueles que

    recorrem experincia sensvel para rejeitar o princpio da no-contradio. Para

    Aristteles10, Protgoras estaria includo entre eles na medida em que sua posio

    relativista e fenomenista consideraria a sensibilidade de cada indivduo uma fonte da

    verdade de suas crenas e opinies. Isto se deve ao raciocnio que se expor a seguir. A

    posio fenomenista e relativista endossa a tese de que a realidade consiste naquilo que

    aparece ou se mostra a um sujeito. Se a realidade se compe daquilo que se mostra ou

    aparece a algum, real toda a sensao, toda experincia sensvel, ou seja, tudo aquilo

    que provm da sensibilidade. Se as crenas e opinies se baseiam naquilo que aparece a

    um indivduo, elas so verdadeiras, pois tm por base a realidade. Alm disso, se a

    experincia sensvel se revelar contraditria, dando origem a opinies e crenas

    verdadeiras, ainda que divergentes, deve-se reconhecer que o princpio de no-

    contradio no se aplica a todos os entes. Ao argumentar contra as teses fenomenistas

    e relativistas, que parecem dar espao contradio, Aristteles argumentar tambm

    contra Protgoras, na medida em que se considere esse sofista um dos representantes 9 Cf. 1009a22, 1009b13 e 1010a1. 10 Plato parece compartilhar de uma opinio similar. No Teeteto, nota-se que Scrates no hesita em associar a posio relativista de Protgoras ao sensibilismo, o que se faz evidente em 151d-152e, quando a definio de conhecimento como sensao atribuda ao referido sofista.

  • Codex v.1, n.2, 2009, p.27-50 34

    dessa posio. E, ao argumentar contra aqueles que se baseavam na experincia para

    rejeitar o princpio de no-contradio, Aristteles, em alguns momentos, tambm se

    opor a Protgoras, uma vez que as posies deste presumem alguma valorizao da

    experincia sensvel.

    Ao traar a genealogia das posies de seus adversrios e lhes apontar os erros,

    Aristteles formula um primeiro grupo de argumentaes, cujos destinatrios so

    alguns filsofos da natureza, como Anaxgoras e Demcrito. Estes teriam sido levados a

    negar o princpio de no-contradio quando perceberam, por experincia, que da

    mesma coisa em devir seguiam-se ambos os contrrios. Somando esta constatao

    idia de que impossvel que algo seja gerado a partir do nada, eles foram levados a

    pensar que ambos os contrrios coexistiam previamente naquela coisa que lhes deu

    origem. Para Aristteles, esse tipo de raciocnio se deve a uma forma errnea de

    compreenso do devir. Para explic-lo adequadamente, preciso distinguir os dois

    modos pelos quais o ser e o no ser podem ser entendidos. O ser (i) ser em ato ou (ii)

    em potncia; o no-ser (i) o absoluto no-ser ou (ii) o ser em potencial, que ainda no

    ser em ato. Ora, de fato, do no-ser absoluto nada pode ser gerado. Porm, do no-ser

    como potncia, algo pode vir a ser. Ademais, a mesma coisa nunca pode ser e no ser

    em ato, mas pode conter os contrrios (isto , qualidades contrrias) em potncia11.

    Assim, torna-se possvel que do mesmo originem-se ambos os contrrios, mas no ao

    mesmo tempo: a gua e no fria em potncia, mas pode vir a ser fria ou quente em

    ato, ainda que no ao mesmo tempo.

    Para o Estagirita, a experincia sensvel tambm poderia ter levado alguns

    opinio (compartilhada por Protgoras) de que todas as aparncias so verdadeiras.

    Ainda que as sensaes possam se contradizer, elas parecem incorrigveis. Se o mesmo

    11 Pode-se ao mesmo tempo ter propriedades opostas por contrariedade potencialmente, mas no atualmente. LUKASIEWICZ, Jan. Sobre a lei da contradio em Aristteles, p. 15.

