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II Congresso do CRI2i A Teoria Geral do Imaginário 50 anos depois: conceitos, noções, metáforas Porto Alegre, Brasil - 29 a 31 de outubro de 2015 1001 Levando em conta exclusivamente as informações e a documentação apresentadas no documentário Cobain: Montage of Heck 9 , a trajetória de fatos e momentos marcantes que pontuam e orientam o percurso simbólico de Kurt Cobain tem início durante sua primeira infância (Figura 1) em Aberdeen, nos Estados Unidos, onde nasceu em 20 de fevereiro de 1967. Filho de Don Cobain e Wendy O'Connor, Kurt demonstrava ímpeto criativo e hiperatividade desde cedo. Além de brincar, mostrava interesse por desenho e canto, inventava pequenas músicas e improvisava shows caseiros com instrumentos musicais de brinquedo – como mostram fotografias e filmes antigos (Cobain: Montage of Heck, 2015, 06:45-12:20 10 ). Energético, estava sempre envolvido em algo. Ainda pequeno, um médico teria recomendado ritalina para tratar o que seria um transtorno psicológico em Kurt 11 . Provocando um efeito cumulativo, o medicamento o fez perder o controle 12 durante o que teria sido uma longa noite. Consta que enquanto Don desaprovava a inquietação do filho, deixando-o constantemente magoado e constrangido, Wendy não conseguia controlá-lo sozinha. A situação do menino se tornou mais aguda aos nove anos, após a separação dos pais. Vivendo muitos anos com a mãe após o divórcio, Kurt seguiu desenvolvendo seu lado artístico 13 e seu senso crítico ao mesmo tempo em que enfrentava dificuldades de relacionamento com colegas de escola, o que o 9 É nossa a tradução do inglês para o português relativa a entrevistas, depoimentos, documentos sonoros ou textuais exibidos pelo filme. 10 A partir de agora todas as referências ao documentário Cobain: Montage of Heck terão seu título suprimido para evitar repetição. As referências a demais obras e autores serão devidamente informadas. 11 Não identificado pelo documentário, sendo citado por Wendy apenas o “diagnóstico” de hiperatividade. 12 De acordo com Wendy, Kurt “went off the rails” (2015, 10:19) 13 Conforme a madrasta, Jenny Cobain, Kurt já tocava guitarra quando morou na casa do pai, Don, por algum tempo na pré-adolescência (Figura 2). Baixado em www.imaginalis.pro.br por Braga Corin em 8 de novembro de 2015

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II Congresso do CRI2i A Teoria Geral do Imaginário 50 anos depois: conceitos, noções, metáforas

Porto Alegre, Brasil - 29 a 31 de outubro de 2015

1001

Levando em conta exclusivamente as informações e a documentação apresentadas no

documentário Cobain: Montage of Heck9, a trajetória de fatos e momentos marcantes que

pontuam e orientam o percurso simbólico de Kurt Cobain tem início durante sua primeira

infância (Figura 1) em Aberdeen, nos Estados Unidos, onde nasceu em 20 de fevereiro de

1967. Filho de Don Cobain e Wendy O'Connor, Kurt demonstrava ímpeto criativo e

hiperatividade desde cedo. Além de brincar, mostrava interesse por desenho e canto,

inventava pequenas músicas e improvisava shows caseiros com instrumentos musicais de

brinquedo – como mostram fotografias e filmes antigos (Cobain: Montage of Heck, 2015,

06:45-12:2010). Energético, estava sempre envolvido em algo. Ainda pequeno, um médico

teria recomendado ritalina para tratar o que seria um transtorno psicológico em Kurt11.

Provocando um efeito cumulativo, o medicamento o fez perder o controle12 durante o que

teria sido uma longa noite.

Consta que enquanto Don

desaprovava a inquietação do

filho, deixando-o constantemente

magoado e constrangido, Wendy

não conseguia controlá-lo sozinha.

A situação do menino se tornou

mais aguda aos nove anos, após a

separação dos pais. Vivendo

muitos anos com a mãe após o

divórcio, Kurt seguiu

desenvolvendo seu lado artístico13

e seu senso crítico ao mesmo

tempo em que enfrentava

dificuldades de relacionamento

com colegas de escola, o que o

9 É nossa a tradução do inglês para o português relativa a entrevistas, depoimentos, documentos sonoros ou textuais exibidos pelo filme. 10 A partir de agora todas as referências ao documentário Cobain: Montage of Heck terão seu título suprimido para evitar repetição. As referências a demais obras e autores serão devidamente informadas. 11 Não identificado pelo documentário, sendo citado por Wendy apenas o “diagnóstico” de hiperatividade. 12 De acordo com Wendy, Kurt “went off the rails” (2015, 10:19) 13 Conforme a madrasta, Jenny Cobain, Kurt já tocava guitarra quando morou na casa do pai, Don, por algum tempo na pré-adolescência (Figura 2).

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deixava mais angustiado.

Desestabilizado pelo afastamento dos pais, suas duas principais referências de vida no

mundo, e as duas pessoas que estimulam diretamente as imagens arquetípicas do Pai e de Mãe

– cujas potencialidades simbólicas têm valorizações positivas e negativas concomitantemente

–, Kurt dá início a um período de grande instabilidade quando Wendy, cansada do filho,

manda-o morar com Don. Expulso pela própria mãe, Kurt tem um momento inicial positivo

na nova casa, ao lado do pai, da madrasta Jenny e dos filhos dela, mas logo perceberia que

aquela não era a sua família e que nela ele não tinha privilégios. Conforme Jenny, Kurt

desejava muito ter uma família (2015, 13:55-14:22), mas queria também ser o mais amado, o

centro das atenções, ficando contrariado quando percebia uma realidade oposta. Após

problemas entre as crianças, Don manda o filho embora. Assim, Kurt se afasta do pai

novamente, passando a transitar entre casas de parentes sem fixar-se em lugar algum. Na

escola, a pressão por aceitação continuava a atormentá-lo:

Em uma comunidade que reforça histórias sexuais de macho man como o ponto alto de todas as conversas, eu era um menino imaturo, mal desenvolvido, que nunca havia transado e que estava sempre a fim. Pobre garoto! Isso me incomodava, pois eu estava com tesão e sempre tinha que inventar histórias como “ah, quando tirei férias conheci uma menina, transamos e ela amou, etc, etc” (Cobain: Montage of Heck, 2015, 18:45-19:18).

Com o tempo, Kurt passou a fumar maconha, droga que o ajudava a “[...] escapar o dia

todo e não ter crises nervosas rotineiras” (2015, 19:50-20:00). Também começa a conviver

com garotos brancos de classe média baixa, os quais classifica como junkies e white trash14

que passavam os dias se drogando e ingerindo bebidas alcoólicas roubadas da casa de uma

menina considerada por todos como “retardada” (2015, 20:48), mas que Kurt considerava

apenas tímida. Foi com ela, a quem todos ridicularizavam, que ele teria perdido a virgindade.

Em áudio gravado por Kurt e apresentado no documentário, o roqueiro afirma que queria

transar antes de cometer suicídio (2015, 21:30) para não morrer sem ter a experiência. Porém,

o que era segredo se tornou público. Humilhado na escola, Kurt teria tentado o suicídio na

14 Junkies, como são conhecidos os viciados em drogas pesadas ilícitas ou não, como álcool, pílulas, cocaína e heroína, especialmente. Já como white trash podem ser entendidos os integrantes brancos das classes baixas norte-americanas, habitantes de subúrbios pobres das metrópoles ou de pequenas cidades do interior, desvinculados de sistemas de assistência social como saúde e educação. Suscetíveis às drogas e ao crime, o white trash está à margem do american dream.

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linha ferroviária da cidade, porém teria escolhido os trilhos errados ao se deitar durante a

passagem do trem das 23h (2015, 22:30-23:00).

A separação dos pais foi

uma ruptura considerável na vida

de Kurt, cujas rachaduras

comprometem sua adolescência e

se estendem até sua a fase adulta.

O menino criativo, inteligente e

ativo, que conquistava a todos,

acompanhou não só a dissolução

do casamento como também a

ruína do próprio sonho de família

que nutria e do qual necessitava.

Da infância ascendente e solar,

rica em afeto e energia, Kurt

entra em um período marcado

por anestesia e estagnação, sendo

a puberdade e a adolescência manchadas por tons escuros de um tempo sombrio. Por volta

dos 15 anos, já muito rebelde e ainda mais próximo das drogas, do álcool e da paranoia15,

Kurt volta a morar com a mãe e a irmã, Kim, para quem o irmão gostava mesmo de

normalidade e desejava ter uma família comum, “[...] com mãe, pai, crianças e tudo feliz”.

Porém diz que, ao mesmo tempo, Kurt “lutava contra isso”. Segundo Kim, “[...] ele combatia

o que realmente queria” (2015, 23:56-24:09).

Em termos simbólicos, a família Cobain se coloca para Kurt como o “centro do mundo”

ligado ao simbolismo do centro do qual fala Mircea Eliade (2002). Neste simbolismo muito

comum a culturas arcaicas, e ainda presente na sociedade contemporânea, o centro não é

geométrico nem mesmo geográfico, mas simbólico, repleto de sentidos múltiplos e, ainda

assim, similares. Símbolo de lócus energético presente no imaginário humano, transitando no

ancestral inconsciente coletivo, este potente centro converge os três níveis cósmicos: Terra,

15 Kurt afirma em áudio no documentário: “[...] deixei os dois últimos meses de escola*. Eu estava tão retraído e antissocial que eu estava quase maluco. Sabe, eu me sentia tão diferente e tão louco” (2015, 26:32-26:45). *Conforme o contexto do documentário, provavelmente seria o último ano escolar de Kurt, embora o filme não deixe clara a data em que o fato teria ocorrido.

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Céu e Mundo Inferior. De fato, a definição deste centro por aqueles que compartilham deste

simbolismo é tão importante que "equivale à Criação do Mundo" (ELIADE, 1992, p.17). No

simbolismo do centro, o “centro do mundo” é também o ponto onde o cosmo converge, ou

ainda o local divino por excelência, onde o sagrado se manifesta sob a forma de hierofanias

ou epifanias. Ou seja, simbolicamente, “centros do mundo”16 proporcionam revelações de

sentido e orientam a transcendência de imagens pregnantes que ilustram um grupo social,

atualizando permanentemente o teor das mesmas e também as narrativas que oferecem

entendimentos de mundo.

Um grande número de mitos, ritos, crenças e condutas pessoais que estruturam

realidades derivam do simbolismo do centro, que se expressa também na vida do líder do

Nirvana. Sendo o “centro do mundo” de Kurt um ideal de família que deixou de existir em

sua vida, um sonho impossível da tríade pai-mãe-filho, vemos o simbolismo do centro

movimentado pelo músico esvaziado em sua dimensão mais profunda: o próprio sentido de

família. Quando Kurt perde o núcleo familiar perde igualmente seu centro. Este se torna então

um “centro de mundo” fugidio, que não se encontra na casa da mãe nem na do pai nem nas

casas dos tios nem em lugar algum, pois nenhum lugar é o lar de sua família, já que esta não

existe mais. Com um centro em fuga, Kurt perde sua referência primeira, o seio familiar, a

plataforma mais íntima de lançamento ao mundo – um mundo que agora recebe um jovem tão

criativo quanto angustiado, propenso igualmente à música e à escrita quanto à depressão e às

drogas.

A crise em cadeia leva Kurt à primeira tentativa de suicídio e configura também a

primeira queda do músico, movimento estimulante do simbolismo catamórfico, pelo qual são

ativadas imagens e sentidos de escuridão ameaçadora, trevas inescapáveis, medo, dor e

desespero (DURAND, 2012, p. 111 e 121). Esta queda simbólica, que no caso do guitarrista é

tanto física quanto moral, ganha reflexos no uso de drogas e álcool, na infelicidade decorrente

da incompreensão sobre o destino dos pais, nos problemas de relacionamento familiar e

social. A imagem da queda, decorrente de um trajeto antropológico que coloca em relação as

coerções do meio (desintegração familiar) e as pulsões do homem (pulsão de vida no desejo

de viver em família), é suscetível a qualquer um e tende a levar o sujeito para os campos mais

obscuros do ser e do imaginar. Recorrendo à reflexologia betchereviana, Gilbert Durand

(2012, p. 112) afirma que o recém-nascido é imediatamente sensibilizado para a queda ao vir 16 Que pode não ser realmente único, podendo haver “centros do mundo” diferentes dentro de uma mesma cultura, conforme demandas simbólicas específicas.

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à luz, já que os movimentos bruscos que ocorrem no nascimento seriam “[...] a primeira

experiência da queda e a primeira experiência do medo”, concluindo, portanto, que “[...]

haveria não só uma imaginação da queda, mas também uma experiência temporal,

existencial” ligada a ela, “[...] o que faz Bachelard escrever que ‘[...] nós imaginamos o

impulso para cima e conhecemos a queda para baixo’”. Durand (2012, p. 112) conclui que a

queda é “[...] a quintessência vivida de toda a dinâmica das trevas”. Além disso, explica que

regressões psíquicas podem vir ligadas a fortes imagens de queda e cenas infernais. Por fim,

resgata diversos mitos que ressaltam o “aspecto catastrófico da queda” (2012, p. 113), como

os de Ícaro, Atlas, Tântalo, Faetonte, Ixíon e Belerofonte, todos caídos.

Mircea Eliade (2002) explica que a produção e a renovação constantes das imagens

simbólicas que habitam o imaginário humano torna possível manter um canal aberto entre

culturas aparentemente diferentes – o que renova e amplifica a polissemia das imagens e a

efetividade das narrativas decorrentes delas. Entre alguns exemplos de recorrência e

renovação simbólica, cita o mito da descida do herói ao inferno. Eliade argumenta que, apesar

da descida ao inferno ser recorrente entre mitologias, ela tende a ter valorizações diferentes

conforme culturas e religiões. O autor exemplifica o fato citando, por exemplo, o xamã que

desce ao inferno para trazer de volta a alma do doente roubada pelos demônios, ou a jornada

de Orfeu pelo Mundo Inferior em busca de sua esposa Eurídice (que acabara de morrer17) e

também a polêmica descida de Jesus ao inferno em sua tentativa de restaurar a integridade do

homem derrotado pelo pecado18. Porém, embora existam distinções, “[...] um elemento

permanece imutável: a persistência do motivo da descida aos Infernos, que é realizada para a

salvação de uma alma” (ELIADE, 2002, p.165), não importando que seja a alma de um

doente (xamanismo), de uma esposa (mitos gregos, polinésios e centro-asiáticos) ou da

humanidade inteira (cristianismo).

De fato, após sua trágica queda, Kurt desce a um inferno imaginário para salvar a

própria alma. E esta imagem simbólica ganha expressão na realidade histórica, visto que é do

submundo sócio-musical que surge uma alternativa de vida para ele. Por um lado, Kurt havia

chegado a um limite de angústia, sofrimento e uso de drogas que o levaram a tentar o suicídio.

Por outro lado, o roqueiro começava a transitar no underground cultural, espécie de Mundo

Inferior onde o punk rock era a ordem. Com o rock, Kurt renasce.

17 Durand também aponta mitos análogos ao de Orfeu, que ocorrem na Polinésia, na América do Norte e na Ásia Central. 18 Passagem ainda muito polêmica entre religiosos e teólogos.

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Nevermind, o simbolismo da água e o renascimento pelo rock

Kurt volta a morar com a mãe por volta dos 15 anos, quando passa a dar mais atenção às

composições e à guitarra. A irmã, Kim, diz que Kurt e o underground “se encontraram”,

dando a entender certo magnetismo entre ambos. Para ela, o irmão procurava ser parte de algo

para se sentir menos só (2015, 27:14). Em uma entrevista não datada, respondendo à pergunta

“por que você começou a ouvir punk rock?”, Kurt afirma:

Eu sempre quis ouvir punk rock, mas claro que não havia isso na loja de discos de Aberdeen. Um amigo me deu umas fitas. Eu fiquei completamente espantado. Eu ouvia aquelas fitas todo dia. Era a melhor coisa. Expressava o que eu sentia socialmente, politicamente. Era a raiva que eu sentia diariamente. Então eu me dei conta que isso era tudo o que eu sempre quis fazer. Só o fato de realmente estarmos tocando música ao vivo em um quarto era incrível. Era a coisa mais inacreditável que eu já tinha feito (Cobain: Montage of Heck, 2015, 27:17-28:15).

Nesta época, Kurt, com

17 anos, já tocava com Krist

Novoselic, 18, com quem viria

a formar o Nirvana, última

grande banda de rock’n’roll a

surgir antes da consolidação da

troca de arquivos de música

digital. Alternando ensaios e

shows com momentos caseiros

de livre criação, incluindo

composição musical, escrita,

artes visuais e gravações em

áudio19, Kurt parece ampliar

sua produtividade. Com o

Nirvana um pouco mais

consolidado, a banda assina

com o prestigiado selo independente Sub Pop para lançar o primeiro disco, Bleach (1989).

Com isso, mais gente vai aos shows, cuja alta voltagem resultava em apresentações

energéticas e ensurdecedoras. Já enraizadas no ruído metálico da guitarra, a angústia e a

19 Como a própria fita experimental Montage of Heck, representada na montagem fotográfica acima.

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desilusão de Kurt Cobain agora tomavam sentido mais nítido e forma mais palpável. Pela

música, Kurt passa a elaborar seus anseios. Porém, com turnês agendadas pelos Estados

Unidos e pelo exterior, e com o assédio da imprensa especializada em punk e indie rock20

crescendo, Kurt parece saber que a celebração da mídia tende a desvirtuar a atenção do

público para outros temas além do musical. Assim, questionado sobre o futuro do Nirvana

nesta consolidação inicial da banda, o guitarrista responde destacando a maior importância da

música sobre o todo.

O futuro do Nirvana? Eu não sei. Espero que seja tentar escrever algumas novas músicas boas. É isso o que nos importa. É compor boas músicas. Se nos tornarmos populares ou não, isso não importa. A música é mais importante (Cobain: Montage of Heck, 2015, 47:21-47:35).

Krist comenta que Kurt tinha tendência ao perfeccionismo. “Ele odiava ser humilhado.

Ele detestava isso. Se ele ao menos pensasse que havia sido humilhado então você veria a

raiva aparecer” (2015, 49:47-49:59). Como consequência, o músico era cuidadoso ao

apresentar sua arte, abdicando disso apenas por motivos de saúde. Enquanto a banda seguia

seu percurso, Kurt começa a sofrer com problemas estomacais, admitindo que recorreu a

drogas pesadas para controlar as dores. “Eu experimentei heroína pela primeira vez em 1987,

em Aberdeen, e usei novamente umas dez vezes de 87 a 90. Por cinco anos, todos os dias,

uma constante dor estomacal me levou literalmente ao ponto de querer me matar”, diz em um

bilhete escrito à mão, sem data de referência (2015, 51:45). Curiosamente, em uma entrevista,

dá indícios sobre o motivo de não fazer um tratamento médico adequado: “Eu abriria mão de

tudo para ter uma boa saúde. Mas tenho medo de, se perder o problema estomacal, talvez não

me manter assim criativo” (2015, 52:18-52:32).

Apesar da doença de Kurt, o Nirvana parte para uma trajetória ascendente, sendo mais

escutado, visto, comentado e consumido entre jornalistas, fãs, produtores e empresários. Kurt,

no entanto, mantém seu discurso de antirrock star, diminuindo a opinião daqueles que já

anunciavam a banda como a salvação do rock’n’roll:

É constrangedor haver tanta expectativa. É totalmente superficial rotular uma banda como the next big thing. Esse nem é nosso objetivo. As pessoas estão colocando essa etiqueta em nós sem que a gente queira. Não estamos preparados [para isso], porque não estaremos mesmo preparados. Não vamos nos preparar para destruir nossas carreiras (2015, 54:40-55:06, grifo nosso).

20 Indie rock, abreviação inglesa para rock independente, vertente estética sonora de ampla linhagem alternativa que se fortaleceu nos anos 1990 depois da difusão do ideal punk do it yourself setentista e do apoio das college radios norte-americanas às novas bandas na década de 1980.

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Depois do disco de estreia, Bleach, ser lançado em 1989 pela Sub Pop, o álbum mais

emblemático da banda, Nevermind, chega às lojas em 1991 após um acordo com a gigante

Geffen Records, do Grupo Universal Music. Com o suporte da poderosa gravadora, hits como

Smells Like Teen Spirit, Come as You Are e Lithium chegaram a dezenas de países do mundo

por meio das rádios, da televisão e de CDs. O rock’n’roll cru do Nirvana, punk, seco e

obsessivo, totalmente oposto ao rock tradicional e comercial que dominava as listas dos mais

vendidos na época, alcança sucesso global. Não sendo esta uma meta declarada da banda, a

fama pouco agrada a Kurt, que aproveita entrevistas para demonstrar seu desinteresse pela

unanimidade e também seu desgosto com a capacidade da mídia em nomear e destruir ídolos

(novos olimpianos) instantaneamente. Quando perguntado se ele percebia que as audiências

dos shows estavam ficando diferentes com o passar do tempo, Kurt responde ambiguamente,

posicionando-se entre a crítica ao cosumo de cultura pop e a compreensão de que jovens

naturalmente se identificam com músicos. Ele diz: “[...] todos querem ser hip21, todos querem

ser aceitos” (2015, 01:04:31-01:04:43). Já em outra entrevista, ao falar sobre a sintonia entre

roqueiros e seu público, bem como sobre o perfil dos fãs, Kurt explica que há uma conexão

entre ambos: “Eu toco para jovens em geral. Não importa de onde eles vêm. Nós temos os

mesmos problemas, e basicamente temos os mesmos pensamentos” (2015, 01:06:30-

01:06:55).

Esta sintonia entre banda e fãs pode ter sido uma das origens estéticas e conceituais da

capa de Nevermind (2015, 55:40), uma das mais conhecidas capas de disco do rock’n’roll. A

fotografia que estampa a embalagem do disco, uma clara referência ao condicionamento

capitalista a que somos submetidos desde o nascimento, desagradou à gravadora, mas foi

aprovada. Surgida de uma ideia de Kurt, a foto mostra um bebê de três meses de vida

mergulhando em uma piscina de água cristalina tendo a sua frente uma nota de um dólar

fisgada em um anzol – e devidamente fora de alcance da criança. A imagem técnica emite

uma primeira mensagem muito nítida, porém abaixo de sua significação imediata há sentidos

de ordem imaginária movimentados pela imagem simbólica da água, substância ligada à

imaginação material22 proposta por Gaston Bachelard (2013).

21 Abreviação para hipster, termo que designa amantes do lado B (independente, autoral, autêntico e menos comercial) da cultura pop, incluindo cinema, música, artes visuais e gráficas, design, fotografia e moda. 22 Em seus estudos sobre a imaginação material, Bachelard (2013) desvenda as imagens poéticas estimuladas pelos quatro elementos da cosmologia grega (terra, água, ar e fogo). Para o autor, as imagens estimuladas pelos elementos surgem como resultado da ação do homem sobre a matéria do mundo. Para revelá-las, bem como seus

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Juntamente com a foto da

capa de Nevermind foi realizado

um ensaio fotográfico com o

Nirvana (2015, 55:40-56:05,

Figura 4) para divulgação do

álbum. Nele, os roqueiros

também mergulharam com seus

instrumentos em uma piscina de

águas límpidas, movimentando

sentidos de renovação,

renascimento, purificação e

transparência pós-queda

simbólica de Kurt. Na fluidez

elementar da água presente na

fase Nevermind do músico há

uma expressão simbólica do

renascimento do guitarrista após sua descida infernal. Se antes Kurt estava preso à escuridão

ameaçadora, envolto em dor e desespero, agora o guitarrista é revitalizado pelo simbolismo

aquático. Nas águas claras, translúcidas e primaveris (BACHELARD, 2013 p. 21) da capa de

Nevermind e do ensaio fotográfico do Nirvana, a fluidez hídrica estimula sentidos de força

vital, metamorfose e deformação das essências (como a própria essência do ser). Conforme

Bachelard, estes sentidos estão ligados às valorizações positivas comuns ao líquido efêmero.

As fotografias movimentam ainda um senso de águas calmas, acalentadoras, envolvedoras,

que acolhem e purificam23 (BACHELARD, 2013 p. 139). Neste momento, Kurt goza o

sucesso de sua banda e encontra-se em certo apaziguamento com a angústia rotineira que o

cerca, exorcizando no elemento aquoso a queda infernal da fase anterior.

Porém, este renascimento de Kurt, impulsionado pelo rápido sucesso global do Nirvana,

não duraria muito tempo. O motivo pode ser observado em uma fala de Krist Novoselic sobre

a reação à fama:

sentidos e valorizações, Bachelard recorre às referências míticas e literárias destas substâncias na cultura humana. 23 O exato oposto das águas escuras, turvas, profundas, agitadas e ameaçadoras, que movimentam amplas valorizações negativas.

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Acho que cada indivíduo lida com isso de uma forma. Foi meio traumático se tornar famoso de repente, especialmente vindo da completa obscuridade e depois se tornando a banda número um do mundo. Eu fiz coisas que eu pude, como beber. Eu tive sorte. Tive cerveja e vinho, sabe? Kurt tinha heroína (Cobain: Montage of Heck, 2015, 01:11:20-01:11:44).

Conforme Krist, quando Kurt conheceu Courtley Love, sua futura mulher, ambos

usavam drogas. Para o baixista, o amigo muito provavelmente tinha desejo de construir um lar

novamente e, vendo Courtney como “[...] interessante, artística e intelectual”, o fato dela

manter um vício era “[...] parte do pacote de montar um lar” (2015, 01:12:29-01:12:39).

A casa, a interioridade e a intimidade

O documentário não esclarece quando Kurt e Courtney começaram a namorar, mas o

Nirvana já despontava na cena rock mundial. Segundo Courtney, que admite no filme ter

usado heroína por algum tempo até eventualmente se livrar do vício (2015, 01:14:58), Kurt

nutria sentimentos autodestrutivos no período em que estiveram juntos. Conforme a ex-líder

da banda Hole, “[...] ele tinha uma fantasia, que era: ‘Eu vou ganhar US$ 3 milhões e vou ser

um junkie’” (2015, 01:15:15). Essas seriam as palavras do músico.

Entretanto, antes de executar esse plano trágico, cuja veracidade não foi comprovada

pelo filme, Kurt e o Nirvana tornam-se ainda mais populares entre fãs de rock. O

documentário intercala cenas de turnês norte-americanas com giros por países asiáticos e sul-

americanos, incluindo trechos da famosa apresentação para cerca de 110 mil pessoas em um

festival em São Paulo, no dia 16 de janeiro de 1993, na qual os músicos demoliram seus hits,

tocaram covers arriscados, trocaram de instrumentos entre si e os destruíram depois. Este

show dividiu opiniões, sendo considerado por parte do público e da imprensa brasileira como

o pior espetáculo que a banda já havia feito até então e, por parte da crítica e de fãs do trio

como um imprescindível ato caótico de anarquia e catarse24.

Kurt estava desapontado com a exposição massiva do Nirvana e com o sucesso

repentino da banda pelo mundo. Em uma entrevista para um canal de TV, deixa transparecer

sua insatisfação. “É legal ser famoso?”, perguntam. “Pessoas realmente famosas acabam

24 Conforme entrevista de Krist Novoselic publicada na Folha de S. Paulo um dia após a apresentação no Hollywood Rock, cujo trecho recuperado pelo UOL em 2013 é reproduzido aqui, aquele "foi um show de desconstrução de imagem do grupo". Anos depois, em entrevista à coluna online Popload, o baterista Dave Grohl diz considerar aquele show inesquecível pela loucura da situação, incluindo um Kurt Cobain cantando e tocando sob o efeito de vários comprimidos de Valium: "Foi inacreditável. Foi insano". Para mais informações sobre esta apresentação, conferir a biografia Mais Pesado que o Céu, de Charles R. Cross, além de críticas e reportagens publicadas pelos principais veículos de comunicação do Brasil.

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totalmente reclusas, fazendo nada. É um saco!” (2015, 01:16:03-01:16:15), responde. O

Nirvana, que poucos anos antes tocava dentro de um quarto para alguns amigos, já

considerando isso um ótimo show, segue rapidamente dos pequenos bares de Seattle para

longas turnês internacionais que incluíam participação em megafestivais patrocinados por

multinacionais cujos projetos nem sempre agradavam ao trio. Kurt percebia o quadro geral.

Com Nevermind chegando ao topo da Billboard (2015, 01:19:40) e várias músicas bem

executadas nos Estados Unidos entre 1991 e 1996, shows do Nirvana acabam sendo

cancelados na Europa devido ao que seriam crises estomacais de Kurt. Porém, em entrevista,

Courtney afirma que naquela época ele queria apenas ficar em casa sofrendo, usando heroína

e tocando guitarra. Ela não esclarece se o músico de fato passava por problemas de saúde

(2015, 01:20:15-01:20:40).

Em meio às atividades

do Nirvana e aos dilemas

pessoais, Kurt se casa com

Courtney, ambos montam

uma casa e passam a viver

juntos. Com a mulher que

ama (2015, 01:24:00), Kurt

exercita a construção de um

lar, retomando um ideal

perdido com a separação dos

pais. Agora, após a

dissolução familiar de sua

infância, o guitarrista tinha

novamente uma casa. Nela,

vivia com sua mulher, que

em breve daria à luz Frances

Bean Cobain, filha do casal. Com o nascimento da menina, após uma polêmica gestação

durante a qual Courtney confirma ter usado heroína, Kurt conclui sua busca pelo sonho de

família. Agora, ao lado da sua, ele recupera seu “centro de mundo”.

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Portanto, a casa de Kurt, a residência Cobain25, lócus ideal para a vida em família26,

ativa a própria imagem arquetípica da casa. Esta, por sua vez, estimula imagens simbólicas de

interioridade, sejam elas mais nítidas, vertidas no mundo sensível à morada, palácio, templo e

claustro, por exemplo, ou então mais ambivalentes, dotadas de sentidos ambíguos e

complementares como cave, concavidade, ventre materno, retorno, sepulcro, túmulo ou gruta

– imagem esta, explica Durand (2012, p. 241), que poderia ser tanto “gruta maravilhosa”,

refúgio, quanto “caverna medonha”, tenebrosa. O autor retoma conhecimentos de simbolismo

arcaico oferecidos por Eliade para mostrar como muitas destas imagens constelam para

propor sentidos sobre vida e morte – sendo vida uma espécie de separação natural da terra

para a vivência no mundo, e morte um retorno à casa para sepultamento na terra natal.

A vida não é mais do que a separação das entranhas da terra27, a morte reduz-se a um retorno à casa... o desejo tão frequente de ser enterrado no solo pátrio não passa de uma forma profana de autoctonismo místico, da necessidade de voltar a sua própria casa28 (ELIADE apud DURAND, 2012, p. 236).

Assim, Durand entende que há um “[...] isomorfismo do retorno, da morte e da morada”

(2012, p. 236), bem como um “[...] isomorfismo que liga o ventre materno, o túmulo, a

cavidade em geral e a morada fechada” (2012, p. 242). Todas estas imagens, entre tantas

outras, convergem no simbolismo de intimidade – o qual articula sensos diversos, incluindo o

prazer das delícias privadas, dos domínios aconchegantes, do repouso e da quietude.

Conforme os depoimentos e registros apresentados no documentário, Kurt buscava ter

novamente uma casa, um lar, que se sobrepusesse à casa e ao lar dos pais, e onde pudesse

finalmente atualizar ritos familiares interrompidos, perdidos em um passado estagnado que

ainda provocava angústia – mas que, contraditoriamente, o ajudava a dinamizar seu ato

criativo. A imagem simbólica da casa, então, sendo um dos elementos preponderantes do

imaginário humano como um todo, também toma dimensão importante no próprio imaginário

movimentado por Kurt Cobain ao se refletir tanto no sonho da residência de infância quanto

no ideal da nova morada de casado.

Se recorrermos novamente a Bachelard, veremos que sua poética do espaço desenvolve-

se sobre vários locais, mas se manifesta principalmente na sua casa de campo natal, em Bar- 25 Tanto a casa antiga, dos pais de Kurt, quanto sua residência atual, com Courtney. 26 Como fica devidamente registrado nos muitos vídeos caseiros gravados pelo casal (2015, 01:20:45-01:24:00). 27 A terra aqui poderia ser entendida como elemento material, substância, mas também como imagem simbólica da mãe elementar, telúrica, que guarda em si tanto a capacidade criadora de vida quanto o poder continente pós-morte. 28 Importante lembrar que Kurt Cobain cometeu suicídio em sua casa em Seattle.

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sur-Aube, na França. O motivo parece bastante claro: Bachelard entende que a casa mais

adaptada à poética é aquela em que vivemos – especialmente a da nossa infância. Diz o autor

que “[...] com a imagem da casa temos um verdadeiro princípio de integração psicológico [...]

parece que a imagem da casa se torna a topografia de nosso ser íntimo” (BACHELARD apud

WUNENBURGER, 2012, p. 57 e 58). Kurt, apesar da incompreensão com o fim do

casamento dos pais e com a desestruturação familiar, manteve seus desejos de lar e união

fazendo transcender no seu “centro do mundo”, aquele centro estimulado pela família29, a

imagem arquetípica da casa e os possíveis sentidos que esta propõe a ele.

Seja a casa em que se nasce e cresce ou aquela onde se constitui família na fase adulta,

as emanações simbólicas de interioridade e intimidade decorrentes dela e observadas por

Durand costumam se expressar na Estrutura Mística (ou Antifrásica) do Regime Noturno do

imaginário. A Estrutura Mística, marcada pelo apaziguamento do homem com a certeza da

morte, nossa angústia essencial, compreende também símbolos relacionados à introspecção,

aos mistérios, aos segredos e aos devaneios, além daqueles que remetem à fusão, união,

mistura e concentração.

É esta casa estimulante do interior arquetípico e da intimidade simbólica, este lócus de

segurança propício à transcendência por imagens, o local onde Kurt se refugia para atualizar

os ritos familiares que ativam seu “centro de mundo”. Com isso, o músico busca preencher

aquele vazio que havia se instalado no simbolismo do centro movimentado pelo guitarrista30.

Em sua casa, seu lar, com sua nova família, Kurt pode experimentar movimentos de

agregação característicos da Estrutura Mística do imaginário, como os já citados fundir, unir,

misturar e concentrar – sejam imagens, sentidos, ideais, sonhos, desejos ou anseios.

O amor e a morte: uma segunda queda

O documentário registra a vida de Kurt e Courtney apresentando fotografias, vídeos,

versos e pequenos textos escritos pelo casal, como um no qual ele afirma: “Courtney, quando

digo que te amo eu não sinto vergonha, e ninguém jamais chegará perto de me intimidar para

pensar o contrário” (2015, 01:24:03). Em outra anotação, ela escreve: “Eu amo você mais do

que a minha mãe. Eu abortaria Cristo por você. Eu poderia me tornar miserável para fazer

você feliz” (2015, 01:24:36). As declarações não deixam dúvidas sobre os níveis viscerais,

29 Como visto na p. 11 deste artigo, o “centro do mundo” proporciona revelações de sentido e orienta a transcendência de imagens pregnantes, atualizando-as constantemente. 30 Como visto na p. 12 deste texto.

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urgentes e trágicos deste amor. Ao filme, Courtney diz que os dois queriam ter filhos, e que se

casou grávida de Kurt. “Nós já tínhamos (um filho sendo gestado). Então, fazer uma família o

mais rápido possível era, você sabe, importante. Se tivéssemos mais tempo eu teria tido mais

filhos com ele” (2015, 01:24:38-01:25:00, grifo nosso).

Em um dos muitos home videos gravados por Courtney, vários deles nos quais o casal

exerce seu poder de (auto)crítica, (auto)ironia e (auto)análise, ela pergunta a ele, jogado em

uma cama, “Por que sente-se tão mal?”, ao que ele responde de forma propositalmente piegas

“Por quê? Porque eu quero. É minha culpa. Tooooda minha!” (2015, 01:25:03-01:25:15). Por

trás da sátira pessoal, há sinais de que Kurt direcionava suas condutas com discernimento. Há

conversas ácidas sobre conhecidos, sociedade, música, mídia e suas inter-relações (2015,

01:25:15-01:27:53). Há o que poderíamos chamar de home performances31 e também joke

interviews, sendo que estas poderiam ser entendidas não como entrevistas falsas ou mock

interviews32, mas sim como pequenas encenações em que Kurt e Courtney se expressam pela

voz de semipersonagens interpretados pelo casal, como se fossem dois rock stars

superjunkies, espécie de alter egos cujas falas amplificam a (auto)crítica e a (auto)ironia

natural dos músicos (2015, 01:28:50-01:29:38).

O documentário não explica se, nestes vídeos caseiros, Kurt e Courtney estavam sob o

efeito de drogas. É possível eu sim, mas não há confirmação alguma sobre isso no filme.

Entretanto, Courtney explica a dependência de heroína por parte de ambos:

Eu usei heroína quando estava grávida e então parei. Eu sabia que ela (Frances Bean) estaria bem. Ele jamais se preocupou que nossa filha teria... Eu o assegurei que levaria a gravidez adiante sem problemas, mas você sabe, eu era uma jovem mulher. A gravidez não era o problema. Era estar perto de um junkie enquanto eu estava grávida, sendo eu também uma junkie, e sabendo que assim que o bebê nascesse eu iria me drogar para celebrar, sabe? Esse era nosso estilo de vida (Cobain: Montage of Heck, 2015, 01:30:35-01:31:11, grifo nosso).

A atenção excessiva da mídia ao Nirvana e especialmente aos momentos mais loucos

de Kurt e Courtney incomodava o guitarrista. A crise dele com a imprensa chegou ao ápice

31 Há duas interessantes home performances registradas neste estudo. Em uma cômica, Courtney faz uma inspirada leitura dramática de uma carta supostamente escrita por uma amiga ou fã reclamando das atitudes de Kurt, que fariam Courtney sofrer. A câmera registra a leitura dela, que dubla a interpretação muda de um Kurt magérrimo, de cabelos vermelhos e bigode nazista estilo Hitler, vestido de mulher e agindo como se fosse a menina que teria escrito a tal carta (2015, 01:27:53-01:28:48). Já uma home performance musical, o casal age como se estivesse sob efeito químico, fazendo música segundo um processo de desconstrução musical e de destruição guitarrística (2015, 01:29:38-01:30:42). 32 Mock interviews poderiam ser entendidas como entrevistas simuladas que servem como treinamento para entrevistas reais.

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após uma reportagem da revista Vanity Fair (2015, 01:32:40) sobre o uso de drogas pelo casal

durante a gestação de Frances Bean. Furioso, Kurt escreve que se sentiu violado (2015,

01:33:33), condena o mau jornalismo, dispara cartas com ataques à imprensa e classificada a

TV como “entidade de todos os deuses corporativos” (2015, 01:33:54). Paralelamente, o

documentário apresenta textos que revelam a profunda angústia pela qual o músico passava:

Eu escuto tantas histórias e relatos exagerados de amigos sobre como sou notoriamente fucked up. Viciado em heroína, autodestrutivo, alcoólatra e ainda assim abertamente sensível, delicado, frágil, neurótico, meio insignificante, que a qualquer minuto vai ter uma overdose33, pular do telhado e explodir a cabeça, tudo de uma vez só (Cobain: Montage of Heck, 2015, 01:34:07–01:34:34)

Em áudio, Kurt admite que

sua história tinha propensão à

tragédia. “Eu pensava que as

pessoas quisessem que eu

morresse, pois seria a clássica

história rock’n’roll” (2015,

01:34:44-01:34:50). Neste

momento (2015, 01:35:00), o

filme volta ao ponto inicial do

documentário em que Kurt

encena sua morte durante um

show. Naquele mesmo palco, o

músico reclama publicamente do

que “tem sido escrito” sobre

eles, diz que Courtney acha que

todos a odeiam, e pede que a multidão grite “Courney, I Love you”. Atendido pelo público,

Kurt puxa a conspiratória Territorial Pissings, na qual canta "Just because you're paranoid

don't mean they're not after you"34. Nisso, o documentário resgata notícias sobre o

nascimento de Frances e o monitoramento governamental sobre a criação da menina (2015,

01:38:21).

33 Kurt escreve “[...] neurotic, little pissant who at any minute is going to O.D.”. A abreviação O.D., conforme o conhecido portal online UrbanDictionary.com, pode ser entendida como "overdose on a drug" , "over-doing" ou "overdosage". 34 "Só porque você é paranoico não significa que eles não estão atrás de você".

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A dureza dos relatos jornalísticos é contraposta a vídeos caseiros sobre a doce vida em

família, nos quais o casal cuida da filha. Kurt dá atenção e carinho à criança e Courtney se

mostra uma mãe amorosa (2015, 01:38:32-01:40:10). A respeito da paternidade, Kurt escreve:

“Eu escolhi me colocar em uma posição que requer a maior responsabilidade que alguém

pode ter. [...] Farei de tudo para lembrá-la que a amo mais do que amo a mim mesmo” (2015,

01:40:45). Em áudio, diz ter certeza que pode mostrar muito mais afeto do que seu pai foi

capaz, e que só Frances poderia afastá-lo do rock’n’roll (2015, 01:41:00-01:41:43). Porém, ao

mesmo tempo em que exercita o afeto pela filha, Kurt segue em aflição, deprimido e irritado

pela perseguição da mídia e pelo que seria a publicação de informações falsas sobre sua

família (2015, 01:44:00-01:45:12). Ele escreve:

Sonhos ruins, estômago vazio. Acordo pela manhã sentindo-me envenenado. Durante sonhos ruins, nervos vazam toxinas cerebrais que fluem pelas veias engrossando lentamente, ao ponto de um veneno poderoso, vagarosamente coagulando como uma pluma caindo nas chamas (Cobain: Montage of Heck, 2015, 01:45:30).

E segue em outros escritos: “Enterrado fundo em um sonho de heroína [...] eu fiquei tão

chapado que arranhei até sangrar” (01:45:38). Ou ainda: “Não me importo se eu murcho

sozinho, eu não me preocupo se eu não tenho uma mente35” (01:45:52).

No período de composição e gravação do disco In Utero (1993), mesma época do show

da banda no Brasil citado anteriormente, Kurt altera momentos de criatividade e infelicidade.

Havia acabado de sair de um momento em que “[...] estava de saco cheio de tudo”, que “[...]

não queria ser um rock star” e que “[...] estava ficando assustado” (2015, 01:49:45-01:49:58).

Em um ensaio fotográfico, é clicado manejando um revólver (2015, 01:49:18; Figura 7). Já

um vídeo caseiro da época em que Frances ainda era bebê registra Kurt bastante fragilizado,

magro e abatido, quase dormindo em pé enquanto segura a filha no colo (2015, 01:52:17-

01:54:50). Para a mãe do músico, seu quadro piorava a cada dia e ele sentia vergonha por isso

(2015, 01:54:50-01:56:50). Durante a gravação do programa Unplugged MTV, cuja cenografia

com velas e lírios lembrava a decoração de um velório, Kurt disparou contra o público: “[...]

Todos que eu conheço podem sentar aqui na frente para que eu possa vê-los? Porque eu odeio

estranhos...” (2015, 01:58:30).

35 No original: “I don’t care if I shrivel alone. I don’t mind if I don’t have a mind”.

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Courtney afirma que Kurt

tentou se matar36 após o que

teria sido uma tentativa de

traição por parte dela, em

Londres – o caso extraconjugal

não teria ocorrido (2015,

02:03:55). Conforme o jornal

The Daily World, citado pelo

documentário, após tomar o

medicamento ripnol com

champanhe o guitarrista entrou

em coma, sendo levado à

emergência de um hospital em

Roma. Ao som acústico de

Where Did You Sleep Last

Night?37, o filme intercala

frases soltas escritas por Kurt:

“O melhor dia que eu já tive foi quando o amanhã nunca chegou”, “Mate-se, mate-se, mate-

se!”, “Eu me odeio e quero morrer. Me deixe em paz. Com amor, Kurt” (2015, 02:05:56-

02:06:09).

Conforme o documentário, Kurt Cobain cometeu suicídio um mês após a volta da

capital italiana, no dia 05 de abril de 1994, aos 27 anos, em Seattle. O filme se encerra neste

momento, não entrando em detalhes sobre a causa da morte nem sobre as investigações

policiais que se seguiram. Também não debate as teorias conspiratórias sobre o caso,

incluindo aquelas relativas ao suposto envolvimento de Courtney no que teria sido o

assassinato do marido38. Por outro lado, o filme apresentou documentação, pesquisa e

depoimentos registrando o amor entre Kurt e Courtney e sua tentativa de estabelecer uma

família. Ainda assim, a angústia e a depressão amplificadas pelo abuso de drogas por parte do

36 Segunda tentativa, conforme o documentário. 37 Música de Huddie Ledbetter. 38 Tema de documentários como Kurt & Courtney (1998), de Nick Broomfield, e Soaked in Bleach (2015), de Benjamin Statler.

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músico emitem imagens e sentidos frequentes de trevas, desespero, aniquilação e morte,

expressos tanto em sua música e composições textuais quanto em sua trajetória de vida.

Porém, se para Durand a passagem do tempo e a consciência sobre a morte estimularam

o homem a criar imagens ao longo da sua existência, de forma a elaborar esses problemas e

dar sentido à vida, Kurt abdica de sua imaginação criadora ao sucumbir à pulsão de morte

potencializada pelo sofrimento existencial e pela dependência química. Ao tirar a própria

vida, o guitarrista provoca sua segunda queda simbólica, igualmente física e moral, porém

desta vez totalmente inescapável.

Do imaginário de um roqueiro ao imaginário rock

A proposta de leitura simbólica de Cobain: Montage of Heck dá indícios sobre como, de

fato, roqueiros como Kurt Cobain assumem condutas pessoais e tomam percursos

antropológicos cujos movimentos podem estimular imagens arquetípicas, simbolismos, traços

míticos e metáforas obsessivas constitutivas de um imaginário roqueiro conectado ao amplo

imaginário humano, cujos elementos são compartilhados há gerações.

Porém, este imaginário rock não é marcado somente pelos clichês do estilo musical

disseminados pela mídia. Sua pregnância é efetivada justamente por alguns dos elementos

ancestrais que transitam no grande sistema de imagens polissêmicas observado por Durand

em consonância com pensadores como Jung, Eliade e Bachelard. Se levarmos em conta que

este imaginário antropológico encontra-se em ampla retroalimentação, oferecendo imagens

simbólicas e narrativas míticas para os indivíduos e as culturas estabelecerem entendimentos

de mundo, condutas pessoais, movimentos sociais e estruturação de realidades, devemos

observar que este mesmo imaginário se nutre continuamente das imagens simbólicas e

técnicas elaboradas pelos sujeitos e veiculadas em produtos culturais.

No caso da leitura simbólica sobre as representações documentais propostas por

Cobain: Montage of Heck, entendemos que o ex-líder do Nirvana movimenta um imaginário

revelador de um "centro do mundo" definido pela família – tanto aquela instaurada e

dissolvida pelos seus pais quanto aquela construída pelo próprio músico após seu casamento e

o nascimento da filha. Este "centro do mundo" familiar moldou o percurso do guitarrista no

mundo, provocando-lhe pelo menos duas quedas infernais das quais em apenas uma resultou

em um renascimento pelo rock. A família e seu senso de união, solidificação e continuidade,

cujo sentido ganha mais nitidez a partir da imagem arquetípica da casa e do simbolismo de

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intimidade, além do próprio amor declarado por Courtney e Frances Bean, porém, não foram

suficientes para salvar Kurt. Dividido entre o profundo afeto pela família e a desilusão

abismal com sua própria condição existencial, o guitarrista não escapa do vácuo provocado

pelo simbolismo catamórfico.

Portanto, rock docs se colocam como importantes instrumentos audiovisuais cujos

personagens, documentos, discursos e histórias movimentam conteúdos simbólicos

arquetípicos cuja pregnância e polissemia oferecem sentidos múltiplos – e cujas constelações

compõem o grande imaginário humano sistematizado por Durand. No caso de Cobain:

Montage of Heck, entendemos que a simbologia estimulada por Kurt liga-se a um amplo

imaginário rock que aguarda revelação.

REFERÊNCIAS

BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 2013. ______. A terra e os devaneios da vontade: ensaio sobre a imaginação das forças. São Paulo: Martins Fontes, 2001. ______. O ar e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 1990. BAITELLO Jr., Norval. A era da iconofagia – Reflexões sobre imagem, comunicação, mídia e cultura. São Paulo: Paulus, 2014. DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica. Lisboa: Edições 70, 2000. ______. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral. São Paulo: Martins Fontes, 2012. ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos – Ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. São Paulo, Martins Fontes, 2002. ______. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992. FLUSSER, Vilém. A filosofia da caixa preta – Ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Annablume, 2011. JUNG, C.G. O Eu e o inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1978. ______. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2002. MORIN, Edgar. Cultura de Massas no Século XX: Neurose. Tradução de Maura Ribeiro Sardinha – 9. Ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal... o que é documentário? São Paulo: Editora Senac, 2013.

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WISNIK, José Miguel. O som e o sentido. Uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. WUNENBURGER, Jean-Jacques. Gaston Bachelard, poétique des images. Paris: Mimesis, 2012.

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Imaginário e Literatura em perspectiva interdisciplinar

Imaginary and Literature in interdisciplinary perspective

Imaginaire et littérature dans une perspective interdisciplinaire

Maria Zilda da CUNHA1

Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil Maria Auxiliadora Fontana BASEIO2

Universidade de Santo Amaro, São Paulo, Brasil

Resumo Compreendido como sistema organizador de experiências com dinamismo próprio, o imaginário constitui-se como eixo articulador para resgatar formas de expressar o real, bem como para projetar maneiras de transformá-lo. As reflexões sobre esse tema pressupõem uma abrangência integradora e interdisciplinar que incita a compreensão de fenômenos humanos e culturais sob múltiplos olhares, entre os quais se destaca a arte literária. Essa rede de associações de imagens singulariza tanto o estilo individual do autor, quanto sugere traços do mundo social e cultural. É nosso intuito, neste trabalho, analisar, à luz da Literatura Comparada, elementos que servem de vetores à imaginação simbólica nesse corpo de significação vivo que é a obra literária. Nossa proposta é investigar a matéria imaginária que organiza o projeto estético e o projeto político de José Saramago. Palavras-chave: imaginário; literatura comparada; José Saramago. Abstract Considered as an organizing system of the experiences with a singular dynamism, the imaginary constitutes a central theme to rescue means to express reality as well as to point ways to change it. Today, the reflections on this topic assume an integrative and interdisciplinary scope urging the understanding of human and cultural phenomena from multiple perspectives, among which is the literary art. This network of images distinguishes both the individual author's style and suggested features of the social and cultural world. It is our intention in this paper to analyze, in Comparative Literature perspective, elements that act as vectors to the symbolic imagination in the body of alive meaning that is the literary work. Our proposal is to investigate the imaginary matter that organizes the aesthetic and the political project of José Saramago. Key words: imaginary; comparative literature; José Saramago. Introdução

1 [email protected] 2 [email protected] ou [email protected]

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Mostra-se bastante aguda à nossa percepção a ideia de que a realidade em que nos

inserimos hoje se tece de uma complexidade que nos desafia continuamente a buscar novas

formas para compreendê-la. A mudança paradigmática de que somos partícipes problematiza

e provoca fissuras em verdades, valores e modelos explicativos que serviram de sustentação

para nosso pensar, sentir e agir por muitos séculos.

Se, de acordo com Gilbert Durand (1997, p.14), o imaginário pode ser compreendido

como um “conjunto das imagens e relações de imagens que constitui o capital pensado do

homo sapiens”, o estudo dessa complexa rede semântica permite, de alguma maneira,

capturar o que se delineia, ainda que de forma cifrada, nos pensamentos e sentimentos

humanos neste nosso tempo.

É fato que as reflexões sobre o imaginário assumem abrangência interdisciplinar nesse

novo contexto, permitindo a compreensão dos fenômenos humanos e culturais de maneira

multidimensional. Muito embora entendamos que os estudos do imaginário engendrem muitas

produções, neste artigo pretendemos analisar sua figuração na arte literária.

É nossa intenção perscrutar a rede de imagens que se integram e compõem este corpo

de significação vivo, que é a obra literária, analisar elementos que servem de vetores à

imaginação simbólica, tornando-se, assim, possível apreender sentidos importantes para o

homem neste momento de seu percurso de humanização. Pretendemos investigar a matéria

imaginária que organiza o projeto estético e o projeto político de José Saramago, sinalizando

algumas configurações de imagens e suas relações com o contexto sócio-histórico e cultural

em que se enraízam. Para este momento, trabalharemos com as obras Jangada de Pedra e O

Conto da Ilha Desconhecida.

Cumpre esclarecer que nossa pretensão não é restringir este estudo às formas sigilosas

e distorcidas da ideologia, tampouco explorar relações entre forças sociais, mas abarcá-lo

como fenômeno de relação do homem com o mundo, observando a forma como se estrutura a

imaginação criadora, esta capaz de oferecer vias de acessibilidade ao mundo das afetividades,

as quais se engendram aos processos de racionalidade, aspecto que vai requerer uma

consideração especial para o entendimento da complexidade que constitui o homo sapiens

demens deste nosso milênio.

Para realizar este exercício crítico, tomamos por fundamento os instrumentais da

Literatura Comparada, perspectiva interdisciplinar de estudos que opera com a comparação de

diferentes literaturas ou entre literatura e outras artes ou ainda com outras áreas do saber.

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Cabe ressaltar, em consonância com as novas teorias críticas, que esse campo de

estudos abre canais para exercícios reflexivos sobre o caráter histórico e cultural do fenômeno

literário, tornando-se solo fértil para problematizar a experiência humana de maneira

pluridimensional, na medida em que amplia seus raios de ação para vários recortes

epistemológicos do conhecimento humano, como a Sociologia, a Antropologia etc., embora

considerando a ideia de G. Durand (1996, p.145) de que a Ciência do Homem seja uma só.

Ao abrir possibilidades de colocar em diálogo diferentes obras, a Literatura

Comparada, com seus métodos específicos, auxilia na percepção do sistema de imagens que

transita de uma obra para outra. A despeito das diferenças e singularidades de cada texto – o

que resguarda sua autenticidade, conforme Cândido (1997), faz-se possível estabelecer

conexões capazes de tornar visíveis os elementos de similaridade e, portanto, encontrar pistas

para compreender os elementos semânticos que fazem pulsar o imaginário.

Retomando as ideias de Wunenburger (2007, p.35), independente do método com que

se pretende operacionalizar, o imaginário pode ser “apreendido como uma esfera organizada

de representações na qual fundo e forma, partes e todo se entrelaçam”. E acrescenta:

Essa compreensão da configuração de um imaginário, seja ele de um autor, de um povo, de uma época etc.,é em geral tributária quer da presença de elementos tipificantes que dão um estilo, uma face ao conjunto das imagens, quer de uma verdadeira gramática com sua semântica e suas leis sintáticas que obrigam a compor um sistema.(WUNENBURGER, 2007, p.35)

Portador de criatividade própria e de intensa plasticidade, o imaginário organiza-se por

fontes geradoras e dinâmicas capazes de explicar sua formação e transformações.

Materializado sob a forma de literatura, comporta uma constituição linguística singular e

revela a subjetividade de um autor.

Vale destacar que, ao exteriorizar subjetividades, o contato com o leitor favorece

relações intersubjetivas e essa recepção amplia os objetivos de construção de imaginários.

A matéria prima com que se esculpe o imaginário de um autor são imagens primitivas

e inconscientes, abrigadas no eu profundo, que vão se amalgamando às experiências vividas e

assumindo contornos reconhecíveis em um contexto social. Traduzidas em signo linguístico,

mostram-se expressivas em forma literária.

Designa-se por literária a imagem (como da calhandra ou da serpente) a meio caminho entre o sonho e a imagem erudita, que é a fonte de um grande número de metáforas que dela constituem como um comentário; mas cada imagem literária, fruto de uma criatividade verbal, se apresenta também

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como um transbordamento imprevisível, uma renovação única das imagens preexistentes, cuja forma mais elevada é a metáfora mais pura, reduzida a uma forma verbal concisa (WUNENBURGER, 2007, p.42).

Sob a superfície legível do texto adensam-se metáforas, símbolos, arquétipos, esquemas –

matéria-prima do imaginário passível de significação, de sentido e de decifração. Esses

elementos traduzem o imaginário de um indivíduo/autor e o imaginário social e cultural do

qual participa, compondo-se dialeticamente, de maneira a fazer conviver elementos

invariáveis - porque universais - e elementos de variância - porque históricos. Vale observar

que o conteúdo, as estruturas, marcados por uma fertilidade simbólica e por uma vivacidade

metafórica, realizam intenções, estando sempre abertos a atualizações, dada a função poética

que lhe confere dinamismo criador permanente.

1. Imaginário e Literatura: um olhar sobre o projeto estético e político de Saramago

a partir de Jangada de Pedra e do Conto da Ilha desconhecida

É válido lembrar que, em várias de suas obras, sobretudo em O paradigma Perdido,

Morin (1999) nos mostra que a hominização se fez pela adaptação inteligente ao real

(sapiens) e pela necessidade de fabulação pelo imaginário (demens).

O imaginário está inscrito em toda criação imaginativa, bem sabemos, e constrói-se

por meio de redes de associação de imagens tecidas com uma sintaxe simbólica e também

semântica que singulariza tanto o estilo ou o mundo individual do autor, quanto sugere traços

do mundo social e cultural, como já mencionamos.

Ensina Wunenburger:

Embora cada indivíduo imaginante esteja dotado de uma função de onirismo, de simbolização e de mitificação, nem todos atualizam o conjunto das práticas imaginantes. A capacidade de transformar as imagens de um ser para fazer com que estas acedam a um nível estético ou simbólico novo e profundo varia, o que constitui o mistério da criação artística. (WUNEMBURGER, 2007, p.40)

E acrescenta o referido autor que o imaginário compreende as produções mentais ou

materializadas em obras com linguagem verbal e não verbal, compondo conjuntos coerentes e

dinâmicos que traduzem uma função simbólica ao expressar sentidos próprios e figurados

(WUNENBURGER, 2007).

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Ao analisarmos o imaginário no corpo de significação vivo da literatura, nos

deparamos com uma representação atualizada de motivações afetivas, que fazem criar laços

íntimos de recepção.

Para expressar pensamentos, sentimentos e vontades com os quais um escritor compõe

as representações complexas que organizam o imaginário, ele se vale dos elementos da

narrativa e/ou dos recursos poéticos.

A despeito de cada obra literária possuir singularidade e autonomia - as de Saramago são

representativas do nosso universo de análise -, há constantes semânticas que aglutinam seus

conteúdos oníricos e a elas nos voltaremos neste percurso crítico.

1.1 Jangada de Pedra

Escrito em 1986, o romance inicia com a apresentação de alguns fatos insólitos

associados com personagens que se juntam para um projeto de vida comum. Joana Carda –

que risca o chão com uma vara de negrilho e vê a terra se abrir; Joaquim Sassa – que

arremessa uma pedra ao mar e a vê pulando infinitamente contra a gravidade; José Anaiço –

que convive com a aparição de estorninhos a fazer estranhas revoadas; Pedro Orce – que sente

tremores vindos da terra; Maria Guavaira – que destece uma meia de lã cujo novelo assume

proporções inusitadas.

O enredo organiza-se por um conflito inexplicável: a Península Ibérica está se

separando do continente europeu e passa a se deslocar no Atlântico. As personagens que

vivenciam os fatos estranhos em seu cotidiano gradativamente se descobrem e se unem em

busca de explicações. A elas se junta o Cão Constante, carregando um fio de lã azul à boca.

Manchetes nas redes de televisão, rádios e jornais tratam dos insólitos fenômenos e a busca

dos responsáveis é providenciada.

Enquanto o pedaço de continente (Jangada de pedra) vai se deslocando, as

personagens principais acabam por se unir e também a se mobilizar para empreender uma

viagem de descoberta da ilha e de seus fatos estranhos. A viagem é feita pelo grupo em uma

galera, conduzida por Maria Guavaira e puxada inicialmente por um, posteriormente por dois

cavalos.

Na iminência de um acidente com a ilha dos Açores, o que evidencia o lugar para onde

se desloca a jangada, a população se desespera. As duas mulheres do grupo decidem ter

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relações com Pedro Orce, o que provoca um clima de tensão nos viajantes, ainda que

permaneçam juntos. A Jangada de Pedra para. Portugal fica voltado para os Estados Unidos e

a Espanha para a Europa.

Ainda que as demais personagens não percebam o movimento da terra, Pedro Orce

afirma que ela ainda treme, o que acaba por se confirmar com a retomada do movimento

peninsular, de modo a girar, durante um mês, em torno de seu próprio eixo. Finalmente, o

movimento cessa e as mulheres percebem que estão grávidas. Morre Pedro Orce no momento

em que a galera para e se percebe que a terra não treme mais. O grupo descansa para depois

retomar a viagem.

Notamos que essa obra de Saramago encanta pelo conjunto de imagens que se tecem

inexplicavelmente no imaginário do leitor, para as quais ele deseja encontrar sentidos.

O título Jangada de pedra é alegórico e amalgama múltiplas significações. A jangada

remete ao tema da navegação e da viagem – referência histórica, literária e mitológica - todas

elas enoveladas no tecido hipertextual.

Já a matéria de que é feita - a pedra - metaforiza a ação humana de construção.

Segundo Chevalier e Gheerbrant (1996), a pedra é símbolo da Terra-mãe.

Observamos que o espaço da narrativa é a Jangada de Pedra, representação metafórica

da Península Ibérica que se desloca pelo Atlântico, em um tempo sem marcas cronológicas

precisas, um tempo labiríntico condensado no espaço e na ação: a viagem - percurso da

humana aprendizagem.

A Jangada de Pedra evoca, no imaginário do leitor, uma pluralidade de viagens,

colocando em marcha o percurso dos heróis em busca de si mesmos. O texto nos transporta,

pelas ondas do imaginário mítico, à Odisseia, à Arca de Noé e a outros lugares de memória de

onde podemos ponderar sobre a condição e a identidade do homem.

Sabe-se que o contexto histórico de produção desse romance coincide com Portugal

em face da tensão pós-Abril, que remete à integração de Portugal na Comunidade Econômica

Europeia (como nação periférica) e identificação, ao lado da Espanha, com suas ex-colônias.

A Ibéria transformada em jangada leva o leitor a acercar-se da gloriosa história do

povo português em suas grandes navegações em busca de um novo mundo, entretanto com

uma visão outra, marcada pelo olhar crítico de quem revê os acontecimentos e vislumbra

outras perspectivas. A península ibérica não pode ser compreendida sem sua relação histórica

com a América e com a África. Daí a importância de as comunidades de Língua Portuguesa

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ganharem força e atualizarem as possibilidades das relações recíprocas, fundamentos do

Iberismo que se tece como utopia sociopolítica de Saramago. A motivação artística é a

imaginação utópica como práxis poética e política necessária para realização da utopia

libertária a qual vislumbra o escritor português.

A consciência do presente leva-o a interrogar o passado. Nesse sentido, Saramago

reinventa imaginários e mitos da memória cultural para, muitas vezes, subvertê-los. Seu olhar

indagador e crítico sobre os eventos passados pode ser apreendido pelas incursões ao

fantástico, construídas com refinada sensibilidade e engenhosidade em contraponto a

cenários realistas - noticiários, manchetes nas redes de televisão e rádios – criando efeitos de

ruptura de maneira a provocar inquietação no leitor. As pinceladas do fantástico que

compõem cada quadro literário marcam o texto de uma causalidade mágica que se contrapõe

às leis científicas que sustentam o paradigma contemporâneo.

A forma de narrar incorpora um conjunto de vozes em subversão à narrativa de voz

única – crítica às formas narrativas tradicionais, procedimento estilístico que se refaz também

na linguagem, composta de parágrafos longos, sem pontuação a não ser vírgulas e alguns

pontos; discurso indireto livre traduzindo o fluxo do pensamento, em uma configuração

também ela labiríntica e hipertextual.

No que se refere às construções metafóricas da linguagem de Saramago nesta obra,

podemos inferir que os estorninhos a fazer estranhas revoadas sob a cabeça de José Anaiço

podem simbolizar reflexões e busca de novos sentidos e novas direções; os tremores de terra

sentidos por Pedro Orce podem remeter às necessárias mudanças a serem engendradas no solo

da realidade da Península; a pedra, arremessada por Joaquim Sassa ao mar, ao pular

infinitamente contra a gravidade pode metaforizar os incômodos da realidade construída. O

cão, fiel e vigilante, percorre o labirinto infernal da Península o tempo todo ao lado dos

companheiros. Guardador dos caminhos, como psicopompo, mostra-se “guia do homem na

noite da morte, após ter sido seu companheiro no dia da vida”. (CHEVALIER;

GHEERBRANT, 1996, p.176). Sua figuração revela-se iniciatória, pois evoca a morte e o

recomeçar da nova vida. Os fios de lã destecidos por Maria Guavaira podem evocar a

desleitura da história ibérica, o desfiar da cultura até então experimentada e a busca de um

novo tecido social e imaginário, de uma nova cultura inaugurada com o encontro desses

personagens-heróis que se fazem no comum da vida. Guavaira – de sonoridade próxima à

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Guarvaia, a primeira cantiga medieval cantada em solo lusitano - é a Ariadne que fornece os

fios para construir essa nova trama da história.

Esse conjunto de imagens metafóricas e simbólicas, advindas dos mitos, da literatura e

da história, semantizadas em um novo discurso que se tece labiríntico no corpo vivo da

palavra literária, engendra faces de um comprometimento social, cultural, ético, político e

estético do autor lusitano.

A vara que risca o chão metaforiza o lápis a traçar fantasticamente a narrativa, axis

mundi a revelar o poder de recriação da estória animado pelo desígnio de refazer, pela

palavra, a História. Vara mágica e de poder clarividente, sob mãos femininas - vale ressaltar -

faz acordar para a consciência e transformar o que existe como dado.

Ao conjugar o imaginário feérico, mitológico e alegórico, o autor incita reflexões

críticas sobre a importância dos laços comunitários em resistência às forças do discurso

hegemônico, construindo esteticamente um novo imaginário. As personagens se juntam

mobilizadas por fatos que ocorrem de forma inusitada na vida cotidiana e lançam-se na

construção de uma nova ordem, de um novo lugar. Elas vão construindo sua humanidade na

convivência bem pouco pacífica. A jangada, em seu deslocamento, gira sobre si mesma, antes

de parar estrategicamente, conotando uma busca da própria identidade e do sentimento de

pertença a um entrelugar cultural em que se partilha a expressão pela língua.

Para além das amarras da história, ampliando para uma visão da arte como

problematizadora da condição humana, essa sintaxe simbólica e semântica, da forma e da

expressão, tecida ao modo de labirinto, encanta o leitor contemporâneo, também ele em busca

de sentidos de si mesmo pelos sentidos do outro.

1.2 O conto da ilha desconhecida Publicado em 1997, o Conto da Ilha desconhecida narra a história de um homem que

foi ao palácio do rei pedir um barco a fim de sair em busca da ilha desconhecida, cuja

inexistência já fora apontada pelos geógrafos.

No palácio, havia várias portas e cada uma com sua utilidade. O rei passava todo o

tempo na porta dos obséquios, mas o homem apareceu na porta das petições, assim a

majestade mandava que o primeiro secretário fosse ter com quem batia e este pedia ao

segundo secretário, que solicitava ao terceiro, que ordenava ao seu subordinado, até chegar,

finalmente, à mulher da limpeza, que, não tendo em quem mandar, atendeu as batidas. Mas

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ele queria ser atendido pelo rei, então se deitou frente à porta e acabou atrapalhando as

pessoas, o que provocou revoltas sociais, até que o rei atendeu o homem e lhe deu o barco.

O rei solicitou que o homem procurasse o capitão do porto e arrumasse a tripulação. A

mulher da limpeza resolvera ir com ele à procura da ilha. Ao chegar às docas, conseguiu uma

caravela reformada, que foi limpa pela mulher, enquanto o homem procurava por uma

tripulação, a qual não encontrou, pois ninguém acreditava que houvesse uma ilha

desconhecida. Seguiram ele e a mulher por insistência dela. Jantaram na primeira noite e

adormeceram. Ele sonhou com uma grande tripulação: homens, mulheres, crianças e levava

sementes, terra, animais e árvores; aportaram e, ali, fizeram brotar nova vida. Ao acordar, ao

lado da mulher da limpeza, nomearam o barco de ilha desconhecida e este barco-ilha parte

para o mar, à procura de si mesmo.

O título instiga o leitor a descobrir onde é e como se vive na ilha desconhecida. E

inicia abrindo portas para sua navegação, oferecendo uma ponta do fio: o barco.

A entrada da trama são as portas: do rei, das petições, dos obséquios, das decisões e

outras, pelas quais o leitor penetra no texto e, ao lado das personagens, dispõe-se em viagem

imaginária para a Ilha Desconhecida. Os desafios do labirinto e da aventura da viagem

instauram-se logo no início da trama.

A obra semantiza redes de elementos míticos, históricos, literários, de códigos

diversos e de diferentes linguagens, reunindo, em palimpsesto, textos culturais, épocas

civilizatórias, sonhos e ideais humanos. Traz temas que perpetuam pelos diferentes

imaginários e modulam a compreensão de cada época. Os grandes navegadores, Noé, Ulisses,

Simbad o marujo, heróis históricos, míticos e literários inscrevem no corpo do texto o factual,

o sagrado e o insólito, revelando múltiplas possibilidades para o impulso da aventura humana

em busca do conhecimento.

Dá-me um barco [...] vou dar-te a embarcação que lhe convém, Qual é ela, É um barco com muita experiência, ainda do tempo em que toda gente andava à procura de ilhas desconhecidas [...] Parece uma caravela, disse o homem, Mais ou menos, concordou o capitão, no princípio era uma caravela, depois passou por arranjos e adaptações que a modificaram um bocado, Mas continua a ser uma caravela, Sim, no conjunto conserva o antigo ar. (SARAMAGO, 1998, p.30-31)

O rei que vive de obséquios, manda e desmanda, exercitando um poder burocrático e

ditatorial evoca a memória política de ditadura vivida por Portugal com o salazarismo e

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relembra outras formas de poder autoritário que compuseram a história não apenas lusitana,

mas também de outros países. Para analisar o discurso crítico que a arte cria com a história, o

tom irônico do narrador modula o texto, abrindo novas portas para a releitura e a re-escritura

da História. Destronado, o rei senta-se na cadeira de palha da mulher da limpeza:

[...] Dá-me um barco, disse. O assombro deixou o rei a tal ponto desconcertado, que a mulher da limpeza se apressou a chegar-lhe uma cadeira de palhinha, a mesma em que ela própria se sentava quando precisava trabalhar de linha e agulha [...] Mal sentado, porque a cadeira de palhinha era muito mais baixa que o trono, o rei estava a procurar a melhor maneira de acomodar as pernas, ora encolhendo-as ora estendendo-as para os lados, [...] (SARAMAGO, 1998, p.15-16).

Assim como em Jangada de Pedra, subvertendo imaginários e valores, a mulher da

limpeza sai pela porta das decisões e assume, ao lado do navegante, seu papel de comando

rumo à ilha desconhecida.

A presença do insólito, que de início já cria o jogo ficcional, revela-se como atividade

imaginária a reverter o modelo explicativo cartesiano, caracterizadamente mecanicista e

fechado. No contexto da obra, aponta para forças complexas, que estão a se engendrar e

surpreender o homem, lançando-o a administrar incertezas que, efetivamente, compõem a

trajetória humana. Há mais coisas desconhecidas do que podemos pensar. Subjaz a ideia de

uma causalidade diferente das que conhecemos para as quais o autor torna o leitor um aliado.

A embarcação personificada revela as potencialidades do fazer humano.

As velas são os músculos do barco, basta ver como incham quando se esforçam, mas, e isso mesmo sucede aos músculos, se não se lhes dá uso regularmente, abrandam, amolecem, perdem nervo, E as costuras são como os nervos da vela [...] (SARAMAGO, 1998, p.34)

Entre os fazeres e os afazeres, o maior empreendimento é a busca da própria identidade.

[...] Mas quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou eu quando nela estiver, Não o sabes, Se não sais de ti, não chegas a saber quem és, [...] dizia que todo homem é uma ilha [...] Que é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não nos saímos de nós. (SARAMAGO, 1998, p.40-41) Depois, mal o sol acabou de nascer, o homem e a mulher foram pintar na proa do barco, de um lado e do outro, em letras brancas, o nome que ainda faltava dar à caravela. Pela hora do meio-dia, com a maré, A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma. (SARAMAGO, 1998, p.62)

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A ilha desconhecida representa Portugal que busca sua própria identidade em um novo

contexto, que já não é o das caravelas.

A arquitetura imaginária que Saramago nos convida a penetrar torna-se uma aventura

de navegação. O leitor é arremessado no interior do processo labiríntico do texto e para além

das malhas textuais. O inusitado uso da pontuação, o complexo itinerário imaginário tecido de

múltiplas rotas que ativam a capacidade mnemônica para construção de sentidos motivam o

leitor a recuperar o passado, questionar o presente e projetar o futuro. Nessa viagem imóvel e

imaginária possibilitada pela arte literária, o leitor refaz caminhos de descoberta e

significação, reescrevendo a história. Carece a ele, no transitar por entre as tramas dos signos

verbais e não verbais, encontrar o fio de Ariadne e enfrentar com coragem e ousadia as

adversidades que antecedem a descoberta.

Assim, podemos concluir que O conto da ilha desconhecida reatualiza os elementos

imaginários da viagem, bem como os motivos labirínticos, tanto no plano do conteúdo, quanto

no plano da expressão.

2. Leitura comparativa: o imaginário da viagem

Ao analisar as duas obras de Saramago, Jangada de Pedra e O Conto da Ilha

Desconhecida, observamos uma recorrência simbólica: o motivo da viagem.

A viagem é metáfora do conhecimento na exploração do mundo e dos limites do

próprio viajante. Esse caminho iniciático promove o encontro com o “outro” e consigo

mesmo, constituindo-se como um modo de o viajante encenar a relação entre identidade e

alteridade.

Como matéria literária, tecida pelos fios do imaginário, a viagem não é apenas

deslocamento individual no espaço geográfico ou no tempo, mas é também deslocamento

social e cultural (MACHADO; PAGEAUX, 1997) - um exercício de movimento do olhar,

engendrando a possibilidade de consciência de si e do outro.

As duas narrativas analisadas demandam uma releitura da história de Portugal e das

civilizações ocidentais pelas veias do mito literarizado. Assim, é possível desler e reler as

conquistas e mazelas do empreendimento colonizador e entrever novos caminhos e novas

alianças.

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Como matéria mítica, renova-se, nessas obras, a imagem de Ulisses como herói

paradigmático que, segundo a crença, fundou a cidade de Lisboa (BORGES, 1983, p.39) e,

como líder, convida seus companheiros a uma notável aventura.

Igualmente, nos dois textos, é possível reler a figura bíblica de Noé, importante

personagem para o imaginário cristão, imagem literarizada para semantizar a construção de

uma nova humanidade.

De acordo com Wunenburger (2007, p.49), os mitos, compartilhados pelos narradores

orais, são renovados permanentemente e, no exercício da escritura, são literalizados, seus

conteúdos são transfigurados, evidenciando sua perenização. Na passagem do mito tradicional

para o mito literário, há processos de releitura, entre os quais a “bricolagem” (a reorganização

da arquitetura narrativa, de forma que o mito seja decomposto e recomposto sob nova

perspectiva, ou ainda a “transfiguração barroca”(WUNENBURGER,2007, p.50), em que

“uma formação mítica se vê transformada por uma reescritura lúdica que atua por meio de

inversões, de paródias, ou de aparências”(WUNENBURGER,2007, p.50) – ambos processos

intencionalmente presentes nas obras analisadas neste ensaio.

Cumpre assinalar, na esteira do referido autor:

Trata-se então não de um retorno do mito, como se tratasse tão somente de adaptar um mito antigo às condições de sensibilidade ou de inteligibilidade atuais,mas de um retorno ao mito com uma intenção ficcional. O novo texto do mito é então obtido por procedimentos controlados de ajustes, de sobreposição, de miscigenação, de entrecruzamentos intertextuais[...], que com frequência não são destituídos, por seu turno, de humor, de ironia ou se sentido paródico. (WUNEMBURGER, 2007, p.51)

Essa rede imaginária de textos e contextos que se entrama na forma jogo literário

convida-nos a retecer percursos da memória e a providenciar caminhos para o futuro. Nas

palavras de Saramago: “o sonho é um prestidigitador hábil, muda a proporção das coisas e as

suas distâncias, separa as pessoas, e elas estão juntas, reúne-as”. (SARAMAGO, 1998, p.50).

E a matéria imaginária que compõe a literatura é de natureza onírica. Saramago organiza as

duas narrativas com mitos que vão sendo semantizados para compor um imaginário social e

político que lhe traduz o sonho diurno. Conforme Benjamin Abdala Junior, em De Vôos e

Ilhas (2003, p. 18), inspirado em Ernst Bloch: “é o sonho de quem procura novos horizontes

[...] Essa atitude é mais adequada do que o sonho noturno, que teima obsessivamente em olhar

para trás, melancolicamente contemplando as ruínas”.

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As situações dramáticas apresentadas compõem-se como uma constelação de imagens

que se orientam para a ideia de um deslocamento sobre si mesmo, uma procura cega por outro

lugar sem que se percam os fios que conectam ao aqui e ao agora. Cada obra traz imagens

novas, mas retecidas pelo mesmo fio articulador.

Nos textos em análise, mostram-se mais personagens e menos ação, evidenciando um

olhar bastante atento de Saramago ao humano e à construção de relações de humanidade.

O imaginário do autor compõe-se com uma gramática poética, de complexa textura e

aguda criatividade, que traz, associada ao motivo da viagem, a imagem do labirinto. Sua

sintaxe de metáforas constitui um diagrama que orienta sentidos e dialeticamente não sentidos

da experiência humana. Como sistema complexo de imagens, possui forma e força criativa

não apenas para refletir a vida real, mas também para nela criar ressonâncias. Semelhante a

um tecido de imagens que dinamiza a vida individual e coletiva, o imaginário se revela como

um sistema aberto e ao mesmo tempo como fonte criadora e recriadora de sentidos. Para

lembrar Bachelard, o imaginário opera com representações dotadas de poder de significação e

de transformação.

Outro ponto de conjunção das duas obras é a presença do fantástico como categoria

(ROAS, 2014, p.8), como um modo de expressão, um propósito estético, “um discurso em

constante relação com esse outro discurso que é a realidade, entendida sempre como

construção social”.

A presença desse recurso leva o leitor a experimentar inquietação, uma vez que lhe

falta a coerência dos sentidos. Essa inquietação diante do sobrenatural desestabiliza relações

sólidas e pouco questionadas e introduz novas possibilidades de realização. O fantástico,

embora não sobreviva sem o sobrenatural, alimenta-se do real, cria espaço similar ao habitado

pelo leitor e este espaço é invadido por um fenômeno desestabilizador – ameaça para a

realidade, para a estabilidade e solidez que aparenta ter a realidade – e, nesse sentido, instaura

algo de profundamente realista: o fato de que nenhuma realidade é sólida e imutável. “A

narrativa fantástica põe o leitor diante do sobrenatural, mas não como evasão, e sim, muito

pelo contrário, para interrogá-lo e fazê-lo perder a segurança diante do mundo real ”(ROAS,

2014, p.31).

A intromissão do fantástico na narrativa cria, também, intencionalmente, rupturas com

o modo realista como as crônicas de viagem tomavam corpo – gênero com o qual também as

obras fazem diálogo, uma vez que foram permanentemente usadas nas comunicações

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coloniais. O tensionamento entre os elementos de realidade e de invenção vai aos poucos

traduzindo a experiência subjetiva do autor e compartilhada com o leitor na busca indelével

de novas referências a partir da intromissão do fantástico e a necessária reinvenção do olhar.

É fato que o uso dessa categoria dá força ao projeto estético do autor e é um dos sinais

de sua consciência de linguagem. Aliás, essa expressão consciente revela-se tanto no plano da

forma quanto no do conteúdo, tangenciando muitas escolhas simbólicas que compõem o

imaginário do autor e de seu tempo, o tom irônico do narrador, as rupturas gramaticais que

realiza, entre outras opções intencionais que qualificam a produção estética de um texto,

inclusive vislumbrando seu possível leitor.

Sabe-se que, em diferentes sociedades e contextos históricos, há tipos específicos de

leitores. Na contemporaneidade, destaca-se um leitor assemelhado a Teseu, que precisa

escolher caminhos para chegar ao Minotauro para, depois, sair do labirinto. Diante da

multiplicidade de portas, é preciso puxar o fio de Ariadne para vislumbrar saídas.

No caso de obras hipertextuais, como as de Saramago aqui analisadas, fica sob a tutela

do leitor a realização da obra, em face de um labirinto de possibilidades. Por suas múltiplas e

ambíguas relações, a forma labiríntica permite representar, lembrando Bakhtin (2003), uma

verdade que tem sempre uma expressão polifônica.

Para Rosenstiehl (1988, p.252-3), há traços definidores do labirinto: o convite à

exploração e a capacidade de voltar a pontos percorridos para obter alguma segurança; a

exploração sem um mapa previamente elaborado, uma vez que não se tem a visão global; a

exigência de uma inteligência astuciosa para que se prossiga e progrida sem cair em

armadilhas, permanecendo em constantes circunvoluções. As obras de Saramago aqui

discutidas reiteram esse dinamismo, o plano do conteúdo é estritamente coerente com o plano

da expressão: autor, obra e leitor compartilham do mesmo desígnio – a circum-navegação.

Como um entrelugar imaginário em que conflui o lúdico e o lúcido, aberto ao

percurso-navegação, o hipertexto-labirinto se oferece ao leitor como desafio capaz de projetar,

em novas paragens, relações do homem com o mundo e com outro. Esse efeito de

deslocamento propiciado pelo jogo artístico da linguagem – imagens ação – sugerem, a partir

das obras analisadas, a re-escritura de uma nova épica tecida pela ruptura e alimentada pelo

desejo de um novo modo de estar vivo e de poder conviver.

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Nas duas narrativas, figura a viagem tomada também como escrita da viagem. A

escrita torna-se pretexto para a busca da identidade – uma espécie de odisseia interna, como

expansão do império interior.

A escrita da viagem é metáfora escolhida para um novo encontro: do autor com o

leitor. Ela atualiza o sujeito no seu permanente movimento de formação e de reformulações na

busca de um lugar cultural. Conforme Hatoum:

A identidade não deve ser uma adesão passiva ao real com que fomos enformados. Forma compacta, o estereótipo é uma fábrica de convenções, um antídoto contra a invenção. Nesse sentido, a identidade é uma busca. Para um escritor, essa busca se perde em um labirinto de vivências e experiências, mediado pelo aparato da linguagem.[...] (HATOUM, 1994, p.77).

A escrita da viagem é navegação, como gesto humanizador por excelência, escrita

enigmática da vida e para a vida nos seus trânsitos e desígnios. Memória e porvir que fazem

renovar o homem no seu percurso iniciatório pelos labirintos das formas sígnicas.

A língua portuguesa é a possibilidade de expressão do gesto transfigurador e

decifrador de novas paisagens por parte desse escritor lusitano. Nessa nova cartografia

imaginária, a imagem-ação traduz-se como pátria líquida, jangada que se move à deriva da

imaginação, barco-ventre que navega na extensão infinita dos possíveis e projeta, na fluidez

das águas, o olhar ilimitado para novas navegações. Eis a dimensão metapoética e mitopoética

da arte da escrita de Saramago.

Considerações finais

Distintas marcas históricas singularizam as formas artísticas, as várias migrações e

reinvenções de imagens, concepções e estruturas que se afirmam como metáforas para

formulação de conceitos estéticos. Os espaços textuais, ao se retecerem em fluxos operativos,

convocam a participação do leitor para complementar o diagrama de significações delineado

pelo autor.

Saramago, em seu criativo projeto estético e político, revela profunda consciência de

linguagem, reinventando imaginários e incitando reflexões sobre a importância dos laços de

afeto em resistência às severas forças do discurso hegemônico, construindo esteticamente um

novo imaginário.

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Esse sistema organizador de experiências tecido em rede de imagens que se

expressam em matéria metafórica singulariza o estilo e o contexto histórico-cultural do

escritor, realizando intenções.

Ao perscrutar as constantes semânticas que permitem aglutinar os conteúdos oníricos

das obras – recurso metodológico favorecido pelos estudos comparados – salta à percepção o

motivo da viagem, traduzida aqui como aventura da humana aprendizagem a realizar-se tanto

no corpo inextrincável do texto, quanto nos fluxos labirínticos da existência.

Como forma cifrada de manifestação humana, ato simbólico, por excelência, de

expressão do imaginário, a literatura revela-se lugar de memória de onde se enseja ponderar

sobre a condição humana e seus possíveis.

REFERÊNCIAS

ABDALA JR., Benjamin. De vôos e ilhas: literaturas e comunitarismos. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. _____. Estudos comparados: teoria, crítica e metodologia. São Paulo: Ateliê Editorial, 2015. ARAUJO, Alberto F.; BAPTISTA, Fernando P. Variações sobre o imaginário: domínios, teorizações, práticas hermenêuticas. Lisboa: Instituto Piaget, 2003. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Editora Forense-Universitária, 2003. BORGES, J. L. Sete noites. São Paulo: Max Limonad, 1983. CANDIDO, A. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre o azul, 2006. _____. Formação da literatura brasileira. 8.ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1997. v.1. CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura Comparada. São Paulo: Ática, 2006. _____ (org.). Literatura comparada no mundo: questões e métodos. Porto Alegre: L&PM/VITAE/AILC, 1997. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Allain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Trad. Vera da Costa e Silva et al. 10. ed. Rio de Janeiro: José Olympio,1996. DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. Trad. Hélder Godinho. São Paulo: Martins Fontes, 1997. _____. A Imaginação simbólica. Lisboa: Edições 70, 1993. _____. Campos do Imaginário. Lisboa: Instituto Piaget, 2000. HATOUM, M. Literatura e identidade nacional. In: Remate de males. Campinas, v.14,1984.

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MACHADO, Álvaro Manuel; PAGEAUX, Daniel-Henry. Literatura portuguesa, literatura comparada e Teoria Literária. Lisboa: Edições 70, 1981. MAFFESOLI, Michel. Notas sobre a pós-modernidade: o lugar faz o elo. Rio de Janeiro: Atlântica, 2004. MORIN, E. O paradigma Perdido. Portugal: Europa-America, 1999. ROSENSTIEHL, P. Labirinto. Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa nacional, v.13,1988. ROAS, David. A ameaça do fantástico. São Paulo: Unesp, 2014. SARAMAGO, J. O conto da ilha desconhecida. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. _____. A jangada de pedra. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. WUNENBURGER, Jean-Jacques. O Imaginário. São Paulo: Edições Loyola, 2007.

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Entre os fios que tecem a peneira d’água: uma leitura do imaginário por meio do regime diurno da imagem

Among the treads that spin the water’s sieve: a reading of the imaginary through the

daytime image regime

Entre les fils qui tissent le tamis d'eau : une lecture de l'imaginaire via le régime diurne de l'image

Heloisa Juncklaus Preis MORAES 1

Unisul, Tubarão, Brasil

Willian Corrêa MÁXIMO2 Unisul, Tubarão, Brasil

Luiza Liene BRESSAN 3 Unisul, Tubarão, Brasil

Resumo O texto literário e seus procedimentos poéticos expressam valores do mundo e, pelas lentes da teoria do imaginário, podemos entendê-lo como potência simbólica. A convergência, o isomorfismo e a totalidade das imagens, traços fundantes da antropologia do imaginário proposta por G. Durand (2002), estão presentes nas atitudes imaginativas que dão sentido à vida. Podemos observar o tempo e o espaço de determinada sociedade através das imagens-símbolos presentes nas artes. Este artigo propõe a análise do poema O menino que carregava água na peneira, de Manoel de Barros (1999), sob o enfoque do Imaginário, especificamente o Regime Diurno da Imagem. Palavras-chave: poesia; imaginário; regime diurno. Abstract The literary text and its poetic procedures express world values and, through the lenses of the imaginary theory, we are able to understand it as symbolic force. The convergence, the isomorphism and the totality of images, founding characteristics of the imaginary anthropology proposed by G. Durand (2002) are all present in the imaginative attitudes which give meaning to life. We can observe time and space of a certain society through symbol-images present in arts. This article proposes the analysis of the poem O menino que carregava água na peneira (The boy who carried water in the sieve), by Manoel de Barros, approaching the Imaginary, specially the Daytime Regime of Image. Key-words: poetry; imaginary; daytime regime.

