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9º seminário docomomo brasil interdisciplinaridade e experiências em documentação e preservação do patrimônio recente brasília . junho de 2011 . www.docomomobsb.org Cobogós, textile-block ou módulo? Experimentações de novas estéticas Adriana Freire de OLIVEIRA *, Caroline BAUER a * Arquiteta e Urbanista formada pela UFPE (2001) DEA pela Universidade Politécnica da Catalunha (2006) Doutoranda na Universidade Paris 1 – Panthéon-Sorbonne 28 rue George Sand, 69100 Villeurbanne, France [email protected] a Arquiteta DPLG formada pela École d’architecture de Nancy (2007) Doutoranda na Universidade Paris 1 – Panthéon-Sorbonne

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interdisciplinaridade e experiências em documentação e preservação do patrimônio recente brasília . junho de 2011 . www.docomomobsb.org

Cobogós, textile-block ou módulo?

Experimentações de novas estéticas

Adriana Freire de OLIVEIRA*, Caroline BAUERa

* Arquiteta e Urbanista formada pela UFPE (2001)

DEA pela Universidade Politécnica da Catalunha (2006)

Doutoranda na Universidade Paris 1 – Panthéon-Sorbonne

28 rue George Sand, 69100 Villeurbanne, France [email protected]

a Arquiteta DPLG formada pela École d’architecture de Nancy (2007)

Doutoranda na Universidade Paris 1 – Panthéon-Sorbonne

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Resumo Através de um estudo comparativo entre a Caixa d’água de Olinda (Luiz Nunes, 1936) e o Instituto de Zoologia de Nancy (Jacques e Michel André, 1933), o presente artigo trata de comparar as experimentações de novas estéticas a partir de sistemas modulares. Por um lado, a Caixa d’água representa a primeira utilização em grande escala dos cobogós e, por outro lado, o sistema construtivo da fachada do Instituto de Zoologia é uma reinterpretação do textile-block de Frank Lloyd Wright. Numa mesma época, nos anos 30, sem ligação direta, esses arquitetos, já bastante envolvidos com o movimento de vanguarda, desenvolveram as mesmas preocupações para a construção de fachadas que produzem efeitos plásticos similares. As investigações dos arquitetos orientam-se, assim, para uma composição da fachada baseada na utilização do bloco cimento. Se as soluções inovadoras propostas para esses dois edifícios podem ser atribuídas ao entusiasmo próprio desses jovens arquitetos, a semelhança dos questionamentos e os caminhos tomados são seguramente provenientes de um clima ideológico internacional. Assim sendo, tentaremos demonstrar até que ponto a aplicação de um sistema modular constitui uma resposta estética aos questionamentos induzidos pelo movimento moderno e como uma análise comparativa pode revelar-nos diferentes contextos culturais e os seus respectivos desafios.

Palavras-Chave: Cobogó, Textile-block, Bloco cimento, Módulo, Envelope.

Abstract Through a comparative study of the Olinda Water Tower (Luiz Nunes, 1936) and the Nancy Zoological Institute (Jacques and Michel André, 1933), this article looks to compare the experiments in new aesthetics beginning with modular systems. On one side, the Water Tower represents the first use of cobogó brickwork on a grand scale and, on the other side, the constructive system of the Zoological Institute’s façade is a reinterpretation of Frank Lloyd Wright’s textile-blocks. In the same time period, the 1930s, without any direct connection, these architects, already heavily involved in the vanguard movement, developed the same focuses in the construction of facades with similar visual effects. The architects’ work led to a façade composition based on the use of cement block. If the proposed innovative solutions for these two projects can be attributed to the enthusiasm of these young architects, the seminal questions and paths taken are surely due to an international ideological climate. Being as such, we will try to demonstrate up to what point the application of a modular system constitutes an aesthetic response to the questions induced by the modern movement and how a comparative analysis can reveal to us the different cultural contexts, as well as their respective challenges.