  • Pedro Lippmann A no-contradio a medida de todas as coisas

    35

    parece amargo a uns e doce a outros e, se o mesmo indivduo nem sempre tem as

    mesmas impresses sensoriais da mesma coisa (pois o vinho que num momento parece

    saboroso, pode mais tarde parecer estragado12), qual o critrio para estabelecer quem e

    quando se percebe verdadeira ou falsamente? Se as qualidades das coisas no se

    alterassem em relao a diferentes observadores ou s mudanas sofridas por um mesmo

    observador, seria possvel alegar que este se enganou, ou seja, seria possvel afirmar que

    nem todas as sensaes so verdadeiras. Todavia, isto incompatvel com uma posio

    fenomenista e relativista, pois supor que as qualidades das coisas no se alteram em

    relao a diferentes observadores ou s mudanas sofridas por um mesmo observador

    significa reconhecer ao menos algum grau de independncia da realidade em relao ao

    sujeito, ou seja, esposar alguma espcie de realismo. Esse realismo defensvel na

    medida em que se pressupe que se possa saber qual o grau de independncia dos

    objetos da realidade em relao ao sujeito que os percebe. Contudo, se no for possvel

    sab-lo, o ceticismo surge como alternativa.

    Conforme menciona Aristteles, Demcrito teria sido levado ltima posio

    por observar que as propriedades dos objetos se manifestam somente na presena

    daqueles que os percebem. Ainda que propriedades distintas reflitam diferentes

    interaes entre os objetos e os rgos dos sentidos, o conflito entre as aparncias nos

    impediria de identific-las: o que aparece de um modo para algum pode aparecer do

    modo completamente diferente para outro. Se fosse assim, ento "no seria evidente

    qual [dessas aparncias] seria verdadeira ou falsa, pois estas em nada seriam mais

    verdadeiras do que aquelas, mas sim semelhantemente. Por isso, Demcrito teria

    afirmado que ou nada verdadeiro, ou ao menos no evidente para ns"13.

    12 Aristteles parece ter em mente dificuldades similares j mencionadas em um dos dilogos de Plato. Conferir, por exemplo: Teeteto, 154 b-c. 13 Cf. 1009b 9-12

  • Codex v.1, n.2, 2009, p.27-50 36

    Em meio a essa diversidade de posies, Protgoras fornece o conceito que

    permite unificar, em relao ao pensamento aristotlico, o conjunto do pensamento

    pr-socrtico: o conceito de phainmenon ou fenmeno, aquilo que aparece.

    Conforme explica Barbara Cassin, o phainmenon designa a apresentao do ente

    atravs da sensao (asthesis) e tal presena naturalmente verdadeira, desvelada,

    desveladora, e sem correo possvel, a partir do momento em que se estabelece a

    equivalncia entre pensamento e sensao14.

    precisamente a pressuposio dessa equivalncia que constitui o erro

    compartilhado pelos adversrios. Aristteles observa que o equvoco de identificar

    pensamento (phrnesis) com sensao (asthesis) e alterao (alloosis) foi o que os levou

    a afirmar ser necessariamente verdadeiro aquilo que se manifesta15. O Estagirita no

    detalha o tipo de raciocnio que seus predecessores teriam empregado16. Mas

    poderamos, seguindo a sugesto de Kirwan, reconstru-lo da seguinte forma17:

    i) Se algum se encontra em um estado em que x aparece como F, ento esse

    indivduo percebe que x F;

    ii) Se (i), ento x F;

    iii) se (i) e (ii), ento x como x aparece.

    14 CASSIN, Barbara. O efeito sofstico, p. 117. 15 Como observa com perspiccia Barbara Cassin: Aristteles retoma assim, com extrema habilidade, sua primeira abordagem da sofstica como sabedoria apenas aparente (2, 1004 b26): sabedoria aparente porque saber daquilo que aparece. Idem. 16 Os predecessores formam uma lista bem abrangente, que inclui, alm de Protgoras, Demcrito, Parmnides, Anaxgoras, o prprio Homero e os seguidores de Herclito e Crtilo. Como observa Ross, Aristteles no examina cuidadosamente a doutrina de seus antecessores e aparentemente rene algumas citaes isoladas sem situ-las em seu contexto de forma adequada. ARISTOTLE. Metaphysics: a revised text with introd. and commentary by W. D. Ross, p. 275. 17 Cf. ARISTOTLE. Metaphysics: books gamma, delta and epsilon, p. 107.