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Literatura, imaginário e o regime diurno da imagem Partimos da função criadora (e não somente reprodutora) do imaginário. O imaginário

é apresentado sob duas formas, uma inferior e outra superior: fantasia e imaginação,

respectivamente. Para Turchi (2003, p. 20), a partir daí é possível afirmar que “ao imaginário

abrem-se, assim, duas atividades distintas em sua vertente criadora: a literária e a científica”.

O que nos proporciona conceitualmente que “o imaginário é o dinamismo criador, a potência

poética das imagens, enfim, a potência da palavra humana que emerge do inconsciente

coletivo” (TURCHI, 2003, p. 21). Sendo assim, nosso estudo aproximará a teoria do

Imaginário, desenvolvida Gilbert Durand em As Estruturas Antropológicas do Imaginário

(2002), mostrando como estão representados, simbolicamente, os fenômenos naturais e os

animais no imaginário humano, principalmente aqueles que se relacionam com a água e suas

construções simbólicas.

Nossa proposta de estudo busca percorrer a teia que tece o movimento do Menino que

carregava água na peneira, um poema de Manoel de Barros (1999), perscrutando os

fenômenos imaginários suscitados na inter-relação do menino, da peneira e da água e como

são considerados na perspectiva do estudo durandiano, observando também como os autores

do imaginário constroem um trajeto antropológico sob a ótica do Regime Diurno de Imagem.

Desde sempre, o homem procura dar sentido às coisas. Assim, inerente ao ser humano

estão os atos de modificar, criar, inventar e dar sentido ao mundo, sendo que, muitas vezes,

faz isso impulsionado por uma atividade da mente, a imaginação. Por muito tempo, as

ciências naturais e o predomínio da razão guiaram a sociedade por meio da objetividade. Na

contemporaneidade, os estudos culturais reformularam-se com suporte das Ciências Sociais e

impulsionaram os estudos das teorias sobre a subjetividade.

Bachelard apresentou por meio de seus escritos, que a organização do mundo referente

às relações existentes entre os homens, a terra e o universo não provém de uma série de

raciocínios e sim da elaboração de uma atividade da mente que considera as emoções. O

símbolo permite estabelecer uma relação entre o “eu” e o “Mundo” e que os quatro elementos

(terra, ar, água e fogo) são os impulsionadores da imaginação. Para Turchi (2003, p. 23), em

sua obra que relaciona o imaginário aos gêneros literários, Bachelard destaca a semântica dos

símbolos já que o autor:

constrói uma fenomenologia do imaginário que permite, por intermédio do devaneio poético, ultrapassar os obstáculos do compromisso biográfico do poeta e do leitor, colhendo o símbolo na sua plenitude. Um dos fundamentos

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básicos do pensamento bachelardiano consiste em perceber o simbolismo imaginário como dinamismo criador, amplificação poética de cada imagem concreta, e como dinamismo organizador, fator de homogeneidade na representação. Desta forma, o símbolo, pertencendo a uma semântica especial, possui, não apenas um sentido artificialmente dado, mas um poder essencial e espontâneo de repercussão, quanto os encadeamentos dos símbolos se regem pelas ressonâncias, pelas afinidades ocultas que residem no seu conteúdo material, de natureza semântica. (BACHELARD, 1978 apud TURCHI, 2003, p.23)

Observando a produção de sentido sob o ponto de vista teórico de Gilbert Durand,

simbolizar faz parte da condição humana, entretanto ele o trata como o imaginário e não como

simbolismo, sendo que o símbolo é uma forma de expressão do imaginário. Considerando a

dimensão simbólica, é necessário perceber que o símbolo se caracteriza pela sua ambiguidade

e pela sua infinidade de significados.

Ao estruturar sua tese, que deu origem ao livro As Estruturas Antropológicas do

Imaginário, Durand (2002) buscou uma nova forma de categorizar as imagens partindo de

uma classificação estrutural não reducionista. Sua análise apontou para uma dualidade no

mundo, da qual ele nomeou como regime diurno e regime noturno. Naturalmente, os símbolos

se reorganizam em torno de núcleos convergentes formando uma constelação de imagens,

com estruturas isomórficas tal como os símbolos convergentes.

O isomorfismo dos schemes, dos arquétipos e dos símbolos encontra-se na constelação

de imagens que se transformam em representações imaginárias definidas e relativamente

estáveis, formando as estruturas. Os schemes estão ligados aos gestos e às pulsões

inconscientes, estabelecendo relação entre os gestos corporais e as representações,

caracterizando-se como o nível mais abstrato da imagem. Os arquétipos mantêm sua

adequação ao scheme, mantendo uma universalidade, mas têm forma dinâmica e estrutura as

imagens. Em função do texto em análise, aprofundaremos, adiante, a noção de arquétipo.

Estas duas etapas anteriores motivam “as grandes constelações simbólicas” estudadas por

Durand (2002, p.59), partindo “de uma concepção simbólica da imaginação, quer dizer, de

uma concepção que postula o semantismo das imagens, o fato de elas não serem signos, mas

sim conterem materialmente, de algum modo, o seu sentido”. Os mitos, utilizando “o fio do

discurso, no qual os símbolos se resolvem em palavras e os arquétipos em idéias”, explicando

um esquema ou um grupo deles.

O autor refere-se às imagens a partir da identificação de significados intrínsecos às

mesmas, recorrentes em culturas de diversas localidades e temporalidades. A convergência, o

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isomorfismo e a totalidade das imagens, traços fundantes da antropologia do imaginário

proposta por G. Durand (2002), estão presentes nas atitudes imaginativas que dão sentido à

vida e orbitam entre dois pólos: as intimações subjetivas e as interpelações socioculturais. O

essencial da representação e do símbolo está presente nestes dois marcos reversíveis a que o

autor (2002, p. 41) chamou de trajeto antropológico: “a incessante troca que existe ao nível

imaginário entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e as intimações objetivas que emanam

do meio cósmico e social”.

A capacidade inata de imaginar alivia o drama da aventura humana diante da finitude:

da noção e consciência do tempo à maldição tenebrosa da morte. A imaginação é autônoma,

espontânea e atemporal e, por isso, capaz de driblar a voracidade do Cronos, vencer a negrura

da morte e triunfar perante o destino. Para Durand (2002, p.123), “a imaginação atrai o tempo

ao terreno onde poderá vencê-lo com toda facilidade”.

Se há diferentes formas de representar o imaginário humano pela linguagem, segundo

Turchi (2003), uma eufemização frente ao tempo, à morte e ao destino, na interpretação dos

textos poéticos, o mito, pelo discurso, apresenta e atualiza suas imagens arquetipais e se

racionaliza. Este percurso se evidencia na metamorfose hídrica (e híbrida) do texto intitulado

O menino que carregava água na peneira, de autoria de Manoel de Barros (1999), que aqui é

analisado.

No texto, a metáfora da liquefação temporal se fundamenta nas antíteses, por

intermédio do dualismo e da ambivalência da água, límpida e ao mesmo tempo escura e fatal,

características do Regime Diurno da imagem, da representação, da consciência e da fantasia.

O Regime Diurno, segundo Durand (2002, p. 179), caracteriza-se “(...) por constelações

simbólicas, todas polarizadas em torno dos dois grandes esquemas (schemes), diairético e

ascensional, e do arquétipo da luz”. Para o autor, pela atitude heróica do cetro e do gládio, as

imagens, no regime diurno, fazem frente às fases (e faces) do tempo: às instâncias negativas

dos símbolos teriomorfos (da animação e da animalidade), nictomorfos (das trevas) e

catamorfos (do abismo e da queda).

Para Durand (2002), o Regime Diurno é o Regime da Antítese que culmina com a

vontade de transcender diante do medo e da fuga do tempo. O tempo que, no texto, apropria-

se de uma faceta teriomórfica, sinônimo de “angústia diante do devir”, para Durand (2002, p.

121), é análogo ao crepúsculo e às trevas do elemento mineral água: (...) “a água que escorre é

amargo convite à viagem sem retorno: nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio e os

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cursos da água não voltam à nascente. A água que corre é figura do irrevogável”,

complementa Durand (2002, p.96). Ainda, orientação simbólica catamórfica, cuja queda -

pelos efeitos do tempo (da vertigem, da gravidade e da punição) - tem como consequência a

própria morte.

Para Durand (2002), no Regime Diurno, o cetro e o gládio manifestam-se por

esquemas ascensionais, diairéticos e espetaculares. Os símbolos ascensionais são sinônimos

de elevação, verticalização, de novo impulso, de potência: “a ascensão é, assim, a ‘viagem em

si’, ‘a viagem imaginária mais real de todas’ com que sonha a nostalgia inata da verticalidade

pura, do desejo e evasão para o lugar hiper ou supraceleste (...)” (DURAND, 2002, p. 128).

No texto sob análise, estes símbolos ascensionais, evidenciam-se na “reconquista da potência

perdida” (op cit, p. 145), por intermédio do menino ‘peralta’, capaz de ser, estar e fazer em

qualquer tempo e lugar. Além disso, para Durand (2002), a atitude diairética, ou seja, de

divisão e de decomposição, também se estrutura enquanto enfrentamento positivo perante a

‘certeza’ da morte. Na poesia, os símbolos diairéticos estão representados, em especial, pelos

fragmentos dos “despropósitos e peraltagens” do menino, seja em seus comportamentos, com

os irmãos e com a mãe. O celeste e o luminoso, sob o olho e o olhar da transcendência, são

características dos símbolos espetaculares, em complementação aos ascensionais e diairéticos.

Pelo manuseio das palavras, no texto, o menino concretiza um isomorfismo com a luz e a

soberania, tornando, pelo domínio da linguagem – conforme Durand (2002) – símbolos e

coisas perenes.

Essa estrutura esquizomorfa é guiada por três importantes constelações de imagens:

ascensional, cujo símbolo está relacionado ao scheme de elevação; as espetaculares, onde

ocorre o isomorfismo entre o céu e o luminoso, entre a coroa e a aura; e o símbolo diairéico,

que equivale à separação cortante entre o bem e o mal.

Os símbolos ascensionais se colocam como a reconquista da potência perdida (escada,

flecha, asa, vôo, montanha), os espetaculares (luz, brilho, sol, ouro, céu, azul, o olho e o olhar

– visão, a palavra) e diairéticos (armas, casa, água, terra, fogo, ar), estes constelam como fiéis

contrapontos à queda, às trevas e aos compromissos animais ou carnais. Estes símbolos são

confirmações de que a imaginação atrai o tempo e a morte ao terreno da eufemização, onde

ela poderá vencê-los com facilidade.

Neste ‘reino’ de pensamentos transcendentes, manifestos pelo Regime Diurno e, por

conseguinte, na poesia, evidenciam as quatro estruturas do Regime Diurno da representação:

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a) o recuo, a perda do contato com a realidade, o autismo, cujo processo simbólico contempla

e significação subjetiva; b) o spaltung ou a faculdade de abstrair, num prolongamento da

atitude autística; c) o geometrismo mórbido, corolário à simetria, ao plano e à lógica mais

formal na representação e no comportamento; e d) o pensamento antitético, dos contrários.

No texto, em suma, as estruturas esquizomorfas, que nada têm de patogênicas,

segundo Durand (2002), povoam o universo poético (e perene) em que na/pela imaginação

elementos e personagens misturam-se, sob a fluidez da água (da vida) e sob atitude heróica

que, juntos, consubstanciam um arquétipo de luz, do Regime Diurno.

O Regime Diurno é representado por uma estrutura heróica, que busca representar a

vitória sobre o destino e sobre a morte, onde se coloca em confronto os contrários, os

símbolos trazem a noção de potência (pulsão), dilemas, iluminação, contradição, que só pode

ser atingido por vontade de poder, dominante de posição (verticalidade), masculinidade,

ascensão, exibição, liberdade, clareza, razão, objetividade, sempre em dicotomia com a

exclusão dos próprios termos.

Arquétipo do Inocente

Jung (2002) concebe os arquétipos como estruturas psicológicas que servem de

alicerce para toda e qualquer construção humana. O arquétipo, como sendo imagem inicial,

que viabiliza a concretude dos gestos (schemes), pode ser compreendido enquanto marco zero

que fundamenta, gere, orienta, ampara, estrutura e reestrutura as nossas ações. Como já

propôs Pitta:

Imagem primordial de caráter coletivo e inato, é o estado preliminar, zona matricial da ideia (JUNG). Ele constitui o ponto de junção entre o imaginário e os processos racionais. Ele é uma forma dinâmica, uma estrutura organizadora de imagens, mas que está sempre além das concretudes individuais, biográficas, regionais e sociais, da formação das imagens. (2005, p. 18).

Os arquétipos são desencadeados durante toda nossa vida “e a partir daí coordenam o

campo psicológico. Apesar de presentes em todos nós, sua intensidade e momento de

manifestação são imensamente variáveis de um ser humano para outro, tanto quanto a voz, a

audição ou a forma de pensar e de sonhar” (BYINGTON, 1994, p. 7). São muitos os

arquétipos resultantes do processo de vivências e das experiências humanas, pesquisados por

Jung. De acordo com as experiências, a cultura e até mesmo a ambiência cultural de cada

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sujeito os arquétipos podem ser apropriados e utilizados de diferentes formas. Podemos citar

o guerreiro, o bobo, o Matriarcal, o Patriarcal, o da Alteridade (da Anima, no homem e do

Animus, na mulher), da Totalidade, do Herói, da Bruxa, do Velho sábio, da Morte, do Mestre-

Aprendiz, do Caçador, do Líder, do Sacerdote, do Inocente, entre outros.

O Matriarcal, o Patriarcal, o da Alteridade (Anima e do Animus) e o da Totalidade são

os principais arquétipos que compõem a nossa formação social. Além destes, uma série de

outros arquétipos são discutidos, especialmente nos textos literários. No entanto, no objeto

desta pesquisa, o foco estará direcionado no arquétipo do inocente, sob o qual relacionaremos

o simbolismo do poema O Menino que carregava água na peneira, de Manoel de Barros

(1999).

Imagens humanas e imagens d’água

Analisar um texto poético é, antes de tudo, uma grandiosa tarefa, quase sempre,

inesgotável. Mergulhar nas entranhas das palavras poéticas traduz-se como um exercício de

deleite, pois:

a poesia é uma metafísica instantânea. Num curto poema deve dar uma visão de universo e o segredo de uma alma, ao mesmo tempo um ser e objetos. Se simplesmente segue o tempo da vida, é menos do que a vida; somente pode ser mais do que a vida se imobilizar a vida, vivendo em seu lugar a dialética das alegrias e dos pesares. Ela é então o princípio de uma simultaneidade essencial, na qual o ser mais disperso, mais desunido, conquista unidade (BACHELARD, 1986, p. 183).

Bachelard é um dos precursores dos estudos da imagem e em quem Durand ancora

seus estudos sobre o imaginário. Para se empreender uma análise do Regime Diurno da

Imagem, nossas reflexões prosseguem a partir de alguns pressupostos bachelardianos sobre a

imagem que suscita da água e de sua relação com a natureza humana, uma vez que o texto que

elegemos como recorte para a análise é do poeta goiano Manoel de Barros (1999) intitulado O

menino que carregava água na peneira.

O título traduz uma imagem marcada pela transitoriedade dos elementos. Se

pensarmos nos três elementos substantivos do título do poema, já mergulharemos numa bacia

semântica cuja ideia mais sugestiva é a fluidez do tempo: o menino (que desejamos eterno em

nós), a peneira (que filtra os elementos) e a água (em seu movimento de passagem pelos furos

da peneira) movimentam a própria passagem da vida. Analisando sob este viés, a água é o que

Bachelard (1997) vê como um elemento transitório, ligado a um tipo de destino que se

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metamorfoseia incessantemente: “o ser ligado à água é um ser em vertigem. Morre a cada

minuto, alguma coisa de sua substância desmorona constantemente” (BACHELARD, 1997, p.

7). O filósofo discorre sobre as superficiais águas claras e brilhantes, as águas vivas, que

renascem a partir de si mesmas, e as águas amorosas. A água é o elemento das misturas.

A água em Barros também é uma água viva que se roubada pode sair correndo e

encontrar os irmãos do menino: “o ser que sai da água é um reflexo que aos poucos se

materializa; é uma imagem antes de ser um ser, é um desejo antes de ser uma imagem”

(BACHELARD, 1997, p.36). Neste caso, tão etéreo quanto a água na peneira é roubar um

vento. As imagens suscitadas no poema de Barros (1999) nos sugerem outras imagens tão

caras ao tempo que já se esgotou e ao tempo do devir.

Bachelard (1997) nos ensina que a água é detentora de forças imaginantes que podem

guiar a uma significação muito maior e pertinente ao fazer literário.

A água é realmente o elemento transitório. É a metamorfose ontológica essencial entre o fogo e a terra. O ser votado à água é um ser em vertigem. Morre a cada minuto, alguma coisa de sua substância desmorona constantemente. A morte cotidiana não é a morte exuberante do fogo que perfura o céu com suas flechas; a morte cotidiana é a morte da água. A água corre sempre, a água cai sempre, acaba sempre em sua morte horizontal. Em numerosos exemplos veremos que para a imaginação materializante a morte da água é mais sonhadora que a morte da terra: o sofrimento da água é infinito (BACHELARD, 1997, p. 06 e 07).

Por nossa própria experiência cotidiana com o elemento água, somos testemunhas da

facilidade com que ela recebe em si boa parte de outras essências, líquidas ou não. Facilidade

com a qual também compreendemos tal receptividade do material no âmbito da imaginação,

pois, como escreveu Bachelard (1997, p. 98), “para o devaneio materializante, todos os

líquidos são águas, tudo o que escoa é água, a água é o único elemento líquido”.

Entende-se, assim, que as imagens possuem uma dinâmica criadora e que se

materializam na experiência do corpo, seja em movimentos físicos de expressão linguística ou

na labuta muscular que se movimenta, que possui seus ritmos, pelo gestual e pela consciência

temporal descontínua, marcada de instantes que se sucedem arrastados pelo Cronos que marca

a finitude. “Somos transportados na busca imaginária por materiais fundamentais, por

elementos imaginários que possuem leis idealísticas tão exatas quanto às leis experimentais”

(BACHELARD, 1990, p.13).

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Embrenhemo-nos, então, nas teias que tecem a peneira de Barros, em seu menino e

nas águas que constituem o triângulo do imaginário que, em cadeia, tecem o trajeto

antropológico do regime diurno das imagens.

Carregar água na peneira: a potência poética O universo poético abrange planos diversos, mas todos se sustentam na palavra que ao

poema deu forma. O poema é um “ser de palavras”, que se caracteriza por sua

interdependência em relação a elas, ao mesmo tempo em que luta incessantemente por

transcendê-las. Barros (1999) refere-se a um menino diferente, contextualizado-o sob

símbolos da natureza para representar suas intenções de sentido.

A escrita, nesse caso, proporciona ao menino a liberdade, uma das características do

Regime Diurno durandiano (2002). O menino, no texto, pode ser o que quiser pois, por meio

da escrita, encontrou a possibilidade de criar um mundo próprio. O autor utiliza metáforas

para enfatizar a dimensão simbólica de sua intenção. Trata-se de uma forma específica de

linguagem, que tem o poder de recriar e reconstruir o mundo, trabalhando a imaginação.

Possivelmente seja justamente essa possibilidade de invenção, potência criadora, que compõe

o elo entre a poética de Manoel de Barros e o imaginário que propomos como fundamentação

de análise. A poética, em seu processo de criação, ao se utilizar das palavras que migram seus

sentidos na constelação de imagens e no isomorfismo dos símbolos, não se limita apenas à

aparição das palavras, mas à superação do próprio sentido por ele mesmo.

A poesia tem como característica a subjetividade, cuja palavra enquanto signo não

vem com a significação pronta. O poema em análise traz a dicotomia do “cheio e vazio”, na

intenção de mostrar o “cheio” no sentido de comum e o “vazio” como incomum, ou seja, uma

infinidade de possibilidades não comum a todos. O texto enfatiza a questão do tempo, como

uma previsão de futuro que a mãe faz em relação ao menino. As palavras apontam à antítese,

característica do Regime Diurno: cheio e vazio; pedra e água.

(...) Tenho um livro sobre águas e meninos. Gostei mais de um menino que carregava água na peneira. A mãe disse que carregar água na peneira era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.

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A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos na água O mesmo que criar peixes no bolso. O menino era ligado em despropósitos. Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos. A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio do que do cheio. Falava que os vazios são maiores e até infinitos. (...)

Ao “encher os vazios com suas peraltagens”, através da antítese cheio-vazio, o texto

saliente a postura dominante, atribuindo escolha ao destino mesmo diante de elementos que

caracterizam a perenidade. Preencher os vazios com palavras, dando-lhes sentido, também é

função do fazer poético, tornando o instante, eterno. O menino, ao segurar a água na peneira

com o fazer poético, representa a sua potência de vida.

Símbolo marcante é a água. Elemento simbólico citado por Bachelard que funciona

como “hormônio da imaginação”, e também por Durand, como símbolo ascensionista

diairético, nesse caso como a possibilidade de um futuro vitorioso e feliz comparado à

realidade vivida pelo menino naquele momento. A noção de potência da água e do menino

sonhador coloca as peraltagens como possibilidade de vida. A linguagem poética é

materialização desta potência.

No texto, o arquétipo do inocente é evidenciado na busca por segurança que é

despertada pelo medo constante do abandono. O amparo, a força e a motivação são situações

que devem constantemente ser expressadas por aqueles que se encontram a sua volta.

Semelhante ao modo como a mãe do menino que carregava água na peneira faz quando o

apoia e o incentiva.

O arquétipo do inocente manifesta-se também nestes mesmos sonhos que surgem na

mesma vertente em que são conduzidos para outros afluentes pelo fluxo da corrente fluvial.

Sabe-se apenas é que estas águas vão prover um mar de possibilidades e infinitos arquitetados

pelo menino, sustentados pela legitimação da sua mãe e conduzidos pela sua inocência de

desbravar o mundo pelas veredas do imaginário. Rejeitar a verdade, de modo a não se

permitir ver ou saber o que realmente está acontecendo é uma das maiores características

deste arquétipo. Negar algo só é permitido se for no intuito de descaracterizar a

impossibilidade de vivência de uma situação extrema. O inocente tem como imagem

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primordial a possibilidade, o infinito, a máxima de que tudo é possível, não importa o que

dizem os outros. Assim, percebemos que nossas possibilidades só se encerram quando não

pudermos mais ver uma “flor brotar de uma pedra” ou quando não tivermos mais o “poder de

pontuar a frase” e “cessar o vôo de um pássaro”. O inocente é protegido pela motivação do

outro, mas também pela força contínua das águas que atravessam a “granulação da peneira”,

por menor que ela seja. A legitimação do menino se estabelece pelo fluxo das águas que

através da queda produzem energia que movimenta a vida, que só pode ser findada quando o

nível deste rio baixar tanto que lhe permita secar.

(...) Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito porque gostava de carregar água na peneira Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que carregar água na peneira. No escrever o menino viu que era capaz de ser noviça, monge ou mendigo ao mesmo tempo. O menino aprendeu a usar as palavras. Viu que podia fazer peraltagens com as palavras. E começou a fazer peraltagens. Foi capaz de interromper o voo de um pássaro botando ponto final na frase. Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela. O menino fazia prodígios. Até fez uma pedra dar flor! A mãe reparava o menino com ternura. (...)

A escrita do menino, que lhe permite escolher a personagem que deseja ser, confere-

lhe o poder de “senhorar” o seu destino: a postura dominante frente ao devir, característica do

simbolismo do Regime Diurno da Imagem. A subestrutura do autismo, ao se descolar do

ambiente e de todas as agruras do destino, confere-lhe poder de autonomia. Através da escrita

é possível mudar os cenários da existência. O menino, poeta, incorpora o poder vindo da

potência: sua potência poética!

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A pureza do arquétipo do menino inocente se consolida no processo infinito de

penetrabilidade da água. Na representação desse arquétipo, não existem barreiras, fronteiras,

represas ou comportas que possam deter a força das águas, como uma infiltração, mesmo que

silenciosa e indesejada, durante o seu fluir das ideias e da visualização do seu futuro. O ápice

deste processo se instaura na contemplação deste fluir e no preenchimento destes espaços

vazios por novas ideias, sonhos e possibilidades. Faz-se também através desta imersão, deste

encharcamento, nesta “enchente de pureza e verdades” refutadas pelo simples prazer de se ser

quem se quer neste momento.

(...) A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta. Você vai carregar água na peneira a vida toda. Você vai encher os vazios com as suas peraltagens e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos.

Com todos os “despropósitos e peraltagens”, das críticas às suas esquisitices, com a

escrita, o menino fazia prodígios: carregava água na peneira.

Considerações Finais

Ao analisar o texto O menino que carregava água na peneira, de autoria de Manoel

Barros, sob o enfoque do Regime Diurno da Imagem das estruturas antropológicas do

imaginário, buscamos identificar as marcas simbólicas da narrativa. Símbolos que se

transformam e se completam nos sentidos que o texto apresenta, em suas significativas

relações entre o sonho, o ciclo da vida, a noção de potência e as imagens que se criam diante

das impossibilidades.

No texto de Manoel Barros (1999), observamos uma mãe que autoriza o sonho do

menino de ir adiante, o zelo e o cuidado entre todos os elementos naturais que se criam e se

transformam como os “espinhos na água”, “a casa sobre os orvalhos” e a “pedra que dá flor”,

que nos permitem criar e viver toda a essência que alicerça o texto e protagoniza a vida em si.

Podemos relacionar as cenas do texto com o imaginário e a potência poética das imagens.

Os elementos da natureza servem de metáfora para o devir humano e sua

representação no fazer poético. Para Jung (2002), o ar é o mesmo em todo o lugar, é respirado

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por todos, mas não pertence a ninguém, assim como os sonhos do menino, nas narrativas de

Manoel Barros que se entrelaçam no que Jung chama de recipiente, que nunca podemos

encher ou esvaziar por completo. Da mesma forma, a bacia semântica, e suas relações com a

água, de Durand (2001) ao pensar o imaginário como reservatório-motor. “Pode-se dizer que

o imaginário é o trajeto antropológico de um ser que bebe numa ‘bacia semântica’ (encontro e

repartição das águas) e estabelece seu próprio lago de significados” (SILVA, 2003, p. 11).

No poema analisado, a água apropria-se de sentidos múltiplos permitindo que ações

imaginantes manifestem-se em permanente mobilidade criativa. Para Bachelard (1997), a

água é o elemento da mistura, é um elemento transitório, ligado a um tipo de destino que se

metamorfoseia incessantemente e traduz experiências de fluidez e maleabilidade. A água é

uma realidade poética completa.

As ações do menino nos fazem pensar que queremos ser melhores, queremos chegar

mais próximo ao ideal humano e lançarmos uma trajetória heróica, que é proposta pelo

menino, diante da vida e de todas as limitações que enfrentamos: “em todo adulto espreita

uma criança – uma criança eterna, algo que está sempre vindo a ser, que nunca está completo,

e que solicita atenção e educação incessantes. Essa é a parte da personalidade humana que

quer desenvolver-se e tornar-se completa” (JUNG, 2000).

São esses despropósitos que fazem os corações “baterem” mais rápido e que

conduzem nossas crenças em um caminho mais suave e leve. E como não compreender a

legitimidade em criar atitudes imaginais, por meio da figura do menino, para suportar e

combater os vazios e a angústia existencial.

O encantamento do menino que carregava água na peneira nos remete ao pensamento

de Bachelard (2001), que nos diz que o fazer literário é regido por fascinações. O ímpeto

literário, para o autor, uma explosão da linguagem, é fruto da interdependência ativa entre

imaginação e vontade. Diz Bachelard (2001, p. 6) que “a linguagem poética, quando traduz

imagens materiais, é um verdadeiro encantamento de energia”.

O fascínio produzido pela imagem de um menino que carrega uma peneira cheia de

água nos sugere o indelével, o imensurável, a eternidade etérea tanto quanto a passagem

inexorável do tempo, que tudo apaga e que tudo renova. O deleite literário num curto poema

deve dar uma visão de universo e o segredo de uma alma, onde tudo transcende, tudo se inova

e tudo que perece também renasce na potência literária de cada palavra.

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REFERÊNCIAS

BACHELARD, G. A terra e os devaneios da vontade – Ensaio sobre a imaginação das forças. São Paulo: Martins Fontes, 2001. ______. A Água e os Sonhos: Ensaio sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Martins Fontes, 1997. ______. O Ar e os Sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 1990. ______. O direito de sonhar. São Paulo, DIFEL, 1986. BARROS, M. Exercícios de ser de criança. São Paulo: Salamandra, 1999. BYINGTON, C. A. B. A missão de seu Gabriel e o arquétipo do chamado. In: Junguiana - Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, n. 12, São Paulo, 1994. DURAND, G. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2002. ______. O imaginário. 2.ed. Rio de Janeiro: Difel, 2001. JUNG, C.G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Rio de Janeiro: Vozes, 2002. LEGROS, P. et al. Sociologia do Imaginário. Porto Alegre: Sulina, 2007. PITTA, D. P.R. Imaginário, cultura e comunicação. In: Revista eletrônica do Centro de Estudos do Imaginário. UFRO. Ano IV, n.6, jan-dez. 2004. SILVA, J. M. As tecnologias do imaginário. Porto Alegre: Sulina, 2003. TURCHI, M. Z. Literatura e Antropologia do Imaginário. Brasília: Editora da UnB, 2003.

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Mia Couto e a Simbologia de Barcos: Navegar, mais do que Possível, é Sonhável

Mia Couto and Boats Simbology: Navigate, more than Possible, is Dreamable

Mia Couto et les Symboles de Bateaux : Naviguer, plus que possible, est rêvable

Luara Pinto MINUZZI1 PUC do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil

Resumo Buscar, nos meandros de O outro pé da sereia, romance do escritor moçambicano Mia Couto, quaisquer referências a barcos, barcas, naus, navios, canoas (enfim, a transportes aquáticos em geral) e perceber como a simbologia referente à viagem pela água em busca de aventuras, em busca daquilo que é completamente desconhecido, do que está completamente distante, relaciona-se com e enriquece tais narrativas são os principais objetivos desta pesquisa. Já a teoria do trabalho embasa-se, principalmente, nas obras do antropólogo Gilbert Durand, do filósofo Gaston Bachelard e do teórico das religiões Mircea Eliade, no que diz respeito às questões relacionadas ao imaginário e a seu funcionamento. Palavras-chave: Mia Couto; teorias do imaginário; literatura africana; simbologia de barcos.

Abstract Search, in the narrative of O outro pé da sereia, novel by the Mozambican writer Mia Couto, any references to boats, barges, ships, vessels, canoes (finally, water transport in general) and realize how the symbolism related to journeys by the water in search of adventure and also in search of what is completely unknown, of what is quite far, relate to and enrich such narratives are the main objectives of this research. The theory of this work was grounded mainly in the works of the anthropologist Gilbert Durand, the philosopher Gaston Bachelard and theoritician of the religions Mircea Eliade, in regards to issues relating to the imaginary. Keywords: theories of the imaginary; Mia Couto; african literature; symbologies related to boats. Introdução

"As armas e os barões assinalados Que, da Ocidental praia Lusitana,

Por mares nunca de antes navegados Passaram ainda além da Taprobana,

Em perigos e guerras esforçados Mais do que prometia a força humana,

E entre gente remota edificaram Nov Reino, que tanto sublimaram;

E também as memórias gloriosas

1 [email protected].

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Daqueles Reis que foram dilatando A Fé, o Império, e as terras viciosas

De África e Ásia andaram devastando, E aqueles que por obras valerosas Se vão da lei da Morte libertando:

Cantando espalharei por toda parte Se a tanto me ajudar o engenho e a arte." (CAMÕES, 2011, p. 11)

Naus, navios, barcos, barcas, canoas, jangadas: tantos são os tipos de transportes

aquáticos quanto as diferentes simbologias das quais esses elementos foram carregados ao

longo dos tempos. Se com Caronte (e com diversos outros barqueiros) essa simbólica é

conduzida para a questão do transporte rumo ao mundo dos mortos, Jung aponta o leme em

direção ao simbolismo da viagem de barco como um mergulho no inconsciente, nas origens –

o que faz com que o mar possa também adquirir atributos maternos; se o mar é o único meio

pelo qual os europeus poderiam chegar a terras longínquas, estranhas e desconhecidas, se essa

jornada representava uma aventura cheia de perigos com destino a lugares fantásticos, ela

também pode representar uma ida ao literalmente fantástico, ao mágico, ao imaginário, ao

literário – sendo o ponto de partido o mundo real, concreto, não literário. Esses meios de

transporte revestem-se de inúmeros significados – tudo depende para onde a bússola do

imaginário de cada povo, de cada tempo, de cada indivíduo, de cada texto de literatura,

aponta.

A possibilidade para o simbolismo dos barcos escolhida para aqui ser discutida2 é a

busca pelo desconhecido e por aventuras – mesmo que essa busca represente grandes perigos

e um real risco de vida. Essa viagem de barco como símbolo da procura pelo misterioso, pelo

oculto, pelo diferente e pelo longínquo é bastante recorrente dentro da trama que se passa no

século XVI do romance O outro pé da sereia, do escritor moçambicano Mia Couto3: tal

2 Este artigo é um excerto adaptado da dissertação de mestrado em Teoria da Literatura, defendida em 2012, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. O título do trabalho é "Mia Couto e a simbologia de barcos: navegar, mais do que possível, é sonhável". 3 Como uma forma de situar o leitor, apresentarei o resumo da narrativa pertencente ao corpus desta pesquisa. O outro pé da sereia é um romance que navega por duas histórias, por duas narrativas distintas: uma delas, ambientada nos anos 2000, foca-se em Mwadia, filha mais nova de Dona Constança, que deixara, há bastante tempo, a casa materna e sua cidade, Vila Longe, para morar com o marido, Zero Madzero, em um lugar ermo e distante, chamado pelo casal de Antigamente. Sem notícias de seus parentes, a moça volta à cidade natal, a fim de encontrar um lugar seguro para deixar a estátua de Nossa Senhora encontrada pelos dois na margem de um rio. Já a segunda, passada no século XVI, relata a viagem de navio de uma comitiva portuguesa ao reino de Monomopata, no interior de Moçambique – seu objetivo era levar a fé cristã aos "infiéis". Um dos elos entre as histórias é a imagem de Nossa Senhora, estátua que primeiro vai a bordo da Nau Nossa Senhora da Ajuda e que depois fica aos cuidados de Mwadia.

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narrativa mostra como, em 1560, portugueses e escravos negros navegam pelas águas do

oceano Índico na nau Nossa Senhora da Ajuda. O jesuíta Gonçalo da Silveira vai a bordo e

seu objetivo é levar a fé católica à corte do Império de Monomotapa, localizada no interior de

Moçambique, e ao seu imperador Nogomo Mupunzangatu.

Justamente sobre essa meta do religioso e dos colonizadores portugueses (e de

navegadores em geral), discute o filósofo Gaston Bachelard. O teórico (2002) explica que

nenhum objetivo simplesmente, puramente prático explica e justifica uma viagem pelo mar,

devido ao imenso risco, principalmente na época dos primórdios das grandes navegações

(justamente aquela em que a narrativa da nau Nossa Senhora da Ajuda, de O outro pé da

sereia, se passa), envolvidos em tal empreitada. Sobre essa questão, fala José Mattoso (1998),

especificamente, em relação ao imaginário português marítimo medieval: o autor enfatiza os

perigos dos mares e dos oceanos, pois existia a crença de que, quanto mais o homem se

afastava da costa, do mundo habitado, maior o caos, maiores e mais estranhos os monstros e

animais que poderiam ser encontrados. Bachelard também fala sobre esse Mar das Trevas (o

Mare Tenebrarum), um "[...] mar imaginário que arrebatou a Noite em seu seio"

(BACHELARD, 2002, p. 106), onde os antigos navegadores localizaram sua fonte de maior

medo, insegurança e ansiedade. Segundo o filósofo, esse mar tenebroso é um lugar apavorante

demais para o homem ser capaz de imaginar. Dessa forma, "[...] o real singular se apresenta

como um além do imaginável – inversão curiosa que mereceria a meditação dos filósofos:

ultrapasse o imaginável e terá uma realidade suficientemente forte para perturbar o coração e

a mente" (Ibid., p. 106).

O mundo, assim, era dividido entre espaço cósmico (o conhecido, o habitável) e o orbe

terrestre, "[...] donde nascem toda a espécie de excessos, a confusão e o perigo mortal"

(MATTOSO, 1998, p. 55). Ao se aventurar pelo oceano, o homem estaria se aventurando pela

morte. Como aponta o narrador de O outro pé da sereia, os próprios mapas já evidenciavam

essa crença na oposição entre o orbe terrestre e o espaço cósmico, entre o conhecido e

desconhecido, entre o perto e o longe: "Tudo fora nomeado como se o mundo fosse uma lua:

de um só lado visível, de uma só face reconhecível" (COUTO, 2006, p. 62).

No livro, são relatados esses perigos enfrentados no mar, o que ressalta quão

fundamental, para os portugueses, era o serviço prestado por eles aos seus colonizados, a

ponto de os fazerem deixar seus portos seguros. Ao longo da jornada, a nau depara-se com

terríveis tempestades e muitos tripulantes morrem devido a pestes que, silenciosamente, se

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disseminam entre todos, ricos ou pobres, mas muitos também falecem devido à fome – a

situação era tão crítica que o médico a bordo, o goês Acácio Fernandes, explica: "sofria-se de

castigos pela ousadia de navegar para além do horizonte, fazendo destino onde os céus se

separam da terra" (COUTO, 2006, p. 111) – e Bachelard, acerca da recorrência da imagem

dos perigos e das tempestades em alto mar, ressalta: "Haverá tema mais banal do que o da

cólera do Oceano?" (BACHELARD, 2002, p. 178).

Entretanto, não é apenas com tempestades e com climas adversos que uma viagem por

alto mar traz perigos; o fato de o sol estar brilhando e de o tempo estar bom também pode

anunciar desastres: "Há vinte dias que as naus haviam saído de Goa. A viagem demorava mais

do que o esperado por acumulação de períodos de acalmia, com caladas consecutivas e um

permanente murchar de velas" (COUTO, 2006, p. 157). Uma viagem mais longa do que o

planejado significava menos comida e água e, consequentemente, mais óbitos, principalmente

entre os escravos.

Além disso, falando sobre as possíveis ameaças de se chegar próximo à praia, devido

aos recifes e corais que poderiam estragar o navio, o capitão da nau Nossa Senhora da Ajuda

sentencia: "Traiçoeiro como é, o mar não devia ter nome masculino. Devia era chamar-se 'a

mara'" (Ibid., p. 249). Assim, a feminilidade vista a partir de seus aspectos tenebrosos e

negativos é relacionada com as águas traiçoeiras, com as águas escuras, profundas e

dormentes que Bachelard (2002) conecta à morte. Por tudo isso, por todo esse risco, sobre um

dos escravos a bordo do navio, o narrador afirma que "[...] pediu a bênção para o destino cego

que o aguardava, para além do oceano" (COUTO, 2006, p. 314). Para uma viagem com

destino ao desconhecido, ao misterioso, são necessários todos os tipos de proteção: os

materiais e os espirituais.

Além disso, é preciso ressaltar o fato de esses perigos encarados no mar irem além de

fenômenos físicos ou naturais:

Quando saíra de Goa, ainda na proteção do estuário, a viagem surgia como um caminho dócil. Mas quando o mar se desdobrou em oceano e o horizonte todo se liquefez, lhe veio uma espécie de tontura, a certeza de que o chão lhe fugira e a nau vogava sobre um abismo. Silveira não tinha dúvida: chegara ao irreversível momento em que a água perde o pé e o mar abandona o suave maneirar dos rios. Dali em diante, o mundo se resumiria àquela nau, rompendo caminho entre domínios que eram mais do Diabo que de Deus (Ibid., p. 54 e 55).

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Dessa forma, é possível perceber a ambivalência do elemento aquático, que pode ser

benéfico ao homem quando misturado com os outros três elementos, terra, fogo e ar (como

estavam os portugueses no início da jornada, "na proteção do estuário"), ou terrível quando

isolada, ou seja, quando longe da costa, quando se transforma em oceano e não há nada além

de água a ser visto, como salienta Mattoso:

Uma coisa é a água como elemento, quando entra em composição com os outros três, porque então é essencial, fecunda e benéfica, outra como lugar onde se encontra praticamente isolada de todos os outros elementos, porque aqui é, pelo contrário, esterilizante, perturbadora e mortal (MATTOSO, 1998, p. 51 e 42).

A água isolada, a água do mar é, de acordo com Bachelard (2002), inumana, pois não

é capaz de servir, de ser utilizada pelos homens diretamente – dessa forma, a água terrestre

tem a supremacia sobre a marítima. Durand igualmente disserta sobre a ambiguidade desse

elemento, mas também do próprio oceano, mostrando que, apesar de terrível, o mar aberto

possuía suas fascinações e que o português começou a desenvolver uma visão diferente em

relação a viagens marítimas, o que contribuiu para a sua liderança no tocante às grandes

navegações:

Oceano claramente ambíguo, "matéria de desespero", baptizada Cabo das tormentas por Bartolomeu Dias (surgindo ao Gama em todo o seu horror no canto V de Os Lusíadas), mas simultaneamente "Cabo da Boa Esperança", tal como foi baptizado por D. João II, o "novo navegador", Adamastor ou Tétis (DURAND, 1997, p.91).

Os perigos e o medo relacionados ao fato de o elemento água estar totalmente afastado

dos outros elementos quando em alto mar é igualmente evidenciado no seguinte excerto do

romance de Mia Couto: "O mar é um infinito sem fundura: navio que se perdesse no escuro

era como se tombasse no último dos abismos" (COUTO, 2006, p. 59). Mwadia (personagem

da segunda história do romance que se passa no século XXI), fingia estar sendo visitada por

espíritos (e, nesse caso, pelo espírito de Nimi Nsundi, escravo pertencente à tripulação da nau

Nossa Senhora da Ajuda) para impressionar um casal de americanos, que viajaram ao

continente africano em busca de uma "África original". Em um desses momentos de atuação,

ela afirma: "Água, é tudo água, repetia Mwadia. São ondas e ondas, rios cujas margens são

rios, vou num oceano sem fim" (Ibid., p. 233).

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Devido ao terror de estar em meio à água pura, à água distante dos outros elementos,

distante da terra, Nimi Nsundi carrega sempre consigo um saco com areia de sua região de

origem. Quando dá de presente uma dessas bolsas cheias da terra de Goa para Dia Kumari, o

escravo explica para a aia:

Essa era a tradição dos escravos: dava sorte navegar levando sacos com terra. Os que embarcavam nas naus – os anamadzi, os da água, como lhe chamavam – obedeciam a esse preceito. Quem não levasse consigo, numa bolsa de couro, uns torrões da sua terra natal corria o risco de se perder para sempre entre as névoas do mar (Ibid., p. 109).

Dessa forma, um pouco do elemento terrestre faz-se necessário quando se está

viajando pelo oceano, a fim de que os navegadores não se percam por essa água infinita.

Além disso, quando os europeus criam suas rotas de navegação e, assim, o totalmente

desconhecido transforma-se em conhecido e íntimo, a matéria aquática modifica-se para a

terrestre, o que reforça esse seu simbolismo relacionado à morte e aos perigos: o narrador

comenta sobre como os portugueses desbravaram os cursos de água do interior da Zambézia,

o que fazia com que "[...] o rio Mussenguezi se abrisse como uma estrada por onde o mundo

chegasse e partisse" (Ibid., p. 306) – sendo que, nesse trecho, a palavra "estrada" remete à

terra.

E se o oceano representa os perigos e as ameaças, no Dicionário dos símbolos,

organizado por Jean Chevalier, o navio surge como um contraponto, pois "[...] evoca a idéia

de força e de segurança numa travessia difícil" (CHEVALIER, 1991, p. 632). Também para a

tradição cristã, a qual pertencem os padres de O outro pé da sereia, o barco seria o local onde

os crentes acomodam-se e protegem-se das ameaças e das tentações do mundo

(CHEVALIER, 1991). Assim, a nau com nome de santa deveria representar para esses

religiosos um porto seguro – e representa no sentido físico e material, abrigando-os das

tempestades, da fúria e dos imprevistos do oceano. Porém, o que ocorre no plano espiritual é

justamente o contrário do esperado: o padre Manuel Antunes é o primeiro a ter sua fé abalada

ao ver o sofrimento que os portugueses traziam e infligiam aos africanos; posteriormente,

Dom Gonçalo também fraqueja em sua crença, mas em uma intensidade menor que a de seu

companheiro.

Como mais um elemento a ser adicionado ao já grande inventário dos perigos que se

enfrenta quando se navega para tão longe, Mattoso ainda cita os monstros encontrados tanto

no mar quanto em pedaços de terra longínquos, extremamente afastados dos limites do que

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era considerado o orbe terrestre, a parte habitável do planeta: tritões, nereidas, delfins,

monópodes, hípodes, ictiófagos (pertencentes, com certeza, aos domínios do Diabo dos quais

fala o personagem Silveira). De acordo com o teórico, "[...] o mar é o elemento onde se

encontram os seres mais excessivos, em maior número de espécies e mais híbridos e

monstruosos. A vida animal não está nele sujeita à ordem, mas à confusão e ao caos"

(MATTOSO, 1998, p. 54). O desconhecido gera tanta ansiedade no homem, que ele é capaz

de criar as espécies mais terríveis para habitar essas longínquas terras: "Que vem a ser, afinal,

uma forma horrorosa que ninguém nunca viu? É o ser que olhamos com os olhos fechados, é

o ser de quem falamos quando já não podemos exprimir-nos. A garganta aperta-se, as feições

convulsionam-se, congelam-se num horror indizível" (BACHELARD, 2002, p. 108). Durand

ainda relaciona essa existência de monstros em lugares ermos e estranhos e o cristianismo:

segundo ele, na tradição cristã, há uma enorme lista de religiosos que são capazes de dominar

e vencer os monstros com a ajuda de uma cruz (lista da qual fazem parte S. Veron de

Cavaillon e S. Beltrão de Comminges, por exemplo), o que ajudou a disseminar tal crença.

A África, a partir do ponto de vista dos europeus, era um desses territórios fantásticos

e terríveis, habitados por seres monstruosos, como fica claro no pensamento do padre: "Para

Dom Gonçalo da Silveira, África não era tanto um lugar como um campo de batalha. [...] O

menino [Gonçalo] tinha os olhos ávidos de histórias terríficas e, onde o pai pintava mouros e

sarracenos, ele redesenhava monstros e assombrações" (COUTO, 2006, p. 252) – e tal

pensamento, como fica claro a partir das explicações de Mattoso (1998), não é exclusivo do

jesuíta, mas uma constante no pensamento medieval português, o que também explica Jorge

Urrutia, em Leitura do obscuro: uma semiótica de África (2000): em inúmeros textos da

época, os africanos aparecem como cães sem nariz ou boca, homens com os pés virados ao

contrário ou com pés de cabra, etc.. Essa crença também não é específica do século XVI,

como evidencia o pensamento da americana Rosie, quando está em um barco com destino à

Vila Longe em pleno século XXI: "No percurso, Rosie espreitou as águas escuras, lentas e

cansadas. Enconder-se-iam por ali traiçoeiros crocodilos, perigosos hipopótamos, insondáveis

monstros?" (COUTO, 2006, p. 140).

Além disso, é interessante perceber que a relação estabelecida pelos portugueses entre

eles próprios e os africanos pode ser claramente vista a partir do Regime Diurno da Imagem,

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proposto por Gilbert Durand em As estruturas antropológicas do imaginário4, devido ao

caráter combativo e dicotômico desse contato: enquanto os negros são classificados como

selvagens e estão ligados às trevas, ao inferno, aos monstros, ao inferior, ao barulho e ao

caos5, os europeus conectam-se com as características opostas a essas: eles são os seres das

luzes, da ascensão, os seres ligados à pureza, ao branco e, consequentemente, ao Santo

libertador e guerreiro, relacionado justamente a essa cor, como evidencia Durand (1997); os

seres cuja missão é tornarem-se heróis para domar e transformar os primeiros. Tal dicotomia

entre preto e branco é a dicotomia da "[...] sombra e da luz, do dia e da noite, do

conhecimento e da ignorância, do yin e do yang, da Terra e do Céu" (CHEVALIER, 1991, p.

742). Além disso, na Bíblia, o negro aparece como evocador "[...] do nada e do caos, isto é, da

confusão e da desordem, o preto é a obscuridade das origens; precede a criação em todas as

religiões" (CHEVALIER, 1991, p. 743). Com essa oposição, "a Europa procurava dar

(construir) uma imagem de si mesma, através da volta da sua contra-imagem. Com o

nascimento de África, nascia a Europa com uma nova luz, renovada na sua pureza culta e

benévola" (URRUTIA, 2000, p. 144).

Dessa forma, os portugueses são puros e os africanos, impuros – portanto, é

importante ressaltar, nesse momento, a função da água como purificadora, visto que a água é

a "[...] a matéria naturalmente pura" (BACHELARD, 2002, p. 139): "é por ter a água um

poder íntimo que ela pode purificar o ser íntimo" (Ibid., p. 149). Assim, a água não só lava as

sujeiras materiais, concretas, mas também as espirituais – como os pecados e o paganismo, de

acordo com o personagem Dom Gonçalo da Silveira. Bachelard, citando o sociólogo Edward

Taylor, que descreveu um povo africano zulu, chega à conclusão que "o cafre só lava o corpo

quando a alma está suja" (BACHELARD, 2002, p. 147). Dessa forma, o fato de os

portugueses terem chegado pelo meio aquático a fim de resgatar os povos de seu

obscurantismo, de transformá-los, de salvá-los, é bastante relevante devido justamente a essa

propriedade purificadora da água.

4 Nesse regime, de acordo com Durand (2002), prevalece a forma antitética. A ameaça noturna e todos os símbolos ligados a ela tem seus aspectos tenebrosos, ogrescos e maléficos do tempo aumentados a fim de que, de forma heroica, se encontre com precisão e eficácia as armas necessárias para esse combate. A polaridade, a oposição e o combate são característicos desse Regime, que vê a temporalidade como algo a ser evitado a todo custo. 5 No seguinte trecho do romance O outro pé da sereia, fica claro como os africanos, a partir da perspectiva dos portugueses, estão conectados ao caos, ao barulho e ao inferno: "Uma crescente inquietação efervescia no missionário: a vozearia dos cafres roubava-lhe a razão. Daí a pressa alvoroçada com que descia à terceira coberta: era urgente mandar calar os cânticos pagãos" (COUTO, 2006, p. 201).

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Porém, em outro trecho do romance, fica claro o distanciamento entre os monstros que

Dom Gonçalo esperava encontrar no continente africano e com o que ele realmente se

deparou lá:

Durante anos, D. Gonçalo anteviu o longo desfile de monstros que iria encontrar em África. Havia um imenso catálogo de criaturas diabólicas. Havia os ciápodes, com seu único pé gigante, os ciclopes, as galinhas lanosas, as plantas-bichos cujos frutos eram carneiros, os cinocéfalos, os dragões, os antípodas, as bestas de cabeça humana que encarnavam Satanás. Nenhum desses seres prodigiosos ele encontrara em meses de andança pelos sertões africanos. As mais maléficas criaturas com quem cruzara eram-lhe, afinal, bem familiares e tinham, como ele, embarcado nas naus portuguesas (COUTO, 2006, p. 310).

Aqui fica evidente a dicotomia entre o conhecido e o desconhecido, entre o que está

longe e o que está perto. Entretanto, há uma inversão: os aspectos negativos do desconhecido,

que costumava ser pintado como terrível e amedrontador, foram suavizados a partir do

confronto com a recém descoberta monstruosidade do conhecido. A oposição estabelecida

pelos portugueses sob o império do Regime Diurno da Imagem ruiu, tornou-se impossível e

obsoleta.

A partir dessa constatação, o próprio religioso, ao empreender a viagem com seus

colegas portugueses a fim de salvar a alma dos africanos, conclui que "toda a sua vida

imaginara que os demônios moravam no outro lado do mundo: em outra raça, em outra

geografia. [...] Nos últimos dias Silveira confirmara que o Diabo fazia ninho entre os seus, os

da sua origem, raça e condição" (COUTO, 2006, p. 255). Assim, quando ocorre uma terrível

tempestade e as chances de o navio afundar e de todos morrerem tornam-se reais e próximas,

a solução encontrada é atirar uma parte da carga para o mar: "Não era de um peso que se

aliviariam. Mas de uma manifestação do pecado" (Ibid., p. 158) é a sentença do padre Manuel

Antunes, mais jovem e menos convicto de sua missão em África do que Silveira. O homem

pensa assim, pois comida e água para a subsistência dos escravos e demais trabalhadores do

navio haviam sido deixadas em terra, a fim de dar espaço para especiarias caras, tecidos e

pedras preciosas, além de outras mercadorias que enriqueceriam os lusitanos ávidos por

lucros. Essa situação pode ser relacionada com o que afirma Bachelard em relação ao peso

carregado pelos barqueiros da morte: "Se o peso que sobrecarrega a barca é tão grande, é

porque as almas são culpadas" (BACHELARD, 2002, p. 82). Dessa forma, as mercadorias

jogadas à água podem ser tomadas como a representação material da culpa (do pecado, como

diz Manuel Antunes) dos portugueses e da sua gana por riquezas.

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Entretanto, se adotarmos o ponto de vista dos africanos, dos locais que assistiram à

chegada dos portugueses, percebemos que, para eles, os europeus também eram seres

estranhos, totalmente desconhecidos, vindos da água, e, portanto, espécie de monstros, como

explica Baba Inhamoyo a seu filho Xilundo, tripulante da nau:

Xilundo não compreendia, por exemplo, que por baixo de toda a imensidão da terra repousava um mar oculto. As ondas que infinitamente se espraiavam, lá para as bandas de Sofala, eram apenas a face visível desse outro mar subterrâneo. Os brancos que chegavam em grandes barcos eram habitantes dessas águas profundas. Não vinham de longe, chegavam das profundezas. - São peixes, meu filho. Peixes dos fundos (COUTO, 2006, p. 311, 312).

Assim, os portugueses não só são peixes: eles são peixes estranhos, vindos de um

oceano que não é esse que enxergamos, mas de um oculto, que guarda ainda mais mistérios –

esse mar profundo pode estar relacionado com Kalunga, "[...] denominação do mar infinito,

da cosmologia congo, a elipse no diagrama, é o termo usado para descrever a terra dos

mortos, para a qual o mar é tanto uma barreira, quanto uma via de passagem. Kalunga é

também a fronteira atravessada pelos escravos [...]" (FORD, 1999, p. 269,270). Portanto,

Dom Gonçalo da Silveira, como português, igualmente não era pessoa, mas criatura aquática

– segundo Inhamoyo, o padre era um dos "[...] grandes lagartos que vivem nos rios e apenas

emergem quando se sentem na companhia dos respectivos donos" (COUTO, 2006, p. 312).

Devido a essa natureza, Gonçalo não poderia morrer: "É que esse homem não é pessoa. É

como a água, não nasce nem morre" (Ibid., p. 312). Dessa forma, é possível perceber que,

assim como os europeus ficavam inquietos e inseguros em relação ao desconhecido e

procuravam classificá-lo a fim de entendê-lo, os africanos também procuravam dar uma

explicação ao que nunca haviam visto.

Depois de ter discorrido sobre todos os perigos enfrentados em alto mar e do terror

causado pelo oceano e pelas terras desconhecidas para além dele, percebemos que apenas uma

razão muito profunda e essencial faria o homem deixar a terra firme, seu porto seguro, para

procurar o não conhecido, o terrível. Mesmo com todos os riscos envolvidos em tal

empreitada, os portugueses lançaram-se, com suas naus, ao mar e ao misterioso, o que nos

leva a pensar em quão fortes seriam as razões que os levaram a se arriscar.

Sobre essa questão, Bachelard revela que, "para enfrentar a navegação, é preciso que

haja interesses poderosos" (BACHELARD, 2002, p. 76), que, para o teórico, são "[...] os

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interesses que sonhamos, e não os que calculamos. São os interesses fabulosos" (Ibid., p. 76).

Ele conclui afirmando ser o primeiro marujo "[...] o primeiro homem vivo que foi tão corajoso

como um morto" (Ibid., p. 76).

E, no romance aqui discutido, fica bastante claro que a compra, venda e troca de

escravos, assim como outras transações e práticas econômicas, ficavam em um segundo

plano: o sonho dos portugueses era levar a civilização à África e cristianizar todos os povos

pagãos, para o seu bem e salvação. O narrador apresenta tal anseio do jesuíta Dom Gonçalo

da Silveira da seguinte forma: "Por fim, África inteira emergiria das trevas e os africanos

caminhariam iluminados pela luz cristã" (COUTO, 2006, p. 51). Assim, o símbolo maior da

viagem ao reino de Monomotapa era a imagem de Nossa Senhora, benzida pelo papa,

costume explicado pelo americano Benjamin Southman a Mwadia:

[...] era usual ornamentarem com figuras religiosas os barcos que transportavam escravos. Era um modo de santificar o crime, mas também uma maneira de se acrescentar um valor simbólico à viagem. Uma nau já não era apenas uma embarcação. Era um altar flutuante (COUTO, 2006, p. 192).

Dessa maneira, convenciam-se todos aqueles temerosos em relação aos perigos

enfrentados em uma viagem marítima e aos possíveis perigos presentes nas terras distantes e

desconhecidas para onde viajavam com objetivos e argumentos supostamente elevados,

espirituais e relevantes. Tal explicação e justificativa para as grandes navegações portuguesas

foi apenas engrandecida quando a estátua de Nossa Senhora sangrou: "A ferida sem cicatriz

da padroeira era uma anunciação divina, uma espécie de grande exalação sem Corpo Santo.

Aquela chaga aberta fazia crescer a fé entre os marinheiros e reforçava neles um sentimento

de cruzada" (Ibid., p. 248). Em especial para Dom Gonçalo, essa empreitada significava

apenas o desejo de espalhar sua fé, a fé cristã (a única aceitável, redentora, correta, em sua

opinião) entre os povos negros: "A brancura daqueles espíritos, mais do que o Monomotapa,

esse era o propósito daquela viagem" (Ibid., p. 201) – e, aqui, mais uma vez, o claro, o

brilhante é tomado como positivo, como sinal de pureza e de bondade, enquanto o negro,

como negativo, como algo a ser modificado.

Aliás, é importante ressaltar a estreita relação entre transportes marítimos e a

religiosidade. Primeiramente, o navio pode ser comparado com o centro de uma igreja – a

nave – e, assim simbolizar a vida espiritual (CHEVALIER, 1991). Além disso, a igreja

católica igualmente é representada por uma barca: a barca de Pedro, visto que, "[...] como

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Cristo se encontra ali presente, é o instrumento da salvação" (Ibid., p. 745). Por fim, a arca

também pode significar um local protegido por Deus de catástrofes (como a arca de Noé) e a

presença de Deus entre seu povo eleito (Ibid.).

Como já explica Edward Said, em Cultura e imperialismo, motivos estritamente

econômicos não seriam capazes de convencer os homens a se aventurarem pelo desconhecido

e não sustentariam a situação de subordinação de um povo em relação ao outro por muito

tempo – uma forte ideologia deve estar por trás dessa empreitada:

Nem o imperialismo, nem o colonialismo é um simples ato de acumulação e aquisição. Ambos são sustentados e talvez impelidos por potentes formações ideológicas que incluem a noção de que certos territórios e povos precisam e imploram pela dominação, bem como formas de conhecimento filiadas à dominação: o vocabulário da cultura imperial oitocentista clássica está repleta de palavras e conceitos como "raças servis" ou "inferiores", "povos subordinados", "dependência", "expansão" e "autoridade". (SAID, 2011, p. 43).

Essa ideologia pode se manifestar através da religião, da literatura e dos discursos dos

próprios homens. Os motivos colocados por Charles Boxer (2002), em O império marítimo

português, como sendo os mais importantes para a inspiração lusa em relação às grandes

navegações contém dois relacionados à religião: a busca de ouro e especiarias, além da

procura de Preste João, rei muito poderoso que se acreditava ser cristão e com quem se

esperava estabelecer uma forte aliança contra os muçulmanos, os inimigos, os infiéis que

deviam ser combatidos – e essa luta consiste no quarto motivo.

Durand também explica como a questão religiosa da peregrinação acabou por se

misturar à ideia de aventura cavaleiresca – confusão que é o impulso para as Cruzadas e,

consequentemente, para a nau Nossa Senhora da Ajuda. Assim, essa viagem que é a

peregrinação, cujo intuito caracteriza-se por ser puramente religioso, o de chegar à Terra

Santa, transforma-se em "[...] um combate Santo, uma justa reconquista do túmulo de Cristo"

(DURAND, 1997, p. 113) – ou em um combate Santo contra o mal encarnado nos africanos,

contra o paganismo, contra os demônios.

Porém, nem sempre é fácil de identificar claramente os culpados e os inocentes. Nessa

narrativa, essa questão sempre é colocada como sendo dúbia: os africanos sofreram, foram

escravizados, despojados de sua liberdade e de sua identidade, mas, ao mesmo tempo,

também escravizaram seus iguais. Quando entrevistados pelos americanos, as pessoas de Vila

Longe pareciam nunca se lembrar de nada: nem de seu passado, nem do passado de sua gente,

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de sua raça. Um desses moradores, Singério, explica tal esquecimento: "Sabe por que aqui

não lembramos? É porque sempre estivemos todos juntos, todos misturados: vítimas e

culpados" (COUTO, 2006, p. 278). Além disso, a família de outro deles, Zero, era de

canoeiros que colaboravam com os algozes de seu povo, pois os levavam, em canoas, aos

locais desconhecidos e lhes ensinavam os caminhos.

Voltando aos motivos que impulsionaram os homens a explorar mares e oceanos, não

devemos nos enganar: as riquezas que poderiam ser encontradas nessas novas terras eram uma

motivação bastante forte para os portugueses deixarem a segurança de suas terras e o conforto

de seus lares – e a principal para muitos. O narrador de O outro pé da sereia comenta sobre a

continuação da viagem da tripulação da nau Nossa Senhora da Ajuda por meio terrestre até o

interior de Moçambique, uma região conhecida pelo sugestivo nome de "Mãe do Ouro": "O

nome tinha as suas conveniências: se o metal tinha mãe é porque merecia, como todas as

demais criaturas paridas, todos os cuidados de Deus" (COUTO, 2006, p. 249). Aqui, portanto,

a explicação religiosa apenas é utilizada para encobrir a vontade, a ganância por lucro, por

riquezas – o que também fica claro a partir do seguinte trecho: "O Zambeze era uma estrada

por onde circulavam lustrosas riquezas. Deus chegava depois dos barcos" (Ibid., p. 308).

Além da razão religiosa e da relativa à obtenção de lucros, Durand, na obra Imagens e

reflexos do imaginário português, fala ainda sobre a tendência lusitana de focar apenas o

oceano, o longínquo, de ter "olhar obstinadamente fixo no horizonte oceânico" (DURAND,

1997, p. 47), e ignorar o seu aqui. Segundo o antropólogo, "[...] é sempre para longe – quer se

trate do oceano ou da alma – que se dirige a vocação portuguesa, vocação do impossível, do

próprio excesso [...]" (Ibid., p. 48) e, além disso, "a força portuguesa sente mais

profundamente o desafio do mar e as suas tempestades do que o aspecto titânico da terra [...]"

(Ibid., p. 100). Aqui, mais uma vez, a religião cristã entra em cena, pois o teórico explica que

essa tendência a olhar o longe foi reforçada pelo cristianismo e seus heróis e santos vindos de

outros lugares, de localidades absolutamente diferentes e distantes.

Assim, Portugal não se preocupa com o seu território, com sua pequena extensão de

terra: "em Portugal os 'olhos interiores' vão iluminar a conquista dirigida para o além do

mundo, para 'os mundos' que Portugal 'deu ao mundo'" (Ibid., p. 98). E esse olhar para fora

está intimamente relacionado à sede por aventuras, pelo processo, pela odisseia da conquista –

e não tanto à conquista em si, pois, como sublinha Durand, em geral, as expedições

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portuguesas a esses novos mundos com metais preciosos e especiarias custavam mais do que

arrecadavam.

Além disso, a conquista, muito mais do que com a escravidão e com a tomada das

riquezas de um povo, em O outro pé da sereia, estaria relacionada com a conversão, com a

transformação interior (mesmo que tal mudança interior fosse apenas aparente) dos africanos

em cristãos, em pessoas mais parecidas com os portugueses. Isso fica claro a partir de uma

explicação que Arcanjo Mistura, personagem da narrativa que se passa no século XXI, dá a

Benjamin sobre a real submissão do povo africano: "Vocês não saíram de África quando vos

levaram nos barcos como escravos. Vocês saíram quando entraram na igreja e se ajoelharam

perante Jesus" (COUTO, 2006, p. 188).

Dessa forma, podemos pensar no personagem Nimi Nsundi como um escravo não

verdadeiramente escravizado, não submisso, pois conseguiu conservar suas crenças e seus

valores de uma forma camuflada: o homem afirma que, assim que colocou os olhos na

imagem de Nossa Senhora, já sabia que ela era, na realidade, Kianda, a deusa das águas. Ele

explica sua suposta traição por venerar a santa dos portugueses para Dia com as seguintes

palavras:

Critica-me porque aceitei lavar-me dos meus pecados. Os portugueses chamam isso de baptismo. Eu chamo de outra maneira. Eu digo que estou entrando em casa de Kianda. A sereia, deusa das águas. É essa deusa que me escuta quando me ajoelho perante o altar da virgem. De todas as vezes que rezei não foi por devoção. Foi para me lembrar. Porque só rezando me chegavam as lembranças de quem fui (COUTO, 2006, p. 113).

Apesar de ter sido levado de sua terra natal em navios e de, durante essa viagem, os

colonizadores terem tentado lhe tirar, além de sua liberdade, também sua identidade, sua

essência, Nimi foi capaz de preservar suas crenças fazendo com que D. Gonçalo acreditasse

na sua mudança, na sua transformação.

Além disso, Durand procurou explicar essa história épica portuguesa, de conquistas e

cruzadas, de navegações e incursões por terras desconhecidas, através de alguns grupos

míticos constantes nas lendas e histórias de Portugal – dos quais dois serão citados aqui por

estarem relacionados aos acontecimentos do romance do corpus. Em primeiro lugar, aparece

o mitologema do herói fundador vindo de fora, sobre o qual já comentamos. O autor explica

que "todo o sonho e a política de cruzada assentam no facto de a Terra Santa se situar longe,

no Oriente" (DURAND, 1997, p. 88), então Dom Gonçalo da Silveira e os outros padres a

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bordo esperavam tornarem-se e perpetuarem-se na história como esses heróis vindos de fora

que fundariam uma cidade, um reino devoto a Deus e a Cristo no Monomotapa – o que fica

claro a partir da ânsia de converter seu imperador e sua população e da felicidade extrema do

jesuíta quando finalmente consegue transformar o Imperador Nogomo Mupunzangatu em D.

Sebastião, não mais um pagão, mas um homem da igreja.

Já o segundo mitologema é o da "vocação nostálgica do impossível", ligado

fortemente ao olhar no oceano e no além e expressa nas histórias de amores impossíveis,

como as de Inês de Castro e de Soror Mariana. O impossível da viagem, o impossível da

navegação, de desbravar territórios povoados por monstros, pelo desconhecido é, portanto,

mais uma das motivações dos portugueses e da tripulação da nau Nossa Senhora da Ajuda6.

Além disso, assim como os portugueses embarcaram para uma viagem ao misterioso,

ao longínquo, os africanos, transformados em escravos, também subiram em naus rumo ao

desconhecido – mesmo que o tenham feito contra a sua própria vontade. Porém, essa viagem,

para os negros, representaria uma verdadeira jornada em direção ao inferno (aquela imaginada

por Dom Gonçalo da Silveira), a um local repleto de monstros, bestas e feras, a um local onde

não havia comida ou água e onde doenças estranhas os atacavam para lhes tirar a vida.

Xilundo, ao pensar nas gotas de sangue caindo dos dedos do escravo morto Nimi Nsundi no

pavimento do porão do navio, chega à conclusão de que "[...] esse sangue não era de um

homem mas de todo um continente escravo" (COUTO, 2006, p. 314). Os horrores pelos quais

esses homens passam são não somente da ordem do material, mas também da ordem do

sobrenatural: "Os barcos especializados em carregar mercadoria humana chegariam depois e

infestariam de maldição os mares do Índico" (Ibid., p. 201).

Assim, Nimi Nsundi, escravo congolês a bordo do navio, em uma carta de despedida

para a criada indiana Dia Kumari, escreve: "A viagem está quase terminada. Daqui a dias

chegaremos a Moçambique, os barcos tombarão na praia como baleias mortas. Não tenho

mais tempo" (Ibid., p. 208). Nessa passagem, o personagem referia-se à sua tentativa de

arrancar os pés da imagem de Nossa Senhora que Silveira levava consigo. Como, para ele,

essa estátua era, na verdade, de Kianda, uma sereia, seus pés estariam desfigurando-a – e ele

deveria consertá-la e libertá-la antes do término da viagem. Enquanto o homem arrancava um

dos pés da figura da santa, Antunes o descobre e, assim, ele é condenado à morte, ou seja: se

Nsundi referia-se à viagem de barco com destino a Moçambique como quase chegando ao 6 Os outros dois mitologemas citados por Durand são: o herói salvador que espera, escondido, o seu momento de regressar e a transmutação dos atos, da água em vinho ou do pão dos pobres em rosas.

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fim, sua vida, sua jornada pessoal, igualmente estava próxima do término; ao dar vida à

Kianda, deusa das águas, ele sentenciou-se à morte. Portanto, aqui aparece a viagem de barco,

a viagem pela água como uma jornada com destino à morte e ao mundo dos mortos. A viagem

do escravo a esses domínios desconhecidos lhe trouxe sofrimentos e dores; a chegada do

navio ao seu destino representa para Nsundi a sua chegada ao destino último e fatal de todos

os homens.

Finalmente, podemos pensar, com Bachelard, que o "herói do mar é um herói da

morte" (BACHELARD, 2002, p. 76). Os próprios portugueses se investiam da qualidade de

heróis salvadores, mas, como eram heróis do mar, esse local privilegiado da morte, eram

consequentemente heróis do domínio dos mortos – e foi extinção, doenças, desgraças e

sofrimentos o que levaram para os povos encontrados na outra margem do oceano. As naus

dos portugueses eram enormes barcas de Caronte que foram raptar os africanos e levá-los para

o território dos falecidos, uma vez que esse homem e seu barco sempre vão ao inferno, como

sublinha Bachelard, quando diz que "não existe barqueiro da ventura" (2002, p. 82).

REFERÊNCIAS BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaios sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Martins Fontes, 2002. BOXER, Charles. O império marítimo português. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. CAMÕES, Luís de. Os lusíadas. São Paulo: Abril, 2010. CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991. COUTO, Mia. O outro pé da sereia. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2002. ______. Imagens e reflexos do imaginário português. Lisboa: Hugin, 1997. FORD, Clyde. O herói com rosto africano: mitos da África. São Paulo: Summus, 1999. MATTOSO, José (1998). O Imaginário Marítimo Medieval. In: Pavilhão de Portugal, exposição Mundial de Lisboa de 1998 – Catálogo Oficial. SAID. Edward. Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia das letras, 2011. URRUTIA, Jorge. Leitura do obscuro: uma semiótica de África. Lisboa: Editorial Teorema, 2001.

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A constituição do si-mesmo e os valores do ser: os devaneios da intimidade em Bachelard, a invenção poética em Manoel de Barros e a psicanálise em Winnicott

Self-constitution and the values of being: the daydreams of intimacy in Bachelard, the

poetic invention in Manoel de Barros and psychoanalysis in Winnicott

La constitution de soi et les valeurs de l'être : les rêveries de l'intimité chez Bachelard, l'invention poétique chez Manoel de Barros et la psychanalyse chez Winnicott

Renata LISBÔA1 PUCRS – Porto Alegre - Brasil

Resumo Gaston Bachelard dedicou boa parte de sua vida como pesquisador investigando os fenômenos do imaginário e suas relações com a criação poética. Concluiu que a imaginação criadora, alimentada pela mobilidade e deformação das imagens, é constitutiva do psiquismo e condição de sua renovação. O presente artigo visa examinar a constituição do si-mesmo com base na fenomenologia do imaginário de Bachelard, da psicanálise de Winnicott tendo como objeto de análise os poemas de Barros. Entende-se que as aproximações entre os devaneios de intimidade de Bachelard e a poética da infância de Barros propiciam reflexões pertinentes, visto que se torna possível explorar os valores do ser quanto ao seu aspecto primitivo, facilitando o caminho para que uma infância possa ser reimaginada. Palavras-chave: Bachelard; si-mesmo; poética da infância; devaneios da intimidade. Abstract Gaston Bachelard has devoted much of his time investigating the imaginary phenomena and their relationship to the poetic creation. It concluded that the creative imagination, fueled by the mobility and deformation of images, it is constitutive of the psychisme and condition of their renewal. This article aims to examine the constitution of the self based on the phenomenology of Bachelard imaginary, the Winnicott's psychoanalysis with the object of study such as Barros poems. It is understood that the similarities between the reverie of intimacy and poetic reflections of childhood provide relevant reflexions, since it makes it possible to explore the values of being as to its original appearance, facilitating the way toward a childhood can be re-imaginated. Key-words: Bachelard; self; poetics of childhood; reverie of intimacy.

“Toda a nossa infância está por ser reimaginada”.

Bachelard2

1 [email protected] 2 BACHELARD, G. A poética do devaneio.São Paulo: Martins Fontes, 2009. P.94.

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A construção do si-mesmo como um lugar da boa solidão

Encontrar, dentro de si, um espaço de conforto que apazigue as aflições e que seja

capaz de colocar o corpo em repouso, diante de tantas inquietações, denota ser a busca dos

homens ao longo de sua história. Controlar o ímpeto da destruição e do disruptivo representa

dispor de uma capacidade refinada que é conhecida como integração3 e integração de si4, e

que diz respeito ao indivíduo poder lidar com suas forças antagônicas, com a vontade e o

repouso, com o movimento e a quietude. Tal capacidade que acalma o ser, o coloca numa

posição mais reflexiva, mais crítica e dotada de abertura para trocar, experienciar e abstrair.

Aprender a morar em nós mesmos desde uma perspectiva bachelardiana, da imagem da casa

natal e da casa onírica, do estado de relaxamento, de pausa provisória das tensões, parece ser

o grande desafio do humano, ao considerarmos a dialética entre repouso e movimento, entre a

vontade versus a inércia; atividade constante da força que impele a fazer, a produzir, a não

cessar versus a capacidade para ficar só.

Segundo o filósofo Jean-Jacques Wunenburger5:

G. Bachelard oppose donc bien “deux mouvements si nettement distingués par la psychanalyse: l’extraversion et l’introversion…Dans le premier ouvrage, on suivra surtout les reveries actives qui nous invitent à agir sur la matière. Dans le second, la rêverie...suivra cette involution qui nous ramène

3 Segundo Elsa Dias, baseando-se nas idéias de Winnicott: “A tarefa da integração no tempo e no espaço é a mais básica e fundamental das tarefas do amadurecimento. Com efeito, não há sentido de realidade possível – nem do corpo, nem do mundo, nem do si-mesmo – fora de um espaço e de um tempo; não há indivíduo se não houver uma memória de si, aquilo que mantém a identidade em meio às transformações; não há encontro de objetos se não houver um si-mesmo que possa encontrá-los. Todo o processo integrativo tem sua base na temporalização e espacialização do bebê, que começam a realizar-se no início da vida. Por isso, “a tendência principal do processo maturativo está contida nos vários significados da palavra ‘integração’. À integração no tempo se acrescenta o que poderia ser denominado de integração no espaço” (Winnicott, 1965n, p. 58). In: DIAS, E. A teoria do amadurecimento de D.W. Winnicott. Rio de Janeiro: Imago, 2003. 4 À medida que seu pensamento, da mesma forma que seu escrito, avançou, Bachelard foi se aproximando da psicologia analítica de Jung e da sua compreensão de sujeito. Deste modo, o fenomenólogo incluiu uma nota de rodapé na sua obra “A poética do devaneio”, em que destacou: “Gérard de Nerval escreve: ‘As lembranças da infância reavivam-se quando atingimos a metade da vida’ (Les filles du feu, Angélique, 6ª carta, ed. Du Divan, p. 80). Nossa infância espera muito tempo antes de ser reintegrada na nossa existência. Essa reintegração, sem dúvida, só se realiza na última metade da vida, quando descemos a outra encosta da montanha. Jung escreve (Die Psychologie der Uebertragung, op.cit., p. 167): ‘A integração do Si é, considerada em seu sentido profundo, uma questão da segunda metade da vida’. Quando atingimos a plena idade, parece que a adolescência que subsiste em nós ergue barreiras a uma infância que espera por ser revivida. Essa infância é o reino do si-mesmo, do Selbst evocado por Jung. A psicanálise deveria ser exercida por velhos” (nota de rodapé n.º 8, p. 102). In: BACHELARD, G. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1960/2009. 5 Bachelard, portanto, opõe bem dois movimentos tão notadamente distintos pela psicanálise, a extroversão e a introversão. Na primeira obra, nós seguiremos, sobretudo, os devaneios ativos que nos convidam a agir sobre a matéria. Na segunda, o devaneio seguirá esta involução que nos leva aos primeiros refúgios, que valoriza rotas de imagens e de intimidade.. Tradução livre da autora.

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aux premiers refuges, qui valorise routes les images de l’intimité (WUNENBURGER, 2014, p.88).

O que desperta interesse nesta reflexão diz respeito a prestar atenção nesses primeiros

refúgios que valorizam rotas de imagens e de intimidade. Há uma preocupação sobre a

incisiva deturpação que vem se evidenciando nas formas de ser e de habitar a

contemporaneidade, em que o caráter do íntimo, da experiência da interioridade, do espaço de

confiança e proteção, também da criação, do poder se reservar e dispor de uma condição de se

autorizar a momentaneamente se retirar - diante dos apelos de um caldo cultural que clama

para o mostrar-se, o exibir-se, o ser visto – assemelha-se à ideia do “quase impossível”.

Bachelard6 construiu um tecido teórico e metodológico que dá sustentação a certo

caminho de aprofundamento do si mesmo e que congrega a dialética de duas forças anímicas

principais: a vontade e o repouso. Por necessidade de escolha, prioriza-se a travessia do

repouso, visto que se deseja colocar acento nesta perspectiva que ora se apresenta como

preferência, como gosto, como júbilo, como desejo de escrever e mesmo, como esperança7.

Entende-se que este caminho articula-se ao mistério, aos enigmas, às escavações

imaginárias e necessárias para irmos encontrando os tesouros, esses que parecem invisíveis e

que, ao longo da estrada, dependendo de nossas metamorfoses, vão se desvelando.

Entretanto, esse mistério que é existir e saber quem se é, aponta para o desejo de

alcançar o que fala Bachelard (2008) sobre a consciência de estar abrigado. Como se fosse

uma espécie de alojamento que se encontra toda vez que estamos diante de uma noite de

vento, de sussurros e de perigos.

É possível pensar que se trata de um conjunto de valores de proteção (Bachelard,

2008) experimentados pelas pessoas e que vai fazendo parte desta casa interior que nos abriga

da solidão. Desta casa, que permite ao sonhador um fechamento, um fechamento em si

mesmo, um espaço conquistado de recolhimento para que possa criar, sentir e ver o que de 6 (1990; 1996; 1997; 2001; 2008a; 2008b; 2009, etc.) In: O novo espírito científico (LNSC), A psicanálise do fogo (LPF), A água e os sonhos (LER), O ar e os sonhos (LAS), A terra e os devaneios da vontade (LTRV), A terra e os devaneios do repouso (LTRR), A poética do espaço (LPS), A poética do devaneio (LPR). As abreviações entre parênteses originam-se dos títulos originais em francês. 7 De acordo com o crítico literário e escritor Roland Barthes (2005, p. 11-13), sobre o ponto de partida e o desejo de escrever “Esse ponto de partida é o prazer, o sentimento de alegria, de júbilo, de satisfação, que me dá a leitura de certos textos, escritos por outros...Escrever se apresenta como uma esperança, a cor de uma Esperança – lembrar as belíssimas palavras de Balzac: “A esperança é uma memória que deseja”. Toda grande obra, ou mesmo toda obra que impressiona, funciona como uma obra desejada, mas incompleta e como que perdida, porque eu não a fiz eu mesmo e é preciso reencontrá-la, refazendo-a; escrever é querer reescrever: quero juntar-me ativamente ao que é belo e, no entanto, me falta, me é necessário”. In: BARTHES, Roland. A preparação do romance II: a obra como vontade. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

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fato diz de si. Portanto, trata-se de ressumar a contribuição de Bachelard no que diz respeito à

noção da intimidade, partindo da relação entre os dois grandes arquétipos que são Mãe e

Casa8. Segundo o filósofo:

A intimidade da casa bem fechada, bem protegida, reclama naturalmente as intimidades maiores, em particular a do regaço materno, e depois a do ventre materno. Na ordem da imaginação, as pequenas imagens reclamam as grandes. Toda imagem é um aumentativo psíquico; uma imagem amada, acarinhada, é um penhor de vida acrescida (BACHELARD, 1990, p.95).

Então, o próximo passo é avançar um pouco mais da porta e adentrar no estado de

habitar oniricamente a casa dos sonhos, esta que anima a esperança, que aciona o veículo que

conduz ao devaneio: as imagens do começo. Logo, imaginar uma imagem é mergulhar no

sem-fundo do humano, solo do imaginário. Aliás, para o especialista em Bachelard, o filósofo

Jean-Jacques Wunenburger: “O imaginário é compreendido como um tecido de imagens

passivas e sobretudo neutras, não dotadas de existência verdadeira alguma. Só a imaginação

se vê investida de propriedades criadoras” (WUNENBURGER, 2007, p.13).

Para Wunenburger:

A. Schopenhauer a, em effet, sensibilisé le vitalisme bachelardien à une structure psycho-physique primordiale par laquelle le sujet est le siège d’une force trans-subjective qui le pousse à actualiser, à activer sés tendances élémentaires pour les mettre au service des besoins et de désirs. Il existe donc bien pour G. Bachelard, dans les racines de l´être, une force efférente qui est à la source de ses activités comportementales et cognitives, et dont la finalité sans fin, éloignée de toute téléologie rationelle, innerve les aspirations d’um individu. L’analyse nietzschiéenne de la “Wille zu Macht”, n’est pas étrangère à cette anthropologie, qui vise à saisir em l’homme des dynamismes activistes, qui poussent à um accroissement de puissance et donc d’être, et qui orientent les acctes nouveaux vers une élévation9 (WUNENBURGER, 2014, p.98).

A questão de procurar esta orientação de atos novos em direção a uma elevação passa

pela construção de um interior que, conforme Bachelard, diz respeito a um tipo de devaneio 8 BACHELARD, G. A terra e os devaneios do repouso. São Paulo: Martins Fontes, 1990. 9 WUNENBURGER, J.J. Gaston Bachelard, poétique des images. Paris: Éditions Mimésis, L’oeil et l’esprit, 2014. “A. Schopenhauer sensibilizou o vitalismo bachelardiano na direção de uma estrutura psicofísica primordial pela qual o sujeito é a sede de uma força trans-subjetiva que o impele a atualizar, a ativar suas tendências elementares para colocá-las ao serviço das necessidades e dos desejos. Portanto, existe para Bachelard, nas raízes do ser, uma força eferente que está na origem das suas atividades comportamentais e cognitivas e cuja finalidade interminável, afastada de toda teleologia racional, estimula as aspirações de um indivíduo. A análise nietzschiana de "Wille zu Macht" (Vontade de poder) não é estranha a esta antropologia, que visa alcançar no homem dinamismos ativistas, que estimulem a um aumento de potência e, portanto, de ser, e que orientem os atos novos em direção a uma retomada de posição, a uma elevação”. Tradução livre da autora.

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de intimidade material que valoriza a interioridade ao levar em conta a dimensão

da intensidade. Esta imagem da intimidade formada sobre a força de algo que é misterioso e

contínuo sinaliza a atualidade de um pensamento. Assim, a pertinência de estudar o

pensamento de um filósofo do estatuto de Bachelard significa nada menos que poder se

debruçar sobre o exercício de tentar compreender os anseios humanos a partir da constituição

do si-mesmo.

O fenomenólogo convida-nos a um percurso que é desenhado com o traçado da

erudição, da complexidade e da fecundidade de um modo de compreender e ver a vida do

homem. Tal modo denota ser aquele que se deixa tornear pela sensibilidade, pela beleza, por

um projeto estético em que homens e mulheres resgatam a sua liberdade: a liberdade geradora

de alegria. Somado a isso, há o compromisso com a verdade e a seriedade necessárias à

abordagem do humano em suas múltiplas dimensões.

Com efeito, e levando em conta este panorama, é válido ressaltar que existe certa

preocupação atual com o futuro da humanidade. Um planeta vem sendo avistado como nosso

próximo destino, assim como um dia, o super-homem foi transportado para a Terra. Essa

sede do absoluto sempre acompanha o humano, contudo, ela vem sendo objeto de graves

mutações10. A busca de um território, o planeta Marte, por exemplo, abre uma grande janela

para se pensar não somente o futuro, mas o passado. Não apenas a investigação por um novo

solo, e por suas configurações físico-químicas e geológicas, mas, também, pela certeza de

uma escassez cada vez mais evidente: aquela que sinaliza para a falta de raízes profundas que

assentem o psiquismo no corpo, que dêem guarda para vivermos juntos. Tudo isto

remete à aridez do nosso presente, o risco eminente de esfacelamento da condição empática,

do acirramento da disputa por conquistas baseadas na lógica do desempenho e por intrusões

de toda sorte que desordenam a dança harmonizada entre a vontade e o refúgio, entre a busca

pela manutenção da vida e seu necessário repouso, a necessidade de apaziguamento das

tensões que harmonizam a alma11, e justamente por isso e com base nessa articulação, não

anulam o ímpeto que relança o homem no fazer da vida e do mundo.

10 “A nostalgia do paraíso denuncia-se nos atos mais banais do homem moderno. O absoluto não pode ser extirpado; ele é tão somente suscetível de degradações”. In: ELIADE, M. Tratado de história das religiões. Lisboa: Cosmos; São Paulo: Martins Fontes, 1997. P. 509. 11 Para Ana Mello, pesquisadora do imaginário em Bachelard, a investigação bachelardiana abre perspectivas a uma ontologia simbólica. Tomando para si as imagens relativas aos grandes temas da ontologia tradicional (o eu, o mundo, Deus), o fenomenólogo reconstrói o cosmos e com ele todas as atitudes humanas. Nas palavras da pesquisadora: “A poesia é, na ótica de Bachelard, o campo privilegiado do imaginário, mas, ao voltar-se para ela,

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Até aqui, uma pergunta surge a partir desta contextualização: estaria o homem, de um

modo geral, perdendo a capacidade de estabelecer relações íntimas? Estaria o homem

perdendo a capacidade de se reservar e viver sua solidão?

Partindo da teoria do amadurecimento pessoal de Donald Winnicott, psicanalista

inglês que se deteve a investigar o desenvolvimento emocional primitivo, merece destaque o

fato de que ele distinguiu de forma interessante o medo de ficar só ou o desejo de ficar só em

relação à capacidade para fazê-lo12.

Como ele destacou: A capacidade de ficar só ou é um fenômeno altamente sofisticado,

ao qual uma pessoa pode chegar em seu desenvolvimento depois do estabelecimento de

relações triádicas , ou então é um fenômeno do início da vida que merece um estudo especial

porque é a base sobre a qual a solidão sofisticada se constrói (WINNICOTT, 1983).

É possível afirmar, segundo Winnicott, que se trata de algo sofisticado e que se

liga à ideia de maturidade emocional. Neste ponto, vislumbra-se uma intersecção com o

pensamento de Bachelard, visto que ele aborda de forma consistente e emblemática a

constituição do psiquismo, considerando o prisma da mobilidade das imagens e da

criatividade, perspectiva igualmente cara a Winnicott. Ambos revelam possuir um olhar que

valoriza e se ancora nas raízes do primitivo e na constituição do si-mesmo. Denotam

preocupar-se com uma autocompreensão de homem que se integra ao longo do tempo, ao

reunir partes antagônicas e ambivalentes, ao invés de incentivar a sua cisão.