Key words: Cobogó, Textile-block, Cement block, Module, Envelope.

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1. Edifícios emblemáticos Em 1933 é inaugurado o Instituto de Zoologia de Nancy, primeira obra assinada pelos irmãos Jacques André (1904-1985) e Michel André (1905-1975). Com o objetivo de assumir o escritório do pai, também arquiteto, Michel segue para os estudos de engenharia, enquanto Jacques, para os estudos de arquitetura na Ecole des Beaux-arts de Paris. Neste mesmo ano, 1933, Luiz Nunes (1909-1937) obtém o seu diploma da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro1. Contratado rapidamente pelo governador de Pernambuco para um plano de modernização daquele Estado, realiza vários edifícios públicos2 antes da construção da Caixa d’água de Olinda, em 1936.

O Instituto de Zoologia de Nancy e a Caixa d’água de Olinda tornam-se rapidamente referências de uma modernidade nacional (francesa e brasileira) no exterior. A Caixa d’água é apresentada na exposição sobre a arquitetura brasileira do MOMA de Nova Iorque, em 1942 (Brazil Builds. Architecture New and Old, 1652-1942), privilegiando uma revisão do passado, o edifício aparece na continuidade da história arquitetônica do país, que retoma as suas origens no período colonial. É publicado, igualmente, no número especial sobre o Brasil da revista inglesa The Architectural Review, em 1944. Posteriormente, na obra de referência Arquitetura Moderna no Brasil3 (Mindlin, 1956), o autor traça uma primeira retrospectiva sobre a evolução dessa arquitetura no país. Na própria introdução do livro, ele cita essa realização de Luiz Nunes ao lado de outros precurssores como Gregori Warchavchik em São Paulo. No conjunto desses documentos, as imagens publicadas da Caixa d’água têm como objetivo mostrar o diálogo entre tradição e modernidade. Esta confrontação recorrente, vista desde o estrangeiro, revela-nos uma visão reduzida dos questionamentos arquitetônicos da época, e as análises não se tardam sobre outros aspectos do edifício4.

À partir de 1934, o Instituto de Zoologia é sistematicamente publicado nas revistas de arquitetura francesas e estrangeiras (L’Architecture d’Aujourd’hui, La construction moderne, Building Times,…), evidenciando tanto a originalidade plástica da fachada quanto a sua solução técnica. Também é apresentado em várias exposições

1 Luiz Nunes faz parte da mesma geração de arquitetos, formada por Oscar Niemeyer, Afonso Eduardo Reidy, Jorge Moreira, Carlos Leão e Ernani Vasconcellos que, entre 1937 e 1943, integraram a equipe que realizou o projeto do Ministério da Educação e Saúde no Rio de Janeiro. Foram contemporâneos na ENBA. 2 Podemos citar como exemplos mais significativos : Usina Higienizadora de Leite (1934), Hospital da Brigada Militar (1934), Postos policiais (1934), Escola para anormais (1934), Escola Rural Alberto Torres (1935). 3 Um dos estudos mais completos sobre a arquitetura moderna brasileira, o livro é publicado simultaneamente em inglês, francês e alemão. 4 A respeito dessa visão da arquitetura moderna brasileira no exterior, consultar : Tinem, Nelci. Arquitetura Moderna Brasileira : a imagem como texto. Trata-se de uma análise do processo de formação da versão historiográfica canônica da arquitetura moderna brasileira.

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internacionais (Bruxelas em 1935, Trienal de Milão em 1936, Paris em 1937) e no período pós-guerra, na exposição itinerante sobre arquitetura francesa, instalada, primeiramente, na Suiça, em 1946. Representativo da arquitetura francesa dos anos 30, o edifício introduz igualmente uma modernidade no que diz respeito aos edifícios públicos da cidade de Nancy. Enquanto que nos concursos municipais as seleções dos projetos refletem um ambiente de resistência em relação às inovações projetuais5, a escolha do arquiteto e do projeto do Instituto de Zoologia é atribuída aos cuidados da Universidade de Nancy, na qual Lucien Cuénot, biólogo e professor, está à frente nas decisões6. A municipalidade conserva apenas o direito de opinar sobre a escolha da fachada.