  • Pedro Lippmann A no-contradio a medida de todas as coisas

    37

    Para evitar a concluso, basta que uma das premissas esteja errada, e este

    obviamente o caso, como pensa o Estagirita. Ao atacar o fenomenismo, Aristteles

    questionar principalmente a segunda premissa, de modo a distinguir aquilo que os

    objetos realmente so da maneira pela qual eles so percebidos.

    Antes de argumentar contra Protgoras, cuja posio no diferencia os objetos

    do modo pelo qual eles so percebidos, Aristteles critica Herclito e aqueles que viam

    na mudana a que se submeteriam os objetos da experincia um indcio de que a

    realidade seria contraditria. Ainda que reconhea a plausibilidade das teses de seus

    adversrios em relao s coisas sensveis, Aristteles aponta que eles incorreram em

    erro ao julgar que a investigao dos entes se restringe a elas, o que lhes fez pensar que

    tudo estava sujeito mudana. (Pode-se ler aqui, tambm, uma crtica a Protgoras,

    contanto que se entenda que este reduzia os objetos do conhecimento sensao18).

    Alm de se enganarem ao pensar que todos os entes se sujeitam mudana, alguns

    adversrios se equivocam tambm ao pensar, como Herclito, que tudo flui, pois a

    corrupo e a gerao pressupem alguma permanncia (1010a 17-21):

    Pois aquilo que est perdendo possui algo do que est sendo perdido, e necessrio que j exista algo daquilo que est vindo a ser e, em geral, se algo est se corrompendo, algo haver de resultar e, se algo est vindo a ser, necessrio haver aquilo a partir de que est vindo a ser e aquilo por obra de que est sendo gerado, e que isto no v ao infinito.

    A mudana seria explicada por uma interao que produziria as sensaes, ao

    recproca entre um observador e certos objetos. Aristteles argumenta que, para que a

    mudana seja explicada adequadamente, preciso que algo no se altere. Isto 18 Esta tese claramente atribuda por Plato a Protgoras, no dilogo Teeteto (151d-152a) .

  • Codex v.1, n.2, 2009, p.27-50 38

    incompatvel com a teoria de Herclito, uma vez que esta conduz tese de que a

    mesma coisa pode permanecer sendo, mas se alterar em todos os seus aspectos. Se o

    mesmo objeto persiste ao longo do tempo, ento ele precisa manter as mesmas

    propriedades essenciais, mas, se todos os seus aspectos se alteram, ento nem mesmo

    essas propriedades poderiam ser mantidas.

    Ademais, aqueles que admitem a contradio por causa do devir se equivocam.

    No deveriam ser levados a professar a mudana incessante de toda a realidade, mas a

    preconizar sua radical imobilidade. Assim, se tudo fosse e no fosse, no poderia haver

    mudana, mas apenas imobilidade absoluta, pois Aristteles argumenta que a mudana

    pressupe uma alterao das propriedades, um vir a ter ou deixar de ter uma

    propriedade. Mas se tudo tem e no tem qualquer propriedade, como poderia sequer

    haver alterao?19

    Assim, Aristteles sustenta que mesmo uma coisa mutvel apresenta algo que

    permanece constante ao longo de sua alterao. Ainda que haja mudanas qualitativas,

    como a gerao e a corrupo20, para que alguma coisa possa ser objeto de

    conhecimento, preciso que uma qualidade no se altere: a sua forma.

    Alm disso, Aristteles aconselha seus oponentes a ampliar seu conceito de ente,

    indicando que devem dirigir seu olhar para o restante do universo (1010a 29-30): "(...)

    apenas o lugar do sensvel em volta de ns est incessantemente em corrupo e

    gerao, mas ele por assim dizer nem sequer uma parte do todo."