Por sua vez, a integração baseada na riqueza das experiências iniciais, como a de

poder ficar só na presença de alguém, remete o sujeito às regiões onde residem as boas

solidões. Isso é sempre permeado por um sentido estabelecido através das relações pessoais.

sente-se afastar das pesquisas filosóficas. Como Cassirer, ele coloca em domínios diferentes o consciente racional, campo da filosofia e da ciência, e o imaginário. Enfatiza, em A poética do espaço que à fenomenologia caberia “o estudo do fenômeno da imagem poética no momento em que ela emerge na consciência como um produto direto do coração, da alma, do ser do homem tomado na sua atualidade”... A imagem existe antes do pensamento. Essa posição de Bachelard assenta sobre a distinção entre alma e espírito, tomada de empréstimo das reflexões de René Huyghe. Aconsciência associada à alma é menos intencional do que a consciência ligada aos fenômenos do espírito. In: MELLO, A. Poesia e imaginário. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. P. 73-74. A fim de explicitar a referência em Bachelard, trazemo-la aqui: “Em sua simplicidade, a imagem não tem necessidade de um saber. Ela é a dádiva de uma consciência ingênua. Em sua expressão, é uma linguagem criança. Para bem especificar o que pode ser uma fenomenologia da imagem, para especificar que a imagem vem antes do pensamento, seria necessário dizer que a poesia é, mais que uma fenomenologia do espírito, uma fenomenologia da alma...René Huyghe, no belo prefácio que escreveu para a exposição das obras de Georges Roualt em Albi, observa: “Se fosse preciso procurar por onde Rouault faz explodir as definições..., talvez tivéssemos de evocar uma palavra um pouco em desuso e que se chama alma”. In: BACHELARD, G. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008. P. 4-5. 12 WINNICOTT, D.W. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artmed, 1983. .

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Assim, os devaneios de intimidade levam a pensar

que Bachelard e Winnicott oferecem condições para uma aproximação inédita a ser realizada,

com base em suas trajetórias e em suas pesquisas. Isso é possível porque tanto um como

outro, nas suas áreas de atuação e estudos, puderam explorar os valores do ser quanto ao seu

aspecto primitivo. Nesse sentido, é imprescindível mencionar que ambos questionaram com

veemência o método da psicanálise tradicional e propuseram

caminhos metodológicos próprios que permitiram dar um salto em direção à apreensão do

humano, ao incluir outras dimensões em questão, não se detendo essencialmente nos aspectos

da sexualidade e indo adiante, fazendo avançar o pensamento e notando que a infância é o

grande solo fértil para as invenções.

Como postulou a analista winnicottiana Edna Vilete13, Winnicott pode explorar a

teoria do processo primário, examinando de maneira mais vertical os aspectos deixados de

lado pela psicanálise freudiana e kleiniana, e que dizem respeito às comunicações que não são

palavras, por exemplo; as comunicações silenciosas que portam a riqueza do simbólico que já

se instalou ou que está por vir, por aparecer.

Aqui, entende-se que podem ser incluídas as dimensões da criatividade, da

intimidade, da capacidade para estar só, para viver uma vida moldada pelo sentimento de um

estado poético, da liberdade e da contemplação. De acordo com Bachelard14: “E o devaneio é,

poderíamos dizer, contemplação primordial”.

Nessa contemplação primordial, a imensidão íntima se faz presente. Conforme

Bachelard15:

A imensidão está em nós. Está ligada a uma espécie de expansão de ser que a vida refreia, que a prudência detém, mas que retorna na solidão. Quando estamos imóveis, estamos algures; sonhamos num mundo imenso. A imensidão é o movimento do homem imóvel. A imensidão é uma das características dinâmicas do devaneio tranqüilo.

Este excerto do filósofo nos proporciona construir uma reflexão importante: que a

imensidão íntima permite pensar numa base para a boa solidão e o experienciar das

13 VILETE, Edna. Sobre a arte da psicanálise: Rio de Janeiro: Idéias e letras, 2013. 14 BACHELARD, G. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008. P.190 15 Idem. P. 190.

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profundezas do si-mesmo16. A imensidão íntima, condição para a imaginação criadora e fruto

da boa solidão, é um tema poético inesgotável17, porque associa o grande ao pequeno, porque

exprime uma profundidade.

A fenomenologia de Bachelard

A razão de se explicitar o que é a fenomenologia do imaginário diz respeito a tornar

inteligível o método de trabalho adotado para fazer esta pesquisa, isto é, o caminho pelo qual

a pesquisadora percorre sua trajetória de investigação. Conforme Bachelard18: “[...]o método

fenomenológico leva-nos a tentar a comunicação com a consciência criante do poeta. A

imagem poética nova – uma simples imagem! – torna-se assim, simplesmente, uma origem

absoluta, uma origem de consciência”[...]

Bachelard19 sublinha que o método fenomenológico tem estreita relação com o colocar

em evidência a capacidade de tomar consciência que se encontra na origem da menor variação

da imagem. Ele põe acento na ideia da imagem poética e de sua renovação, propondo a noção

de uma ingenuidade primordial que aparece na leitura dos poemas e das imagens que daí

ressumbram. Dirá que segue a fenomenologia como uma escola de ingenuidade.

Ao ler este breve trecho, nota-se que o filósofo valoriza a fenomenologia da atividade,

da imaginação criante20, a que não é descrita empiricamente. Passa a discorrer sobre a

intencionalidade poética, a intencionalidade da imaginação poética, em que o poeta encontrará

a abertura da consciência, esta que é capaz de ser ampliada, de reclamar as consciências

maiores, que nos levam às grandes conexões, que desvelam a verdade do si-mesmo. E então,

ele passará a abordar esse aumento de consciência, que está ligado ao psíquico, pelo campo da

linguagem, da linguagem como sendo o terreno do simbólico.

16 Com o objetivo de explicitar este conceito em Winnicott, apresentamos o seguinte excerto: [...] o si-mesmo que não é o ego, é a pessoa que eu sou, que é somente eu [me], que possui uma totalidade baseada na operação do processo maturativo. Ao mesmo tempo, o si-mesmo tem partes e é, na verdade, constituído dessas partes. Tais partes se aglutinam, num sentido interior/exterior no curso do processo de amadurecimento, auxiliado, como deve sê-lo (principalmente no início), pelo ambiente humano que o contém, que cuida dele e que, de forma ativa, o facilita. [...] O si-mesmo e a vida do si-mesmo é a única coisa que outorga sentido à ação e ao viver, do ponto de vista do indivíduo[...]. In: WINNICOTT, D.W. Explorações Psicanalíticas. Porto Alegre: Artmed, 1994. P. 210. 17 Op.cit. P. 195. 18 BACHELARD, G. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 2008. P.1. 19 Idem. 20 Idem.

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De acordo com Wunenburger(2007), Bachelard, mais do que Sartre, irá testemunhar o

lugar de destaque que a imagem ocupa na vida mental, atribuindo-lhe uma dignidade

ontológica e uma criatividade onírica, que são fontes da relação poética com a realidade. Na

mesma proposta de reflexão, Mello (2002, p. 73) afirma que: “Em Bachelard, a cosmologia

simbólica, expressa nos quatro elementos e seus derivados poéticos, une o mundo imaginário

ao mundo da sensação... Bachelard não enclausura o imaginário em quadros fixos, mas enfoca

a imaginação como força criadora dinâmica”. Ao pensar nesta união entre o mundo

imaginário e o mundo das sensações, é interessante lembrar da força que os temas do

inconsciente e do devaneio possuem na obra do filósofo ao se pensar na criação poética. Neste

caminho, torna-se indispensável adicionar o tema da imensidão íntima, que está diretamente

relacionada aos outros dois.

No dizer do fenomenólogo: “Descobrimos aqui que a imensidão íntima é uma

intensidade, uma intensidade de ser que se desenvolve numa vasta perspectiva de imensidão

íntima. Em seu princípio, as ‘correspondências’ acolhem a imensidão do mundo e

transformam-na numa intensidade do nosso ser íntimo” (Bachelard, 2008, p.198).

Esta intensidade do nosso ser íntimo se amplia quando, diante da possibilidade desta

contemplação, desta liberdade contemplativa – em geral, vivida mais integralmente pelas

crianças -, um espaço se desvela, um abrigo seguro que conforta e favorece que se sonhe

outros mundos: “Parece, então, que é por sua “imensidão” que os dois espaços – o espaço da

intimidade e o espaço do mundo – tornam-se consoantes. Quando a grande solidão do homem

se aprofunda, as duas imensidões se tocam, se confundem”(MELLO, 2002, p.207).

Sendo assim, é factível afirmar que se está falando de comunhão, e, possivelmente, de

epifania. Da emoção como matéria para a poesia. Conforme o pesquisador francês Michel

Collot (1997), a emoção também está ligada a um horizonte que faz transbordar o sujeito,

mas, por meio do qual ele se exprime: “Elle est le versant affectif de cette relation au monde

qui me semble constitutive de l’expérience poétique. Mais plus encore que l’horizon, elle

échappe à la représentation, et ne peut prendre forme qu’em investissant une matière, qui est

à la fois celle du corps, celle du monde et celle des mots”(COLLOT, 1997, p.2-3)21.

O homem poético e as imagens da solidão

21 COLLOT, M. La matière-émotion. Paris: Presses Universitaires de France, 1997. “Ela é o lastro afetivo desta relação com o mundo que me parece constitutiva da experiência poética. Porém, mais ainda que o horizonte, ela escapa à representação, e não pode tomar forma senão investindo uma matéria que é, ao mesmo tempo, do corpo, do mundo e das palavras”.Tradução livre da autora.

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São necessários, portanto, mais elementos para se desenvolver esta relação entre a

imensidão íntima, a possibilidade de viver a boa solidão para que a imaginação criadora faça

o seu trabalho e a infância possa ser vivida na plenitude dos seus devaneios. Logo, faz-se

indispensável convocar ao texto o filósofo e crítico Mikel22 Dufrenne, a fim de um

aprofundamento da discussão. Ao falar sobre o si mesmo, abre possibilidades para o

estabelecimento de novos desdobramentos.

Ninguém é verdadeiramente si próprio a não ser obedecendo, como o poeta à inspiração, a algum apelo que sobe das profundezas onde sua natureza se enraíza na Natureza. Seria preciso demonstrar que, com efeito, uma ética naturalista não recusa ou compromete a liberdade nem tampouco a responsabiliza. A Natureza convida o homem a ser ele mesmo, e ousaríamos dizer que quer e prepara nele a liberdade bem como a consciência (DUFRENNE, 1969, p. 241).

Obedecer à inspiração significa poder parar um instante e se escutar. Praticar o breve

desligamento do mundo e auscultar o chamado de dentro, essa antiga e conhecida voz que

apela para ser acolhida e valorizada. Essa voz genuína, essa voz que liga o homem à vastidão

do mundo, à beleza, à esperança, às suas criações e às suas solidões, às suas boas solidões.

Então, ainda com Dufrenne:

O homem poético não é o homem tenso e crispado, é o homem conciliado e calmo, gracioso, o que reencontra em si próprio a forma da liberdade natural e da espontaneidade, pelo que governa a natureza obedecendo-lhe, e se integra no mundo de modo mais harmonioso que violento. O homem poético é o que não se deixa prender em sua própria armadilha, que vive aquém do infortúnio da consciência separada e separante. Sente-se responsável pelo mundo... (DUFRENNE, 1969, p. 243).

Não há dúvida que nesta ligação entre o poético, a infância e os devaneios voltados

para as boas solidões, o homem vai se conciliando consigo. Através destes “departamentos

psíquicos” que fornecem as substâncias instauradoras do simbólico, que propiciam ao sujeito

“endireitar-se” e tomar o seu prumo, este homem ascende ao estágio que lhe permite sonhar e

ser si mesmo.

22 As contribuições de Dufrenne são fundamentais para problematizarmos a criação poética, a fenomenologia do imaginário e a psicanálise winnicottiana, visto que elas dão uma solução no sentido de complementar as contribuições de Bachelard. Conforme o que escreveu em seu texto: “A Natureza é antes de tudo a realidade inesgotável. O em-si, como diz Sartre, que carrega o para-si. O ser do ente. Todavia, não o sistema ou a totalidade dos entes, pois a ideia de totalidade é já talvez uma ideia da razão ou do sentimento. O mundo enquanto se desdobra numa experiência afetiva, ou o universo numa construção intelectual, já implicam no homem como um correspondente. Trata-se ainda aqui apenas do ser indeterminável, e em todo o caso indeterminado, do ente. Mas cuidado para não distinguir o ser e o ente! Se a Natureza tem um sentido, é o ente mesmo de sua realidade, o ente como ser” In: DUFRENNE, M. O poético. Porto Alegre: Globo, 1969.

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Por conseguinte, não há obstáculo frente à possibilidade de franquear o diálogo entre a

fenomenologia bachelardiana, a psicanálise winnicottiana e a poesia de Manoel de Barros,

considerando as pesquisas que vem sendo feitas no sentido de aproximar o homem de sua

infância, de reunir as potências criadoras e instauradoras de imagens que são palavras e que

resgatam alguns fios soltos que se desprenderam na infância e que acabam por obstaculizar o

exercício de devanear e de fruir um espaço que é íntimo, que é imenso, que tem intensidade e

calor. Tudo isso emerge como condição de fortalecimento desse homem poético que, por ser

livre, é capaz de enfrentar as intrusões de um mundo que lhe demanda alto desempenho,

sucesso constante, urgências excessivas, fraturando, assim, o elo de ligação vital que lhe

permite ter uma vida psíquica vibrante e criadora: a capacidade de estabelecer relações

íntimas e verdadeiras, de poder sentir que leva uma vida que é sua, que é viva e que é

criativa23.

Com o intuito de enobrecer a escrita, apresentamos nosso objeto de estudo, que se

concentra na análise dos poemas de Manoel de Barros e no estudo da criatividade como sendo

a fonte de renovação do psiquismo e da conquista da integração do si-mesmo. Manoel de

Barros, poeta brasileiro da geração de 45, transformou-se num grande alquimista do verbo.

Desenvolveu, através de seus poemas, um belo projeto estético, em que tem no centro a

Natureza como realidade inesgotável. Ao olhar para a infância com olhos de fontes, o poeta

transfigurou a forma de escrever poesia, indicando que as “coisas jogadas fora por motivo de

traste” são alvo da sua estima24.

Nas palavras de Antônio Houaiss:

É certo que a invenção poética de Manoel de Barros tem personalidade própria rara entre os nossos poetas, rara mesmo entre os nossos grandes poetas. É por isso que ele é um poeta maior. Mas não é só por isso. Num momento em que somos insuflados de divino, todavia, ao mesmo tempo, praticamos as maiores torpezas com nossos semelhantes, é um esplendor ver luzir de forma tão convincente e harmoniosa a certeza de que entre o caramujo e o homem há um nexo necessário que nos deveria fazer mais solidários com a vida. Mas Manoel de Barros vai além: prova com a doçura e adequação de suas palavras que, se quisermos, a vida pode ser uma passagem de beleza em meio à beleza natural, uma prece de harmonia na vida universal, uma nuga de graça, um momento de bondade, em que há algo de irônico, de lírico, de doce, de solidário, de esperançoso! A poesia de Manoel de Barros nessa conjuntura nacional e humana em geral, é

23 WINNICOTT, D.W. Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 1989. 24 BARROS, M. Poemas rupestres. Biblioteca Manoel de Barros. São Paulo: Leya, 2013.

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um maravilhoso filtro contra a arrogância, a exploração, a estupidez, a cobiça, a burrice – não se propondo, ao mesmo tempo, não ensinar nada a ninguém, senão que à vida (Rio de Janeiro, 5 de outubro de 1992, HOUAISS, Apud BARROS,M. Meu quintal é maior do que o mundo. Antologia. [recurso eletrônico])25.

Precisa-se deste filtro que retém as violências, precisa-se desta peneira que diferencia

o interior do exterior, o dentro do fora, o masculino do feminino. Busca-se a poesia para

entrar no ser, para resgatar a esperança que põe o eu a sonhar, a devanear e a brincar.

Não é à toa que Bachelard sublinha a imagem da escada como sendo esse caminho em

direção às lembranças imperecíveis, pois não são elas que nutrem justamente a possibilidade

de serenarmos as nossas inquietudes?

Manoel de Barros vem iluminar as avenidas e ruelas da nossa existência ao oferecer a

sua poesia, elevando-nos ao mistério, ao encontro conosco mesmo, à fruição das boas

solidões. Ler a sua poesia é encontrar este canto, é abrir o cofrezinho, é se tornar uma

miniatura. Ao nos transformarmos em pequenos, podemos adentrar mais facilmente em nós

mesmos, nas nossas lembranças, nas nossas raízes oníricas. Para ilustrar essa proposição,

Manoel de Barros, como sinalizou Houaiss, é um filtro indispensável, porque consegue ser

este poeta maior:

O abandono do lugar me abraçou de com força. E atingiu meu olhar para toda vida. Tudo que conheci depois veio carregado de abandono. Não havia no lugar nenhum caminho de fugir. A gente se inventava de caminhos com as novas palavras. A gente era como um pedaço de formiga no chão. Por isso o nosso gosto era só de desver o mundo. (BARROS, 2010,

p.463).

O eu-lírico transvê o modo como o mundo vê e como ele “desvê” o mundo. Já no

início, anuncia o excesso de sentido do abandono, explicitando claramente o que é uma

imagem-símbolo, uma imagem-palavra, uma imagem que remete à plurissignificação. O

abandono é o nascimento de algo e aí consta um paradoxo; o que fascina é a maneira como o

25 HOUAISS, Apud BARROS, M. Meu quintal é maior do que o mundo. Antologia. [recurso eletrônico]). Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.

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eu-lírico brinca com as imagens-palavras. Pode-se substituir abandono por espaço, por abrigo,

por possibilidade de novas ocupações. Renovadamente, podemos fazer uso das palavras,

encontrando nelas seus cantos, seus matizes, suas loucuras, suas fronteiras. Essa experiência

do abandono, que pode ser a boa solidão, abraça o eu-lírico por toda a vida, marcando o seu

modo de olhar.

Conforme Dufrenne, as coisas são poéticas quando nos falam e o homem é poético

quando se declara, na inocência e na graça da fantasia. O que é poético no mundo, segundo o

filósofo, é a fantasia do aparecer, bem como sua liberdade e exuberância: “O poético revela

uma espécie de ternura, ou ao menos uma cumplicidade, por parte da Natureza que se coloca

à nossa altura e ao nosso alcance” (DUFRENNE, 1969, p. 250).

Houaiss tem razão ao dizer que Manoel de Barros traz um pouco de doçura, de

solidariedade e de esperança. Berta Waldman, na profundidade do seu pensamento, também

assinala este aspecto na poesia de Manoel de Barros:

Revificada na terra, a palavra poética deve acompanhar a realidade em estado de metamorfose, juntando-se a ela. Para habilitá-la ao percurso dessa aventura, o poeta mutila a sintaxe, faz os verbos deslizarem para substantivos e vive-versa, incorpora palavras de uso regional que se trituram e se misturam a outras de tradição clássica, modifica o regime dos verbos, pratica uma verdadeira alquimia que plasticiza a linguagem, fazendo-a soar estranhamente cristalina e humilde (WALDMAN, 1990, p. 23).

Para “desver o mundo” é necessário estar abrigado na boa solidão, essa que permite

ser, que dá condições ao si-mesmo estar disponível para as invenções. A consciência de se

sentir abrigado se liga a uma noção extremamente importante, quando se fala de mundo

interior. Tal consciência diz respeito a alcançar dentro de si uma espécie de retaguarda, onde

recursos ou alternativas funcionam como ferramentas que podemos usar para nossa proteção,

quando as ameaças de fora se instalam e configuram um risco. Portanto, recorrer às paredes e

ao chão de uma casa que ampara e contar com um teto protetor, ancora o ser, as coisas, as

lembranças; uma condição que põe a salvo o ser, a fim de que ele possa, repousando,

encontrar-se com essa região no seu interior em que é permitido devanear em segurança e

contatar com essa habitação onírica que é a ponte para novos sonhos e novas

experimentações.

Para Bachelard:

Assim, abordando as imagens da casa com o cuidado de não romper a solidariedade entre a memória e a imaginação, podemos esperar transmitir

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toda a elasticidade psicológica de uma imagem que nos comove em graus de profundidade insuspeitados. Pelos poemas, talvez mais que pelas lembranças, chegamos ao fundo poético do espaço da casa. Nessas condições, se nos perguntassem qual o benefício mais precioso da casa, diríamos: a casa abriga o devaneio, a casa protege sonhador, a casa permite sonhar em paz. Só os pensamentos e as experiências sancionam os valores humanos. Ao devaneio pertencem valores que marcam o homem em sua profundidade. O devaneio tem mesmo um privilégio de auto valorização. Ele usufrui diretamente de seu ser. Então, os lugares onde se viveu o devaneio reconstituem-se por si mesmos num novo devaneio. É exatamente porque as lembranças das antigas moradas são revividas como devaneios que as moradas do passado são imperecíveis dentro de nós (BACHELARD, 2008, p. 26).

Tem-se a impressão, portanto, de ter-se chegado neste ponto mais profundo da vida do

homem e de suas qualidades. Existe, a partir disso, a compreensão de que esta vida deve ser

permeada de novidade, alimento tão fértil e mantenedor de um psiquismo saudável.

Por outro lado, vive-se a sensação de que há uma força cada vez mais feroz que avança

para uma ideia de auto-extermínio. O planeta vem manifestando igualmente os sinais de sua

fratura causada por homens que se distanciaram dessa possibilidade de se sentirem abrigados

por algo e que acabam extraindo e explorando irresponsavelmente a terra, as águas, os

elementos que são, paradoxalmente, fonte de sua própria proteção, fato bastante curioso. Na

proliferação de situações em que o homem se mostra um ser dissociado de si mesmo, bem

como do ambiente em que vive, insere-se a presente reflexão, como uma possibilidade de

transmissão de um pensamento que visa profanar a ideia do homem capaz de se abrigar em si

mesmo, nas suas recordações, sem medo de estar consigo e, sobretudo, habilitado a desfrutar

de uma condição humana que é ancorada no devaneio de intimidade.

Nesse devaneio de intimidade, inevitavelmente, reportamo-nos aos começos do

homem. Ao mais arcaico, ao que principia em nós. E desde este olhar, a infância é convocada

como o quintal do mundo em cada um.

Os devaneios voltados para infância: território das boas solidões

De acordo com Castor Ruiz (2003), mergulhar no sem-fundo humano é mergulhar no

imaginário, esse manancial criativo que sente o mundo de forma criadora; um mistério que

brota de nossa subjetividade na forma de criação e que transforma o húmus insignificante da

natureza em mundo humanizado.

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Na criação deste mundo próprio – que tem como fonte os cofres, as gavetas e os

armários26, as crianças e os poetas parecem aproveitar e usar a linguagem de uma forma

menos utilitária (Conceição, 2011) algo que para os adultos fica mais fugidio, devido à

primazia de experiências pautadas por relações de causa e efeito, próprias ao excesso de

racionalidade e ao excesso de processo secundário, levando em conta a psicanálise

tradicional. O poeta, sabiamente, destacou: “Nada há de mais presente em nós senão a

infância. O mundo começa ali” (BARROS, 2006, p. XVII.).

Conforme Bachelard:

Assim, uma casa onírica é uma imagem que, na lembrança e nos sonhos, se torna uma força de proteção. Não é um simples cenário onde a memória reencontra as suas imagens. Ainda gostamos de viver na casa que já não existe, porque nela revivemos, muitas vezes, sem nos dar conta, uma dinâmica de reconforto. Ela nos protegeu, logo ela nos reconforta, ainda. O ato de habitar reveste-se de valores inconscientes, valores inconscientes que o inconsciente não esquece (BACHELARD, 1990, p.92).

Se prestarmos mais atenção aos apelos silenciosos e quase invisíveis dos homens,

escutaríamos outras vozes, uma polifonia mais ampla e muitos pedidos de

refúgio. Bachelard nos lança a examinar melhor nossos anseios anunciando que se nos

mantivermos atentos, poderemos encontrar espaço para acalmá-los e satisfazê-los. Homens,

mulheres e suas crianças latentes demandam acolhimento desde os tempos primevos.

Logo, a teoria bachelardiana alarga as vias que propiciam o alcance deste lugar, o

lugar da solidão. Trata-se de uma solidão que não é tristeza, mas é reflexão, é silêncio, é

oportunidade de escutar a si mesmo, muito embora isso seja assustador algumas vezes.

Neste sentido, as crianças parecem auxiliar os adultos, porque se lançam no universo

das sensações e das percepções mais destemidas, mais autênticas, mais melancólicas. Assim

como os poetas.

Chega o momento, portanto, de anunciar outro poema de Manoel de Barros que vem

enaltecer a proposta da escrita, intensificando a qualidade das perguntas. Também se presta a

explicitar o teor da pesquisa, que pretende recuperar as vozes engendradas no calor dos bons

silêncios e da profundidade de uma intimidade que se desvela produtora e criadora de boas

imagens, trazendo consigo esperança:

26 BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008. “No cofre estão as coisas inesquecíveis; inesquecíveis para nós, mas também para aqueles que daremos os nossos tesouros. O passado, o presente, um futuro nele se condensam. E assim o cofre é a memória do imemorial” (p. 97).

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Ele sabia que as coisas inúteis e os homens inúteis se guardam no abandono. Os homens no seu próprio abandono. E as coisas inúteis ficam para a poesia (BARROS, 2010, p.91).

É interessante pensar, através do poema, o quanto se assemelham coisas e homens, da

mesma maneira que Dufrenne estabeleceu um paralelo entre o homem poético e as coisas

poéticas. Curiosamente, entre os dois está a Natureza, que se exprime através da fala e do

olhar profundo e livre do sujeito lírico.

O abandono, então, aparece como ressonância nesta obra de Barros para indicar um

acento na humildade, e no calor da intimidade, um espaço onde precisamos nos guardar e

sermos guardados. O abandono passa a ser uma paisagem. É transformado e “transvisto” pelo

olho do sujeito lírico que o deixa com ares de companhia, de presença viva, de cuidado. As

coisas, aparentemente inúteis, ficam para poesia, esse manancial de invenções, de experiência

de liberdade e de ampliação das belezas que residem no ser. Elas se configuram apenas como

“aparentemente inúteis”, porque o eu-lírico segue criando poemas, debruçando-se sobre as

palavras, entregando-se ao seu ofício com encantamento e satisfação.

Destarte, o abandono das coisas e do homem podem voltar a se conectar, ganhando

vida e importância. O significante, então, deixa de remeter ao surrado significado do “lugar

vazio, descuidado” e distancia-se do óbvio, relançando novos sentidos para engendrar outras

imagens libertadoras dos verdadeiros silêncios.

Para Waldman (1990, p.29): “A exploração das dimensões pré-conscientes do ser humano,

da memória, a fala inovadora vinculada às matrizes da língua, a psique infantil, o sonho, a loucura, o

sertão “do tamanho do mundo”, compõem um registro com o qual a poesia de Manoel de Barros tem

muito a ver”.

Antes de concluir, faz-se mister destacar a contribuição de Bachelard no que diz

respeito aos devaneios voltados para a infância, tendo em vista que eles contribuem para

amplificar a discussão, verticalizando-a. Ao falar sobre as imagens da infância, ele aponta

para uma reflexão pertinente que se refere às imagens da solidão: “Assim, as imagens da

infância, imagens que uma criança pode fazer, imagens que um poeta nos diz que uma criança

fez, são para nós manifestações da infância permanente. São imagens da solidão. Falam da

continuidade dos devaneios da grande infância e dos devaneios do poeta” (BACHELARD ,

2009, p. 95).

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Ao chegar ao final do percurso, compreende-se com mais lucidez os passos que foram

necessários dar, a fim de se alcançar uma dada elaboração, que decanta neste instante e diz

respeito à relevância do aprofundamento no estudo das imagens, que revela a descida no

interior do ser - que é antes poesia do que memória -, que não é queda, é movimento da vida

psíquica das crianças, que corajosa e livremente entram em si mesmas para habitar essas

regiões misteriosas que constituem o psiquismo, os devaneios, os sonhos, logo, o

inconsciente.

Com base nesta análise, uma conclusão parece surgir: o poético no homem pode ser

esta salvaguarda da novidade psíquica, esta que renova o próprio homem liberando-o para

sonhar, devanear, escrever poesia, dançar e expandir o seu mundo. Isto é o que vai garantindo

a possibilidade de construir experiências de intimidade, pois elas só serão possíveis quando

houver espaço para essa beleza que é a de encontrar aquilo que se cria. É isso que vai

configurando a ética que estetiza a vida. As boas solidões nascem de espaços que se alargam,

que foram dilatados psiquicamente e anteriormente habitados por vitalidade, alegria e

ascensão, para a criança acessar o que tem de mais genuíno. Não podemos nos furtar a

ressaltar a contribuição de Emil Staiger sobre a disposição anímica, em que a espontaneidade

pode surgir embalada pelos ritmos primitivos e reconfortantes da criança que brinca

livremente27.

O poético, então, parece ser este imã capaz de propiciar ao homem a conexão e o

contato com as matérias necessárias ao devaneio, ao acolhimento, ao repouso que instaura

novas imagens e que são fontes de renovação da vida psíquica. De acordo com a sabedoria de

Bachelard (2009, p.97): “Ao sonhar com a infância, regressamos à morada dos devaneios que

nos abriram o mundo. É esse devaneio que nos faz primeiro habitante do mundo da solidão. E

habitamos melhor o mundo quando o habitamos como a criança solitária habita as imagens”.

Referências Bibliográficas

BACHELARD, G. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1960/2009. ______. A terra e os devaneios do repouso. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

27 STAIGER, E. Conceitos fundamentais da poética. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1975. Conforme o crítico literário escreveu “A ‘disposição anímica’ (Stimmung) por exemplo, é apenas um momento, um curto prelúdio, a que se segue o desencanto, ou de nôvo um outro som. Mas quando esses momentos se sucedem, quando o poeta é arrastado nos altos e baixos da corrente anímica seus versos acompanham, linogràficamente, essas mudanças, onde fica a unidade de que necessita sua obra de arte? Há poesias dessa espécie, em ritmos livres, em que cada verso dá a impressão de total espontaneidade, em que o todo se precipita como corrente, sem margens, sem princípio nem fim. P. 29.

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______. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008. BARROS, M. Memórias Inventadas: a segunda infância. São Paulo: Planeta, 2006. ______. O menino do mato. São Paulo: Leya, 2010. ______. Poemas rupestres. Biblioteca Manoel de Barros. São Paulo: Leya, 2013. ______. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010. COLLOT, M. La matière-émotion. Paris: Presses Universitaires de France, 1997. CONCEIÇÃO, M. Manoel de Barros, Murilo Mendes e Francis Ponge: nomeação e pensatividade poética. Jundiaí: Paco Editorial, 2011. DIAS, E. A teoria do amadurecimento de D.W. Winnicott. Rio de Janeiro: Imago, 2003. DUFRENNE, M. O poético. Porto Alegre: Editora Globo, 1969. HOUAISS, A. Carta. Apud BARROS, M. Meu quintal é maior do que o mundo. Antologia. [recurso eletrônico]. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015. MELLO, A.M.L. Poesia e imaginário. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. RUIZ, C. Os paradoxos do imaginário. São Leopoldo: Edunisinos, 2003. STAIGER, E. Conceitos fundamentais da poética. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1975. VILETE, Edna. Sobre a arte da psicanálise: Rio de Janeiro: Idéias e letras, 2013. WALDMAN, B. A poesia ao rés do chão. In: BARROS, M. Gramática expositiva do chão (Poesia quase toda). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990. WINNICOTT, D.W. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artmed, 1983. ______. Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 1989. ______. Explorações Psicanalíticas. Porto Alegre: Artmed, 1994. WUNENBURGER, J-J. O imaginário. São Paulo: Loyola, 2007. ______. Gaston Bachelard, poétique des images. Paris: Éditions Mimésis, L’oeil et l’esprit, 2014.

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Grupo de trabalho Temas Transversais A

Atelier de recherche Thèmes Transversaux A

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Da “boa vida” a um “Bem Viver” num quotidiano à deriva: um olhar mitanalítico

From «good living» to a «Good life» in a disordered quotidian: a myth-analytical perspective

De la «bonne vie » à la «vie bonne» dans un quotidien à la dérive : un regard

mythanalytique

Alberto Filipe ARAÚJO 1 Universidade do Minho, Braga, Portugal

Iduína Mont’Alverne CHAVES2

Universidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil

Resumo No presente estudo, chama-se a atenção para ideologização e mistificação feita em torno das promessas do capitalismo avançado e da própria pós-modernidade, de novamente fazer ressurgir a Idade de Ouro onde a “boa vida” e o “bem-estar” confundidos estariam inexoravelmente ao alcance de todos num presente que seria já amanhã e não num futuro cantado por novos amanhãs parafraseando aqui o clássico aforismo comunista de “Os novos amanhãs que cantam”! Na consecução do objetivo proposto, dividiremos o nosso estudo em duas partes: a primeira debruça-se sobre a promessa da “boa vida” na modernidade prometeica à decepção trágica do “mau viver” num tempo ainda capitalista, enquanto a segunda parte, sob o olhar de Orfeu, fala-nos de uma “boa vida” face a um “Bem Viver” num quotidiano à deriva. Palavras-chave: boa vida; mito; terra da brincadeira; mau viver; bem-viver.

Abstract In the present article, we were interested in calling the attention to the present ideologization and mystification of the promises of a new Gold Age made by advanced capitalism and even by post-modernity, where the good living and welfare are confused and available to all the next day and not in some far away future like the classic communist aphorism that says that «New tomorrows are singing»! Our article is divided in two parts: the first takes into account the promise of a «good life» in the promethean modernity and the tragic deception of a «bad living» in a yet capitalist time; the second part, under the gaze of Orpheus, tell us about a «good life» face to face to a «living well» in our unquiet daily life. Keywords: good living; myth; land of playing; bad living; good life.

Introdução

1 [email protected]. 2 [email protected]

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Uma das fortes preocupações que tem marcado a agenda dos tempos hipermodernos,

que a todos nos envolve, é precisamente se as formas de capitalismo liberal, que se

assemelham cada vez mais a uma “nova religião” (uma espécie de doutrina de tipo

sacrossanto e salvífico), trouxeram, ou não, em nome do progresso, da perfetibilidade e da

felicidade na terra, a bem-aventurança de uma “boa vida” (sinónimo pra nós de “bem-estar”),

ilustrada, por exemplo, pela “Terra da Cocanha” (1567) de Piter Bruegel, o Velho, e pela

“Terra da Brincadeira” das Aventuras de Pinóquio (1883) de Carlo Collodi. Aquilo que

pretendemos dizer é que, por um lado, o “Bem Viver”, sinónimo para nós de “Vida Boa”, não

deve ser confundida com o conceito de “boa vida” (e de “viver bem”) e o lugar que este

mesmo conceito ocupa no imaginário social atual, e por outro, à luz da mitanálise de Gilbert

Durand, questionámo-nos sobre os mitos diretores subjacentes (os mitos da Idade de Ouro de

Prometeu, de Narciso, de Dioniso e de Orfeu) quer à “boa vida”, quer à “Vida Boa”. Sobre os

mitos agora referidos, que parecem dar conta da natureza mítica da temática tratada pela

literatura especializada dedicada à pós-modernidade e ao tema da “Vida Boa” ou do “Bem

Viver”, podemos dizer que os encaramos não como meras metáforas mas como mitos que

encerram em si uma verdade com a qual muito temos a aprender. Estamos, pois, convictos

que a sua verdade destila profeticamente, ainda que sob uma roupagem simbólica que carece

de uma hermenêutica adequada – a mitanálise de Gilbert Durand por exemplo – questões e

preocupações que a pós-modernidade agora coloca e debate.

A “boa vida” no imaginário social da sociedade dos tempos hipermodernos encontra-

se muito identificada com o poder e utilidade da riqueza e aquilo que esta permite consumir

ao nível dos bens materiais, assim como a garantia do conforto, a prolongação da própria vida

(lembrando aqui o mitologema do elixir da juventude ou a “fonte da juventude” enquanto

símbolo de imortalidade ou de rejuvenescimento eterno) e de uma prosperidade sem limites,

além de tudo fazer para realizar a satisfação dos desejos privados do sujeito. Numa palavra, a

pós-modernidade valoriza unidimensionalmente o ter consubstanciado em bens de consumo e

hedonísticos suportados por uma moral relativista. O ter passou a ser o novo dogma da vida

pós-moderna, esquecendo o ideal da “Vida Boa” consagrado predominantemente pela

modalidade do ser na linha que Erich Fromm desenvolve na sua obra Ter ou Ser (1987).

O objetivo que nos propomos no presente estudo é chamar a atenção para a

ideologização e mistificação feita em torno da promessa que o capitalismo avançado e a

dinâmica da própria pós-modernidade, retomando à sua maneira as ideias e os ideais

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educativos, políticos e filosóficos das Luzes, fariam novamente ressurgir a Idade de Ouro

(colocando-se aqui o retorno deste mito). Propagando demagogicamente a ideia que a “boa

vida” e o “bem-estar” confundidos estariam inexoravelmente ao alcance de todos num

presente que seria já amanhã e não num futuro cantado por novos amanhãs parafraseando aqui

o clássico aforismo comunista de “Os novos amanhãs que cantam”! No entanto, a história

recente tem mostrado e demonstrado que o caminho que os progressos económicos e

tecnológicos têm contribuído para que a desigualdade, a injustiça social e a pobreza tenham

aumentado a ritmo alucinante. Na consecução do objetivo proposto, dividiremos o nosso

estudo em duas partes: a primeira debruça-se sobre a promessa da “boa vida” na modernidade

prometeica à deceção trágica do “mau viver” num tempo ainda capitalista, enquanto a

segunda parte, sob o olhar de Orfeu, fala-nos de uma “boa vida” face a um “Bem Viver” num

quotidiano à deriva.

Por fim, e a modo de esboçarmos a nossa grande conclusão em termos gerais, diremos

o seguinte: ainda que de um modo pessimista e cético pensamos que não devemos abandonar

de perseguir o ideal de uma “Vida Boa”, ou seja, de um “Bem Viver” que enalteça as formas

do ser e daquilo que Félix Guattari denomina de “ecosofia” (1991, p. 8) em que a

preocupação e a responsabilidade com o meio ambiente não estivesse desligada das

preocupações sociopolíticas e da subjetividade humana de acordo com um novo imperativo

categórico que deriva do princípio de responsabilidade defendido por Hans Jonas, que diz que

devemos agir de tal forma que os efeitos das nossas ações sejam compatíveis com uma vida

humana autêntica e digna na Terra (1990: 30). Neste sentido, colocamos a nossa esperança

que um “Bem Viver” na Terra ainda seja possível sob o signo do mito de Orfeu: este mito

simboliza a crença no (im)possível no seu gesto que resgata Eurídice do Tártaro (reino de

Hades), ou seja, Orfeu por amor desce ao mundo inferior (descensus ad inferos) com o solene

objetivo de resgatá-la.

1. Da promessa da “boa vida” na modernidade prometeica à deceção trágica do

“mau viver” num tempo ainda capitalista. Sob os olhares dos mitos da Idade de

Ouro, de Prometeu de Narciso e de Dioniso

Pinóquio, ao contrário daquilo que o seu narrador pretendia, procurava por todos os

meios fugir do modelo de homo laborans (HANS, 2012, p. 41-51) para viver e representar a

figura de homo ludens (HUIZINGA, 2012): esta sempre dedicada à brincadeira, ou seja, a um

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ócio despreocupado. De fato, a sua intenção mais forte, enquanto boneco de madeira, era de

entregar-se aos prazeres de tipo hedonista da “boa vida”, que não deve ser confundida com a

noção de “Vida Boa” que possui uma conotação aos mais variados níveis da existência e cujas

implicações na vida do sujeito ultrapassam em muito as meras dimensões do repouso e do

divertimento.

Curiosamente, se a metáfora da Terra da Brincadeira ocupou o imaginário social e

mítico da Modernidade, também não é menos verdade que nos tempos hipermodernos a

promessa de que uma Terra da Brincadeira seria possível também não esmoreceu. Por outras

palavras, a promessa de uma “boa vida” e o consumo do ócio não seriam já uma miragem,

uma mera ilusão, mas, pelo contrário, uma realidade concreta acessível a uma maioria

crescente da sociedade. Este tipo de promessas, feitas na sequência de uma pós-

industrialização, de um pós-fordismo, está, graças a uma implementação aclarada da

automatização e robotização e sistemas informáticos, popularizado perigosamente pelo culto

do bem-estar individual e de uma qualidade de vida (ainda que sempre adiados) apregoada

por um marketing concorrencial e massificador, cada vez mais sem escrúpulos, típico dos

mass media especializados e divulgadores generalistas da ideologia global do bem-estar

coletivo, isto é, de “boa vida” e muito menos de um “Bem Viver”: a “boa vida” este já não

seria mais uma quimera e um atributo das elites socioeconômicas e cultuais privilegiadas, mas

seria já extensivo à população das sociedades desenvolvidas, capitalistas avançadas. Porém, e

paradoxalmente, se a promessa de um “boa vida”, e menos de uma “Vida Boa”, oferecida

pelos arautos e artesãos da Modernidade esbarrou com a realidade dura de um trabalho

massificado e explorador, com as condições socioeconômicas precárias de um grande número

de sujeitos da sociedade industrial, também as sociedades capitalistas avançadas (para uns

pós-capitalistas) fracassaram nas suas promessas de oferecerem cada vez mais lazer, mais

tempo livre (entendido como tempo de não trabalho) e mais ócio.

Fracassaram não só pela ilusão que essas mesmas promessas em si encerram, mas

também por elas assentarem prevalentemente no paradigma do ter, esquecendo os valores do

ser (FROMM, 1987), com a consequência de o sujeito individualista, narcísico (mito de

Narciso) tender a confundir o “Bem Viver” com a “boa vida” baseada no prazer imediato e

efêmero (hedonismo – mito de Dioniso com a sua sombra de prazer e de êxtase orgiástico -

MAFFESOLI, 1985; MICHAUD, 2012). E como não há prazer sem consumo, o sujeito acaba

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por afogar-se inelutavelmente no poço de um “mau viver” porque sempre insatisfeito, sempre

descontente, sempre entediado, enfim, sempre vazio!

Neste contexto, assiste-se a uma mudança do paradigma mítico, dado que o imaginário

cultural e social passa a estar povoado por outros símbolos e mitos. Na perspetiva de Gilles

Lipovetsky, “o laborioso Prometeu está sem fôlego”, o nosso tempo desembaraçou-se da

ideologia mecanicista e progressista do passado, dando lugar à lógica do individualismo,

relativismo, hedonismo e consumismo vividos numa “bacia semântica” contaminada pelos

mitologemas do mito da Idade de Ouro. Narciso e Dioniso são as figuras mitológicas

emblemáticas que presidem à nova forma de vida das sociedades sobre-desenvolvidas, que

buscam o prazer e felicidade de modo desenfreado em que a fragmentação social e o

crescimento da desorientação individual e coletiva parecem ser uma constante.

1.1. A promessa da “boa vida” da Modernidade sob o signo dos mitos da Idade de

Ouro e de Prometeu

Este mito fornece um modelo arquetipal ao paradigma da “boa vida” porque no fundo

identifica-se também com o chamado “País da Cocanha” (a terra mítica da abundância

sonhada e desejada na medievalidade) bem retratado por Bruegel em 1567. A Idade de Ouro

encerra em si um patrimônio ancestral integrado no ciclo de idades míticas descritas, entre

outros, por Ovídio no livro I das Metamorfoses (76-215):

A primeira idade foi a do ouro/ em que, sem lei nem castigo, espontaneamente/ os homens praticavam a boa-fé e a justiça./ Não temiam os castigos, nem estavam escritas no bronze/ ameaçadoras leis e a turba suplicante/ […] A terra era virgem, sem precisar de enxadas ou charruas/ nem ser sulcada pelo arado, produzia tudo, em liberdade: / alegres, com os alimentos que ela dava, sem trabalho/ […] A Primavera era eterna, e os doces zéfiros acariciavam/ […] rios de leite e néctar corriam e o loiro mel escorria do verde carvalho (vv. 89-112).

Uma das caraterísticas principais desta “idade mítica” – a do ouro – é a da felicidade

eterna e perfeita. A esta grande característica, junta-se outras que são as da saúde eterna, da

paz, da partilha dos bens, da abundância, da harmonia, da justiça e da juventude eterna. Trata-

se de um conjunto excelente de características próprias de uma idade situada fora do tempo

histórico, logo projetada no “tempo das origens” que escapa a qualquer tipo de data (o célebre

in illo tempore de Mircea Eliade: o mito da Idade de Ouro designa “uma época em que a

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humanidade era suposta viver sem artifícios, sem invenções técnicas, mas também sem

instituições, sem mediação de leis, numa espécie de estado de natureza oposto à cultura”

(WUNENBURGER, 2002ª, p. 27-28).

Jean-Jacques Wunenburger ensina-nos que faz parte da natureza do mito ajudar-nos a

imaginar, ajudar-nos a pensar, mas também fornece razões de viver e de agir. Deste modo,

não podemos surpreender-nos que a Modernidade prometeica tenha reatualizado, na base da

tríplice crença do Progresso indefinido da humanidade, da superioridade da Ciência e da

hegemonia da Técnica, o mito da Idade de Ouro na versão lúdica do ócio, ou de um tempo de

lazer, que permitiria que o comum dos mortais pudesse viver uma “boa vida” o que não

significa necessária e automaticamente um “Bem Viver”. Aliás, a este respeito não deixa

mesmo de ser sintomático aquilo que o autor escreve:

Conclui-se, portanto, que, confrontados às condições ordinárias da vida (mortalidade, sofrimento, trabalho, desventura ou conflitos com outro), os homens cultivaram sempre a imagem de uma outra vida, para eles mesmos como para a sua sociedade, onde a existência, com duração infinita, se desenrolaria com facilidade, no luxo e no prazer, sem labor nem violência, numa concórdia bem-aventurada (2002ª, p. 40).

A Era Moderna prolongou o imaginário mítico da Idade de Ouro sob a capa de uma

outra figura mítica, a de Prometeu (SÉCHAN, 1951; GUAL, 2009). Esta figura mítica subjaz

à ideologia moderna do domínio da natureza e da busca do progresso através desenvolvimento

científico-tecnológico, bem como da necessidade de regularização e previsibilidade, no

sentido de instaurar uma nova ordem numa sociedade nova povoada de “homens novos”

libertos gradualmente de um tempo escravizado por um trabalho agrilhoante. O projeto

prometeico, de natureza mercantilista progressista, urbanística, industrializadora e positivista,

é ordenador, disciplinador e visa a eficiência: “Este mito define sempre uma ideologia

racionalista, humanista, progressista, científica e, algumas vezes, socialista” (DURAND,

1996, p. 91). A Modernidade fabricou a ilusão, animada por obras utópicas como a Nova

Atlântida de Francis Bacon (1624), que, graças ao progresso técnico-científico, uma “boa

vida” poderia ser usufruída por um maior número de sujeitos agora resgatados da “forja”

ardente: ao homo laborans sucede a miragem do homo ludens, estudado por Johan Huizinga.

É, portanto, na base de uma esperança progressista, alimentada pela crença no progresso, da

ciência e da técnica, que a Modernidade crê ser capaz de oferecer aos filhos dos novos tempos

uma vida cada vez mais liberta do trabalho e, por conseguinte, mais disponível para o

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consumo do ócio (CASTRESANA, 1990). É precisamente aqui que reside aquilo que os

irmãos Skidelsky denominam o “erro de Keynes” que profetizou que os progressos

tecnológicos permitiriam, num futuro próximo, viver desafogadamente porque o sujeito

liberto, cada vez mais do peso do trabalho, poderia dedicar-se àquilo que mais lhe daria prazer

e felicidade: “O erro de Keynes foi crer que a ânsia de ganância despoletada pelo capitalismo

podia saciar-se com a abundância, deixando as pessoas livres para gozar dos seus frutos numa

vida civilizada” (SKIDELSKY; SKIDELSKY, 2012, p. 55). Por outras palavras, importa, e é

aquilo que fazem os autores Robert e Edward Skidelsky, não esmorecer na denúncia deste

erro, visto que já sabemos que a profecia de Keynes, que previu em 1930, graças aos

progressos tecnológicos no espaço de um século (2030), que uma “terra de abundância” (um

novo Éden, uma nova Idade de Ouro) seria novamente possível e nela a humanidade viveria

com desafogo, com felicidade e praticamente sem necessidade de trabalhar (SKIDELSKY;

SKIDELSKY, 2012, p. 27-55), é uma ilusão prometeica de graves consequências para o

futuro da humanidade. Por outras palavras, desde a modernidade prometeica até à pós-

modernidade, sem esquecer o regime capitalista neoliberal que lhes está associado, um ”País

de Cocanha”, uma nova Idade de Ouro, onde todos poderiam viver sem sofrimentos, sem

injustiças e particularmente sem trabalho (2012, p. 58-61), era uma certeza convertida em

dogma. No entanto, constata-se que a profecia de Keynes, à semelhança de tantas outras, não

só não se está cumprindo como também dificilmente algum dia se cumprirá, pois o

desenvolvimento e o progresso económicos e tecnológicos, apostando cada vez mais num

rendimento crescente, está, antes, conduzindo os sujeitos a uma “sociedade do cansaço”

(HAN, 2012), cada vez mais desigual quer do ponto de vista social, quer do ponto de vista

econômico, quando aquilo que se prometia era justamente o seu contrário, ou seja, a

sobreabundância de tudo para todos de forma, se possível, instantânea (PIKETTY, 2013).

1.2. Da ilusão da “boa vida” da Modernidade à desilusão do “mau viver” de um

tempo ainda capitalista sob o signo dos mitos de Narciso e de Dioniso

Zygmunt Bauman designa a época que vivemos por Modernidade Líquida, na medida

em que a sua principal característica tem a ver com a constante mudança e esta fluidez é a

qualidade dos líquidos e dos gases. Assim, a leveza e a facilidade de movimento da

contemporaneidade contrastam com o peso e a solidez da modernidade. Assiste-se, por outras

palavras, à falência de um mundo sólido que dará lugar a uma sociedade líquida (Zygmunt

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Bauman). Richard Sennett, citando o próprio Marx a propósito do desmoronamento do mundo

moderno, afirma: «Tudo o que era sólido volatiliza-se» (2007, p. 21). O destronamento do

passado (tradição) e a profanação daquilo que foi considerado sagrado, constitui o derreter

dos sólidos, ou seja, a falência dos antigos padrões através da aceleração das mudanças: “O

que leva tantos a falar do «fim da história», da pós-modernidade, ou a articular a intuição de

uma mudança radical no arranjo do convívio humano e nas condições sociais sob as quais a

política-vida é hoje levada, é o facto de que o longo esforço para acelerar a velocidade do

movimento chegou ao seu ‘limite natural’” (BAUMAN, 2001, p. 17-18).

Na época da instantaneidade, ou seja, da aceleração, o poder tornou-se extraterritorial

e tudo é afetado pela fragilidade, em nome de uma maior emancipação e libertação do

indivíduo. Em nome do individualismo, do consumismo, do relativismo moral e do

hedonismo o habitante dos tempos hipermodernos não se contenta em tudo viver, em tudo

assumir, em tudo querer, a tudo dizer que sim e que não numa escala temporal possível e

ainda percetível. Realmente já não se contenta, pois a agenda hedonista, consumista,

relativista e individualista do sujeito atual é gerida agora por um Cronos hiperacelerado, como

se estivesse sob o efeito de substâncias psicotrópicas do tipo ecstasy, que escapa a qualquer

racionalização colocando mesmo em causa a inteligibilidade de um projeto técnico-

instrumental e racional já testado ao longo da Modernidade (BLUMENBERG, 2008). As

profundas transformações sociais alteram significativamente a nossa maneira de pensar e de

viver. Tudo muda a um ritmo vertiginoso, dando lugar a um mundo global e a uma nova

forma de cultura que Gilles Lipovetsky designa por cultura-mundo:

Com a cultura-mundo, alastra por todo o globo a cultura da tecnociência, do mercado, dos media, do consumo e do indivíduo e com ela toda uma série de novos problemas, não só de âmbito global (ecologia, imigrações, crise económica, miséria do terceiro mundo, terrorismo, etc), mas também existenciais. A cultura globalitária não é apenas um facto, mas, ao mesmo tempo, uma interrogação profunda e inquieta sobre si mesma. É o mundo que se transforma em cultura e a cultura em mundo: é uma cultura-mundo (2010, p. 14).

A nova cultura proporciona ao indivíduo uma infinidade de experiências e o

quotidiano passa a ser vivido segundo um consumo bulímico, devido à intensificação das

ofertas e à circulação alucinante de bens e serviços, bem como ao aumento exponencial da

circulação das pessoas e da informação. Deste modo, as sociedades desenvolvem “uma

dinâmica de pluralização, de heterogeneização e de subjetivação” (2010, p. 21), expondo o

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indivíduo a uma explosão de alternativas que complexificam o seu mundo ao ponto de

desorganizar as consciências, “os modos de vida e as existências. O mundo hipermoderno está

desorientado, inseguro e desestabilizado, não ocasionalmente, mas quotidianamente, de

maneira estrutural e crônica” (2010, p. 24).

Não acreditamos no sentido da História. Por isso, sentimo-nos perdidos. O desencanto

e a incerteza tomam conta do nosso quotidiano e, apesar das conquistas realizadas pela ciência

e pela técnica, o ser humano está cético e inseguro. A instabilidade em que vivemos, resultado

de um mundo pós 11 de Setembro, leva Lipovetsky a afirmar que estamos perante uma ordem

mundial caótica. A desorientação manifesta-se a todos os níveis, desde os abalos

incontrolados da economia, passando pelo descrédito na política, até às esferas da vida social

ao nível da família, das relações entre as pessoas ou da educação. A incerteza contaminou

todos os domínios da nossa vida: “assistimos ao crescimento do caos intelectual e da

insegurança psicológica, das crenças esotéricas, da confusão e da desorientação

generalizadas” (2010, p. 29). Aumenta o mal-estar social, cultural e ético e a desordem afeta

indivíduos e sociedades. A promessa da modernidade no sentido do planeamento e da ordem,

através de um progresso indefinido, revela agora as suas limitações e os seus perigos que os

mitos de Narciso (o individualismo puro e ingénuo – BETTINI; PELITZER, 2010; RENGER,

1999) e de Dioniso (o triunfo do hedonismo consumista) ilustram: o primeiro simboliza a

cultura em que vivemos, enquanto centramento do indivíduo em si mesmo e, tal como

Pinóquio, uma “criança” manipulada pelas suas inclinações e pelos seus desejos, marioneta

das ilusões e incapaz de enfrentar a realidade fora de si: “O narcisismo designa a emergência

de um perfil inédito do indivíduo nas suas relações consigo próprio e com o seu corpo, com

outrem, com o mundo e com o tempo, no momento em que o capitalismo autoritário dá a vez

a um capitalismo hedonista e permissivo” (LIPOVETSKY, 2010, p. 48).

Podemos então salientar que, neste sentido, a nova ética permissiva e hedonista

alastra-se: “o esforço deixou de estar na moda, o que significa coerção ou disciplina austera é

desvalorizado em proveito do culto do desejo e da sua realização imediata” (2010, p. 54). O

mito de Narciso aparece, nas palavras de Gilles Lipovetsky, como “estratégia do vazio”

(2010, p. 54). Um vazio caracterizado pela superficialidade das relações, pela indiferença face

ao outro, pelo “vazio emotivo” que também Pinóquio experienciava relativamente ao Outro,

porquanto era um boneco animado que desconhecia a experiência da autonomia na sua

expressão mais congruente. O indivíduo vazio e só tende a querer preencher este mesmo vazio

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frio e solitário pelo consumo exacerbado e por um culto de prazer sem limite na esperança de

sentir-se mais preenchido, mais humano. Deste modo, a individualização promove a auto

expressão e a valorização pessoal, milhões de homens e mulheres procuram a felicidade,

libertando-se do passado e do compromisso e apostando em começar de novo.

Neste contexto, Narciso fascinado por si conduz-nos ao mito de Dioniso que remete

para o imaginário da Terra da Brincadeira enquanto busca do prazer desenfreado e da vida

intensa e plena. Dioniso, o deus da vinha, da orgia e do grito estridente, da aparição, do

arrebatamento e da orgia que provoca o êxtase, simboliza atualmente todo um imaginário do

excesso, da desordem e de um frenesi selvático (WUNENBURGER, 2002, p. 177-188;

KERÉNYI, 2007; BRUN, 1969). Dioniso irrompeu nas sociedades democráticas através da

expansão dos valores hedonísticos, da aspiração a novos modos de vida e à expressão direta

das emoções. Trata-se de um encantamento pelo excesso e pela festa, reflexo do hedonismo

contemporâneo.

Assistimos a uma busca desenfreada do hedonismo e do sensualismo de costumes, no

consumo, na moda e no lazer. O quotidiano assume uma dimensão lúdica e as cidades

evocam, para Lipovetsky, uma espécie de Idade de Ouro através da sua dimensão festiva e

generosa, contemplando espaços de distração e convivencialidade e promovendo a distração e

o espetáculo. Por seu lado, a sociedade de consumo promove a esperança de felicidade através

dos produtos e das marcas, conferindo distinção a quem as consome e contribuindo para a

construção de uma personalidade por medida. A sociedade contemporânea promove a

individualização dos modos de vida, a privatização dos prazeres e a comercialização do tempo

livre, em nome de um ambiente pluralista e relativista. Habitamos um imaginário de conforto

e liberdade, em busca dos prazeres que a técnica e o comércio possibilitam, de modo a

melhorar a qualidade de vida e a desenvolver as subjetividades emocionais.

2. Uma “boa vida” face a um “Bem Viver” num quotidiano “enfermo”? Sob o olhar

de Orfeu

Num quotidiano vivido sob aceleração temporal e estressado em que a grande maioria

se cansa e se extenua realizando aqui mil tarefas, acolá mil obrigações, pergunta-se, na

verdade, se ainda se poderá falar de uma “boa vida” e de um “Bem Viver”: “A pura agitação

não gera nada de novo. Reproduz e acelera o já existente” (HAN, 2012, p. 35). A respeito da

aceleração, Hartmut Rosa é claro ao afirmar que a experiência mais significativa daquilo que

ele designa por Modernidade tardia é a aceleração, ou seja, como o tempo é agora percebido e

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vivido: não há tempo para nada, nem para viver na medida em que tudo se tornou cada vez

mais rápido, escapando cada vez mais ao controlo do sujeito. Por outras palavras, o trágico é

que a ampulheta do tempo, este com o seu horizonte, suas estruturas e ritmos, torna-se cada

vez mais fugidia e escapa-nos das nossas mãos cada vez mais desencarnadas à semelhança de

mãos vampirescas (ROSA, 2010, p. 11-12).

Num quotidiano enfermo e identificado com um modelo pós-industrial, consumista,

que agrilhoa o homo laborans a uma agenda de cunho produtivista e baseado na ideia de

progresso sem fim, torna-se realmente difícil ocorrer um tempo livre para o lazer que é uma

das condições, ainda que não a única, para que o sujeito usufrua de uma “boa vida” e

experiencie mesmo de uma “Vida Boa”. Aquilo que pretendemos dizer é que somos muito

céticos e pessimistas sobre a possibilidade de um “Bem Viver e de um “Bem Con-Viver”

devido precisamente ao atual paradigma de desenvolvimento com o seu modelo económico de

contínua expansão, de produção e de consumo e, por outro lado, devido à ideologia da Pós-

Modernidade (individualismo, relativismo, consumismo e hedonismo) com a sua lógica

científica, tecnológica e mercantil.

Se nos perguntarem se uma “boa vida” pode acontecer, a nossa resposta é menos

pessimista, ainda que de imediato perguntemos o que é que se necessita para gozar de uma

“boa vida”. Ainda que saibamos aquilo que o imaginário social atual entenda por “boa vida” e

aquilo que ela possa significar, a saber: hedonismo, consumismo, riqueza e felicidade. Mas,

curiosamente, dos poucos que ainda podem gozar de “boa vida” não são poucos aqueles que

se queixam de tédio, enfim, de um aborrecimento profundo e mesmo de falta de sossego.

Paradoxalmente não é só a pressão do rendimento do trabalho, da técnica disciplinária ou do

sujeito convertida numa espécie de máquina multitasking que entedia, que provoca um

aborrecimento profundo, um forte desassossego e forte inquietação, mas também agora é a

própria “boa vida” que em si, ainda que sob outra forma, conhece a hiperatividade neurótica

do trabalho e esta torna-se mortal quando, como nos ensinou Nietzsche, descarta todo e

qualquer elemento contemplativo.

Ainda que a lógica do sistema econômico capital neoliberal e a própria cosmovisão e

mundividência da ideologia pós-moderna possam garantir algumas condições para a “boa

vida”, já, pelo contrário, estamos persuadidos, malgré nous, que o tempo hedonista e

consumista atual consubstanciado na obsessão neurótica do “ser rico” compromete

dramaticamente a possibilidade de um “Bem Viver” que também é inseparável de uma

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concepção ecológica tal como a defende Félix Guattari na sua obra intitulada As Três

Ecologias (1989). Este “bem Viver” passa também pela implicação de toda a condição

existencial do sujeito na suas vertentes sociopolítica, ecológica e psicológica. Daí que o autor

defenda a necessidade das três ecologias (a do meio ambiente, a das relações sociais e a da

subjetividade humana) estarem ligadas entre si. Neste sentido refere:

Apesar de estarem [as formações políticas e as instâncias executivas] começando a tomar uma consciência parcial dos perigos mais evidentes que ameaçam o meio ambiente natural de nossas sociedades, elas geralmente se contentam em abordar o campo dos danos industriais e, ainda assim, unicamente numa perspetiva tecnocrática, ao passo que só uma articulação ético-política – a que chamo ecosofia – entre os três registos ecológicos (o do meio ambiente, o das relações sociais e o da subjetividade humana, seria suscetível de clarificar convenientemente estas questões (GUATTARI, 1991, p. 8).

Chegados aqui, podemos pois afirmar que o “Bem Viver”, ou a “Vida Boa”, só

acontece se aquele que procura viver comprometidamente uma “Vida Boa” souber

sentidamente articular os três registos atrás referidos que são, e lembramos, os do meio

ambiente, o das relações sociais e o da subjetividade humana, além de recuperar uma

qualidade há muito perdida que é a capacidade contemplativa. Mas pensamos que esta

possibilidade, ainda que possa acontecer mais no plano ideal do que no real humano, torna-se

em tempos de cólera, como aqueles que se vivem hoje, uma possibilidade cada vez mais

remota senão mesma rara. Daí a nossa súplica a Orfeu para que o poeta mítico, no seu infinito

amor por Eurídice e pelo som melodioso e divino que ressoava da sua lira, possa sobre nós

derramar a virtude da esperança para que nós, simples mortais, possamos, ainda que num dia

só, viver a graça de uma “Vida Boa”. Neste contexto, importa refletir sobre as razões do nosso

ceticismo, e mesmo pessimismo sobre a possibilidade da realização de uma “Vida Boa”.

Cansado, Pinóquio simboliza o projeto da Modernidade, os seus desejos e as suas

necessidades constituem manifestações da utopia da “boa vida” simbolizada pela “Terra da

Brincadeira” das suas Aventuras (COLLODI, 2004, p. 145-157). O homem acredita no poder

da razão para alcançar uma vida plena, repleta de bem-estar e de harmonia, onde o tempo do

trabalho dá lugar ao prazer do ócio. O progresso anuncia a libertação em relação à natureza e

uma abundância de recursos. Sob o signo prometeico, o mundo é transformado de maneira a

proporcionar um conforto crescente e a garantir uma época dourada: “os homens e as

mulheres sempre sonharam com um mundo sem sofrimento, sem injustiças e, sobretudo, sem

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trabalho” (SKIDELSKY; SKIDELSKY, 2012, p. 58). Este mundo estava agora supostamente

ao alcance da realização humana, nomeadamente encontrava-se potencializado pelas utopias

científicas produtoras de “mundos in-felizes”, aumentando assim o nível de expetativas dos

indivíduos no tocante à ilusão de que agora, ou num futuro breve, os seus desejos de ter e de

prazer seriam alcançáveis sem esforço em demasia. A este respeito, sabemos também que a

Pós-Modernidade não deixou este crédito por mãos alheias fixando, aliás, metas que são hoje

grandes decepções para o indivíduo: de um Prometeu eufórico e triunfador com a

Modernidade passou-se na nossa contemporaneidade fáustica e frankensteiniana a um

Prometeu já cansado e sem fôlego ou então, como diria François Flahault, um Prometeu

crepuscular (2008). Uma nova Idade de Ouro heróica foi prometida, pelos engenheiros do

crescimento técnico-científico, ao sujeito pós-moderno, como se de uma nova religião se

tratasse, não se lhe exigindo nenhuma fé nem nos deuses da antiguidade greco-romana, nem

em qualquer das religiões do Livro. Aquilo que esses arautos do “melhor” e da “felicidade”

terrena apenas pediam é que o habitante da Tecnopolia (POSTMAN, 1994) se tornasse

seguidor do culto consumista, hedonista e individualista.

Por outras palavras, o sujeito substituía, assim, a fé nos antigos deuses pela fé na

deificação tecnológica (uma das invenções mais letais do capitalismo avançado) sem se dar

conta, de tão alienado que está, que a Tecnologia deificada é um “deus” que não serve porque

com a sua promessa de felicidade seduziu e encantou os indivíduos ao longo de gerações com

a ideia secularizada de que um novo “Éden” na terra seria possível, ou seja, que graças aos

avanços tecnológicos e informáticos uma “era de lazer”, sem precedentes, seria possível e esta

proporcionaria condições mais de uma “boa vida” do que de um “Bem Viver” a uma

sociedade cada vez mais iludida em que a libertação do trabalho seria realizável no aqui e no

agora: o homem na terra desposaria de novo o estado antes da “queda”, isto é, a sua condição

paradisíaca típica da Idade de Ouro em que a crença quer de uma “vida boa”, quer de um

“Bem Viver” substituiria inelutavelmente a crença na ideia clássica moderna de progresso

indefinido. Esta crença parece ter ruído ao ter revelado a sua dimensão paradoxal que consiste

no seguinte: por um lado, sempre afirmou que a “boa vida” e o “Bem Viver” são

perfeitamente realizáveis e, por outro, constata que o homo laborans, hiperativo e

hiperneurótico, encontra-se cada vez mais agrilhoado ao Cáucaso do trabalho com a

consequente perca da sua capacidade contemplativa que, por sua vez, está vinculada “à

absolutização da via ativa na qual é corresponsável pela histeria e pelo nervosismo da

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moderna sociedade ativa” (HAN, 2012, p. 51). E quando do trabalho o sujeito parece livrar-

se, ele encontra-se de tal modo agrilhoado ao seu rochedo, está de tal modo neurótico e

alienado que tende a confundir o “Bem Viver” com o ato de consumir e com a obtenção do

prazer instantâneo, ou seja, com a “boa vida”, ficando depois sem qualquer tipo de força

anímica para questionar-se por que se sente tão vazio, tão desassossegado e tão angustiado.

O sujeito dos tempos hipermodernos, à semelhança de Prometeu, pagou caro a sua

ousadia em acreditar que o Olimpo desceria à terra, assim como Pinóquio pagou um preço

elevado por ter acreditado que a sua vida na Terra da Brincadeira seria um eterno presente,

acabando por confrontar-se com o lado obscuro da sua ilusão de um “Bem Viver” que, no

limite, não passa de uma “boa vida” mal vivida. Deste modo, o sujeito atual, à semelhança de

Pinóquio, anula a esperança de um dia afinar o seu diapasão pela natureza do homo ludens

(Johan Huizinga) cujas pedras de toque são as da serenidade e da Poética do Devaneio

(BACHELARD, 1988). Ou seja, Pinóquio é aquele que identifica a “boa vida” com uma dada

conceção de felicidade, que faz do prazer o seu principal leitmotiv, vivida na Terra da

Brincadeira. Esta aceção está ligada especialmente àquilo que Byung-Chul Han designa de

“ludificação” (2014, p.77-85): “A ludificação do trabalho explora o homo ludens” (2014, p.

78), e nós poderíamos afirmar, por ele inspirado, que a ludificação do prazer castrou ou

amputou a alma do próprio homo ludens da sua ligação com o sagrado, com o rito e com o

cultual.

O que seria para nós desejável é que este homo ludens fosse capaz de experienciar

uma “Vida Boa”, não no sentido daquele veiculado pela Terra da Brincadeira, mas antes

baseado e norteado pela conceção grega de eudaimonia identificada em geral com um estado

de ser admirável e desejável. Por outras palavras, já não se trata aqui de um bem-estar

psicológico produzido na base de um determinado prazer, mas sim de um estado mais ôntico

que não deve ser confundido com um estado de ânimo agradável, mas antes identificado com

uma vida plena e completa que não se esgota na mera esfera psicológica, projetando-se antes

numa felicidade virtuosa ainda que difícil de alcançar. A razão do afirmado, prende-se que

nós, nos tempos pós-modernos, mergulhados numa contínua aceleração temporal quase nunca

temos tempo para questionarmo-nos sobre os motivos que temos para sermos felizes, quanto

mais um tempo eudaimonico para uma felicidade virtuosa, para evocarmos aqui o legado

aristotélico. E mesmo quando pensamos possuir as coisas boas da vida, tais como saúde,

segurança, respeito, amizade, autonomia (razão prática no sentido aristotélico) harmonia com

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a natureza e ócio (SKIDELSKY; SKIDELSKY, 2012, p. 174-189), perguntamo-nos se ainda

não estamos longe de alcançar aquele estado eudaimonico que nos aproxima do estado

virtuoso.

Algo que pensamos que em muito poderia contribuir para que este estado de graça, se

assim nos podemos exprimir, fosse pelo menos sentido e que o sujeito tudo fizesse para

recuperar e revitalizar a sua capacidade de saber escutar, mais do que muito falar, e o ideal da

vida contemplativa há tanto tempo perdido e esquecido pela “sociedade do cansaço” (HAN,

2012). Por sua vez, este ideal de vita contemplativa pressupõe já uma “pedagogia do olhar”

(HAN, 2012, p. 53-60), bem como as pedagogias do silêncio e da paciência (GUSDORF,

1963), e que em muito podem ajudar o sujeito a recuperar a sua condição de Pessoa e de

humanidade plasmadas no ideal que o “Bem Viver” (ou da “Vida Boa”) também é.

Por este ideal, o sujeito, agora mais humano, poderá certamente despertar, sob a ação

da lira de Orfeu, da profunda letargia na qual a sociedade do rendimento o mergulhou (HAN,

2012, p. 25-32). Daí perceber-se melhor um dos sentidos, de dois, que Han deu ao cansaço

enquanto tal (2012: 71-79). É um tipo de cansaço que, por não ser amigo, incapacita o homem

de contemplar e de sentir sossegadamente a quietude da vida, que a música por Orfeu tocada

bem pode simbolizar (GUTHRIE, 1956, p. 344-347), devido às consequências da sociedade

de rendimento: “O excesso do aumento de rendimento provoca o enfarte da alma” (HAN,

2012, p. 72). É o chamado cansaço esgotante, narcotizante e absurdo.

No entanto, o mesmo autor (Byung-Chul Han) contrapõe a este cansaço um outro –

aquele que é reparador das forças perdidas, aquele que desperta as energias do sujeito, enfim,

aquele cansaço eloquente que é fundamental para a existência humana. Muito

sintomaticamente, Han, a propósito deste tipo de cansaço terapêutico, se assim podemos

dizer, evoca Orfeu salientando: “Um certo cansaço, a modo de Outro Orfeu à volta do qual se

unem os animais mais ferozes e que no fim podem estar cansados com ele. O cansaço dá o

compasso aos solitários distraídos” (HAN, 2012, p. 79).

Finalmente, à pergunta acima colocada sobre se ainda é possível sentir-se o sopro do

ludus, na aceção que Johan Huizinga lhe confere (2012, p. 3-31, 217-236), em tempos

enfermos como os nossos que padecem de depressão e da síndroma de burnout enquanto

sintomas de uma crise profunda da liberdade (HAN, 2014, p. 12), nossa resposta, já

prefigurada ao longo do presente estudo, é pessimista pela simples razão de que a arte da vida

contemplativa e da virtude parecem ser cada vez menos alcançáveis. Todavia, nem por isso

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devemos idealmente deixá-las de querer atingir, ainda que para tal, à semelhança de Orfeu,

tenhamos que descer ao mundo ctónico e sombrio de Hades para lhe implorar que liberte

Eurídice, aqui encarada como metáfora da “Vida Boa” e, por que não, de um “Bem Viver”!

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A natureza e o imaginário no ethos jornalístico

The nature and the imaginary in the journalistic ethos

La nature et l'imaginaire dans l'ethos journalistique

Carlos DOMINGUEZ1

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil

Resumo A aproximação das leis da natureza não opera apenas nas técnicas científicas. Buscamos, assim, a relação das teorias do imaginário de Gilbert Durand e o que Levi-Strauss escreveu sobre o pensamento selvagem. Por conta disso, consideramos que o ethos jornalístico necessita outro olhar sobre a natureza e os saberes tradicionais para recuperar sua sintonia com a sociedade e os valores da atualidade, distintos do que era pregado na modernidade. E, assim, o ethos jornalístico é mais que valores impregnados na narrativa do progresso científico. Marx fundamentou sua concepção materialista da natureza, que permitiu o desenvolvimento do saber ambiental contrário à dominação capitalista. E esta percepção tem de estar embebida no imaginário e na simbolização da natureza no indivíduo. Por isso, as relações jornalísticas estão no fundamento do social na emoção do amor. Palavras-chave: natureza; ethos; jornalismo; imaginário. Abstract: The approximation of the laws of nature does not operate only in scientific techniques . We seek , therefore, the ratio of imaginary theories of Gilbert Durand and what Levi -Strauss wrote about the wild thought. Because of this , we believe that the journalistic ethos needs another look into the nature and traditional knowledge to recover your harmony with society and the current values , different from what was preached in modernity. And so the journalistic ethos is more than impregnated values in the narrative of scientific progress . Marx based his materialist conception of nature, which enabled the development of environmental knowledge contrary to capitalist domination. And this perception must be steeped in the imagery and symbolism of nature in the individual. So the news in the social relations are the basis of the emotion of love. Key words: nature; ethos; journalism; imaginary. O pensamento selvagem

Onde está à cabeça dos narradores do cotidiano de hoje, repórteres de ofício? Quais os

valores que compõem o ethos destes repórteres que buscam desvendar mistérios do mundo de

hoje? O que a natureza, um rio e suas águas podem irrigar no imaginário de um repórter ao 1 [email protected]

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falar de saberes da relação do homem com o natural, com si mesmo, com esta parcela de seu

ser expresso no outro? Como compartilham saberes um repórter de uma grande cidade e um

ribeirinho que vive próximo a um rio e tem sua vida ameaçada por um projeto de criação de

uma hidrelétrica? Se os termos de Levi-Strauss fossem usados por um teórico do jornalismo

ele diria que é necessário que o jornalista de vazão ao seu pensamento selvagem e não apenas

ao pensamento científico. Tem de haver emoção, não só razão. Assim, este ofício fruto da

modernidade científica e racional poderia também dar conta de ser um “método” que

conseguisse com maior sucesso abarcar os dilemas ambientais mundiais, como a construção

de grandes hidrelétricas e a inundação e destruição de florestas. É uma questão de pontos de

vista: “O pensamento selvagem é lógico no mesmo sentido e da mesma maneira que o nosso,

mas da forma como somente o nosso é quando aplicado ao conhecimento de um universo em

que reconhece simultaneamente propriedades físicas e propriedades semânticas” (LEVI-

STRAUSS, 1961, p.296)

Buscamos em Levi-Strauss a sabedoria de reconhecer a pensamento selvagem como

um pensamento tão necessário ao ser humano como o pensamento científico. Coube ao

antropolólogo apontar, em parte, para a busca de uma solução ao paradoxo entre o

pensamento científico da modernidade eurocêntrica e o pensamento dos povos ditos

primitivos pelos teóricos europeus. Diz Levi-Strauss sobre o período neolítico e o paradoxo

em relação ao pensamento moderno e científico:

“O homem neolítico ou da proto-história foi, portanto, o herdeiro de uma longa tradição científica; contudo, se o espírito que o inspirava, assim como a todos os seus antepassados, fosse exatamente o mesmo que o dos modernos, como poderíamos entender que ele tenha parado e que muitos milênios de estagnação se intercalem, como um patamar, entre a revolução neolítica e a ciência contemporânea?” (LEVI-STRAUSS, 1961, p.30)

Para o autor, o pensamento selvagem é o “substrato de nossa civilização” (LEVI-

STRAUSS, 1961, p.31). E o paradoxo só tem uma solução possível: existem ao mesmo tempo

dois modos distintos de pensamento científico, “um muito próximo da intuição sensível e

outro mais distanciado”. Os dois, porém, não possuem valores maiores ou menores nem tem

uma evolução cronológica. Ao assumir seus pontos de vista como parcelas de formas de

conhecimento distintas sobre uma mesma realidade, a ciência (ou o jornalismo) aceita sua

parcialidade e pode, assim, retomar uma aproximação abandonada há centenas de anos com o

pensamento selvagem e sua maneira peculiar de visualizar o mundo por imagens e não pelas

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faculdades da razão.

O próprio pensamento selvagem é intemporal, ele quer apreender o mundo, como

totalização sincrônica e diacrônica ao mesmo tempo, e o conhecimento que dele toma se

assemelha ao que oferecem num quarto espelhos fixos em paredes opostas e que se refletem

um ao outro (assim como aos objetos colocados no espaço que os separa) mas serem

rigorosamente paralelos. Forma-se simultaneamente uma multidão de imagens, nenhuma das

quais é exatamente parecida com as outras. (LEVI-STRAUSS, 1961, p.291)

Assim, Levi-Strauss introduz o conceito de imagines mundi, maneira como o autor

exemplifica como o pensamento selvagem aprofunda seus conhecimentos sobre as coisas.

Afirma ele: “O pensamento selvagem aprofunda seu conhecimento com o auxílio de imagines

mundi. Ele constrói edifícios mentais que lhe facilitam a inteligência do mundo na medida em

que se lhe assemelham. Nesse sentido, pôde ser definido como pensamento analógico. Mas

nesse sentido ele se distingue do pensamento domesticado, do qual o conhecimento histórico

constitui um aspecto” (LEVI-STRAUSS, 1961, p.291). Ficam, deste modo, diferenciadas e,

também aproximadas, as noções destas formas de pensamento, o selvagem e o científico. De

fato, um pertence ao outro. Tem a mesma origem e estão dentro da multiplicidade de

possibilidades do ser humano apreender aspectos das suas relações com o natural. As

percepções apontadas por Levi-Strauss sobre a ciência da modernidade nos parecem

perfeitamente aplicáveis às questões levantadas hoje sobre as teorias da informação e o

jornalismo. Diz o antropólogo que “Para que uma teoria da informação pudesse ser elaborada,

sem dúvida era indispensável que se descobrisse que o universo da informação era uma parte

ou um aspecto do mundo natural. Mas, uma vez demonstrada à validade da passagem das leis

da natureza às informações, isso implica a validade da passagem inversa: aquela que, há

milênios, permite aos homens aproximarem-se das leis da natureza pelos caminhos da

informação.” (LEVI-STRAUSS, 1961, p.297). Ou seja, a aproximação das leis da natureza

não opera exclusivamente por meio de técnicas científicas. Este é o percurso teórico. E, assim,

o ethos jornalístico é bem mais que isso.

Comecemos pelo aforismo de Heráclito: “Ethos antropou daimon”. Heráclito, filósofo

pré-socrático (500 a.C.), uniu as duas palavras no aforismo 119 (SODRÉ, 2002, p.82-83). As

traduções são inúmeras. Para o teólogo Leonardo Boff (2003), Heráclito deixou para trás o

sentido convencional das palavras e captou sua significação escondida: “morada (ethos) acaba

sendo a ética e o anjo bom (daimon), a inspiração para sua vivência”. Propõe Sodré (2002)

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que a palavra ethos, de onde deriva Ética, serve para designar a instalação humana em um

espaço. Argumenta Sodré que o fragmento de Heráclito já teve diversas traduções: “o caráter

do homem é o seu deus ou o seu demônio”; “Deus é morada do homem” (J.P. Vernant); “O

homem mora nas imediações dos deuses” (Heidegger). Diz Sodré (2002, p. 82-83) que

“introduz-se aí o sentido de 'morada'. Isto quer dizer que o homem, enquanto atravessado pelo

transe de sua origem e seu destino, relaciona-se radicalmente com o sagrado”

Para Carneiro, aluno de Heidegger, a tradução do fragmento é “a morada do homem é

o extraordinário”. E o extraordinário seria Sócrates, o filósofo que nunca deixou de escutar

seu daimon. Assim entende Oliveira (2010, p. 36) ao propor que “O termo daimon da

sentença de Heráclito, explicitado pela tradução de Carneiro Leão como extraordinário, tem

na figura de Sócrates aquele que encarna em vida a prática da escuta do divino, relacionando-

se com ele da maneira mais apropriada ao homem: no pensamento”.

Esta sentença acima é vital para buscarmos um entendimento do que seria o ethos no

jornalismo. Recuperando temos que: “aquele que encarna em vida a prática da escuta do

divino (...) relacionando-se (…) no pensamento”. O pensar. O extraordinário pensar. Pensar

para escutar o divino. Para ter, obter e receber inspiração. Para ter saber. Para duvidar do que

aí está dado. Para indagar. Para questionar os mais poderosos hábitos e costumes, práticas e

técnicas, leis e reis. De tanto questionar, Sócrates teria sido condenado à morte. O filósofo da

pergunta incansável e da fala incessante. Atitudes que poderiam muito bem fazer parte dos

atributos de um jornalista. O pensar e o falar sobre o que é pensado, o questionar são

características da virtude grega que se manifestam em uma prática inspirada pelo divino. O

homem enquanto atravessado pelo transe de sua origem e seu destino.

Em se tratando de princípios e/ou valores que são específicos de um determinado

grupo de uma dada sociedade, e sendo estes mesmos valores indispensáveis para a execução

de uma ação única e rotineira, temos a permanência e acúmulo de saberes que vão sendo

preservados na memória social. É o que Sodré chama de ethos na acepção moderna do termo.

“O ethos de um indivíduo ou de um grupo é a maneira ou jeito de agir, isto é, toda a ação

rotineira ou costumeira que implica contingência, quer dizer, a vida definida pelo jogo

aleatório de carências e interesses, em oposição ao que se apresenta como necessário, com

deve ser” (SODRÉ, 2008, p.46). Para Sodré (2008), a noção de ethos advém de duas

Categorias – forma social (Georg Simmel), forma de vida (Wittgenstein), podendo ser

detalhada como ambiente cognitivo que o dinamize, unidade dinâmica de identificação de um

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grupo, modo de relacionamento com a singularidade própria. No ethos atuam a forma social e

a de vida, como formas simbólicas que, historicamente, orientam o conhecimento, a

sensibilidade e as ações do indivíduo. O uso cotidiano da expressão na área do Jornalismo,

porém, firmou como sentido principal essa conceituação complexa (MORIN, 1988). Este

costume, este modo de fazer de acordo com determinados valores - falando sobre o

Jornalismo - foi se estabelecendo com o passar dos tempos, de acordo com as interações

sociais dos jornalistas e a sociedade onde atuavam. A civilização grega, em seu período

clássico, era oral. Quem imortalizou a cultura grega foram o aedos, poetas que cantavam os

versos dos autores. Quando os romanos passam a usar o papiro egípcio, por volta do século X,

para escrever a Acta Diurna, um documento periódico que informava a vida política e social

do Senado Romano, já é possível falar em uma espécie de jornalismo (GALVANI, 2008). Não

conhecemos muito da vida dos que produziam a Acta Diurna. De acordo com Pena (2013), foi

à invenção da imprensa dos tipos móveis, em 1040, na China, e sua popularização na Europa,

por Gutemberg, que levou as cidades comerciais e já de alguma vida urbana, como Veneza, a

criarem as letteri d'avisi, embriões das gazetas que ao adquirirem periodicidade vieram se

tornar o que hoje chamamos jornais. Estes mesmos jornais, de acordo com Shudson (2010),

duzentos anos depois, foram os responsáveis por adotar em 1870 o uso da notícia como

principal formato de veiculação de informações. Informações do cotidiano. Do dia a dia. Da

política, sim, mas também da polícia, do esporte e também, inevitavelmente, da economia.

Havia um ambiente propício para o nascimento do jornalismo moderno dentro dos sistemas

sociais capitalistas republicanos. Como bem observa Alsina (2009, p. 46), sobre a construção

social da realidade e, por conseguinte, da notícia, é ela um processo “ao mesmo tempo, social

e intersubjetivamente construído”. Diz Alsina que a atividade jornalística tem um papel

socialmente legitimado para gerar construções da realidade publicamente relevantes.

Como no ethos do jornalista, atuam hoje formas simbólicas que, historicamente,

orientam o conhecimento, a sensibilidade e as ações desse indivíduo que opera na construção

da realidade por meio da imprensa na produção, circulação e consumo de notícias? É o que

pretendemos equacionar mais adiante. Por hora, podemos dizer que este ethos nunca é o

mesmo. Os daimon nem sempre foram escutados. Muitas vezes até foram silenciados,

individualmente ou coletivamente.

E a natureza. Para relacionarmos a natureza com o fazer jornalístico vamos retroceder

ao nascimento da modernidade capitalista e a análise de Karl Marx sobre a relação do homem

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com a natureza mediada pelo trabalho. Foi em O Capital que Marx demonstrou que sua

concepção materialista da história estava integrada com a concepção materialista da natureza.

Para fazer esta trajetória nos apoiaremos fundamentalmente na obra de Foster (2005), A

Ecologia de Marx. O autor inglês, pesquisador da obra de Marx, esclarece que, a crítica mais

comum dirigida pelos ambientalistas contra Marx, é a acusação de que Marx teria tido uma

visão “prometeica” e “produtivista” da história.

O que parece é que o ambientalismo autêntico [...] exige nada menos que a rejeição da própria modernidade. A acusação de ter um caráter prometeico, é, portanto, uma maneira indireta de marcar a obra de Marx, e o marxismo como um todo, como uma versão extrema de modernismo, mais facilmente condenada neste particular do que o próprio liberalismo (FOSTER, 1997, p. 162).

Segundo Foster, no entanto, “a visão de mundo de Marx era profundamente – e na

verdade sistematicamente – ecológica (em todos os sentidos positivos em que se usa o termo

hoje) e que esta perspectiva ecológica era derivada de seu materialismo” (FOSTER, 2005,

p.9). O que ficava claro na obra de Marx, afirma Foster, era que “a humanidade e a natureza

estavam inter-relacionadas e que a forma específica das relações de produção constituía o

âmago dessa inter-relação em qualquer dado período” (FOSTER, 1997, p.165). E cita o

próprio Marx para ilustrar o seu pensamento:

O homem vive da natureza, isto é, a natureza é o seu corpo, e tem que manter com ela um diálogo ininterrupto se não quiser morrer. Dizer que a vida física e mental do homem está ligada à natureza significa simplesmente que a natureza está ligada a si mesma, porque o homem dela é parte (MARX, apud FOSTER, 1997, p. 165).

Para Foster, é necessário o esforço de um aprofundamento da crítica ao marxismo, em

especial daquela que afirma a pouca afinidade da teoria de Marx com a ecologia. Marx, de

acordo com a obra de Foster (2005, p. 85), foi “profundamente influenciado pelo

materialismo não determinista que ele achava ter encontrado em Epicuro”. Este pensador

grego, que foi o objeto da tese de Marx em 1842, tem como sua grande obra Sobre a

Natureza, onde o filósofo critica o determinismo de Empédocles e Demócrito. “Os

acontecimentos que os seres humanos ocasionavam da liberdade humana, não da mera

necessidade. Nem do mero acidente” (FOSTER, 2005, p. 85). Se para Demócrito a

necessidade era tudo, Epicuro reconhece três coisas: “o acaso, a contingência e a

possibilidade de liberdade”. (FOSTER, 2005, p. 82). A essência do pensamento de Epicuro se

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manteve na obra posterior de Marx, onde desenvolveu a crítica da sociedade em que vivia.