Fig. 1: À esquerda: Instituto de Zoologia de Nancy, 1933. Arquitetos: Jacques e Michel André. (Fonte : Jacques et Michel André, architecture. Nancy, 1933-1936, Strasbourg,

Batimod, s.d.). À direita : Caixa d’água de Olinda, 1936. Arquiteto : Luiz Nunes. (Fonte : Goodwin, Philip. Brazil Builds. Architecture new and old 1652-1942. New

York: The Museum of Modern Art, 1943).

2. Concepção das fachadas

2.1. Sistemas modulares

5 Os projetos de André Lurçat (1894-1970), por exemplo, são sistematicamente recusados. Na mesma época, a equipe do escritório André (Jacques, Michel, e o pai Emile) vence o concurso para o museu de Belas Artes da cidade de Nancy, mas é a versão mais acadêmica de Emile que finalmente é aceita, no lugar da proposta de Jacques. 6 Graças ao apoio de dois dos seus antigos alunos (Louis Bruntz, reitor da Universidade e Robert Lienhart, adjunto do prefeito), Lucien Cuénot (1866-1951) consegue o financiamento para o projeto do novo Instituto de Zoologia. A escolha de Jacques e Michel André poderia resultar de amizades pessoais; o filho de Lucien Cuénot era da mesma classe e muito amigo de Michel André.

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As soluções das fachadas adotadas nos dois edifícios resultam de particularidades programáticas. A planta do Instituto de Zoologia é de um partido simples e legível: uma construção composta por duas alas perpendiculares, diferenciando o estudo da zoologia fundamental, da zoologia aplicada. Trata-se de um edifício universitário que tem como programa, além das salas de aula, laboratórios, anfiteatro e biblioteca, um museu que abriga uma coleção de taxidermia. Essa coleção, apresentando uma fragilidade ao contato da luz natural, exige que os arquitetos realizem o espaço do museu sem nenhuma abertura7. Assim, Jacques e Michel André vão definir a ala voltada para a rua com a instalação das salas de aula no térreo e a do museu no andar superior. A Caixa d’água, quanto a ela, é composta por um volume horizontal semi-enterrado, que constitui o reservatório de água inferior, e outro vertical, que abriga um reservatório de água na sua parte superior. Dessa maneira, a torre principal é composta apenas por um reservatório e por uma escada que se desenvolve no interior do volume.

Fig. 2: Caixa d’água de Olinda. À esquerda: Estrutura independente. À direita : Esquema estrutural. (Fonte : Vaz, Rita. Luiz Nunes: Arquitetura Moderna em

Pernambuco 1934–1937. 1989).

A inutilidade ou rejeição das janelas vão levar os arquitetos a estudar particularmente a estética da fachada, orientando suas investigações sobre experimentações de sistemas modulares. Assim, a Caixa d’água vai constituir a primeira utilização em grande escala dos cobogós, num modelo de elementos vazados. A fachada do Instituto de Zoologia propõe uma reinterpretação do sistema dos textile-blocks de Frank Lloyd Wright.

7 À pedido do professor Cuénot. De acordo com o princípio dos museus de história natural americanos e baseando-se nos conselhos do seu amigo Paul-Philippe Cret (1876-1945), arquiteto francês emigrado nos Estados Unidos.

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Numa mesma época, nos anos 30, sem ligação direta, esses arquitetos desenvolveram, assim, preocupações semelhantes quanto à utilização do bloco cimento para a composição de fachadas que produzem efeitos plásticos similares. Se as soluções inovadoras propostas para esses dois edifícios podem ser atribuídas ao entusiasmo próprio desses jovens arquitetos, a semelhança dos questionamentos e os caminhos tomados são, seguramente, provenientes de um clima ideológico internacional. Mas, até que ponto a aplicação de um sistema modular constitui uma resposta estética aos questionamentos induzidos pelo movimento moderno? E como a análise comparativa desses dois sistemas pode revelar-nos diferentes contextos culturais e os seus respectivos desafios?