    Aristteles acreditava que os corpos das regies celestes fossem inalterveis,

    embora se movessem. Para ele, nem todo o universo estava sujeito corrupo e

    gerao. Entre o sensvel corruptvel e o supra-sensvel existiria o sensvel incorruptvel. 191010a 34-37. 20 Ross defende que as mudanas qualitativas s quais se refere o trecho (1010a 23-24) devem ser entendidas como exemplos de corrupo e gerao, mas no de alterao. ARISTOTLE. Metaphysics: a revised text with introd. and commentary by W. D. Ross., p. 276.

  • Pedro Lippmann A no-contradio a medida de todas as coisas

    39

    E a parte sensvel sujeita corrupo e gerao constituiria apenas um fragmento do

    universo. Para alm das coisas sensveis, haveria as supra-sensveis. Subtrada a toda

    forma de devir e de movimento, a substncia supra-sensvel seria absolutamente no-

    contraditria. Nesse sentido, existiria uma realidade absolutamente imvel e sobre a

    qual no seria possvel ter concepes contraditrias.

    Aristteles prossegue com sua crtica dirigindo-se ento ao fenomenismo e ao

    relativismo de Protgoras (1010b 1-3):

    A respeito da verdade, para provar que nem tudo o que aparece verdadeiro, [sc. deve-se dizer] primeiramente que nem sequer a sensao falsa, ao menos a do [objeto prprio], mas aquilo que no aparece no o mesmo que a sensao.

    Contra o argumento que sustenta que tudo o que aparece verdadeiro porque a

    percepo igualmente verdadeira, Aristteles responde que nem tudo o que

    imaginado percebido e que nem toda percepo verdadeira. Mesmo que os sentidos

    estivessem sempre certos ou no pudessem se equivocar sobre aquilo que seu objeto

    prprio, ressalva-se que imaginar no seria o mesmo que sentir ou perceber. Em outras

    palavras, Aristteles admite que seja verdadeiro que toda proposio sensvel no se

    engane em relao ao objeto que lhe seja prprio, mas adverte que no se pode

    identificar a imaginao com a sensao/percepo, nem lhe atribuir a prerrogativa de

    inequivocabilidade. Alm disso, Protgoras e seus seguidores demonstram na prtica

    no acreditar nas dificuldades que pretendem suscitar teoricamente (pois ningum toma

    os sonhos como realidade, por exemplo).

    O autor da Metafsica ressalta tambm que nem todas as opinies tm o mesmo

    valor, pois vale dizer que a opinio (prognstica) de um mdico no tem o mesmo valor

  • Codex v.1, n.2, 2009, p.27-50 40

    que a opinio de um leigo21. Observa-se nesta passagem22 um redimensionamento do

    princpio de Protgoras: nesse caso, ao menos, a verdade no aquilo que (a)parece a

    um homem qualquer, mas s o que (a)parece a uma determinada pessoa no exemplo,

    ao mdico que conhece as causas da enfermidade e da sade.

    A contradio resultaria na indistino entre as palavras e as coisas. Aristteles

    interpreta tal indistino do ponto de vista metafsico (associando-a doutrina

    heraclitiana e, em ltima instncia, posio de Crtilo, referente impossibilidade da

    linguagem) e do ponto de vista prtico ou pragmtico. Nesta ltima acepo, ele a toma

    por indiferena, remetendo-a ao campo do bom e do til, precisamente o campo em

    que sofistas como Protgoras arrogavam sua primazia23. Ora, questiona Aristteles,

    aqueles que negam a no-contradio, se fossem coerentes, no deveriam ser

    indiferentes ao que bom (de se fazer ou escolher) e ao que til? Sua conduta um

    indcio da inconsistncia de sua posio. De que modo sofistas como Protgoras

    poderiam afirmar que professavam opinies melhores e mais teis, se tudo fosse ao

    mesmo tempo indistintamente bom e mau, til e intil?

    Quanto s contradies que poderiam ser oriundas dos sentidos, Aristteles

    declara que cada um deles capaz de perceber certos objetos e que no se pode afirmar

    que se perceba algo com um sentido se este algo no for seu objeto prprio. (Ver cores

    com o olfato impossvel e disto no se segue que algo seja colorido e no-colorido).