Não é a realidade da humanidade viva e ativa com as condições naturais, inorgânicas, da sua troca metabólica com a natureza, e daí a sua apropriação da natureza, que requer explicação ou é resultado de um processo histórico, mas a separação entre estas condições inorgânicas de existência humana e esta existência ativa, uma separação que só é postulada na relação trabalho assalariado com o capital.” (MARX, Grundrisse, apud FOSTER, 2005, p. 13)

Neste ponto, compreendemos que a questão é o trabalho, sendo ele que promove o

afastamento progressivo do homem da fruição da natureza. Tais fundamentos dos escritos de

Marx sinalizam para uma visão crítica da organização social do trabalho na sociedade

capitalista que vivenciamos até hoje. Deste modo, “des-envolver é tirar o envolvimento (a

autonomia) que cada cultura e cada povo mantém com seu espaço, com seu território”

(PORTO-GONÇALVES, 2012, p. 81). Do lado de lá a natureza, besta-fera a ser dominada.

Do lado de cá, a ferramenta de dominação, a razão tecnocientífica ocidental. Nesta polaridade,

o que não era progresso, era considerado atraso e ignorância. Este senso comum, porém, não

permite verificar outras nuances do próprio jornalismo e seus próprios valores. Existem,

portanto, outros aspectos a serem considerados, como a essência do humano, valores que

afirmam, do nosso ponto de vista, na concepção do jornalismo como uma forma de

conhecimento. Neste sentido, Foster demonstra que a teoria marxista não tem

incompatibilidade com a proposição de soluções da crise ambiental planetária. Muito pelo

contrário. Karl Marx não é, para Foster, um pensador “prometeico”, que se dobra ao mito do

progresso do iluminismo científico. Marx é um pensador materialista na tradição do grego

Epicuro, dialético, uma vez que a relação do homem com a natureza é central no seu

pensamento por ser o ponto inicial para tratar da relação homem e trabalho e também por

conta da “falha metabólica” na relação do homem com a natureza por conta da organização

social capitalista. Para os materialistas, a vida nascia da terra, em vez de descer dos céus.

Aponta Foster (2005) o direcionamento no pensamento de Epicuro: nenhum determinismo ou

essencialismo – isto é, acontecimentos baseados na mera propriedade das coisas – poderia

explicar 'acontecimentos' que estavam 'feitos', segundo Epicuro, porque tais 'acontecimentos'

pertenciam ao reino do acidental (contingência).

Gostaríamos de destacar a seguir a questão do conceito de falha metabólica, central na

obra de Marx e decisivo para esta visão do ambientalismo e sua relação com o jornalismo e

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seu ethos.

A falha metabólica

Stoffwechsel, a palavra alemã para metabolismo, é uma das categorias conceituais da

análise teórica de Marx – e implica uma noção de “troca material” subjacente à noção dos

processos biológicos estruturados de crescimento e decadência, englobados pelo termo. Foi

usado na definição do processo de trabalho em geral, para descrever a relação do homem com

a natureza através do trabalho:

O trabalho é, antes de qualquer coisa, um processo entre o homem e a natureza, um processo pelo qual o homem, através das suas próprias ações, medeia, regula e controla o metabolismo entre ele e a natureza. Ele encara os materiais da natureza como uma força da natureza. Ele põe em movimento as forças naturais que pertencem ao seu próprio corpo, aos braços, pernas, cabeças, mãos, a fim de apropriar os materiais da natureza de uma forma adaptada às suas próprias necessidades. Através deste movimento, ele atua sobre a natureza externa e a modifica, e assim, simultaneamente altera a sua própria natureza... Ele (o processo de trabalho) é a condição universal da interação metabólica (stoffwechsel) entre o homem e a natureza, a perpétua condição da existência humana imposta pela natureza. (FOSTER, 2005, p. 221)

Esta noção é apresentada por Marx como um conceito central de “falha” na “interação

metabólica entre o homem e a terra”, isto é, “metabolismo social prescrito pelas leis naturais

da vida”, através do “roubo” ao solo de seus elementos constitutivos, exigindo a sua

“restauração sistemática”. Esta contradição se desenvolve através do crescimento simultâneo

da indústria e da agricultura, ambas de larga escala, sob o capitalismo, com a primeira

oferecendo a segunda os meios para a exploração intensiva do solo. Marx argumentava que o

comércio de longa distância dos alimentos e das fibras para o vestuário tornava o problema da

alienação dos elementos constitutivos do solo muito mais que uma “falha irreparável”.

Explica Foster que a noção de metabolismo e sua falha foram utilizadas por Marx aplicada ao

social: “A grande questão, todavia, é o modo como esse sistema é regulado, sobretudo no caso

da sociedade humana. No caso de Marx, a resposta era o trabalho humano e seu

desenvolvimento dentro de formações sociais historicamente específicas” (FOSTER, 2005, p.

228).

E o metabolismo de um sistema social vivo? Como se regula? Pela informação e não

mais pelo trabalho! Seria esta uma variação a ser verificada. Mas não seria mais correto dizer

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pelo trabalho para obter uma determinada informação? E este trabalho para obter uma

determinada informação não é uma descrição precisa do trabalho jornalístico? Assim, a

regulação do sistema pela interação metabólica está, hoje, ainda, sujeita a mesma falha

descrita por Marx, uma vez que vivemos dentro de um sistema capitalista. Foster (2005)

indica que sim. E considera que os ramos mais atuais do pensamento ambiental optaram por

propor que a sociedade se organize por meio de produtores associados, rompendo com o

modo de produção típico do capitalismo.

Para Marx, uma parte crucial da sua concepção materialista de natureza, isto é, à sua base na história natural – sempre foi o modo como a alienação da terra se havia desenvolvido em relação a alienação do trabalho – problema hoje tratado pela etnoecologia radical (e pela ecologia materialista cultural de um modo mais geral). O mais importante a ser enfrentado pela sociedade de produtores associados, Marx enfatizou reiteradamente na sua obra, seria tratar do problema da relação metabólica entre seres humanos e a natureza, sobre as condições industriais mais avançadas prevalentes na esteira da crise revolucionária final da sociedade capitalista. (FOSTER, 2005, p. 304)

Por muito tempo a modernidade foi referenciada incansavelmente como o bordão do

progresso tecnológico, na mídia e além dela. Uma redução de um imaginário complexo, em

que sonhos, desejos e realizações portam contradições que buscam um equilíbrio, a apenas um

dos seus aspectos, tornado necessário, incontornável – o progresso. Uma noção de progresso

limitada que era alimentada diariamente jornalismo. Neste ponto, o jornalismo enquanto

empresa capitalista de venda de informações manter-se-ia ao lado das forças progressistas

técnico-científica. Este senso comum, porém, não permite verificar outras nuances do próprio

jornalismo e questioná-los em seus próprios sofismas.

O jornalismo é, então, uma ação cultural do ser humano que adaptou a prática de

informar mutuamente a necessidades inerentes do ser humano enquanto ser social. Esta

necessidade de dar voz ao daimon teve muitas alterações no tempo histórico. Com o advento

da imprensa moderna, o fazer obteve uma repercussão crescente dentro dos regimes

democráticos republicanos nas sociedades ocidentais, cada vez mais urbanizadas e com

civilização centrada em valores técnicos, científicos e de capital. Longe de ser, entretanto,

uma estrada aberta para o progresso do futuro, esta trajetória é sinuosa. E mais. No seio de

toda a reflexão moderna repousam no imaginário social do jornalista os mitos ancestrais da

necessidade de dar voz aos afetos e sentimentos. De ligar os acontecimentos frios ao calor de

vidas múltiplas. O que foi sendo integrado ao ethos moderno do jornalismo era colado no

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painel das redações um dia como mantra e no dia seguinte já era passado. O caráter de

oscilação e variação demonstrava a sintonia dos jornalistas com sua sociedade, plurais nos

pensares e saberes. A relação orgânica dos saberes jornalísticos com as demandas sociais das

épocas foram se sucedendo. O nascimento da imprensa-negócio na modernidade trouxe

valores arcaicos e os mesclou com atualidades do sistema capitalista. Para o bem e para o mal.

E trouxe as falhas do sistema para a discussão pública. Ao invés de ser monolítica, a imprensa

se construiu pelo trabalho de homens e mulheres que a usaram para fins múltiplos, como um

grande canal de discussão pública de questões importantes para dadas organizações sociais.

Diluídos em uma infinidade de mensagens jornalísticas diárias – as notícias - os valores

presentes neste ethos de obter e divulgar informações são constantemente construídos,

analisados, comparados, aplicados e até substituídos por outros valores. Na mesma medida, o

passado e as práticas mais antigas são recuperadas e reposicionadas no universo simbólico

que rege as práticas jornalísticas. Assim, episodicamente, surgem valores outros, novos,

oriundos de situações inéditas e imponderáveis que exigem definição de ações culturais. E

assim, os discursos jornalísticos são renovados. E seu ethos profissional tem momentos de

busca do extraordinário, onde brilha o daimon do jornalista que executa o impensável e

destrói verdades. Momentos estes que se intercalam com retrocessos onde os poderes

constituídos da política, da economia, da religião, da guerra e da técnica obscurecem o contato

do jornalismo com o social e silenciam o daimon.

Antes, porém, é preciso detalhar a questão do ambientalismo e a complexidade. Estes

dois saberes produziram para o mundo do século 21 uma forte crítica e contestação às

posições estabelecidas pela modernidade. Podemos aqui estabelecer que o pensamento

ambiental tem em seu interior um valor de crítica ao capitalismo que bebe nas fontes de Marx.

Não é só isso. A questão da complexidade da crise ambiental forçou a inclusão nesta crítica de

outras variáveis e conceitos.

O ambiental e a complexidade no Jornalismo

Um dos autores que fez sua trajetória teórica saindo de uma filiação inicial a

perspectiva marxista e, hoje, abre seu referencial para buscar estabelecer uma outra

epistemologia ambiental é o mexicano Enrique Leff. Este autor aborda as questões ambientais

da atualidade fazendo o percurso teórico que demonstra a existência da contradição inicial do

capitalismo e o trabalho, apontada por Marx, mas também inclui uma segunda contradição

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elementar, a da natureza versus o capitalismo. Utilizando o legado da análise crítica de Marx e

de seus seguidores, como Althusser e Lukacs, o pesquisador mexicano inclui o legado do

pensamento teórico da pós-modernidade para articular com o saber ambiental a complexidade

proposta por Morin (1986), as questões da diferença propostas pelo pensador francês Derrida

e de diversidade e de outridade de Levinas. Leff colheu frutos também nos jardins de saber de

Bachelard e Foucault. O que Leff propõe é a criação de uma nova racionalidade, fruto da

relação direta destes saberes.

A racionalidade ambiental abre caminho para superar a estrutura social estabelecida e os paradigmas de conhecimentos instituídos. A sustentabilidade é um propósito que está além das capacidades das ciências e da tecnologia para reverter à degradação ecológica e gerar crescimento sustentável. (LEFF, 2012, p. 118).

A equação em busca de uma sustentabilidade da diferença, da diversidade e da

outridade passa pela mobilização de novos atores políticos, entre eles os jornalistas,

“orientados por valores e saberes incorporados em suas identidades culturais” (LEFF, 2012, p.

119). Assim, é necessário pensar uma nova dialética. Leff advoga por uma dialética social que

emerge do diálogo de saberes. Este percurso teórico vale ser recuperado. E está em nosso

entender diretamente ligado à proposição de um ethos diferenciado para o jornalismo do

século 21. Comecemos pela racionalidade ambiental:

A racionalidade ambiental inclui novos princípios teóricos e meios instrumentais para reorientar formas de manejo produtivo da natureza. Esta racionalidade fundamenta-se em valores (qualidade de vida, identidades culturais, sentidos da existência) que não aspiram a alcançar uma condição de cientificidade. (LEFF, 2012, p. 50).

Assim, de acordo com a proposição de Leff, o capitalismo instaura uma racionalidade

“antinatura” que tem um custo na natureza a qual incrementa a “produção de entropia” por

meio da degradação ambiental. Tem o capitalismo uma primeira e vital contradição insolúvel

entra a ecologia e o capital. E também uma segunda contradição que se estabelece entre a

primeira (relações de produção e forças produtivas, ou seja, exploração da força de trabalho

pelo capital) e as “condições sociais de produção”, estas relacionadas por uma dialética do

social (LEFF, 2012, p. 97). A segunda contradição, que foi sendo elaborada por teóricos

ambientais desde 1980, é

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Pensada para inscrever a natureza na perspectiva da reestruturação das condições de produção e das relações sociais no capitalismo induzidas pela crise ambiental, mas não para encarar as contradições depois que o capitalismo se ecologiza-se, depois que internalizasse essas condições emergentes. (LEFF, 2012, p. 97-98).

O que Leff chama de internalização são as inúmeras tentativas de empresas

multinacionais de aumentar seu faturamento e acumulação de riquezas pelo uso de

instrumentos como o marketing verde que cria discursos de desenvolvimento sustentável para

atividades industriais extremamente degradantes do ambiente e de altíssimo impacto nos

sistemas biológicos ainda preservados. Um exemplo que serve bem a esta tese é o discurso da

“energia limpa” que os governos e construtoras de usinas hidrelétricas produziram. Nada mais

falacioso. Este discurso, no entanto, segue sendo proferido, como vemos na análise do

noticiário sobre os projetos das hidrelétricas de Garabi e Panambi, projetadas para serem

construídas no Rio Uruguai, entre o Brasil e a Argentina, por especialistas, políticos,

empresários e membros do staff das empresas públicas de energia do Brasil e da Argentina.

Jornalistas dos veículos dos dois países reproduzem a exaustão2. É o discurso presente nas

fontes usuais e oficiais que conferem uma hipotética credibilidade às notícias. Entretanto,

dentro do circuito de cientistas e especialistas no tema de hidrelétricas não faltam vozes que

proferem um discurso distinto e apontam que não há nada de limpo na geração de energia por

meio de hidrelétricas.

Constata-se neste ponto que a atual sociedade complexa não pode ser entendida na

dualidade da oposição de uma antítese ou a negação de uma proposição, como no caso da

colocação do capital em oposição simples à ecologia, o que para Leff é apenas uma lembrança

do que estava oculto e encoberto pela “presença positivista do capital” que significa todo o

discurso contrário a ele como de “fora da realidade” pela racionalidade dominante. É

interessante destacar que outro discurso é possível: “a natureza fala através dos processos de

significação, interpretação e apropriação social da natureza”. Ou seja, a natureza fala pela voz

dos que vivem nela e com ela. A voz dos ribeirinhos é a voz do rio. É uma voz que existe nos

saberes distantes da modernidade. É uma voz que identifica a mescla de culturas e povos que

2 Em nossa pesquisa de tese junto ao PPGCOM da UFRGS, a ser defendida ao final de 2015, desenvolvemos a análise de jornais regionais do Brasil e Argentina que tratam do tema da construção de hidrelétricas no Rio Uruguai, na fronteira entre os dois países. Como conclusão parcial, até o momento, podemos dizer que a presença de fontes oficiais nos noticiários é predominante, sendo que a voz dos moradores ribeirinhos é silenciada no noticiário. Parte do instrumental de análise é a questão das intersecções dos conceitos de ethos jornalístico, natureza, ambientalismo e discurso, que apresentamos neste artigo.

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ocupam a região há 20 mil anos. É uma voz polissêmica, repleta de sentidos e depositária de

múltiplas racionalidades. Ouvir a natureza falar é um valor essencial à composição de um

ethos jornalístico.

Para ouvir a natureza, o jornalista necessita ter outras vozes em seus ouvidos. A

ecologista, filósofa e física, Vandana Shiva, que liderou um movimento de mulheres na Índia

para impedir o desmatamento de grandes florestas, permitindo a preservação dos saberes

ancestrais das comunidades, há diferença entre os saberes presentes nas lógicas das

racionalidades científicas tradicionais e os saberes ancestrais. Em uma comunidade no

Himalaia o espírito da ciência local sobre as florestas era definido na seguinte frase: “O que as

florestas produzem? Solo, água e ar puro”. Junto ao setor industrial da comunidade comercial

do local a questão era respondida da seguinte forma: “O que as florestas produzem? Lucros

com resina e madeira” (SHIVA, 2003, p. 17). Por conta da percepção destes diferentes

sentidos nos discursos, o movimento ecológico das mulheres garhwalis, denominado Chipko,

passou a não reproduzir apenas o conflito, mas a disseminar um saber científico de uma

relação filosófica com a natureza distinta da dominante. Novos sentidos foram formulados e

colocados em circulação pelo discurso. Para evitar que a cultura vire apenas comércio. Edgar

Morin, falando sobre o pensamento duplo, diz que:

Nossos ancestrais caçadores-coletores que, no curso de dezenas de milhares de anos desenvolveram as técnicas da pedra e elaboraram depois as do osso e do metal, dispuseram e usaram em suas estratégias de conhecimento e de ação um pensamento empírico / racional / lógico e produziram, ao acumular e organizar um formidável saber botânico, zoológico, ecológico, tecnológico, uma verdadeira ciência. (MORIN, 1986, p.167).

Todo este aparato foi ignorado pelos primeiros antropólogos e tal pensamento

excludente permanece arraigado em setores da academia e nos saberes que julgavam possuir a

chave de toda a racionalidade. A racionalidade não é uma só. É múltipla. Assim como a

cultura que é criada pelo pensamento. E assim também é o jornalismo, produção de

conhecimento, ação cultural oriunda de pensamentos de indivíduos inseridos no social-

natural. O jornalismo é múltiplo para ouvir as múltiplas vozes dos que falam a voz múltipla

da natureza.

Aqui, minha atenção retorna à questão do ethos jornalístico. É aqui que as

complexidades se cruzam, na formação de sentidos baseada em valores oriundos de uma

determinada forma de relação com o social, a ser exercida por um trabalho que não pode

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ignorar a questão da natureza e se voltar apenas para o capital, sob pena de perder seu vínculo

fundamental, fundador e que determina o que é ser jornalista. Se há uma falha metabólica na

relação do homem com a natureza por meio do trabalho, produzindo contradições no próprio

sistema de produção capitalista e nas relações sociais, não pode haver o silenciamento destes

embates no discurso jornalístico. Acredito que este ponto é primordial para o entendimento do

jornalismo enquanto uma ação cultural única e, por essência orgânica de origem, uma forma

de trabalho colaborativa. Colaborativa entre os próprios jornalistas e entre os jornalistas e a

sociedade de onde estes se originam e com a qual acontece uma interação cotidiana, mediada

sim por interesses outros, interesses de ordem do capital, que no atual momento, precedem os

conceitos fundadores do jornalismo e transformam a atividade, originalmente crítica, em um

modelo de manutenção do status quo do modo capitalista, operando no silenciamento de

vozes outras. Ao camuflar as diferenças, alteridades e outridades, o trabalho jornalístico forma

sentidos que inibem a polissemia da natureza e, consequentemente, do social.

Entendemos que não é possível separar a crise ambiental mundial da questão da

produção capitalista, onde a análise de Marx mantém-se atual na demonstração da falha

metabólica entre o homem e a natureza, muito embora o próprio Marx aponte que é o trabalho

que visa à acumulação de capital que de fato produz esta falha. A manutenção dos valores

simbólicos do domínio da natureza e o mito do progresso prometeico é uma característica do

capitalismo e não de quem o critica.

A questão da outridade perdida foi analisada por Morin que afirma a existência do

pensamento duplo em toda a história da humanidade, sendo composto em todos os modos de

conhecimento e de ações um “simbólico/mitológico/mágico” e outro

“empírico/técnico/racional”, encontrando-se os dois modos imbricados completamente em um

“tecido complexo” e, mesmo assim, com uma “distinção de fato”. Esta relação dialética entre

os dois modos do pensamento é, para Morin, “unidual”, ou seja, uno e duplo:

Hemos hablado de 'modo de conocimiento y acción'; ahora hay que emplear también el término de pensamiento, em el sentido em el que el pensamiento constituye el modo superior de las actividades organizadoras del espíritu que, em, por y a través del lenguage, institue su concepción de lo real y su visión del mundo. (MORIN, 1986, p.168).

Para Morin, a constituição do pensamento simbólico leva sempre em consideração esta

dualidade. E o que faz o jornalismo se não trabalhar com o pensamento simbólico, muito

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embora tenha sim sua parcela imprescindível de empírico/técnico/racional? Esta constatação

me leva a repensar mais uma vez o jornalismo como uma ação cultural humana que pode

atuar na “liberdade” do pensamento e da “imaginação”. Pode atuar, tem o potencial para

operar na experiência da linguagem de forma autoral para estimular a cooperação social e não

a destruição do tecido social pela exacerbação do individualismo e consumo irrestrito de

mercadorias como única finalidade da organização social. Esta relação é que tem de ser

construída pelo jornalista de um modo distinto ao que em grande medida se pode observar na

formulação cada vez mais voltada para o lado técnico da profissão. Pensamos que esta

tentativa está fadada ao fracasso. É importante, assim, pararmos para detalhar a experiência da

observação e da linguagem que a explica. Como muito bem coloca Maturana:

O ser humano é observador na experiência, ou no suceder do viver na linguagem. Porque se alguém não diz nada, não diz nada. A explicação se dá na linguagem. O discurso que explica algo dá-se na linguagem. Uma petição de obediência do outro, quando se faz uma afirmação cognitiva, dá-se na linguagem(...) nós, seres humanos, existimos na linguagem. (MATURANA, 2001, p. 20)

A percepção de muitos teóricos, ativistas, pesquisadores do ambientalismo da

atualidade é influenciada pelas proposições de Maturana e a pela divulgação de seu conceito

revolucionário de autopoiese, que já apresentamos anteriormente. Da mesma forma, para

pensarmos a questão do discurso e da linguagem, é importante manter o norte teórico que as

pesquisas de Maturana revelaram e que adotamos como embasamento para falar na

necessidade de ações de colaboração no jornalismo para que haja uma evolução do fazer

jornalístico, da mesma forma que o biólogo chileno usa para explicar o detalhamento da

história da evolução dos seres vivos. Para obter o conhecimento no jornalismo vivo, social,

cultural, humano é necessário colaboração.

No caminho explicativo da objetividade entre parênteses nossa corporalidade é nossa possibilidade, porque é nossa biologia. Este caminho nos abre um mundo de respeito por nós como seres vivos, porque nos damos conta de que aquilo que podemos fazer, podemos fazer na medida em que o fenômeno do conhecer é um fenômeno do vivo. (MATURANA, 2001, p. 31).

O conhecer pertence à esfera do vivo. E o jornalismo é uma forma de conhecimento. E

se a necessidade é incorporar a temática universal da crise ambiental, como um dos valores de

formação do sentido do fazer jornalístico, a visão apontada por Maturana se completa com os

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parâmetros colocados por Leff, Morin e Shiva anteriormente descritos. Maturana afirma que

não podemos ver o mundo com olhos que não incluam a emoção e a experiência da

objetividade que vislumbre as múltiplas realidades que um observador tem no seu cotidiano.

E não a experiência de uma objetividade que cria uma ilusão de poder universalizar um

domínio de conhecimento que seja independente do observador. Para Maturana, “o que nos

acontece é que, quando estamos no caminho explicativo da objetividade sem parênteses,

pretendemos poder fazer referência a uma realidade independente, e é a referência ao

independente de nós o que daria universalidade à nossa afirmação.” (MATURANA, 2001,

p.37). Para o biólogo chileno, no entanto, para buscar uma explicação do conhecer, o caminho

é outro. Está na interação social delimitada pela emoção:

Ainda, digo também que na medida em que as emoções fundam os espaços de ação, elas constituem os espaços de ação. Sim, não há nenhuma atividade humana que não esteja fundada, sustentada por uma emoção, nem mesmo os sistemas racionais, porque todo sistema racional, além disso, se constitui como um sistema de coerências operacionais fundado num conjunto de premissas aceitas a priori. E essa aceitação a priori desse conjunto de premissas é o espaço emocional. E quando se muda a emoção, também muda o sistema racional. (MATURANA, 2001, p. 37)

A constatação de que é na relação do emocional com o racional que se forma o sentido

das ações é importante se optamos por entender o jornalismo como uma ação cultural. É

necessário que o jornalismo faça uso do emocional. Pois, ao não fazê-lo, ou melhor dizendo,

ao alegar não fazê-lo em prol de uma objetividade inexistente, apenas consegue colocar-se em

uma posição artificial de distanciamento, onde prioriza um sistema de coerências operacionais

que se apoia na falha metabólica entre o homem e a natureza. Afasta-se assim o jornalismo de

sua essência mais cara: ser e estar no social, de forma dinâmica e atuante.

Em outras palavras, estou dizendo: o social é uma dinâmica de relações humanas que se funda na aceitação mútua. Se não há aceitação mútua e se não há aceitação do outro, e se não há espaço de abertura para que o outro exista junto de si, não há fenômeno social. As relações de trabalho não são sociais. As relações de autoridade não são relações sociais. Os sistemas hierárquicos, como um exército, por exemplo, não são sistemas sociais: são uma maquinaria de um tipo no qual cada pessoa deve fazer algo, mas não é um sistema social. (MATURANA, 2001, p. 37)

O social dinâmico proposto por Maturana, que está apoiado nas relações sociais

fundadas na emoção, leva a uma ética que tem o outro e suas diferenças como o princípio

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maior do existir e de preservação da vida e dos sistemas vivos biológicos. É a ética pela vida.

E mostra que o domínio da razão é apenas uma suposição conveniente de uma determinada

época da modernidade. Aproximando o pensamento de Maturana com o modo de fazer

jornalismo, podemos dizer que, por exemplo, a noção de critérios de noticiabilidade estaria

confortavelmente dentro desta reflexão sobre a ética. Com base em que escolhemos –

enquanto jornalistas – determinado assunto para ser publicado? Para responder a esta questão

surgiu à teoria dos critérios de noticiabilidade. São listados os critérios mais usuais como

interesse, novidade e abrangência, porém não é explicado como de fato estes operativos são

usados por quem define a notícia, no caso os jornalistas. No caso da cobertura jornalística da

obra de uma grande barragem no rio Uruguai, que permitirá a instalação de uma hidrelétrica,

o outro são os moradores da região que serão atingidos pela obra: os ribeirinhos. São pessoas

que estão fora do espaço de aceitação mútua dos jornalistas que produzem o noticiário. Estão

fora da ética. Estão fora do ethos. Estão silenciados discursivamente dentro da falha

metabólica que afasta o trabalho jornalístico da questão da natureza, pensada como parte do

ambiente necessário para a sobrevivência do ser humano como um animal social. Entre o

jornalista que cobre o acontecimento e os ribeirinhos do rio Uruguai não há aceitação mútua.

Se pensarmos o jornalismo como integrante dos sistemas vivos, estaremos no universo

das interações sociais. Para a biologia de Maturana, a história de um ser vivo é uma história

de interações que desencadeiam nele mudanças estruturais:

se não há encontro, não há interação, e se há encontro, sempre há um desencadear, uma mudança estrutural no sistema. A mudança pode ser grande ou pequena, não importa, mas desencadeia-se nele uma mudança estrutural. De modo que uma história de interações recorrentes é uma história de desencadeamentos estruturais, de mudanças estruturais mútuas entre o meio e o ser vivo, e o ser vivo e o meio. (MATURANA, 2001, p. 61).

Em não havendo interação social entre o jornalista e o ribeirinho, não há mudança

estrutural no sistema. Passa assim a ser o jornalismo praticado em um aparato que apenas

mantém as diretrizes do sistema, evitando, ao usar o silenciamento, a exposição de discursos

outros que pudessem colocar em contradição o sistema dominante que prioriza o interesse

comercial.

No meu entendimento, a definição de critérios de noticiabilidade, também chamados

de valores-notícia, resulta desta interação comentada por Maturana. Esta interação

transformaria em hábito e valores práticas e saberes por conta da recorrência no exercício da

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profissão, sua praxis, que no decorrer do tempo se fixam ou se alteram no ethos da profissão.

Porém, a ausência de interação, congela a práxis e produz um sentido único. A essência do

jornalismo teria caráter de influência mútua entre os homens de uma sociedade por se tratar de

uma interpretação do ser e do acontecer. É uma “ação cultural”, uma obra do pensamento

humano, que influencia no modo como percebemos a sociedade, e que esta intrinsecamente

ligada a valores humanísticos que determinam sua finalidade. Sua menor unidade - a notícia -

tem de impactar a sociedade ao tratar dos valores que esta sociedade considera, naquele

momento, essenciais para a manutenção da organização social, ou mais ainda, para a sua

evolução enquanto sistema ou organismo vivo. Aí o jornalismo tem o seu valor e finalidades

definidos como instrumento do saber humano, imaterial, que influencia e é por esta

influenciado. Ou seja, toda a nossa discussão acaba se encaminhando para a relação do saber

humano com a realidade. E como se dá a apreensão da realidade, do natural?

O diferencial nesta relação, para Maturana, é que não é possível separar a ilusão da

interpretação. Por isso, as relações sociais estão no “fundamento do social através da emoção

do amor” (MATURANA, 2001, p.48). Amores e afetos são para o biólogo o que de fato

interferem nos juízos éticos. No emocional é que nos aproximamos e entramos em contato

com os outros membros da nossa sociedade. Não são os preceitos da razão que possibilitam

uma ética de convívio, mas sim o amor. Recordando que para o autor, a partir do momento em

que assumimos que nenhum observador pode diferenciar entre uma percepção e uma ilusão

assume-se que é a operação do observador que define a semelhança. O critério de semelhança

ou equivalência é especificado na operação de distinção do observador. E esta operação de

distinção, para Maturana, estaria baseada na emoção, no amor. Fazemos juízos de valor pela

operação mental de distinção de semelhanças ou diferenças em ações culturais que nada mais

são do que as relações entre os indivíduos.

Somente existindo amor e emoções pela execução de uma pauta complexa e cansativa,

é que muitos jornalistas no mundo inteiro investigaram crimes contra o ser humano e, assim,

dignificaram a profissão e fizeram com que ela fosse aceita como uma faceta importante do

nosso arranjo social. Outros jornalistas – por fatores que não cabe enumerar agora e, sim,

mais adiante – não tiveram a mesma dose de amor ao ethos jornalístico. Refiro-me àquele

algo mais, indizível, o verdadeiro daimon a soprar na orelha do trabalhador do discurso que o

impele a continuar quando não há mais por que fazê-lo. Não se advoga a ideia romântica de

um trabalho quixotesco, mas sim o foco em obter um determinado conhecimento sobre um

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fato que é negado por instâncias detentoras de informação e poder. É a investigação

jornalística. É o trabalho de coleta e filtragem de dados. É a transformação de informações

brutas em um discurso coerente e contextualizado. No caso do Brasil, prefiro exemplificar

com o caso do repórter Randau de Marques que, em 1968, publicou uma série de reportagens

sobre a contaminação por produtos químicos de gráficos e sapateiros da cidade de Franca (SP)

e foi considerado subversivo pelo regime militar que dominava o Brasil. O trabalho de

Marques marcou época por se tratar de furo jornalístico envolvendo uma questão ambiental,

tema até então pouco usual na imprensa nacional. A ação do repórter produziu um retorno

social entre todos os trabalhadores que deixaram de ser contaminados. Para Maturana, as

operações de produção de conhecimento estão contidas na linguagem.

De modo que, para se dizer que há recursão, para se dizer que há linguagem, no caso das coordenações de ação, temos que fazer referência à história. O observador que diz isto tem que poder fazer referência à história. De modo que nenhum comportamento isolado, nenhum gesto, nenhum movimento, nenhum som, nenhuma postura corporal, por si só, é parte da linguagem. Mas, se está inserida no fluir de coordenações consensuais de ação, é parte da linguagem. (MATURANA, 2001, p. 59)

O fluir de coordenações consensuais é uma parte da linguagem. O fluir das águas é

uma imagem do natural. A linguagem do natural está expressa no fluir dos corpos. Na água,

voltamos ao útero. A água é um dos elementos vitais para a vida. É uma das essências do

natural. Ver a água faz com que possamos observar a nossa origem. E as narrativas da origem

são narrativas mitológicas. A linguagem do mito traz uma maneira de interpretar o mundo.

Uma das formas de linguagem para expressar o natural é o mito. Como Morin

apresenta a questão, o mito é “inseparável da linguagem e, como Logos, Mythos significa em

origem palavra, discurso” (MORIN, 1986, p. 173). No entender de Morin, os dois conceitos

nascem juntos na linguagem e depois se distinguem. “O pensamento mitológico tece

conjuntamente o simbólico, o imaginário e eventualmente o real” (MORIN, 1986, p. 174).

Esta tecitura mencionada por Morin nos interessa em especial. Buscamos neste trajeto

encordoar saberes que estão no território de interesse para a proposição de um ethos

jornalístico. Neste trajeto buscamos pensar o momento de efetivação de uma prática

jornalística e sua expansão mundial durante a modernidade. E a predominância do discurso

econômico como matriz dominante é claramente perceptível, no caso, um projeto binacional

de construção de uma hidrelétrica no rio Uruguai, na fronteira do Brasil com a Argentina.

A formação de um ethos jornalístico necessita da paixão e da emoção que o natural

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oferece ao pensamento humano, formando novas linguagens e outros discursos. Outros

saberes para outra leitura do mundo, onde não é mais o progresso econômico embasado na

ciência que domina a formação de sentidos. Deve se vista não como uma crise, mas como

uma nova chance de sintonizar com a maioria da população a arte de fazer jornalismo como

uma ferramenta de intervenção social em benefício do equilíbrio das condições de vida

mínimas, negadas hoje para mais de 1/3 dos habitantes da terra. Não basta apenas entender a

formação da vida como uma composição cooperativa da natureza. É preciso incluir uma

pequena partícula de outro imaginário na racionalidade ocidental. É necessário semear pelos

campos infindos do simbólico as leituras silenciadas do mundo, escanteadas com a

colonização da América para os rincões de fundo de mato que habitam os ribeirinhos da

civilização do futuro. Está imersão nas águas conduz o ser humano ao seu nascer, a sua fonte

de sentido, a miríade de sentidos possíveis. É levar a racionalidade ambiental ao um mergulho

profundo no mundo não-ocidental. O mundo do continente que mescla todos os povos. Da

terra de muitos. Do grito dos afogados.

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Mídia, imaginário e a relação com a responsabilidade social

Media, imaginary and the relationship with social responsibility

Médias, imaginaire et le rapport à la responsabilité sociale

Sueli FERREIRA SCHIAVO1 Universidade Paulista, São Paulo, Brasil

Resumo Este texto inserido no projeto de pesquisa da autora, reflete sobre a atenção que se deve ter às imagens técnicas veiculadas pelos suportes de mídia eletrônica, pelo caráter estruturante com que incidem sobre o imaginário, desencadeando pensamentos, simbolismos, vínculações com aprendizados da infância. Trata-se de uma revisão bibliográfica e documental fundamentada nos trabalhos de estudiosos que analisam sobre mídia, imagens e imaginário, tais como: Gilbert Durand, Malena Contrera, Norval Baitello Jr., Vilem Flusser, entre outros. O estudo levantou dados estatísticos e visões téoricas e analisou sobre o enfrentamento dessa atual situação que acontece no Brasil. Palavras-chave: mídia; imagens; imaginário; imaginação; criança.

Abstract This text is inserted in the author's research project, it reflects about the attention it should be given to technical images conveyed by supports of the electronic media, by the structural nature that they affect on the imaginary, triggering thoughts, symbolism, connections with childhood learning. It is a bibliographical and documentary review based on the works of scholars who analyze on media, images and imaginary, such as: Gilbert Durand, Malena Contrera, Norval Baitello Jr., Vilem Flusser, among others. The study raised statistical data and theoretical views and analyzed about facing this current situation that happens in Brazil. Key words: media; images; imaginary; imagination; child.

Introdução

O objetivo deste texto que constitui parte do projeto de pesquisa da autora é a reflexão

sobre a atenção que se deve ter às imagens técnicas, conforme definição de Flusser (2008) que

será apresentada mais adiante. As imagens técnicas são as veiculadas pelos suportes de mídia

eletrônica e possuem um caráter estruturante com que incidem sobre o imaginário,

desencadeando pensamentos, simbolismos, vínculações com aprendizados da infância e

culturais. Trata-se de uma revisão bibliográfica e documental realizada nos trabalhos de

estudiosos que analisam sobre mídia, imagens e imaginário, buscando considerar possíveis

1 E-mail de contato com a autora: [email protected].

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caminhos para o enfrentamento dessa atual situação que acontece no Brasil.

No psiquismo humano as imagens veiculadas nos meios eletrônicos ultrapassam a

mera representação e se associam às imagens internas na produção de sentidos e a ordenação

de crenças e valores. Na obra Estruturas Antropológicas do Imaginário, Gilbert Durand

(2012, p. 441) apresenta a construção de uma “classificação isotópica das imagens”. Para

Durand (2012, p. 381) o regime2 das imagens não é estreitamente determinado pela orientação

tipológica do caráter, mas parece influenciado por fatores ocorrenciais, históricos e sociais”.

Ao classificar como regime explica Durand (2012, p. 64) que se trata de “agrupamento de

estruturas vizinhas”. Conforme é possível entender de Durand (2012), há influência das

imagens incidindo tanto no indivíduo quanto nos grupos sociais. Isso significa que as imagens

que estão na natureza e nos diferentes meios em que são captadas pelo processo perceptivo

humano se associam à cultura vigente que é moldada pelo processo educativo formal e

informal. Considera Durand (2012, p. 397) que, “toda cultura inculcada pela educação é um

conjunto de estruturas fantásticas, […] sob a forma de apólogos, fábulas, exemplos, lugares

seletos na literatura, no museu, na arqueologia ou na vida de homens ilustres”. Isso significa

que há mais a ser considerado quando se observa a propulsão com que as imagens são

projetadas nos diferentes meios eletrônicos, pois ultrapassam limites necessários para que

aconteça a percepção e a reflexão sobre as imagens internas. Segundo Contrera e Baitello Jr.

(2006), a profusão de imagens pode promover um processo de anestesiamento no

telespectador/consumidor dos conteúdos produzidos para os aparatos eletrônicos. Trata-se de

uma sedação, um distanciamento da percepção do corpo pela atenção voltada para as imagens.

O que está considerado diz respeito a que os seres humanos nos aspectos biológicos,

psicológicos e sociais se constituem em um lento desenvolvimento, a intensa exposição às

imagens técnicas desde os primeiros anos de vida, como se tem observado nos grandes

centros urbanos pelo uso significativo de aparatos eletrônicos, tais como: celulares, tablets,

computadores, entre outros, caracteriza na atualidade uma condição de interferência nos

processos da subjetivação humana. Há a possibilidade de direcionamento dos conteúdos

produzidos para essas tecnologias, pois vive-se em um modelo de sociedade orientada pelo

consumo.

O avanço contemporâneo do uso de suportes eletrônicos não encontra precedente

histórico. Não há informação ou registros analisando a influência sobre as pessoas desde o

2 Durand (2012, p. 443) classifica as imagens em Regime Diurno e Regime Noturno (nota inserida pela autora).

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início do uso de aparatos tecnológicos até o período atual, essa atenção é mais recente. Os

dados estatísticos sobre a massificação do uso de aparatos eletrônicos e os reflexos nos grupos

sociais ainda não fazem parte das considerações de uma política pública. Essa complexidade

que repercute no corpo e na mente das pessoas, prescinde de recursos que denotem o

reconhecimento de que há riscos associados, principalmente no caso das crianças pequenas.

Produtores e disseminadores de conteúdos se isentam de qualquer compromisso sobre

o que os resultados estatísticos e qualitativos observados no comportamento de grupos sociais

possam demonstrar. Entretanto, as estatísticas indicam que os seres humanos de diferentes

idades, principalmente as crianças, dedicam um período significativo de tempo diário no uso

de aparatos tecnológicos. Por exemplo, em uma pesquisa realizada em 2014, dados

apresentados apontaram comportamentos e números estatísticos do uso de celulares por

crianças e adolescentes:

O Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) divulgou os resultados da TIC Kids Online Brasil, pesquisa anual do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) sobre o uso da internet pelos jovens. O estudo entrevistou mais de 2 mil crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos a respeito dos equipamentos, local e atividades realizadas durante o acesso. Segundo a pesquisa, 81% dos jovens acessam a internet todos ou quase todos os dias. Ela apontou o aumento do uso de celulares para a atividade: 82% contra os 53% de 2013. Em contrapartida, o acesso por desktops despencou: de 71% em 2013 para 56%. O estudo também atestou a grande presença nas redes sociais (79% dos entrevistados possuem perfis em sites do gênero) e o uso da internet para trabalhos escolares (68%). Em resposta à pesquisa, o UNICEF, a Safernet e o Google promoveram a campanha “Internet Sem Vacilo” para combater o cyberbullying, incentivar comportamentos positivos e abordar temas delicados, como o sexting (troca de mensagens e imagens íntimas), a privacidade, relacionamentos online e preconceito na rede. (IDGNOW, 2015)

O uso massivo de mídia eletrônica é também observado em crianças muito

precocemente. Os recursos eletrônicos maximizam o acesso a informação de um número

muito grande de pessoas em diversas localidades. Há também potencialmente por meio desses

recursos a ocorrência de fenômenos de violência. Isso traz associado uma necessidade de

atenção dos entes sociais, conforme apontava sobre esses riscos Silvia Livingstone (2013),

relativo a suas observações dos dados de pesquisa do uso de Internet por crianças,

O acesso à Internet tem potencializado a exposição de uma ampla gama de riscos on-line, alguns dos quais são comuns no mundo off-line (tais como o bullying, a pornografia e a exploração sexual), enquanto outros são novos ou

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pelo menos têm sido substancialmente reconfigurados na vida das crianças comuns (tais como o aliciamento de crianças, a violação de dados pessoais e da privacidade, o rastreamento da localização geográfica, as formas indesejadas de envio de mensagens sexuais e de assédio sexual, além da facilitação de casos de automutilação). A rápida difusão da Internet e de outras tecnologias on-line coloca diante dos formuladores de políticas públicas, dos governos e do setor produtivo a importante tarefa de identificar os riscos associados ao uso da Internet. (LIVINGSTONE, 2013, p. 19)

O uso de aparatos eletrônicos está associado com um interesse que fascina e captura a

atenção. As necessidades humanas de afeto, pertencimento, estar em grupo, passam a ser

mediadas pelo uso de recursos tecnológicos, que segundo observa Hans Belting (2012),

muitas vezes não se distinguem esses aparatos em relação às imagens que são transmitidas por

meio deles. Segundo Belting (2012) precisa da intenção humana de fazer a distinção entre

imagem e o respectivo suporte midiático para separar um do outro e não se confundir.

Imagem e magia

Considerando o conceito de imagem e a complexidade desse tema, Vilém Flusser

(1985) que se refere ao conceito de imagens técnicas para considerar as produzidas com o uso

de recursos tecnológicos digitais para serem visualizadas em aparatos eletrônicos coloca,

Imagens são superfícies que pretendem representar algo. Na maioria dos casos, algo que se encontra lá fora no espaço e no tempo. As imagens são, portanto, resultado do esforço de se abstrair duas das quatro dimensões espácio-temporais, para que se conservem apenas as dimensões do plano. Devem sua origem à capacidade de abstração específica que podemos chamar de imaginação. (FLUSSER, 1985, p. 7)

Neste recorte conceitual da obra de Flusser, a imagem está considerada em um suporte

midiático, está relacionada com a abstração que os seres humanos possuem em seu processo

cognitivo para a compreensão que recompõe mentalmente as dimensões representadas pela

imagem. Recursos como perspectiva, gradiente de cores, diferentes ajustes na intensidade da

iluminação, entre outros utilizados para tornar em escala a imagem o mais próximo possível

de um modelo de realidade. Segundo Flusser (1985) essa abstração está relacionada com a

imaginação, que significa um reflexo da ação das imagens nos processos de subjetivação.

Isso é corroborado pelo que coloca Hans Belting (2006) sobre a imagem, como algo

que pode estar fora ou dentro do processo de percepção humana. Para Belting, há um

processo de interação do corpo com a imagem que usa de diferentes sentidos humanos.

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Em termos antropológicos eu contestaria qualquer dualismo rígido, que tão freqüentemente separa a representação interna da externa – utilizando-nos aqui da terminologia atual em pesquisa neurobiológica – e que, portanto, as designa para duas áreas inteiramente distintas. Certamente nosso cérebro é local de representação interna, mesmo no processo que simplificamos ao chamar simplesmente de percepção. […] as imagens não existem só na parede (ou na tevê) nem somente em nossas cabeças. Elas não podem ser desembaraçadas de um exercício contínuo de interação. (BELTING, 2006, p. 73)

Belting (2006) reforça que, em relação ao corpo, a imagem em um mesmo

determinado momento pode estar tanto fora como dentro. Nesse processo de percepção das

imagens para Belting, há o que esse autor considera uma interação do corpo com a imagem,

existindo algo que capta e faz prestar atenção, porque faz algum sentido para a pessoa.

Para Gilbert Durand (2000) na consciência humana a representação da imagem pode

ser complexa, porque pode estar buscando interpretar algo que não se tem acesso de conhecer

senão pela construção de uma ideia a respeito.

A consciência dispõe de duas maneira para representar o mundo. Uma directa, na qual a própria coisa parece estar presente no espírito, como na percepção ou na simples sensação. A outra indirecta quando, por esta ou por aquela razão, a coisa não pode apresentar-se <<em carne e osso>> à sensibilidade, como por exemplo na recordação da nossa infância, na imaginação das paisagens do planeta Marte, na compreensão da dança dos electrões en torno do núcleo atómico ou na representação de um além da morte. Em todos estes casos de consciência indirecta, o objecto ausente é re-presentado na consciência por uma imagem, no sentido lato do termo. (DURAND, 2000, p. 7)

Segundo Durand, as imagens podem ou não ligar a um significado ou a um sentido e

instiga que, “a diferença entre o pensamento directo e pensamento indirecto não é tão

definitiva”. (DURAND, 2000, p. 8)

Some-se a toda essa complexidade relacionada da imagem o que Edgar Morin

considera sobre a linguagem e a magia,

Por meio da palavra, no sinal, da inscrição, do desenho, esse objeto adquire uma existência mental até mesmo fora de sua presença. Assim, a linguagem já abriu a porta à magia: desde o momento em que toda e qualquer coisa traz imediatamente ao espírito a palavra que a identifica, essa palavra produz imediatamente a imagem mental da coisa que ela evoca e confere-lhe presença, ainda que ausente. (MORIN, 1975, p. 107)

Na obra Introdução ao Pensamento Complexo, Morin (2007) discute a consciência

humana, “de uma maneira incerta sem dúvida, reflete o mundo: mas se o sujeito reflete o

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mundo, isto pode também significar que o mundo reflete o sujeito. [...] Assim, tanto pode ser

o objeto o espelho para o sujeito como o sujeito para o objeto". (MORIN, 2007, p. 42) Esse

processo de espelhamento como Morin (2007) menciona, contribui para a compreensão de

como acontece a influência, a pessoa tem a sua subjetividade afetada pela magia das imagens.

Há também a ser considerado o que Jung (2000, p. 16) coloca sobre as imagens

universais que são arcaicas, os arquétipos. Segundo Jung (2000, p. 23) “a humanidade

sempre teve em abundância imagens poderosas que a protegiam magicamente contra as coisas

abissais da alma, assustadoramente vivas”. A produção de imagens internas para Jung (2000)

está relacionada à própria existência humana e seus desafios. Isso acontece de forma

cumulativa.

Pelo que consideram esses autores, percebe-se que o tema imagem é um campo vasto,

dispõe de muitas variantes de análise, está intimamente relacionada à existência humana e se

distingue e se confunde entre as imagens externas e internas. Pelos aparatos tecnológicos na

atualidade há uma profusão de imagens criadas que são projetadas com muita rapidez, um

fluxo intenso, que tem uma intenção e que busca um sentido que seja compreendido por todos

que a acessam. Sobre esse refletir o mundo, Flusser (1985) explica que na arte pré-histórica a

magia das inscrições como as encontradas nas cavernas estava relacionada aos mitos, formas

humanas de compreender a realidade e as vivências e que hoje a produção audiovisual

apresenta um modelo ritualizado, que não necessariamente está relacionado às vivências, mas

que pode influenciar o comportamento dos receptores. Alerta Flusser (1985) haver uma

significativa diferenciação na atualidade, porque há um direcionamento de alguns para muitos

dentro de um modelo de sociedade em que há um processo que envolve massificação.

A produção e distribuição dessas imagens é comandado pelos responsáveis de uma

extensa cadeia produtiva que envolve diversos conglomerados privados usando de diferentes

tipos de tecnologias e programações. Malena Segura Contrera e Noval Baitello Jr. (2006)

analisam criticamente o que representa essa profusão de imagens criadas e reproduzidas por

meio eletrônico.

Vivemos em sociedade iconofágicas, e o fenômeno que temos é ainda mais extremo: inventa-se a imagem sem sequer a mínima referência a nenhum fenômeno percebido, sem a necessidade sequer de mentir, de simular. O que importa já não é nem mais a imagem simulada, é apenas o processo de mostragem, de explicitação, do consumo e do auto-consumo que se realiza por meio desse processo. As experiências da percepção concreta (ou seja, as imagens que A. Damásio chama de sômato-motoras ou os processos cognitivos que F. Varella chama de enactivos) simplesmente não entram no

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jogo. É a era do homem que não é mais capaz de conjugar sua experiência perceptiva com sua vivência interior (a dissociação plena de uma era esquizofrênica), já que toda a forma de percepção e de vivência interior passa a ser submetida à era da vertiginosa produção de imagens funcionais que só se referem a si mesmas. Dessa forma, põe-se a perder o poder maior das imagens percebidas (imagens exógenas) que reside justamente em acionar o repertório de significados que o receptor possui em sua memória cognitiva advindo de outras imagens que compõem esse repertório imaginativo composto de uma gama de variedades sensoriais (imagens sômato-motoras, inclusive). Na contemporaneidade, por conta do exaustivo uso comercial das imagens visuais, essas imagens visuais percebidas evocam, por parte do receptor, apenas o desencadeamento cognitivo de mais imagens visuais do mesmo tipo, gerando um quadro muito próximo dos labirintos de espelhos nos quais a proliferação infinita das imagens apenas conduz ao nada. (CONTRERA; BAITELLO JR., 2006, p. 120-121)

Contrera e Baitello Jr. referem-se aos déficits que podem se acumular no

desenvolvimento pela profusão de imagens que não ligam a um processo reflexivo do

pensamento sobre as experiências e necessidades humanas. Conforme entendem esses

autores isso pode promover uma sedação em que se continua a consumir intensamente as

imagens, sem uma crítica sobre isso. Também pode representar uma limitação da

imaginação, como imagens em ação interativa nos processos internos cognitivos.

Na obra O cinema ou o homem imaginário, Edgar Morin (1970) trata das imagens e da

relação delas com os afetos, porque à medida em que se identifica com aquela proposta de

conteúdo apresentada, a pessoa movimenta ideias da fantasia ou da ilusão de sua própria

vivência. Entretanto, para Morin, o expectador vive na imagem o espelhamento de uma

experiência mental que ao mesmo tempo é como se estivesse lá, mas não estava. Morin

(1970) comenta sobre essa magia.

A magia do cinema se vai inscrever no quadro da lei geral da estética. O imaginário estético é, como todo o imaginário, o reino das necessidades e aspirações do homem, incarnadas e situadas no quadro de uma ficção. Vai alimentar-se às fontes mais profundas e intensas da participação afectiva e, por isso mesmo, alimentar mais intensas e profundas participações afectivas. (MORIN, 1970, p. 121)

Conforme Morin, há uma magia que confere ao expectador uma experiência

imaginária relativa aos afetos nos audiovisuais produzidos para os meios eletrônicos. O seres

humanos são afetados pela produção audiovisual.

Na obra O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade, Flusser (2008)

faz uma distinção em relação ao gesto sobre como eram produzidas tradicionalmente as

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imagens e como os meios digitais produzem as imagens técnicas. Coloca Flusser (2008, p. 19)

que, “a imagem tradicional é produzida por gesto que abstrai a profundidade da circunstância,

isto é, por gesto que vai do concreto rumo ao abstrato. A tecno-imagem é produzida por gesto

que reagrupa pontos para formarem superfícies, isto é, por gesto que vai do abstrato rumo ao

concreto”. Isso significa que a imagem tradicional, na concepção de Flusser (2008), promove

uma ligação com um objeto que é possível de ser identificado na realidade direta que pode ser

experienciada, enquanto que por meio dos recursos tecnológicos, é possível inventar uma

realidade imaginária que não necessariamente tem correspondência com o real. Essa

diferenciação, que também propicia ao expectador um tipo de experiência, pode-se

compreender como mimética, pois implica em uma semelhança. Flusser (2008, p. 29) reforça,

“a recepção das imagens técnicas exige de nós consciência que resista ao fascínio mágico que

delas emana e ao comportamento mágico-ritual que provoca”. Esse entendimento sobre a

influência do aspecto mágico contribui para compreender porque as imagens técnicas levam

ao consumo de mais imagens.

Christoph Wulf (2013) na obra Homo Pictor – imaginação e aprendizado mimético no

mundo globalizado, coloca que:

A mimesis pertence ao âmbito da educação, da socialização e das relações de poder. Processos miméticos não são meros processos de imitação ou reprodução. Pelo contrário, eles requerem uma configuração individual por parte das crianças, dos jovens e dos adultos. A medida dessa diferença individual, nos processos miméticos, varia de acordo com os diferentes condicionamentos. (WULF, 2013, p. 78)

Conforme Wulf (2013), o processo de influência externa que se reflete no fenômeno

mimético varia de intensidade no comportamento das pessoas por uma questão relacionada

aos condicionamentos e à configuração individual. Essas diferenciações individuais

apontadas por Wulf (2013) permitem compreender, em relação ao que constam de conteúdos

nos meios eletrônicos, o porquê de algumas pessoas demonstrarem pelo seu comportamento,

estarem mais influenciadas do que outras quanto às mesmas experiências vivenciadas. Para

Wulf (2005, p.122), “comportamentos e reações dos que realizam a mimese se expressam

corporalmente, são imitados e são memorizados na forma de imagens, sequência de sons e de

encadeamento de movimentos”. Isso faz lembrar o comportamento de adultos cada vez mais

frequentemente observável em locais públicos com fones de ouvido, olhando ou manuseando

seus celulares com a atenção direcionada ao aparelho.

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Wulf (2005, p. 125) questiona, “quais são as informações transmitidas pelas imagens

às crianças? […] Qual é a relação entre o mundo interior de imagens do indivíduo, isto é,

imaginário individual, e o mundo das imagens da cultura, isto é, imaginário coletivo?”.

Considerando-se o que é possível observar atualmente no comportamento de pessoas em

ambientes públicos com o uso frequente de aparatos tecnológicos, assim como o recorte

apresentado neste texto sobre os dados estatísticos relativos ao riscos para crianças quanto ao

uso dessas tecnologias eletrônicas, corroboram a compreensão de estudiosos sobre a

influência das imagens e do imaginário sobre os grupos sociais. Para Wulf (2005, p. 126). “o

homo sapiens conhece um mundo duplo: o mundo dos objetos que estão ao seu redor e o

mundo das representações, mundo da imaginação”.

Baseando-se na crítica de Flusser quanto ao uso abusivo de aparatos tecnológicos,

colocam Silva e Baitello Jr. (2013, p. 2-3), “no contexto contemporâneo, onde a produção das

chamadas imagens técnicas impera, passa o homem a denominar-se funcionário, isto é, pessoa

que brinca com aparelho e age em função dele (FLUSSER, 1985, p. 9). Por sua vez, a

máquina por meio da qual se estabelece a produção recebe a designação de aparelho, um

brinquedo que simula um tipo de pensamento”. Esses autores reforçam a questão de que não é

mera brincadeira o uso do tempo das pessoas. Dedicados ao uso de aparatos tecnológicos o

tempo das pessoas para as atividades que envolvam trocas afetivas presenciais estará

comprometido. Mediadas por conteúdos e programas que são produzidos e distribuidos por

conglomerados privados, fica-se na dependência do compromisso ético e da responsabilidade

social de quem define os conteúdos dessas imagens, uma vez que, pelos fundamentos

apresentados, há interferência na constituição dos sujeitos nos diferentes grupos sociais.

Conclusão

Este estudo refletiu sobre a influência das imagens técnicas da mídia eletrônica sobre o

imaginário dando ênfase ao período da infância, por ser a criança mais vulnerável. A ênfase

considerada foi em relação à questão da responsabilidade social, entendida como o cuidado

com a formação social dos sujeitos. Dados estatísticos foram levantados e ponderou-se que

tem havido uma aumento significativo do uso da mídia eletrônica. Fundamentou-se na visão

de estudiosos sobre a influência das imagens que são produzidas e distribuidas por meio dos

aparatos tecnológicos.

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No que diz respeito ao processo de compreensão da imagem, este esteve relacionado à

magia, diferentes autores consultados consideram a questão da imaginação, que diz respeito à

associação das imagens externas às imagens internas pela pessoa em um processo criativo. O

imaginário esteve relacionado com o aspecto coletivo do conjunto das representações no

tocante aos afetos e às imagens arcaicas e da história social e cultural.

Os dados estatísticos apontaram um aumento no percentual de consumo de imagens

relacionado com o tempo despendido no uso de aparatos tecnológicos. Considerando-se

principalmente no caso de crianças, isso apresenta riscos potenciais associados, porque esses

recursos tecnológicos capturam a atenção e o tempo que poderia estar dedicado a outras

atividades da infância e provoca um processo de sedação. Um dos pontos levantados diz

respeito a que as imagens técnicas não necessariamente conectam as pessoas ao mundo real e

às experiências vivenciadas, podem promover a geração de déficits sensoriais e levam à

necessidade de consumo de mais imagens.

Pelo que foi compreendido pelas análises de estudiosos há diferentes questões sociais

e culturais a serem observadas. Considera-se que seria importante para o interesse dos grupos

sociais, haver a disponibilização de informações de modo a observar riscos associados à

influência do uso de aparatos tecnológicos. Tais informações poderiam se refletir na

construção de políticas públicas que permitem cuidados e a garantia de direitos.

Diante das considerações levantadas, a responsabilidade social no que tange a

produção de conteúdos produzidos pelos conglomerados privados e distribuidos por meio dos

aparatos tecnológicos, é uma questão que está posta para os diferentes entes sociais.

REFERÊNCIAS

BAITELLO JR., Norval. A serpente, a maçã e o holograma: esboços para uma teoria da mídia. São Paulo: Paulus, 2010. CONTRERA, Malena Segura. Mediosfera: meios, imaginário e o desencantamento do mundo. São Paulo: Annablume, 2010. CONTRERA, Malena Segura; BAITELLO JUNIOR, Norval. Na selva das imagens: Algumas contribuições para uma teoria da imagem na esfera das ciências da comunicação. Significação – Revista de Cultura. São Paulo: Programa de Pós Graduação em Meios e Processos Audiovisuais - ECA-USP, v.33, n. 25, 2006. DURAND, Gibert. A Imaginação simbólica. Lisboa: Edições 70, 2000.

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FLUSSER, Vilém. Zona Cinzenta entre Ciência, Técnica e Arte, Cadernos de Ciência e Tecnologia, vol. 06, nº 1, jan./abr, 1989. ______. Filosofia da caixa preta. São Paulo: Editora Hucitec, 1985. ______. O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade. São Paulo: Annablume, 2008. IDGNOW. Uso de internet móvel dispara entre jovens brasileiros, aponta pesquisa. Redação. Publicada em 29 jul. 2015. Disponível em: < http://idgnow.com.br/internet/2015/07/28/uso-de-internet-movel-dispara-entre-jovens-brasileiros-aponta-pesquisa/ >. Acesso em 05.07.2015. LIVINGSTONE, Silvia. Prefácio. In: Pesquisa Tic Kids Online Brasil 2012. São Paulo: Comitê Gestor de Internet do Brasil, 2013. MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2007. ______. O cinema ou o homem imaginário. Lisboa: Moraes Editores, 1970. SILVA, Maurício Ribeiro; BAITELLO JR., Norval. Vínculos hipnógenos e vínculos culturais nos ambientes da cultura e da comunicação humana. In: XXII Encontro Anual da Compós - Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação, 2013. Salvador. Anais..., UFBA, 04 a 07 de junho de 2013.

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Imaginários sociodiscursivos transgressivos sobre Black Blocs

Socio-discursives and transgressives imaginaries about Black Blocs

Imaginaires socio-discursifs et transgressifs sur les Black Blocs

Ivan Vasconcelos FIGUEIREDO1 Universidade Federal de São João del-Rei, São João del-Rei, Brasil

Resumo A pesquisa analisa os imaginários sociodiscursivos transgressivos sobre a tática Black Bloc projetados em notícias veiculadas pela Agência Brasil. O corpus é formado por oito notícias da referida agência no período de 1 a 31 de outubro de 2013. A intenção é investigar a reconstrução midiática dos imaginários anarquistas e anticapitalistas dos adeptos brasileiros da ação. O quadro teórico-metodológico tem como base a Teoria Semiolinguística charaudeana. A pesquisa revela que os imaginários sobre o Black Bloc emergem de julgamentos morais socialmente aceitos que reduzem e simplificam o movimento em torno da violência, o que obscurece o entendimento de atos políticos e ações sociais. A transgressão da tática – enquanto exercício de liberdade – é refutada pelo seu emprego social, a partir do qual o bloco passa a ser inimigo de manifestações pacíficas. Palavras-chave: imaginários sociodiscursivos; Black Bloc; transgressão; violência; mídia

Abstract This paper analyzes socio-discursives and transgressives imaginaries about Black Blocs produced by “Agência Brasil”. The corpus is composed by eight news veiculated from 1 to 31 October 2013. The objective is investigate media’s reconstruction of anarchists and anticapitalists imaginaries from Brazilians Black Blocs. The theoretical-methodological frame is based on Charaudeau’s Semiolinguistic Theory. The research reveals that Black Blocs’ imaginaries are originated from major moral and social judges that simplify the movement around violence. This representations neglects to understand political and social acts like activism. The transgression of the tactic – as an exercise in freedom – is refuted by its social practice, from which the block becomes the enemy of peaceful protests. Key words: socio-discursives imaginaries; Black Bloc, transgression; media.

Introdução

A tática Black Bloc estampou manchetes da imprensa brasileira em 2013. Em meio a

milhares de manifestações e bandeiras, por que um grupo reduzido de manifestantes ocupou,

preponderantemente, o espectro midiático? A resposta, talvez, reside na desobediência civil

1 [email protected]

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transgressora, ou seja, o uso não autorizado da violência pelo cidadão e o seu enquadramento

espetacularizado.

Nesse cenário, a presente pesquisa investiga como a Agência Brasil projetou

imaginários sociodiscursivos sobre a tática Black Bloc de 1 a 31 de outubro de 2013. O

corpus é constituído pelas oito notícias que contém menção à tática ao longo do mês.

O quadro teórico-metodológico tem como base a Teoria Semiolinguística

charaudeana. A noção de imaginários possui o aporte de Castoriadis (1982). Para a

operacionalização da análise, utiliza-se o conceito de imaginários sociodiscursivos de

Charaudeau (2004; 2008). Como temáticas transversais, a transgressão é debatida a partir de

Foschield (2005), Haarscher (2012) e Hastings, Nicolas e Passard (2012). Por meio de Ogien

e Laugier (2011), discute-se a desobediência civil. No âmbito da violência como

representação, tem-se como alicerces Benjamin (2011), Iasi (2014) e Žižek (2014). Por sua

vez, a tática Black Bloc é problematizada por meio de Dupuis-Déri (2014), Kovich (2014) e

Solano, Manso e Novaes (2014).

A tática Black Bloc originou-se na Alemanha na década de 1980 com o intuito de criar

espaços discursivos de resistência para gerar visibilidade às bandeiras e causas sociais. As

filiações ideológicas oscilam entre “marxismo, feminismo radical, ambientalismo,

anarquismo – e essa diversidade ideológica era vista em geral como garantia de liberdade”

(DUPUIS-DÉRI, 2014, p. 40). Na contemporaneidade, ideologias do cotidiano também

passaram a ser incorporadas aos motivos de adesão dos participantes. A utilização em outras

partes do mundo ocorreu a partir dos anos 1990, por meio da contracultura punk e de extrema

ou ultraesquerda, sendo sintoma de crescente insatisfação mundial, aponta o autor.

Contrariamente ao enquadramento convencional da mídia, segundo Dupuis-Déri

(2014, p. 165), a marca identitária da tática está em suas “raízes históricas e políticas” e não

no “recurso à força”. O bloco possui – ao menos – duas frentes. A primeira, defensiva, tem o

intuito de oferecer apoio logístico, psicológico, jurídico, médico e fornecer alimentação aos

demais participantes, além de realizar operações de reconhecimento de campo e comunicação.

De forma consoante, parte dessa frente realiza ações musicais de integração para manter o

ânimo dos ativistas. A linha de frente, mais visível e mais conhecida pelos atos públicos, é

formada por integrantes que visam proteger o direito de protesto dos demais manifestantes e

também enviar mensagens contra o sistema e governantes. Dentre os artefatos, estão bastões,

estilingues, bolas de bilhar e coquetéis motolov. Nem sempre essa linha entra em operação.

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Ao analisarmos a projeção de ethé de Black Blocs em fotografias da BBC no mesmo

período desta pesquisa, em Figueiredo (2015, p. 179), notamos um superdimensionamento da

“desordem violenta, qualificando negativamente a desobediência civil transgressora [praticada

por adeptos da tática]. A refutação dessa transgressão opera dentro da mostração das marcas

identitárias, em que o Black Bloc passa a ser o inimigo das manifestações pacíficas”. Desse

modo, a disputa pela representação da violência seria a marca divisória da aceitação ou não

das bandeiras e causas em manifestações. Naquela ocasião, concluímos que a sociedade tolera

desobediências civis desde que não rompam totalmente com as normas sociais previamente

aceitas para o regime democrático nem afrontem o funcionamento do sistema e/ou o Estado.

Diante dessa perspectiva, no presente estudo pretendemos verificar se a agência

noticiosa brasileira se utiliza da mesma estratégia discursiva em seus dizeres. Para tanto,

partimos da seguinte hipótese: os imaginários sociodiscursivos atuam de forma enfática na

formação de uma aparente polarização de visões antagônicas entre o ideal e aceitável para

protestos sociais, estabelecendo limites e zonas de tolerância ao “poder dizer” e “poder fazer”

do cidadão. Com isso, as transgressões externas são rechaçadas. No caso da tática, o ato em si

- atingir o alvo símbolo do questionamento – toma o espaço discursivo da própria denúncia e

crítica ao sistema econômico e as formas de governar os bens públicos.

A mídia é entendida aqui como sistema intricado, interdependente e transpassado pelas

esferas simbólica, econômica e política. De forma assimétrica e dotada de poder, tal prática

sociocultural atua na reconstrução de discursos que articulam e veiculam, em larga escala,

conhecimentos, crenças e valores por meio de saberes simplificados que auxiliam os sujeitos a

construírem percepções e julgamentos de “historicidade” (sensos de passado e presente),

“mundanidade” (compreensão de mundo) e “socialidade” (sensos de pertencimento a

comunidades), conforme Thompson (1998). Assim, a materialidade do texto informativo, por

exemplo, é apenas um traço visível de uma complexa rede de condições sociais anteriores à

produção e circulação das mensagens.

Nessa dinâmica, a análise dos imaginários sociodiscursivos projetados pela mídia

permite observar o lugar e papel do imaginário na constrição de saberes, assim como

apreender como tais ideias formatadas são utilizadas como estratégias discursivas que

oferecerem universos comuns e facilmente reconhecíveis aos sujeitos, tendendo a facilitar a

adesão ao projeto de fala inicial do enunciador.

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Imaginários: Conceituações

A análise do discurso da Agência Brasil neste estudo perpassa as seguintes etapas: (I)

mapeamento da dimensão situacional do contrato de comunicação; (II) levantamento da

dimensão discursiva, caracterizando os imaginários sociodiscursivos; (III) a partir dos dados,

debate à luz de teorias sobre violência, desobediência civil e transgressão.

De acordo com Charaudeau (2006; 2009), a investigação de um discurso começa pela

caracterização da dimensão situacional e das condições do contrato comunicacional (jogo de

expectativas entre as partes), permitindo mapear e identificar “Quem fala a quem?”, “Com

qual objetivo?”, “Por qual meio?” e “Com que efeitos”.

A Agência Brasil é foi criada em 2007 com a implantação da Empresa Brasil de

Comunicação. De caráter público, atua como “informaduto”, ou seja, conjunto de meios de

produção e distribuição de informação que suprem a carência e demanda de cobertura dos

veículos de comunicação. Na ótica das condições do contrato comunicacional, a Agência

Brasil possui sujeito comunicante compósito formado por repórteres, editores, fotógrafos,

dentre outros profissionais; no plano do dizer, o sujeito enunciador é situacional e procura se

revestir da ausência da figura do locutor (característica do texto jornalístico). Os enunciados

são direcionados aos seguintes sujeitos interpretantes: potenciais consumidores de informação

(veículos midiáticos e leitores diretos). Por sua vez, os sujeitos destinatários são projetados

como aqueles com interesse em conteúdos noticiosos supostamente mais isentos e imparciais

- por não estarem atrelados a uma dimensão produtiva comercial.

Por meio do gênero “notícia”, os enunciados da Agência se revestem das

características da linguagem jornalística e passam a ter efeitos de veracidade, imparcialidade e

compromisso com a verdade. Tais percepções são supostamente anseios esperados pelos

sujeitos interpretantes nas condições do contrato de comunicação informacional.

A segunda etapa analítica empregada aqui perpassa pela dimensão discursiva, qual

abarca a organização enunciativa do discurso, a forma de tomada do dizer e também a

reconstrução de imaginários sociodiscursivos. Para Charaudeau (2006; 2007), os imaginários

sociodiscursivos são dimensões materializadas e perceptíveis dos processos de representações

sociais, sendo sustentados por uma gênese de saberes (crença e conhecimento) que revelam as

estratégias empregadas na prática textual. Conforme o autor (2006, p. 207), “eles dão

testemunho das identidades coletivas, da percepção que os indivíduos fazem e os grupos têm

dos acontecimentos, dos julgamentos que fazem de suas atividades sociais”. Ademais, os

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imaginários não fixam uma relação antagônica de falso/verdadeiro ou certo/errado, mas

carregam visões de mundo, valores e crenças sobre determinado assunto dado em uma

situação de comunicação.

Sendo assim, os sujeitos não têm contato direto com o real, mas somente com as

significações que constituem, por meio da linguagem, uma visão sobre este real. De forma

breve e simplificada, o imaginário é o modo como os sujeitos constroem a própria realidade e

cultura, constituindo-os como “humanos”. Na visão de Castoriadis (1982), sujeito e

sociedade são fluídos e se estruturam como magmas. Uma investigação sobre os imaginários

acessa, portanto, somente um traço delimitado do social, mas nunca o seu todo. Com isso, o

imaginário social não está diretamente vinculado a um sujeito construído para transportá-lo

via um suposto “inconsciente coletivo”.

O autor (1982, p. 286) afirma que as significações imaginárias “criam assim uma

‘representação’ do mundo, inclusive da própria sociedade e de seu lugar nesse mundo; mas

isso não é em absoluto um constructum intelectual”. Nesse processo, temos acesso às

significações da realidade e não ao real em si fora do plano da linguagem. Para Castoriadis, a

categoria do imaginário é a única forma que permite acessar e compreender o passado e

presente da história humana, tendo em vista que o real é construído discursivamente.

De acordo com Charaudeau (2006; 2007), os imaginários são oriundos do movimento

de dupla interação homem/mundo e mundo/homem, dentro de uma lógica provisória do que

se acredita como verdadeiro e absoluto. Assim, a instituição não seria a única regente do

mundo das significações como um tipo de cimento social, uma vez que “esta é apenas a parte

visível do superego social regulamentado, que constrói (e é construído por) todo grupo

social”, diz Charaudeau (2006, p. 204). As relações entre os sujeitos se “autorregulam”

discursivamente, conferindo uma forma temporária de saberes parcialmente estáveis e

naturalizados.

Nessa visão, os imaginários são “sociais” a partir do instante em que a simbolização

de mundo ocorre na dimensão da prática social e suas interfaces artísticas, políticas, jurídicas,

religiosas, dentre outras. Por sua vez, a designação “sociodiscursivos” caracteriza o processo

de representação que edifica universos de pensamento, sensos de veracidade e discursos que

procuram explicar os fenômenos de mundo e os comportamentos humanos.

Charaudeau (2006) entende que as representações sociais são apenas mecanismos de

engendrar saberes, onde a percepção e análise dessa dimensão somente ocorreriam em sua

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materialização discursiva. Para tanto, o autor (2006, p. 193-203) contesta a possibilidade de

apreender as representações diretamente, pois estas são vistas como “fenômeno cognitivo-

discursivo geral”, cuja operação somente poderia ser possível em uma dimensão tangível: os

imaginários sociodiscursivos.

O alicerce dos imaginários sociodiscursivos, conforme Charaudeau (2007), está nos

sistemas de pensamento coerentes: pathos (o saber como afeto), ethos (o saber como imagem

de si) e logos (o saber como argumento racional). Na proposta do autor, esses saberes estão

didaticamente classificados como “conhecimento” e “crença”.

Os saberes de conhecimento visam o estabelecimento de um efeito de verdade (fora da

subjetividade do sujeito) sobre os fenômenos de mundo, estruturando-se em dois tipos

preponderantes: “científico”, modos de ver e dizer das ciências com visada de neutralidade

discursiva; “experiência”, traços da realidade experimentada e relatada pelos viventes, sem

compromisso com provas sobre o dito.

Já os saberes de crença procuram descrever ou explicar o mundo de um modo não

verificável, partindo da relação sujeito/mundo. A primeira dimensão é a “revelação”, a qual

permite a propagação de doutrinas e ideologias sem provas concretas. Por outro lado, os

saberes de crença também podem estar respaldados na “opinião”, ambiente dado pelo

engajamento do sujeito que julga os fatos de mundo a partir de uma posição avaliativa

validada socialmente. A sustentação de tais argumentos ocorre em lógicas afetivo-racionais,

tais como “o necessário”, “o provável”, “o verossímil”. Essa dimensão se subdivide, segundo

Charaudeau (2007), em “opinião relativa” (julgamento pontual emitido pelo sujeito ou grupo)

e “opinião coletiva” (saber de um grupo com visada definitiva e essencializante).

Desobediência Civil e Transgressão

A transgressão testa as fronteiras sociais dadas entre a norma e liberdade, conforme

Hastings, Nicolas e Passard (2012). O emprego da tática Black Bloc procura descortinar

justamente a fronteira de valores instaurada nas sociedades contemporâneas. Diante de uma

vidraça de banco quebrada, se instala o debate sobre os limites e a relação hierárquica entre os

graus de violência simbólica, física e sistêmica. De modo correlato, os privilégios dados ao

sistema econômico em detrimento ao cidadão são colocados à luz do dia.

Segundo esses autores, a transgressão é um fato social total construído no e pelo

discurso, cuja experiência é vivenciada pela sociedade, a qual passa a ser revisitada para

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atualizar os seus conjuntos de aspectos intocáveis e indiscutíveis, testando a solidez da

socialização. Portanto, a transgressão é uma característica intrínseca ao ser humano, pois o

sujeito seria formado por liberdade e moralidade, afirma Folscheid (2005, p. 20). Assim

sendo, a humanidade teria o anseio de impor limites para opor-se a um suposto caos; tais

restrições são criadas dentro de registros morais com o propósito de regular a vida em

sociedade.

Até mesmo as democracias instituem limites ao poder dizer e fazer, analisa Haarscher

(2012). O ato transgressivo, caracterizado como liberdade individual de expressão, também é

regulado dentro de condições de permissividade, tendo em vista que a esfera social constrói

normas sociais que impõem regras e tolerâncias às próprias contestações de tais normas.

A desobediência civil caracteriza-se justamente como um dos modos de contestação

dessas normas sociais. A ação política se instala na fronteira tênue de aceitabilidade

transgressiva que se desenvolve nos cidadãos entre “o dever de obedecer às leis promulgadas

por uma maioria” e o “direito de defender suas liberdades e o dever de lutar contra a injustiça”

(OGIEN; LAUGIER, 2011, p. 58).

As condições de permissibilidade residem na designação ethótica dos sujeitos, os

quais passam a ser rotulados enquanto atores de dois tipos: os desobedientes que seguem as

leis e os que a confrontam e ultrapassam os limites permitidos. O primeiro tipo, os

“désobéisseurs”, é caracterizado por sujeitos que exercem a desobediência civil, mas de modo

pacífico ao lado da lei, afirmam Ogien e Laugier (2011, p. 211). Já o segundo grupo, os

“désobéissants”, é constituído por aqueles que rejeitam as regras e normas. Nos protestos,

praticam uma ação direta não violenta capaz de romper com as formas tradicionais de

mobilização política, com o objetivo é criar um espaço discursivo para cobertura midiática. A

mídia é vista como um critério necessário de mediação que confere visibilidade e força à

reivindicação.

A tática dos “désobéisseurs” era empregada por Black Blocs na década de 1990 nos

Estados Unidos. Porém, os ativistas perceberam que a visibilidade para as causas perpassa por

uma necessária cobertura midiática, o que não ocorria da forma como esperavam. Para tanto,

os adeptos da tática passaram a utilizar a estratégia dos “désobéissants” na

contemporaneidade, visando a espetacularização dos protestos.

Enquanto sintoma de uma pane democrática, a desobediência civil é parte integrante

da democracia, em que grupos desassistidos clamam por direitos. Em termos conceituais, os

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atos de desobediência civil não são violentos. É justamente nessa fronteira que residem as

ações da tática Black Bloc. Em nosso entendimento, a permissibilidade desses tipos de

desobediência se constitui no jogo pelo estabelecimento de imaginários. No caso do Black

Bloc, o divisor está na significação da violência. Ao fazerem uma ação direta contra bancos,

por exemplo, os adeptos da tática são representados como “vândalos” e, assim, são colocados

no plano da transgressão. Consequentemente, passam a não mais estarem autorizados a

exercer a desobediência civil dentro dos padrões morais e sociais esperados.

Evidentemente, o jogo de significações duais e cristalizadas - “vândalos” versus

“pacíficos” - impede compreender as manifestações brasileiras de 2013 em sua complexidade.

O Movimento Passe Livre de São Paulo (MPL-SP), um dos primeiros articuladores das

manifestações de junho, não surgiu em 2013, apenas ganhou maior repercussão na imprensa

tradicional e nas redes sociais. Conforme o MPL-SP (2013), as primeiras formas de

organização horizontal com cobertura midiática ocorreram na Revolta do Buzu em Salvador

em 2003. No ano seguinte, ocorreu a Revolta da Catraca em Florianópolis. Contudo, as

jornadas de 2013 ganharam amplitude de causas e bandeiras em formato de articulação

horizontal, ultrapassando a questão da mobilidade urbana. Entretanto, o cerne da discussão

está na luta pela reapropriação do espaço urbano e a experimentação de novas formas de

organização social. Assim, as catracas do transporte urbano simbolizam, para o MPL-SP, um

processo de discriminação entre, “segundo o critério da concentração de renda, aqueles que

podem circular pela cidade daqueles condenados à exclusão urbana”.

Impulsionada por outras bandeiras e causas sociais, a agenda das ruas clama por

reforma política e a retomada do espaço urbano para o convívio social, aponta Rolnik (2013).

Desse modo, a insatisfação é sintoma da forma como as normas e jogos sociais regem a

socialização. Para Harvey,

[…] a cidade neoliberal aprofundou e agudizou os conhecidos problemas que nossas cidades herdaram de quarenta anos de desenvolvimentismo excludente: favelização, informalidade, serviços precários ou inexistentes, desigualdades profundas, degradação ambiental, violência urbana, congestionamento e custos crescentes de um transporte público precário e espaços urbanos segregados. Nesse contexto, o surpreendente não é a explosão, mas que ela tenha tardado tanto (HARVEY, 2013, posição 7112).

2 Por se tratar de um livro versão Kindle, apresento aqui a posição e não o número de página.

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Nessa dinâmica social, ao invés de enquadrar a pluralidade reivindicações e greves

para dar mais espaço à tática Black Bloc, a imprensa tende a ofuscar a visibilidade pública da

questão em torno do espaço urbano público. Afinal, o que está por trás do enquadramento da

violência (e sua negação) praticada por adeptos do Black Bloc pelos veículos de comunicação

tradicionais? Conforme apontaremos a seguir, a resposta caminha em direção a retirar a

legitimidade e o “poder dizer” e “poder fazer” desse tipo de desobediência civil, impedindo

transgressões que passem a ocupar papéis do Estado (como o exercício da violência) e

também contraponham a ideologia dominante.

Imaginários Sobre Black Blocs: Transgressão e Violência

As formas de protesto dos “désobéissants” Black Blocs são condenadas e julgadas

moralmente na esfera social e na reconstrução dada por discursos midiáticos, como os da

Agência Brasil. O cerne da tolerância da desobediência civil ultrapassa os sentidos de protesto

aceito ou não, mas impõe-se, sobretudo, como uma dinâmica de proteção das próprias ordem

e normas sociais, assim como dos poderes majoritários e representativos do sistema.

A primeira notícia do corpus, de 7 de outubro de 2013, insere o Black Bloc em um

padrão narrativo da imprensa brasileira para tratar do assunto: a polarização “pacíficos”,

desobedientes civis autorizados para o protesto (désobéisseurs), versus “vândalos”,

desobedientes (désobéissants) transgressores desautorizados para a manifestação em

decorrência do emprego de suposta violência contra bens e prédios.

Na matéria intitulada “Polícia dissolve com bombas manifestação em apoio à

educação na Cinelândia”, a tática é encenada como ruído que iria contra o espírito do bem

comum da manifestação “legítima” em prol da educação. Já no lead temos: “Policiais do

Batalhão de Choque dissolveram com uso de bombas a manifestação intitulada Um Milhão

pela Educação, que se iniciou pacífica [...]. Os policiais só intervieram quando um grupo de

centenas de Black blocs começou a depredar o prédio da Câmara de Vereadores, que teve

algumas janelas incendiadas” (AGÊNCIA BRASIL, 2013a: grifos nossos). Os trechos

demarcados evidenciam a visão reducionista sobre a tática somente pela linha de frente, não

procurando compreender o simbolismo das ações, tal como justificam os adeptos, em que o

alvo seria a mensagem.

A narrativa prossegue elencando, quantitativamente, os danos e a intervenção do

Estado na transgressão. O encerramento da notícia assinala: “Os professores [...] em nenhum

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momento participaram de nenhum ato de violência, ficando afastados o tempo todo dos Black

blocs” (AGÊNCIA BRASIL, 2013a).

A notícia procura relatar o desenrolar cronológico dos fatos, em uma perspectiva que

aciona memórias discursivas sobre as normas sociais permitidas para a categoria manifestação

e protesto. Os imaginários sobre os Black blocs são sustentados por (I) testemunhos do

vivido, em que o repórter relata os acontecimentos em ordem sequencial e temporal,

procurando gerar efeitos de veracidade ao dito. Tal relato, por sua vez, tende a ser não

refutável e interpretado por meio de quadros de referência do campo da crença da opinião

comum, visando construir saberes definitivos e essencializantes de que a tática teria

atrapalhado a manifestação “pacífica” (logo, supostamente legítima) em prol da educação.

Desse modo, podem ser acionados julgamentos morais como: a violência não caberia

ao cidadão, mas somente ao Estado, figura à qual este cedeu seus direitos. Assim, os Black

blocs são designados – pelo contexto e a forma de relatar o fato – como agentes violentos. A

desobediência civil transgressora dos “désobéissants” é reconhecida, descrita e refutada por

tentar ultrapassar os limites da ordem social prevista para o sistema democrático: o cidadão

está autorizado a desobedecer desde que não desempenhe o papel do Estado (no caso, a

violência).

A segunda matéria, do mesmo dia, relata mais cenas de “vandalismo” em:

“Manifestantes incendeiam ônibus na Avenida Rio Branco e jogam coquetel-molotov no

consulado americano”. O texto narra a cena do confronto entre adeptos da tática e Batalhão de

Choque, identificando – no lead – que se tratavam dos mesmos manifestantes do protesto em

prol da Educação da primeira notícia. As ações são quantificadas para dar a noção dos atos

violentos: “incendiaram um ônibus na Avenida Rio Branco, depredaram mais dois, e jogaram

dois coquetéis-molotov no consulado americano” (AGÊNCIA BRASIL, 2013b). Novamente,

narra-se a intervenção da Polícia para cessar os protestos.

Tal como na notícia anterior, o dizer jornalístico projeto sensos de que os adeptos da

tática exercem uma violência não autorizada. Porém, pela primeira vez, a Agência emprega

julgamento de valor explícito contra os ativistas: “Os vândalos tentaram incendiar um

segundo ônibus, mas fugiram com a chegada da polícia sem que o veículo fosse incendiado”

(AGÊNCIA BRASIL, 2013b: grifos nossos). Cabe pontuar que as notícias não quantificam

nem problematizam como foi a intervenção violenta do Batalhão de Choque. Esse

silenciamento favorece a legitimação do emprego da violência pelo Estado.

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No dia seguinte, a Agência Brasil retorna aos locais dos protestos para narrar e

contabilizar os prejuízos na área da Cinelândia, no Rio de Janeiro, onde as duas notícias

anteriores narraram a atuação dos Black blocs. A manchete classifica o resultado da ação da

tática como “destruição”. No terceiro parágrafo, a matéria afirma: “O protesto seguia de

forma pacífica, até chegar à Cinelândia, onde um grupo de manifestantes conhecidos como

Black blocs, que ignoraram a lei que proíbe o uso de máscaras, incendiaram um ônibus e

depredaram mais dois” (AGÊNCIA BRASIL, 2013c: grifos nossos). Com isso, a Agência

reforça o contexto de uma violência sem causa e passa a designar os adeptos da tática como

“fora da lei”, cujo efeito de sentido pode remeter a ação criminosa.

A notícia recorre fontes testemunhais para dar veracidade à refutação dos atos. Na

posição de vítimas da situação, um gerente de lanchonete e uma vendedora são entrevistados.

O primeiro aponta posicionamento contrário aos ataques Black Blocs: “Todos nós ficamos

revoltados com as injustiças por parte do governo do Rio, mas eu acho que quebrar as coisas

não é o melhor caminho para resolver a situação [...]. Por meio de saberes de crença de

opinião comum, com visada universalizante, o testemunho aciona modos de enquadramento

de outros campos para observar e julgar um ato “novo”.

No relato da vendedora, são projetados saberes de crença de medo quando o cidadão

faz uso da violência, convocando imaginário de caos e desordem: “Eles [clientes] não vêm

para cá, com medo de serem vítimas desses mascarados”. (AGÊNCIA BRASIL, 2013c: grifos

nossos). Logo, nas vozes de “cidadãos comuns” afetados pelos protestos, a Agência

arregimenta saberes de crença de opinião coletiva, cuja função é essencializante.

A quarta matéria, veiculada também em 8 de outubro, contabiliza os danos e perdas do

primeiro protesto durante manifestação em prol da educação. Os três primeiros parágrafos

procuram atestar numericamente os prejuízos, agora com 13 pessoas como vítimas. A notícia

é construída com base apenas em dizeres do governador do Rio, Sérgio Cabral, o qual passa a

julgar os atos enquanto figura representativa do Estado. Em discurso indireto, afirma: “os

black blocs [...] querem apenas causar caos e pânico durante os protestos no Rio. Para ele, a

PM atuou de maneira muito correta, garantindo a manifestação tranquila”. Já em discurso

direto, o governador prossegue: “[São grupos que] desejam o caos das instituições, agridem

governos, igrejas, imprensa, bancos, mas a maioria da população repudia isso. A população

quer trabalhar, viver, ter serviços públicos, quer se manifestar” (AGÊNCIA BRASIL, 2013d:

grifos nossos).

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Os excertos projetam imaginários da violência transgressora como fator negativo que

abalaria a ordem e o direito ao protesto. De modo explícito, ocorre a polarização entre

“désobéisseurs” e “désobéissants” transgressores. Por meio de saberes de crença de opinião

coletiva, o governador incita a ordem social e, com isso, nega a legitimidade dos atos da tática

e seus objetivos. Ao final da notícia, o papel da polícia é esclarecido pelo governador:

assegurar a manifestação pacífica e agir no “combate aos vândalos”: “Aí, sim, entra a polícia

para controlar” (AGÊNCIA BRASIL, 2013d). A luta por sentidos ocorre, mais uma vez, no

domínio sobre a representação da violência.