2.2. Do bloco cimento à abstração Os blocos do Instituto de Zoologia são realizados pela empresa Cochinaire frères, de Nancy, que utiliza pela primeira vez, para um edifício, o procedimento Rocpierre (pedra reconstituída e modelada). Desenvolvido de acordo com um método suíço, um molde de bronze8 é preenchido com uma mistura de pedra cor-de-rosa e de grãos de mármore branco na parte visível do bloco, e de cimento no restante do molde. Recebe uma vibração pneumática e, após ser retirado do molde, passa por um jato de areia de decapagem. O cobogó9, bloco cimento vazado de 50×50×10cm, é patenteado em 1930. Nas suas primeiras utilizações, os orifícios são cobertos por uma camada de argamassa, constituindo paredes opacas e de baixo custo. Luiz Nunes dá um novo sentido ao bloco, ao fazer uso do material em seu estado bruto, aplicando-o, pela primeira vez, ao conjunto da fachada. Pintados de branco, à base de cal, os cobogós revelam uma estética conforme os princípios ditados pelo movimento moderno.

8 Além do motivo quadrado, o molde contém finas ranhuras, reproduzindo um efeito bastante próximo da técnica do layage, específica do trabalho da talha de pedra. Laie é a ferramenta de base de um tailleur de pierre. 9 A origem da palavra cobogó provém das três primeiras sílabas dos nomes dos seus conceptores: Coimbra, Boeckmann e Góis.

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Fig. 3: À esquerda: Bloco cimento do Instituto de Zoologia de Nancy (90x90x16cm). (Foto : Caroline Bauer). À direita : Bloco cimento da Caixa d’água de Olinda

(50x50x10cm). (Foto : Adriana Freire).

Os dois sistemas de fachada desenvolvidos são independentes da estrutura dos edifícios. O abandono da parede estrutural em troca de uma estrutura pilares/vigas10 permite liberar a fachada, transformando a sua função em simples envelope. Diferentemente do emprego do tijolo ou da pedra, a sobreposição dos elementos apresenta-se sob a forma de uma trama ortogonal e não mais segundo uma decalagem sistemática. Esta estética da fachada aproxima-se da casa de vidro (Pierre Chareau, 1928-1931), mas, aqui, uma aparência singular emana da contradição entre o aspecto pesado e maciço do material e a sua ausência de funções estruturais, materializada pela utilização de tramas perpendiculares.

Fig.4 : À esquerda: Envelope do Instituto de Zoologia de Nancy. (Foto : Caroline Bauer). À direita : Envelope da Caixa d’água de Olinda. (Foto : Adriana Freire).

Esses dois tipos de bloco cimento propõem um motivo simples a partir de uma variação do quadrado. Um é composto por um esvaziamento sucessivo, o outro, por orifícios repetitivos. Embora confira um inegável efeito plástico, a criação destes motivos não exclui exigências pragmáticas. Na verdade, esse esvaziamento torna o elemento mais leve, facilitando, assim, o transporte e o manuseio dos blocos no momento da montagem11. Devido às grandes dimensões da Caixa d’água, necessitava-se, igualmente,

10 No Instituto de Zoologia, a ala voltada para a rua é definida por uma estrutura mista : pilares em concreto no térreo e estrutura metálica no andar superior. 11 No caso da Caixa d’água, os orifícios dos cobogós fazem com que o peso do elemento se reduza em 64% (Silva, Geraldo Gomes, 2007, p.57).

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de um contraventamento eficaz; as fachadas vazadas permitiam, dessa forma, conservar uma certa leveza estrutural.