    Ademais, em relao aos seus objetos prprios, um sentido jamais se contradiz quanto

    natureza da qualidade que assinala. (A viso nunca nos diz que algo vermelho e no

    vermelho, nem o paladar que algo doce e no doce ao mesmo tempo). No

    acreditamos que um sentido possa contradizer outro, pois confiamos mais naquilo que o

    21 Cf. Teeteto, 178 c-d. 22 1011b 11-13. 23 Cf. Teeteto(166d-167d). Nesta passagem, Plato atribui a Protgoras a opinio de que o sofista aquele que capaz de julgar o que bom e o que til.

  • Pedro Lippmann A no-contradio a medida de todas as coisas

    41

    paladar tem a dizer sobre os sabores do que naquilo que o olfato possa indicar sobre os

    mesmos, ainda que os dois sentidos sejam aparentados. Aduz-se ao argumento a

    constatao de que a experincia no nos d exemplos nos quais um sentido se

    contradiga simultaneamente em relao a um mesmo objeto, nem mesmo casos em que

    um sentido o faa em diferentes momentos em relao a uma sensao presente. Ele

    apenas se contradiz em momentos diferentes e relativamente ao seu objeto. Assim, um

    vinho pode ser adocicado em um instante e no em outro, mas a doura em si, como

    qualidade ou atributo que tudo aquilo que doce deve possuir, no se altera, nem se

    torna seu oposto24. O que sofre mudana o vinho ou aquele que o prova.

    Aristteles continua sua crtica ao fenomenismo e ao relativismo (1010b 30-37):

    Em geral, se houvesse apenas o sensvel, nada haveria, no havendo os animados: pois, neste caso, no haveria sensao. No entanto, certamente verdade que no haveria nem os sensveis, nem as sensaes (pois isso uma afeco daquilo que sente); mas impossvel que, mesmo sem sensao, no existam tambm os subjacentes, que produzem a sensao. Pois certamente a sensao no ela mesma de si mesma, mas h tambm algo distinto para alm da sensao, o qual necessariamente anterior sensao; pois aquilo que move por natureza anterior ao que movido; e se eles enunciam-se um com relao ao outro, no menos.

    A doutrina que reduz toda a realidade quilo que sensvel resulta em um

    relativismo metafsico extremo, o qual se compromete com a hiptese de que, se no

    existisse um ser senciente, nada poderia sequer existir. Ora, se nos parece possvel que as

    coisas sensveis pudessem existir se no existisse nenhum ser senciente, ento

    24 Barbara Cassin interpreta que a permanncia da doura a que se refere Aristteles diz respeito fixidez de seu significado - determinado e nico. CASSIN, Barbara. Op. cit., p. 119.

  • Codex v.1, n.2, 2009, p.27-50 42

    distinguimos a sensao, relativa ao ente sensvel, de seu substrato (hypokemenon), que

    lhe independente. A sensao no objeto de si mesma, i.e., ela remete a algo que a

    causa e que lhe ontologicamente anterior e independente. Em suma, Aristteles

    afirma que aquilo que percebemos pelos nossos sentidos so objetos distintos das

    sensaes, que os objetos percebidos causam nossas impresses sensveis e que eles so

    essencialmente anteriores a elas.

    Convm mencionar tambm que, para o Estagirita, os objetos precisam ser

    dotados de certas propriedades estveis para que possamos explicar porque eles se

    tornam perceptveis. Essas propriedades devem continuar existindo mesmo quando os

    objetos no so percebidos. A perspectiva fenomenista de Protgoras nega a existncia

    dessas propriedades que seriam capazes de explicar a ocorrncia da percepo.