Nessas quatro notícias, os adeptos não são ouvidos para darem suas versões sobre os

fatos. As narrativas procuram designá-los por meio de uma progressão que arregimenta

provas e efeitos de veracidade que saem do repórter como observador do desenrolar dos

acontecimentos, passando pela qualificação e opinião nas vozes de testemunhas da

“destruição” e, enfim, o encerramento da fonte oficial via posição do governador. Há, com

isso, uma evolução na gradação dos sentidos de designação: o ato violento passa a ser narrado

em uma dramaticidade de guerrilha urbana, em que os atores são classificados como

“vândalos” e suas ações qualificadas como errôneas na forma de protestar. Como reflexo, os

violentos passam a gerar “medo” nos consumidores e, por fim, despertam – na posição oficial

do Estado – caos e pânico na cidade.

Após projetar imaginários negativos sobre a tática, a Agência, em 11 de outubro,

destaca a nota à imprensa da Federação do Comércio do Estado do Rio de Janeiro, o qual

apoia “a utilização de recursos legais duros contra praticantes de atos de vandalismo,

promovidos por grupos de mascarados [...] identificados como Black blocs [...]” (AGÊNCIA

BRASIL, 2013e).

Construído somente com base na nota de assessoria de comunicação e em entrevista

com o presidente da entidade, o texto prossegue afirmando que os “comerciantes estão entre

os mais prejudicados pela ação de manifestantes violentos”. Curioso observar que a Agência

abre espaço para o posicionamento justamente dos alvos da linha de frente da tática, mas sem

procurar explicar os motivos das vidraças quebradas.

Com o uso de aspas do dizer do presidente da entidade, a matéria associa Black blocs

a vandalismo: “chamados Black blocs, que deixam rastro de violência e destruição”. O

entrevistado conclui: “É preciso ação firme contra a destruição de patrimônio [...]”

(AGÊNCIA BRASIL, 2013e).

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A cobrança da Federação do Comércio por punição a atos de vandalismo se concretiza

na matéria seguinte. A Agência Brasil (2013f) volta a noticiar sobre os Black Blocs no dia 16

de outubro de 2013, trazendo os reflexo da manifestação em São Paulo no subtítulo da

matéria: “confronto deixa marcas de destruição e saldo de 56 detidos”. A notícia descreve a

ação contra lojas, agências bancárias, bem como o enfrentamento e ferimentos a quatro

policiais. Sem consulta a fontes, o texto retoma a narrativa do contexto de violência para

classificar a tática. Porém, traz como destaque o efeito de punição contra os atos: a prisão.

Dessa forma, a violência transgressora, até então, refutada no plano simbólico, é concretizada

pela ação do Estado.

Mais do que explicar, adjetivar e caracterizar os sujeitos e suas ações, a designação

“violento” (e suas variações) tem impactos diretos na prática social. Dupuis-Déri (2014, p. 31)

afirma que essas palavras e similares possuem “efeitos políticos muito reais, pois privam uma

ação coletiva de toda a credibilidade, reduzindo-a à expressão única de uma violência

supostamente brutal e irracional da juventude”. O julgamento moral de ataques contra bens

materiais esconde outras formas de ver e debater as faces dos protestos. Assim, as violências

anarquista e estatal (de modo sistêmico ou coercitivo pela polícia) estariam no mesmo

patamar? Para Dupuis-Déri (2014, p. 84), “Quase todos os regimes liberais atuais, que dizem

incorporar valores de liberdade, igualdade e justiça, foram fundados com base em atos muito

mais violentos do que as ações diretas conduzidas pelos ativistas de hoje”. Na ótica do autor,

há um esforço pelo monopólio da violência como sustentação da autoridade política do

Estado, cuja significação se instala por meio do imaginário de uma suposta barbárie se os

cidadãos praticarem atos violentos.

Nos relatos coletados por Solano, Manso e Novaes (2014), os ativistas dizem que a

estigmatização de Black Bloc como “vândalo” e o consequente processo de criminalização

via significação impediriam o entendimento sobre a “real” violência, a sistêmica. Para Žižek

(2014, p. 161), a estimatização da violência como má “é uma operação ideológica por

excelência, uma mistificação que colabora no processo de tornar invisíveis as formas

fundamentais de violência social”. Nessa perspectiva, o autor condena a “falsa antiviolência”

e aceita a existência da violência emancipatória. Benjamin afirma que:

[...] o caráter violento de uma ação não deve ser julgado segundo seus efeitos ou fins, mas apenas segundo a lei de seus meios. Sem dúvida, o poder do Estado, que tem olhos apenas para os efeitos, se contrapõe precisamente a essa modalidade de greve como se fosse violência, em contraste com as

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greves parciais que, na maioria das vezes, são de fato formas de chantagem (BENJAMIN, 2011, p. 142).

A Agência Brasil parece se afastar dessa complexidade ao tratar da tática e seus modos

de atuação, seguindo a lógica da simplificação do debate em torno da violência. Žižek (2014),

explica que as sociedades ocidentais contemporâneas possuem duas formas de violência: (I) a

“violência fundamental” (nos termos de Benjamin: “violência mítica”, isto é, violência estatal

fundadora da lei), a qual sustenta o funcionamento “normal” do Estado; (II) e a “violência

divina”, nos termos benjaminianos, fornece bases para contrapor o Estado em manifestações

tidas como “irracionais” e sem demandas programáticas concretas.

Da ordem da representação, a interpretação de um ato como violento ou não depende

do grupo e contexto sociocultural. De acordo com Žižek (2014, p. 166), há uma interrelação

entre violência subjetiva e sistêmica: a “violência não é uma propriedade exclusiva de certos

atos, distribuindo-se entre os atos e seus contextos, entre atividade e inatividade”. O autor

esclarece que a causa da violência reside, portanto, no “medo do próximo” que se funda na

“violência inerente à própria linguagem”.

Interessante pontuar que a luta pelo sentido da violência também se instala dentre os

ativistas: [...] teríamos, então, duas categorias de violência: aquela exercida fora da filosofia

da tática, que não conduz a uma reflexão, impulsiva, repelida pelos mais politizados; e aquela,

simbólica, que segue os dogmas teóricos da prática Black Bloc (SOLANO, MANSO,

NOVAES, 2014, posição 1054-1060).

Depois de seis notícias que cristalizam imaginários sobre a tática Black Bloc como

violenta e as pune simbólica e materialmente, a Agência amplia a perspectiva sobre a tática.

Em “Black Bloc é tema de audiência na Câmara de Deputados”, é a primeira vez que se

convoca uma especialista para explicar a tática. Logo no lead, a violência passa a ser

designada como “sintoma de uma ‘doença institucional’”. Em seguida, explica-se o histórico

de desenvolvimento dessa modalidade de protesto de inspiração anarquista.

No terceiro e quarto parágrafos, a Agência – na voz da professora Esther Gallego –

esclarece que os adeptos “são jovens de classe média, maduros politicamente e que querem

uma mudança estrutural no sistema político brasileiro”. Para a especialista, “eles usam a

violência para chamar a atenção”. Ao recorrer a um advogado e coordenador do blog Para

Entender Direito, da Folha de S. Paulo, o texto afirma “Sem a violência, eles não teriam se

tornado atores políticos. Mas, para a democracia, isso não funciona. [...] Mesmo aqueles que

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agiram de forma criminosa podem ter reivindicações legítimas” (AGÊNCIA BRASIL,

2013g).

A última notícia, de 23 de outubro, revela que a Ouvidoria dos Direitos Humanos fará

um relatório sobre atuação da polícia nas manifestações. Na procura por entender a dinâmica

dos protestos, o ouvidor tenta traçar o que denomina de “relatório isento e imparcial”. Sobre a

tática, ele relata a observação da movimentação de manifestação ocorrida em 15 de outubro

na Cinelândia, no Rio: “Nós conseguimos perceber o início do confronto, quando os Black

blocs se direcionaram para a Assembleia e se depararam com a Tropa de Choque, e aí houve o

primeiro confronto que desencadeou uma série de outros confrontos entre policiais e

manifestantes” (AGÊNCIA BRASIL, 2013h).

Nota-se uma mudança no modo de tratar os fatos. Se, anteriormente, a Agência

classificava os adeptos da tática como violentos e causadores da intervenção policial, neste

último excerto, pela voz do ouvidor, é relegada a designação de “violência” atribuída somente

aos ativistas: apesar de ressaltar a cena de confronto, o texto classifica as duas partes

envolvidas como agentes causadores.

Tal como a mídia tradicional, o roteiro traçado pela Agência Brasil segue parte da

linha descrita por Dupuis-Déri:

Quando um Black Bloc entra em ação, a resposta da mídia costuma seguir um padrão típico. Na mesma tarde ou manhã seguinte, os editores, colunistas e repórteres falam mal dos arruaceiros dos Black Blocs, chamando-os de “vândalos”. No dia seguinte, porém, o tom costuma ser mais neutro. Os leitores são informados de que os anarquistas estão por trás de táticas envolvendo armas como coquetéis Molotov, assim como o uso de escudos e capacetes para se defender. Esses artigos às vezes fazem referência a grandes Black Blocs do passado. Em seguida, citam alguns acadêmicos, assim como representantes da polícia e porta-vozes de movimentos sociais institucionalizados, que se desassociam dos “vândalos”. No máximo, o jornalista cita alguns participantes do Black Bloc, que, então, passam a ter a chance de se defender e explicar por que agem daquela forma (DUPUIS-DÉRI, 2014, p. 20).

A cobertura da Agência descreve os atos como violentos, convoca atores para

qualificá-los em designações como “vandalismo”, “caos”, “desordem” e, por fim, abre espaço

para que especialistas apontem versões sobre a tática. Entretanto, os adeptos sequer foram

citados e/ou entrevistados para darem suas versões sobre os fatos.

Em um plano sociohistórico, o tratamento dado à tática Black Bloc pela Agência

Brasil tende a excluir a inserção da ação em uma tradição que procura refletir sobre possíveis

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mudanças sociais por meio de protestos em espaços públicos. Segundo Ortellado (2014), a

tática surgida na Alemanha foi ressignificada em solo estadunidense, em especial, no ano de

1999, em Seatle com a prática de desobediência civil não violenta, inspirada em Gandhi e

Martin Luther King Jr. O pressuposto era que a desobediência civil deveria gerar efeitos

políticos com a cobertura da violência policial pela imprensa, o que passou a não ocorrer de

forma contínua pelo que diagnosticaram como ausência de uma imprensa livre e atuante.

Sem o amparo da visibilidade midiática, a tática redefiniu a ação: ainda contando com

a cobertura da mídia, passou a exercer a desobediência com destruição seletiva da propriedade

privada, onde o alvo seria a mensagem. Tal prática foi a utilizada pelos adeptos brasileiros nas

jornadas de 2013 e 2014, por exemplo. “[...]A destruição seletiva de propriedade privada não

é feita de maneira arbitrária, mas segue regras pactuadas pelos ativistas: não podem ser alvo

dos pequenos comércios e as ações não podem resultar na agressão a pessoas ou animais”

(ORTELLADO, 2014, posição 2999-3006).

O emprego da estratégia surtiu efeito na cobertura nacional. Os adeptos paulistanos,

por exemplo, tinham cerca de 70 a 200 integrantes, conforme Solano, Manso e Novaes

(2014), e suas ações “não pacíficas” ocorreram apenas em 23 das 584 manifestações de 2013,

segundo dados da Polícia Militar paulistana indicados a esses autores. Assim, como minoria

de eventos dentro de outra magnitude, os Black Blocs passaram a ocupar as manchetes da

imprensa justamente pela linha ofensiva e a sua designação de vandalismo. Com isso, a

destruição como artimanha de espetacularização midiática, entretanto, passa a ser designada

como violenta pela grande imprensa brasileira e também pela Agência Brasil.

É justamente nessa categoria da representação da violência que residem os limites do

entendimento e aceitação/recusa do emprego da tática. Assim como Ortellado (2014), Solano

(2014) também afirma ser necessário relativizar o enquadramento da tática como violenta: “a

agência bancária incendiada e o policial ferido não pertencem aos mesmos graus na hierarquia

das violências” (posição 1237). Os adeptos da tática relatam à autora que os atos não se

caracterizam como violência, mas “performance – é um tipo de espetáculo” (posição 502). No

ataque à PM, segundo Solano, Manso e Novaes (2014), há uma desumanização do homem

fardado, o qual passa a ser o símbolo da corporação e, consequentemente, em nosso

entendimento, a representação da violência sistêmica e estatal.

Sobre os protestos 2013 no Brasil, Iasi (2014, p. 172) considera que “a irrupção

violenta das massas nas ruas [...] funcionou como um choque de realidade, rompendo a

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película ideológica e nos jogando abruptamente no deserto do real”, desvelando “as formas

fundamentais da violência social”, nos termos de Žižek (2014). Diante essa irrupção, a

Agência Brasil arregimentou uma série de significações para tentar explicar e qualificar o

fenômeno da desobediência civil transgressora.

No caso da tática Black Bloc, a imagem pública é diferente da que circula entre os

adeptos. Para Kovich (2011), “The ethos of the black bloc is one of solidarity and collective

care3”. A autora assinala que a intencionalidade é evidenciar possibilidades de uma nova

sociedade a partir de novos modos de ser, interagir e se organizar uns com os outros.

Considerações Finais

As transgressões, rupturas, desordens e diferenças fazem parte da dinâmica das

cidades. Entretanto, as categorias imaginárias de “civilidade” e “ordem” estão atreladas a

representações de poder dados por discursos de grupos dominantes, os quais procuram regular

o “poder dizer” e também os corpos.

Os imaginários sociodiscursivos projetados pela imprensa possuem efeitos de

cristalização em longo prazo, por meio de saberes de crença essencializantes e

universalizantes, os quais depositam, na memória discursiva, opiniões que podem sobreviver

mais facilmente aos embates discursivos. Como visto, a tática Black Bloc foi retratada pela

Agência Brasil apenas pela linha ofensiva, apresentando uma visão simplificadora sobre a

forma horizontal de governança em protestos e garantia de liberdade de expressão. Diante das

ações, a designação “violência” permanece como fio condutor em todas as oito notícias,

perpassando desde níveis de relato até julgamentos de valor explícitos.

O risco de se ter acesso aos conhecimentos de mundo via imaginários reside

justamente no modo como os sujeitos têm contato com o real. Tal como adverte Castoriadis

(1982), temos acesso somente às significações da realidade e não ao real em si. Ao

considerarmos que a imprensa possui posição central nos jogos discursivos da esfera social, as

visões redutoras sobre os sujeitos e objetos de mundo passam a ser reverberadas com maior

intensidade, tendo em vista que o cidadão/consumidor de informações não consegue

contrapor todos os quadros de referência com vivências pessoais, por exemplo. Na missão

de uma agência pública, caberia ao emissor procurar justamente observar novos e outros

3 Tradução nossa: “O ethos do Black Bloc é de solidariedade e cuidado coletivo”.

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ângulos dos acontecimentos, para além do espectro da imprensa comercial, o que não ocorreu

plenamente.

Para o entendimento mais geral sobre o tratamento da Agência Brasil sobre a tática,

para estudos futuros – cabe ampliar o recorte temporal do corpus (um mês), pois este não

permite generalizar o posicionamento do veículo para as demais notícias que tenham em cena

adeptos Black Bloc. Assim, abre-se espaço para pesquisas posteriores a fim de entender a

forma de emprego dos imaginários e suas cristalizações ao longo das narrativas durante todo o

ano de 2013.

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Memórias do futuro: novas práticas para moda e comunicação

Future memories: new practices for fashion and communication

Mémoires de l’avenir : nouvelles pratiques pour la mode et la communication

Paula Cristina Visoná1 Paula Coruja2

Resumo Neste trabalho, elaboramos uma proposta de identificação da identificação de tendências de ciclo longo, a fim de viabilizar a constituição de memórias do futuro – visões que sirvam para fundamentar caminhos para o desenvolvimento de novas práticas em campos como comunicação e moda. Partimos do princípio de que tendências surgem de ideias, e que essas permeiam vozes-consciência no cotidiano social, configurando-se como sensibilidades que emergem a partir de relações interindividuais. Nos apoiamos no dialogismo de Bakhtin (1994), na sociologia compreensiva de Mafesolli (1988) e na antropologia interpretativista de Geertz (1978) para abordar tais atravessamentos. Nos apoiamos, também, nos estudos culturais britânicos, para compreender como as representações sociais e identidades são construídas e problematizar o papel da comunicação a partir de apropriações interdisciplinares. Palavras-chaves: tendências; moda; comunicação; identidades. Abstract In this paper, we present a proposal for identification of the long-cycle trends identified in order to enable the formation of memories of the future - visions that serve to support ways for development of new practices in fields such as communication and fashion. We assume that trends emerge from ideas, and these voices permeate consciousness in everyday social life, configured as sensitivities that emerge from interpersonal relations. We support the dialogism Bakhtin (1994), the comprehensive sociology of Mafesolli (1988) and interpretive anthropology of Geertz (1978) to approach such crossings. We support, as in British cultural studies, to understand how the social representations and identities are constructed and discuss the role of communication from appropriations interdisciplinar. Keywords: trends; fashion; communication; identities.

1. Introdução

A investigação propõe apresentar uma proposta de identificação da

identificação de tendências de ciclo longo – tendências socioculturais – a fim de viabilizar a 1 [email protected] 2 [email protected]

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constituição de memórias do futuro – visões que sirvam para fundamentar caminhos para o

desenvolvimento de novas práticas em campos como comunicação e moda. Para tanto,

partimos do princípio de que tendências surgem de ideias, e que essas permeiam vozes-

consciência no cotidiano social, configurando-se como sensibilidades que emergem a partir de

relações interindividuais.

A materialização dessas vozes-consciência se dá por meio de signos que

podem ser entendidos como corporificações desse algo latente que representa e potencializa a

comunicação entre os indivíduos no meio social (SANTAELLA, 2007). Para Flusser (2007),

essa tarefa é viabilizada pela substituição desse algo latente, a fim de construir canais de

relação. Ao alinharmos ambas perspectivas é possível compreender a imanência de um

determinado padrão (uma tendência), permeando relações subjetivas-objetivadas, num dado

período temporal, que se estabelece em nível micro e macro. Nesse sentido, parece existir

uma imanência sociocultural na efetivação da tarefa de materialização sígnica, visto podermos

interrelacionar a necessidade de produção de signos a de dar forma ao substrato social de um

determinado período (ECO, 1999).

Ao cruzarmos produções sígnicas circunscritas à comunicação e moda, em um

dado período de tempo, podemos localizar tanto o surgimento de uma ideia, como sua

pertinência e posterior desenvolvimento. Todas essas construções se dão por meio de ações e

interações estabelecidas no cotidiano interindividual, pois esse é um espaço propício à

geração de vínculos associativos e de uma “fluidez e uma pulsação que atam os indivíduos

mesmo quando não atingem a forma de verdadeiras organizações” (SIMMEL, 2006: 17).

Portanto, identificar tendências de ciclo longo tem a ver com perceber nos fatores que compõe

o mosaico de acontecimentos, que formam o cotidiano, as latências e as imanências,

configuradas como vínculos associativos entre por meio da produção sígnica.

Nos apoiamos no dialogismo de Bakhtin (1994), na sociologia compreensiva

de Mafesolli (1988) e na antropologia interpretativista de Geertz (1978) para abordar tais

atravessamentos, a fim de propor uma compreensão amplificada de como essas dinâmicas se

estabelecem na contemporaneidade. Para nos auxiliar nesse processo de compreensão, os

estudos culturais britânicos e latino-americanos também serão nossos referenciais por

evidenciarem a estrutura de produção e sentido que a comunicação e a indústria da cultura

produz nos consumidores. Essa perspectiva também ajuda a compreender como as

representações sociais e identidades são construídas (HALL, 1999) e problematiza o papel da

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comunicação a partir de apropriações interdisciplinares, fundamentais no relacionamento de

moda e comunicação.

2. Materialização das tendências sociais

Ao nos apoiarmos nos apontamentos tecidos por Santaella (2007), podemos

considerar que tudo é signo. Sendo assim, é possível afirmar que o pensamento será a

primeira instância de constituição síginica, portanto, materialização. Para compreender

melhor como isso se dá, nos alinhamos a argumentações oferecidas pelos sociólogos Berger e

Luckmann (2009). Segundo os teóricos, a materialização pode ser entendida como produção,

que é fruto de interconexões, que, primeiramente, se dão em nível subjetivo, para após

assumirem formas em instâncias de representação que compõe o mosaico sociocultural

coletivo. Trata-se, ainda conforme Berger e Luckmann, da expressividade humana, que alinha

produtores e produtos além de situações face a face, expandindo as formas de expressão e

viabilizando objetivações conforme vão se estabelecendo novas relações intersubjetivas

(IBIDÉM, 2009).

Digamos que, por meio da produção humana (em diferentes níveis), podemos

acessar aspectos imanentes da ordem do sensível, que tanto é individual, quanto coletivo. O

acesso se dá via materialização sígnica, que funciona como meio de expressão em si. Claro,

não estamos aqui defendendo que essa dinâmica não tenha certos limites. Relacionar tudo a

qualquer coisa é uma tarefa perigosa, que nos leva apenas ao deslizamento contínuo dos

sentidos, seja em nível sígnico, seja em nível interrelacional sociocultural (ECO, 2012).

Estamos considerando que a produção humana transforma-se em linguagem, que reflete

cadeias que articulam imaterialidade e materialidade, conectando intersubjetivamente

indivíduos de modo a constituir narrativas. A existência de narrativas subentende a existência

de sentidos: significados estabelecidos como mecanismos de reconhecimento do nível de

elaboração sígnica efetuado num dado momento, para dar conta de comunicar – tornar

comum – uma sensibilidade social. Portanto, uma ideia. É uma relação de interdependência

que se estabelece, e que aponta para a emergência de padrões – tendências – que irão se

desenvolver de modo a interrelacionar produções nas mais diferentes áreas. Estamos, então,

falando sobre tendências com um ciclo de desenvolvimento mais amplo, visto inter-

relacionarem conhecimentos distintos. Diferente do que acontece, por exemplo, com as

tendências efêmeras de moda.

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Segundo Caldas (2004), as tendências de ciclo longo são tendências sociais,

que, na visão de Massonnier (2008), também podem ser intituladas de macrotendências

sociais. Empreender a tarefa de identificação desse tipo de tendência subentende tanto um

apuro perceptivo sensorial e qualitativo, quanto uma proposta metodológica que estabeleça

certos limites a essa dinâmica. Já compreendemos que tudo é signo, mas, é mister estabelecer

quais são as produções mais relevantes em um dado momento, pois, estamos justamente

buscando compreender quais sensibilidades estão emergindo das ações e interações entre

indivíduos num dado período temporal; como isso pode ser entendido como uma tendência de

ciclo longo e, por fim, como isso irá impactar no desenvolvimento de novas produções –

portanto, apresentar nuances no devir cultural. Estamos considerando elaborações futuras, em

vários níveis.

Essa relação subjetividade/objetivação/relações intersubjetivas foi

analisada pelo antropólogo Clifford Geertz no sentido, justamente, de gerar um entendimento

para cultura que permitisse acessar certas instâncias emergenciais latentes – sempre tendo em

mente um ambiente onde existam múltiplas relações interindividuais para desenvolver tal

tarefa. Desse modo, o antropólogo pôde conceber uma definição de cultura que o

aproximasse da imanência simbólica que permeia as relações, independente do contexto

sociocultural que estiver sendo relevado. Conforme Geertz, em seu clássico estudo A

Interpretação das Culturas (1978), cultura são teias de significado que veiculam relações de

valor – significações, em vários níveis – atribuídas de modo a refletir a relação

material/simbólica em um dado contexto territorial, onde coexistem diversas esferas, agentes,

instâncias, instituições, ... (IBIDÉM, 1978).

Seguindo esse raciocínio, através das relações entre materializações sígnicas,

efetuadas para dar conta de elaborações tanto em nível de pensamento, como em nível de

palavras, gestos, eventos, etc., constroem-se significados. Esses, por sua vez, são articulados

de modo a proporcionar sentido, demonstrando o teor de elaboração atingindo em um

determinado momento, por um número delimitado de indivíduos, que se interrelacionam em

um determinado ambiente. Segundo Geertz, esses significados se alinham em intrincadas

redes, sendo a tarefa de interpretação uma empreitada que se estabelece a partir da leitura

(acesso) a essas redes (IBIDÉM, 1978).

Ou seja, a tarefa de interpretação parece simples quando há produção sígnica

que busca dar conta de algo, digamos, comum a um número maior de indivíduos –

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pressuposto importante para a construção de redes de significados, como nos ensina Geertz.

Segundo essa perspectiva, essas redes de significados são fortes, pois permeiam várias

relações intersubjetivas/objetivas. Mas, e quando essas redes ainda são tão fracas que não é

possível percebê-las no emaranhado de outras redes manifestas, estabelecidas? Ou, quando há

simultaneidade dessas redes, pois, existem vários ambientes de geração de significados

funcionando ao mesmo tempo? Bem, nesses contextos talvez seja importante entender melhor

o que dá liga às redes.

Partindo do princípio de que a produção humana já se inicia em nível mental –

pressuposto anteriormente apontado a partir de Berger e Luckmann (2009) – podemos

especular que há algo que ativa esse processo. Já consideramos que, pelo viés da sociologia,

esse algo é uma sensibilidade social. Mas, partindo de Bakhtin, podemos considerar que esse

algo é a ideia. Em sua teoria intitulado Dialogismo, Bakhtin considera que a ideia é o que

torna o pensamento humano vivo (portanto, encarnado, sígnico, produção), visto que a ideia

vive e nasce no ponto desse contato entre vozes-consciências (IBIDEM, 2008, pg.:98).

Ainda consoante o autor:

..., a idéia é interindividual e intersubjetiva, a esfera da sua existência não é a consciência, não é a comunicação dialogada entre as consciências. A idéia é um acontecimento vivo, que irrompe o ponto de contato dialogado entre duas ou várias consciências. Neste sentido a idéia é semelhante ao discurso, com o qual forma uma unidade dialética. (BAKHTIN, 2008:98)

Seguindo essas considerações, podemos argumentar que o que permite a construção de

redes interrelacionais produtivas é a ideia, que potencializa a geração de múltiplas produções,

pois, ativa o contato com novas vozes-consciência no momento em que se torna signo,

construindo, assim, uma ampla teia de significados. Esse grau de sentido se constitui devido à

interpretação, visto a materialização sígnica ser fruto de elaboração subjetiva/objetiva. Nesse

sentido, o entendimento de signo para Bakhtin (2008) está alinhado a compreenção de

Umberto Eco (2012): o signo é uma representação que veicula aspectos tanto individuais,

quanto socioculturais coletivos. Seguindo esse raciocínio, toda encarnação sígnica (e,

podemos considerar, toda produção humana), interrelaciona indivíduos, contextos e épocas.

Seguindo esse viés, perceber uma rede de significados emergentes tem a ver com observar

contextos – ou áreas – específicas, por um determinado período de tempo. A efetivação dessa

prática visa a identificação de certas, digamos, repetições: os padrões que conectam

produções em diferentes contextos. Ou seja, tendências.

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Ainda não levamos em conta o que já anunciamos anteriormente, portanto, como se dá

essa prática de identificação desses aspectos intangíveis quando a produção, a ser relevada, é

múltipla, profícua e simultânea. Cabe, agora, introduzirmos esses aspectos.

3. Novas interações interindividuais e o impacto das tecnologias

A partir do fenômeno da globalização – que se intensificou nas últimas décadas – é

possível localizar a ampliação das possibilidades de interação nos ambientes sociais mais

diversificados devido, principalmente, às alterações fomentadas pela maturação e

convergência das tecnologias. Essas passaram, por sua vez, a atuar como moderadoras das

práticas diárias dos indivíduos e suas relações, configurando uma nova lógica cotidiana

(SGORLA, 2009).

Essa perspectiva, segundo Fausto Neto (2006), acabou por engendrar uma nova

arquitetura organizacional da sociedade, que passou a sofrer alterações em sua composição a

partir do processo de midiatização maximizado, tornando-se não-linear, descontínua,

segmentada, e complexa. O impacto desses aspectos implicou na emergência de múltiplas

formas dos indivíduos se interrelacionarem. Esses aspectos, como considera Santaella (2008),

potencializaram fenômenos de hibridização, desdobrando-se, por fim, em novas formas de

produções/materializações sígnicas.

Para Marc Augé (2006), esse fenômeno é um subproduto da supramodernidade atual,

com o excesso como pauta principal, considerando informações, imagens e individualismo

como elementos que, atrelados às novas tecnologias da comunicação, conformam os

indivíduos como parte da esfera do imediatismo e da instantaneidade. Para o antropólogo,

essas conformações funcionam como identificações, não mais como identidades (IBIDÉM,

2006). Isso afeta, inclusive, na própria maneira de expressão subjetiva: pela força - e pela

efemeridade - das múltiplas identificações, a materialização sígnica passa a ser cada vez mais

fragmentada, múltipla e coletivizada.

Portanto, modificam-se as maneiras de produção, mudam, também, as redes de

significados que interconectam essas produções. Isso porque o ambiente de materialização

sígnica não é mais um único contexto delimitado, pois, o tornar comum é móvel, e a essa

lógica comunicacional permeia as produções contemporâneas. Nesse momento, parece

importante introduzirmos uma nova lógica interrelacional vigente: a ubiquidade.

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Segundo Santaella (2010): “A ubiquidade destaca a coincidência entre deslocamento e

comunicação, pois o usuário comunica-se durante o deslocamento.” (IBIDÉM, pg.:17). Ou

seja, a produção se dá ao mesmo tempo em que o deslocamento acontece. Isso é possível,

pois, como vimos a partir de Augè (2006), o impacto das tecnologias comunicacionais está

articulado ao imediatismo e à instantaneidade. Ao produzir signos de maneira móvel, os

indivíduos também acabam por modificar suas relações com os ambientes de produção.

Essa nova lógica não só impacta nas formas de produção, mas, também, nas relações

entre os produtores e seus contextos de materialização sígnica. Estamos considerando, aqui,

transformações também nos ambientes de produção. Recorrendo, novamente, a Santaella

(2010), veremos que a ubiquidade irá transformar os ambientes interrelacionais, que passam a

ser vistos como ubíquos:

“... são espaços hiperconectados, espaços de hiperlugares, múltiplos espaços em um mesmo espaço, (...). São espaços povoados por mentes multiconectadas e, por consequência, coletivas, compondo inteligências fluidas. (...) os espaços ubíquos intensificam a potencia inata da mente para a fluidez, pois permitem que múltiplas realidades desfilem em nossa mente.”(SANTAELLA, 2010, pg.: 18)

Analisando por um outro viés, podemos considerar que o princípio da ubiquidade – e

da configuração dos espaços ubíquos – tem forte relação com a ideia de afetividades

efêmeras, que Maffesoli (2002) irá localizar quando analisa o socius contemporâneo. Claro,

compreendemos que a tecnologia contribuiu para o estabelecimento disso. Consideramos isso

anteriormente, ao falarmos sobre tecnologia x midiatização. Nesse sentido, parece que o

próprio ambiente social foi estimulador da transformação, tanto em nível de produção, como

do espaço de produção na atualidade. Isso acaba por nos conduzir de volta ao que dá liga às

materializações/produções, mesmo que sejam efêmeras, simultâneas, ou, móveis. A partir de

Bakhtin (2008), compreendemos que a ideia é o que conecta vozes-consciência. Para tanto, é

viva e interindividual. Além disso, as ligações podem ser vistas como o espaço de

identificação entre os sujeitos e esses pontos de identificação acontecem na cultura, imbricada

na comunicação.

4. Identidade, moda e comunicação

Comunicar é um processo amplo e complexo. Comunicamos ao falar, ao olhar, ao

representar – com desenhos, fotos ou outras iconografias -, e, até mesmo, ao vestir. Moda,

aqui entendida através da indumentária, é um dos elementos de maior visibilidade na

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atualidade. E é interessante observar o quanto grupos, que partilham uma mesma identidade,

usam a moda/indumentária como símbolo de comunicação. Os grupos formados, muitas

vezes, distinguem-se pelas cores e modelos de vestimenta, que funcionam como símbolos de

identificação corporal provisória.

Para falar de identidade, primeiro precisamos falar de cultura, conceito que nos ajuda a

compreender a complexidade das relações e produções da nossa sociedade. Cultura, assim,

precisa ser entendida de forma mutilinear, ou seja, compreender que há múltiplas linhas de

desenvolvimento cultural e que todas são válidas e interessantes em seus próprios termos. O

britânico Raymond Williams compreendeu a pluralidade do conceito e que cada cultura

possui atividades e padrões específicos e que esses critérios não podem ser utilizados para

julgar atividades de outra. Cultura deve, assim, ser entendida como relacional. Assim, com

olhar plural,

“(...) cultura é uma descrição de um modo particular de vida que exprime certos significados e valores, não só na arte e no saber, mas também nas instituições e no comportamento habitual” (WILLIAMS, 1984, pg.57)

Desse modo, moda deve ser agora considerada como uma prática significante da vida

cotidiana, parte desse sistema geral de significados. Moda é um fenômeno cultural, que marca

realidades sociais e culturais. Assim, através da moda, os sujeitos são constituídos e entendem

os outros sujeitos por partilhar desse mesmo código. Moda, e aqui salientamos novamente que

tratamos de indumentária, é um elemento cultural constitutivo de grupos sociais e da partilha

de identidades dos sujeitos dentro desses grupos, não apenas como reflexo ou representação.

Mas se entendemos a moda como fenômeno cultural e que é, nesse sentido,

constitutiva das identidades, é necessário pensar sobre identidade. E conceituar identidade,

principalmente em tempos de “pós” (modernidade, estruturalismo, colonialismo) pode ser

complexo e sempre discutível. Historicamente, o sujeito foi visto como tendo uma identidade

única e imutável, visão que não explica a contemporaneidade, em que os sujeitos são vistos de

forma mais fragmentada e fluida.

A identidade, de forma primária, pode ser entendida a partir das semelhanças entre

indivíduos. “A identidade é simplesmente aquilo que se é”, diz Tomaz Tadeu da Silva (2014),

que acrescenta que apesar da positividade aparente do conceito, a afirmação do que se é

delimita, também, tudo aquilo que não se é, aquilo que acentua as diferenças. Para ele,

somente quando estão em relação, diferença e identidade são capazes de fazer sentido. A

partir dessa aproximação por igualdades, se desenvolveu o estudo das identidades culturais.

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Segundo Stuart Hall (1999), a identidade cultural enfatiza aspectos relacionados ao

pertencimento a culturas étnicas, raciais, linguísticas, religiosas, regionais, nacionais, entre

outras. Ele apresenta três concepções de identidade, relacionadas aos períodos vividos pelos

sujeitos na história: o do iluminismo, o sociológico e o pós-moderno.

Na concepção do sujeito do iluminismo, o "eu" era o centro essencial da identidade de

uma pessoa. No sujeito sociológico, começa a noção de que a identidade existe a partir da

interrelação entre sujeito e sociedade: "A identidade costura (ou, para usar uma metáfora

médica, 'sutura') o sujeito à estrutura" (HALL, 1999, p.12). Ou seja, uma relação de

identificação e associação com o outro, mas também de entender como a estrutura dos

discursos hegemônicos funcionam para que determinados sujeitos ocupem determinados

papéis ou se posicionem dentro do sistema. Por último, temos o sujeito pós-moderno, cuja

identidade não é fixa, essencial ou permanente, mas "é definida historicamente, e não

biologicamente" (HALL, 1999, p.13).

Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte, é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora "narrativa do eu". (HALL, 1999, p.13)

O conceito de identidades deslocadas de Hall ajuda a compreender um pouco mais o

que está em discussão nos debates sobre identidade. Identidade tem muito a ver com

igualdade, unidade, coerência, continuidade, conceitos que, na chamada pós-modernidade,

perdem seu poder explicativo. Além disso, é muito limitador tentar continuar separando não

só os papéis sociais desempenhados pelos indivíduos, que também geram identidade, mas

também tudo o que os identifica e diferencia. Esse entendimento é fundamental para, da

mesma forma, compreender a moda como artefato da cultura que não só reflete, mas constitui

identidades que não são mais unas, mas fluidas.

Assim, se pensarmos, através da indumentária também comunicamos o que somos e

tudo aquilo que não somos, além de todas as relações complexas imbricadas nessas

identidades fragmentadas da pós-modernidade. Mas nem toda a fragmentação apaga aquilo

que é possível entender dentro dessa codificação gerada através da moda. McCracken (2003)

pontua que, ao mesmo tempo em que as pessoas relatam usar a moda como forma de

diferenciação, não tentam fazer isso fora do código possível partilhado dentro da cultura.

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Ao pesquisar vestuário como linguagem, McCracken (2003) nota que quando os

sujeitos eram confrontados com imagens “anômalas”, ou seja, de pessoas vestidas de forma

pouquíssimo usual, utilizando toda a liberdade combinatória, os intérpretes não sabiam como

decifrar aqueles códigos e, por isso, aquelas pessoas, o que faz que o estudioso conclua que a

liberdade combinatória funcione apenas dentro de uma série de contextos e possibilidades.

Assim, moda é um artefato cultural capaz de indicar (comunicar) mudanças, mas também

continuidade.

Nesse paradoxo entre mudança e continuidade, a comunicação de moda opera.

Comunica o novo (formas, cores, comportamentos), ao mesmo tempo em que salienta

continuidades, seja na repetição de certas (e mesmas) cores e formas, seja nos

comportamentos e corpos dos sujeitos que vestem essa moda. Um exemplo disso está na

pesquisa de Angela McRobbie (1998), que ao analisar revistas femininas, com destaque para

os discursos, pontuou que esse é o meio mais antigo de construção da feminilidade normativa

e que, com uma publicidade de moda que apresentava a mulher como um ser a disposição de

ser “consumida” e que era sempre colocada em relação de “subordinação, passividade e

disponibilidade sexual” (1998, p.265) aos homens.

Nossos corpos, assim como as imagens geradas nessa comunicação da moda, não só

informam, uma à outra, mas se imbricam, constituindo uma à outra. A comunicação de moda,

nesse contexto, também pode ser vista como artefato cultural da sociedade, que estabelece

esse movimento duplo, de refletir a sociedade e de gerar imagens que vão constituir os

sujeitos dessa sociedade.

Ao alinhar essas considerações ao que construímos anteriormente, é possível conceber

uma relação entre tendências sociais – ou macro tendências – e moda. Isso rompe tanto a ideia

de efemeridade intrínseca ao campo da moda em si, como nos permite vislumbrar um ponto

de partida para a identificação de redes de significado ainda em latência.

Isso se dá, pois, como deixamos claro acima, a moda tem uma relação forte com

identidade, comunicação e cultura. Nesse sentido, a perspectiva é analisarmos não apenas as

camadas superficiais da indumentária utilizada pelas pessoas, por exemplo, no contexto

urbano. Ir além dessa produção sígnica – e dos sentidos operados – pode nos levar a buscar

compreender outras materializações vinculadas a moda, como novas produções de corpos e

comportamentos. Tendo esse viés analítico em mente, a moda acaba, ela mesma, por refletir

as relações intersubjetivas que anunciamos anteriormente, contribuindo tanto para a

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identificação de uma ideia que esteja interconectando indivíduos no contexto sociocultural,

como como mecanismo de materialização de novos arranjos sígnicos a partir dessa mesma

ideia.

Assim, a moda ser alinha aos mecanismos – e corporificações, podemos dizer – de

padrões que vão além do campo em si, o que constitui um dos princípios da identificação de

macro tendências sociais. Essa perspectiva também nos convida a deslocar o entendimento

que temos sobre o campo da moda – como espaço de expressividade fugaz – e o alinhar a um

outro apontamento construído anteriormente: da simultaneidade, seja do tornar comum, seja

permeando o espaço. É fato que, como ambiente de afirmação de identidades, a moda será

atravessada por múltiplos desejos e caracterizações, o que contribui para que tenhamos a ideia

de campo pontuado pela impermanência. Mas, essa impermanência reflete, justamente, a

simultaneidade de escolhas que permeia o socius contemporâneo. Portanto, outro fator que

qualifica o campo da moda como espaço para a identificação de tendências de ciclo longo –

e/ou, tendências socioculturais.

Essa outra maneira de perceber a moda é o convite que fazemos, por fim, nesse estudo,

acreditando que essa percepção mais apurada sobre o campo em si também pode contribuir

para a construção de novos entendimentos sobre tendências, cultura e comunicação.

REFERÊNCIAS

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FLUSSER, Vilém.; CARDOSO, Rafael. (Org.). O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Cosac Naify, 2007. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. 1 ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 1999. MARTIN BARBERO, J. Tecnicidades, identidades, alteridades: mudanças e opacidades da comunicação do novo século. In: MORAES, Dênis de (ORG). A Sociedade Midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad, 2006. MAFFESOLLI, Michel. O conhecimento comum. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988. ______. O tempo das tribos. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. MASSONNIER, V. Tendencias de mercado: están pasando cosas. Buenos Aires: Ediciones Granica, 2008. MCROBBIE, Angela. More!: nuevas sexualidades em las revistas para chicas y mujeres. In: CURRAN, James, MORLEY, David, WALKERDINE, Valerie (Org.). Estudios culturales y comunicación: análisis, producción y consumo cultural de las políticas de identidad y el posmodernismo. Barcelona: Editora Paidós, 1998, p. 263 - 296. SANTAELLA, L. Linquagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo: Paulus, 2007. ______. L. A ecologia pluralista das mídias locativas. In Revista Famecos, n. 38. Porto Alegre, dez. 2008. SILVA, Tomaz Tadeu da (org). Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2014. SIMMEL, Georg. Questões fundamentais da sociologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. SGORLA, F. Discutindo “processo de midiatização”. Mediação, v. 9, n.8, Belo Horizonte, 2009. WILLIAMS, Raymond. The Long Revolution. Middlesex:Penguim, 19

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A figura do sumo pontífice e a quebra de um tabu: o discurso do Papa Francisco e o imaginário da comunidade católica a respeito do tema homossexualidade

The figure of the supreme pontiff and the breaking of a taboo: Pope Francisco's speech

and the imaginary of the catholic community on homosexuality

La figure du Souverain Pontife et un tabou brisé : le discours du Pape François et l'imaginaire de la communauté catholique concernant la thématique de l’homosexualité

Cristiane WEBER1 Universidade Feevale, Novo Hamburgo, Brasil

Ernani César de FREITAS2

Universidade Feevale, Novo Hamburgo, Brasil

Resumo: O presente estudo tematiza o processo de construção do discurso do Papa Jorge Bergoglio e os impactos sobre o imaginário da comunidade cristã a respeito de um tema até então pouco explicitado pela igreja católica com seus antecessores: a posição do sumo pontífice a respeito do tema homossexualidade. Com ênfase na linguagem verbal, através das mais polêmicas e comentadas declarações do Papa Francisco, desenvolveu-se esse artigo para abordar as relações de formação discursiva, imaginário, cenografia e ethos que circulam entre a fala do sumo pontífice e os comentários em veículos noticiosos, com reações de internautas a partir dessas declarações. Para embasar a análise, as metodologias bibliográficas e documentais contam com o aporte teórico de autores como Maingueneau (2005;2013), Orlandi (2013), Charaudeau e Maingueneau (2014), Piccardi (2005), entre outros. Palavras-chave: discurso; homossexualidade; papa; imaginário; ethos.

Abstract: This paper it´s about the discourse of the construction process of Pope Jorge Bergoglio and the impact on the imagination of the Christian community regarding a topic little explained by the Catholic Church with its predecessors: the position of the Supreme Pontiff on the subject homosexuality. With an emphasis on verbal language through the most controversial and discussed statements of Pope Francisco, has developed this article to discuss the relations of discursive formation, imaginary, stage design and ethos moving between the speech of the Pope and comments on news, Internet users with reactions from these statements. To support the analysis, bibliographic and documentary methodologies rely on the theoretical support of authors like Maingueneau (2005; 2013), Orlandi (2013), and Charaudeau Maingueneau (2014), Piccardi (2005), among others. Keywords: speech; homosexuality; Pope; imaginary; ethos.

1. Introdução

1 [email protected] 2 [email protected]

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Desde Simão Pedro, apóstolo e fundador da Igreja Católica (governando dos anos 30 e

67 depois de Cristo), já passaram pelo posto de sumo pontífice duzentos e sessenta e seis

homens, considerados líderes do cristianismo. Em dois mil e quinze anos após o nascimento

de Jesus, o papado foi gradativamente substituído a cada morte do gestor em questão. Nessa

longa trajetória de homens à frente da Igreja, Joseph Ratzinger, uma liderança constituída pela

congregação alemã, foi eleito Papa em dezenove de abril de dois mil e cinco, dezesseis dias

após o falecimento de João Paulo II, considerado o “Papa Peregrino”, que ficou vinte e sete

anos à frente do posto. Porém, oito após o conclave dos cento e quinze cardeais que o

elegeram, Ratzinger – ou Bento XVI – veio a público para anunciar sua renúncia ao papado,

alegando questões de saúde e fragilidade diante da avançada idade. Uma decisão que não

abalava a Igreja nos últimos seiscentos anos, que se viu obrigada a uma nova eleição para

decidir o futuro governante do catolicismo com seu antecessor ainda vivo.

Foi assim que, em treze de março de dois mil e treze, o argentino Jorge Bergoglio foi

eleito o novo sumo pontífice da Igreja. Em sua primeira homilia (discurso incumbido ao

início de seu pontificado), Francisco fez uso de palavras como bondade, respeito e humildade

repetidas vezes. Em um dos trechos de sua fala3, o Papa fala sobre São José e sua guarda a

respeito dos valores cristãos.

Segundo o pontífice,

Como realiza José esta guarda? Com discrição, com humildade, no silêncio, mas com uma presença constante e uma fidelidade total, mesmo quando não consegue entender. Desde o casamento com Maria até ao episódio de Jesus, aos doze anos, no templo de Jerusalém, acompanha com solicitude e amor cada momento.

As primeiras palavras de Jorge Bergoglio, compreendemos, já apontavam o caminho

de sua fala, marcada por características como serenidade e respeito pelo próximo. Talvez por

sua origem latina, Bergoglio tenha sido escolhido no intuito de recuperar fiéis ao catolicismo,

após escândalos envolvendo padres em notícias de pedofilia e vazamentos de documentos

secretos da Igreja.

Em mais de mil discursos proferidos até hoje, o Papa tem chamado a atenção, entre

outras declarações, por suas colocações cobertas por veículos de comunicação a respeito de

3 Trecho de discurso de homilia papal proferida em 19 de março de 2013. Disponível em: <http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2013/03/nao-devemos-ter-medo-da-bondade-diz-o-papa-francisco-em-homilia-de-posse-confira-a-integra-4079287.html>. Acesso em: 20 jul. 2015.

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um assunto que sempre foi um grande tabu para a Igreja: a homossexualidade. Um assunto

fundamentado em opiniões na maioria contrárias às práticas de união homossexual ao longo

da história da instituição. Em março de 2003, por exemplo, o então sumo pontífice em

exercício, Papa João Paulo II, assinou o documento4 “Considerações sobre os projetos de

reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais”. No trecho de conclusão da

carta, o texto traz a seguinte citação:

A Igreja ensina que o respeito para com as pessoas homossexuais não pode levar, de modo nenhum, à aprovação do comportamento homossexual ou ao reconhecimento legal das uniões homossexuais. O bem comum exige que as leis reconheçam, favoreçam e protejam a união matrimonial como base da família, célula primária da sociedade. Reconhecer legalmente as uniões homossexuais ou equipará-las ao matrimônio significaria não só aprovar um comportamento errado, com a consequência de convertê-lo num modelo para a sociedade atual, mas também ofuscar valores fundamentais que fazem parte do patrimônio comum da humanidade. A Igreja não pode abdicar de defender tais valores, para o bem dos homens e de toda a sociedade.

Bento XVI assumiu o mesmo discurso em seu papado. Porém, manteve um

posicionamento mais rígido e discreto diante do assunto. Em uma das declarações mais fortes

contra o casamento homossexual durante sua gestão, Ratzinger disse, em pronunciamento5 de

ano novo realizado a quase duzentos diplomatas, que “políticas que afetam a família ameaçam

a dignidade humana e o próprio futuro da humanidade”. Tais declarações foram repetidas ao

longo da história da Igreja e são aos poucos abordadas de forma diferente pelo atual Papa, que

parece se posicionar de forma mais branda, aberta e midiática sobre o assunto. Como

consequência desse novo posicionamento, os cristãos seguidores dos preceitos da Igreja se

encontram em opiniões diferentes sobre o tema, ora criticando ora apoiando o Papa em seus

dizeres acerca do assunto. Os comentários dos fiéis, entendemos, transitam na esfera do

imaginário proposto pela formação discursiva de Francisco, que ao mesmo tempo reforça sua

identidade – ethos – a partir de seus primeiros discursos, mas pode estar, concomitantemente,

quebrando a hegemonia do ethos prévio colocado a um Papa, visto como um líder firme a

respeito de um tema tão polêmico.

4 “Considerações sobre os projetos de reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais” é um documento aberto e disponível nos arquivos da cidade do Vaticano. Disponível em: <http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20030731_homosexual-unions_po.html>. Acesso em: 20 jul. 2015. 5 Trechos do pronunciamento foram reproduzidas em reportagem do Jornal O Globo sob a manchete “Casamento gay é uma ameaça à humanidade, diz Bento XVI”, veiculada em 9/1/2012. Disponível em <http://oglobo.globo.com/mundo/casamento-gay-uma-ameaca-humanidade-diz-bento-xvi-3614933>. Acesso em 20 jul 2015.

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A partir das manifestações discursivas sobre o tema, a presente pesquisa tem como

questão norteadora: quais são os ethos aplicados ao Papa por seus fiéis quando o tema

homossexualidade é tratado a partir das perspectivas da formação discursiva e do imaginário?

O objetivo geral é o de analisar como se desenvolve esse discurso, que marca discursiva

carrega e como a comunidade católica recebe essa fala, devolvendo ao Papa seu ethos prévio,

ou aplicando um ethos formulado a partir de uma cenografia. Tendo como interface as

notícias veiculadas sobre tais pronunciamentos (com reprodução da fala de Francisco em

sistema de abre aspas6) e os comentários apontados pelos fieis nos noticiários online, o

presente artigo quer analisar como se manifesta esse discurso, tendo como fundo uma

cenografia que é, ao mesmo tempo, criação e ressignificação do imaginário a respeito do

tema. Buscou-se compreender como a homossexualidade é tratada no período atual, onde o

Papa Francisco problematiza a questão e a traz para a discussão com os fiéis e a mídia, sem

deixar em segundo plano o contexto histórico do tema perante a Igreja. Consideramos a

coconstrução de atores sociais como: o Papa, por seus atos discursivos; os veículos de

comunicação que transmitem os posicionamentos do sumo pontífice a respeito do tema; e a

instância cidadã formada pelos fieis, que legitima esse discurso, concordando ou renegando

tais declarações. Para a análise, tendo como corpora declarações de Francisco sobre o tema

em noticiários e comentários online, cruzaram-se dois eixos: o do discurso propriamente dito

e o das teorias de imaginário social. Pelo aporte teórico de Maingueneau (2013), buscou-se

analisar os discursos pelos conceitos de ethos – principalmente o prévio, quando existe uma

imagem pré-formada pela comunidade católica sobre o posicionamento de um Papa a respeito

desse polêmico assunto. Em relação ao imaginário, teóricos como Orlandi (2013) abordam a

ligação entre a análise do discurso e a relação de exterioridade do sujeito, constituída por uma

ideologia, quando esta compreende o que medeia a relação do sujeito com suas condições de

existência. Entendemos ser necessário abordar as teorias do discurso, uma vez que esse parece

ser essencial na construção da imagem de alguém, principalmente se este alguém for um

personagem midiático. Tal construção é fundamentada em aspectos como a identidade, o tom

e a imagem que se quer passar, de si e do outro. A partir das proposições metodológicas,

buscamos chegar aos conceitos que fundamentam a posição de Francisco perante a mídia e

6 Nota da autora: abre aspas é um método de cobertura jornalística onde o repórter reproduz a fala direta de um entrevistado, em uma frase com as aspas, exatamente como foi proferida, tal como se fosse uma citação acadêmica.

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seus fiéis, que se baseiam em tais declarações para emitir opiniões a partir do discurso e do

imaginário social sobre um tema tão polêmico.

2. O estatuto do enunciador e do destinatário: um plano da semântica global Quando analisamos um discurso pelo conceito de semântica global não privilegiamos

esse ou aquele plano discursivo, mas os integramos todos ao mesmo tempo, tanto na ordem

do enunciado como no da enunciação.

Segundo Maingueneau:

[...] a vontade de distinguir o fundamental do superficial, o essencial do acessório, leva a um impasse, na medida em que é a significância discursiva em seu conjunto que deve ser inicialmente visada. Não pode haver fundo, “arquitetura” do discurso, mas o sistema que investe o discurso na multiplicidade de suas dimensões (2005, p.76).

Ao analisar essa multiplicidade de dimensões, Maingueneau (2005) se filia a uma

concepção do linguista prussiano Wilhelm Von Humboldt, de que a linguagem não é um

produto acabado e morto de espírito, postulando a existência de um plano dinâmico que rege

os planos de uma língua. Sendo assim, segundo Maingueneau (2005), um enunciador não

escolhe previamente um tema, depois um gênero literário e, posteriormente, faz a escolha das

palavras para seu enunciado. São planos que se imbricam, que interagem e que são ligados

pela estrutura de um discurso.

Se pensarmos na comunicação universal da Igreja com seus fiéis, é possível perceber

que esse diálogo é transpassado por um universo de orações, discursos e pregações que

atravessam milênios. E, para isso, são realizados, ainda que inconscientemente, contratos

acordados entre as lideranças e seus seguidores. Isso porque, quando nos comunicamos,

estamos definindo um dos planos da semântica global, o estatuto do enunciador e do

destinatário que, de acordo com Maingueneau (2005, p. 87), se trata do “estatuto que o

enunciador deve se atribuir e o que deve atribuir ao seu destinatário para legitimar seu dizer”.

Em suma: se trata de como eu falo e para quem eu falo. No contexto político e social das

manifestações do Papa a respeito de qualquer tema, fica claro o sistema de restrições imposto

ao longo da história da Igreja: os líderes anteriores a Bergoglio costumavam proferir suas

falas do alto da Igreja de São Pedro, a milhares de fiéis na Praça que leva o nome do mesmo

apóstolo. Na análise, veremos como o Papa Francisco incita polêmicas através de suas falas,

hoje muito mais ligadas a mídias como os noticiários online. De qualquer modo, seu discurso

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continua sendo direcionado aos fiéis, que respondem a um determinado assunto a partir do

imaginário que lhes é atribuído e formado em sua trajetória católica. Mais que isso, outros

públicos são diretamente atingidos, o que causa uma comoção ainda maior sobre o polêmico

tema em questão neste artigo.

A teoria de Maingueneau (2013) do estatuto de enunciador e destinatário é reforçada

em autores como Bakhtin (2000), que afirma que o discurso leva em conta um conjunto de

elementos que irá produzir significados diversos. Portanto, é necessário que haja uma

compreensão do enunciado fundamentalmente ligado a uma rede de percepções do

destinatário. No processo de significações, a interdiscursividade tem papel que nos parece

fundamental, pois postula um interdiscurso anterior ao discurso. Como explica Piccardi

(2005), a interdiscursividade se inscreve em uma perspectiva de heterogeneidade da

linguagem, em uma relação indissociável entre o eu e o outro.

Essa autora frisa que

Não existe discurso que não esteja sempre já afetado por esta heterogeneidade, por mais que, em muitos casos, a materialização de tais discursos (ou seja, os textos que os veiculam) se dê de tal forma a obscurecer com bastante eficiência esta heterogeneidade, criando efeitos de sentido que a mascaram. (PICCARDI, 2005, p. 34)

Assim, de acordo com Piccardi (2005), ao definir o interdiscurso como anterior ao

discurso, o conceito sócio-histórico entre o eu e o outro deve ser sempre priorizado,

privilegiando-se o espaço discursivo em que tais vozes se constituem.

3. A dêixis enunciativa e o modo de enunciação Todo ato de enunciação, segundo Maingueneau (2005), supõe a instauração de uma

dêixis, ou seja, de um conjunto de localizações no espaço e no tempo que um ato de

enunciação apresenta, graças aos embreadores7. Isso não quer dizer em qual data ocorreu a

enunciação, nem os locais onde foi produzida. De acordo com o autor, essa dêixis, em sua

dupla modalidade espacial e temporal, “delimita a cena e a cronologia que o discurso constrói

para autorizar sua própria enunciação”. (MAINGUENEAU, 2005, p. 89)

7 Chama-se embreagem o conjunto das operações pelas quais um enunciado ancora na sua situação de enunciação, os embreantes (também chamados de elementos dêiticos), os elementos que no enunciado marcam a embreagem. São exemplos: os pronomes pessoais de primeira e segunda pessoa e os determinantes (MAINGUENEAU, 2013, p. 130).

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Entretanto, um discurso não é somente determinado em seu conteúdo por uma

associação entre uma dêixis discursiva e um estatuto do enunciador e do destinatário, mas é

também uma “maneira de dizer”, denominada modo de enunciação. Vamos considerar um

discurso na Praça de São Pedro feito pelo Papa, em qualquer temática. Jorge Bergoglio irá

falar em tom de amabilidade para milhares de pessoas que têm em sua vocação a

religiosidade, gerando uma comunicação entre pessoas de bem, em uma conversa sujeita à

moderação, ao ritmo e à plasticidade recorrentes nos discursos papais. Dificilmente

assistiremos a um discurso do líder religioso em tom áspero, ou com elevação no tom de voz.

Veremos a seguir como os conceitos de ethos e cenografia influenciam diretamente nessa

maneira de dizer, bem como a formação discursiva envolvem aspectos ideológicos e políticos

imbuídos nas falas do Papa Francisco.

Formação discursiva: um conceito acerca de posições políticas e ideológicas

O conceito de formação discursiva foi amplamente teorizado por dois filósofos

fundantes da análise do discurso: Michel Foucault e Michel Pêcheux. Embora homônimos,

ambos discerniam em alguns aspectos a respeito das definições do termo. Segundo

Charaudeau e Maingueneau (2014), Foucault procurou contornar unidades tradicionais do

conceito como teoria, ideologia e ciência para designar conjuntos de enunciados submetidos a

um mesmo sistema de regras, historicamente determinadas. Já Pêcheux, de acordo com os

autores, consegue aproximar o termo para o âmbito da análise do discurso.

No quadro teórico do marxismo althusseriano, Pêcheux, segundo Charaudeau e

Maingueneau (2014), propunha que toda formação social caracterizada por certa relação entre

classes sociais implica a existência de posições políticas e ideológicas, que não

necessariamente são feitas de indivíduos, mas de marcos como o antagonismo, a aliança e a

dominação. Esse é um conceito importante, acredita-se, para a análise dos discursos do sumo

pontífice em questão: o grupo de fiéis responde sim a um sistema de regras, mas essas regras

perpassam os indivíduos enquanto enunciadores e destinatários, promovendo conexões que

estão para além do enunciado. Sendo assim, a partir de uma ou várias formações discursivas

interligadas, há determinantes do que pode ou não ser dito, a partir de certa posição dada em

certa conjuntura (CHARAUDEAU;MAINGUENEAU, 2014).

A formação discursiva aparece, segundo Charaudeau e Maingueneau (2014),

inseparável do interdiscurso. O interdiscurso tem relação multiforme com outros discursos, ou

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seja, mantém delimitação recíproca com discursos anteriores. A formação discursiva também

estabelece relações com o intradiscurso. As correlações entre os dois termos são explicados na

conexão que estabelecem no discurso em si: o interdiscurso significa os saberes constituídos

na memória do dizer; sentidos do que é dizível e circula na sociedade (como no caso dos

discursos prévios de outros papas, os quais são de conhecimento da sociedade, praticante ou

não do catolicismo); saberes que existem antes do sujeito; saberes pré-construídos

constituídos pela construção coletiva. Já o intradiscurso se trata da materialidade (fala), ou

seja, a formulação do texto; o fio do discurso (CAREGNATO;MUTTI, 2005). Compreende-

se, assim, que todo discurso está ideologicamente marcado e, portanto, carregado de

significados.

Orlandi (2013) ressalta que as posições ideológicas nascem de um processo sócio-

histórico em que as palavras são produzidas. A formação discursiva, segundo Orlandi (2013,

p. 43), “se define como aquilo que numa formação ideológica dada em uma conjuntura sócio-

histórica dada – determina o que pode e não pode ser dito”. Portanto, cada palavra do Papa

Francisco é parte de um discurso e os discursos se delineiam na relação com outros com

dizeres que se alojam na memória.

4. Imaginário social: o Papa pode aprovar ou aceitar a homossexualidade?

A figura Papal parece ser envolta na legitimação de uma identidade santificada desde

os primeiros sumo pontífices da história. Tal santificação (que carrega sinônimos como

pureza e decência) está também atrelada a um conceito de memória coletiva. Desde o início

dos tempos, a figura do Papa é ovacionada e cada escolha de um novo representante da Igreja

é envolta em grande expectativa mundial: a fumaça branca representa um novo apelo, um

novo representante de Deus para todos os continentes. Para compreender melhor esse

processo de santificação do homem, busca-se em Halbwachs (2006) o conceito de memória

coletiva. De acordo com o autor, as nossas lembranças sobre algo podem sempre estar

associadas a lembranças de outros, às suas percepções, como se a mesma experiência fosse

recomeçada e vivenciada por diversas pessoas. Ou seja, cada pessoa que assiste à nova

escolha revive sua própria existência e suas lembranças a respeito das conexões (ainda que

pouco existentes) com a Igreja.

Da memória coletiva discorre o conceito de imaginário. O imaginário é consequência

de uma determinada linguagem: é de onde surge e se imbrica com todas as conexões sociais,

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incluindo a fé. De acordo com Orlandi (2013), o discurso que abrange um emissor e um

destinatário é composto de um processo de significação constante, não estando essas duas

figuras separadas de forma estanque. Não se trata, portanto, da fala do Papa isolada em si,

pois o funcionamento da linguagem põe em relação sujeitos afetados pela língua e pela

história, em um complexo processo de produção de sentidos e, portanto, de construção de

imaginários.

Cabe ressaltar que o imaginário e a formação discursiva estão intrinsecamente ligados

no que diz respeito às interpretações possíveis de alguma fala (discurso) marcada

ideologicamente. Como ressalta Silveira (2004), a liberdade de um sujeito individualizado e

de certa forma livre de uma ideologia não passa de um efeito imaginário promovido pela

própria ideologia. Conforme a autora ocorre uma imbricação entre discurso e ideologia que

legitima a condição do sujeito enquanto descentrado, o que reafirma a caracterização material

do discurso e do sentido, tendo em vista que a unidade do sujeito é da ordem do imaginário.

Assim, afirma essa autora,

[...] a responsabilização do sujeito enquanto cidadão que tem direitos e deveres sociais é também um efeito das relações imaginárias que promovem a dita “normalidade” da vida em sociedade. Essa responsabilização não faz do sujeito um ser dotado de vontades e intenções, livre do assujeitamento ideológico e totalmente consciente de seus atos e suas palavras; ocorre exatamente o contrário, pois o funcionamento dessas relações imaginárias legitima ainda mais a tese do necessário assujeitamento ideológico para a constituição e instituição do sujeito e do sentido no discurso (SILVEIRA, 2004, p. 53).

A construção do imaginário se dá, portanto, em um contexto ideológico onde fé e

sociedade estão diretamente sobrepostos, marcados por discursos e práticas ao longo da

história da religião. Legros et. al. (2014) ressalta ainda que, do ponto de vista antropológico, a

religião pode ser definida como a atividade do homem na manipulação de símbolos do

sagrado. Em qualquer sociedade, as crenças, os mitos, os comportamentos e os ritos são

extraídos de um mundo profano “para serem promovidos ao lugar das coisas transcendentais,

ou seja, sagradas” (LEGROS et. al., 2014, p. 217). A religião seria, portanto, um tipo

particular de atividade simbólica, que consiste, de maneira geral, a dar sentido a elementos já

significantes.

5. Cenografia + ethos: a fumaça branca que permeia o discurso

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A cenografia possui uma estreita relação com a semântica global, em espacial com

alguns de seus planos constituintes: o estatuto do enunciador e do destinatário, a dêixis e o

modo de enunciação (tom/incorporação), entre outros. Ao abordarmos o termo “cenografia”, é

possível associá-lo diretamente ao termo “cenário”. De acordo com Ratto (2011, p. 14),

cenografia é “o espaço eleito para que nele aconteça o drama ao qual queremos assistir”. Nos

textos de comunicação, a cenografia assume um enlaçamento paradoxal. Segundo

Maingueneau (2013), todo discurso, por sua manifestação mesma, pretende convencer

instituindo a cena de enunciação que o legitima. Para tanto, antes da cenografia, esse autor

nos apresenta dois conceitos que a antecedem e se conectam com esta: a cena englobante e a

cena genérica.

A cena englobante é a que corresponde, de acordo com Maingueneau (2013), ao tipo

do discurso. Quando recebemos um folheto nas ruas, contendo o anúncio de promoções em

uma farmácia, devemos determinar a que tipo de discurso esse folheto pertence: se religioso,

político ou publicitário, como se trata o exemplo. Segundo esse autor, “a cena englobante na

qual é preciso que nos situemos para interpretá-lo, em nome do que o referido folheto

interpela o leitor” (MAINGUENEAU, 2013, p. 96). A cena genérica diz respeito ao gênero do

discurso, sendo interessante verificar qual o estatuto genérico do enunciado, ou seja, se é um

comunicado, um editorial, uma notícia, etc. (FREITAS, 2010).

Já a cenografia, segundo Charaudeau e Maingueneau (2014) não é imposta pelo tipo

ou pelo gênero do discurso, mas instituída pelo próprio discurso. A cenografia – que também

pode ser chamada de cena validada – tem por função passar a cena englobante e a cena

genérica para um segundo plano. Um discurso, portanto, impõe sua cenografia de imediato.

Porém, a enunciação é que irá se esforçar para justificar seu dispositivo de fala. Em um

exemplo prático, uma publicidade de uma rede de supermercados que conta a história de

reencontros entre pai e filho tem como cena englobante o comercial de televisão que tem

como objetivo angariar mais consumidores; como cena genérica a narrativa publicitária e,

como cena validada, a história do pai e do filho, que emociona e interpela. O objetivo

principal de “comprar mais em um supermercado de valores familiares” fica em segundo

plano, mas continua ali, sendo difundido naquela mensagem.

De acordo com os autores,

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Tem-se, portanto, um processo em espiral, na sua emergência, a fala implica certa cena de enunciação, que, de fato, se valida progressivamente por meio da própria enunciação. A cenografia é, assim, ao mesmo tempo, aquilo de onde vem o discurso e aquilo que esse discurso engendra; ela legitima um enunciado que, em troca, deve legitimá-la, deve estabelecer que essa cenografia da qual vem a fala é, precisamente, a cenografia necessária para contar uma história [...]. (CHARAUDEAU;MAINGUENEAU, 2014, p. 96)

Ainda segundo Charaudeau e Maingueneau (2014), além de uma figura de enunciador

e de um correlativo coenunciador, a cenografia implica uma cronografia (um momento) e uma

topografia (ou seja, um lugar), das quais ambas o discurso pretende surgir. Posteriormente na

análise veremos como o discurso do Papa se contextualiza em um lugar e tempo específicos,

que legitimarão sua fala a respeito do tema abordado no artigo.

Dado o “cenário” onde ocorre um discurso e uma troca estabelecida entre os

executores dos papéis linguageiros, temos a construção de uma identidade aplicada às

personagens que fazem parte da troca discursiva. Cenografia e identidade construída, ou

ethos, como define Maingueneau (2013), estão diretamente ligadas no processo de

significamos que aplicamos ao outro ou como tentamos “vender” a nossa imagem. O conceito

se refere principalmente a um ethos prévio, marcado por um estereótipo, uma imagem pela

qual a comunidade cristã espera ao simples fato de se mencionar a figura papal.

Assim, todas as vezes que falamos, escrevemos ou expressamos algo de outras formas,

estamos imprimindo uma imagem a nós mesmos. De acordo com Amossy (2005), não é

necessário que alguém descreva seu perfil ou faça um autorretrato, já que seu estilo, seu

conhecimento, suas competências linguísticas, seu estofo cultural, tudo isso já constrói a

representação de sua pessoa. Maingueneau (2013, p. 104) reforça que “toda fala procede de

um enunciador encarnado; mesmo quando escrito, um texto é sustentado por uma voz – a de

um sujeito situado para além do texto”. Em todas as nossas relações sociais, essa imagem se

constrói nos parceiros do nosso ato de comunicação.

Conforme Amossy,

A apresentação de si não se limita a uma técnica apreendida, a um artifício: ela se efetua, frequentemente, à revelia dos parceiros, nas trocas verbais mais corriqueiras e mais pessoais. Parte central do debate público ou da negociação comercial, ela também participa das imagens de si no discurso: diálogos entre professor e alunos, das reuniões de condôminos, da conversa entre amigos, da relação amorosa. (2005, p. 9)

Estudiosos da antiguidade, de acordo com Amossy (2005), designavam o termo ethos

que significava a construção de uma imagem de si para obter sucesso em uma oratória. Como

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uma representação ou um simulacro, a fim de obter sucesso em uma negociação, por exemplo.

Pela corrente teórica de Roland Barthes, com os componentes da antiga retórica, o ethos está

marcado pelos traços de caráter que o orador mostra ao auditório, pouco importando se está

sendo sincero ou não, no intuito de causar uma boa impressão. O orador, portanto, fala: eu sou

assim e não sou assim.

Conforme Maingueneau (2013, p. 105), a “fala do enunciador que, por sua maneira de

dizer, atesta de algum modo a legitimidade do que é dito, isto é, confere autoridade ao dito

pelo fato de encarná-lo”. O ethos envolve de alguma forma a enunciação, sem

necessariamente estar explícito no enunciado, construindo uma imagem de si, já que,

conforme Benveniste (1989, p. 84), “a enunciação é a acentuação da relação discursiva com o

parceiro, seja este real ou imaginado, individual ou coletivo”.

Quando construímos uma imagem, no entanto, estamos contribuindo, no processo

comunicacional, para que o outro também construa sua imagem e possa, ao mesmo tempo,

construir uma imagem a nosso respeito. Na perspectiva de uma troca comunicacional entre

um professor autoritário e um aluno rebelde, por exemplo, ambos exercem um sobre o outro

uma rede de influências mútuas.

De acordo com Amossy:

A função da imagem de si e do outro construída no discurso se manifesta plenamente nessa perspectiva interacional. Dizer que os participantes interagem é supor que a imagem de si construída no e pelo discurso participa da influência que exercem um sobre o outro. (2005, p. 12)

Para além da representação exercida, a imagem também é construída pelos chamados

papéis sociais e dados situacionais da sociedade. Trata-se, de acordo com Amossy (2005), de

papéis preestabelecidos e que podem ser usados em representações de forma rotineira.

O ethos, para Maingueneau (2013), está ligado diretamente a uma cenografia. E, dadas

às múltiplas cenografias possíveis, um locutor pode aplicar a si uma cenografia para chegar a

um determinado ethos. Nesse sentido, Maingueneau (2005) ressalta que não só vinculado à

imagem ou ao som está o conceito de ethos. Com efeito, o texto escrito também possui um

tom que lhe dá autoridade ao que é dito. O tom “permite ao leitor construir uma representação

do corpo do enunciador (e não, evidentemente, do corpo do autor efetivo)”.

(MAINGUENEAU, 2005, p. 107). Assim, a leitura faz emergir uma instância subjetiva que

desempenha o papel de fiador do que é dito.

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O conjunto de determinações físicas e psíquicas ligadas à representação da

personagem, de acordo com Maingueneau (2013), está ligado aos conceitos de caráter e

corporalidade. Ao fiador do discurso, que será construído a partir de indícios textuais de

diversas ordens, serão atribuídos um caráter (que diz respeito a uma gama de traços

psicológicos) e uma corporalidade (uma maneira de se vestir e de se movimentar no espaço

social).

Assim, conforme Maingueneau:

O ethos implica, com efeito, uma disciplina do corpo aprendido por intermédio de um comportamento global. Caráter e corporalidade do fiador provêm de um conjunto difuso de representações sociais valorizadas ou desvalorizadas, sobre as quais se apoia a enunciação que, por sua vez, pode confirmá-las ou modificá-las. Esses estereótipos culturais circulam nos domínios mais diversos: literatura, fotos, cinema, publicidade, etc. (2005, p. 108)

O universo de sentido de um discurso, portanto, é propiciado, segundo Maingueneau

(2005), tanto pelo ethos como pelas ideias que transmite. Essas ideias se apresentam por uma

maneira de dizer que remete a uma maneira de ser. A qualidade do ethos remete “à imagem

desse fiador que, por meio de sua fala, confere a si próprio uma identidade compatível com o

mundo que ele deverá construir em seu enunciado” (MAINGUENEAU, 2005, p. 108). Assim,

não podemos dissociar a organização dos conteúdos da legitimação da cena de fala. O ethos

pode ser discursivo, pois visto que, conforme Freitas (2010), a eficácia da palavra não é

puramente exterior (institucional) e nem puramente interna (linguageira). De acordo com esse

autor, “não se pode separar o ethos discursivo da posição institucional do locutor, nem

dissociar totalmente intercolução da interação social como troca simbólica” (FREITAS, 2010,

p. 192-193).

Isso significa que o ethos está intrinsecamente ligado a uma cenografia enunciativa

que é ligada à memória coletiva. Sob o aspecto da incorporação, abordamos como age o

ethos sobre o coenunciador. O coenunciador, segundo Maingueneau (2005), confere um ethos

ao seu fiador (o que fala) e lhe dá corpo. Assim, surge uma comunidade imaginária dos que

comungam na adesão a um mesmo discurso (os que apoiaram este ou aquele candidato nas

eleições, por exemplo).

Metodologia: o desvelar ao passar dos muros da Praça de São Pedro

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Para analisarmos as declarações do Papa a partir dos eixos propostos, as metodologias

utilizadas são a de pesquisa bibliográfica e a documental. Segundo Prodanov e Freitas (2013,

p. 51), o método bibliográfico provém da pesquisa básica, que do ponto de vista da natureza

da pesquisa científica, “objetiva gerar conhecimentos novos úteis para o avanço da ciência

sem aplicação prevista”. Em relação ao seu objetivo exploratório, conforme Prodanov e

Freitas (2013, p. 52), a pesquisa delimita o entendimento do tema abordado, de modo a

“facilitar a delimitação do tema da pesquisa; orientar a fixação dos objetivos e a formulação

das hipóteses ou descobrir um novo tipo de enfoque para o assunto”. Por permitir a

exploração do tema sob diversos ângulos e aspectos, se trata da mais adequada para a

proposição deste estudo.

De acordo com esses autores, enquanto a pesquisa bibliográfica se utiliza da

contribuição científica de vários autores, a pesquisa documental vai buscar documentos que

ainda não passaram por um tratamento analítico.

Segundo Prodanov e Freitas,

Nessa tipologia de pesquisa, os documentos são classificados em dois tipos principais: fontes de primeira mão e fontes de segunda mão. Gil (2008) define os documentos de primeira mão como os que não receberam qualquer tratamento analítico, como: documentos oficiais, reportagens de jornal, cartas, contratos, diários, filmes, fotografias, gravações etc. Os documentos de segunda mão são os que, de alguma forma, já foram analisados, tais como: relatórios de pesquisa, relatórios de empresas, tabelas estatísticas, entre outros. (2013, p. 54)

Nesse estudo, como se trata de corpora com acontecimentos ocorridos periodicamente,

ou seja, as últimas declarações do Papa a respeito do tema homossexualidade, a pesquisa

documental se torna essencial para encontrar declarações registradas que componham a

análise final. Entende-se por documento, de acordo com Prodanov e Freitas (2013), qualquer

registro que possa ser utilizado como fonte de informação, permitindo uma observação crítica,

leitura, reflexão e juízo fundamentado sobre o valor do material para o trabalho científico.

Acredita-se ser importante ressaltar que se optou por não analisar as declarações do

ponto de vista da análise dos textos de comunicação e sim as declarações entre aspas de

Francisco, ou seja, sua fala em si e não o tratamento dado pela mídia. Os veículos online

passam a ser, nesse estudo, o suporte para obtermos as declarações do papa e os comentários

dos fiéis, de forma a analisar a repercussão do tema proposto para quem acessa aquele

conteúdo.

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Homossexualidade e religião: entre o Novo Testamento e o Novo Papa

O tema homossexualidade está em alta nas discussões por todo o mundo nas mais

diversas perspectivas: casamento, direitos civis, adoção. Porém, o assunto já estava postulado

– e registrado - desde o início da era denominada pelos cristãos como Depois de Cristo. No

livro considerado o mais antigo do mundo - a Bíblia Sagrada – há escritos que já condenavam

a prática sexual entre pessoas do mesmo sexo. Vejamos dois exemplos: o primeiro8 diz

respeito ao evangelho de São Marcos no Novo Testamento. Segundo o trecho,

[...] desde o princípio da criação, Deus fez macho e fêmea. Por isso deixará o homem a seu pai e a sua mãe, e unir-se-á a sua mulher. E serão os dois uma só carne; e assim já não serão dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus ajuntou não o separe o homem.

Em um segundo9 trecho, ainda dentro do Novo Testamento, em Romanos, a

explicitação em relação ao modelo de união homem e mulher e sua contravenção é ainda

reforçada por uma espécie de condenação.

Porque até as suas mulheres mudaram o uso natural, no contrário à natureza. E, semelhantemente, também os homens, deixando o uso natural da mulher, se inflamaram em sua sensualidade uns para com os outros, homens com homens, cometendo torpeza e recebendo em si mesmos a recompensa que convinha ao seu erro.

Das escrituras que fundamentaram a Bíblia como o livro-guia da Igreja até os dias de

hoje, muitos discursos foram proferidos, também em uma lógica de interdiscurso. Não só pelo

o que está registrado nas páginas do livro sagrado, mas por toda a analogia feita aos discursos

anteriores da Igreja (dos Papas que os proferiram) nas palavras de Francisco – o intradiscurso.

Essa relação pode ser percebida, entende-se, nas primeiras palavras de Francisco. Logo após

assumir seu posto, em março de 2013, o Papa assinou (Figura 1) uma carta aberta sobre a

homologação do casamento gay na Argentina.

Figura 1 – Trecho da carta aberta do Papa a respeito do casamento gay na Argentina

8 Trecho retirado de O Evangelho segundo São Marcos, capítulo 10, versículos 6 a 9. Disponível em A Bíblia Sagrada, livro físico. Acesso em 30 jul. 2015. 9 Trecho retirado de O Livro dos Romanos, capítulo 1, versículos 26 e 27. Disponível em: A Bíblia Sagrada, livro físico. Acesso em: 30 jul. 2015.

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Fonte: reprodução a partir de notícia publicada no portal Terra em 30 jul 2015

A carta segue e, em outro trecho (Figura 2), o sumo pontífice se refere a um rechaço à

lei de Deus. São utilizadas palavras que se remetem a uma discriminação contra crianças

adotadas por casais homossexuais, bem como uma vontade de Deus ao amadurecimento

humano entre um homem e uma mulher.

Figura 2 – Trecho da carta aberta do Papa a respeito do casamento gay na Argentina

Fonte: reprodução a partir de notícia publicada no portal Terra em 30 jul 2015

Entende-se que as palavras proferidas pelo Papa em um dos seus primeiros discursos

abertos sobre o tema estão marcadas por uma ideologia que, segundo Charaudeau e

Maingueneau (2014), é uma premissa de qualquer discurso, estando esse carregado de

significados. Até esse primeiro momento, o que se pode analisar é que o Francisco optou por

manter uma linha semelhante aos seus antecessores, principalmente Bento XVI, com uma

espécie de condenação às práticas homossexuais. Assim, é possível acreditar que, em tendo

assumido recentemente o pontificado, Jorge Bergoglio tenha optado por manter o raciocínio

de seu antecessor, um declarado crítico da união civil entre homens/homens e

mulheres/mulheres, ou mesmo de relacionamentos homoafetivos.

Francisco, porém, começou a alterar seu discurso gradativamente e de forma muito

tênue. Quatro meses após a assinatura da carta aberta referida, uma coletiva de imprensa a

bordo de um avião começava a alterar a percepção de fiéis – e porque não dizer de seguidores

de outras crenças religiosas – a respeito do Papa. Em notícia (Figura 3) publicada no portal

G1 (Globo), que reproduziu a fala de Papa de Francisco quando questionado por um jornalista

sobre o tema homossexualidade, é possível compreender outro posicionamento, muito mais

brando e diferente do comunicado a respeito da união homoafetiva na Argentina.

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Figura 3 – Reprodução de notícia publicada pelo portal G1 em 29/7/2013

Fonte: extraída do portal G1 em 30 jul. 2015

Ainda no contexto de formação discursiva adotada pelo Papa – e na qual ele está

diretamente inserido, observa-se em Orlandi (2013) a teoria da formação ideológica dada em

uma conjuntura sócio-histórica dada, determinando o que pode e não pode ser dito. Parece

haver, com essa declaração dada na coletiva de imprensa em pleno espaço aéreo, uma ruptura

entre esse condicionamento sócio-histórico e a posição da Igreja. Se vivemos em uma era

onde a questão da homossexualidade é bastante discutida e provoca também rupturas em

sistemas civis em diversos países, o discurso do Papa tende a estar afinado com esse

momento. Não só por suas palavras, mas pela própria abertura ao tema de forma informal em

um voo, na companhia de jornalistas que, sabia o Papa, iriam trabalhar a informação em

caráter de instantaneidade. As palavras de Francisco “Quem sou eu para julgá-los?” vêm

acompanhadas, no caso da notícia destacada, com a manchete que traz a expressão “abertura

inédita”, o que provocou surpresa geral, por no mínimo dizer.

Feita essa primeira declaração, o Papa – um sorridente latino - passou a ser notícia a

cada nova citação ao tema. No final de 2014, novamente uma declaração proferida por ele

mexeu com a comunidade católica. Aquele que assinou a carta aberta que considerava a união

entre homossexuais um agravo às leis de Deus e que declarava que crianças adotadas por

homossexuais sofreriam de antemão uma discriminação, na segunda declaração (Figura 4),

em reunião com bispos católicos, considera-se, é mais sutil e aberto às ideias de aceitação de

gays pela Igreja.

Figura 3 – Reprodução de notícia publicada pelo portal Estadão Online em 7/12/2014

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Fonte: extraída do portal Estadão Online em 30 jul 2015

Entende-se, a partir dessa segunda declaração, uma mudança clara entre o primeiro e o

segundo discurso. Retomemos os conceitos de Maingueneau e Charadeau (2014), de cena

englobante, cena genérica e cenografia. A cena englobante, no caso, é o que corresponde ao

tipo do discurso, o que caracteriza a declaração uma fala religiosa com o intuito de aproximar

a Igreja dos católicos e ativistas gays, até então críticos a respeito do posicionamento do

cristianismo frente ao tema em questão. A cena genérica diz respeito ao gênero do discurso, o

que nesse caso se refere à notícia publicada no portal Estadão Online. Já a cenografia,

segundo Charaudeau e Maingueneau (2014) não é imposta pelo tipo ou pelo gênero do

discurso, mas instituída pelo próprio discurso. É a fala do Papa e sua declaração, que coloca a

missão de aproximar a Igreja desses fiéis em segundo plano (porém não menos importante),

justificando seu dispositivo de fala, legitimando seu enunciado. Assim, quando declara apoio

a essa causa, o Papa está conclamando a aproximação dos gays à Igreja e sensibilizar os

católicos, de forma a quebrar os tabus até então existentes.

Tais declarações tiveram repercussão imediata entre os fiéis, que passaram a fazer uso

dos próprios portais noticiosos para declarar apoio e também repúdio à fala de Francisco. No

primeiro exemplo (Figura 5), veem-se dois comentários que avalizam a fala do Papa em

notícia sobre acolhimento de homossexuais a divorciados na Igreja.

Figura 5: comentário à notícia publicada no portal Estadão Online em 19/2/2015

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Fonte: extraída do portal Estadão Online em 30 jul. 2015

Em segundo comentário (Figura 6), um internauta é completamente contrário à

posição de Francisco em relação ao tema, quando o sumo pontífice concedeu a entrevista

coletiva sobre o aceite da Igreja aos homossexuais.

Figura 6: comentário à notícia publicada no portal G1 em 29/7/2013

Fonte: extraída do portal Estadão Online em 30 jul. 2015

Tais repercussões, compreende-se, estão ligadas ao imaginário coletivo sobre o tema

homossexualidade e a religião. Como nos diz Orlandi (2013), o discurso que abrange um

emissor e um destinatário é composto de um processo de significação constante, não estando

essas duas figuras separadas de forma estanque. Os comentários online ou mesmo offline se

delineiam não somente pela fala do Papa Francisco em si, mas por toda a relação histórica que

a abordagem do tema se deu ao longo dos anos pela Igreja, em um complexo e constante

processo de produção de sentidos e imaginários. Com as mais recentes declarações, o que era

antes um posicionamento monolítico de um sumo pontífice a respeito da homossexualidade

passa a ser questionado e moldado por novos imaginários, que se imbricam com questões

culturais e sociais, não somente religiosas.

A partir desses imaginários, que integram a formação discursiva, entende-se, surgem

as atribuições de imagem e de identidade – de ethos, por assim dizer – por parte dos

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destinatários (aqueles que leem e comentam os conteúdos) a respeito de Jorge Bergoglio. Em

relação a si próprio, o Papa demonstra um ethos marcado por um caráter de amabilidade, e

diz, portanto: eu sou assim e não sou assim (ou eu me posiciono dessa forma em relação ao

tema e não de outra maneira). Essa perspectiva é de caráter interacional, ou seja, ocorre na

declaração de Francisco a um determinado público. Além disso, seu orador encarnado é a

figura papal, não necessariamente sua pessoa em si. Dadas essas declarações, associadas a

uma formação discursiva, uma cenografia e um imaginário, o ethos implica, como frisa

Amossy (2005), na disciplina do corpo aprendido por intermédio de um comportamento

global. Estabelece-se assim, que o Papa Francisco é fiador do discurso da Igreja Católica, e

conecta ações responsivas de quem apoia ou repudia tais declarações. Isso ocorre, entende-se,

a partir dessas representações sociais valorizadas ou desvalorizadas, com enunciações de

Francisco que confirmam ou modificam os estereótipos culturais. Cada declaração emite um,

dez ou cem comentários, onde estão imbricados todos esses elementos citados: o imaginário a

respeito da figura do Papa e sobre o tema homossexualidade; a formação discursiva onde está

inserida a fala de Francisco; a cenografia e dela o ethos decorrente; e o fiador de todas as

declarações já dadas pelo novo sumo pontífice sobre o tema.

Considerações finais

A partir das notícias e dos comentários analisados, entende-se que as palavras

proferidas pelo Papa são imbuídas de um discurso mais brando que o de seus antecessores,

tratando o assunto com maior abrangência e frequência, porém mantendo as diretrizes da

Igreja sobre o tema como norteadoras a sua fala. Com essa aplicação, os fiéis percebem-se

envoltos em uma temática polêmica, porém discutida. E o ethos prévio, bem como o ethos

aplicado, é alternado em concordância e discordância por posicionamentos radicais e abertos

ao tópico de discussão.

Tal dualidade tem feito com que críticos religiosos, fiéis ou mesmo não seguidores de

crença religiosa alguma mencionem que o Papa parece estar indeciso em relação à posição da

Igreja a respeito do tema homossexualidade. De fato, muitas outras declarações de Jorge

Bergoglio já ganharam os noticiários, onde o sumo pontífice faz duras críticas ao casamento

gay, mesmo depois de dados os discursos citados nesse artigo. Acredita-se ser importante

frisar que esse estudo se deteve a analisar as declarações de Francisco em apoio à causa

homossexual, tendo em vista o grau de ruptura que isso representa em relação à discussão

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sobre um tema tão polêmico, antes restrito às paredes do Vaticano e agora expostas de forma

clara pelo novo Papa. Mais que isso, percebe-se como tais declarações mexem no sistema de

comunicação de tabus entre a Igreja e seus seguidores, as intenções do Papa com essas

declarações e a própria abertura da Igreja, ainda que parcial, para os ativistas gays.