Da mesma maneira, nos dois edifícios, são fixadas barras de ferro nas extremidades de cada elemento. Após serem preenchidos com o cimento líquido, os blocos são, assim, perfeitamente unidos por uma leve estrutura. Entretanto, no Instituto de Zoologia, a parede de bloco cimento duplica-se com uma parede interna de tijolos, separada por um vazio de ar. Esse dispositivo inspira-se profundamente nos textile-blocks utilizados por Frank Lloyd Wright a partir do início dos anos 20, cuja influência identificada12 é ainda rara na Europa. Utilizados no conjunto das casas Mayas, Wright reinterpreta o sistema nos anos 50, denominando-o desta vez Usonian Automatic13.

Fig.5 : À esquerda: Sistema construtivo do Instituto de Zoologia. (Fonte: Arch. Dép. de Meurthe-et-Moselle, Fonds André, 119J 00115. D.R.). À direita : Sistema construtivo dos textile-blocks de Frank Lloyd Wright (Fonte: H. De Fries, Frank Lloyd Wright,

Berlin, Ernst Pollack, 1926).

Os sistemas de bloco cimento conhecem um desenvolvimento considerável nos anos 20 e 30 e são objeto de numerosas patentes14. Mas a excentricidade do envelope desses

12 Essa influência é atestada por uma correspondência entre os dois arquitetos, relativa aos materiais utilizados na casa Millard, em Pasadena. Frank Lloyd Wright à Jacques André, 27 novembre 1930. (Arquivo pessoal do arquiteto). 13 O conjunto das casas Maya é formado pela casa Millard, em Pasadena, e das casas Storer, Freeman e Ennis, em Los Angeles. Para a descrição do sistema Usonian Automatic, consultar: “How the “Usonian automatic” is built”. Frank Lloyd Wright, The natural House, 1954. 14 A título de exemplo, em 1934, os cimentos Portland patentearam 40 sistemas de painéis de concreto pré-fabricado. (Report on survey of concrete house construction systems. Chicago: Portland cement

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dois edifícios é a finalidade estética. O bloco cimento torna-se o elemento principal na composição da fachada. A sua multiplicação tende para uma busca da abstração; uma repetição que vai desmaterializar a fachada. Embora o bloco cimento envolva o conjunto do Instituto de Zoologia, enquanto na Caixa d’água trata-se de uma composição de planos, ambos reforçam a ideia do volume: dois simples paralelepípedos, um horizontal e o outro vertical. Essa característica é reforçada pelo deslocamento dos edifícios do solo: os volumes parecem estar em levitação. A Caixa d’água apresenta-se sobre pilotis, enquanto o térreo do Instituto de Zoologia apresenta fechamentos em vidro, apenas ritmado pela estrutura dos pilares em concreto. Essa inversão do cheio e do vazio é um procedimento empregado em inúmeras referências modernas das quais a Villa Savoye de Le Corbusier (1928-1931) permanece um dos modelos mais significativos. Ela acentua um efeito de contradição entre a flutuação do volume e a sua gravidade aparente.

Fig.6 : Volumes em levitação. À esquerda: Instituto de Zoologia. (Foto : Caroline Bauer). À direita : Caixa d’água de Olinda (Fonte: Lima, Edison R. Modulando. Notas e

comentários sobre arquitetura e urbanismo. 1985).

2.3. Problemáticas modernas x Contextualidade

association, 1934. Citado em Ford, Edward R. “The pioneering Age of Concrete Blocks - Frank Lloyd Wright’s Textile-Block Houses.” Detail, no. 4, Abril 2003, 310-312).