    A meno existncia de opinies teis ou mais relevantes do que outras d

    ensejo a dvidas sobre a possibilidade de se valor-las diferentemente. neste sentido

    que, no incio do sexto captulo, Aristteles retoma a discusso sobre a fundamentao

    do critrio de juzos, presente em perguntas como quem capaz de julgar o que

    saudvel? ou quem discernir aquele que h de julgar corretamente cada coisa?. O

    filsofo atribui-lhes o carter de pseudoproblemas. Eles derivariam da postura daqueles

    que tentam apreender princpios por demonstrao e que procuram fundamento

    naquilo em que no pode haver fundamento, tarefa impossvel, pois o que no tem

    fundamento por si mesmo evidente e no postula nenhuma demonstrao. Como

    assinala Reale25, Aristteles defendia que a indemonstrabilidade dos princpios ou

    axiomas era uma condio necessria para que se pudesse levar a efeito qualquer

    demonstrao. Para se demonstrar qualquer princpio ou axioma, deve-se recorrer a

    algum outro princpio, pois no se pode servir da conseqncia de um princpio para

    25 ARISTTELES. Metafsica. Ensaio introdutrio, texto grego com traduo e comentrio de Giovanni Reale, p. 181.

  • Pedro Lippmann A no-contradio a medida de todas as coisas

    43

    demonstr-lo, sob pena de se incorrer em circularidade. E, para demonstrar este outro

    princpio, do qual o primeiro seria derivado, preciso recorrer a um terceiro, pois cada

    demonstrao de um princpio pressupe o recurso a um outro ainda no demonstrado,

    o que leva qualquer tentativa de demonstrao dessa espcie a um regresso infinito,

    inviabilizando-a de pronto. Por isso, qualquer demonstrao pressupe um ponto de

    partida. Tentar demonstr-lo faz-lo recuar. Princpio fundamental da cincia do ser

    enquanto ser, o princpio de no-contradio, por seu prprio carter axiomtico,

    indemonstrvel26. Requerer sua demonstrao, segundo Aristteles, indcio de pouca

    cultura ou falta de instruo27. Os adversrios genunos podem facilmente ser

    convencidos disto. Aqueles que exigem ser refutados por um argumento direto pedem

    o impossvel, pois eles se arrogam o privilgio da auto-contradio, que em si mesmo

    auto-contraditrio. Se os adversrios escolhem uma posio que contradiz a si mesma,

    no por meio de um ataque direto que se poder convenc-los. Entretanto, possvel

    argumentar indiretamente contra os que negam o princpio de no-contradio,

    inclusive contra aqueles que se servem das teses de Protgoras.

    26 Isto, claro, o que Aristteles pensava. Lukasiewicz adverte que o princpio de no-contradio no o princpio superior de toda a demonstrao, pois h leis lgicas que so mais fundamentais e seu poder de derivao no to grande quanto se pensa. deve-se enfatizar que h princpios mais simples e mais evidentes, os quais podem ser tomados antes da lei de contradio como leis absolutamente ltimas e indemonstrveis. Como exemplo, Lukasiewicz menciona o princpio da identidade, que se traduz na seguinte proposio: a todo objeto pertence aquela propriedade que a ele pertence. Diferentemente do princpio de no-contradio, ele no requer em sua formulao o uso dos conceitos de negao e multiplicao lgica. Alm disso, Lukasiewicz comenta que a lgica moderna mostrou que existem muitos princpios e teoremas que so independentes da lei de contradio. O princpio da identidade, as leis fundamentais da simplificao e composio, o princpio da distribuio, as leis da tautologia e da absoro, entre outros, continuariam tranqilamente a existir mesmo se a lei da contradio no mais valesse. LUKASIEWICZ, Jan. Sobre a lei da contradio em Aristteles, p. 7 e p. 18. 27 1006A 5-7: Mas, por falta de formao, alguns exigem que se demonstre tambm isso; pois falta de formao no reconhecer de que itens preciso procurar demonstrao e de que itens no preciso; ().