O casamento homossexual tem sido amplamente discutido e o próprio fato da religião

católica abrir esse tópico, seja em reuniões entre cardeais ou em aparições de Francisco pelo

mundo já promove uma quebra histórica de discursos parciais pelas altas lideranças do

cristianismo. Acreditamos que o passar dos anos e um aceite mais efetivo – se ocorrer – por

parte da Igreja aos homossexuais deva modificar mais imaginários, estabelecer novas

rupturas, provocar novas interpretações e transitar novas identidades ao novo Papa. A partir

do estudo, conclui-se, a convenção social da comunidade cristã, os sentimentos ligados às

manifestações sobre o tema e este passado histórico se cruzam com as manifestações atuais do

papa, gerando, acreditam-se, novos contextos imaginários e responsivos a respeito de um

tema por muitos anos considerado esse indissolúvel tabu pelas lideranças católicas pelo

mundo.

Referências

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FREITAS, Ernani César de. Linguagem na atividade de trabalho: éthos discursivo em editoriais de jornal interno de empresa. Desenredo, Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo, 2010. Disponível em:

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< file:///C:/Users/Cristiane/Downloads/1714-6467-1-PB%20(1).pdf>. Acesso em: 9 maio 2015. LEGROS, Patrick et. al. Sociologia do Imaginário/ Frédéric Monneyron. Jean-Bruno Renard, Patrick Legros e Patrick Tacussel; tradução de Eduardo Portanova Barros. 2 ed. – Porto Alegre: Sulina, 2014.

MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos discursos. Curitiba: Criar Edições, 2005. ______. Análise de textos de comunicação. Dominique Maingueneau, Tradução de Maria Cecília P. de Souza-e-Silva, Décio Rocha. – 6. Ed. Ampl. – São Paulo: Cortez, 2013. ORLANDI, Eni P. O discurso. In: Análise de Discurso: princípios e procedimentos. 11. ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2013. PICCARDI, Tatiana. A representatividade da voz do trabalhador no discurso jurídico trabalhista: aspectos da construção do sujeito social trabalhador. 2005. 304 p. Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, 2005. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8142/tde-16012006-144938/en.php>. Acesso em: 7 maio 2014.

PRODANOV, Cleber Cristiano. Metodologia do trabalho científico [recurso eletrônico] : métodos e técnicas da pesquisa e do trabalho acadêmico / Cleber Cristiano Prodanov, Ernani Cesar de Freitas. – 2. ed. – Novo Hamburgo: Feevale, 2013. (recurdo eletrônico) RATTO, Gianni. Antitratado de cenografia: variações sobre o mesmo tema. São Paulo: Senac, 1999.

SILVEIRA, Verli Fátima Petri da. Imaginário sobre o gaúcho no discurso literário: da representação do mito em Contos Gauchescos, de João Simões Lopes Neto, à desmitificação em Porteira Fechada, de Cyro Martins. 2004. 332 f. Tese (Doutorado em Letras) – Programa de Pósgraduação em Letras, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2004.

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Um número no Lager: um estudo sobre o nome e alma no judaísmo, a partir da literatura da Shoah

A number in the Lager: a study on the name and soul in Judaism, from the literature of

the Shoah

Un numéro au Lager: une étude sur le nom et l'âme dans le judaïsme, à partir de la littérature de la Shoah

Alecrides Jahne Raquel CASTELO BRANCO DE SENNA1 UFRN, Natal, Brasil

Resumo: O presente artigo é parte de uma pesquisa de doutorado que está sendo realizada, sobre a literatura da Shoah (para alguns, literatura do Holocausto). O ponto em discussão na leitura apresentado no artigo é o significado do nome/alma para o judeu, sob o prisma do judaísmo Hassídico e no que isso implica quando se trata do numero atribuído aos prisioneiros no Lager. O artigo recorre a Gaston Bachelard, Walter Benjamin, Harald Weinrich e Jeanne Marie Gagnebin para discutir, a partir dos conceitos de memória e esquecimento, aspectos relacionados a essa literatura. Palavras-chave: Shoah; nome; número; memória; esquecimento.

Abstract: The following study constitutes the preliminary results of an ongoing doctoral research on the literature of the Shoah (also known as "Holocaust Literature"). The main argument in the following readings is the meaning of name/soul for the jewish people, considering the Hasidic perspective, and what it implies for the number assigned to each prisoner in Lager. The present paper refers to ideas from Gaston Bachelard, Walter Benjamim, Harald Weinrich and Jeanne Marie Gagnebin to discuss, using concepts such as memory and forgetfulness, certain aspects related to this literature.

Keywords: Shoah; name; number; memory; Forgetfulness.

“Apague os rastros...” (Bertholt Brecht)

Nas sociedades modernas, aparentemente, ‘apagar os rastros’ é uma palavra de ordem.

A falta de personalidade dos ambientes nos versos de Brecht se estenderiam às relações

sociais. ‘Apague os rastros’ era um comando fundamental, enquanto a Alemanha nazista 1 Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Membro do grupo de pesquisa Mythos-Logos (PPGCS-UFRN). E-mail: [email protected]

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perdia a guerra. Uma voz ressoa nos sonhos: “Krematorium ausmachen!”, repete inúmeras

vezes em seu relato, Jorge Semprún (1995). A falta de personalidade também era ordem nos

barracões dos campos de concentração, nas filas de contagem, na formação para o trabalho e

para as refeições. Nas vestes, nas cabeças raspadas, no andar maltrapilho e trôpego. Quando

um prisioneiro era morto, a ordem era essa mesma.

Harald Weinrich (2001) conta que Semprún, famoso escritor espanhol, fora aluno de

Maurice Halbwachs em Paris e, esteve prisioneiro também no campo de Buchenwald, junto

com seu professor. Halbwachs não sobreviveu e, Semprún recebeu a ordem para apagar no

fichário o nome e liberar o número para que pudesse ser usado por outro prisioneiro. Este diz

que a ficha do historiador estava enfim, limpa, para ser utilizada por outro prisioneiro

(SEMPRÚN, 1995). Muitos tiveram seus nomes apagados, em seguida seus números, mas,

antes disso, suas memórias, a centelha de suas vidas.

O nome A questão do nome emergiu do seguinte trecho do livro de Primo Levi, que diz, em Se

isto é um homem:

Já nada nos pertence: tiraram-nos a roupa, os sapatos, até os cabelos; se falarmos não nos escutarão, e se nos escutassem não nos perceberiam. Tirar-nos-ão também o nome: se quisermos conservá-lo, teremos de encontrar dentro de nós a força para o fazer, fazer com que, por trás do nome, algo de nós, de nós tal como éramos, ainda sobreviva. (2010, p. 25-6)

Mas, qual a importância desse nome? Que se conservado há de manter o indivíduo

ancorado, seguro de si mesmo? Seria o nome aquilo que liga o judeu ao Israel de Deus, que

diz quem ele é de onde veio que designa seu futuro enquanto futuro de Israel.

Em seu livro Nomes o Rabino Zushe Wilhelm (2009), faz uma apresentação da

tradição referente à atribuição dos nomes. É um texto indicado para a instrução de condução

dos rituais. Segundo o autor, de acordo com a tradição, a personalidade é anteriormente

definida pela força do nome escolhido pelos pais, sob inspiração divina. O nome que a criança

recebe é registrado pertencendo eternamente a essa pessoa. Nos reinos celestial e terreno, o

significado do nome da pessoa está intimamente relacionado à sua alma e o seu destino.

Quanto à modificação desse nome, também existem leis especiais. Em caso de uma

doença grave, com o risco de morte, por exemplo. Um nome é acrescentado ao original, o que

implica uma “espécie de mudança de identidade do paciente” (Wilhelm, 2009, p. X).

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Ele ainda acrescenta:

Os sefarim2 sagrados afirmam que o nome pelo qual a pessoa é chamada constitui sua alma e sua força vital. Isso significa que, enquanto reside no corpo a alma infunde vida nele por meio do nome, ou seja, mediante uma combinação correta das letras do nome. (WILHELM, 2009, p.XI)

Segundo Wilhelm, existem longas explicações sobre a importância mística do nome

judaico, especialmente no Tanya3. O que não caberia aqui, evidentemente4. Pode-se observar,

entretanto, que se trata de um elemento fundamental dentro do universo simbólico do

judaísmo, pois, em relação à pessoa, “O nome pelo qual ela é chamada é o recipiente que

contém a força vital condensada inerente às letras do nome” (idem, p.XI).

Maus de Art Spiegelman (2009) foi uma leitura que apontou paraa questão do número

de forma contundente. A história em quadrinhos traz o relato de seu pai, Vladek, a partir de

longas conversas. Ele conta sobre um momento bastante significativo para o seu pai, Vladek,

em Auschwitz: um padre faz observações sobre o número que Vladek recebeu em sua

tatuagem. Ele está chorando sentado em um canto na cela, e o padre se aproxima. Não era

judeu. “Seu número começa com dezessete “k’minyan tov” dezessete é um ótimo presságio.

Acaba com treze. É quando meninos judeus viram homens. Veja! A soma dá dezoito. Em

hebraico é “chai”, o número da vida” (p.188). O que significaria que ele sairia vivo dali, em

sua opinião. Essa se tornou a âncora de ânimo para Vladek Spiegelman.

Há toda uma explicação trazida por Edwin Black (2001), que traz o significado

específico de cada número que foi utilizado nos cartões perfurados da IBM – Internacional

Business Machines. Mas não é dessa em específico que se trata a fala do padre. Mas, daquilo

que todo conhecedor do hebraico sabe: cada letra do alfabeto hebraico possui um número, e as

palavras são formadas tendo em vista o somatório desses números e seu significado final.

Memória e esquecimento

A maior questão da pesquisa, aqui apresentada de forma sucinta, consiste em pensar a

relação entre o sobrevivente, o nome no judaísmo e a figura do muselmann, entendendo que, a

partir disso pode-se elaborar uma compreensão sobre o Lager, daquilo que ele significou não

2 Livros sagrados, no singular escreve-se sêfer. 3 Sobre a história do Hassidismo há o livro de Harry Rabinowicz “Chassidismo: o movimento e seus mestres”. Chassidismo ou Hassidismo, implica apenas uma questão de tradução. 4 E com as quais também não estou familiarizada.

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somente para as pessoas que lá estiveram, mas, para a compreensão do ‘ser’ humano. Tendo

em mente a reflexão de que “a verdade do passado remete mais à uma ética da ação presente

que a uma problemática da adequação (pretensamente científica) entre “palavras” e “fatos”

(GAGNEBIN: 2009, p.39).

Por isso, as narrativas da Shoah (“catástrofe”, em hebraico) trazem questões

importantes do ponto de vista de uma literatura: Como usar uma linguagem que favoreça um

entendimento mútuo, que seja inteligível para aqueles que não vivenciaram aquela situação

fora do comum? Como imaginar o inimaginável? Narrar seria admitir a realidade daquilo que

parecia irreal, quando vivido. Como diz Márcio Seligmann-Silva (2008): “Veremos que o

testemunho de certo modo só existe sob o signo de seu colapso e de sua impossibilidade”

(p.67).

Assim fazem alguns sobreviventes do chamado Holocausto, ou Shoah. O passado não

é algo cristalizado nas lembranças, mas, algo que é visto e revisto cada vez que é contado e

recontado, e, está presente mesmo, em manias do dia a dia e pesadelos à noite

(SPIEGELMAN, 2009; SEMPRÚN, 1995).

A escrita do trauma não tem em seu eixo um norteamento cronológico. Em seu texto,

Wladislaw Szpilman (2008) diz que para ele, o período em que viveu no gueto foi como um

sonho, um único bloco de lembranças. Como nas palavras de Gagnebin: “a memória vive essa

tensão entre a presença e a ausência, presença do presente que se lembra do passado

desaparecido, mas também presença do passado desaparecido que faz sua irrupção em um

presente evanescente” (2009, p.44).

Parece então, que esse “algo” ao qual se interroga, localiza-se entre o dito e o não dito,

entre a lembrança e o esquecimento. É como algo entre o som e a música, a voz e a palavra.

Exatamente aquele lugar em que não se tem certeza da realidade ou do sonho. Mas, ele está lá

e, de alguma maneira, pode-se voltar a esse lugar enquanto for possível lembrar. Mas é aqui

se evidenciam as palavras de Levi de que elas, tantas vezes contadas e recontadas, adquirem

elementos externos, tomados de outros conhecimentos e se deforma. É assim que ele inicia o

primeiro capítulo de seu livro Os afogados e os sobreviventes, intitulado A memória da ofensa

(2004, p.19). E, assim como Elie Wiesel, em seu A noite (2006), esquecer o que aconteceu

não faz parte dos planos5.

5 Weinrich (2001).

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Primo Levi (2004) enfatiza que o muselmann6 ele é alguém que já se entregou, chegou

ao fundo do Lager. Era o nome que os veteranos usavam para descrever os que estavam

“aptos” para a seleção. O número é a única identificação quando o indivíduo esquece quem é,

quando tudo que antes foi, deixa de existir: ele se tornou um muselmann. Esse é o fim último

da política de extermínio nazista. O seu fim nada mais é do que o esquecimento. A

aniquilação do corpo, mas antes de tudo, a aniquilação do ser humano:

A aniquilação de corpos humanos nessa sua dimensão originária de corporeidade indefesa e indeterminada como que contamina a dimensão espiritual e intelectual, essa outra face do ser humano. Ou ainda: a violação da dignidade humana, em seu aspecto primevo de pertencente ao vivo, tem por efeito a destituição da soberba soberania da razão. (GAGNEBIN: 2009, p.77)

A aniquilação das diferenças: o uniforme de Häftling7, as cabeças e todos os pelos do

corpo raspados, as filas, a palidez, o odor agridoce do ar8. O trabalho forçado, o transporte em

trens de carga e de gado, a denominação ‘peças’ referindo-se aos prisioneiros, nos relatórios

dos nazistas. Tudo isso como demonstração da eficácia de uma máquina de morte bem

lubrificada, e com uma finalidade bem específica, como nos mostra Arendt (2001):

Como instituição, o campo de concentração não foi criado em nome da produtividade; a única função econômica permanente do campo é o financiamento dos seus próprios supervisores; assim, do ponto de vista econômico, os campos de concentração existem principalmente para si mesmos. (p.495)

Nachman Falbel, em seu livro Kidush HaShem: crônicas hebraicas sobre as cruzadas

(2001), também analisa, resumidamente, essa questão do nome no Holocausto e diz que, para

os judeus: “o desejo de lutar contra a morte anônima, a morte sem “nome”, permanece como

um elemento de longa duração em sua história” (Falbel, 2001, p.19).

Na Idade Média, as carroças carregadas de corpos para ser enterradas em valas

comuns, também foi uma imagem recorrente na Shoah. O que faz lembrar a observação de

Primo Levi, no início do seu livro Se isto é um Homem: “A história dos campos de extermínio

deveria ser interpretada por todos como um sinal sinistro de perigo” (2010, p.09). O perigo de

um simulacro?

6 Sobre essa personagem do Lager, o livro de Giorgio Agamben “O que resta de Auschwitz” possui um capítulo especialmente dedicado a essa discussão. 7 Prisioneiro. 8 Citado também por Chil Rajchman em “Treblinka: eu sou o último judeu”.

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O esquecimento é o outro lado da moeda da memória. É parte dela, ambos estão

intimamente relacionados. Como nos instantes bachelardianos, em algum momento, esquecer

faz parte o lembrar, e, ambos, fazem parte do universo que é o indivíduo.

O esquecimento está sempre ao lado, pronto para saltar quando uma pessoa quiser lembrar. Por isso, para ser duradoura, uma memória precisa lutar diariamente com o esquecimento. E para ser bem-sucedido nisso é preciso conhecer o esquecimento e registrá-lo minuciosamente em todas as suas manifestações atestadas. (WEINRICH, p.257)

O que leva à questão: estariam os sobreviventes, ao escrever suas memórias, na

verdade, escrevendo ou inscrevendo seus esquecimentos? Podia lembrar-se de tudo que se

viveu, ou senão aquilo que se perdeu? Elie Wiesel (2006), assim como Szpilman (2000) e Lili

Jaffe (JAFFE, 2012), compartilham de suas impressões sobre o tempo. Um tempo que mais

parece um sonho, um dia, uma noite.

Elie Wiesel, seguindo a tradição Hassídica, conhecida de sua família, tornou-se um

narrador. Após dez anos de silêncio. Comentando o livro O esquecido de Wiesel, Weinrich

questiona: “Como eliminar o perigo do esquecimento ligado a toda troca de geração?” (p.

257).

Walter Benjamin e Gaston Bachelard: o desafio da tese

Não existe uma história única, mas várias os judeus contam suas próprias histórias da

Shoah. Histórias da descontinuidade. Os relatos são partes constituintes de histórias, de um

mesmo período cronológico, localizadas nas circunvizinhanças uns dos outros. Diz Benjamin:

“Articular historicamente o passado não significa reconhecê-lo “tal como ele foi”. Significa

apoderar-se de uma recordação (Erinnerung) quando ele surge como um clarão num momento

de perigo.” (2012, p. 11). Para isso, é preciso pensar os relatos com um conceito de história e

abri-los em paralelo, deixar que falem, para, juntamente com a teoria, pensar os fios de

Ariadne que as interligam.

Pois, elas estão interligadas não só por versarem sobre a Shoah enquanto

acontecimento culminante de um planejamento estratégico da Alemanha Nazista, mas, nas

questões que evidenciam, sejam religiosas, as próprias angústias humanas, o sentimento de

pertencer a essa humanidade. E como diz Benjamin: “O cronista, que narra os acontecimentos

em cadeia, sem distinguir entre grandes e pequenos, faz jus à verdade, na medida em que nada

de que uma vez aconteceu pode ser dado como perdido para a história.” (2004, p.10). Em

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Benjamim, rememorar implica uma presentificação do passado, no sentido de trazer o passado

a partir do olhar do presente. O passado não é algo indiferente, mas só é memória posto que

esteja relacionado ao presente.

Neste estudo, recorre-se à noção do tempo descontínuo em Bachelard. Carvalho Filho

(2012), apresenta sucintamente as discussões de A intuição do instante (2010), e, em uma

frase resume o que nos interessa aqui: “Essa percepção do tempo como construção demonstra

que só é possível vislumbrar a nossa visão temporal a partir do presente” (CARVALHO

FILHO, 2010, p.62). A construção do relato só é possível a partir do presente numa

construção de um conjunto descontínuo de eventos. Ou seja, o narrar os fatos não é mais que a

tentativa de inscrever na horizontalidade as experiências da verticalidade. Isso porque, não é

que ele seja inenarrável, mas que é preciso uma construção apenas alcançada em algum

momento específico da vida do sobrevivente. Como é o caso de Semprún e Wiesel.

A questão não é perscrutar lacunas nos relatos, mas, evidenciar os instantes

presentificados no ato de rememorar. A partir disso, relacioná-los aos elementos da tradição

judaica que eles identificam, para enfatizar os elementos que afloraram nas situações

extraordinárias vivenciadas pelos sobreviventes.

E as leituras prévias de construção do problema de pesquisa apontam a alma e o nome

como fundamentais. A partir daí, pretende-se reconhecer os que orbitam em torno dos dois. O

que indica questões sobre morte – não apenas a morte do corpo e as leis relacionadas a ela,

mas, e principalmente a morte dos homens-casca (o muselmann). Esta última relaciona-se ao

pensamento (o reflexo da alma nos olhos, como aparece em alguns relatos).

Assim, não se trata de pensar apenas a memória, mas, a memória que é a

presentificação de um tempo descontínuo, desenraizado. O sobrevivente, em seu ser

desenraizado, apresenta um relato do tempo descontínuo? A alegação de que tudo não foi

como em um sonho, como um bloco de acontecimentos, não cronológicos, possui uma

configuração vertical? Eis algumas das questões que surgem no caminho.

Referências

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BACHELARD, Gaston. A intuição do instante. 2ed. Tradução de Antonio de Pádua Danesi. Campinas-SP: Verus Editora, 2010.

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Um orixá evangélico: a transição de Exu para o culto da Igreja Universal do Reino de Deus

A gospel orixá: the move of Exu into the ceremonies of the Universal Church of the

Kingdom of God Un orixá évangélique : la transition d’Exu aux cultes de l’Église Universelle du Royaume

de Dieu

Ivana SOARES PAIM1 PUC, São Paulo, Brasil

Resumo No contexto das comunicações realizadas por redes sociais de compartilhamento de informação, este artigo aborda a transição de Exu, uma divindade das religiões afro-brasileiras para os exorcismos da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) divulgados no YouTube. Foram selecionadas para a análise desenvolvida neste artigo, apenas as postagens de exorcismos que ligavam a ideia do Diabo cristão na IURD à deidade Exu. O referencial teórico mobiliza autores ligados ao estudo da imagem como “acontecimento” nas mídias, como Charaudeau e aqueles que versam sobre o sincretismo religioso e o imaginário como Malandrino e Durand. O artigo descreve o processo de hibridação entre a personificação cristã do mal e a imagem de Exu; e ressalta que desse processo de sincretismo religioso deriva um personagem neopentecostal tipicamente brasileiro. Palavras-chave: sincretismo; acontecimento midiático; Diabo; Exu.

Abstract Having as a background the communications that take place in the Internet, this article talks about the transition of Exu, a deity came from the Afro-Brazilian religions into the exorcisms of Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), released in YouTube. Only the exorcisms that relate the image of Exu to that of the Christian Devil were taken in account for this research. The theories of Charaudeau about the midiatic happening, those of Malandrino about religious syncretism, as well as Gilbert Durand’s structures of the human imaginary guided the analysis of the subject. This article describes the process of hybridization between the Christian personification of the evil and Exu. Besides, this article points that from this syncretism comes a typical Brazilian religious character. Key words: sincretism; mediatic happening; Devil; Exu.

1 [email protected]

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Introdução: o Diabo como ajudante de igrejas

Assim como a Igreja Católica esteve num processo de expansão entre os séculos V e

X, as igrejas pentecostais e neopentecostais enfrentam essa fase atualmente e lançam mão da

figura do Diabo da mesma forma que a Igreja Católica havia feito: usam o Diabo para

aterrorizar os fiéis e legitimar sua existência como salvadoras.

No Brasil, além de garantir largo número de fiéis com essa estratégia, as igrejas

neopentecostais estabelecem uma relação de rivalidade com as demais religiões em

progressão como as de origem afro-brasileiras, ou mesmo a católica, ao transformar os santos,

os orixás ou os espíritos sagrados dessas religiões em meros Diabos. No mundo

neopentecostal, santos, espíritos e orixás continuam a existir, mas são demonizados; dando ao

fiel a impressão de que será tentado por eles a afastar-se de Deus. Converter no

neopentecostalismo brasileiro significa “redefinir o demônio ou descobrir um novo demônio

ativo em áreas não percebidas como demoníacas” (MARIZ. In: BIRMAN et al., 1997, p. 49).

E assim, as igrejas neopentecostais fortalecem no fiel a ideia de que a igreja tem o poder de

protegê-lo contra o Diabo, e atribuem a si mais credibilidade.

Para alcançar o maior número de pessoas, além dos cultos presenciais espetaculares,

muitas das igrejas neopentecostais tem utilizado meios de comunicação como o rádio, a tevê e

atualmente a web. Por ser uma das igrejas neopentecostais de maior projeção no uso da tevê e

por ter explorado um novo gênero de espetáculo litúrgico – os exorcismos televisionados – a

Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) será especificamente abordada neste estudo. Além

da rede televisiva Record, a IURD possui a IURD TV aberta e online, e divulga no YouTube

imagens de exorcismos de fiéis endemoninhados. Assim, este trabalho mostrará como o

Diabo, aqui entendido como um personagem do imaginário cristão, aparece configurado nos

“possuídos” da IURD e como essa imagem é produzida e reverberada na tevê e no YouTube,

levando em conta as teorias de Charaudeau sobre o “acontecimento provocado” presente nas

mídias e as ideias de Malandrino (2006) e Durand (2012) respectivamente, sobre o

sincretismo religioso e as estruturas arquetípicas do imaginário que caracterizam a fusão

dessas duas deidades: Exu e Diabo.

O acontecimento provocado de Charaudeau

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Ao se debruçar sobre os estudos já existentes acerca do acontecimento, principalmente

aqueles de Ricoeur e Morin, Charaudeau aponta uma nova vertente de “acontecimento”, que

de certa forma contradiz o conceito inicial daqueles pesquisadores, que associavam a ideia de

“acontecimento” à ideia de ruptura de uma ordem e a de aleatoriedade. Charaudeau afirma

que o acontecimento nas mídias é sempre construído e, portanto, pode ser inclusive

programado e provocado (CHARAUDEAU, 2012, p. 189).

As mídias de informação não se contentam em relatar acontecimentos, ou simbolizá-

los pelo viés de uma narrativa ideológica, mas criam situações que provocam o surgimento de

acontecimentos, que nada tem de espontâneos desde o princípio de sua existência. Segundo

Charaudeau, esses acontecimentos provocados são encenações organizadas de maneira que os

confrontos de fala, ou as situações nas quais se envolvem os sujeitos atuantes, sejam vistos

como um acontecimento notável, ou saliente. O acontecimento provocado faz da informação

um objeto de espetáculo, ou seja, ele elimina a finalidade informativa em favor da captação

(Ibidem, p.191). Esse acontecimento provocado provém de um sistema de apresentação ou de

um dizer que não é somente um recurso para descrever e narrar o mundo, mas uma construção

com fins de revelação de uma determinada verdade sobre o mundo (Ibidem, p. 189). Essa

construção, seja ela um debate, ou uma entrevista de talk show é exibida na imprensa, na

televisão ou mesmo atualmente na internet. Para Charaudeau, todo acontecimento midiático é

provocado e prima pela busca da dramaticidade que garantirá sua espetacularização e assim,

maior audiência; daí a escolha dos profissionais das mídias e dos convidados basear-se em sua

capacidade de ser carismáticos, em chamar a atenção do público (Ibidem, p.197).

Charaudeau aponta também o que chama de problemas relativos ao acontecimento

provocado ao compará-lo com os acontecimentos narrados ou simbolizados, mas carregados

da ideia de imprevisto. Afirma que se os últimos suscitam entraves por causa da questão da

subjetividade dos agentes da comunicação, os provocados despertam problemas acerca dos

limites de atuação das mídias. Segundo ele, “fazer da informação um objeto de espetáculo, é

arriscar-se a ultrapassar as instruções do contrato, a eliminar a finalidade informativa em prol

da captação, e a cair num discurso de propaganda com fins de autopromoção” (Ibidem, p.

191-192). Assim, as escolhas que determinam o tema, os atuantes e todo o sistema de

encenação do acontecimento provocado, bloqueiam o desenvolvimento da argumentação

criando assim uma ilusão ou efeito de verdade. Segundo o autor, esse efeito de verdade é mais

evidentemente visto nos gêneros televisivos.

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Charaudeau salienta que a imagem televisiva pode produzir três tipos de efeito: o de

realidade, quando se presume que ela reporta de modo direto o que surge no mundo; o de

ficção, quando tende a representar analogicamente um acontecimento passado, como nas

reconstituições; e o efeito de verdade, quando torna visível o que não era antes visto a olho

nu, como mapas na perspectiva de voo de pássaro ou satélite nos dias de hoje, gráficos com

dados abstratos, ou zooms de seres microscópicos, que mostram a realidade por um anglo

diferenciado e penetram o universo oculto dos seres e objetos do mundo. É importante

lembrar que Charaudeau tem como preocupação principal em sua obra elucidar a dificuldade

em se realizar a democracia plena no discurso das mídias. Contudo, nesse trajeto de

desvelamento do que chama de “simulacro de democracia”, o autor deixa elementos teóricos

que servem para analisar acontecimentos provocados que não se atêm à questão de criar uma

ilusão de democracia ou da função de informar, mas pretendem simplesmente persuadir e

convencer o interlocutor com a mera propaganda. Nos próximos itens será estudado um tipo

de acontecimento que tem estado presente atualmente em mídias como a tevê aberta e online,

além do YouTube: os exorcismos provocados nos cultos da Igreja Universal do Reino de

Deus, que têm por objetivo principal, propagandear o suposto poder de proteção daquela

igreja em fase de expansão e consolidação.

A construção do Diabo midiático da Igreja Universal do Reino de Deus

Durante alguns cultos da Igreja Universal, destinados à purificação das almas e corpos

dos fiéis, o pastor regente incita os presentes a permitir que o mal que se encontra neles,

presumidamente, se manifeste em forma de Diabo para ser exorcizado por ele, pastor, e pelos

obreiros, seus ajudantes. Melodias semelhantes àquelas de filmes de terror saem do órgão

presente no altar e criam uma atmosfera de apreensão e expectativa. Os obreiros e o pastor

colocam suas mãos sobre a cabeça de alguns fiéis e começam a chamar pelo Diabo que

daquele corpo supostamente tomou posse. Não demora muito para que alguns fiéis comecem

a se apresentar como se fossem Diabos encarnados, sofrendo desmaios, babando, falando com

voz gutural ou mesmo gritando e se contorcendo. Nesse momento, a câmera já está ligada e

remete a imagem do pastor regente em contato com um dos “possuídos” ao telão, situado no

centro do templo e em suas laterais. Assim, a fala do endemoninhado e a do pastor são

ouvidas por todos os presentes via microfone e autofalantes. Algumas dessas imagens

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provenientes desses cultos vão parar na IURD TV online e aberta, exibida pela Rede 21, e

também no YouTube.

Com essa breve descrição é possível notar que os exorcismos da Igreja Universal,

assim como o Diabo em que neles surge são acontecimentos provocados: primeiro pela

atmosfera criada durante aqueles cultos de purificação, que suscitam a expressão do

personagem por alguns fiéis vulneráveis ao tipo de ritual religioso em que divindades são

incorporadas; segundo porque naquele mesmo instante em que os exorcismos acontecem, as

câmeras já os registram nos telões presentes dentro do templo, para que os fiéis mais distantes

do palco possam vê-los e ouvi-los com mais facilidade; e terceiro porque, tempos depois,

aqueles exorcismos são editados e colocados em programas da IURD TV como o “Ponto de

luz”, ou o “Obreiros em Foco”, por exemplo. Assim, esses exorcismos e esses Diabos já

nascem destinados à tevê. Isso porque na verdade, tratam de propaganda da proteção

oferecida pela Igreja Universal. Essas construções televisivas de cenas de exorcismos

pretendem revelar aos seus telespectadores ou mesmo internautas, que a IURD pode protegê-

los do mal que está à solta e quer desgraçar sua vida financeira, afetiva e destruir sua saúde. O

que importa para a Igreja Universal, que divulga esses exorcismos, em sua maioria, é estar

sempre na berlinda. Os pastores, blogs ou canais que divulgam esses vídeos no YouTube

pouco se importam com os comentários ofensivos que acompanham algumas de suas

postagens, porque para eles a propaganda é mais importante do que o argumento.

Por ter como principal objetivo a propaganda da proteção oferecida pela IURD contra

o Diabo, os exorcismos ali realizados e divulgados nas mídias televisivas, apresentam um

quadro ou roteiro já determinado, cujo fio condutor é: o pastor provoca a manifestação dos

supostos Diabos que se manifestam no fiel naquele momento, e em seguida os expulsa

daqueles corpos com o poder de sua palavra, respaldada pela força de Deus e da IURD.

Assim, pastor e “fiel possuído” seguem esse roteiro, e por mais feroz que seja a apresentação

do Diabo na expressão corporal do fiel, ele sempre será subjugado pelo pastor, que ao cabo de

alguns minutos, o exorcizará. Esse quadro de configuração dos exorcismos já vem sendo

desenhado e apresentado pela IURD desde 1988, quando Edir Macedo adaptou as “entrevistas

com o Diabo”, proferidas pelo rádio em programas de David Miranda da Igreja Renascer,

para seu programa na tevê Record (KLEIN, 1999, p.45).

No caso dos exorcismos da IURD, os pastores corresponderiam aos profissionais de

mídia e os fiéis “possuídos” a seus convidados. Os pastores sempre devem saber como

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chamar a atenção do público com seus discursos repletos de gestos e frases de efeito, embora

dos fiéis possuídos não se exija tanto, mas que apenas respondam às perguntas do pastor de

maneira animalesca, como se encarnassem realmente um Diabo.

O papel do animador, no caso o pastor, no momento em que se desenrola o exorcismo

é um papel gerenciador da fala e do comportamento do fiel “possuído”. É ele, o pastor, que

introduz os temas e subtemas da conversa, dando ou não a palavra a seu inusitado convidado.

Em um vídeo do programa “Duelo dos Deuses”, o bispo Guaracy pergunta a seu interlocutor

endemoninhado: “Quer dizer que ele já veio feito de berço? (...) Quando ele saiu do ventre

materno, quem veio nele de frente?” 2 Essas expressões “ser feito, e vir de frente” são comuns

nas religiões afro-brasileiras e são colocadas aqui para auxiliar a construção de um Diabo que

teve sua origem nos terreiros e casas de santo. E assim, além de garantir o escopo do

exorcismo, cujos veios espetaculares são garantidos pela captação televisiva, o bispo constrói

uma imagem do seu “interlocutor sobrenatural”. Sua origem afro-brasileira está também em

expressões faciais e gestos corporais que remetem àquelas representações gestuais das

divindades umbandistas ou candomblecistas. Em um trecho do vídeo, o fiel movimenta seus

ombros e balança seu corpo como os umbandistas e candomblecistas fazem ao corporificar

“Exu Sete Encruzilhadas”.

Mesmo passando por um processo de edição, a imagem daqueles exorcismos conserva

aspectos da transmissão ao vivo nos telões do templo: a marcação de elementos que denotam

ausência de controle e artificialidade, como câmeras e fiação aparecendo; as falas do pastor

interpelando os câmeras diretamente a filmar aqui e ali; pessoas correndo no meio da cena; o

pastor pedindo atenção ao público. A imagem editada, que será exibida na IURD TV e na

internet, ganha legendas propagandeando o local das próximas reuniões na localidade onde

são mostradas; ganha os círculos embaçados protetores da identidade do fiel, e perdem um

pouco sua nitidez ao serem postadas no YouTube. Nos exorcismos mostrados na tevê e

compartilhados no YouTube, a imagem produz tanto o efeito de realidade quanto

particularmente o de verdade. O efeito de realidade se dá pelo fato de os exorcismos serem

gravados no momento em que o culto acontece, ou seja, mostram diretamente o que surgiu no

mundo num determinado instante: essas cenas mostram que o “possuído” é levado ao palco

onde se encontra o pastor, e o exorcismo ocorre na frente de todo o público da igreja, e na

frente das câmeras que os registram diretamente, garantindo assim um efeito de realidade. 2 Bispo Guaracy em Goiânia/GO –Forte – (IURD TV). Vídeo postado em 15/04/2013 no YouTube. URL: https://www.youtube.com/watch?v=AUQAq5rFVBc

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Já o efeito de verdade se dá pela própria figuração do Diabo na expressão do

“possuído” e pelo colóquio que trava com o pastor; ou seja, por meio de um discurso pautado

por um tom de voz animalesco e de cunho maldoso a pessoa concretiza e torna presente a

imagem do Diabo, um personagem do imaginário cristão. Nessas entrevistas, a câmera mostra

um corpo que apresenta a manifestação do Diabo, personificação do mal no cristianismo, cuja

existência está ligada à crença no mundo sobrenatural e misterioso, de difícil acesso,

estabelecendo, portanto, o contato dos demais fiéis e do pastor com esse elemento do

imaginário no âmbito do sagrado, vindo daí seu efeito de verdade.

Ao criar os efeitos de realidade e verdade, os exorcismos dão maior credibilidade à

proteção oferecida pela Igreja Universal, especialmente ao utilizar a figura do Diabo

subjugado pelos pastores, representantes da Igreja. No entanto, é necessário ressaltar que

esses exorcismos de viés televisivo oferecem sempre uma ilusão ou efeito de verdade ou

realidade, pois já se originam no culto com o intuito de convencer os fiéis da força e proteção

da Igreja. Além disso, ao serem reproduzidas na tevê e na web, vem recortadas, como partes

de uma realidade selecionada pelo câmera, pelo diretor e pelo editor. Dessa forma, segundo

Charaudeau (2012), a televisão mostra um olhar opaco sobre as coisas do mundo, pois já traz

em sua imagem a interpretação e a intenção das pessoas que a elaboraram.

Desses exorcismos provocados e televisionados surge então a figura do Diabo da

IURD, que muitas vezes assume características de entidades pertencentes às religiões afro-

brasileiras como as de Pombo-giras e Exus.

O sincretismo religioso segundo Malandrino e os mapas do imaginário de Durand

Os arquétipos potenciais são energias psíquicas que geram os arquétipos observáveis,

quando ativadas por estímulos da realidade e configuradas em uma forma perceptível por

meio do material ou repertório imagético individual (MALANDRINO, 2006, pp.205-209).

Como afirma a abordagem junguiana, o símbolo é a imagem oriunda do inconsciente,

expressão de arquétipos que não podem nunca ser expressos diretamente. O símbolo é a

energia psíquica transformada em imagem. Assim, dos estratos mais profundos da psique

surgem imagens arquetípicas que podem dar origem a símbolos, a mitos e a rituais. O símbolo

consegue harmonizar significados opostos e colocar em diálogo elementos conscientes e

inconscientes da psique, e por essa razão, torna possível a abordagem da experiência religiosa

sob a ótica das construções do imaginário (Ibidem, 2006, p. 190).

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Os símbolos religiosos têm o poder de colocar a consciência em contato com

elementos do inconsciente sem causar desequilíbrio ao self, protegendo-o da destruição, pois

esses símbolos organizam-se em rituais e narrativas mitológicas, que permitem à energia

psíquica circular seguramente entre um plano e outro da psique (Jung, 2000, apud

MALANDRINO, 2006, p.75).

Na umbanda ou no candomblé, por exemplo, o médium deve passar por um longo

aprendizado até que esteja pronto para “receber o santo”. Além do aprendizado específico, ele

deve aprender também a sensibilizar-se ao toque dos tambores, a deixar-se estar num estado

de transe ou semi-transe, para que acione os arquétipos coletivos e que deles faça derivar os

símbolos ou divindades que melhor se encaixem a sua individualidade, seu “santo de cabeça”,

ou orixá. Deve estar preparado para saber a hora em que tornará presente esse símbolo

originado em seu inconsciente e a hora em que se desvencilhará dele no ritual. Assim, essa

porção do inconsciente pode manifestar-se, cumprir sua função mística de religar planos

incompatíveis racionalmente, sem que ponha em risco a integridade e o equilíbrio mentais da

pessoa. O médium, os cambonos, auxiliares do médium, e todas as pessoas envolvidas no

ritual obedecem à ordem da realização do culto ao orixá, e assim, tudo ali ocorre conforme o

esquema ritualístico adotado. Quando não há um esquema a ser seguido, a energia psíquica

fica solta, desorientada, e pode causar depressão, loucura ou outras perdas para a totalidade do

self (ZACHARIAS, 1998, p. 81).

Os indivíduos têm a possibilidade de escolher ou não uma religião ou estrutura

simbólica que lhes proporcione mais sentido na experiência com a sua realidade mística.

Podem mesmo mudar de religião a partir do instante em que os símbolos religiosos de uma

primeira religião não cumprirem mais o papel de conectar sua mente consciente com a

totalidade do self. Sendo as estruturas arquetípicas comuns e coletivas, continuariam

desenvolvendo sua função de criar e partilhar símbolos mesmo se o indivíduo mudasse de

religião (MALANDRINO, 2006, pp.76-77).

As estruturas arquetípicas e simbólicas garantem um esquema seguro de deslocamento

dessa energia, que obedece a organizações preestabelecidas e compartilhadas por membros de

sua comunidade como rituais, normas de etiqueta e demais convenções. Durand propõe

mapear as estruturas arquetípicas, formadoras de imagens simbólicas para que melhor

possamos compreender os elementos que determinam sua caracterização imagética.

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Durand amplia as ideias de Jung sobre a formação das imagens arquetípicas porque

considera que se dão não somente no interior da psique humana, mas que se formem graças a

interação entre a subjetividade e a objetividade. Afirma que as imagens são frutos da

deformação de cópias pragmáticas da percepção visual registradas pela memória, são

recombinações de signos metaforizados, determinadas pelas pulsões psíquicas e as repressões

do meio social. Assim, as imagens arquetípicas ou simbólicas são formadas na dinâmica de

intercâmbio entre realidade e subjetividade; e Durand chama esse processo de trajeto

antropológico, ou “a incessante troca que existe no imaginário entre as pulsões subjetivas e

assimiladoras e as intimações objetivas que emanam do meio cósmico e social” (DURAND,

2012, p. 41).

Com base nessa conclusão e em seus estudos sobre a obra de Piaget, Durand chega a

uma metodologia da geração das representações simbólicas que chama de dominantes

reflexas. Essas dominantes seriam malhas intermediárias entre os reflexos simples e os

associados, como matrizes sensório-motoras nas quais as representações vão integrar-se,

sobretudo se certos esquemas perceptivos vêm assimilar-se a esquemas motores primitivos.

São elas as dominantes posturais, de engolimento e rítmicas, que estão em concordância com

os dados de certas experiências perceptivas como o erguer-se ou o cair, o nutrir-se e o

amadurecer-se sexualmente (Ibidem, 2012, p.35).

Partindo da convergência da reflexologia, da tecnologia e da sociologia, Durand

estabelece uma divisão binária da qual partirá toda sua estruturação do mapa simbólico do

imaginário humano: o Regime Diurno e o Noturno. O Regime Diurno tem a ver com a

dominante postural, a tecnologia das armas, a sociologia do soberano mago e guerreiro, os

rituais da elevação e da purificação. Já o Regime Noturno subdivide-se nas dominantes

digestiva e rítmica ou cíclica. A dominante digestiva abrange as técnicas do continente e do

habitat, os valores alimentares e digestivos, a sociologia matriarcal e alimentadora. A

dominante cíclica agrupa as técnicas do ciclo, do calendário agrícola e da indústria têxtil, os

símbolos do retorno, os mitos e os dramas astrobiológicos, como o clima e as estações do ano

(Ibidem, 2012, p.58). Segundo Durand o Regime Diurno é o regime da antítese, pois de cara

contrapõe luz e treva. Seus símbolos são aqueles ligados à luminosidade e à sombra, como os

símbolos antitéticos de Deus e do Diabo, de vida e de morte. O Regime Diurno recusa a visão

eufemística do tempo, vendo nele somente a negatividade da morte. Assim, aumenta

hiperbolicamente o aspecto tenebroso e maléfico de Cronos, a fim de endurecer ainda mais as

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suas antíteses simbólicas, de polir com precisão as armas que utiliza contra a ameaça noturna,

que são o cetro e o gládio. Trazer ao campo da imaginação o terror dos efeitos do tempo, já é

uma forma de dominá-lo. Configurar o tempo em formas bestiais e tenebrosas já é

automaticamente prepará-lo para ser vencido pela figura de um herói luminoso e armado, que

se ergue eretamente como o cetro e punge sua vítima com o gládio (Ibidem, 2012, pp.84-165).

No Regime Noturno “o antídoto do tempo não será procurado no sobre-humano da

transcendência e da pureza das essências, mas na segura e quente intimidade da substância ou

nas constantes rítmicas que escondem fenômenos e acidentes” (DURAND, 2012, p. 194). Ao

regime heroico da antítese se contrapõem o regime pleno do eufemismo. Nesse regime a

queda se eufemiza em descida e o abismo minimiza-se em taça, e a noite é apenas promessa

da aurora. As linhas de força que determinam a estruturação dos símbolos sob o Regime

Noturno são aquelas do engolimento e da descida, do acolhimento. O símbolo primordial e

supremo engolidor seria o mar, pois é o abismo feminizado e materno que para numerosas

culturas é o arquétipo da descida e do retorno às fontes originais da felicidade, o útero da mãe.

A imaginação noturna é naturalmente levada da quietude da descida e da intimidade que a

taça simboliza para a dramatização cíclica na qual se organiza o mito do retorno e daí a troca

da taça pelos símbolos cíclicos do denário e do pau. O símbolo do denário encarna o desejo de

dominar o devir pela repetição dos instantes temporais, vencer Cronos não com figuras

estáticas, mas operando sobre a própria substância do tempo para domesticá-lo. Daí surgem as

mitologias messiânicas e as de progresso. Já o símbolo de paus indica as modificações

cíclicas pelo viés da genética, da hereditariedade, para o desenvolvimento progressista da

maturação. Assim, paus é a síntese da ideia da árvore frutífera.

Durand apresenta também a passagem de uma morfologia classificatória das estruturas

do imaginário para uma fisiologia da função da imaginação. Esboça uma filosofia do

imaginário a que chama de fantástica transcendental, pois demonstra como o imaginário

humano estrutura-se universalmente, obedecendo a padrões comuns, que transcendem as

culturas e os tempos. Segundo o autor, “há uma realidade idêntica e universal do imaginário”

(DURAND, 2012, p. 378). O autor não afirma, contudo, que as estruturas arquetípicas

produzam símbolos idênticos em todas as sociedades humanas, mas que há uma afinidade na

constituição desse arcabouço imagético, como a oposição entre os Regimes Diurno e Noturno,

que derivam de processos comuns a todos os seres humanos, como o nascer e o morrer, o

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engolir, o elevar-se na postura ereta, o cair, o perceber os ciclos rítmicos de sua natureza e da

natureza que os envolve.

A transformação de Exu em Diabo nos exorcismos da IURD

A ideia de Deus no cristianismo aproxima-se da determinante reflexiva de ascensão

corporal, que coloca seu herói nas alturas e na claridade, um herói demiurgo e justo, cujo

cetro e gládio sempre vencerão seu oponente. No catolicismo, divindades que compartilham

os mesmos ideais de bondade e pureza de Deus como os santos, os mártires e os anjos

também se opõem ao Diabo, e muitas vezes são representados como pessoas saudáveis,

portando auréolas ou asas, no caso dos anjos, e tendo sob jugo o Diabo, geralmente

configurado como dragão ou serpente de cor escura, animal aterrorizante de dentes afiados.

Nessas representações o Diabo encarna toda a negatividade dos símbolos que povoam o

imaginário do Regime Diurno. É ao mesmo tempo bestial e vorás, aterrorizando com seus

dentes, chifres e rabo, e reforçando por antítese a força protetora dos heróis que o subjugam.

O Diabo é também um símbolo da queda dentro do Regime Diurno, que toma um significado

trágico, dramático e não eufêmico da ação do tempo. No Regime Diurno, a queda remete à

perda, ao rompimento e à condenação. O Diabo está condenado a sofrer e causar tormento, a

desestabilizar a ordem divina, e a sempre ser vencido.

O resgate da imagem aterrorizante do Diabo católico feito pela Igreja Universal, de

cunho protestante justifica-se pelo fato de que ambas as igrejas, embora em tempos diferentes,

enfrentassem processos de expansão e consolidação de sua existência como instituições e

precisassem afirmar sua função de proteger o fiel do mal, personificado em Diabo. Assim, a

imagem do Diabo católico do século IX reverbera na expressão corporal dos fiéis da IURD,

conservando suas características animalescas no rosnar e nas vozes guturais, nos ataques com

unhadas aos pastores, nos gritos de desespero ao serem subjugados nos exorcismos. A Igreja

Universal manteve a figuração do Diabo dentro dos limites do antitético Regime Diurno da

imagem, não rompendo o uso tradicional dessa imagem dentro do cristianismo, mas

continuando a reforçar os significados de destruição e morte encarnados no Diabo, e os de

salvação e vida eterna atribuídos a Deus.

Assim, é importante indicar quais são as características de Exu que ainda sustentam

sua associação com o Diabo na Igreja Universal e quais o distanciam dele. Mesmo sendo de

caráter plural, apresentando características muitas vezes contraditórias, o orixá Exu não chega

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a manter com nenhum outro orixá uma relação antitética, o que aproxima sua simbologia do

Regime Noturno da imagem. Entre outras características que unem Exu a esse Regime está

sua ligação ao sexo. Na cultura iorubá, de onde vem os orixás, uma família numerosa é sinal

de prosperidade, de perpetuação da espécie, e assim, o sexo não é visto como algo

pecaminoso, mas como algo desejado. Exu é patrono da cópula, que garante os filhos e dá

continuidade à linhagem, associa-se aos símbolos pertencentes ao denário e a paus, ou seja,

aos fenômenos cíclicos e de hereditariedade, que procuram controlar o tempo, não vendo nele

apenas a imagem devoradora de Cronos. Exu associa-se então a ideia de ciclo de vida e

procriação.

Mesmo quando se apresenta de maneira agressiva e perturbadora é porque na verdade,

deseja que a ordem e as regras sejam respeitadas. Na mitologia iorubana, Exu é também

responsável pela passagem dos dois mundos, o Aye, terreno e o Orum, celestial, sendo ele o

intermediário entre os orixás e os homens. Assim, para que um orixá possa vir à terra, ou para

que um homem dirija suas preces a um orixá, oferendas devem ser dadas primeiro a Exu, que

intermediará todo o processo. Se uma das partes se esquece do trato, a divindade se irrita e

castiga o infrator. Na abordagem psicológica, Exu pode ser visto como símbolo regulador da

passagem entre o self, no plano inconsciente e o ego, no consciente (ZACHARIAS, 1998,

p.96). Na função de intermediador entre planos diferentes, Exu ainda pode ser aproximado do

Regime Noturno, devido ao seu caráter regulador, que consegue transitar tanto pela claridade

quanto pela escuridão, auxiliando e punindo, conforme as regras de Obatalá, criador do

mundo. Tem o poder de resgatar a ordem com a própria desordem. Zela então pela

continuidade e equilíbrio dos movimentos cíclicos, que garantem a vida na terra, dentro da

mitologia, ou a integridade do self, no âmbito psicológico.

Durante os rituais da umbanda ou do candomblé, Exu é apresentado pelo médium

como um homem sedutor, de movimentos rápidos, comunicativo, contraventor de regras

sociais, pois às vezes fala palavrões, e geralmente porta um copo com bebida e um charuto ou

cigarro. É alegre e espirituoso, de risada forte e estrondosa, é bem franco e vez ou outra pode

parecer grosseiro. Por ser um símbolo da força do sexo, da agressividade e por trazer em sua

expressão gestual elementos que tornam presentes esses símbolos, Exu continua sendo

associado ao Diabo cristão. No cristianismo, o sexo e a agressividade são mal vistos e devem

ser extremamente controlados e muitas vezes até negados. E o que foi reprimido acaba

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fazendo parte da região sombria da personalidade do indivíduo ou do imaginário de um povo

(ZACHARIAS, 1998, p.140).

Assim, algumas características valorizadas na religiosidade iorubana, como o sexo, e a

agressividade para a resolução de conflitos são desvalorizadas na religiosidade cristã,

adquirindo um tom pejorativo e estigmatizado. Na construção do Diabo cristão nos palcos da

Igreja Universal há a tentativa de colocar uma divindade do Regime Noturno em um padrão

de imagem do Regime Diurno, o que acarreta a formação de uma divindade de caráter

peculiar, típica de mais um processo de sincretismo religioso no Brasil, entre o

neopentecostalismo e as religiões afro-brasileiras.

Considerações finais: “Exu das Almas Preciosas”, um Diabo cristão afro-brasileiro

No processo de transporte de algumas divindades afro-brasileiras para os palcos da

IURD, o modelo Diurno do Diabo cristão vence o padrão Noturno de Exu, mas esse novo

Diabo, criado nos palcos da IURD, conserva alguns gestos e o nome da divindade Exu, assim

como elementos de sua expressão gestual e vocal.

Isso se explica devido ao fato de que muitos fiéis dessa igreja vieram de religiões afro-

brasileiras, que já tinham como tradição a presença do transe e da apresentação de uma

divindade por meio da expressão corporal. O próprio Edir Macedo, líder espiritual da

Universal, afirma em seu livro “Orixás, caboclos e guias – anjos ou demônios?”, que já havia

frequentado uma daquelas religiões. Por essas razões, pode-se dizer que ao migrarem das

religiões afro-brasileiras para a neopentecostal, algumas pessoas trouxeram consigo traços de

rituais mágicos e divindades daquelas religiões, ainda que transfigurados, e que hoje

caracterizam os rituais e algumas crenças na Igreja Universal (ALMEIDA, 2009, p.123).

Assim, ao compartilhar alguns aspectos específicos da umbanda e do candomblé como

a provocação do transe, a expressão corporal de divindades pelos fiéis, e trazer características

de orixás e guias para compor seu Diabo nessas expressões, a Igreja Universal funde-se com

aquelas que tanto deprecia, num processo sincrético, que lhe atribui uma característica

peculiar, que é a de ser uma religião neopentecostal tipicamente afro-brasileira. Muitos de

seus fiéis supostamente possuídos se autodenominam Exus, tais como Exu do Lodo, Exu da

Morte, Tranca Ruas, Exu Sete Encruzilhadas, Sete Catacumbas, Sete Facadas, Lúcifer, Exu

Marabô, entre outros, comumente encontrados nas cerimônias das religiões afro-brasileiras,

em que não são caracterizados como demônios. São chamados de demônios somente nos

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palcos da IURD. Porém, uma nova denominação de Exu nasceu no seio daquela igreja, e não

é encontrada em nenhuma religião afro-brasileira até então: é o Exu das Almas Preciosas, não

pertencente nem à umbanda e nem ao candomblé especificamente. Esse novo Exu

demonizado traz de outros Exus afro-brasileiros apenas o gesto de ajoelhar-se perante

divindade maior, Ogum, atualizada pela figura do pastor; a sensualidade na voz, em algumas

de suas apresentações e o fato de apenas tentar e afastar da IURD fiéis e obreiros a ela

ligados. Suas apresentações são televisionadas, tendo sido exibidas nos programas “Obreiros

em Foco” e “Duelo dos Deuses” em sua maioria. Durante seus exorcismos, os pastores

sempre reforçam o valor da persistência e da fé na Igreja Universal e em Deus para que os

espectadores e telespectadores, principalmente obreiros, sejam convencidos a permanecer

vinculados à igreja. As imagens televisionadas do Exu das Almas Preciosas servem de

advertência àqueles que pensam em se desligar da IURD, pois se sentem cobiçados por esse

demônio, colecionador de almas valiosas de integrantes da Igreja.

Esse personagem caracteriza o processo de sincretismo religioso que ocorre nos cultos

da Igreja Universal do Reino de Deus, pois leva o nome e traços de uma deidade afro-

brasileira, Exu, mas que existe somente dentro do contexto espetacular e televisivo da IURD.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Ronaldo de. A Igreja Universal e seus demônios: um estudo etnográfico. São Paulo: Terceiro Nome/FAPESP, 2009. CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2012. DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2012. MALANDRINO, Brígida. Carla. Umbanda: mudanças e permanências, uma análise simbólica. São Paulo: PUC/SP, 2006. MARIZ, Cecília Loreto. O demônio e os pentecostais no Brasil in: BIRMAN, Patrícia et al. O mal à brasileira. Rio de Janeiro: UERJ, 1997, p.45-57. KLEIN, Alberto Carlos Augusto. Culto e Mídia, os códigos do espetáculo religioso: um estudo de caso da Igreja Renascer em Cristo. 1999. 140f. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Semiótica). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. ZACHARIAS, José Jorge de Moraes. Ori Axé, a dimensão arquetípica dos orixás. São Paulo: Vetor, 1998.

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Imagens míticas na celebração do Reinado de Nossa Senhora do Rosário

Mythic images in celebrating of Nossa Senhora do Rosário’s reign

Images mythiques dans la célebration du Règne de Nossa Senhora do Rosário

Vânia NORONHA1 PUC Minas, Belo Horizonte, Brasil

Resumo O foco de análise deste estudo são as imagem míticas presentes no Reinado de Nossa Senhora do Rosario, manifestação típica dos negros, popular e importante em Minas Gerais. Sua origem é baseada na narrativa mítica, relativa à Santa e defini o modus vivendi de seus filhos. Para analisar as imagens adotou-se o paradigma da complexidade como base epistemológica e dentro dele, as teorias da antropologia da festa e do imaginário e a psicologia profunda. Estas referências teóricas permitiram analisar o arquétipo da Grande Mãe (Nossa Senhora do Rosário) e sua influência no "congadeiros". Espera-se que os resultados encontrados possam contribuir para o conhecimento sobre as comunidades afro-descendentes, ampliando nossa compreensão sobre a sociedade, a educação e mesmo sobre nós mesmos. Palavras-chaves: mito, arquétipo da Grande-Mãe, Nossa Senhora do Rosário, Congado, festa. Abstract Its focus of analysis this study is Nossa Senhora do Rosário’s reign. This demonstration is typical of Afro-Brazilian people and it is very popular and important. Its origin is based on the mythical narrative concerning the Nossa Senhora do Rosário and represents the conception of the Saint’s devout and define their modus vivendi. The paradigm of complexity was chosen as an epistemological basis and inside it, the theories involving party and imaginary anthropology and profound psychology. These theoretical references allowed to analyze the archetype of Our Great Lady and its influence in the life “the sons of rosary”. Then, the proposed objectives for this study were successful. The found results are expected to contribute to the knowledge about afro-descendant communities, enlarging our comprehension about society and education and even about ourselves. Key-words: myth, archetype of Our Great Lady, Congado, Nossa Senhora do Rosário, celebration. Introdução

Este texto tem como objetivo apresentar o Reinado de Nossa Senhora do Rosário e as

imagens míticas presentes nesta católica, típica dos negros, popular e importante em nosso

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Estado2. O Reinado (também chamado de reisado, Congado ou congadas) é o termo mais

abrangente, que define um ciclo anual de festas em devoção a Nossa Senhora do Rosário e aos

Santos Pretos, principalmente, São Benedito e Santa Efigênia. Envolve a realização de

novenas, levantamento de mastros e bandeiras, procissões, cortejos solenes, coroações de reis

e rainhas, cumprimento de promessas, leilões, cantos, danças, banquetes coletivos. Os festejos

apresentam uma estrutura organizacional complexa, onde é possível identificar aspectos

simbólicos e significantes, concretizados nos corpos de quem vive a manifestação,

representando o legado de nações africanas e seus reinos sagrados em nosso país.

Seus símbolos3, imagens e rituais continuam presentes até os dias de hoje, e cada vez

mais vão sendo escritos na corporeidade dos congadeiros, reproduzidos pela oralidade e pelo

mito4, caracterizando a vida e o modus vivendi de todos envolvidos na manifestação cultural.

Que símbolos são esses? Que imagens se fazem presentes na manifestação? O que elas têm a

nos dizer sobre nós mesmos?

Para responder essas perguntas adotei a teoria da complexidade (Morin), a psicologia

profunda (Jung, Campbell, Bachelard), a antropologia do imaginário (Durand) e a

antropologia da festa (Duvignaud) com seus principais expoentes em diálogo com outros

autores, como referencial teórico deste estudo.

O Congado é uma prática cultural, permeada pelo simbólico, que nasce e transforma,

dinamicamente, qualquer universo instituído (RUIZ, 2003). Entendido desse modo, pode se

dizer que é uma prática simbólica, organizacional e educativa (PAULA CARVALHO, 1990),

no qual os dois pólos da cultura – o patente e o latente - se tensionam, se equilibram e se

relacionam de forma recursiva. Desse modo são produzidos uma cultura5 e um imaginário6 no

2 A temática aqui discutida pode ser ampliada em Alves (2008). 3 A composição etimológica da palavra símbolo na língua alemã define mais claramente o seu duplo caráter: Sinn (sentido) que corresponde às variações das configurações socioculturais (variações das imagens) e Bild (forma), às invariâncias arquetipais (arquétipo) (DURAND, 1988, p. 1). 4 Campbell (1990) discute a atualidade dos mitos, afirmando que neles encontraremos elementos para compreendermos o presente e a nós mesmos. Para ele, os mitos são as pistas para encontrarmos as potencialidades espirituais dentro de cada um de nós e sua concretização se dá pelos símbolos. Os mitos continuam presentes na contemporaneidade, seus motivos básicos são os mesmos e têm sido sempre os mesmos, reforçando suas origens na experiência humana no passado. 5 Cultura aqui entendida como um “circuito metabólico simultaneamente repetitivo e diferencial, entre o pólo das formas estruturantes - o instituído (cultura patente) - no qual manifestam-se códigos, formações discursivas e sistemas de ação, e o pólo do plasma existencial, das coisas do espírito, das vivências, dos espaços, da afetividade e do afetual, enfim do instituinte (cultura latente)” (PORTO, 1999, p. 95, inspirada em Morin).

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trajeto7 que se estabelece, dinamicamente, exigindo, de nossa parte, um esforço para

compreendê-la.

As imagens arquetípicas, presentes no mito de Nossa Senhora do Rosário e em todo o

sistema mítico no Reinado, nos trazem elementos para melhor compreensão da duração, das

mudanças e permanências, do eufemismo na manifestação, que se alocam nos fantasmas, nos

ancestrais do povo negro que vive essa devoção, e que se tornam presença, por meio da

oralidade, característica fundamental do Congado.

Os Filhos do Rosário, homens e mulheres, crianças, jovens e velhos, vivem a sua fé

fundamentada na narrativa mítica de Nossa Senhora do Rosário. Narrativa essa que permite

aos congadeiros celebrarem, neste catolicismo reinventado, os mistérios gloriosos, dolorosos

e gozosos de Jesus Cristo, cumprindo um ciclo festivo durante todo o ano e revivendo in illo

tempore seu mito fundador e suas imagens arquetípicas. Uma das várias versões8 orais sobre o

mito de Nossa Senhora do Rosário conta que:

Lá na história de Nossa Senhora, lá no primórdio de tudo, quando Nossa Senhora apareceu no mar, os negros estavam ali e os brancos tentou tirar e não conseguiram. E aqueles negros humildes pediram a seus senhores: “Ah, pelo amor de Deus, deixa nós pelo menos tentar, porque ela não vem.” Porque o branco foi lá e colocô ela na capela e ela voltou para a água. Aí os negros com aquela coisa e tal. Os branco falô: “Vai, então, sua imundice, vai tentar então, porque vocês não andam com nossas roupas e ela não veio, então com vocês ela vai ir? Faça o que vocês quiserem.” Então uma triagem de sete negros, seis negros e uma negra (essa é a história que eu sei), foram na beira do mar cantar para Nossa Senhora pra ver se ela acompanhava eles. Nunca que eles imaginavam que ela ia acompanhar eles. Eles queriam simplesmente fazer só uma homenagem. Então, eis aí a lenda: o congo bateu, eram só sete negros, não era uma guarda de congo que foi lá bater, eles bateram no ritmo do congo. Os tambor, fizeram os tambor, consagraram do jeito deles, as coisas, do jeito deles e bateram no ritmo de congo e cantaram no ritmo de congo. Cada negro era de uma legião, um negro era cativo de moçambique, um negro era cativo de Congo, tem esses nomes na África. Tinha o negro cativo de Angola, o de não sei daonde, da Costa, cada qual com a sua tradição. Então, o negro do Congo bateu no tambor e falou: Vamos cantá. E cantou na linha dele tum tum tum, tum tum tum e cantou, na

6 O imaginário é, segundo Durand (2002) “o conjunto das imagens e relações de imagens que constitui o capital pensado do homo sapiens – aparece-nos como o grande denominador fundamental, aonde se vêm encontrar todas as criações do pensamento humano” (p. 18). 7 O conceito de trajeto antropológico foi cunhado por Durand (2002) e se refere ao produto da articulação entre o bio-psíquico e o sócio-cultural, o subjetivo e o objetivo, que permite ao homem realizar a sutura epistemológica entre Natureza e Cultura mediada pelo símbolo e, ainda, construir seus aparelhos simbólicos (PAULA CARVALHO, 1990). 8 Ver outras versões do mito em Martins (1997), Gomes e Pereira (2000), Giovannini Junior (2005), Lucas e Luz (2006), além do filme Salve Maria! (2006).

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linha de congo. Ela [a santa] balanceou pra cá, balanceou para lá e veio um pouquinho. Eles emocionaram: Nossa Senhora envém. Aí o outro negro que ´tava com a mão no outro tambor: Vão bater, gente. E bateu no Moçambique. Moçambique era serra abaixo [ritmo do tambor], não existia serra acima, era tum tum tum tum, tum tum tum tum, era uma coisa serena. Moçambique original é serra abaixo. Eles tentaram mais uma vez, ficaram emocionados e bateram e cantaram. Isso faz parte do fundamento, quem sabe o que eles cantaram num fala, isso é segredo de estado, isto é uma coisa trancada debaixo de tantas chaves. E cantaram, no ritmo de Moçambique. Ela veio mais um pouquinho, chegou bem mais na areia. Essa é a lenda, eles ficaram bobo. O último negro, o mais sábio, o mais velho, falou: “Nós vamos bater agora no ritmo do candombe”, que era o ritmo deles original, da África. E bateram tucutucu tucutu tucutu tucutucu, uma mistura do congo, do moçambique e do batuque deles. Então, cada tambor bateu do seu jeito, então, cada qual fazendo a sua própria homenagem. “Ocê, fulano, bate o seu ritmo do congo”, “ocê vai conservar seu ritmo e eu vou no meu ritmo”. O candombe é uma jogada dos 3 ritmos. Cada tambor bateu de um jeito, quando eles fizeram isso, então, ela veio. Ela veio homenagear as três raças, os três ritmos. Só quando eles conscientizaram disso, que não foi mais pra um, mais pro outro, não, os três ritmos. O congo é isso, ele vai abrir o caminho, o moçambique vai trazer a coroa. O pouquinho de congo que eu entendo é isso, ele vai pra abrir os caminhos igual ele fez com Nossa Senhora, ele bateu, ela veio um mocadinho, por isso que o moçambique bate e a coroa vem. (Capitão Daniel, 2006).

Cada grupo, guarda ou terno de congado se apropria da narrativa mítica, a partir dos

elementos aos quais seus próprios componentes atribuem aos significantes. Hollis (1997)

afirma que:

Todo mito é a dramatização daquelas energias invisíveis que fluem através do universo e por algum tempo habitam em nós. Enquanto grupo, contam a história humana completa e todo o drama cósmico. Cada um expressa um fragmento do conjunto, uma parte de um capítulo. Cada um de nós vive um verso ou outro, movendo-nos de acordo com ritmos mais profundos que os que a consciência consegue atingir. Sejamos gratos por essas imagens da mesma maneira que por sonhos, esses dinamismos nos dizem, em forma visível, o que o invisível esta operando, tanto na história como dentro de nós (p. 177). (Grifos meus)

Passo então a discutir algumas imagens míticas presentes na constelação de imagens

do Reinado de Nossa Senhora do rosário.

Imagens míticas no Mito da Grande-Mãe A Grande-Mãe é a principal característica do arcabouço mítico africano, no qual estão

presentes valores matriarcais (noturnos) fundantes de toda a manifestação do Congado. Diz

Neumann (2003) que o aparecimento do arquétipo da Grande-Mãe, bem como seus efeitos,

podem ser observados, ao longo de toda a história da humanidade, tanto nos rituais, nos

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mitos, nos símbolos, como nos sonhos, nas fantasias e nas realizações criativas dos sujeitos.

Um traço fundamental desse arquétipo consiste no fato de que ele reúne atributos positivos e

negativos e, ao mesmo tempo, grupos de atributos, numa coincidentia oppositorum (união de

opostos). Essa ambivalência é a característica da situação original do inconsciente.

O significado central da vivência da Grande-Mãe é o ciclo do sacrifício. O arquétipo

da Grande Mãe representa, em geral, além da questão psicanalítica, a sobrevivência da

religião e dos valores matriarcais, durante a cultura patriarcal guerreira dos povos invasores,

ligados às atividades agrícolas dos povos primitivos. Esse vestígio da antiga consciência

matriarcal da Deusa-Mãe, também, sobreviveu na devoção católica popular da Virgem Maria,

entre os povos do Mediterrâneo e, depois, no catolicismo, em geral. No antigo simbolismo de

ciclo agrário e, por essas características maternais, ela corporifica o útero da terra, onde a

semente é plantada a cada ano e vinga em abundância de alimentos. Daí, o sentido de

sacrifício e de morte, com um significado de renascimento.

A deusa corporifica o ciclo de vida-morte, alimentado por sacrifícios, pois todas as

formas de vida se alimentam de outras vidas e, do mesmo modo, se tornam alimento para

outras (HOLLIS, 1997, p. 82). Assim, percebe-se o lado positivo da Grande-Mãe: aquela que

fornece alimento e prazer, protege, aquece, conforta e perdoa. É o refúgio de todo sofrimento,

alvo de todo desejo, em que a mãe é sempre a realizadora, doadora e auxiliadora. Por outro

lado, a Grande-Mãe não é só boa, ela possui um lado negativo que retém, prende, aprisiona,

sufoca, rejeita e até mata (NEUMANN, 1998).

A constelação de imagens, os símbolos, e os esquemas presentes no arquétipo da

Grande-Mãe, compõem o regime noturno apresentado por Durand (2002). Reportando à

classificação isotópica das imagens do regime noturno, por ele proposta, verificaremos que

alguns conjuntos simbólicos da inversão e da intimidade, que organizam as estruturas místicas

do imaginário; e ainda, os cíclicos e rítmicos, que por sua vez, organizam as estruturas

sintéticas; são identificados no mito de Nossa Senhora do Rosário.

Como vimos no mito, as águas e o simbolismo aquático estão presentes nesta

constelação de imagens. Nossa Senhora do Rosário é Yemanjá, Manganá (em língua banto), a

Rainha do mar, a Rainha das águas. É a Grande-Mãe, que vem nas águas para salvar o povo

negro, e esse fato define tudo o mais para o congadeiro. Este, por sua vez, é o marujo, o

homem do mar, que ao retirar a Santa, exercita as mesmas atribuições de um marinheiro. É o

filho que também cuida e zela pela Grande-Mãe.

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Nossa Senhora vem na barca (o andor). Este é um dos símbolos mais ricos da

imaginação, é a “morada sobre a água” (DURAND, 2002, p. 249). Nesta constelação

isomórfica do continente, a barca se articula com a gruta, caverna, casa, dentre outros

símbolos. A tecnologia serve apenas para diferenciar os continentes fixos (cisternas, lagos,

cubas, etc) dos móveis (cestos, barcos de todas as espécies, etc). Na noção de continente

fundem-se as três atividades: transporte, transbordamento e coleção.

De forma, sugestivamente, lunar, a barca será o primeiro meio de transporte. Em

diferentes mitologias, é a arca que serve de transporte para a alma dos mortos, o que faz

Bachelard (2002) perguntar-se se a morte não foi, arquetipicamente, o primeiro navegador.

O barco (o navio) pode ser símbolo de partida, mas traz, ainda, a idéia de fechamento.

Como símbolo de intimidade, o navio agrupa as pessoas, mas tem um limite, encerra. Torna-

se, além de meio de transporte, um habitat. Durand (2002) afirma que se o navio se

transforma em casa, a barca9 torna-se, mais, humildemente, berço, e mesmo que seja

mortuária, participa, na sua essência, no grande tema do embalar materno. O barco de Nossa

Senhora traz, portanto, a salvação para o povo negro.

Nas imagens de Nossa Senhora do Rosário encontraremos duas variações: em uma ela

se encontra assentada sobre o Santana (tambor de candombe), ladeada por dois santos, São

Domingos e Santa Rosa (existe uma controvérsia, pois ela pode ser Santa Catarina, Santa

Cecília ou ainda, Santa Clara), ambos segurando o rosário; em outra ela permanece em pé. As

duas estão com o menino no colo e o rosário (terço) nas mãos.

No andor/barca, a imagem de Nossa Senhora é conduzida à capela, construída pelos

negros, de onde não sai mais. Na constelação de imagens do continente, a capela é a gruta, a

caverna, a morada e, nos remete ao sepulcro materno.

Os símbolos da intimidade, pelo complexo do regresso à mãe, vêm inverter e

sobredeterminar a valorização da própria morte e do sepulcro (DURAND, 2002). O sepulcro

deixa de ser sepultura e passa a ser berço mágico, o lugar do último repouso, o retorno à mãe,

o sono no seio materno. Durand (2002) afirma que o sepulcro e o ventre materno equivalem

9 A barca é, muitas vezes, substituída pelo automóvel ou mesmo pelo avião (talvez por isso cause tanto fascínio ao homem). O automóvel é um microcosmo, como a morada ele anima-se, animaliza-se, antropomorfiza-se e, sobretudo, feminiza-se. Veículos pesados dos caminhoneiros e barcos de pesca possuem nomes de mulheres. O Santo protetor dos motoristas é São Cristóvão, símbolo ao quadrado da intimidade na viagem. Ele carrega um saco, um continente gulliverizado. O saco do passador gigante é a nave reduzida a pequenas dimensões. Nessa minimização o processo de gulliverização, da nave ao saco, nos leva a passagem do macrocosmo ao microcosmo. Navios de grandes dimensões se transformam nos pequenos continentes como a casca, a concha, a semente, o botão floral, o cálice vegetal, o cofre, a taça, o ovo, o vaso, o Santo Graal. (DURAND, 2002, p. 252).

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ao que Jung denominou “do oco à taça”. A concavidade é o órgão feminino e encontra-se no

conjunto caverna-casa, habitat e continente, abrigo e sótão, ligados ao sepulcro materno, que

podem ser a caverna medonha ou a gruta maravilhosa.

A gruta, a caverna, a capela. O caráter Feminino se faz presente. A capela consagrada

à Virgem Mãe se torna sua morada. O simbolismo da casa10 concentra um duplo: do

microcósmico do corpo material (psicossocial) e do corpo mental (psicológico). A casa

também é um vivente, ela redobra, a partir da personalidade de quem a habita. Possui cheiros,

cores e sons, que constituem a cenestesia da intimidade. É, portanto, a imagem da intimidade

repousante, do aconchego, do espaço feliz, do centro paradisíaco. Desse modo, torna-se

isomórfica do nicho, da concha, do colo materno. É por isso que às vezes, sentimos

necessidade de uma casa menor dentro da casa grande, um cantinho onde possamos

“reencontrar as seguranças primeiras da vida sem problemas” ((DURAND apud BÉGUIN,

2002, p. 244). Os oratórios cumprem esse papel de redobramento.

No mito de Nossa Senhora do Rosário e no arquétipo da Grande-Mãe, encontramos

também os símbolos cíclicos e rítmicos que constituem a estrutura sintética do imaginário. No

primeiro grupo, as imagens se ligam ao ciclo, ao retorno e às divisões circulares do tempo. No

segundo, o pau, como uma redução da árvore com rebentos, o cetro, os arquétipos e símbolos

messiânicos.

As imagens que se ligam ao ciclo, ao feminino, a Grande-Mãe, podem ser encontradas

no tambor e no rosário. A cultura da África noturna é marcada pelo tambor, ngoma

(ingoma)11 em língua banto. Em todas as festas da cultura negra, tudo é rítmico. O tambor é

um instrumento primal, arquetipal, é a pulsação da vida; suas batidas fluem no ritmo do

coração - sístole e a diástole, contração e descontração. É a ligação entre a terra, a Grande

Mãe, e isso é, absolutamente, sintético, equilibrado, noturno. Os tambores e caixas tocados no

Reinado de Nossa Senhora do Rosário são instrumentos sagrados que, segundo Lucas (2002,

p. 235), “emitem suas ‘vozes’, construindo ‘palavras’ que ‘chamam’, ‘respondem’, ‘falam’ e

‘cantam’ a fé e a história dos filhos do Rosário”. São como “se fossem a extensão humana dos

devotos” (PEREIRA, 2005, p. 354).

Durand (2002) já discutia o parentesco entre a música, a melodia e as constelações do

regime noturno, no intuito de possibilitar a relação da humanidade com o tempo que passa e a

10 Ver Eliade, 2001. 11 A expressão pode designar ainda o grupo dos dançantes do Congado, ser referência ou chamado dos componentes, herança recebida dos antepassados (LUCAS, 2002).

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angústia da morte. Para o autor, a música também se constitui como possibilidade de o

homem dominar o tempo, exatamente porque ela traz a intemporalidade, o domínio dos

ritmos, da altura do som e dos diferentes timbres, tanto masculinos, como femininos.

A música é uma metaerótica, um cruzamento ordenado (dos sons, timbres, vozes,

ritmos, tonalidades) sobre a trama contínua do tempo. É isso que faz Durand (2002) concluir

que a estrutura musical possui implicações sexuais, por isso, ela se apresenta como uma

estrutura sintética de harmonização dos contrários, sendo que o tambor é a própria síntese

criadora, a união dos contrários. O tambor liga-se à fecundidade, à criação, ao peixe, como

nos mostra o autor ao tratar os rituais dos dogon, povo negro de Mali. Também Shiva-

Natarâja, o “Senhor da dança”, traz em uma de suas mãos um tambor que ritma a

manifestação do universo.

O rosário, assim como o tambor, é uma figura numinosa cíclica e equilibrada. Faz a

síntese, união e harmonização dos contrários e nos remete ao enrodilhar da serpente, um dos

mais importantes símbolos da imaginação humana, ligado à transformação temporal, à

fecundidade e à perenidade ancestral (DURAND, 2002).

O rosário ou o terço é o objeto usado para contar as orações, formado por contas

grandes e pequenas. Após cada dezena de contas pequenas, há uma grande, e assim, cinco

dezenas. O fio no qual ficam as contas dá uma volta, ficando a quinta junto à primeira dezena,

início e fim, circularidade. Antes da contemplação dos mistérios, há uma parte inicial,

constituída por duas contas grandes, três pequenas e uma cruz. Interessante pensar que o

próprio formato do rosário é o símbolo universal, arbitrariamente definido, para o Feminino.

Encontraremos sobre a cruz do símbolo a outra metade, desta circularidade, ou seja, o Filho.

É por meio do rosário que a Virgem recebe o nome de Nossa Senhora do Rosário e,

pelo mesmo motivo, é o instrumento que ela tem em suas mãos. A Grande Mãe, mais do que

carregar o filho, promove a ligação entre o regime diurno e o regime noturno.

Essa circularidade que gravita, em torno do domínio do próprio tempo, marcando o

rítmico e cíclico, presentes tanto no tambor, como no rosário, nos remete à lua. É ela o

arquétipo da mensuração, a primeira medida do tempo. Diz Neumann (2003) que esse é mais

um dos arquétipos da Grande Deusa, o que a torna senhora do tempo, aquela que governa o

crescimento. É ela e não o sol, o “legitimo cronômetro do alvorecer dos tempos” (p. 199),

pois a sua contagem não se inicia à meia-noite.

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O ano, derivado das palavras annus, annulus, se torna uma figura, também, circular.

Não é sem sentido os rituais de início de um novo ano, pois eles simbolizam o recomeço do

tempo, Isso ocorre no Congado. Suas festas são marcadas, de acordo com o calendário

litúrgico católico, que por sua vez, segue o gregoriano e sua divisão duodecimal, com

referências lunares. Assim, obedecendo ao calendário litúrgico, eles definem a abertura e o

encerramento do Reinado e suas pausas.

Imagens míticas nas práticas iniciáticas, sacrificiais e orgiásticas dos Filhos do Rosário

Neste grupo de imagens relacionadas aos Filhos do Rosário identificamos o pau. É

certo que a Grande-Mãe Nossa Senhora do Rosário possui muitos filhos e filhas, ama a todos,

sem exceção. Estes por sua vez, são diferentes uns dos outros e, por isso mesmo, ocupam

espaços diferenciados e realizam tarefas também diferenciadas, sempre com dedicação e

empenho. São eles os atores que constituem o Trono Coroado, o séquito, que é composto pelo

Rei e Rainha Congo, os Reis Perpétuos, os Reis de Santo - Nossa Senhora Aparecida, Santa

Efigênia, São Benedito, São Jorge, São Cosme e São Damião, Nossa Senhora das Mercês,

dentre outros (ainda a Princesa Isabel) - e os Reis Festeiros, sempre acompanhados dos

guarda-coroas e fiscais. São, ainda, os caixeiros que tocam seus tambores, caixas, patangomes

e gungas, orientados pelo Capitão Regente; e os dançantes (também brincantes, vassalos) que

compõem o coro de vozes, realizam as coreografias e obedecem às hierarquias. Independente

da função que se exerça na Guarda, os atores-devotos “se encarregam de desempenhar a

contento o seu papel” (PEREIRA e GOMES, 2002, p. 70). É a experiência da fé vivida,

corporalmente, por inteiro, na prática mítica e religiosa.

Todos os rituais do Congado são constituídos como “configurações teatrais que dizem

à comunidade aquilo que ela foi, é, e poderá ser, mediante um conjunto de atitudes, que

devem ser analisadas pelos devotos” (PEREIRA e GOMES, 2002, p. 63). Tudo é vivido com

muita concentração, exigindo a cumplicidade entre todos.

Essa teatralização expressa a estética da festa e de seus rituais, espetacularizando a

manifestação. Como nos diz Duvignaud (1983, p. 88) “o mito expresso em gestos é ainda

mais rico que o mito narrado, não só porque ele aparenta um ‘como se’ da existência e nos

engaja na vida imaginária, mas, sobretudo, porque extrai o mito da linguagem e o substitui na

rede de uma comunicação”, que se dá, inevitavelmente, por meio do corpo, numa narrativa

mitopoiética.

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Na constituição do imaginário, Durand (2002) adota o método de convergência para

mostrar as vastas constelações de imagens que se constituem pelos símbolos. As matrizes

originárias, nas quais vão se constituir os grandes conjuntos simbólicos, são definidas por

Durand (2002), a partir de três grandes séries de gestos corporais dominantes: a postural, a de

nutrição e a copulativa. Apesar de esse esquema contar com três estruturas, Durand (2002)

classifica-as em dois regimes, um diurno e um noturno. O regime diurno é estruturado com

base na dominante postural e se identifica com a tecnologia das armas, a sociologia do

soberano mago e guerreiro, os rituais de elevação e da purificação. As armas, as flechas e os

gládios seriam símbolos freqüentes.

É na constelação de imagens do regime diurno apresentada por Durand que

identifiquei como símbolo do mito dramático e cíclico do Filho, no Reinado, o pau, trazendo

o modelo da metamorfose que é a árvore. O capitão José Bonifácio da Luz sintetiza a

estrutura dos grupos de Congado na imagem da árvore: “O Candombe representa as raízes, os

ancestrais; o Moçambique é o tronco e o Congo, está espalhado pelos galhos, movendo para

onde o vento levar” (LUCAS e LUZ, 2006, p. 34).

A árvore é um arquétipo cíclico, que se inicia com a semente, passando pela flor, o

fruto, até a queda de folhas e o lançar de novas sementes, num devir dramático. No entanto, a

sua verticalidade marca uma passagem do cíclico para um arquétipo progressista e

messiânico, porque orienta, de maneira irreversível, esse devir, humanizando-o de algum

modo, ao aproximá-lo da posição bípede, significativa da espécie humana.

Diz Durand que o simbolismo da árvore-coluna estrutura a totalização cósmica. Pela

sua verticalidade, se humaniza (coluna, estátua, figura humana esculpida na pedra, ou na

madeira) e se torna símbolo do microcosmo vertical que é o próprio homem.

A árvore é o arquétipo, por excelência, dos Filhos do rosário. As palavras do Capitão

Toinzinho sintetizam bem essa imagem. Diz ele: “O Deus do negro é o toco”. Este é o

fundamento do Reinado de Nossa Senhora do Rosário. Os mastros, segundo o Capitão Daniel,

“são os pára-raios da festa, é ali que encontra a energia vital da festa. Significa que você

colocou o seu Santo acima da terra, debaixo do céu e em cima de nós”. Desse modo, podemos

concordar com Durand, quando este afirma que o simbolismo da árvore reconduz o ciclo à

transcendência.

Encontrei no Reinado, além desses, outros símbolos do arquétipo da árvore como o

bastão (cetro, gládio), a cruz, o cruzeiro, as bandeiras. Esse arquétipo e suas manifestações se

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fazem presente em toda a discussão pertinente ao Filho, em suas práticas iniciáticas,

sacrificiais e orgiásticas. Estas práticas (cerimônias) são isomórficas do mito dramático e

cíclico do Filho, que se concretizam na festa - também ela (a festa) masculina, hermesiana e

dionisíaca. É, portanto, o Filho, a festa. É ele quem reatualiza o mito, anualmente, numa

linguagem rítmica e ritualística.

As cerimônias iniciáticas no mito da fé do Congado são, como nos diz Durand (2002),

“liturgias, repetições do drama temporal e sagrado, do tempo dominado pelo ritmo da

repetição” (p. 306). Elas constituem as seivas que correm nas árvores, garantindo a vida, o

alimento que nutre os Filhos do rosário. Em nossa pesquisa, percebemos que a maioria dos

congadeiros procede de família que vive a tradição, passando de geração em geração o gosto e

o interesse pelo Reinado. A tradição é a continuação daquilo que é essencial e persiste; é a

figura da árvore ramosa, da evolução progressista, simbolizada pela árvore genealógica, de

que nos diz Durand (2002).

A cerimônia ritualística da coroação dos reis e rainhas é uma prática iniciática sagrada.

Todas as pessoas que compõem o séqüito são obrigados a passar por ela. Os cantos

especificam cada momento, desde o ajoelhar-se perante o altar, receber a coroa, a capa e o

bastão, até o erguer-se e apresentar-se para a comunidade como um novo Rei ou Rainha. Os

rituais são conduzidos pelos Capitães e a coroação é feita pelos Reis Congos ou Imperadores.

Normalmente são realizadas em dias diferentes da festa principal e se tornam um grande

momento festivo, quando, também, se oferecem comida e bebida.

O capitão é o líder do grupo, ele deve conhecer os mistérios, os ensinamentos e as

responsabilidades do Congado. Para o Capitão Rodrigo (2005) “ser capitão é um

privilégio que poucos têm, pois também de muita responsabilidade, de muita fé. Porque na

vida ninguém navega sem um capitão” .

Cabe aos mais velhos observar aqueles que vão se destacando e mostrando

interesse. Esses são os eleitos para se tornarem um capitão. Mas para isso, precisam

cumprir um longo ciclo de aprendizagem e preparação, de modo que se apropriem dos

conhecimentos e saberes da tradição.

A iniciação para Eliade (2006) comporta uma tripla revelação: a do sagrado, a da

morte e a da sexualidade. É nesse momento que o mito será comunicado ao neófito. Raros

são os que atingem o topo da hierarquia, tornando-se um capitão-regente ou capitão-mor.

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Diz Durand (2002) que “a iniciação é mais do que um batismo: é um comprometimento. É

transmutação de um destino” (p. 306).

O símbolo do capitão é o bastão ou a espada, “sua alma”, segundo o Capitão Amaro. É

o anima (o feminino) do Filho (animus, o masculino). Símbolo da natureza, da força da

natureza e da magia. É o pau, o caduceu, o cajado, a haste verticalizante, o emblema de

Hermes, que conduz o congadeiro no trajeto entre o mundo concreto (o cotidiano, a festa)

para o mundo divino, ou seja, a transcendência. O bastão tem mana, é sagrado, um pedaço de

madeira, natureza, imanência, “fuerza latente, inmersa em la materia e inseparable de ella”

(DUVIGNAUD, 2002, p. 77) com poderes. É o que faz o Capitão Toinzinho afirmar que

“aquele bastão, pra gente, ele é vivo”. O bastão, assim como toda a estrutura do Reinado, é

dividido em fundamento, mandamento e sacramento. Saber um fundamento é ter acesso a um

segredo, é se tornar um iniciado. Desse modo, o próprio capitão se torna um dotado de mana.

A morte é o que permite aos Filhos do rosário, cumprirem seu ciclo, nascimento-morte-

renascimento. Com a morte eles passam a ser reverenciados pelos componentes do grupo e

isso se dá, a partir do símbolo da cruz. Segundo Neumann (2003), a árvore é símbolo da vida

e também da morte. Na morte, seu tronco se transforma em vaso que passa a conter o cadáver

e, em seguida, é depositado na terra. Ressalta-se o caráter terra-útero, que toma o corpo de

volta para si, em união com o caráter receptor da madeira acolhedora. Essa substância

maternal da árvore da morte é simbolizada pela força, a estaca e também a cruz.

Em todas as Guardas, encontramos também como fundamento do Reinado, o cruzeiro.

É no pé do cruzeiro que os capitães firmam os seus segredos, conversam com os ancestrais.

Na constelação de imagens, proposta por Durand (2002) a cruz é um simbolismo vegetal e

identifica-se com a árvore, em seus arquétipos ascensionais. É, portanto, madeira erguida,

árvore artificial, símbolo de totalização espacial. É, também, uma união dos contrários e,

desse modo, se liga ao fogo, à sexualidade, ao movimento rítmico e cíclico.