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Esses três arquitetos, ainda muito jovens no período da construção desses edifícios públicos15 , já se encontravam bastante envolvidos com o movimento moderno. Presidente do diretório acadêmico da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro, Luiz Nunes participa, ao lado de Jorge Moreira, de uma greve a favor da reforma por um ensino moderno16. Além disso, os primeiros projetos de Luiz Nunes já se pronunciavam numa estética extremamente moderna17. Quanto a Jacques e Michel André, ambos estavam relacionados desde muito cedo ao meio artístico da cidade de Nancy, presenciando a conclusão do movimento da Ecole de Nancy, no qual o pai, Emile André, estava envolvido. Jacques André participa igualmente do grupo Comité Nancy-Paris, que apresenta os arquitetos internacionais de vanguarda na exposição da galeria Poirel, em Nancy, em 192618.

As investigações de Luiz Nunes e Jacques e Michel André sobre o bloco cimento permitem-lhes desenvolver uma estética original. A aplicação do módulo cria uma fachada regular, cuja abstração ressalta a volumetria do edifício. Se esse trabalho em busca de escalas sucessivas a partir do bloco cimento nos conduz à uma estética ligada ao movimento moderno, as duas fachadas não se distanciam das influências dos seus contextos culturais e geográficos respectivos.

No Instituto de Zoologia, esse impulso para a modernidade se associa a uma cultura clássica do projeto derivada do ensino da Ecole des Beaux-Arts19. A representação geométrica da fachada apoia-se nas suas regras de composição: partição horizontal (base, corpo, coroamento), estudo das proporções, simetria e entrada do edifício no eixo. O motivo quadrado do módulo nos conduz ao vocabulário dos tetos alveolados (em forma de caixotões) e, mais particularmente, ao do Panteão, em Roma. Esse academismo é um reflexo do próprio prestígio da Universidade, que ocupa, em Nancy, um lugar importante desde meados do século XIX.

Com a finalidade de melhorar as estruturas de uma cidade em pleno desenvolvimento, as construções públicas de Pernambuco são realizadas num lapso de tempo bastante curto (quatro anos). Essas construções estão relacionadas a uma vontade política: devem

15 No momento do projeto, Luiz Nunes, Jacques André e Michel André têm respectivamente 27, 26 e 25 anos. 16 A Escola de Belas Artes do Rio é dirigida por Lucio Costa entre 1930 e 1931. Luiz Nunes ainda era estudante na ENBA, quando, em 1931, Frank Lloyd Wright visitou o Rio de Janeiro. 17 A primeira fase da obra de Luiz Nunes (1934/1935) em Pernambouco é frequentemente abordada pelos críticos como uma aproximação à arquitetura alemã. Na segunda fase (1936/1937), os princípios de composição aproximam-se da obra de Le Corbusier (Bruand, 1981 ; Vaz, 1989 ; Marques et Naslavsky, 2007 ; Góes, 2009). 18 Associação multidisciplinar, ativa de 1923 à 1927. Nessa ocasião, Jacques André publicará com André Thirion dois artigos relacionados com a arquiteura moderna : « La section d’architecture de l’exposition Nancy/Paris », no L’Etoile de l’Est, 17 de abril de 1926 e 8 de maio de 1926. 19 Jacques André, ainda estudante no momento da encomenda do edifício, apresenta esse projeto como trabalho de graduação em 1932.

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passar uma imagem de um Brasil moderno, que conserva, contudo as suas propriedades culturais. O cobogó inscreve-se, assim, no mesmo princípio do tradicional muxarabi, proveniente da arquitetura colonial; é ditado, igualmente, pelos rigores climáticos da região.

3. Considerações finais e desenvolvimentos posteriores Luiz Nunes emprega o mesmo tipo de cobogó, no projeto do Leprosário da Mirueira (1937) e no Pavilhão de Verificação de Óbitos (1937), mas, nos dois casos, a utilização do bloco cimento não se pronuncia da mesma maneira que na Caixa d’água, na qual ele é a base da composição da fachada. No entanto, apesar dessa reutilização, o arquiteto não defende a standardização do material:

A uniformização é um índice seguro de evolução, é uma necessidade humana, é uma condição de equilíbrio… O standard não é, como muita gente pensa, uma coisa preestabelecida para sempre. É justamente o contrário. É o resultado de uma seleção constante e sistematizada. Assim sendo, os standards se substituem, se anulam, marcando nitidamente fases da evolução.20 (Nunes, Luiz, 1935. In: Silva, Geraldo Gomes, 2007, p.60).