  • Codex v.1, n.2, 2009, p.27-50 44

    Como destaca Reale28, a crtica a Protgoras e queles que se servem de teses

    similares s dele prosseguir, no sexto captulo, com base em quatro argumentos:

    i. Os que sustentam que tudo o que aparece verdadeiro so forados a eliminar a

    possibilidade da existncia de algo por si e em si, de modo a tornar relativas todas

    as coisas existentes. (1011a 17-20)

    ii. Mesmo que se admita a relatividade de todas as coisas, no se levado rejeio

    do princpio de no-contradio, porque aquilo que aparece no aparece em

    geral, mas segundo determinaes, isto , em relao quele a quem aparece, ao

    momento em que aparece, ao rgo sensvel ao qual aparece, e ao modo em que

    aparece. Tendo em vista essas determinaes, dissolvem-se as contradies

    mencionadas pelos adversrios. (1011a 21 a 1011b 1)

    iii. Contra os eristas ou os que falam por falar, apontar-se- que eles subordinam

    todas as coisas sensao e opinio de um indivduo determinado. Disto

    decorrem duas opes: ou se admite que, para que algo exista, preciso que haja

    algum que o sinta ou sobre ele opine; ou existe algo que no depende da

    sensao ou da opinio desse indivduo determinado. Sendo a primeira opo

    absurda, segue-se que nem tudo ser relativo opinio e sensao. (1011b 1-7)

    iv. Aquilo que relativo exige um correlato determinado. Se ser homem ser

    pensado homem, ento ser homem no pensar. Enquanto homem, o homem

    pode ser pensado, mas no pode pensar, o que seria absurdo. Ademais, se todas as

    espcies de coisas so relativas ao homem, este, por sua vez, dever ser relativo a

    todas as espcies de coisas. (1011b 7-12)

    28 ARISTTELES. Metafsica. Ensaio introdutrio, texto grego com traduo e comentrio de Giovanni Reale, p. 181.

  • Pedro Lippmann A no-contradio a medida de todas as coisas

    45

    O fenomenismo parece estar ligado a uma posio relativista, como afirma

    Aristteles (1011a 17-27):

    Mas se no tudo que em relao a algo, mas algumas coisas so elas mesmas em si mesmas, nem tudo o que parece verdadeiro; pois aquilo que aparece, aparece para algum; por conseguinte, quem diz que tudo o que aparece verdadeiro faz todos os entes serem em relao a algo. Por isso, tambm aqueles que buscam a fora no argumento e ao mesmo tempo pretendem se submeter ao argumento devem se resguardar e [dizer] que verdadeiro no aquilo que aparece, mas sim aquilo que aparece para quem aparece, quando aparece, sensao qual aparece e do modo em que aparece. Se eles se submeterem ao argumento, mas no se submeterem assim, imediatamente lhes suceder afirmar coisas contrrias.

    Aristteles alega que o fenomenismo, a viso segundo a qual todas as aparncias

    (e crenas) so verdadeiras conduz a um relativismo metafsico. Para o Estagirita, no

    possvel que uma coisa seja em si mesma e ao mesmo tempo o seja em funo dos

    sentidos. Se todas as aparncias so verdadeiras, ento no pode haver nada que exista

    independentemente, i.e., que exista sem ser em relao a alguma outra coisa29. Em

    outras palavras, aqueles que crem que tudo aquilo que aparece verdadeiro

    pressupem que ser percebido e ser verdadeiro so o mesmo e que ser percebido ser

    percebido por algum. Logo, so levados a admitir que as coisas existem ou aparecem

    somente em relao.

    Para evitar que disto se extraia a concluso de que contraditrios podem ser

    ambos verdadeiros, porque ambos podem ser percebidos, Aristteles impe que se

    29 POLITIS, Vasilis. Aristotle and the metaphysics. p. 179.

  • Codex v.1, n.2, 2009, p.27-50 46

    determinem os aspectos em relao aos quais algo aparece. Nisto consiste a segunda

    argumentao, que preconiza que se determinem os termos exatos em que se d o

    aparecer: a quem, quando, em que sentido e de que modo. Precisadas essas orientaes,

    chega-se concluso de que as supostas contradies das percepes sensveis se

    esvanecem. Contra aqueles que as derivam com base nas impresses dos sentidos, ao

    afirmarem que as mesmas coisas aparecem diferentemente para diferentes pessoas, em

    momentos diferentes ou a sentidos diferentes, responder-se- que o mesmo sentido, sob

    as mesmas condies, jamais fornece indcios contraditrios. Estabelecidas tais

    determinaes, pode-se dizer que uma sensao verdadeira. Mas os adversrios

    podero objetar: verdadeira somente para aquele que a tem.