A festa é o “sacrifício inútil” de que nos fala Duvignaud (1997). No Congado, o que

importa é a Virgem: é a ela que se dá o pouco que se tem. Para isso, vivem os congadeiros:

para dar a ela “una parte de su sustancia” (DUVIGNAUD, 1997, p. 136). Mauss (1974)

afirma que isso seria um ato de comércio, entretanto, Duvignaud (1997) contrapõe, dizendo

que fomos nós que inventamos o sacrifício como uma transação, como uma economia de

mercado com a divindade. Na festa não se tem a idéia de retorno. O sacrifício, na festa, “é o

nada” que se destrói, “a coisa é a coisa e pronto”, é o que livra o homem da estrutura, da

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história, colocando-o diante de sua imanência, da natureza e do simbólico. O Capitão Amaro

confirma que a festa é o dom do nada “muita gente não acredita, às vezes, acha até que não

faz nada, que a pessoa ‘tá gastando à toa, mas é uma coisa que a gente faz com tanta fé”

(2006).

Às práticas de iniciação e do sacrifício ligam-se as práticas orgiásticas, que são as

festas propriamente ditas, sob a regência de Dionísio, o consorte da Deusa. As festas e seus

rituais são projeções lúdicas de todo um drama arquetípico, são atualizações mitológicas de

um ciclo. Elas se constituem, ao mesmo tempo, num momento de negação de normas

instituídas e de “alegre promessa vindoura da ordem ressuscitada” (DURAND, 2002, p. 312).

Daí, sua função de nos colocar diante da angústia do tempo que passa e também da morte,

destacando o seu caráter revigorante, pois, como nos diz Durand (p. 405) “o ritual tem o único

papel de domesticar o tempo e a morte e de assegurar no tempo, aos indivíduos e à sociedade,

a perenidade e a esperança”.

Durand comunga com as idéias clássicas de Callois (1988) que também destaca esta

função da festa no imaginário. Para Callois, é a festa que nos coloca diante essa noção da

finitude, do tempo que esgota, extenua, nos faz envelhecer e desgasta. Ela renova a natureza e

a sociedade ao apresentar-se como uma atualização dos primeiros tempos do universo, como a

recriação do mundo, daí sua função revigorante. A festa é celebrada no espaço-tempo do mito

e assim regenera o mundo real. É justamente ao renascer que o mundo tem a possibilidade de

remoçar e de reencontrar a plenitude de vida e de robustez que lhe permitirá enfrentar o tempo

durante um novo ciclo. É o caos reencontrado e de novo moldado simbolicamente. As festas

reforçam a existência no homem de uma dimensão demens.

De um modo geral, as festas em louvor a Nossa Senhora do Rosário e aos santos pretos

seguem uma mesma estrutura ritualística: preparação, novenas e organização do espaço,

subida da bandeira de aviso, levantamento de mastros, alvorada, “tirada dos reis”, almoço,

procissão, missa conga, danças de combate, descida de mastros, podendo ter variações, de

acordo com a tradição dos grupos (GIOVANNINI JUNIOR, 2005).

A principal preparação para a festa é a novena, (ou trezena) que se inicia dois dias

antes do levantamento da bandeira de aviso. É realizada em agradecimento a Deus por estar

dando oportunidade à Guarda de realizar a festa. A reza do terço, ou do rosário, acontece nas

sedes ou nas casas dos capitães. Em muitas Guardas, na abertura ou no encerramento das

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novenas, ainda é possível assistir à saída do boi da manta, que percorre as ruas dos bairros, as

cidades, anunciando a chegada da festa, de forma lúdica.

A festa é o ponto auge do Reinado de Nossa Senhora do Rosário. Ela inicia com o

levantamento da bandeira de aviso, uma semana antes do dia marcado pela Guarda. No local

da festa, as bandeiras são colocadas no topo do mastro e são erguidas. O mastro é o poste

sagrado, é o Axis mundi que liga a Terra e o céu e o toca, de algum modo (ELIADE, 1992).

Os mastros são levantados antes das festas de cortejo, com antecedência ou na véspera. O

levantamento dos mastros com as bandeiras é sempre marcado por momentos de muita

emoção, concentração e tensão. Ele “caracteriza o centro energético da festa” (GOMES e

PEREIRA, 2000, p. 218). Sua ascensão é anunciada com fogos de artifício.

Os mastros de madeira são o princípio do masculino da árvore, que é feminino. Como

o falo da terra tem o caráter de penetração e crescimento, destacando o aspecto ascencional do

círculo, seu caráter de transformação é, ainda, a ambivalência da árvore (NEWMANN, 1998,

p. 54). É a imagem da árvore, firmemente plantada na terra, no fundamento, que nutre o

congadeiro de sua fé e se eleva no ar, para que os filhos do rosário possam nela se abrigar, se

proteger sob sua sombra, saciar sua fome e sede.

A alvorada faz parte da tradição e é seguida por quase todas as Guardas. É uma chuva

de fogos de artifícios, cantos e danças, realizados na madrugada de domingo, por volta das

cinco horas da manhã, anunciando que vai ter festa ao longo de todo o dia. É também o

momento mágico de “fechar as encruzilhadas”, limpando e protegendo as Guardas de todo o

mal que possa atrapalhar o festejo, garantindo os bons fluídos.

As performances executadas, pelas Guardas, durante os festejos, nas encruzilhadas,

são sempre em forma de meia-lua e elas podem ser: para receber e cumprimentar o trono

coroado, em sinal de respeito, neste caso, os congadeiros se dirigem um a um, ou em duplas

até os reis e fazem reverências; podem abrir em fileiras pelas laterais e para fora, como se

desenhassem um coração, recebendo todos os visitantes; ao contrário, as fileiras podem se

cruzar por dentro e pelo centro, fechando na frente das bandeiras, para proteção, quase sempre

quando encontram com uma Guarda que provoca demandas; e, por fim, os dançantes podem

passar por trás do trono coroado, como se tivessem trazendo todos para dentro do Reinado.

Percebe-se que o próprio corpo do congadeiro é um texto e exprime uma linguagem. É

também ele, continente e conteúdo (MARTINS, 2000), lugar e veículo da memória e do

esquecimento. Seu corpo em performance “é o lugar do que curvilineamente ainda e já é, do

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que pôde e pode vir a ser, por sê-lo na simultaneidade da presença e da pertença (p. 83).

Assim é que todo momento ritual é permeado de cantos e danças específicos para aquele fim.

A música (palavra cantada) e a dança são as essências dessa experiência religiosa (LUCAS,

2002).

Em suas performances, o Congo vai à frente, em fileira e dança com o corpo aberto, às

vezes saltitante. O Moçambique, com a responsabilidade de “puxar a coroa”, anda devagar,

os componentes dançam bem próximos uns dos outros, formam um único grupo, numa dança

que traduz a força da terra expressa pelos tambores e gungas.

No início da manhã, a Guarda anfitriã prepara o cortejo para a “tirada dos reis e

rainhas”. “Tira-se” o trono coroado primeiro, um a um, e, por fim, os festeiros, promotores da

festa. Caminha-se sempre devagar, conduzindo as coroas até os altares. No altar, o trono

coroado recebe as Guardas visitantes. Cada uma, por sua vez, desloca-se até os reis, canta e

dança para eles e para Nossa Senhora. Após a prestação das homenagens, as Guardas se

dirigem às cozinhas, nas sedes para o almoço.

Um momento esperado por todos é a procissão. A Guarda anfitriã e os grupos

convidados se organizam. Os andores preparados com muita dedicação e criatividade, pelos

próprios devotos, são carregados por pessoas da comunidade. Algumas Guardas realizam a

missa conga, ou missa crioula, após a procissão, outras preferem fazê-la no dia seguinte. É

uma apropriação do ritual católico, mas aqui também o negro reinventou a tradição,

incorporando novos elementos na encenação ritualística que seguem os rituais de uma liturgia

comum, acrescida dos cantos e das danças dos corpos, ao som das caixas, gungas e

patangomes. No momento da celebração da missa conga, os Filhos do rosário cantam o

lamento do negro, relembrando o que seus antepassados viviam no tempo do cativeiro. É um

momento emocionante, quando os tambores se calam, o Capitão “puxa o lamento” e os

“vassalos” respondem apenas o coro.

Após os três dias de festejos, cantando e dançando, subindo e descendo as ladeiras das

cidades, debaixo de chuva e sol, carregando os instrumentos pesados, é hora de encerrar.

Algumas Guardas ainda encontram energia para realizar as danças do “tempo dos escravos”.

Hora de fazer “bizarria”, momento em que os Capitães descontraem e brincam com os outros.

Pois, a festa é sempre muito tensa e tudo é levado muito a sério...

Conclusão

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Para este breve texto destaco que o Reinado de Nossa Senhora do Rosário se constitui

enquanto um universo simbólico complexo que por meio de suas práticas simbólicas (sociais,

portanto, educativas) transborda de transdutores híbridos12, ou seja, de elementos que se

manifestam nos pólos patente e latente, onde estes são fermentados. É neste trajeto,

transitando de um pólo a outro - porque nem o latente, nem o patente têm a primazia; ambos

são constituintes do imaginário – que exprimem os modos de sentir (latente-afetual), pensar

(patente - racional) e, portanto, de conduzir à ação, dos devotos de Nossa Senhora do Rosário,

organizados em seus grupos sociais em nosso País, principalmente em nossa cidade. Trocando

em miúdos, são os mitos, os ritos, as ideologias, os valores, os modos de ação dos Filhos do

Rosário, os irmãos congadeiros.

Num pólo, Nossa Senhora do Rosário é o imaginário, o mito. Ela é a natureza, a

origem, a gestação. A Grande-Mãe que gera o filho e o protege. É o significante, o que abre.

Pelo mito, ela sai das águas (natureza) e vem se encontrar com o Filho. No outro pólo, é

Filho, que ao realizar a festa não a esquece, e desse modo, reatualiza o mito. A Santa visita o

Filho e retorna aos céus, ascende, é a cultura, a religião. Isto é o transdutor híbrido: vem

natureza (Grande-Mãe) e volta cultura (Santa).

A festa é a culminância desta religiosidade, expressa pelo congadeiro e é a vivência da

alternância da natureza para a cultura, do sapiens para o demens, do sagrado para o profano,

da vida para a morte. De acordo com os princípios presentes na complexidade ela, de forma

recursiva, dialógica e hologramática, está aberta ao campo do possível e do imaginário, de

modo que, nela, o Reinado se constitui, vive, resiste, persiste e sobrevive. É a festa que me

instiga a dizer:

SALVE MARIA!!!

REFERÊNCIAS ALVES, Vânia Fátima Noronha. Os festejos do Reinado de Nossa Senhora do Rosário em Belo Horizonte/MG: práticas simbólicas e educativas. Faculdade de Educação USP. São Paulo: FEUSP, 2008. (Tese de doutorado) BACHELARD, Gaston. A Água e os Sonhos. Ensaio sobre a imaginação da matéria. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

12 Os transdutores híbridos são para Paula Carvalho (1990) o trajeto entre os dois pólos (latente e patente), onde estes podem captar, de forma potenciada e, como mediador simbólico, uma cultura emergente. Como têm uma sólida raiz no latente, emergem sem que tenhamos controle sobre eles, por isso não podem ser enfrentados apenas racionalmente.

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A arte da fé: os ex-votos no imaginário religioso de Trindade-Goiás

The faith's art: Ex votos at Trindade (Goiás) religious imaginary

L'art de la foi : Les ex-votos dans l’imaginaire religieux de Trindade – Goiás

Givaldo Ferreira CORCINIO Jr.1

ABC (Agência Brasil Central), Goiânia, Brasil

Resumo As religiões das diversas épocas da história lançaram mão de símbolos para reforçar seu papel de conexão privilegiada entre o divino e os homens. Os ex-votos presentes nas “salas dos milagres” nos santuários católicos registram aspectos da fé popular, constituindo um reflexo dessa elaboração mais pessoal das relações entre o divino e o humano. Embebido nessa relação e mergulhado no caldeirão de referencias que se faz presente no cotidiano coletivo, as imagens contidas nos ex-votos pictóricos presentes no “espaço sagrado” de Trindade-Goiás (centro dos festejos ao Divino Pai Eterno) possibilita-nos lançar um olhar sobre o imaginário religioso, abrindo espaço para questionar-nos se tal imaginário sustenta aquilo que denominamos de fé goiana. Palavras-chave: imaginário; imagens votivas; religiosidade; Trindade – GO, ex-votos.

Abstract The religions, at all history epoch use symbols to reinforce their position of privileged connection between divines and men. The ex votos existing at catholics sanctuaries “miracles rooms” registries aspects of the popular faith, building a reflection they personal elaboration of this relationship. Immersed in this referential universe, existing in the collective quotidian life, the images at votives paints existing at Trindade (Goiás) “sacred space” possibilities to us looking for a religious imaginary, enabling make a question to ourself if this imaginary give existence to a thing called by us “fé goiana”. Key words: imaginary; votives images; religiosity; Trindade – GO; ex-votos.

1. Uma aproximação

Esse artigo é fruto da aproximação, enquanto objeto de estudo, dos ex-votos

localizados no Santuário do Divino Pai Eterno, situado em Trindade, Goiás. Iniciamos nossa

reflexão compreendendo que tais objetos presentes nas chamada “sala dos milagres” do dito

1 Licenciado e Bacharel em História e Mestre em Comunicação. Participa do GEIPaT – Grupo de Estudos de Imaginário, Paisagem e Transculturalidade/ UFG. Email [email protected]

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29-31 octobre 2015 - Porto Alegre, Brésil

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santuário estão embebidos da força atribuída a relação existente entre sentido e signo e que,

mergulhado no caldeirão de referências que compõem o cotidiano coletivo, possibilita-nos

lançar um olhar sobre o conteúdo do imaginário religioso popular dos indivíduos da região

central do Brasil, abrindo espaço para questionar-nos se tal imaginário sustenta aquilo que

denominamos de fé goiana.

A cidade de Trindade, distante 18 quilômetros da capital do estado de Goiás, Goiânia,

é um importante espaço dentro do imaginário religioso popular goiano. Sendo identificada

como uma espécie de "terra santa", tornou-se um centro de peregrinação de singular

importância na região.

A construção da participação de Trindade no imaginário religioso das populações

localizadas nessa área inicia-se por volta de 1843, quando é construída uma pequena capela de

sapé, que deu origem ao núcleo urbano de Trindade, para que a população dos arredores das

terras de Constantino Xavier pudesse reunir-se para rezar o terço e praticar outras atividades

religiosas, que anteriormente ocorriam na casa do agricultor, diante da imagem de um

pequeno medalhão de barro de aproximadamente 10 centímetros que trazia a representação da

coroação de Maria por Jesus Cristo e por Deus Pai, juntamente com a iluminação da cena pela

pomba do Divino Espírito Santo, achado por ele e sua esposa no campo que lavravam2.

Segundo o relato corrente, a capela que foi construída somente poderia ser consagrada pelos

padres situados na cidade de Campinas (hoje um bairro da cidade de Goiânia-GO) se

possuísse uma imagem que atendesse determinados padrões estéticos, que seriam não possuir

defeitos e ser maior que um palmo3. Para obter tal imagem, Constantino teria se deslocado até

a cidade de Goiás, então capital da província, onde pediu para o artesão Veiga Vale4 fazer

uma imagem que assim atendesse o que fora estabelecido, vendendo inclusive seu cavalo para

reunir o pagamento para o artista. A igreja ali localizada passou para administração dos

2 Reside alguma controvérsia sobre a origem da primeira imagem de culto, o medalhão de barro, que inspirou a devoção em Trindade e que hoje não é mais exposta. Segundo Deus (2000 apud Aquino,2007) o relato atual, e propagado pela Igreja, de que o medalhão teria sido encontrado durante o preparo da terra de cultivo pelo agricultor Constantino Xavier diverge daquele que é encontrado num dos materiais religiosos mais antigos relativos ao assunto, no qual se afirma que o medalhão teria sido trazido pelo lavrador desde sua região de origem, sendo seu santo de devoção desde antes do estabelecimento na região. 3 Aproximadamente 20 centímetros 4 Esse artesão, tido como autodidata pela falta de dados sobre sua formação, é considerado o principal expoente da arte de esculpir santos em madeira de Goiás no século XIX. Sua obra possui traços barrocos, o que faz alguns estudiosos considerarem que o isolamento da região proporcionou a permanência mais duradoura dessa estética artística em relação aos centros difusores de arte do país.

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irmãos Redentoristas a partir de 18945 e estes procuram garantir à romaria um papel

importante para a comunidade da região, divulgando e ampliando o alcance da narrativa

pioneira, fortalecendo a imagem do Divino Pai Eterno como o santo de devoção dos goianos,

e Trindade como sendo a capital da fé.

Segundo a congregação que administra o templo religioso, anualmente passam por ali

mais de 2 milhões de visitantes, apenas durante o período consagrado a “festa do Divino Pai

Eterno”, que ocorre entre a última semana de junho e a primeira de julho. Podemos inferir que

esse espaço adquiriu uma participação icônica para aqueles que compartilham a devoção nos

entes representados na escultura da coroação da Virgem Maria por Deus Pai, Deus Filho -

Jesus Cristo - e o Espírito Santo, entidades chamadas de santíssima trindade do cristianismo

católico. A própria imagem é denominada pelos fieis como “Divino Pai Eterno” ou apenas de

“Pai Eterno”.

Figura 1: Pórtico com imagem do "Divino Pai Eterno" na entrada principal de Trindade-GO.

Foto de G. Corcinio (2013)

5 O relato sobre as transformações que são presenciadas na cidade de Trindade e no modo como a Igreja interfere na organização da devoção foi basicamente recolhido da dissertação escrita por Duarte (2004)

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A devoção ao Pai Eterno ganhou prevalência na manifestação popular, atribuindo à

imagem do Divino Pai Eterno valor enquanto objeto da elaboração artística e cênica

executada por artesãos e assumida pelos sujeitos dessa manifestação religiosa. Em especial,

podemos citar o volume e a diversidade de formas nas quais a representação do Divino

Espírito Santo (a pomba branca sucedida por raios luminosos) comparece na imaginária

popular e constitui um referencial significativo para o papel dessa devoção na construção da

relação entre o humano e o divino.

O culto ao Divino Espírito Santo tem o seu surgimento localizado espacial e

temporalmente em Portugal, nos séculos XIII e XIV. São associadas a ele diversas crenças,

como o milenarismo e a do “Império do Espírito Santo”. Todas elas advém do pensamento

atribuído ao abade franciscano Joaquim de Fiore, influenciando um sem-número de religiosos

e poderosos em Portugal. Segundo , o surgimento desses festejos está vinculado, inicialmente,

com a influência franciscana em Portugal, especialmente sobre a figura da Rainha Isabel de

Saragoça (ca. 1270 - 4/julho/1336), também chamada de Rainha Santa Isabel de Portugal. Por

estarem próximas das antigas festas da Primavera, as festas de Pentecostes, nas quais o Divino

Espírito Santo era costumeiramente celebrado, emprestavam delas características marcantes,

como a mesa farta e a caridade, com distribuição de alimentos aos pobres, pois, a primavera

era momento de abundância.

A festa do Divino Pai Eterno em Trindade, originalmente distintas das festas do

Divino por conta do ente sagrado mobilizador do devoto, pois na segunda cultua-se a energia

mobilizadora de Deus, na figura do Espírito Santo que é representado pela pomba, como

esclarece Chevalier e Gheerbrant (2001), enquanto na primeira o culto está focado na junção

das três energias matrizes da cristandade, a santíssima Trindade. Mas, no período colonial e

imperial brasileiro a festa do Divino tinha grande penetração nas comunidades. Tal presença

mostra-se viva ainda na atualidade na cultura e na representação religiosa, com a manutenção

de um sem número de Festas do Divino Espírito Santo nas mais variadas localidades do país,

assim como em músicas, obras de arte e outros artefatos. Assim sendo, podemos afirmar que

essas festas (a do Divino Espírito Santo que se vê de norte a sul do país e a do Divino Pai

Eterno de Trindade) tem algumas correlações possíveis de serem traçadas, apesar de não ser

esse o enfoque pretendido aqui.

Deste modo, a festa de Trindade comunica sentidos e signos que, partilhados com

outras festas pelo país inteiro, trazem aspectos materiais e imagéticos importantes de serem

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compreendidos da religiosidade brasileira, com cores coloniais e captando elementos novos,

em uma dinâmica de resignificação e revalorização de tais signos.

Essas festas religiosas têm em seu bojo também o reconhecimento da relação entre o

devoto e o ente divino. E esse reconhecimento pode ser externalizado por meio de grandes

ações, como a própria romaria, com seus cânticos e o esforço corporal presente na jornada ou

por ações mais particulares, quase anônimas, como é o caso da entrega de objetos votivos,

onde tal reconhecimento mostra-se relacionado com uma troca entre devoto e a divindade.

2. Apresentando as graças: Os ex-votos das salas dos milagres

A entrega dos objetos de desobriga de promessas em lugares de culto como

agradecimento dos indivíduos pela obtenção de algo – material ou espiritual – pode ser

observado como uma prática permanente durante a história do cristianismo, remontando aos

primeiros tempos de sua difusão pelo mundo romano. Entretanto, convêm pontuar que essa

forma de relacionar-se com o divino não foi uma exclusiva criação cristã, estando presente

Figura 1: Mosaico mostrando tipos de ex-votos encontrados na "sala dos milagres" do Santuário de Trindade-GO.

Foto de G. Corcinio (2015)

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nos movimentos de devoção dos mais diversos movimentos religiosos. Sua permanência faz-

se notar especialmente nos movimentos de religiosidade popular, nos quais presencia-se uma

troca de presentes e reconhecimento entre o devoto e o ente divino.

A tipologia de ex-votos que podemos elencar aqui é variada. Da escultura de madeira

e barro, passando por objetos referentes a profissão ou enfermidade que o indivíduo

enfrentou, chegando até obras como as próprias igrejas. Mais corriqueiras são as peças que se

colocam em escala humana. Tais figuras (sejam eles esculturas de madeira e cera, fotografias,

pinturas em pequenos tabuleiros de madeira e objetos do cotidiano que demonstram algum

“livramento” de perigos ou conquista do dia-a-dia), tem sido exploradas sob um olhar

estetizante, como apresentado por Lima e Feijó (1998), o que faz então que esses objetos

deixem de ser compreendidos como constituídos por um imaginário sustentado por

referências advindas dos diversos aspectos da fé popular, materializando reflexos da

elaboração pessoal de seus executores – ou daqueles que encomendam a eles – sobre a relação

entre o divino e o humano.

Esse olhar acadêmico e artístico que busca analisar os objetos votivos a partir de um

olhar estetizante comparece nas abordagens de muitos autores, como Lima e Feijó (1998), que

refletem sobre o executor dos ex-votos, muitas vezes, não possuir uma percepção formal da

potência de sua obra como objeto artístico, sendo que essa só é percebida quando o

observador se distancia do utilitarismo atribuído as peças apresentadas na “sala dos milagres”.

Para eles:

Mesmo não havendo intenção ultima de fazer arte com esses objetos, ela não deixa de existir. Historicamente, essa qualidade transcendente em certos objetos manufaturados somente é constatada por gerações posteriores que os enxergam numa perspectiva diferente da de quem os produziu, esvaziados que foram de seu utilitarismo. (LIMA e FEIJÓ, 1998, p.18)

Essa analise, que acaba por valorizar o ex-voto por uma linha artística, afasta o olhar

sobre essas peças como documento. Outros autores, entretanto, buscam problematizar os ex-

votos para além de uma abordagem sobre um pretenso aspecto pitoresco ou de antiguidade

curiosa. Exemplo disso é a exposição de Vovelle (1997), onde reflete sobre ex-votos

encontrados na região de Marselha (França):

Como documento cultural, o ex-voto é uma mensagem codificada, desenhada e pintada, transmitida por pessoas que em sua maioria não dispunham de outros meios de expressão para testemunhar suar crenças, receios e esperanças. Confissão inconsciente ou extorquida mediante

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artifícios, o ex-voto revela os elementos da psicologia do milagre e do sistema de atitudes diante do perigo, da doença e da morte... (VOVELLE, 1997, p.113)

Compreender os ex-votos como documento possibilita uma reflexão diferente desses

objetos de fé. Materializando aspectos mais profundos do que a preocupação artística e

estética ou mesmo da atenção à necessidades objetivas como o emprego ou a cura de

enfermidades, os ex-votos podem ser olhados como objetos prenhes de um imaginário denso e

múltiplo. Conforme afirma Bachelard (2008), o poder da imaginação, enraíza-se de fato nas

profundezas do ser, sendo que ela tem poder de significação e energia de transformação sobre

as imagens. Desse modo, o imaginário não se desenvolve em torno de imagens livres, mas

impõe-lhes uma lógica, uma estruturação, que faz do imaginário um “mundo” de

representações que, ao observamos os ex-votos, podemos vislumbrar sua energia

transformadora e transfiguradora de sentidos, conectando mundos visíveis e invisíveis de

forma intensa e provocadora.

Podemos então aprofundar a proposta trazida por Vovelle quando olhamos para o ex-

voto como um documento embebido da energia transformadora de um mundo amplo de

representações e imagens profundas do indivíduo. Ao executar essas peças, o devoto traz seu

banco de dados semióticos com elaborações diversas sobre fé, religiosidade, conexão com o

divino, participação desse divino no cotidiano, as exigências para a ocorrência de milagres,

trazendo a luz o universo de referências profundas que carrega.

Ainda Vovelle (1997) nos provoca, questionando:

Tamanha preocupação em preservar e ao mesmo tempo descobrir [...] não deriva somente do encanto muito real que possuem desses pequenos quadros, lucarnas para esse mundo que perdemos. [...] Não seriam estas, porém, um reflexo mais ou menos direto das questões que uma época propõe a si mesma? (VOVELLE, 1997, p. 113)

E, assumindo a provocação, procuramos olhar as peças votivas como um registro

singular do universo no qual ele foi produzido, captando saberes e crenças, difundindo

certezas e percepções de mundo que se cristalizaram e ainda fazem sentido para os indivíduos

que, mesmo décadas (e até mesmo séculos) distantes da confecção dessas peças, ainda

carregam sentidos e signos significantes para eles.

Essa perpectiva de captura de sentido pode ser observada nos mais diversos tipos de

objetos votivos que são apresentados em Trindade. Sejam eles imagens pequenas, como fotos,

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pinturas ou artefatos escultoricos, todos comportam um olhar sobre a importância dessa

relação entre a divindade e o devoto e a importância desses objetos como mediadores dessa

relação.

Se quando observamos os artefatos escultóricos, podemos observar uma espécie de

massificação das peças, ou ao menos traços que os conectam dentro de uma espécie de

categoria, bem documentada e presente com recorrência nos diversos santuários que mantém

um conjunto de ex-votos em exposição nas “salas dos milagres” normalmente anexas aos

santuários. Mesmo imprimindo traços particulares e locais às peças, sua conformação física

simplificam a narrativa relativa ao fato gerador ou a graça alcançada.

Tal unidade formal vista nos ex-votos escultóricos não retira deles o valor de objeto

significante para um olhar mais aprofundado sobre a relação entre devoto e divindade.

Contudo eles aparecem como objetos massificados aos quais se pode atribuir o valor de coisa

ou produto e que, atendendo uma demanda generalizada, pode lidar com signos também

generalizantes, simplificando o tratamento dado aos símbolos neles presentes.

Figura 3: Mosaico de fotos de ex-votos escultóricos encontrados em Fátima - Portugal (superior esquerda), Trindade - Goiás (superior direita)

e Juazeiro do Norte - Ceará (inferior).

Fotos: G. Corcinio (2014/2015).

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Por outro lado, parte do acervo apresentado para o público na sala dos milagres do

santuário de Trindade constitui-se de um outro corpus documental menos estudado, mas

singular em potência simbólica que ele comporta: os ex-votos pintados As peças votivas

pintadas que decoram a dita sala comportam em si a peculiar característica da narração

personalizada. Enquanto os artefatos escultóricos apresentam o objeto alcançado pela graça

(em especial aqueles que mostram partes do corpo, representando uma cura, mas também

pequenas esculturas de casa, carros e motos, que demonstram as conquistas cotidianas dos

devotos), as pinturas narram o processo, servem como mediadores mais delongados, pois é na

narrativa que se vislumbra a graça, e cada pintura se distingue do conjunto todo, sendo

singular na comunicação da graça. Mesmo existindo similitudes e padrões que podem ser

utilizados como chaves interpretativas dessas peças, elas não repetem, ofertando assim um

portal que nos possibilita o acesso a um universo permeado pelo imaginário.

Figura 4: Quadro relatando graça alcançanda. Trindade - Goiás.

Foto: G. Corcinio (2015)

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Esses quadros, variados no seu formato, nas técnicas e nas composições, são

geralmente anônimos. Alguns assumem apenas a imagem como fio condutor de sua narrativa,

ao passo que outros utilizam-se de legendas para externar aquilo que se busca representar,

reforçando assim a publicidade dada ao Divino Pai Eterno como intercessor privilegiado.

Figura 5: Quadro relatando graça alcançada

Na legenda do quadro lê-se: "40 vidas foram salvas neste incidente. trecho israelândia-iporá / milagre

operado por divino pai eterno no dia 08 de julho de 1985". foto: g. corcinio (2015)

E existem aqueles que procuram narrar a sucessão de acontecimentos que faz do

Divino Pai Eterno o articulador que, tendo a ubiquidade como uma característica inerente à

sua divindade, apresenta-se intercedendo pelo devoto mesmo que por meio de outros

indivíduos. Tal variedade de imagens corrobora com a nossa percepção da necessidade de

exteriorizar de uma forma singular a gratidão do devoto ao atendimento de suas demandas

pela divindade. Analisar essas imagens necessita superar também aquilo que se apresenta

patente na imagem, já que elas se mostram objetivas, em sua maioria, na construção da

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narrativa. Sendo produzidas por indivíduos que, presume-se, não são artistas de oficio, nelas

encontramos um justificado sabor naïf, como bem identifica Vovelle (1998).

Figura 6: Quadro relatando livramento obtido por meio do Divino Pai Eterno.

Foto: G. Corcinio (2015)

Não podemos, desse modo, restringir nosso olhar apenas ao patente que está registrado

na tela. Os quadros, tabuletas e outros suportes que comportam esse tipo de ex-voto

possibilitam um olhar sobre o tempo e as dinâmicas sociais da época, a capacidade

mobilizadora do divino enquanto mediador e solucionador de casos cotidianos, corriqueiros

ou não.Essa tipologia de ex-votos aparece em Trindade, mas se faz presente também numa

infinidade de santuários em Portugal, na Alemanha e alguns santuários brasileiros, como os

mineiros e os baianos. Assim, estudá-los demanda uma compreensão daquilo que não é

desenhado, aquilo que está nos desvãos das imagens ali gravadas em tintas fortes e técnicas

simples.

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Ainda existe outro tipo de ex-voto, preponderante em volume atualmente nos diversos

santuários, que são as fotografias. Uma espécie de ex-voto hibrido entre as peças pictóricas e

as escultóricas, é um suporte que tem sido utilizado em profusão pelos devotos, lhe sendo

reservado espaços bastante amplos nas salas de milagres. As fotografias comportam na sua

composição enquanto peça destinada à externalização da fé do indivíduo aspectos da pintura –

a singularidade – e das peças de cera e madeira – a simplificação da narrativa – demonstrando

a graça alcançada de modo rápido, prático e efetivo.

Figura 7: Painel de fotos / ex-votos em Trindade - Goiás.

Foto: G. Corcinio (2015)

Esse é um tipo de ex-voto peculiar, podendo ser olhado através das mais diversas

chaves interpretativas teóricas, mas que por questões práticas não nos ocuparemos dele. Citá-

los aqui serve para apontar sua existência e instigar pesquisas que se ocupem desse corpus

documental que compreendemos ser a intersecção de várias temporalidades e significâncias,

atendendo de formas novas as demandas dos devotos.

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3. Uma porta interpretativa entreaberta: ex-votos e o imaginário

Assumimos que existe a possibilidade de refletir sobre os ex-votos pictóricos como

sendo um corpus documental complexo que demanda do pesquisador um conjunto teórico

variado.

Tal proposição da existência de um modo especial de relacionar-se com o divino,

pautado por um imaginário singular, permite complexificar a leitura desses objeto de estudo

não apenas como erupções de um conjunto de manifestações religiosas ou artísticas, mas

como imbricações de um universo de significantes que tem no imaginário uma fonte profícua,

enfeixando passado e presente, profano e sagrado, erudito e popular em objetos plenos de

sentido artístico e de fé. Segundo Wunenburger (2007), deve-se ampliar os elementos

vinculados ao imaginário, comportando, entre outros, “[...] o conjunto das produções culturais

(obras de arte, mitos coletivos etc.) para aí enfatizar uma tríplice lógica de 'estruturas

figurativas', própria do Homo sapiens, que é também Homo symbolicus.”. Esses ex-votos

configuram-se num conjunto importante de representações populares prenhes de

representações do imaginário.

E sendo lucarnas para esse mundo que perdemos,.podemos inferir que os ex-votos

configuram-se como índices de uma noção de pertencimento e de identidade num cenário

maior. Existe uma percepção de que estamos passando de um período secularizado, onde a

relações são dessacralizadas, ato continuo da modernidade industrial e tecnológica, para um

período de refluência do sagrado enquanto tradutor/mediador de um mundo que tem se

tornado cada vez mais instável propenso a transformações. No olhar de Berger (2000), a ideia

de que o mundo secularizou-se (ideia essa que ele mesmo defendia) não é ajustada ao que se

vê na atualidade. Ele diz então:

Argumento ser falsa a suposição de que vivemos em um mundo secularizado. O mundo de hoje, com algumas exceções que logo mencionarei, é tão ferozmente religioso quanto antes, e até mais em certos lugares. […] Algumas instituições religiosas perderam poder e influência em muitas sociedades, mas crenças e práticas religiosas antigas ou novas permaneceram na vida das pessoas, às vezes assumindo novas formas institucionais e às vezes levando a grandes explosões de fervor religioso (BERGER, 2000, p.10)

Essa reverberação aparece no papel exercido pela romaria, e por ex-votos que,

associados a ela, aparecem nos centros de peregrinação como o santuário de Trindade, na

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percepção do sacrifício e dos valor dos objeto votivos como indices da composição e da

articulação do imaginário com as crenças e a realidade desses indivíduos. Assim as praticas

sociais denotam uma elaboração da compreensão de mundo paralela as dinâmicas cotidianas,

conectando tempos e sentidos numa vasta teia interpretativa.

Nesse cenário, um conceito sedutor para trabalhar com esse corpus documental é

aquele apresentado por Warburg – e descrito por Didi-Huberman (2013) – denominado

Sobrevivência. Conceito complexo por tratar daquilo que fica de outros tempos e que

reaparece na atualidade, o sobrevivente, dentro do universo das imagens comunicantes que

vislumbramos nos ex-votos, é apresentado por Warburg como o elemento que transpassa os

tempos, não por ser o mais forte e significativo de sua época, mas justamente o contrário, por

estar em uma condição de quase esquecimento. Essas imagens sobreviventes são elementos

que, estando no limbo da memória do indivíduo, aparecem quase que por descuido, pelas

frestas. Tornam-se vivos por ressurgência e por relação com outro dados memoriais.

As imagens do imaginário como descritas por Bachelard (ano) são elementos fortes

para entender esse universo renovado que floresce ao observar as peças expostas em

Trindade. Na sua compreensão (...) a imagem não deve ser estudada em fragmentos. Ela é,

precisamente, um tema de totalidade. Requer a convergência das impressões (...)(p. 12) e

desse modo a peça votiva não é um fragmento de uma realidade anonima, mas um

afloramento de um conjunto de signos e sentidos o qual, distante de atribuir ao imaginário um

papel de reprodução do vivido, traz combinações infinitas de temas arquetípicos.

A sobrevivência de um elemento apresenta, pelo entendimento de Warburg, o

pathosformel do tempo em que essa sobrevivência é percebida, ou seja, de algo que não é

mais vocalizado, mas ainda sim importante para a tessitura de uma relação entre humano e

divino.

Tal ideia conjuga no seu bojo um conjunto de sentidos que encontram no cenário da

pesquisa uma tessitura importante, à medida que os ex-votos podem ser observados, enquanto

objetos de memória, índices do imaginário e elaborações identitárias onde, estabelecendo uma

relação entre contemporâneo e sobrevivência, testemunhas na sua existência enquanto item de

fé é tributária dessa relação.

A ideia de contemporâneo associável ao conceito de sobrevivência não está ligada ao

tempo especificamente, mas sim com a semelhança e o alinhamento de ideias, textos ou

práticas entre si, independente do tempo cronológico. É nesse sentido que a sobrevivência

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possibilita conectar as diversas representações dos ex-votos em seus diversos tempos

representados nas pinturas expostas em Trindade.

Se podemos então compreender a intersecção entre imaginário e estética que existe

nesses objetos, é por meio da interpretação oferecida por Ricoeur, onde podemos ver uma

Reinterpretação de sentidos, que permite a cada sujeito reconstruir sua própria existência em torno de dimensões simbólicas […] um relato simbólico transcende seu conteúdo literal, imediatamente acessível, em virtude de serem compostos por uma pluralidade repleta de significações. Aprender o sentido da imagem implica, por conseguinte, para além do sentido imediato, um desvelamento do sentido indireto e oculto do qual só uma parte superficial está presente na intuição primeira.(WUNERBERGER, 2007, p.22-23)

E esse exercício demanda ainda mais atenção pois tornar inteligível a imagem obriga

apreendê-la indiretamente, a penetrá-la em sua profundidade, a interpretar seus diferentes

níveis de sentido, o que exige uma orientação particular e um saber prévio, sob pena de não

perceber seus sentidos latentes, por não os pressupor (op. cit.,p.23)

Sendo este um artigo de aproximação, as interpretações possíveis sobre o acervo

presente na sala dos milagres de Trindade ainda são indiciaticas. O levantamento da tipologia

de ex-votos ali presente e dos estudos já executados sobre o assunto demonstra-nos que o

caminho a percorrer é ainda grande e, como numa romaria para Trindade, sempre se deve

seguir em frente.

4. Bibliografia

BACHELARD, Gaston. A psicanálise do Fogo. São Paulo/SP: Martins Fontes, 2008. 170 p BERGER, P. L. A Dessecularização do Mundo: Uma Visão Global. In . Religião e Sociedade. Rio de Janeiro/RJ:, 2000. p. 9-24 CHEVALIER, J. e GHEERBRANT, A.. Dicionário de Símbolos: Mitos, sonhos,costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olimpio, 2001. 996 p DIDI-HUBERMAN, G.. A Imagem Sobrevivente: História da Arte e Tempo dos Fantasmas Segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013. 506 p DUARTE, V. G.. O Carreiro, a Estrada e o Santo: Um Estudo Etnografico Sobre a Romaria do Divino Pai Eterno. 236 f. Dissertação de Mestrado em Gestão do Patrimônio Cultural - Instituto Goiano de Pré-história e Antropologia. Universidade Católica de Goiás. 2004. IMA, E. e FEIJÓ, M.. Ex-votos de Trindade. Goiânia/GO: UFG, 1998. 79 p VOVELLE, M.. Os Ex-votos do Territorio Marselhês. In VOVELE, Michel. Imagens e Imaginário na História. São Paulo/SP:Ática, 1997. pp. 112-119 WUNENBURGER, J-J.. O imaginário. São Paulo/SP: Loyola, 2007. 103 p

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Grupo de trabalho Temas Transversais B

Atelier de recherche Thèmes Transversaux B

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Imaginário, cinema e formação: a linguagem cinematográfica na ação educativa

Imaginary, cinema and training: the film language in the educational action

Imaginaire, cinéma et formation : Le langage cinématographique dans l’action éducative

Ana Iara Silva de Deus1 Roseléia Schneider2

IESA- Santo Ângelo, Brasil

Resumo Este trabalho discorre sobre imaginário, cinema e formação docente com base em um projeto de iniciação científica realizado no Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo-CNEC/IESA, desenvolvido com acadêmicas do 5º e 7º semestre do curso de Pedagogia. Assim, o projeto objetivou introduzir a linguagem cinematográfica na formação docente dos futuros professores com vistas a analisar de que forma a linguagem cinematográfica poderia tornar-se uma potência de formação e autoformação, bem como compreender as possíveis contribuições do cinema na formação docente, visando analisar as percepções, os sentidos e significados construídos sobre o cinema pelas acadêmicas participantes do projeto. Ou seja, a partir da relação do cinema com a educação na formação de professores tornou-se possível analisar as percepções, os sentidos, os imaginários e significados construídos sobre o cinema. Palavras-chave: imaginário; cinema; educação; formação de professores. Abstract This paper discusses imaginary cinema and teacher training based on a research project conducted in Cenecista Institute of Higher Education of Santo Angelo-CNEC / IESA, developed with the academic 5th and 7th semester of the Faculty of Education. Thus, the project aimed to introduce cinematic language in teacher training of future teachers in order to analyze how the language of film could become a power of training and self-training as well as understand the possible contributions of cinema in teacher training in order to analyze the perceptions, the meanings built on the film by the academic project participants. That is, from the film's relationship to education in teacher training has become possible to analyze the perceptions, the senses, the imagination and meanings built on the cinema. Keywords: imaginary; cinema; education; teacher training. Introdução:

O imaginário não é a partir da imagem no espelho ou no olhar do outro. O

próprio “espelho”, é sua possibilidade, e o outro como espelho são antes obras do imaginário que é criação. [...] O imaginário de que falo não é imagem de. É criação

1 Contato: [email protected]. 2 Contato: [email protected].

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incessante e essencialmente indeterminada (social, histórica e psíquico) de figuras, formas, imagens, a partir das quais somente é possível falar-se de alguma coisa.

(Castoriadis,1982, p.12)

Falar de Imaginário, primeiramente requer que retomemos as ideias de Castoriadis, o

qual denomina o imaginário como fonte incessante de criações indeterminadas, as quais estão

diretamente interligadas com o simbólico. Por isso, sua afirmação de que o imaginário não é

imagem de algo, mas uma utilização do simbólico para representar essa imagem, para

ultrapassá-la da imaginação ao mundo real. No entanto, quando adentro no imaginário como

construção de algo que ainda não existe, ou está por vir, não estou me referindo às fantasias e

devaneios, mas pensando a partir da capacidade inventiva e criativa que é inerente a todos

nós.

Como salienta Castoriadis é "faculdade originária de pôr ou dar-se, sob a forma de

representação, uma coisa e uma relação que não são (que não são dadas na percepção) ou

nunca foram" (1982, p.154). Desse modo, o imaginário aqui retratado, é algo que propicia a

reinvenção e a criação do mundo, porque somente através deste processo é que reinventamos

o que costumamos chamar de real.

Neste momento o leitor pode estar pensando: “O que tem a ver o imaginário de

Castoriadis, com o cinema na formação de professores e na educação? Caríssimos, digo-lhes

que tem tudo a ver, pois, a inter-relação do imaginário social com o cinema na educação atual

consolida-se como uma abertura para a área de formação de professores, pois auxilia o

processo de compreensão do território simbólico que permeia o sistema educacional. Sobre

essa questão, Teves (1992) diz que: “conhecer uma realidade significa reconhecê-la como

historicamente determinada, constituída por um sujeito que representa e simboliza essa

realidade, sob a forma de percepção, intuição e sensações”.

Castoriadis, por sua vez, salienta que:

Uma vez criada, tanto as significações imaginárias sócias quanto as instituições se cristalizam ou se solidificam, e é isso que chamo de imaginário social instituído, o qual assegura a continuidade da sociedade, a reprodução e a repetição das mesmas formas que a partir daí regulam a vida dos homens e que permanecem o tempo necessário para que uma mudança histórica lenta ou uma nova criação maciça venha transformá-la ou substituí-la por outra (2004, p.130).

Na formação de professores, as significações sociais imaginárias também são

instituídas por uma sociedade que reproduz as formas de aprender e ensinar. No entanto, pela

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linguagem da arte, do cinema, do mito e da literatura é possível adentrar no universo

simbólico, porque são formas simbólicas que se interligam entre o indivíduo e seu contexto

social, assegurando o desenvolvimento da imaginação, que permite a possibilidade de sonhar

e movimentar o pensamento com aquilo que ainda não existe.

Desse modo, Castoriadis (1982), define o imaginário instituinte, como imaginação,

sonhos, aspirações e caracteriza a capacidade humana de poder criar, inventar e instituir novas

formas e instituições sociais. Por isso, correlacionaram-se as ideias do autor com o cinema, a

partir do imaginário social instituinte, ou seja, para provocar o novo, a criação a ruptura com a

realidade já instituída. Com a linguagem cinematográfica, é possível oportunizar o imaginário

instituinte no espaço escolar e até questionar os valores dessa escola instituída.

Com base nesse ponto de vista, o cinema é instituinte, pois oportuniza movimentos

para repensar a própria sociedade instituída, apontando caminhos inventivos, criativos,

poéticos e estéticos, se for visto, encarado e trabalhado como arte na escola. Assim, o cinema

como imaginário instituinte propicia processos criativos e significações sociais. Para

Fresquet:

A crença no cinema e na sua possibilidade de intensificar as invenções de mundos, ou seja, da possibilidade que o cinema tem de tornar comum o que não nos pertence, o que está distante, as formas de vida e as formas de ocupar os espaços e habitar o tempo. A segunda crença é na escola, como espaço em que o risco dessas invenções de tempo e espaço é possível e desejável. Isto não significa pensar no belo, no conforto ou na harmonia. Significa que é possível inventar espaços e tempos que possam perturbar uma ordem dada, do que está instituído, dos lugares de poder (FRESQUET, 2013, p. 25).

Diante do exposto, é possível propiciar à educação um espaço de criação, invenção e

significações, pois o cinema visto como arte na escola e pela ótica do imaginário social pode

potencializar a percepção, a relação de sentidos e significados construídos sobre o cinema

pelos envolvidos no processo. Como assegura Castoriadis, a “realidade natural” não é apenas

aquilo que resiste e não se deixa manejar: ela é também aquilo que se presta à transformação,

o que se deixa alterar “condicionalmente” mediante, ao mesmo tempo, seus interstícios livres

e sua regularidade (1982, p. 400).

Sendo assim, o cinema na formação docente contribui para a ressignificação do

professor e suas práticas pedagógicas, porque possibilita pensar possíveis mudanças a partir

da relação do imaginário com o cinema na formação docente. Como nos assegura Fresquet:

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Os possíveis vínculos entre o cinema e a educação se multiplicam a cada momento, a cada nova iniciativa ou projeto que os coloca em diálogo. Fundamentalmente, trata-se de um gesto de criação que promove novas relações entre as coisas, pessoas, lugares e épocas. De fato, o cinema nos oferece uma janela pela qual podemos nos assomar ao mundo para ver o que está lá fora, distante do espaço ou no tempo, para ver o que não conseguimos ver com nossos próprios olhos de modo direto. (FRESQUET, 2013, p. 19).

Dessa maneira, a tela do cinema ou a câmera fotográfica, configuram-se como nova

janela que permeia outro lugar de conhecimento e outra forma de intercomunicação com o

outro e consigo mesmo. Assim, a relação entre vida e arte cinematográfica é dada pela

identificação e interpretação de experiências, preferências, sentimentos, tensões, processos de

formação e conhecimentos relativos ao cinema que emergem no processo de significações

imaginárias na formação de professores.

Azevedo salienta:

Faz-se importante levar em consideração o sentido das práticas instituídas, o lugar imaginário atribuído a si e ao outro e ao objeto do discurso, o sentido dos conhecimentos veiculados para o professor, bem como em que redes de sentidos se enredam esses conhecimentos. Aprender esses sentidos significa levar em conta a fala do professor, seu silencio, seus enunciados discursivos, nos quais estão presentes seus mitos, suas crenças, suas expectativas em relação ao que é ser professor, ao que é ensinar, suas posições de sujeito no discurso (AZEVEDO, 2006, p. 61).

Sob essa perspectiva, pode-se refletir que o cinema na formação de professores

proporciona sistemas simbólicos de produção de sentidos às próprias práticas educativas, bem

como estabelece outras formas de estar em aula, e descentraliza o papel do professor como

figura central do processo de ensino e aprendizagem, pois todos se colocam no mesmo sentido

de frente à tela.

1.1 Contextualização do Projeto: A Linguagem Cinematográfica na Formação Docente

Com base nas colocações anteriores, passo a descrever o projeto de iniciação cientifica

realizado no Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo-CNEC/IESA, o qual foi

desenvolvido com acadêmicas do 5º e 7º semestre do curso de Pedagogia e teve como intuito

introduzir o cinema na formação docente, como um meio para representar, contar histórias

através de imagens, movimentos e sons.

Desse modo, o projeto objetivou introduzir a linguagem cinematográfica na

formação docente, dos futuros professores com vistas a analisar de que forma a linguagem

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cinematográfica poderia tornar-se uma potência de formação e auto formação, bem como

compreender as possíveis contribuições do cinema na formação docente, visando analisar as

percepções, os sentidos e significados construídos sobre o cinema pelas acadêmicas

participantes do projeto.

Para tanto, foram introduzidos os conhecimentos sobre a linguagem cinematográfica as

acadêmicas, para que se apropriassem de novas ações educativas, através das projeções,

discussões, enquadramentos, luzes, cores, movimentos de câmeras, criações de roteiros,

produções e edições de filmes, por meio da arte como criação e transfiguração. Assim incluiu-

se o cinema na prática educativa das alunas como uma potência para reinvenção da realidade

existente.

Nesta perspectiva, o trabalho foi dividido em dois módulos, sendo que o módulo I: O

cinema na formação docente, em um primeiro momento proporcionou aos participantes um

espaço para assistirem filmes, refletirem e dialogarem sobre as produções visualizadas, na

sala multimídia da instituição.

Para esse processo foram selecionados alguns filmes para as alunas realizarem a

apreciação estética e diálogos, os quais foram: Mr Holland- adorável professor; A cor do

paraíso do diretor Majid Majidi; Uma vida iluminada do diretor Liev Schreiber; Análise e

discussão da entrevista com Adriana Fresquet: 3ª edição claro curtas- Seminário Mesa

temática 1- olhar e pensar: Educação audiovisual/ audiovisual na educação; Apreciação

Estética do filme: vermelho como o céu do diretor: Cristiano Bortone.

No módulo II: Linguagem cinematográfica na ação educativa, os participantes

foram instigados a realizarem diversas filmagens e experienciarem os passos da criação

cinematográfica, por meio das montagens dos filmes no programa Cinelera, e MovieMaker.

Para esse modulo foi observado o Minuto Lumière-dos irmãos Lumière- A chegada de um

trem na estação de 1895 e o documentário “Alteridade – Abecedário de Alain Bergala, bem

como discussão do texto de Adriana Fresquet: Reflexões e experiências com professores e

estudantes de educação básica, dentro e “fora” da escola e as oficinas práticas, onde foram

evidenciados alguns elementos da linguagem cinematográfica: Luz, enquadramento, som,

efeitos de vídeo e exercícios práticos com minuto Lumière, bem como elaboração de roteiros

para as produções dos curtas-metragens e as gravações dos filmes pelas participantes do

projeto.

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As acadêmicas nesse momento de criação, que lhes foi propiciado elaboraram vinte

(20) curtas-metragens, os quais se enquadraram nos seguintes gêneros: Minutos Lumières,

Contos Infantis, Comédia, Suspense e Ficção. Os encontros eram sempre semanais, e tinha a

duração de duas horas de trabalho, no qual as acadêmicas aventuram-se no processo criativo,

imaginativo e estético. Dentre essa gama de filmes criados pelas acadêmicas foram escolhidos

quatro curtas-metragens, os quais foram analisados as significações estéticas, sociais e

imaginárias das alunas ao projetarem os planos e roteiros nas produções cinematográficas.

1.2 Criações cinematográficas e os imaginários sociais interligados nesse processo

A arte a linguagem, o cinema, o mito, a literatura e as histórias potencializam o aflorar do

universo simbólico, pois são formas simbólicas que se interligam entre o indivíduo e seu

contexto social. Essa capacidade imaginativa, criativa e simbólica foi vivenciada pelas

acadêmicas durante o projeto de cinema desenvolvido na Instituição, porque as alunas foram

totalmente livres para escolher seus planos e tomar a decisão das filmagens.

Assim, realizamos o exercício minuto Lumiére, para o qual foi proposto um minuto

de filmagem com a câmera parada. Esse exercício evidencia claramente o que é um plano,

pois a cena acontece entre o ligar e o desligar a câmera fotográfica ou o celular. Iniciamos o

modulo II com essa experiência, após assistirmos o curta dos irmãos Lumière: A chegada de

um trem, datado de 1895.

Essa primeira filmagem é considerada o marco inicial da história do cinema, onde os

Irmãos Lumière inventam o cinematógrafo, um aparelho que permite registrar uma série de

instantâneos fixos (fotogramas) que, quando projetados, criam uma ilusão de movimento. O

motivo do exercício ser chamado de “Minuto Lumière” é uma referência a essas imagens:

realizadas em um plano de um minuto retornando à maneira como eram feitos os primeiros

filmes da história do cinema.

Deste modo, surgiram os minutos Lumière das acadêmicas, onde três grupos de alunas

intitularam os nomes para suas criações de: “ Meu pedacinho de chão”, no qual retrataram

cenas do dia a dia no campo, deixando presente os animais, a vida calma e tranquila que esse

cenário propícia. Podemos pensar no significado que a as raízes do seu contexto lhes remete,

pois deixam claro essa preferência no nome: “Meu pedacinho de chão” e as cenas remetem a

tranquilidade da sua terra, do lugar onde moram. Para Chevalier & Gheerbrandt:

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Simbolicamente, a terra opõe-se ao céu como o princípio passivo ao princípio ativo; o aspecto

feminino ao aspecto masculino da manifestação; a obscuridade, a luz (2012, p.878).

Assim, suas cenas deixam as claras segundo a definição dos autores acima citados, a

dualidade que existe em cada um de nós, os pontos convergentes, o bom e o ruim. Deste

modo, poderíamos identificar os dois lados da vida das acadêmicas, a vida calma e tranquila

do campo, contrapondo-se a agitação da cidade, a vida corrida para conciliar trabalho e

estudos. O que as remete ao seu “pedacinho de chão” o qual embora distante continua

presente em suas memórias e imaginações. Talvez por isso, o desejo de imortalizá-lo pela

captura na tela da máquina fotográfica.

Digo isto porque a escolha de um plano não é aleatória, ou sem sentido e significado,

pois ao apontar a câmera para um lado, para frente ou para trás. Essa escolha com certeza traz

sempre fatores simbólicos, que os constituem.

Outro minuto foi atribuído o seguinte nome: “Tudo junto misturado, no qual fica

presente o contexto local, das alunas, pois começam as gravações na Praça da cidade, depois

trazem outro plano retratando a infância e brincadeiras infantis, onde filmam crianças

brincando em uma cama elástica. Contrapondo essa cena logo apresentam a vida adulta,

também com brincadeiras, em uma mesa de ping pong, onde alternando os jogadores, homens

e mulheres se divertem entre goles de bebidas. Finalizam os planos novamente com a cena da

Praça da Matriz com a tomada da filmagem na ponte e nas águas do chafariz.

Chevalier & Gheerbrandt argumentam:

O domínio do imaginário não é o da anarquia e da desordem. As criações, mais espontâneas obedecem a certas leis interiores. E mesmo se essas leis nos levarem ao irracional, é razoável procurar compreendê-las (CHEVALIER & GHEERBRANDT, 2012, XXXVI).

Deste modo, ao procurar compreender os símbolos projetados nas imagens trazidas

pelas alunas em seus curtas-metragens, especificamente no “Tudo Junto e misturado”, no qual

retratam as duas fases da vida, crianças e adultos, representados por homens e mulheres, bem

como a praça em meio ao chafariz. Este último abre e encerra os planos das alunas com a

água que jorra sem parar. Encontrei em Chevalier & Gheerbrandt a seguinte categorização:

O símbolo da criança pode indicar uma vitória sobre a complexidade e ansiedade, e a conquista da paz interior e da autoconfiança. [...] Infância é símbolo de simplicidade natural, de espontaneidade. [...] o homem simboliza um nó de relações cósmicas. [...] As significações simbólicas da água podem reduzir-se a três temas dominantes: fonte de vida, meio de purificação,

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centro de regenerescência. Esses três temas se encontram nas mais antigas tradições e formam as mais variadas combinações imaginárias (CHEVALIER & GHEERBRANDT, 2012, p.302)

Novamente nas cenas escolhidas pelas acadêmicas no curta-metragem intitulado:

““Tudo Junto e misturado”, retratam, segundo os autores, o desejo de sobrepor-se a

complexidade, talvez da própria existência, a qual clama pela conquista da paz interior. A

imagem do homem ou mulher neste caso centraliza, este desejo de ligação com o cosmos e

talvez com o “self“. A água que inicia a filmagem e a encerra, segundo os autores é fonte de

vida, vida abundante. Ao realizar a interpretação podemos interligar a água como sendo o

centro dessa ligação interior com o exterior, bem como com o cosmo, porque como salientam

os autores é o centro de regenerescência. Portanto, elo de ligação e regeneração.

Castoriadis afirma:

A instituição e as significações imaginárias, inseridas nela e que ao mesmo tempo a animam, são criadoras de um mundo, o mundo desta sociedade dada, instaurada desde o início na articulação entre um mundo “natural” e “sobrenatural”, ou mais geralmente,” extra-social, e um “mundo humano” propriamente dito. Essa articulação pode ir desde a quase fusão imaginária até a vontade de separação mais afirmada; desde a colocação da sociedade a serviço da ordem cósmica ou de Deus até o delírio mais extremo de dominação e domínio da natureza (CASTORIADIS, 1992, p.122).

Portanto, ao analisar as interlocuções dos autores e as filmagens captadas pelas

acadêmicas, saliento a relação da espacialidade, temporalidade e o inusitado retratado nas

imagens escolhidas para os curtas-metragens, das quais emergiram objetos reais e

imaginários, pois ao realizar a análise mais profunda, observei o imaginário vivo e imanente

das alunas, as quais entraram em contato com a sétima arte e deixaram-se permear pelos dois

mundos, “natural” e “sobrenatural”, mesmo sem terem conhecimento deles.

1.2 Reflexões Finais:

Devo salientar após as análises realizadas, que, ao propor o cinema na ação docente,

o professor deve levar em consideração os fatores psicológicos e simbólicos que estão por

detrás de quem pega uma filmadora, ou câmera fotográfica para capturar suas cenas, bem

como quando assiste a um filme. No entanto, essas primeiras experiências serão os primeiros

passos para a atividade do cinema na educação, além de muitas outras que poderão ser

proporcionadas, se for oferecido espaço e tempo para criação, projeção e experimentação.

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Esse espaço foi proporcionado com a realização do projeto: A linguagem

cinematográfica na formação docente: cinema e educação na ação pedagógica, pois com

a efetivação do mesmo foi possível vislumbrar novas aprendizagens para o campo da

educação permeado pela imaginação. Dessa maneira, conclui-se que as ações do projeto

proporcionaram momentos de reflexão, percepção, encontro com seu eu interior e

aprendizagens, por meio dos filmes assistidos, das filmagens produzidas e reeditadas nas

oficinas de cinema. Por isso, esse trabalho almeja ser uma provocação aos demais docentes,

que trabalham com formação de professores e com o imaginário, para também se aventurarem

neste mundo mágico e instigante do cinema na educação.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Nyrma Souza Nunes de. Imaginário e Educação: reflexões teóricas e ampliações. Campinas, SP: Ed Alínea, 2006. CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição Imaginária na Sociedade. 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. ______________. Figuras do Pensável: as encruzilhadas do labirinto, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. ______________. Sujeito e Verdade no mundo social-histórico, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992. CHEVALIER, Jean. Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos. Costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olímpio,2012. FRESQUET, Adriana. Cinema e educação: reflexões e experiências com professores e estudantes de educação básica, dentro e “fora” da escola. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. JUNG, G. Carl. O home e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

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A construção da identidade étnico-racial: trajetórias de professoras negras

The ethnic-racial building identity: the black teacher´s trajectory

La construction de I’identité ethnico-raciale : trajectoires d’enseignantes noires

Andressa Lima TALMA Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF1, Juiz de Fora, Brasil

Waldeir Reis PEREIRA Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF2, Juiz de fora, Brasil

Resumo Este trabalho analisa a trajetória de vida e escolar de professoras que possuem experiências em educação para a diversidade étnico-racial em duas escolas da rede municipal de ensino de uma cidade mineira, através das imagens presentes em suas memórias, marcadas por violências simbólicas de uma sociedade etnocêntrica. A pesquisa ocorreu por meio de observações do cotidiano escolar, anotações no diário de campo e por meio de entrevistas semi-estruturadas. O resultado ainda é parcial, mas acreditamos que a tentativa de interpretação das práticas pedagógicas das professoras e de suas narrativas, amparada por recursos teóricos da antropologia do imaginário, nos auxilia a compreender a construção de suas identidades étnico-raciais. Utilizamos das africanidades como categoria para a análise. Percebe-se que as histórias de vida dessas professoras negras interferem em seus fazeres pedagógicos. Palavras-chave: africanidades, etnocentrismo, identidade étnico-racial. Abstract This paper analyses the life and educational trajectories of teachers whom have experiences in education for the ethnic and racial diversity in two municipal schools from a town located in the Brazilian state of Minas Gerais, through the images present on their memories, marked by symbolical violence of an ethnocentric society. The research occurred by means of daily scholar observations, notes on the field journal and through semi-structured interviews. The results are still partial, but we believe the attempt to interpret the pedagogical practices of the teachers and of their narratives, supported by theoretical resources imported from the anthropology of the imaginary, helps us to understand the construction of their ethnic and racial identities. We made use of the africanities as a category to the analysis. It’s possible to notice that the life histories of these black teachers interfere in their pedagogical doing. Key-words: africanities, ethnocentrism, ethnic and racial identity. Introdução

[email protected], mestranda e bolsista CAPES. [email protected], mestrando e bolsista CAPES.

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Este artigo foi se delineando através dos caminhos utilizados para a compreensão da

trajetória de vida de duas educadoras da rede de ensino da cidade de Juiz de Fora, em Minas

Gerais, que têm o histórico profissional caracterizado por experiências educativas em relação

à educação para as relações étnico-raciais, marcadas por aproximações. Buscamos

compreender as práticas diferenciadas dessas professoras quando comparadas com de outros

profissionais, a partir dos relatos de vida e das imagens e representações que emergem de suas

memórias.

Nossa pesquisa se baseia em observações do cotidiano escolar, anotações no diário de

campo e entrevistas semi-estruturadas, utilizando-se de diversas idas às escolas para

documentação, gravação e acompanhamento de diversas aulas.

Uma escrita impulsionada pelo incômodo, um incomodar que nos impulsiona e se

relaciona com a trajetória de vida das duas educadoras quando questionadas sobre seus

percursos diários que esbarram com as questões étnico-raciais, um incomodar que foi

crescendo nos encontros do Grupo de Pesquisa Antropologia, Imaginário e Educação –

ANIME e no processo de organização das impressões que advinham das falas e atitudes das

educadoras.

Suas histórias de vida revelam silêncios e violências simbólicas em que foram

submetidas na infância e juventude e que deixaram marcas em seus percursos pessoais e

profissionais. Surge uma angústia decorrente desses percursos e o sonho de ver uma

sociedade mais justa e igualitária, que levaram-nas a se constituírem como as pessoas que são

hoje, comprometidas, como professoras, com uma educação que não privilegie algumas

representações culturais, exaltando o eurocentrismo e levando à insignificância as culturas

não-ocidentais.

Para adentramos nesse campo de discussão sobre os critérios de ensinar e aprender

numa sociedade etnocêntrica, nos utilizaremos como referencial teórico a Antropologia do

Imaginário de Gilbert Durand (2001, p. 68) que compreende que como o Ocidente desvaloriza

o imaginário, pois, atribuiu à ciência que alicerçada em algo concreto, se constituiu numa

lógica binária, como a única dona de uma verdade iconoclasta e que ao defrontar-se com

concepções imaginárias, que considera como um campo movediço, ambíguo, ou melhor, um

terceiro elemento em uma organização de verdadeiro ou falso; se esforça em separar, excluir a

ciência da imaginação desvalorizando-a. A Antropologia do Imaginário vai desconstruir essa

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visão valorativa de apenas uma cultura e nos mostrará a necessidade de valorizar outras

culturas, mitos e narrativas, como no nosso caso a cultura afrodiaspórica e africana.

Temos a perspectiva de construção dos trajetos investigativos das histórias de vida das

professoras aqui apresentados, baseados no subjetivo delas e em sua completude, no ser

humano como um todo, em sua parte racional e sentimental, para ser pedagogicamente

compreensível, pois não é possível separar as duas, pois é necessário pensar o ser humano

também considerando as concepções imaginárias que o constitui, suas memórias e emoções; e

não apenas pelo simples fato racional, concreto, quando as professoras relatam que nunca

sofreram preconceito em suas trajetórias de vida.

Encontramos nas investigações, indícios que as dificuldades de se compreender as

diferenças na educação brasileira advêm do pensamento pedagógico se assentar em bases do

imaginário ocidental que se alicerçam no principio do corte e da separação de identidade e

não-identidade, o uno e o múltiplo, o bem e o mal, o verdadeiro e o falso (OLIVEIRA, 2009,

p. 20), ou seja, uma lógica binária.

A investigação amparada em bases da antropologia do imaginário auxilia no processo

de compreensão das imagens que emergem das práticas pedagógicas e das narrativas que

aparecem nas construções étnico-raciais de uma sociedade marcada pelo etnocentrismo.

Buscando no cotidiano das educadoras o quanto a escola que se alicerça em bases do

pensamento ocidental afetou-as no trato com as relações com as crianças negras.

Faz-se necessário estudar não apenas as questões, como também, os mitos que estão

patentes nas representações de vida que as professoras apresentam-nos, como principalmente

os mitos latentes que não conseguem encontrar meios simbólicos de expressão e trabalham a

sociedade, e consequentemente as vidas dessas professoras, a nível profundo.

Escrita impulsionada pelo incômodo

Um texto que irá de encontro as palavras desencantadas nasce no conjunto de

pensamentos afroperspectivistas adotados, como Noguera (2012, p. 69) classifica o ato de

“denegrir”3, o território epistêmico, que no nosso caso aqui analisado, é o espaço das relações

étnico-raciais e sua conjugação com a pedagogia da pluriversalidade como forma de exercício

intercultural que possa vencer um educar homogeneizante e universalista.

3 Denegrir tendo o sentido de abandono das disputas e dos controles materiais e imateriais, visando uma cooperação uma arma dos fracos contra os fortes através de um diálogo (NOGUERA ALVES, 2012, p. 69).

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Nas nossas vivências em busca dos conhecimentos relacionados às questões étnico-

raciais e nas muitas leituras exploratórias marcadas por inquietudes ligadas a educação, uma

fala nos chamou a atenção em relação ao olhar sobre as questões étnicas no universo escolar:

“a água que corre areia adentro é o poder de regeneração da terra árida” (ibidem, p. 67), logo

encaminhamos o trecho para a escola e seu cotidiano pensando que o espaço pode abrir suas

portas para que a areia se encaminhe para o seu chão, onde possa ser trazer algo novo para a

educação que se encontra envolvida por uma ideologia etnocêntrica que se desenvolveu no

positivismo e em uma modernidade que caminha para a escuridão.

O pensamento pedagógico brasileiro é dominado pelo etnocentrismo que tem origem

na “heterofobia”4, que privilegia um universo de representações que propõem como modelo

cultural hegemônico,em detrimento e silenciamento de outras culturas consideradas diferentes

(PAULA CARVALHO, 1997, p. 181), e também relega outras culturas e outros territórios

epistêmicos, a subalternidade e a dominação (ibidem, p. 69); produzindo “efeitos mutilantes”,

reducionistas e simplificadores no tratamento do real (redução/disjunção), na relação do

sujeito/objeto, nos pares razão/sensibilidade” (NORONHA ALVES, 2008, p. 48). Um bom

exemplo encontramos no conhecimento africano afrodiaspórico que no Brasil foram

considerados pouco importantes.

Tais cânones estabelecidos pela razão ocidental privilegiam representações culturais

que reforçam uma dualidade entre razão e imaginação e, que ao mesmo tempo, enaltecem a

razão e reforçam a postura de insignificância das culturas consideradas subalternas,

consideradas distantes da concepção do racionalismo ocidental. A “racionalidade” ocidental

não somente separou os diferentes saberes, mas também, segmentou o objeto de

conhecimento, ao afastar natureza e cultura, e que somente a inclusão dos seres humanos no

conceito de natureza pode nos possibilitar um caminho de compreensão da natureza e,

portanto, da cultura ou da sociedade (LOPES; MÉLLO, 2010, p.725).

Porém como Ruiz (2004, p.32) observa que mesmo dominados pelo paradigma da

racionalidade, que busca separar razão e imaginário, temos que compreender que não há razão

e ciência dissociadas da imaginação, e que ambos se correlacionam e criam a dimensão

simbólica.

O ambiente escolar vive uma crise dos sistemas explicativos que segundo Teixeira

(1994, pp. 75-76) ocorre pela perda da capacidade de explicar a realidade, pois, busca 4Heteorofobia que enxerga o outro “diferente” de imaginário diferenciado que foge do padrão estabelecido como um perigo.

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interpretar o mundo como se fosse único e seguindo a ótica de uma razão privada de afetos e

emoçõesque são relegados à insignificância, a certeza de que cada “cultura produz o seu

mundo juntamente ao mundo de outras culturas” (OLIVEIRA, 2012, p.42).

Um esvaziamento do modelo dominante, empirista, determinista, redutivo, possibilita

o adentrar de um novo paradigma que pode ser classificado como pluralista, fenomenológico,

metafísico e que pode nos levar a outra dimensão, como Noronha (2008, p. 48) afirma que

“Estamos em tempo de passagens” e, portanto, o modelo antigo, ou melhor, o paradigma

clássico não supre as demandas da sociedade. Surge no cenário um novo paradigma, que

segundo Morim (apud Noronha Alves, 2008, pp. 49-50) é um sistema aberto e plural que tem

“O princípio organizador do conhecimento, o problema crucial, o que demanda da

humanidade. “não só aprender, não só re-aprender, não só desaprender”, mas, sobretudo, re-

organizar nosso sistema mental para re-aprender o aprender”.

O pensamento pedagógico brasileiro assentado em bases do imaginário ocidental, tem

em suas entranhas a ciência moderna que se liga ao referencial de um cosmos dotado de um

centro e de periferias. Ao estar dominada por um paradigma global e totalitário, a educação se

baseia em uma razão fechada que separa o sujeito de seu ambiente, ocultando e excluindo a

diversidade social e racial e impedindo que o afetual possa ocorrer no ambiente escolar. A

escola seguindo tal perspectiva se abastece de um olhar homogeneizante, monorracial, que

impede que os conhecimentos de outras culturas como as dos africanos, possam ser

reconhecidos e, assim, ocorre um inviabilizar de um educar para a pluriversalidade.

A educação brasileira formulou representações que desqualificaram os povos não ocidentais, situando-se como os diferentes, os exóticos, os que nãos se enquadram no padrão universal de humano. É necessário romper com esse pensamento universalista e valorizar a diversidade, a fim de romper com a percepção de superioridade / inferioridade para se construir uma educação para a diversidade étnico-racial (OLIVEIRA, 2015, p. 16).

A educação dominada pela perspectiva da pedagogia do etnocentrismo (PAULA

CARVALHO, 1997, p. 181) nivela as diferenças, cria um processo de escolarização

homogênea, em que todos os sujeitos devem estar uniformizados e aprendendo no mesmo

tempo de uma mesma maneira, organizando uma lógica binária onde não se considera a

diversidade de cada elemento, como seu tempo de aprender e a valorização da cultura que

carrega na sua história de vida para o espaço escolar.

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O que se aprende nas escolas “por mais útil que seja, nem sempre é vivido, enquanto

que o conhecimento herdado na tradição oral encarna-se em todo o ser” (BOARO, 2013, p. 9).

No intuito de formar seres humanos racionais, a escola vai organizando seu caminho em bases

universalizantes e, assim, o aprender se realiza separando o pensamento do sentimento

buscando a pretensão de dominar a ciência e a tecnologia e ter sucesso no mundo do trabalho.

Os sujeitos se tornam assim, “homens pela metade, com personalidades fragmentadas” que

buscam incessantemente algo que os complete na sociedade (THOMAZ, 2009, p. 9). O

caminho educativo apresentado privilegia “um universo de representações propondo-o como

modelo e reduzindo a insignificância os demais universos e culturas “diferentes”” (PAULA

CARVALHO, 1997, p. 181).

Se nos debruçarmos nas experiências educativas, nas formas que os alunos utilizam

para aprender e nas experiências de apreensão do conhecimento de outros territórios como o

de países africanos, compreendemos como a racionalidade dominante não é a única forma de

acesso aos conhecimentos. Eles ocorrem nas culturas africanas e afrodiaspóricas “com o

corpo inteiro – o físico, a inteligência, os sentimentos, as emoções, a espiritualidade – que

ensinamos e aprendemos que descobrimos o mundo” (SILVA, 2007, p. 501).

Corpos negros, brancos, indígenas, mestiços, doentes, sadios, gordos, magros, com deficiências, produzem conhecimentos distintos, todos igualmente humanos e, por isso, ricos em significados. Produzem também conhecimentos científicos, quando decidem realizar pesquisas deste cunho, que têm em conta as circunstâncias e suas condições de ser e viver (ibidem, p. 501).

Para Oliveira (2015, p. 18) a educação africana diferencia-se da ocidental no

“pensamento causal e no pensamento sincrônico”, diferente do pensamento ocidental que é

racional, linear, anacrônico. Para ele pensar uma educação de perspectiva africana no Brasil,

leva-nos a alcançar e compreender esse universo cultural dessa tradição (ibidem, 2015, p. 18).

O imaginário

Compreendemos que no conjunto de pensamentos construídos no imaginário que

desde criança antes de pensarmos racionalmente, imaginamos e nosso primeiro contato com o

mundo se realiza assim pela imaginação. Por meio das imagens “vamos tecendo nossa

identidade” (RUIZ, 2004, p. 30). Mesmo com a imaginação tendo muita importância, se

encontra em uma posição secundária em relação à racionalidade que se apresenta como

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sinônimo da verdade. A desvalorização ocorre por o Ocidente ter suas bases explicativas

assentadas em uma razão que se encontra como detentora de uma “verdade”.

O “trajeto antropológico” para Gilbert Durand é sua pedra angular e pode ser

explicado como, “a incessante troca que existe ao nível do imaginário entre as pulsões

subjetivas e assimiladoras e as intimidações objetivas que emanam do meio cósmico e social”

(DURAND, 1997, p. 41), ou seja, o homem se forma através de influências e interações de

fatores externos como o território geográfico em que nasceu e viveu e vive o meio social que

está inserido e por fatores internos como a sua formação psicológica e biológica.

Uma pedagogia do campo de estudos transdisciplinares, marcada por uma razão aberta

em um conjunto de conhecimentos híbridos, complexos, heterogêneos e plural pode ser

compreendido como um caminho aberto para um educar que abarque as diversas

narrativascomo a afro-brasileira (OLIVEIRA, 2015, p. 20). Podemos enxergar um novo

caminho que se constitui com exigências éticas, epistêmicas e pedagógicas que se

desencadearam com as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino de História e Cultura

Africana e Afro-Brasileira (BRASIL, 2004) e que tem levado parte dos envolvidos com o

processo educativo a refletir, conhecer, reconhecer os silêncios em relação à diversidade

social brasileira.

Apresentando as educadoras

Nossas pesquisas se encaminharam para o entendimento dos movimentos e das

imagens que emergem nas histórias de vida de duas educadoras dentro e fora do espaço

escolar. As duas professoras lecionam em escolas da rede municipal da cidade de Juiz de

Fora, no estado de Minas Gerais.

A base teórica escolhida para nossa interpretação, a Antropologia do Imaginário de

Gilbert Durand, se deu pela possibilidade de se compreender e interpretar as imagens que

saltam nos discursos das profissionais em educação quando inquiridas em relação às questões

étnico-raciais de ordem pessoal (histórias de vida) da fase da infância, fase estudantil e os

desafios da fase profissional, procurando compreender as narrativas produzidas nas falas e

atitudes das professoras, de onde podemos reconstituir as memórias abertas de possibilidades,

no percurso investigativo.

Chamaremos de professora Teresa nossa primeira educadora investigada, uma mulher

negra, nascida no interior mineiro na cidade de Santos Dumont, uma localidade próxima a

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Juiz de Fora. A escolha da professora se deu pela ligação que a mesma tem com a escola

escolhida para a pesquisa e por suas falas em relação às questões étnico-raciais. No caso da

instituição de ensino a aproximação ocorreu pelo fato da mesma se localizar em uma

comunidade repleta de possibilidades investigativas em que se destacam diferentes aspectos

sociais e étnico-raciais.

A segunda professora investigada é chamada de Ana, uma gaúcha, que tem pais e

família mineira, veio criança para Minas Gerais e atualmente mora na cidade de Santos

Dumont. A escolha foi feita através da indicação pela direção e colegas como referência na

escola pública em que atua por trabalhar os conteúdos étnico-raciais com suas turmasnas aulas

de história no quinto ano do ensino fundamental, também é uma educadora negra e que afirma

ser muito militante pela valorização da cultura negra.

Um pouco sobre a infância das professoras negras

O processo investigativo com a professora Teresa se iniciou com pinçadas em suas

histórias de vida, contando a partir de sua infância as relações familiares, tendo como aspecto

relevante o destaque que o ambiente familiar era formado por pessoas brancas, em sua

maioria, que a levaram, segundo sua percepção, a não se deparar com atitudes de racismo e

preconceito nesse período. Mesmo tendo a consciência que era negra no meio de tios e primos

brancos. Eis sua fala:

- Sobre minha família, lembro-me que convivi com familiares que eram brancos e o único negro era meu pai, eu e meus irmãos. Que me lembre nunca tive problema de preconceito entre meus parentes. Não convivia com negros nem mesmo na escola. Pode ser que nem os enxergava. - Sempre estudei em uma escola que haviam poucas crianças negras e nunca percebi nem uma atitude que remetesse a atitudes racistas..

Na sua fala podemos notar a ideia de profundidade, de aconchego familiar, elementos

presentes no regime noturno de imagens que remetem aos símbolos místicos e antifrásicos

femininos de proteção que a impedem de reconhecer e enxergar as demandas sociais em

relação a sua condição de um sujeito afrodescendente.

A professora Ana, nos fala pouco sobre sua infância e diz não ter tido contato com

muitos familiares na infância. Eram apenas ela, os irmãos e os pais, pois seu pai era mestre de

obras e eles moravam no sul em acampamentos para os familiares dos trabalhadores nas obras

e o restante da família estava em Minas.

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- Eu sou gaúcha de Paraí, fronteira com o Uruguai. Vim do sul com 8 anos e mudei para a cidade Entre Rio de Minas, pois meu pai veio pra construção da Ferrovia do Aço. Meu pai é mestre de obras... Durante a ditadura ainda. - Olha teve lugar que morei 6 meses por causa do trabalho do meu pai. - Então a gente mudava muito. Se você ver meu currículo escolar você vai ver que são 6 meses numa escola e 6 meses em outra. Era uma vida de cigana. Eu fui morar em casa de alvenaria em Minas Gerais com 8 anos, em casa de tijolo, antes só morava em casa de madeira. - Sobre a minha família, são poucos, somos em 3 irmãos e meus pais. Não moramos perto de tios nenhum, minha família mais próxima é aqui em Juiz de Fora, sempre fomos muito sozinhos. Eu não tive essa oportunidade. Nós somos um núcleo muito fechadinho. Nossa família é muito pequena, então a gente fala que não pode brigar, porque se brigar... Somos só nós.

A professora fala com muito orgulho sobre a importância da profissão de seu pai na

construção de grandes obras pelo Brasil. E destaca que sua família é pequena e que deve estar

sempre unida, não podem brigar porque senão seria mais reduzida ainda. Podemos notar

elementos do regime diurno quando Ana fala da importância da profissão de seu pai para o

país na época da ditadura, que sempre mudava de cidade por causa das obras.

Podemos em suas narrativas a repetição sobre a trajetória de seus antepassados negros

que vieram do continente africano. Após nos contar essa história, num outro dia ela durante

nossas observações, ela contou para duas turmas que ministra a disciplina História a mesma

história.

- Minha bisavó era de Guiné Bissau. Sua família era rica, porém a terra africana não era muito boa de plantar. Vieram para o Brasil com a esperança de se darem melhor. Todos falavam que a terra era boa de plantar aqui, que tudo que se plantava dava certo. Porém quando chegaram aqui foram separados e vendidos para serem feitos de escravos. A minha bisavó foi enviada para a Fazenda Cortes Real em Além Paraíba, Minas Gerais, foi marcada a ferro com o C de Cardoso. Seu nome era Cristina e nessa época a escravidão era legal. - Ela era privilegiada entre os outros escravos. Tinha a chave da Senzala. Há quem diga que tinha “algo” com o senhor da fazenda. - Se casou com um negro “retinto” (termo que se usava para o negro de pele bem escura, como se tivesse sido “tingido” duas vezes) assim como ela, teve filhos negros e outros mestiços de cabelo liso. Há quem diga que eram filhos do patrão. Patrão este que deu muitas terras a Cristina que ficou rica. Era inteligente e falava francês.

Ana disse ainda que sua avó, filha de Cristina se casou com um homem branco e

“sujou” a família, diziam o restante da família. Dessa forma a família atualmente é mestiça.

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Diferente da família da professora Teresa em que só o pai era negro entre os irmãos e

grande parte da família era branca, a família que a Professora Ana quer destacar se origina na

África, ao chegar ao Brasil eles são separados e feitos escravos, segundo nossa professora

narradora e anos depois a família negra não aprovou a atitude da avó da professora, que

“sujou” a família casando-se com um homem branco, porém antes a bisavó parecia ter tido

um relacionamento sexual com o senhor da fazenda (porém ninguém tinha certeza), pois

mesmo casada ela teve filhos que pareciam não ser do marido “retinto” dela.

A professora Ana nos conta a história de sua família africana utilizando símbolos do

regime diurno de imagens. Ela tem orgulho de seus antepassados africanos, que segundo ela

eram ricos no continente africano, tinham poder, porém foram enganados, roubados e

separados ao chegarem no Brasil. Destaca o papel de sua bisavó, que mesmo tendo sido

escravizada tinha a chave da senzala, representando a retomada do poder, era descreve a

bisavó muito inteligente, que falava francês, e contou em outro momento, que durante a

escravidão sua bisavó ganhou algumas terras e ficou rica novamente. Sua narrativa é heroica,

pois apresenta rapidamente o sofrimento, quando seus antepassados passaram por uma fase

ruim no período da escravidão, porém logo em seguida a sua bisavó,com suas características

de mulher guerreira, não se deixou vencer e usou suas armas para recuperar seu prestígio e

riqueza no Brasil.

É destacada a figura guerreira e heróica de sua avó, que veio para o Brasil jovem, foi

feita escrava, ganhou a confiança do fazendeiro que a havia comprado e se tornou guardiã da

chave da senzala; ganhou muitas terras desse fazendeiro se tornando rica, assim como era na

África. A professora nos relatou que faz questão de sempre contar a história de seus

antepassados, pois é motivo de ter orgulho para ela, orgulho de suas origens e isso que a

incentivava e continua a incentivá-la a trabalhar o continente africano e as africanidades em

suas aulas.

No caso de Teresa a aproximação com temas relacionados com as temáticas étnico-

raciais foi se constituindo aos poucos com receios e descobertas da sua condição e das

possibilidades que os alunos afrodescendentes podiam desenvolver.

Vida escolar e apoio familiar

A Professora Teresa quando relata seus momentos de formação destaca, que quando

era jovem, ela não tinha muitas expectativas de sair de sua cidade natal e fazer um curso

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superior, pois para as moças o curso normal já era considerado suficiente, porém foi

incentivada por sua irmã mais velha que era empregada doméstica e que não queria o mesmo

destino para a irmã.

- Na família fui a primeira a estudar, fui aluna de escola pública onde fiz contabilidade e depois magistério, pois não tinha nenhuma perspectiva em ir para frente (estudar em curso de nível superior). Fui à primeira da família a sair da cidade de Santos Dumont e vencer a ideia de que o curso normal já seria a formação satisfatória. - Minha irmã que foi empregada doméstica que me incentivava, e sempre comentava que eu não teria o mesmo destino. Uma mulher forte que tem muita importância no meu caminhar e na minha formação. - Em Juiz de Fora logo fui aprovada na universidade federal no curso de Matemática. Acabei mudando um quadro comum na minha cidade e, principalmente no ceio da minha família, ou seja, a de valorizar a educação como caminho de melhoria de vida.

Na fala acima, podemos observar o incentivo da irmã da professora que tem uma

atitude heróica presente no regime diurno de imagens. enquanto ela, que não tinha pretensões

de chegar ao curso superior, pois para sua família não era algo valoroso, seguiu em frente

graças ao incentivo de sua irmã, outra mulher guerreira, que utilizou de armas para que a irmã

não tivesse o mesmo destino que o seu, que se formasse e tivesse uma profissão, para não ser

uma empregada doméstica como ela.

Já a Professora Ana nos relatou sobre sua fase escolar, que era a única negra em uma

escola alemã do sul, que nunca sofreu preconceito e também que nunca estudou nada respeito

dos conteúdos étnico-raciais, ela diz que nunca estudou nada relacionada à sua raça e mesmo

passando por várias escolas, o trabalho com essas questões de africanidades se inicia em casa.

- A minha primeira escola no Sul era de irmãs alemãs, no meu primeiro ano só tinha eu de negra na escola, era no Rio Grande do Sul. Se aconteceu alguma coisa relacionada a racismo eu não me lembro. Eu devo ter apagado ou bloqueei, pois eu não me lembro. Já entrei alfabetizada na escola. Eu comecei a ler com 5 anos. Tinha uma mulher de um operário que era professora e que alfabetizava as crianças no acampamento. - E não tinha nada de africanidades na escola, nada relacionado à África, não havia nada da minha raça, nenhuma coisa foi citada em especial com relação a me destacar. Mas eu não me sentia diferente em momento nenhum.

Interessante que as duas professoras, em momentos que eram a minoria, convivendo

com pessoas brancas, no meio familiar como é o caso da educadora Teresa, e no meio escolar

como era o caso da professora Ana, elas nunca se sentiram discriminadas ou tratadas de forma

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diferente. Em suas falas afirmam nunca terem sofrido nenhum preconceito. Ou podemos jogar

como hipótese que haveria algo dificultando as duas de enxergarem o preconceito da

sociedade perante a situação de ambas como crianças e posteriormente mulheres negras na

sociedade brasileira, uma sociedade monorracial, extremamente eurocêntrica, preconceituosa

em relação à cultura dos povos que não são ocidentais, que desvalorizam as culturas baseadas

no subjetivo, abstrato, no imaginário, pois valorizam a razão e os pensamentos fundados na

mesma. Podemos observar a prevalência de símbolos do regime diurno nas narrativas de

ambas, que nos relatam histórias com familiares que se tornam personagens guerreiros, que

fazem de tudo para as protegerem e que influenciam muito as vitórias em suas histórias de

vida.

Militância e desafios docentes

Quando a conversa e observações das atitudes diárias se encaminham para o oficio

docente, se destaca na fala e nos fazeres da professora Teresa que o reconhecimento étnico-

racial e as diferenças encontradas em sala de aula ainda estão em um processo de

amadurecimento pessoal e profissional. Sua visão foi marcada pela ideia de homogeneização

da escola.

- Nunca me ative ou deparei com a preocupação com as diferenças, porque não me afetavam. Hoje percebo que posso pensar e reconhecer que por muito tempo via a sala de aula como um espaço da igualdade e da afetividade. - Tenho aos poucos me aproximado das demandas das mulheres, negros e pessoas que necessitam de condições especiais na educação. Fui descobrindo que minha condição de mulher e negra era muito complicada na sociedade brasileira. - Não me sentia uma pessoa negra, mesmo sendo no tom de pele não me reconhecia. Ninguém havia me alertado da minha condição.

Dentre as muitas conversas com a professora Teresa um acontecimento que ocorreu na

escola sempre retornava sua fala, que seria a mudança do perfil dos alunos da instituição que

aconteceu com a chegada de novos alunos de uma escola que havia fechado turmas de uma

comunidade próxima da escola. Logo percebi a importância das mudanças tinham afetado sua

vida, dentre as muitas anotações no diário de campo a entrada dos novos meninos e meninas

levavam o temor de enfrentar algo novo, desafios que pudessem tirar todos de uma zona de

conforto.