O bloco cimento utilizado no Instituto de Zoologia é uma criação única, que permitia dar um aspecto nobre à fachada por um custo inferior ao trabalho artesanal executado por um tailler de pierre21. No ano seguinte, Jacques e Michel André retomam o mesmo sistema para o projeto de três casas em Nancy, construídas numa mesma parcela. Mas, aqui, o bloco cimento perde a sua independência e importância na composição; a multiplicação dos volumes, a introdução de janelas e portas, não necessitam mais o esforço para exaltar um motivo de fachada. Adaptado à uma escala doméstica, o bloco é realizado, dessa vez, em tonalidades de bege e apresenta apenas um simples layage com base num motivo quadrado. Esse reemprego deve-se mais certamente ao sucesso do edifício precedente que à uma real vontade de desenvolvimento do sistema.

20 Explicação de Luiz Nunes referindo-se aos projetos-tipo que elaborou para postos policiais (1934). Trata-se de variações de um modelo, partindo do conceito de standardização como processo de construção, visando economia, racionalidade e rapidez na execução. 21 A empresa Cochinaire frères utiliza o método Rocpierre para a realização de vários monumentos funerários na região.

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Fig.7: À esquerda: Uma das três casas Majorelle, Nancy, 1933. Arquitetos: Jacques et Michel André. (Fonte: Jacques et Michel André, architecture. Nancy, 1933-1936,

Strasbourg, éditions d’art Batimod, s.d.). À direita : Pavilhão de Verificação de Óbitos, 1937. Arquiteto : Luiz Nunes. (Fonte : Goodwin, Philip. Brazil Builds. Architecture new

and old 1652-1942. New York: The Museum of Modern Art, 1943).

O Instituto de Zoologia de Nancy e a Caixa d’água de Olinda representam, assim, um momento ideal na utilização das possibilidades plásticas do bloco cimento. Na França, as experiências com os elementos pré-fabricados em concreto, iniciadas a partir dos anos 2022, conhecerão uma aplicação em grande escala após a segunda guerra mundial. A criatividade e a multiplicidade dos sistemas desenvolvidos na década de 1940 permitirão a instalação de um sistema de produção intensa, rápida e econômica de habitação social23. No Brasil, a utilização dos cobogós conhecerá um desenvolvimento considerável e diversificado. Em Pernambuco, apesar da perenidade do termo cobogós para designar os elementos vazados que compõem as fachadas, as experiências posteriores nos mostram que nos distanciamos da concepção inicial do bloco cimento, proposta por Luiz Nunes nos anos 30. Nessa busca pela abstração da fachada constatamos uma evolução formal do envelope. Nos casos dos edifícios Santo Antônio (Borsoi, 1963) e SUDENE (Castro, 1968), não se trata mais de uma composição regular a partir de um elemento único, mas de uma montagem tridimensional a partir de elementos diferentes.

4. Agradecimentos

22 Além dos sistemas desenvolvidos com o objetivo de uma economia da construção, podemos igualmente citar o caso atípico dos elementos vazados, partindo de módulos quadrados com uma variação de três motivos geométricos, realizados pelos irmãos Perret para a Igreja de Raincy (1922-1923). 23 Delemontey Yvan. Le béton assemblé. Préfabriquer la France de l’après-guerre (1940-1955). Tese de doutorado, sob a orientação de Jean-Louis Cohen e Bruno Reichlin, Université Paris 8 e Université de Genève, 2009, p.436.

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Agradecemos ao INHA (Institut national d’histoire de l’art) pela ajuda cedida às duas autoras do presente artigo.

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9º Seminário Docomomo Brasil

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