    Protgoras e os disputadores eristas afirmam ser todas as coisas relativas

    sensao e opinio de um indivduo. Supondo que este seja realmente o caso,

    Aristteles lhes indica as seguintes alternativas: ou se admite que nada foi, ou poder

    ser, sem que antes tenha existido, exista ou venha a existir um sujeito capaz de sentir e

    opinar; ou se admite que algo foi, ou poder ser, ainda que nunca tenha vindo, seja ou

    venha a ser objeto das percepes e opinies de algum. Considerando absurda a

    primeira opo, j que freqentemente eventos ocorrem sem que seja preciso senti-los

    ou t-los como objeto de opinio, o Estagirita argumenta que somente a segunda

    alternativa sustentvel. Porm, dela se segue a refutao da posio adversria, pois se

    possvel que algo tenha existido, exista ou possa existir independentemente das

    percepes ou opinies de algum, ento nem todas as coisas so relativas opinio ou

    percepo de um sujeito.

    A quarta argumentao, depreendida de uma passagem obscura e aparentemente

    truncada30, parece partir da premissa de que tudo o que relativo supe um

    determinado correlato. Algo pode ser metade e igual, mas somente em relao a

    30 1011b 8-11.

  • Pedro Lippmann A no-contradio a medida de todas as coisas

    47

    correlatos diferentes, ou seja, s pode ser metade em relao a um dobro, e igual a um

    semelhante. Se um homem s homem em relao quele que o pensa como homem,

    ou seja, s homem se for pensado como tal, ento o seu ser se resume a uma relao

    que tem como um dos termos um sujeito pensante. Nessa relao, ele s pode ser aquilo

    que relativo ao sujeito pensante, isto , o objeto de seu pensamento. Mas se ele no

    pode ser fora dessa relao, ento ele no pode ser um sujeito pensante. Logo, segue-se

    que no se homem ao pensar, mas sim ao ser pensado, ao ser objeto do pensamento de

    algum. Ademais, visto que todas as coisas so relativas quele que as pensa, este deve

    ser relativo aos infinitos tipos de coisas diferentes. Se todas as coisas so relativas ao

    homem, ele relativo a uma infinidade de coisas. Porm, isto infringe a restrio de

    Aristteles, que parece entender que todo relativo deve ter um correlato determinado.

    Alm disso, como observa Ross31, j que cada termo relativo se associa a um termo

    diferente de todos dos demais, o sujeito pensante deveria conter em si um nmero

    infinito de aspectos especificamente diferentes, de modo a tornar sua definio

    impossvel, o que seria um absurdo.

    Kirwan fornece uma interpretao ligeiramente diferente32. Ele reconstri a

    passagem de outra forma: Aristteles estaria afirmando que possvel que algo seja o

    dobro em relao a coisas diferentes, mas a relao 'ser o dobro de' (x o dobro de y) s

    pode ser revertida em uma outra relao, 'ser metade de' (y a metade de x). A relao

    'ser o dobro de' no se converte em 'ser igual a'. De acordo com a doutrina de que a

    verdade relativa, ser um homem ser um homem para, e tanto 'ser um homem para'

    (x um homem para y) e quanto 'ser pensado como um homem por' (x pensado

    como um homem por y) so relaes que podem ser convertidas em 'pensa ser um

    homem' (y pensa que x um homem). Por conseguinte, ser um homem seria ser o

    objeto do pensamento de que se um homem. E, por isso, o homem no aquele que

    31 ARISTOTLE. Metaphysics: a revised text with introd. and commentary by W. D. Ross., p. 283. 32 ARISTOTLE. Metaphysics: books gamma, delta and epsilon, pp. 115-116.

  • Codex v.1, n.2, 2009, p.27-50 48

    pensa, mas aquele que objeto do pensamento, o que Aristteles consideraria absurdo.

    (Segundo Kirwan, Aristteles no teria justificado adequadamente esta passagem). Alm

    disso, se tudo relativo a um sujeito, ento todos os predicados vo expressar relaes

    que podem ser convertidas a um mesmo tipo genrico. Mas esta relao no poderia