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- A escola tinha como alunos somente meninos e meninas do bairro. Era uma escola de brancos com poucos negros, pois a comunidade era de classe média. - Havia muito poucos negros, a escola era de brancos de uma classe média e era muito respeitada por toda a rede5 quando a aferição dos índices de qualidade. E a comunidade abraçava mais a escola. Tínhamos pais e responsáveis sempre presentes. - Fui a primeira a ser afetada por ser na época diretora da escola. Tive assim, que conversar com todos os envolvidos (secretaria de educação, pais das duas escolas e com os funcionários da escola). Todo tempo a secretaria de educação afirmava que auxiliaria em todos os desafios, porém nunca se apresentou para nada. Ficamos sós6 para resolver todos os problemas e vencer os obstáculos. - Teríamos que repensar a escola! Algo que assustava muito. Muitos pais também foram questionar a chegada dos novos alunos. - Eram crianças e jovens muito diferentes e em sua maioria mestiços e negros que tinham problemas sociais graves.

Os receios que a professora e outros membros do corpo escolar tiveram com a chegada

dos novos alunos, que segundo eles fugiam ao modelo que por um tempo a escola seguia,

podem ser compreendidos como uma aflição de todos ao se depararem com a necessidade de

mudança na forma de ensinar, antes baseada em uma pedagogia curricular oficial, que afastam

da escola os sonhos e se alicerçam na utopia da igualdade. Que impede a emergência de um

“homem novo” que se baseia no imaginário racional educacional, um homem que possa

recuperar uma dimensão simbólica e imaginante.

No caso de Teresa as imagens que se apresentam em suas falas relacionadas com as

mudanças que ocorreram na escola podem se ligar a sua história de vida que foi marcada pela

ausência de questões étnico-raciais. Os novos alunos em sua maioria negros assustam a

retiram de um modelo de vida. As mudanças que causavam estranheza e temores

evidenciaram que a escola tinha em sua cultura patente um modelo instituído em um regime

diurno com estrutura heróica, que tem a ordem estabelecida como um bem e caminho para o

sucesso.

Nos caminhos que nos levavam as conversas, logo pensamos que o texto se

encaminharia para um lado fatalista e negativo sobre a presença das crianças afrodescendentes

na escola. Porém, com novas conversas fomos percebendo que o olhar da professora era

carregado de interesses pelo desenvolvimento de uma educação para as relações étnico-

5 Rede Municipal de ensino da cidade de Juiz de Fora. 6 No caso o termo sós demonstra que os funcionários da escola ficaram sem apoio oficial.

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raciais. Voltando a fala sobre a escola ter “enegrecido”, questionamos a essa professora sobre

o que mais a assustou com os novos alunos? O que assustou os membros do corpo escolar?

- A maneira como foram chegando à escola, carregados com problemas que quase nunca tínhamos visto. Problemas que assustavam, porque não tínhamos sido preparados para a realidade que se apresentava. - Hoje enxergando e revendo as perspectivas na época, logo percebo que estávamos recebendo na verdade a chance de sermos novos professores. - Percebo que tivemos que mudar nossa forma de educar, isso é positivo. Estávamos em uma zona de conforto que foi rompida com a chegada dos novos alunos.

Já a Professora Ana, apesar de nos afirmar que nunca se sentiu discriminada por

familiares ou nas escolas pelas quais passou, nos relata que sua mãe foi fundamental no

sentido de apoiar seus estudos, pois na família já haviam muitas empregadas domésticas e a

mãe não queria que a filha fosse mais uma e que ao mesmo tempo lhe falava sobre sua

condição de mulher negra, como veremos na fala abaixo e a professora afirma que aí começa

as suas africanidades e a sua militância.

Perguntamos se a professora havia visto o conteúdo para valorização da Cultura

Africana e Afro-brasileira em sua graduação e quando ela começou a perceber a importância

de se trabalhar os conteúdos étnico-raciais na sala de escola. Ela disse não ter visto em sua

formação e que suas africanidades começam em casa, antes de ir para aula, quando sua mãe

diz:

- Minha filha, você nunca vai ser considerada a primeira porque você é negra, mas a última também você não vai ser. Ela falava para mim que ser preto não era defeito, defeito era ser burro, não era nem ser ignorante não, ela dizia ser burro - Ela falava muito essa frase, essa frase não sai da minha cabeça. Nessa época tinha uns 8 a 10 anos. Foi nessa época que começou a contar história de família, da sua avó, ela começou a trabalhar isso na minha cabeça para eu ter orgulho. Valorização. - Ela dizia “eu sou analfabeta, mas você não vai ser”. E não me ensinou nada. Eu casei sem saber lavar uma panela, sem saber fazer uma comida. “Você não vai fazer nada que lembre serviço doméstico, para você não se acostumar e virar emprega doméstica. Você não vai ser empregada doméstica, não quero que você nem lave e nem passe”. - Minha mãe dizia que minha família já tinha 09 empregadas domésticas e que não queria mais uma. Aí começou a “minha africanidade”, não foi na escola.

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O trabalho da valorização se iniciou em casa, através do discurso da mãe, baseado em

um imaginário coletivo de luta contra o emprego doméstico, muito comum aos familiares

negros da família que não estudaram, de servir aos outros, fazer o trabalho pesado e

semelhante ao das mulheres escravizadas no período escravocrata. Na conversa é percebida

uma fala de resistência familiar, de luta contra um destino comum na família, ou seja, o

emprego de empregada doméstica. Podemos mais uma vez ver elementos de combate, de

defesa, pertencentes ao regime diurno de imagens.

Também nessa fala, assim como na primeira, podemos notar a ideia de profundidade

do regime noturno de imagens que remetem aos símbolos místicos e antifrásicos femininos de

proteção, acolhimento, intimidade em que a mãe quer preparar a filha para a sociedade em

relação a sua condição de mulher negra que se destaca profissionalmente e que mudará o ciclo

de sua família, em que a maioria das mulheres são empregadas domésticas, e não tem o

devido prestígio profissional.

Nas narrativas das duas professoras, aparecem mulheres, mãe e irmã, familiares

próximas de nossas professoras pesquisadas que ao mesmo tempo se mostram primordiais,

alimentadoras e protetoras, símbolo da mãe, do regime noturno (DURAND, 2012) e também

incentivam para que estudem e tenham uma profissão, mostram armas para que as professoras

possam lutar e vencer os desafios que surgirão em suas vidas.

Percebemos a militância da Professora Ana em algumas atitudes em sala de aula,

relataremos duas situações como exemplo. A primeira quando a professora é questionada

sobre trabalhar questões da Cultura Africana e Afro-brasileira com uma turma.

- Vamos falar desse assunto até o final do ano?(aluno negro). - Vamos sim! (professora). - Nossa, professora, esse assunto enjoa! (aluno).

E também ao tratar de assuntos que envolvem questões de religiosidades. Certa aula, a

professora deu iniciou com a história dos protetores das crianças na Turquia, que eram

católicos e médicos, Cosme e Damião. E que quando houve a perseguição aos cristãos eles

fugiram e nessa época, com a ajuda de Jesus, ajudavam as crianças e faziam até milagres,

contou a história para exemplificar que hoje podemos escolher a nossa religião e que antes

não se podia, por isso eles foram perseguidos. Após esse relato:

- Meu pai não deixa eu comer Cosme e Damião! (exclamou um aluno negro)

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-Não estou mandando você comer e nem te oferecendo bala. Estou contando uma história (professora).

Percebe-se sua militância em situações como essa em que ela quer impor seu

posicionamento perante os alunos e não aproveita para argumentar e discutir questões com

eles, ouvir suas dúvidas, seus questionamentos. Novamente ela apresenta elementos do

regime diurno de imagens, baseado em sua razão, sua visão, a partir do momento que não

houve o que o outro tem a dizer e dialoga. Atualmente a professora trabalha a temática na

escola, porém sente o preconceito entre os demais profissionais por ignorarem a relevância do

temaa deixarem solitária nessa jornada. Acha a atitude dos demais professores de não

trabalhar a temática afro-brasileira, uma atitude muito preconceituosa.

- Bom, o ano passado eu comecei a dar aula sobre esse tema. Muitas pessoas acham que é projeto, algo opcional de se trabalhar, mas é aula, conteúdo, faz parte do currículo. Isso não é projeto. - Fico até meio entristecida disso. Fico entristecida de ter um peso de um projeto de África nas costas só por eu ser negra. Fica muito pesado. As pessoas ficam esperando as crianças chegarem até o 5º ano para a Professora Ana, que é negra, trabalhar africanidades. Eu acho isso muito preconceituoso.

O que impede que as outras professoras negras e as brancas dessas escolas trabalhem

com a valorização das relações étnico-raciais no cotidiano escolar e em todas as séries? Há

uma lei instituída e que deve ser cumprida em todos os estabelecimentos escolares. Porém há

valores instituintes por trás das culturas escolares, antigos, presentes no cotidiano e que

desvalorizam as culturas diferentes da cultura Ocidental instituída e impedem que aconteça o

trabalho de valorização de outras culturas, como a africana, por exemplo, baseada em valores

diferenciados do Ocidente, em outros tipos de fundamentos, outras inteligências, uma cultura

próxima à natureza, aconteça. A nossa cultura, ocidental e etnocêntrica, valoriza o racional,

uma cultura única, a homogeneidade, uma lógica binária e quer o tempo todo separar racional

e imaginário, sendo que ambos não se separam, o ser humano é constituído pelo imaginário e

esse o influencia o tempo todo. Porém devido a esses valores etnocêntricos instituídos, há

uma dificuldade de valorização de outras culturas, outras formas de pensar, de representar, de

ver o mundo, aponto que as teorias brinquem por nossa sociedade, respeitando uma o espaço

da outra e que seja permitido o convívio de todos os conhecimentos em harmonia.

Considerações Finais

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Para a pedagogia se abastecer de um pluralismo epistemológico ela deve acatar em seu

espaço a dimensão simbólica que compreende um conjunto de concepções diversas do

homem realizando o encontro entre a razão e a imaginação. Sendo assim, deve ocorrer uma

reelaboração simbólica dos novos discursos pedagógicos, ou melhor, como Noguera (2012, p.

62) comenta, “denegrir como possibilidade de encontrar sentidos relevantes para uma

educação pluriversal”, o termo denegrir aqui é entendido como possibilidade de regenerar

redes de relacionamentos com as diversidades, elevando a possibilidade de acolher o sol e

viver o mundo dos sonhos (ibidem, p. 67).

Em termos das relações étnico-raciais, denegrir é se aproximar de um exercício

intercultural e no caso da educação é trazer a pluriversalidade para o universo escolar

revitalizando as “perspectivas esquecidas, problematizando os cânones, refazendo e

ampliando currículos, repensando os exames e as tramas para enquadramento” (ibidem,

pp.69-71) permitindo o encontro da razão com o sensível.

A história de vida dessas professoras, suas famílias e experiências que tiveram

influência direta na construção de suas identidades como pessoas e professoras negras e

consequentemente em suas práticas pedagógicas cotidianas em suas salas de aulas, se cruzam

a partir do momento que resolver ensinar de forma diferente da forma tradicional,

considerando os valores renegados pela educação Ocidental. A escola não ocupou um lugar

muito positivo em suas trajetórias estudantis, marcando assim suas preocupações, como

professoras, no trato das relações raciais na educação, apresentando-se mais como uma tarefa

de militantes que simpatizam com a causa e que ao longo dos anos tem muitas informações

que não deixam de fazer parte de sua formação continuada em busca do conhecimento

cotidiano. Não coube a nós indicar quais devem ser as políticas a serem implementadas

durante as aulas, mas compreender as experiências das professoras, reconhecendo que suas

identidades estão intimamente relacionadas com as suas vivências enquanto pessoas e

professoras negras.

Percebe-se, que a contribuição da Antropologia do Imaginário de Gilbert Durand

adaptada ao campo educacional, nos permite buscar a análise e compreensão das falas dessas

professoras, compreendendo os mitos presentes em suas narrativas e que irão influenciar suas

práticas pedagógicas em sala de aula.

Durante as muitas conversas e observações do dia a dia da professora Teresa, percebe-

se que quando questionada em relação às questões étnico-raciais ela ainda passa por um

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processo de construção que pode ser compreendido como uma reconstrução da sua identidade

de mulher e educadora negra.

Em relação à professora Ana, percebemos uma identidade negra bem constituída. É

evidente a característica da oralidade na professora, que segundo ela herdou de sua mãe e que

foi sendo repassada de geração a geração. Ela afirma que se utiliza dessa oralidade com seus

filhos e em sala de aula. Essa característica foi fundamental para formação de sua identidade

como mulher negra e professora, que contribuirá na formação das identidades dos seus alunos.

A educação baseada no paradigma Ocidental, na homogeneidade, não atende as

necessidades da educação. Estamos fracassando. É necessário dar aos alunos acesso aos

conhecimentos. Isso é muito importante, e para tanto, novas perspectivas são válidas. É

preciso abastecer as possibilidades de uma dialógica, de um território que tornou possível o

conflito nos domínios das ideias (NORONHA ALVES, 2008, p. 48) e estar aberto à

conciliação de razão imaginante e uma imaginação racionalizante que permita que os

indivíduos satisfizessem os dois polos de sua constituição, ou seja, o da razão e o da

imaginação (ARAÚJO, 2010, p. 681).

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O imaginário sob a perspectiva ecológica da linguagem

The imaginary in the ecological perspective of language

L'imaginaire dans la perspective écologique du langue

Genis Frederico SCHMALTZ NETO1 Universidade de Brasília, Brasília, Brasil

Resumo Este artigo discute o possível diálogo teórico-metodológico entre a antropologia do imaginário cunhada por Gilbert Durand e a Linguística Ecossistêmica, ecolinguística praticada no Brasil, de Hildo do Couto. Diferente da postura que parte da categoria ecolinguística ‘meio-ambiente mental’ para determinar a existência do imaginário estabelecida por Elza do Couto (2013), o que se defende é o movimento que parte das estruturas míticas para se compreender a necessidade do Homem de se pertencer a um ‘meio ambiente’ social para então perpassar o meio ambiente mental. Essa perspectiva culmina na existência de um “ecossistema mítico” ou meio ambiente mítico cuja aplicabilidade se dá na análise da comunidade religiosa sincrética intitulada Vale do Amanhecer, sediada em Brasília, conhecida por sua mitologia diversificada. Palavras-chave: ecolinguística; ecossistema mítico; Vale do Amanhecer

Abstract This article discusses the possible theoretical-methodological dialogue between anthropology of the imaginary coined by Gilbert Durand and linguistics ecosystemics, Ecolinguistics practiced in Brazil, of Hildo do Couto. Unlike the posture established by Elza do Couto (2013) who chose the Ecolinguistics category 'mental environment' to determine the imaginary existence, I advocate the movement of the mythic structures to understand the need for man to belong to an 'environment' social and then pervade the mental environment. This perspective culminates in the "mythical ecosystem" or mythical environment whose applicability is given in the analysis of syncretic religious community called Valley of Dawn, based in Brasilia, known for its diverse mythology. Key words: ecolinguistics; mythical ecosystem; Dawn Valley

1. Sobre perspectiva, ecologia e imaginário

Desde o lançamento de Ecolinguística e imaginário, em 2012, pela linguista Elza do

Couto, o núcleo de estudos do eixo Goiânia-Brasília por ela coordenado – e que já fora

responsabilidade de M. T. Strôngoli – se esforça para fecundar uma metodologia que una as

duas teorias encabeçadas pelo título de sua publicação. O objetivo explícito é permear o 1 [email protected]

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núcleo duro de Saussure com uma análise elucidativa do Homem em suas diversas interações,

apoiando-se, para isso, nos postulados da imagem. Trata-se de uma tentativa que reforça o

“politeísmo de valores, um policulturalismo, um período do real plural”, já desvelado por M.

Maffesoli (2002:13) e a que hoje nomeamos pós-modernidade. Ora, que haveria de mais pós-

moderno do que deixar teorias que alçaram seu ápice pelas discussões ambientalistas se

enlaçarem em estatísticas e relatórios quantitativos da produção de sentido do Homem? Quão

pertinente não seria adicionar o prefixo –eco a quaisquer reflexões traçadas nos últimos

estudos que carregam o título de humanidades?

A necessidade de se refletir a respeito do território físico onde nos encontramos se

torna emergente a partir do instante em que a mentalidade antropocêntrica começa a se

desvairar e as narrativas do homo passam a retratar a catastrófica consequência da existência

do sapiens em um cenário não estável (Deval; Sessions 2004:20). Não há referência, aqui, às

atualizações dos mitos do eterno retorno ou do Éden, mas ao desarraigamento dos portões do

palácio de Dionísio – cujas festas se tornaram restritas e chatas – para uma intensa e

diversificada devoção em seu quintal a Pã.

O território simbólico, ora esgotado pelos esvaziamentos ora afortunado pelos poetas

das tecnologias do imaginário, começa a se encher de narrativas mais tendenciosas à

essenciar-se aos arquétipos da Grande Mãe que às imposições do Pai. É a consolidação da

hipótese Gaia, de Lovelock: somos partículas, não a matéria. É preferível se enfadar do

túmulo-berço para sentir que nos integramos a uma estrutura fora de nosso controle que se

assumir mentor ou dominante de um sistema conhecido à medida que se o rompe.

É dessa forma que Pã, o deus dos bosques e florestas cujo nome quer dizer tudo

(Bulfinch, 2006:167), personifica a nova era da natureza sob e sobre o homem, a integração

sobreposta à dualidade e a escolha do redobramento em vez da espada empunhada pelo braço

guerreiro que simplifica as superfícies. Muda-se da parte para o todo, da estrutura para o

processo, da objetividade para a epistemis, da construção para rede (Capra 1991:12). Em

síntese: o cientificismo da segunda década deste século está propenso à metodologia noturna

sintética, mas a ele não se restringe.

Esses (re)direcionamentos possibilitam a união eficaz de uma teoria ecológica à

antropologia do sensível aos modos de uma pós-modernidade, já que o estudo conjunto “da

natureza e do imaginário, do universo e do homem, seria a maneira mais direta para se

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introduzir um diálogo que permita uma melhor atuação frente aos diferentes desafios de

nossa época” (Pitta, 2006:10). É o pensamento pós-científico:

Pensador pré-científico é aquele que toca dois objetos e declara ‘isto é frio’ sobre um e ‘isto está pelando’ sobre o outro. Pensador científico é aquele que inventa o termômetro – na escala Farhrenheit, na Réaumur ou na Celsius – e começa a medir a temperatura das coisas. Um pensador pós-científico, ao contrário, é aquele que tem dezenas de diversos termômetros e os usa profusamente, mas, ao mesmo tempo indaga sobre a origem do ‘calor’ no Universo e liga essa questão intergaláctica a dúvida sistemática sobre a habilidade da consciência humana em geral de ser objetiva, devido ao reconhecimento heisenbergiano de que observações interferem na natureza da maioria dos objetos observados. (Makkai, 2015:23).

Essa necessidade de uma multivisão proveio dos estudos de Albert Einstein,

precedentes de Hendrik Lorentz, também conhecidos como a teoria de Relatividade – junto

aos avanços da mecânica quântica. Ambos consideram o “todo” maior que o conjunto das

partes que o compõem, ou seja, ele não pode ser montado e desmontado seguindo um padrão

de funcionamento, “mas compõe uma teia dinâmica de eventos inter-relacionados”,

fundamentada pela filosofia ou hipótese Bootstrap de Geoffrery Chew (Capra 1995: 41).

Dessa forma, nem as raízes arquetipais do imaginário podem ser suficientes para a

compreensão do Homem nem pequenas amostras da maneira como ele usa sua linguagem

podem ser suficientemente representativas de como ele interage e se torna ser. Resta, a nós, a

opção de caminhar em seus limiares. Para ecologia, muros não existem apesar do conceito

central ser o de ecossistema. Aliás, mesmo a palavra “centro” corre perigo quando usada

próxima aos domínios ecológicos. Apoiando-se em Clyne (1992), o centro de qualquer

investigação é determinado por quem o delimita.

Seguindo esse raciocínio, o ecossistema seria delimitado por aquele que escolhe

chamar de ecossistema determinada inter-reação entre um Povo que habita em um Território e

compartilha uma Língua (Couto 2007:90). Conhecida também por tríade ecolinguística ou

ecossistema integral da língua, trata-se de uma conexão importante para se compreender a

linguagem e a interação humana por uma perspectiva2 ecológica ou, como afirma seu Pai no

Brasil, ecossistêmica. Comunidades, biosferas, pessoas – a vida se torna ecossistema.

2Claro, o vocábulo perspectiva já revela que há diversas ecolinguísticas: a gravitacional de Calvet, a evolucionária de Mufwene, a pragmo-ecológica ou a dialética de Bang e Døør. O termo utilizado por Hildo do Couto e os ecolinguistas do imaginário, no entanto, fora inspirado no ensaio de Hans Strohner publicado no ano de 1996, intitulado ökosystemische Linguistik, linguística ecossistêmica.

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Para observá-lo, de qualquer maneira, o faz-se pela interação, seja a do organismo com

o Mundo ou do organismo com o Outro. O Homem comunica-se e significa seu entremeio

usando a linguagem que lhe é de alcance, manipulando e se deixando atravessar por estruturas

simbólicas, proxêmicas e mesmo sinestésicas, por experiências sensoriais. Para contemplar

esses movimentos de prática e produção interacional, a tríade se irrompe e revela três facetas

de observação da língua – não hierarquizadas, porém interconectadas, também chamadas de

meio ambiente mental, meio ambiente social e meio ambiente natural.

Às semelhanças de uma matryoska cujo tamanho não se reduz ou eleva, mas apenas

ecoa em medidas quando aberta a trava de madeira, esses meio ambientes reforçam que uma

visão ecológica não se trata apenas de olhar a totalidade, mas observar como ela está embutida

em valores maiores, evidenciar como a ciência deve ser vista como uma tentativa limitada de

se dizer o real (Capra, 1991:116). Portanto, ao tomar nota do aspecto social, dos processos

cognitivos ou do sistema estrutural inerente a uma língua, tem-se consciência que a

abordagem de qualquer um destes é restrita se considerada a rede de totalidades.

Povo M. A. natural

Língua Território M. A. mental M. A. social

Figuras 1 Representação da tríade ecolinguística e seus meio ambientes. A tradição de Couto faz uso do triângulo escaleno enquanto acredito ser pertinente optar pelo triângulo de Borromeu; se cada um dos constituintes for retirado, todos serão livres sem que se forme um par, porém todos se esfacelarão.

O que a ecologia linguística apresenta é uma mudança de perspectiva ou uma

percepção mais apurada do que se chama língua e sua relação com a ciência. Ela não se trata

de uma “coisa” (Couto, 2013) meramente mecanicizada pelos demônios do inconsciente e

esta, tampouco, apresenta multimetodologias suficientes para compreender como o Homem

estabelece laços sígnicos e míticos com o Outro e consigo mesmo. A língua materializa as

estruturas antropológicas do imaginário e capturar os traços míticos que por ela atravessam

deixam a impressão de compreendê-la plenamente. Somos tolos!

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2. A necessidade do ecossistema mítico

Para se posicionar nos postulados da linguística ecossistêmica, Nenoki do Couto – que

já fizera algo semelhante quando se dedicava à semiótica dentro do Instituto de Letras de sua

universidade para inserção do imaginário – parte da premissa de que “o imaginário pode e

deve ser incluído em um dos ecossistemas da língua” (2012:11, grifos meus). No entanto, não

problematiza o fato de que um dos pilares durandianos se trata do trajeto antropológico do

imaginário que, por si só, já inclui uma inter-relação com o biológico, o social e o

inconsciente às semelhanças da tríade ecolinguística.

Questões ainda surgem quando se considera abordar regimes de imagem considerando

apenas o meio ambiente social, por exemplo, o que afasta o meio ambiente mental, a quem

caberiam articulações sensoriais e memórias abstratas que se tornam ou podem se tornar

concretas quando viabilizadas pelo social. Não se escaparia das mesmas farpas de Durand

(2002:24) direcionadas a Sartre por este se ater às descrições do funcionamento da

imaginação e sua valorização para logo “coisifica-la” – o que prevalece é a impressão de que

a imagem passaria a ser bloco ecossistêmico e não essência ecossistêmica em si.

A linguista, no entanto, defende que “tudo está na mente do indivíduo [...] é o cérebro

que constitui o lócus dos processos mentais em que se inscreve o imaginário” (Nenoki do

Couto 2013:90). Apesar disso, emblematiza: “o centro do imaginário é o ecossistema mental

da língua, mas o social e o natural também desempenham um papel relevante em todo o

processo. O natural fornece suporte físico, natural. O social sanciona o que é produzido pelo

mental” (idem, 13). Suas afirmações nos colocam diante de um impasse: do que se trataria

uma visão ecológica do imaginário se a postura durandiana por si só já transparece uma

perspectiva ecológica?

Durand (2002:30), citando seu mentor, enfatiza que “a imaginação é dinamismo

organizador” e esse mesmo dinamismo “é fator de homogeneidade na representação”,

estabelecendo uma coerência simbólica dialética, i.e, os elementos estruturais do imaginário

apesar de não sequenciais portam a capacidade de se interligar na produção final do sentido

pretendido ou gerado pelo sermus mythicus, aos modos de uma rede simbólica. Ainda, o

antropólogo continua: “é na obra de arte, nos sistemas religiosos, no sistema filosófico, nas

instituições sociais que a consciência simbólica atinge o seu nível mais elevado de

funcionamento” (idem 1996:81).

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Dito isso, seria pertinente compreender que apreender o imaginário por meio do meio

ambiente social dentro da visão ecossistêmica seria alcançar o ápice da sua representação

materializada nos rituais e práticas interativas humanas ao passo em que, apesar de

possibilitar a apreensão das metodologias necessárias à análise, não representa o contato casto

com o imaginário. Aliás, mesmo se pensando no meio ambiente natural onde se encontra a

língua, a palavra e seus etecéteras, o mantra “mito é a palavra antes de ser escrito, mas aquém

da língua natural que o traduz” (ibidem, 83) sobressalta, deixando claro que da mesma forma

que no ecossistema, o imaginário não pode ter seus pares isolados se houver intenção de se

compreender o homo sapiens na inteireza da poeticidade bachelardiana.

Durand, ao disponibilizar o trajeto antropológico, afirma que seu funcionamento

“pluraliza e singulariza as ‘culturas’ sem esquecer a ‘natureza’ biológica do homem” (ibidem,

82). Interessante observar que, no entanto, seus blocos constituintes não costumam ser

dissecados de maneira metodológica, mas já assumem o status de obviedade ou essência

quando postos em análise. Se comparado, o psíquico equivaleria ao m.a. mental, enquanto o

biológico ao m. a. natural (a língua); as intimações do meio-social seriam equivalentes ao

m.a. social e o pulsional, por si só, representaria o imaginário na existência do ecossistema.

Psíquico

Biológico

Pulsional

Intimações do meio-social

Figuras 2. Representação do trajeto antropológico do imaginário. O uso circular representa o status de constante mudança e não-estagnação de cada um de seus constituintes.

O perigo nessa junção está em reler ambas as teorias como coincidentes equivalentes

entre si, e não perceber que seus aparatos viabilizam uma compreensão do sermus e do

mythicus na rede simbólica que interliga a materialização na linguagem e a costura arquetipal

de mitos, traços míticos e schèmes nas organizações sociais. O uso dessa junção de maneira

perspicaz nos faz entender, portanto, a necessidade de pensar em um ecossistema mítico,

meio ambiente mítico ou em um trajeto antropológico do imaginário que se apreende junto

ao recorte social, individual, mitodologicamente cultural, em suma, que leve em conta a

interação humana que provoca os símbolos e deles se resultam.

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Tal qual o ecossistema integral da língua é formado pelo povo, território e a língua em

si, o ecossistema mítico não é formado por um povo que compartilha mitos em um território

por meio de uma língua. Ao contrário, o meio ambiente mítico coexiste aos elementos

ecossistêmicos. Trata-se de uma quarta haste da tríade, porém traspassada, e não sobreposta.

Sua extensão polariza os demais elementos e reagrupa o comportamento das hastes.

Assim como no funcionamento original da engrenagem ecolinguística, o m.a. mítico

depende da língua para materialização em sua totalidade proxêmica e sinestésica. O discurso

que surge pela morfossintaxe se alinha ao Povo. Urge, por sua vez, o território simbólico: um

tipo de arena comportamental que pode se tornar em areia movediça ou em lago, adequando-

se ao coletivo conforme exista interação com o meio, o entorno e os demais dizeres que

sustentarão o mito vivenciado como extensão do mito próprio.

O território simbólico é, portanto, tridimensional, polidimensional, multidimensional.

Ora entrega as angústias de uma porcentagem do povo, ora revela um traço mítico que se só

se apreende diacronicamente. A maneira como as imagens se comportarão dependerá,

seguindo o princípio ecolinguístico, da posição em que o observador se encontra. É pelo meio

ambiente e através deles que as reflexões, análises e compreensões virão. Durand (2007:25)

explica que para se viver o mundo das imagens é preciso, humildemente, encher-se delas.

Na mesma linha, Couto (2013:291) exclama a necessidade de se abandonar a visão de

janelas para subir à cumeeira da casa científica. É dela que se avistará a imensidão e grandeza

da floresta. É dela que se perceberá a existência de outras árvores, e não apenas aquela cujo

galho incomoda ao bater espalhafatosamente no vidro enquanto se tenta enxergar a grandes

distâncias. É dela, também, que se perceberá tudo relacionado a tudo e nada absolutamente

isolado de nada. (idem, 2007:30).

3. Considerações finais ou o imaginário sob a perspectiva ecológica da linguagem

A observância da tendência de uma “ecologização do mundo” que se aplica agora à

linguística não é parte restrita do Imaginário tal qual a coerência simbólica inerente ao

Homem não depende de um meio-ambiente físico ou mental. As imagens do Povo atravessam

o trajeto antropológico do imaginário e o pulsional/psíquico está intrínseco à língua. No

território coexistem os elementos que cooperam para as intimações do meio social, e o

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triângulo ecossistêmico de Couto, assim como o percurso circular de Durand, unem-se

(Schmaltz, 2014:242).

Tal qual a física quântica defende a existência dos vários universos, pensar no

imaginário sob a perspectiva da ecologia linguística implica em romper com a tríade

concebida por Couto para uma polirrepresentação: perceber que as estruturas antropológicas

do imaginário coexistem, perpassam e emendam a relação já profícua entre os meio

ambientes. Surge, por isso, o ecossistema mítico – que não se prende ao ecossistema integral

da língua – mas dele precisa para se materializar nas análises e compreensões do homem

como todo.

Figura 3. Representação do ecossistema mítico e/ou meio ambiente mítico. A junção entre o trajeto antropológico e a tríade ecolinguística provoca uma multivisão ou uma abordagem ecológica.

Poderíamos tomar a comunidade religiosa sincrética Vale do Amanhecer, situada em

Brasília, a fim de verificar a usabilidade de seu funcionamento, por exemplo. A princípio,

caberia ressaltar que sua População crê-se operante de um terreno físico-ideológico-espiritual

onde astros, espíritos e homens partilham um dialogismo a modos cristãos, porém

perpassados por traços egípcios, africanos e indígenas, embalados em uma metodologia

espírita.

De certa forma, o construto religioso em si já evidencia que seu Território, apesar de

facilmente mapeado em kilômetros e divisas geográficas, dá indícios de uma delimitação

simbólica movediça. Sua configuração, portanto, atravessa as estruturas arquitetônicas dos

templos e se interliga ao continuum mítico. De acordo com os dizeres daqueles que compõem

o Povo sincrético, autointitulados jaguares e ninfas, a linguagem se materializa na escolha das

vestes, das molduras, dos cantos e das sandálias. Na sinestesia da interação com o espiritual,

os traços míticos se desenham ora patentes ora latentes.

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Por conseguinte, o meio ambiente social passa a expor o modo como o Povo do

Amanhecer se interliga e se deixa atravessar nos rituais diários de alimentação e apoio

metafísico. O meio ambiente mental, enquanto isso, executa a natural sistematização de

impulsos e pulsões da memória para o sistema nervoso central (e vice-versa), obedecendo ao

existir dos arquétipos e derramando suas possibilidades de interação por meio do meio

ambiente natural – permeado pelas metáforas e símbolos que surgem pela organização

geracional da língua. Bem se poderia afirmar, também, que em um possível meio ambiente

espiritual, a necessidade de pertencer se traduza pelos mitos e orientações da jornada do ser,

ao estilo campbeliano.

A descrição e análise de todos esses ambientes em sua riqueza, diversidade e

agrupamento de mitemas, ritos e rituais, configuraria a legitimidade de um ecossistema mítico

– uma visão linguisticamente ecológica da mitodologia durandiana. Ou, antropologicamente,

a imaginação revista pelas lentes ecológicas de Couto. Há muito para ser feito. Claro,

“embora respeite – por força do pluralismo – os caminhos que outros pesquisadores da nossa

disciplina trilharam, penso que me é permitido continuar insatisfeito”. Principalmente porque

propor meu objetivo, ao propor essas reflexões, “não é o de ensinar um método que todos

devem seguir... mas apenas fazer ver o modo como orientei o meu” (Durand 1996:120). Isso

se chama perspectiva.

REFERÊNCIAS CLYNE, Michael (org.). Pluricentric languages: Differing norms in different nations. Berlim/New York: Mouton de Gruyter. 1992. COUTO, Hildo Honório. O que vem a ser a ecolinguística, afinal? In: Cadernos de linguagem e sociedade. Brasília: Thesaurus, 2013. Vol 14 (1) ______. A língua não é uma coisa, é motraive. In: Meio ambiente e linguagem. Blog. Publicado em 23 de julho de 2013. meioambientelinguagem.blogspot.com ______. Ecolinguística: estudo das relações entre língua e meio ambiente. Brasília: Thesaurus, 2007. DEVALL, Bill; SESSIONS, George. Ecologia profunda: dar prioridade à natureza na nossa vida. Águas Santas: Sempre-em-pé, 2004. DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral. São Paulo: Martins Fontes, 2002. ______. Campos do imaginário. Lisboa: Instituto Piaget, 1996. MAFFESOLI, Michel. A parte do diabo: resumo da subversão pós-moderna. Rio de Janeiro, Record: 2004.

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MAKKAI, Adam. Porque *ecolinguística*. In: ECO-REBEL: revista brasileira de ecologia e linguagem. Ed1, Vl. 1.P. 2015. p. 19-29. NENOKI DO COUTO, Elza Kioko Nakayama. Ecolinguística e Imaginário. Brasília: Thesaurus, 2012. PITTA, Daniele Perin Rocha. As dimensões imaginárias da natureza. In:: Anais XIV Ciclo de estudos sobre o imaginário. UFPE. 2006. SCHMALTZ NETO, Genis Frederico. Por uma ecolinguística do imaginário: arco do Amanhecer como metáfora de linguagem, inter-relação e meio-ambiente. In: COUTO, Elza Kioko Nakayama Nenoki (org.). Antropologia do imaginário, ecolinguística e metáfora. Brasília: Thesaurus, 2014.

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Recortes poéticos da Amazônia Ribeirinha: narrativas de quintais em Paquetá

Poetic focuses of the Riverside Amazon: backyard narratives in Paquetá

Découpages poétiques de l'Amazonie riveraine : récits d’arrière-cour à Paquetá

Silvia SILVA1 Cainã MELLO²

IFPA, Belém, Brasil Resumo O texto discorre acerca da pesquisa realizada nos arredores da ilha de Paquetá - região do Baixo Tocantins, com objetivo de narrar e desvelar saberes culturais daquele lugar, no que tange à tradições ancestrais dos ribeirinhos, suas narrativas orais, e, sobretudo, a forma de comunicar sua cultura. O trajeto antropológico destas comunidades é pontuado pela incessante troca simbólica entre os bens culturais imateriais, que se refletem nas produções sociais daquela população e as interferências do meio. Neste texto apresentam-se três recortes poéticos: a paisagem de paradisíaco silêncio atemporal; as cenas da festa do carnaval dos mascarados e as narrativas mitopoéticas, nas quais o modo de pensar o espaço se revela como determinante da organização social e de saberes compartilhados. Palavras-chave: Amazônia Ribeirinha; Trajeto Antropológico; Narrativas Orais; Baixo Tocantins. Abstract This work presents a research accomplished in the surroundings of the Paquetá Island - region of Baixo Tocantins, with the intend of narrating and unveiling the cultural knowledges of the place, the ancestral traditions of the riverine, their oral narratives and the form they express their culture. The anthropologic route of these communities is marked by intense symbolic exchange between the immaterial culture goods, which are reflected on the social productions of that population, and the interferences of the environment. Three poetic focuses were studied: the landscape of a timeless paradisiac silence; the scenes of the masked ones’ carnival, and the mythopoetic narratives, in which the way of thinking the environment reveals itself as determinant for social organization and shared of wisdoms. Keywords: Riverine Amazonia; Anthropologic Route; Oral Narratives; Baixo Tocantins.

1 [email protected] ² [email protected]

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Narrar uma história é desde sempre a capacidade de compactuar com outro uma

experiência, seja ela recolhida de um acontecimento vivido ou de um acontecimento

imaginado, ou mesmo sonhado. Narrar partilhando experiências de grupos é, no fim das

contas, o papel do pesquisador que se utiliza de metodologias etnográficas. Imbuídos desta

certeza é que o grupo de cinco pesquisadores, entre os quais uma professora e quatro

estudantes do curso de Licenciatura em Letras do Instituto Federal do Pará - IFPA, bolsistas

do Programa de Iniciação à Docência – PIBID, empreendeu seu caminho de descobertas e

exploração das águas amazônicas, nos arredores da ilha de Paquetá, região das ilhas do Baixo

Tocantins, com objetivo de narrar e desvelar saberes culturais daquele lugar, no que tange à

tradições ancestrais dos ribeirinhos, suas narrativas orais, e, sobretudo, a forma de comunicar

sua cultura.

A região das ilhas do Baixo Tocantins compreende a diversidade de pequenos

territórios insulares pertencentes em sua maioria ao município de Limoeiro do Ajuru/PA,

banhado pelo rio Tocantins e lugar de povos ribeirinhos, assim chamados em função da

relação direta entre o rio e aqueles que dele vivem, tanto por ser seu principal meio de

transporte, quanto por ser sua principal fonte de sustento e palco de uma realidade pulsante

em que a natureza e o imaginário simbólico se entrelaçam na construção dos saberes

coletivos. As impressões causadas ao visitante pela riqueza desse território geográfico e seu

imaginário é apresentada pela pesquisadora Sabrina Arrais como uma experiência estética:

“As imagens que se criam ao deslizar pelos rios da região, na tentativa de adentrar os espaços

remotos e inexplorados desse lugar, são imagens que reportam ao início de algo ainda

desconhecido, mirífico, e de incertezas, mas de beleza singular” (ARRAIS, 2015, p. 29-30).

Localizada acerca de 110 km da capital, o complexo de ilhas das proximidades de

Limoeiro do Ajuru pertencem ao 4º distrito de Janua-Coeli, situam-se entre Limoeiro do

Ajuru e Cametá, no leito do rio Tocantins. Possuem uma economia baseada na pesca,

especialmente em malhadeiras e agricultura, com plantações de açaí, castanha-do-pará entre

outros frutos e especiarias regionais.

Paquetá é uma ilha extensa, não possui praia mesmo com a maré seca. Aqueles que se

aventuram caminhar pela lama correm o risco de ser ferrados por arraias. Não há ruas, As

casas distantes umas das outras têm suas frentes voltadas para o rio, o acesso entre elas é dado

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por pontes improvisadas no interior da ilha, as pontes são necessárias pois a medida que a

maré enche o quintal das casas é alagado. A parte da ilha que possui terra firme é utilizada

pela família para plantação de mudas de açaí para ser revendido. As casas são de palafita,

possuem energia elétrica, mas não há saneamento e nem coleta seletiva de lixo. A ilha possui

uma escola municipal como referência para outras ilhas próximas, lá também funciona o

centro comunitário de Paquetá.

O rio Tocantins é o segundo maior rio totalmente brasileiro, ele faz parte do complexo

sistema de rios que compõe a Bacia amazônica. Nasce em Goiás e deságua no Atlântico, mas

não se pode falar em sua morte, pois desde o momento em que sua nascente se forma até o

derradeiro instante em que suas águas se misturam ao Atlântico há muita vitalidade no seu

percurso. No trecho do baixo Tocantins ele corre entre as ilhas, transformando-se em

“estradas líquidas” por onde transitam as populações da região, atuando como facilitador dos

processos de sociabilidade local, “dele dependem a vida, a morte, a fertilidade e a carência, a

formação e a destruição de terras, a inundação e a seca, a circulação humana e de bens

culturais e de bens simbólicos, a política e a economia. O rio está em tudo”. (LOUREIRO,

2002, p.125)

O rio como extensão da própria vida do homem é a vocação do Tocantins. Esse rio

passeia entre as ilhas e cria uma rede local entre suas águas, não se trata de um Tocantins e

sim de vários, para além da ilha outro rio que muda de nome, passando a se chamar ora de

Jutuba, ora de Paruru, mas que se trata do mesmo Tocantins. Águas barrentas que correm

incessantemente, levam em seu fluxo tudo o que cai nele, faz viajar, da folha seca à semente

que por descuido o pássaro deixa cair. Ao rio na fluidez dialoga o cotidiano e o mágico.

Entremeia o verde refletido em seu espelho d’água, refletem os raios solares que douram

criando tons esmeraldas luzes indecifráveis incididas na obscuridade dos recantos de líquidos

profundos, só os mururés que imergem e emergem podem sabê-lo descrever. É via sensível

onde os paus fincados alertam seus navegantes sobre os bancos de areia. É lazer, pois nesses

bancos de maré seca brincam os passarinhos e as crianças que improvisam jogos de peladas

nos bancos que se formam.

O litoral de Limoeiro poderia ter saído de uma tela: comunidades de pescadores,

palafitas de mãos dadas com suas madeiras cansadas, seguem dando aos poucos espaços a

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prédios comerciais: peixarias, restaurantes, bares e o porto da cidade extremamente

movimentado. O percurso de viagem da capital Belém até Limoeiro do Ajuru por via fluvial,

dura entre cinco e seis horas e nele pode-se contemplar no entorno a paisagem de matas,

pequenas casas distantes umas das outras, cidades costeiras, encontros de águas de rios,

enseadas, a reentrância para o grande mar. Para chegar de Limoeiro à ilha de Paquetá o

transporte é a lancha movida a motor que atinge uma grande velocidade como se levantasse

voo nas águas, dai sua denominação local de voadeira.

Na chegada à ilha de Paquetá os pesquisadores se depararam com um novo desafio:

qual a conduta metodológica a seguir diante de tal diversidade cultural que ali se apresentava?

Na intenção de dar voz aos povos ribeirinhos, a opção pelo diálogo entre o pesquisador e o

sujeito da pesquisa como forma de mediar o processo foi a opção adotada pelo grupo. A

pesquisadora Vanderlice Santos explica como se deu esse diálogo: “Neste construto os

narradores são tomados como tecelões que tecem seus textos com os fios da voz” (SANTOS,

2015, p. 13). Ela esclarece que a técnica de entrevistas de livre narrativa centrada nas

narrativas orais permite ao narrador expressar-se sem o estabelecimento prévio de tempo,

deixando fluir a narrativa a medida que se propicia uma atmosfera de confiança.

Durante a realização das entrevistas foi seguido o seguinte procedimento: as conversas

iniciaram de modo informal, inclusive com o gravador desligado, pois o momento do

primeiro contato é quando o laço de maior intimidade com aquele que confessa suas

memórias – ora aquecidas pelo entusiasmo, ora esfriadas pelo tormento que assola as

experiências – é estabelecido. Outros narradores são indicados pelos próprios sujeitos da

região, que atestam a competência (em seu sentido memorial) ou desenvoltura (performance)

dos nomes citados, reconhecendo neles guardiões dos saberes da região. Em seguida, uma vez

estabelecida a confiança mútua entre as partes do diálogo, os pesquisadores solicitam com

gentileza a autorização para o registro das histórias narradas.

A experiência de narrar implica em um mergulho no imaginário das culturas daquele

que narra e daquele que ouve, “o narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria

experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus

ouvintes” (BENJAMIN, 1994, p.201). Contar histórias para acender memórias, a memória

que, como afirma Certeau (1996), não é um relicário onde se guardam lembranças esquecidas,

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mas maresia provocada pelos movimentos de embarcações cortando as águas do rio −“as

voadeiras”, como são chamadas no Baixo Tocantins − a caminho de seus destinos.

O trajeto antropológico desta cultura é pontuado pela incessante troca simbólica entre

os bens culturais imateriais, que se refletem nas produções sociais daquela população, e as

interferências do meio. O estranhamento assevera-se pela harmonia entre Homem e Natureza,

manifestada na engenhosidade da arquitetura de palafitas com suas pontes e trapiches, na

condição de um estilo de vida cujo relógio é acertado pela enchente e vazante da maré e nas

narrativas que contam histórias nas quais o fantástico povoa o universo mitopoético como

elemento recorrente e indissociável da vida cotidiana da região. Nesse sentido, o imaginário

figura como organizador do mundo sensível a partir das experiências sensoriais e apresenta-se

plurificado, contrastando à perspectiva racionalista do mundo, partilhamento que sugere a

sobrevivência da “aura benjaminiana”, como aparição única nas reproduções artístico

culturais assentados na ritualística, que como experiência do vivido não pode ser plenamente

compreendida fora de seu contexto.

Os saberes e as experiências da população do Baixo Tocantins fragmentam-se com o

passar do tempo, sem, contudo, perder sua essência, pois “A consciência imaginante do

homem diante dessa realidade vive em estado permanentemente operatório. A relação entre o

homem e a natureza se faz de modo familiar e, ao mesmo tempo, perpassada de

estranhamento” (LOUREIRO, 2000, p.91). A voz poética, entretanto, ecoa nas memórias,

guardadas em quintais, espaços que, como na casa de Bachelard (2008), são metaforicamente

delineados na memória social como depositórios de imagens compartilhadas. As narrativas

que surgem dos quintais da memória vão e voltam no tempo, são como anexos ao fundo das

casas, nos quais para chegar é preciso sair para o exterior.

Nos quintais de Paquetá a narrativa mais intrigante para o grupo de pesquisadores foi a

imagem do Meuã. A palavra possui uma amplitude semântica, não há uma definição precisa

do que de fato é o Meuã, alguns a descrevem como um encantamento provocado

involuntariamente pelo homem, outros como um infortúnio decorrente da obsessão.

Vanderlice assim o interpreta: “O meuã é um elemento comum a todos os encantados, mas

este não é possível de se perceber, até que seja provocado, ou seja, o meuã de um encantado

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pode nunca ser revelado. É uma metamorfose, não de forma, e sim comportamental”

(SANTOS, 2015, p. 39).

A compreensão sobre a manifestação do Meuã difere-se das encatarias, não é ente nem

ambiente, atua no real como força cósmica, de um lado o mundo sensível e suas

transfigurações da realidade por meio do imaginário, do outro um etéreo que se move entre o

sensível e o simbólico. Permanece em um estado de liminaridade até que seja acionado, seja

na experiência, seja na vivência. Assim, esse estado distinto que não descreve a

personificação da encantaria, em sua manifestação é descrita pelos moradores de Paquetá

como um Meuã.

Outras imagens simbólicas e formas poéticas foram identificadas no decorrer da

pesquisa em Paquetá. O grupo de pesquisadores organizou os elementos das narrativas orais

colhidas em recortes poéticos. Esse modo de referenciar o imaginário da ilha não se constitui

em uma espécie de quebra cabeça para o entendimento do todo, mas em aproximação de um

determinado fenômeno a partir das impressões do pesquisador. Como resultado destes

recortes três monografias de conclusão de curso foram escritas pelos estudantes que

participaram da pesquisa. Parte destes trabalhos contribuiu para as reflexões que ora se

apresentam.

Entre os recortes poéticos aqui apresentados estão: a paisagem de um paradisíaco

silêncio atemporal, cujas formas estéticas cegam os olhos do contemplador habituado à

verticalidade e ao colorido assimétrico dos edifícios da vida urbana; as cenas de rua, com

ênfase na festa do carnaval das mascaradas, e as narrativas mitopoéticas, nas quais o modo de

pensar o espaço se revela como determinante da organização social e dos saberes.

Na região do Baixo Tocantins, a vida é regida pela temporalidade das águas,

condutoras do homem ribeirinho, pois seu modo de ser e viver depende necessariamente de

como o rio se comporta. Com toda sua imponência dinâmica e implacável, cabe ao homem

ritmar sua vida de acordo com o rio: saber suas preamares e tepacuemas2. Uma vez que o

homem as ignora negligência a própria vida, da simples travessia do leito do rio ao horário de

se armar as malhadeiras para pegar os peixes. Para além da temporalidade, ele é a via das

tradições, pois lá os festejos são sempre realizados de casa em casa ao longo dos rios. Na 2 Nome dado à condição de maré Seca.

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dinâmica de produção e circulação dos bens simbólicos da cultura humana, é fundamental a

noção de trajeto antropológico, compreendido por Gilbert Durand (2012) como: “incessante

troca cultural que existe ao nível do imaginário entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e

as intimações objetivas que emanam do meio cósmico e social” (p.41).

Tradicionalmente os ritos festivos das comunidades ribeirinhas do Baixo Tocantins

das ilhas próximas a Paquetá acontecem em torno do rio. Eventos culturais como o Dia de

Reis e o Carnaval reúnem os moradores das redondezas em uma das ilhas. Os participantes

chegam em canoas, voadeiras ou barcos maiores. A festa representa o encontro comunitário

em torno da digressão coletiva, ela extrapola o fazer cotidiano, proporcionando uma ruptura

no tempo e na dança das horas, a medida que “se apodera de qualquer espaço onde possa

destruir e instalar-se. A rua, os pátios, as praças, tudo serve para o encontro de pessoas fora

das suas condições e do papel que desempenham em uma coletividade organizada”

(DUVIGNAUD, 1983, p.68).

A festa para os ribeirinhos das ilhas do Baixo Tocantins representa um encontro dos

costumes tradicionais com as novas formas contemporâneas de lazer. Nesta ocasião, os

sujeitos despem-se de suas obrigações e funções habituais e assumem novos papeis sociais,

permitindo-se ao ecletismo de motivos e a reunião, num mesmo espaço, de imaginários

antagônicos. Nesses festejos, os organizadores percorrem o rio, aportando de trapiche em

trapiche, nas casas que convidaram os festeiros para se apresentarem. Os ritmos tradicionais

da região: o Banguê e o Samba de Cacete são tocados nesta ocasião. Os instrumentos são

comuns apesar dos ritmos serem diferentes, são produzidos com couro de veado e madeira de

curumaru3 e ipézeiro4

O banguê tocado na ilha da Paquetá advem de antigas práticas religiosas de matriz

africana oriundas dos quilombos de Cametá (Pará), juntamente com as influências insidiosas

da cultura católico-cristã, resultando em um estilo musical com ambas características: os

ritmos e os instrumentos estão mais próximos daqueles que se apresentam na cultura afro-

ameríndia, enquanto os eventos tendem a uma tradição católico-cristã. Todavia, atualmente o

banguê é tocado ocasionalmente em festas não religiosas.

3 Árvores da região 4 Idem

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Nos dias de Reis o grupo musical “Os Bambas da Folia”, liderado por José Sousa

Cordeiro, mais conhecido como Zeca, passa de casa em casa, pedindo licença e recolhendo o

“rei”, uma oferta para a manutenção dos instrumentos e percussão, como também para

bebidas alcoólicas consumidas pelos músicos durante a incursão. A ebriedade dos músicos

acompanhados daqueles que arriscam algum passo do banguê criam um ambiente que

regozija a cultura e o imaginário baixo tocantinense.

O carnaval dos mascarados é organizado pelo grupo “Unidos do Jutuba” e seus

tocadores de Samba de cacete nas manhãs de domingo, entre os meses de fevereiro e março. É

um evento itinerante com saída na Arena de São Jorge na ilha de Bertoeja, em frente a ilha do

Jutuba. E quando estão todos prontos, vem numa embarcação grande hasteando bandeiras

coloridas e o estandarte do bloco. O espetáculo visual, dada a variedade de cores nos detalhes

das roupas e de personagens que lembram a trilogia das barcas5. E quando estão todos a

postos na arena com seus pares, soa o apito que dá início as coreografias. Os dançarinos

fazem a concentração no barracão ao lado da arena. As fantasias são inúmeras, cada um

desempenha um “papel” no cortejo dançante. Há ainda personagens como o “macaco” que

simplesmente não dança, apenas fica brincando com os espectadores e assustando as crianças

pequenas emitindo sons guturais enquanto se aproxima com sua máscara horrenda.

Quando a apresentação da arena termina, os músicos e os dançarinos seguem um

roteiro de visitas. Durante o cortejo carnavalesco nas casas são tocadas quatro músicas que

ainda sinalizam uma tradição que para Zeca está em vias de acabar diz que os moleques de lá

não querem saber mais disso, que inclusive nenhum de seus quatro filhos tem interesse em

continuar com o tradicional carnaval. Mas restam ainda aqueles que até por teimosia,

considerando todas as dificuldades logísticas de se produzir esse bloco, ainda insistem em

manter viva a tradição. Sai a barca da Arena São Jorge, entre o grito dos foliões dançantes e o

ronco do motor da barca a entoada de despedida: É hora é hora é hora, é hora é hora é hora/

É hora vamu nós embora, é hora vamu nós embora / mulata dismacha a rede, ê mulata

dismancha rede, fica triste mas não chora, arrumando a minha viola.

Entre os rios e a barca que leva os foliões as matas escondem mistérios que envolvem

a região, um elemento poético e sensível. 5 Obras de Gil Vincente

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O imaginário baixo tocantinense não pode ser confundido com objetos tão somente

fantásticos, frutos de uma faculdade imaginativa ficcional que deve corresponder às

produções culturais envoltas numa ampla carga de tradição e sentimento, essas narrativas

permeiam o real e o sensível, acionados nas histórias pelo seu aspecto mitopoético. O

imaginário se apresenta ali de modo difuso, informe, fluido e sem um objeto de referência

preciso, manifestando-se em situações que, por serem inesperadas, parecem arbitrárias em sua

constituição. Situações diárias interrompidas ou prosseguidas tendo repercussão na

experiência propagada de geração em geração.

Toda construção narrativa da região foi transformada com o passar do tempo, mas elas

nunca desaparecem. Até que se capture o último boto encantado, até que os japiins deixem de

fazer seus ninhos em frente as casas pressagiando a morte de alguém dali. As narrativas

reconfiguram-se como elementos constitutivos do mito que permanece mais ou menos

explícitos, em outras narrativas atualizadas, forma original, reelaboração da construção

imaginária no narrado de acontecimentos entrecortados pela memória de uma voz poetificante

do mundo.

Como o imaginário é constituído de elementos míticos, podemos a partir de Gilbert

Durand (2012, pág.62) entender por mito “um sistema dinâmico de símbolos, arquétipos e

esquemas, sistema dinâmico que, sob impulso de um esquema, tende a compor-se em

narrativa.” Tal definição reforça a ideia do mito enquanto estrutura dinâmica, que será

modificada substancialmente na medida em que a linguagem seja ela escrita ou oral, der

forma a ele, tornar-se-á lenda.

A mitopoética, ou a poética do mito é a instância que possibilita uma clave

compreensiva na partitura da linguagem no que tange a construção de sentidos. Antes o que se

manifesta na memória de um para o outro é a linguagem, e está nela as condições necessárias

as sublimações das tradições, dos costumes, dos espaços e etc. Seguidas nesse fluxo

ininterrupto onde o silencio precipita as palavras que dão forma as poesias, um instante

metafísico como descreve Bachelard: “Se simplesmente segue o tempo da vida, é menos do

que a vida; somente pode ser mais do que a vida se imobilizar a vida, vivendo em seu lugar a

dialética da alegria e dos pesares”. (BACHELARD, 1985. p. 183)

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REFERÊNCIAS

ARRAIS, Sabrina Augusta da Costa. O Poeta, o Rio, o (En)verso: ecos do cordel na ilha de Paquetá - Pará. 2015. 61p. Monografia de Conclusão de Curso. IFPA, Belém. BACHELARD, Gaston. A Poética do espaço. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2008 ______. O direito de sonhar. São Paulo: DIFEL, 1985. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. 1. Artes de Fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1996. DURAND, Gilbert. As Estruturas antropológicas do imaginário. Trad. Hélder Godinho. São Paulo: Martins Fontes, 2001. DUVIGNAUD, Jean. Festas e civilizações. Trad. L. F. Raposo Fontenelle. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura Amazônica uma poética do imaginário. In Obras Reunidas. São Paulo: Escrituras, 2000, V. 4. MELLO, Cainã de Paula. Imaginários e Poéticas de Matinta Perera. 2015. 59p. Monografia de Conclusão de Curso. IFPA, Belém. SANTOS, Vanderlici Silva dos. Sombras e Sussurros: o fantástico nas narrativas orais do Baixo Tocantins. 2015. 67p. Monografia de Conclusão de Curso. IFPA, Belém. ZUMTHOR, Paul. A Letra e a voz: A “literatura” Medieval. Trad. Amálio Pinheiro e Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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A técnica de pesquisa da autoscopia: primeiras aproximações com a abordagem teórico-

mitodológica do imaginário1

The research technique of austoscopy: first approximation with the theoretical-mythodology approach of the imaginary

La technique de recherche de l’autoscopie: premiers rapprochements dans l’approche

théorico-mythodologique de l’imaginaire

Luciana Martins Teixeira LINDNER2 UFPEL, Pelotas, Brasil

Resumo Esta pesquisa foi realizada com acadêmicos do curso de matemática e tem a intenção de aproximar a técnica da autoscopia com a abordagem teórico-mitodológica do Imaginário (DURAND, 2012). A autoscopia (FERRÉS,1996) permite uma reflexão e compreensão do sujeito, por si mesmo, sob uma perspectiva que advém do outro, como um conhecimento indireto (DURAND,1988) o objeto é reapresentado à consciência. Procurei a partir da hermenêutica instauradora à luz da mitocrítica (DURAND, 1996) analisar as falas em seus núcleos simbólicos que, em sua redundância reuniram-se em três mitemas: enfrentamento; auto(re)conhecimento e transmutamento. Estas reflexões reforçam a necessidade urgente de se remitologizar a educação, com o sentido buscar uma hermenêutica do vivido (ARAÚJO, 2014), mediadora entre a razão e imaginação pujante em uma escola que se arrisque para dar conta das transformações de nossa época. Palavras-chave: autoscopia; imaginário; educação. Abstract This research was realized with academics of mathematics course and it has the intention of approximating the autoscopy technique to the theoretical-mythodology approach of the Imaginary (DURAND, 2012). The autoscopy (FERRES, 1996) allows a reflection and understanding of the subject, by itself, from a perspective that comes from the other, as an indirect knowledge (DURAND, 1988) the object is reintroduced to consciousness. I will seek from the established hermeneutics according to the mythocriticism (DURAND, 1996) to analyze the data bringing some lines from the symbolic nuclei that, in their redundancy gathered in three mythemes: confrontation; auto(re)cognizance and transformation. From these reflections I realize the urgent necessity of remythologize education, with the sense of seeking a hermeneutics of the lived (ARAÚJO, 2014), a mediator between reason and powerful imagination in a school that risks to handle the transformations of our time. Key words: autoscopy; imaginary; education.

1 Esta pesquisa está publicada nos anais do ANPEDSUL 2014 com o título: Ritos de passagem: de acadêmico à docente o sentido da docência se constituindo, em co-autoria com a Prof. Dra. Lúcia Maria Vaz Peres. Esse artigo visa uma releitura dessa pesquisa à luz da mitodologia durandiana com um olhar de aproximação a esta proposta hermenêutica. 2 [email protected]

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Palavras iniciais

A reflexão que faço neste recorte da pesquisa refere-se à aproximação da técnica da

autoscopia com a abordagem teórico-mitodológica do Imaginário (DURAND, 2012),

previamente farei uma contextualização do ambiente em que esta investigação aconteceu.

Atuo no curso de matemática da UNIPAMPA- Campus Bagé, com a formação de

professores, nas disciplinas de ensino e estágio de regência, sendo que as disciplinas de

estágio estão no locus desta pesquisa e localizam-se nos últimos semestres do referido curso,

como geralmente estão nos cursos de formação de professores.

O tempo do estágio é um tempo em que as tessituras das relações com os acadêmicos

se estreitam visto que, as orientações são individuais e com periodicidade semanal, sendo

possível aproximar tanto questões de cunho metodológico para os fazeres docentes do

estagiário, como também aproximar com o que tange aspectos afetivos, os quais sem esgotar,

vou elencar alguns: reafirmar sua autoconfiança quanto ao seu desempenho como docente,

buscar em suas histórias de vida razões que o levaram a docência e cultivar ou até mesmo

construir uma autoestima que fortaleça suas razões pela profissão docente.

Sob outro aspecto, o período de estágio favorece a reflexão em torno do que o

acadêmico aprende na universidade e o que de fato ocorre na escola, dado que a dinamicidade

deste período se caracteriza pelo trânsito intenso da universidade à escola, envolve relações

do estagiário com o contexto escolar buscando compreender a realidade, se apropriar daquele

ambiente, ou seja, aprender os fazeres docentes (TARDIF, 2002), neste momento se dá (...) “a

aproximação da realidade” (PIMENTA, 2011, p.45).

É a necessidade da construção do fazer docente do acadêmico, que se atribui sentido à

atividade na escola para o estagiário, a partir de seus valores, suas crenças, de seu modo de

situar-se no mundo, do significado que ser professor têm em sua vida (PIMENTA, 2011).

Ainda, de acordo com a referida autora, “a identidade profissional se constrói, pois, a partir da

significação social da profissão; (...) da reafirmação das práticas consagradas culturalmente e

que permanecem significativas (...) do confronto entre as teorias e as práticas (...)” (p. 19).

Todos estes aspectos entrelaçados vão dando colorido ao fazer docente deste novo

profissional que vem se constituindo.

Nessa reflexão, o acadêmico começa a vivenciar na escola o futuro ambiente de

trabalho e a realidade do seu cotidiano. Ao entrelaçar teoria e prática, buscando construir sua

forma de ser professor, ele se depara com dois ambientes distintos de coesão de forças que

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são: a do professor que o orienta na academia e a do professor da escola que, em alguns

momentos, poderão até ser contraditórias, cabendo a ele, estagiário, em determinados

momentos, escolher e quem sabe, abrir um caminho de diálogo e superação desta dicotomia.

Corroboro com Peres, quando diz que os professores se constituem como expressão da

realidade vivida no indivíduo e no coletivo o seu processo de formação.

[...] os processos (auto) formadores também podem advir da realidade da imaginação simbólica e que seria praticamente impossível maximizar a formação do humano, dentro da relação escolar de ensino/aprendizagem, sem passar pelo reconhecimento dos símbolos e do imaginário (PERES, 2011, p.4).

Nesse sentido, estabelecer uma relação dos processos formadores e (auto)formadores no

trabalho individual, no caso orientações dos estagiários e coletivo socializações com o grupo

de colegas do estágio, também estiveram presentes nesta pesquisa, momentos que serão

comentados com mais detalhamento no decorrer deste artigo.

O acadêmico ao chegar no estágio, se encaminha para a etapa final de sua formação,

começa a perceber-se numa nova etapa de vida. Esta investigação instigou a formação sobre

este momento na vida do estagiário. Entendendo por meio da experiência (DURAND,1988)

que a liberdade é criadora de um sentido, ela é poética de uma transcendência, mesmo no seio

do assunto mais objetivo, como por exemplo, a vivência da sala de aula no estágio de

regência.

Alguns aspectos teóricos

O símbolo foi extinto do ocidente devido ao iconoclasmo religioso que o dominou,

sendo capaz de transformar o símbolo em signo e consequentemente influenciou a cultura

ocidental reforçando o paradigma cartesiano (DURAND, 1988).

A Teoria do Imaginário (DURAND, 2012) se apresenta como uma cisão com o

pensamento clássico ocidental, o imaginário é colocado numa posição integradora com a

razão, o homem então começa a ser visto como produtor de símbolos. Esta teoria apresenta-se

como um novo paradigma, que busca a regência de uma lógica complexa, integrando razão e

imaginação como elementos constitutivos do homem.

Gilbert Durand construiu uma obra plural, que trata da complementaridade dos

opostos antagônicos, rompendo com as reduções.

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Não há um corte separando o sujeito do objeto, o imaginário da razão, o sagrado do profano... Não porque um dos termos de nossos dualismos ancestrais se reduziria ao outro, mas porque são ambos significantes de um mesmo significado – tertium datum – que os estrutura os dois (DURAND,1995,p.20).

Durand (1996) coloca o Imaginário num “entre saberes”, num espaço que acolhe

várias disciplinas, buscando a reunificação destes. Para isso ele busca elementos da

antropologia, sociologia, etnologia, psicanálise e psicologia geral. Ele se aproxima da

antropologia, entendendo-a como a que melhor pode suportar esta tarefa, constituindo então, a

sua Antropologia do Imaginário, ou seja, uma hermenêutica antropológica que procura

entender o homem como produtor de imagens.

Este teórico busca nas raízes inatas a representação sapiens do homem que oscila num

vai e vem contínuo fazendo o movimento com as intimações variadas do meio cósmico e

social e nesse movimento acontece o Trajeto Antropológico como a lei sistêmica que rege o

homem. Postula a gênese recíproca do gesto pulsional ao ambiente ecológico e social, por

meio deste movimento mencionado anteriormente, como sua trajetividade, ou seja, o trajeto

junta o que constitui o humano a partir de sua herança biológica e social, de sua

ancestralidade bio-psiquico-social.

A Teoria do Imaginário tramita na concomitância entre os seguintes aspectos:

gestos do corpo, ou seja, nossa motricidade primária; centros nervosos, o inconsciente e as

representações simbólicas desta forma estrutura o imaginário tripartido em reflexos

dominantes que são: a deglutição, o postural e o copulativo.

Postula também que o imaginário é a tensão dinâmica entre duas forças bipartidas

de coesão entre dois regimes de imagens, o diurno e o noturno, os quais são produzidos no

trajeto antropológico e propõe a classificação isotópica das imagens, num dualismo

antagonista e complementar.

O diurno refere-se, por exemplo, à relação do bem contra o mal, a imaginação

heroica, aliás, sua estrutura figurativa é a heroica, seu reflexo dominante é o postural, os

esquemas verbais de distinção: separar /misturar, subir/cair, arquétipos substantivos

luz/trevas,céu/inferno.

O noturno com duas estruturas figurativas a mística, que possui um regime

intimista, confusional, de união, profundo, calmo, quente como símbolo indo de encontro ao

sintema o ventre, a taça, o leite, o mel, o vinho o destino não é combatido é assimilado e a

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sintética ou dramática com seu reflexo dominante copulativo com seus derivados rítmicos,

seu esquema verbal de reunir, arquétipos substantivos o fogo, o germe, a árvore; como

símbolo indo de encontro ao sintema a orgia, o messias, o sacrifício (DURAND,1988).

A proposta teórica da tensão dinâmica entre duas forças de coesão refere-se que o

dinamismo atuante é polarizado impedindo que se atribua a um ou a outro polo o papel

hegemônico de fator dominante, garantindo uma relação de equilíbrio entre eles, entre os dois

regimes. Quando um dos polos é inflacionado e se torna hegemônico, rompe-se a tensão polar

e a relação de complementaridade e antagonismo entre eles.

Os dados simbólico bipolares (ibid) são um vasto sistema de equilíbrio antagonista, no

qual a imaginação simbólica aparece como sistema de forças de coesão antagonistas. As

imagens simbólicas se equilibram, umas e outras, mais ou menos sutilmente, conforme a

coesão das sociedades e também conforme o grau de integração dos indivíduos nos grupos.

Os símbolos constelam (ibid) porque são desenvolvidos de um mesmo tema

arquetipal, são variações de um arquétipo, isto significa que ao perceber as redundâncias

obsessivas que irão emergir por meio dos diferentes instrumentos de produção de dados, tanto

nas entrevistas individuais como nas autoscopias e nas reflexões em grupo sobre as cenas

escolhidas no vídeo, a pregnância simbólica que irá emergir, ou seja, a imagem sujeita ao

evento, a imagem ao ser narrada, videoscopada e refletida ela torna-se-á uma imagem

simbólica, uma imagem que confere um sentido.

Com a intenção de captar o valor simbólico que emergirão dos sujeitos desta pesquisa,

as suas formas de ser e estar no mundo, como vindouros professores, nas suas formas de se

perceberem como professores, que estão à maternidade, com possibilidade de refletirem sobre

suas imagens na docência projetadas na tela, com este intento comecei a caminhada.

O começo da jornada

Esta investigação fez uso dos instrumentais da etnografia, como: a observação e o uso

do vídeo para narrar-se. O trabalho em grupo deu-se numa periodicidade semanal, com os

atores envolvidos, visto que aconteceu dentro da disciplina de estágio de regência do curso de

matemática. Entendo a necessidade de fazer uma descrição dessa ritualização, e para tanto, a

etnografia forneceu os elementos.

Entendo que os movimentos que fazemos no caminhar, tanto na profissão como na

vida pessoal são marcados por continuidades e descontinuidades e decorrem de construções

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que são sempre temporárias. Sendo assim os trajetos vividos surgem contextualizados, tanto

cultural como historicamente imbricados a uma subjetividade presente naquele espaço

temporal. A ideia deve-se ao fato de acreditar que o processo de formação de um educador

pode lançar mão de dispositivos que nos remetem a trajetos anteriores à educação formal, as

experiências que se originam dos trajetos vividos são “fundantes” das relações e vivências

futuras (PERES, 2011).

Neste sentido, abri um espaço na disciplina de estágio, antes dos acadêmicos

começarem a regência e com isso antes de começarem as autoscopias, em que solicitei que os

estagiários buscassem em suas histórias de vida o que os levou a optarem pela docência.

O passado rememorado é designado como valor de imagem. A imaginação matiza

desde a origem os quadros que gostará de ver, para o manancial memorial importa elencar e

trazer à tona para além dos fatos, os valores (BACHELARD,1988).

Neste momento eles começaram a olhar-se como também valorizar ou reconhecer sua

escolha profissional. Alguns relataram que nunca haviam pensado sobre isso, uma acadêmica

trouxe um fato em que ela protagonizava o ensino em sua infância, outra mencionou uma

professora que a marcou.

O exercício de voltar para si, conduz a olhar para o que fez a diferença em suas vidas a

ponto de tomar decisões que reconfiguraram a trajetória de seus fazeres, para Josso(2002) a

transformação das narrativas de vida centradas na formação “é uma mudança de ponto de

vista sobre si através de uma reapropriação de si mesmo enquanto actor, autor e leitor da sua

própria vida” (p.117) (sic). Para esta autora, a transformação acontece na relação consigo

mesmo e com a forma de refletir sobre si e sobre seus empenhamentos.

Este exercício foi crucial porque alguns estagiários começaram a movimentar suas

reflexões acerca da docência de seus si-mesmos, o que alavancou o mergulho reflexivo que

fizeram nas autoscopias, o terreno foi preparado para lançarem-se nas autoscopias porque o

exercício de voltar para si, ao ser instigado, cria a possibilidade de um devir, de um olhar para

dentro e encontrar suas razões, encontrar seus si-mesmos.

Recordando o caráter qualitativo deste estudo, apresento uma análise e discussão dos

dados, fundamentalmente, descritivo. As questões que me movimentaram são as seguintes:

Como o fazer docente na formação inicial de professores de Matemática, apresenta-se aos

estagiários deste curso? Será que os estagiários, impulsionados por suas imagens

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(autoscopias) refletidas na narrativa procurarão assumir mais conscientemente o seu fazer

docente?

Nesta pesquisa, a autoscopia foi tratada como uma técnica, uma ferramenta de

pesquisa e de formação que se vale da videoscopia de ações de um estagiário de matemática,

numa dada situação de regência em sala de aula. Vale destacar em que o estagiário foi o

protagonista da cena, este aspecto foi previamente combinado, sua ação docente na sala de

aula é o que foi evidenciado no vídeo.

O vídeo na sala de aula foi feito por uma variedade de pessoas, tanto pela professora

regente, como por uma colega ou parente que se disponibilizou a ir à escola filmar.

Combinamos dois momentos distintos de filmagem na sala de aula, com critérios aleatórios,

podendo ser: uma aula com atividades em grupo e outra com atividades individuais; uma aula

expositiva e outra com jogos ou outro critério que achassem interessante não encerrando

nestas sugestões as possibilidades de criação dos seus vídeos.

Durante todo o empírico foram videoscopadas um total de doze aulas, no estágio de

regência no ensino fundamental, primeiro semestre de 2013. Eram seis acadêmicos, cada

acadêmico com duas aulas, como também doze aulas no estágio de regência no ensino médio,

segundo semestre do mesmo ano, novamente cada acadêmico com duas aulas.

Os vídeos editados pelos acadêmicos(as) tinham uma duração de no máximo 15min

para a apresentação no coletivo, o critério de escolha das cenas para edição ficou por conta de

cada estagiário, solicitei que justificassem as escolhas, no momento da apresentação dos

vídeos, com a intenção de trazerem sua reflexão sobre a escolha das cenas para a edição do

vídeo. As apresentações destes vídeos foram gravadas em áudio e estas falas foram o escopo

das narrativas para análise.

Quero enfatizar que ao final do estágio de regência no ensino fundamental, o meu

entendimento era de que o uso dos vídeos em sala de aula – autoscopias – estava encerrado,

no entanto, no semestre seguinte no estágio de regência no ensino médio, os acadêmicos

propuseram a técnica da autoscopia novamente, justificando terem aprendido muito sobre

suas narrativas a partir das imagens e reflexões geradas, dessa forma aumentei a produção de

dados para mais um semestre, acontecendo a produção dos dados durante todo o ano de 2013

como mencionei no parágrafo anterior.

A palavra “autoscopia” tem sua origem no grego skoppós e no latim scopu, que quer

dizer objetivo, finalidade. A ideia de autoscopia diz respeito a uma ação de objetivar-se, na

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qual o eu se analisa refletindo sobre a própria imagem sobre diversos pontos de vista sobre o

outro que há dentro de cada um e narra-se através da imagem que o interpela, imagem dele

mesmo.

E esse outro que há em mim, refere-se àquilo que nós fizemos e vamos fazendo

deles(outros), justamente isso e não outra coisa é o que nós somos: a alteridade daquilo que os

outros fizeram e estão fazendo de nós e nós deles.

A utilização do vídeo permite recuperar a consciência de si mesmo, a identidade perdida, o encontro com o próprio corpo e por intermédio dele com a personalidade como um todo. Um encontro que é indispensável para a tarefa da própria transformação (FERRÉS, 1996, p.54).

Vale ressaltar que usei uma aproximação com a orientação epistemológica durandiana,

a mitodologia que emerge de uma abordagem científica que considera o elemento espiritual e

coletivo na concretude da realidade imediata (MELLO, 1994), ou seja, aquilo que transcende

a coisa imediata.

Este teórico sistematizou uma classificação dinâmica e estrutural das imagens

(DURAND, 2012), quadro isotópico das imagens que usei nesta pesquisa, propôs uma teoria

que leva em conta as configurações constelares de imagens simbólicas, a partir de arquétipos

(símbolos universais, sempre coletivos e não pessoais) e uma metodologia apoiada em um

“método crítico do mito”, um modelo hermenêutico, a mitodologia.

A abordagem mitodológica envolve duas formas de análise: a mitanálise e a

mitocrítica, eu me valerei da hermenêutica da mitocrítica (DURAND,1996) para este estudo

visto que a mitanálise busca apreender os grandes mitos que orientam os momentos

históricos, os tipos de grupos e de relações sociais. A mitanálise é mais abrangente, estende

sua análise ao contexto cultural.

Este autor faz referência (ibid) ao historiador das religiões Mircea Eliade no que diz

respeito a esse teórico pressentir, já a bastante tempo, um estreito parentesco da narrativa

literária, englobando a as linguagens musical, cênica, pictórica, etc. com o sermo mythicus, o

mito. O processo do sermo mytthicus, a repetição e a redundância, visto que “o mito repete e

repete-se para impregnar, isto é, persuadir” (ibid, p.247).

É a redundância (Lévi-Strauss) que assinala um mito, a possibilidade da arrumar os seus elementos (mitemas) em pacotes (enxames, constelações, etc) sincrônicos (isto é, possuidores de ressonâncias, semelhanças, de homologias, de semelhanças semânticas) ritmando obsessivamente o fio diacrônico do discurso (ibid, p.247).

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A mitocrítica visa à imagem literária (ibid) veiculada através da literatura escrita ou

oral de forma indireta. O discurso literário está muito próximo do discurso do mito pelo fio

diacrônico na narrativa no qual os símbolos se resolvem em palavras e os arquétipos em

ideias e o mito se apresenta em redundâncias obsessivas.

A mitocrítica tem como objetivo:

[...] à semelhança de um radar ou de um submarino, proceder à compreensão e à interpretação do sentido que as filigramas míticas assumem e representam no interior do dado texto [...] O seu fim, é portanto, o de saber quais os mitos ou o mito inspirador que sugere o desenvolvimento de dada narrativa (ARAÚJO & SILVA, 1995, p.125).

A linguagem mítica é a linguagem privilegiada do Imaginário. Nesta perspectiva

importará aproximar o que a Teoria do Imaginário reconhece por mito e também sua

hermenêutica.

O mito é entendido por Durand (2012) como um sistema dinâmico de símbolos e

arquétipos que sob o impulso de um esquema, tende a compor-se em narrativa. Este teórico

(DURAND,1996) faz um paralelo entre a linguagem mítica e a poética, mostrando que o mito

tem um caráter existencial “é a situação do indivíduo e do seu grupo no mundo que o mito

tende a reforçar, ou seja, legitimar”(p.44). O mito além de revelar-se como um modo de

conhecimento seu aspecto pregnante mais forte seria a sua forma de conservação que é o que

distingue o conhecimento mítico do conhecimento científico.

Na integração semântica dos dados, o mito vai se utilizar da metalinguagem dos

símbolos. “Através de aproximações sucessivas, o mito tende a criar uma espécie de

persuasão iluminante, uma espécie de intuição que nunca é satisfeita pela expressão

literária”(ibid). Esta expressão é desfeita e refeita sem cessar a fim de que a imagem surja em

redundâncias sincrônicas cada vez mais adequadas. O mito vive da progressão semântica da

convicção e da iluminação (ibid).

Araújo e Silva (1995) trazem o mito ou o símbolo como

[...] a condição, primeira ou última, necessária para que a manifestação arquetipal se tornasse visível, isto é, o símbolo mítico seria a expressão das constelações arquetipais. Em suma: o mito é o Verbo transfigurado em carne ou, então, o mito é a substancialização (forma) da acção verbal (estrutura arquetipal) (p.119).

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Ainda, antes de começarmos a análise fica nítida a necessidade de compor

conceitualmente, ainda que de forma incipiente, outro componente além do mito e da

mitocrítica, que são os mitemas.

Os mitemas são o coração do mito, como uma espessa unidade constitutiva (ibid) eles

não são o conjunto da narrativa, mas sim o núcleo pregnante, ou seja, o elemento forte da

narrativa, uma espécie de “átomo fundamentador do discurso mítico”. Eles permitem uma

análise sincrônica, eles tendem a se intensificar à medida que se repetem. “Um mitema pode

ser um motivo, um tema, um objeto, um cenário mítico, um emblema, uma situação

dramática, etc” (MELLO, 1994, p.46).

No caso desta investigação os mitemas foram identificados nas narrativas dos

estagiários a partir dos discursos dos mesmos na socialização com o grupo de seus vídeos

editados, as escolhas das cenas, da música, das imagens. Este material foi transcrito e nestas

narrativas que eu analisei como míticas, emergiram os mitemas.

A seguir começamos a hermenêutica à luz da mitocrítica destes discursos manifestos

trazendo algumas falas a partir dos símbolos constelados em, o que chamei de núcleos

simbólicos, em sua redundância reuniram-se em três mitemas neste estudo, são eles: 1º

mitema: enfrentamento (percepção do rito iniciático na docência); 2º mitema:

auto(re)conhecimento (percepção sobre a própria atitude em sala de aula) e 3º mitema:

transmutamento (autoformação a partir das narrativas e da autoscopia). As falas dos

acadêmicos estão sob o codinome de cores.

1º mitema: Enfrentamento – Presença do rito iniciático da docência

Fala de Verde: Meu posicionamento em relação ao estágio era de medo, de não conseguir

vencer as atividades e de não ser um bom professor.

Fala de Rosa: Quando comecei o estágio estava com bastante medo, de não conseguir

dominar tudo. No primeiro dia eu estava muito nervosa, mas eles eram muito tranquilos e

comprometidos em estudar.

Quando os acadêmicos chegam ao estágio, esse momento é interpretado por mim

como oriundos de uma variação arquetipal, “os símbolos constelam porque são desenvolvidos

de um mesmo tema arquetipal”(DURAND, 2012, p.43) neste caso, como um rito iniciático,

no qual ele, acadêmico, faz o seu rito de passagem. Além de um momento inicial, é também

individual, um momento de superação interior, muitas vezes um momento de angústia, de

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medo, de purificação “medo, de não conseguir vencer as atividades”. É uma circunstância na

qual o iniciado se lança no desafio, seja de uma caverna, um labirinto, como na tradição

(ELIADE, 2008) como também em uma sala de aula.

Segundo Araújo (2012) o tipo de iniciação que compreendem os ritos de passagem,

transmutam e afetam ontológica e psicologicamente não somente o iniciado como também o

seu meio social e familiar próximo.

A partir da classificação isotópica das imagens, o mitema do ritual iniciático

apresenta-se relacionado à estrutura heroica do regime diurno, pelos shèmes da ascenção, da

superação; esse Regime tem a ver com os rituais da purificação; com a dominante postural e a

tecnologia das armas, com a sociologia do soberano, do guerreiro “medo, de não conseguir

dominar tudo”, ainda assim sem dominar tudo enfrentar aquele momento; dos arquétipos

substantivos temos arma heroica (DURAND,1998).

2º mitema: Auto(re)conhecimento – Percepção sobre a própria atitude em sala de aula

Fala de Rosa: Constatei na autoscopia que em alguns momentos eu ficava me movimentando

de maneira repetitiva, por exemplo, girando o giz na mão. Não gostei de ter tido esta atitude

me parece uma atitude de insegurança.

Fala de Vermelha: O vídeo me identificou muito e me deu mais certeza de que é isso que eu

quero. Comparando este vídeo com o primeiro vejo muita diferença em relação a conteúdo e

domínio.

A autoscopia determina uma tomada de consciência, quase visceral, do que é uma comunicação autêntica no seio de um grupo (…) A tomada de consciência de si, através da autoscopia, é a melhor das motivações para o “saber” dos formandos. No processo de formação é uma etapa fundamental que suscita a reflexão sobre si, em situação, no sentido de melhorar o seu desempenho. (SILVA, 1998, p. 40)

Um aspecto a ser considerado é que a autoscopia proporciona ao estagiário uma

análise introspectiva, de consciencialização de papéis “vejo muita diferença em relação a

conteúdo e domínio”e comportamentos “girando o giz na mão.” Vai lhe possibilitar o

confronto com a própria imagem, propondo-lhe ver-se como os outros o veem, evidenciando

um elevado potencial (auto)formativo e potencializador de níveis de reflexão de índole mais

crítica e emancipatória.

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O mitema do Auto(re)conhecimento apresenta-se relacionado à estrutura mística do

regime noturno, relaciona-se aos schèmes da descida, da intimidade, olhar para si. “Não

gostei de ter tido esta atitude me parece uma atitude de insegurança.”O estagiário ao ver-se

no vídeo, percebe-se com a atitude que não o agrada e busca em seu íntimo o amadurecimento

em relação aquela atitude. “Comparando este vídeo com o primeiro vejo muita diferença em

relação a conteúdo e domínio; com a dominante digestiva, dos arquétipos epítetos profundo,

escondido (DURAND,1998), os arquétipos são “o ponto de junção entre o imaginário e os

processos racionais”(DURAND,2012,p.61) o profundo e o escondido que o acadêmico não

percebia e ao olhar no vídeo consegue desnudar-se, enxergar-se.

3º mitema: Transmutamento – Autoformação a partir das autoscopias

Fala de Azul: As autoscopias possibilitaram uma visão mais crítica de cada um. (...) com essa

proposta foi possível fazer uma análise crítica- comportamento, atitudes, vícios. O que

constatei no vídeo foi que eu não era tão ríspida quanto imaginava, tinha medo de ser muito

rigorosa e analisando hoje, deveria ter sido mais firme.

Fala de Verde: Ao observar-me percebi que usei palavras “fortes” ressaltando o que ele não

entendeu – O que tu não entendeu Fulano? No momento não percebi a maneira como tinha

falado, entretanto minha intenção não era ofendê-lo nem inibi-lo.Um aspecto que me marcou

fortemente e irei mudar em relação a esse ponto foi o fato de responder repentinamente, ou

seja, sem pensar na forma como vou abordar o aluno que por consequência pode vir a

constranger o estudante.

Fala de Roxa: Achei o vídeo maravilhoso para observar e avaliar meu comportamento com os

alunos e à frente da sala de aula. Percebi que nas primeiras aulas eu ficava bastante no

mesmo lugar e mexia muito com as mãos, após estas observações comecei a me policiar e

circular mais na aula.

A compreensão da imagem projetada na tela como possibilidade de interlocução que

relaciona o aspecto exterior objetivo com a visão interna subjetiva, articulando a

transformação que resultam dessa interação [...] “o fato de responder repentinamente, ou

seja, sem pensar na forma como vou abordar o aluno que por consequência pode vir a

constranger o estudante”. Significa construir uma alteridade consigo mesmo, uma relação de

superação, de compreendimento, de transformação sobre suas possibilidades de crescimento

no ato educativo, na sala de aula.

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Segundo Ferrés,

[...]a câmara de vídeo confere uma nova feição à realidade cotidiana. Pela mágica da câmara o ordinário se transforma em extraordinário, o que fornece novas informações a respeito de uma realidade que comumente não aparece plena de sentido (FERRÉS, 1996, p. 47).

Fazendo uma relação com o rito iniciático, ao chegar ao outro lado, ao finalizar esse

tempo, este começa a perceber-se, a reconhecer-se a olhar-se de outra forma, como alguém

que venceu, alguém que de certa forma adentrou para uma outra etapa de vida, que enfrentou

o desafio e superou-se, transformou-se, transmutou-se. Agora ele iniciado (acadêmico) é

alguém mais forte, é alguém apoderado de suas habilidades, no nosso caso é alguém que se

percebe como professor.

Como o outro mundo [...] é o lugar da redenção, da transmutação, do renascimento, da ciência e da sabedoria, tal significa que o iniciado, quando de lá volta, é realmente outro, quer do ponto de vista existencial e ontológico, quer do ponto de vista psicológico (ARAÚJO, 2009, p.122).

Este mitema relaciona-se a estrutura dramática, também do Regime Noturno e une o 1º

e o 2º Mitema, amalgamando e interelacionando os mitemas, como também as duas estruturas

anteriores, Refere-se aos schèmes rítmicos e de ligação ou (re)ligação; esquemas verbais de

amadurecer, progredir. “O que constatei no vídeo foi que eu não era tão ríspida quanto

imaginava”. Agrupa os símbolos naturais do retorno com o sentido de retornar para

transformar-se (DURAND,1998), retornar após um enfrentamento e também superar este

desafio, no caso o início da docência.

Essas três possibilidades de ação, esses vetores, ancoram-se na tripartição das três

estruturas antropológicas, como já falei nos mitemas acima, uma relacionada ao regime

diurno que leva-nos a atitudes heroicas, e às vezes demasiadamente fortes, como o rito de

iniciação, a segunda relacionada ao regime noturno ajuda a amenizar os enfrentamentos da

vida o autoreconhecimento, a meu entender é possível encontrar uma mútua equivalência

entre os dois vetores, configurando-se aqui uma estrutura dramática que denominei como o

mitema do transmutamento, de harmonização de contrários, relacionados as questões mais

pertinentes de nosso ser, no caso deste estudo, refere-se às questões relacionadas ao que os

estagiários vivem em seu início de jornada, seus enfrentamentos e superações.

Nesta estrutura o imaginário procura harmonizar num todo coerente as contradições e

diferenças mais flagrantes. A imaginação sintética, com suas faces contrastadas, já não se

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trata de um certo repouso na própria adaptabilidade, mas sim de uma energia móvel na qual a

adaptação e assimilação estão em harmonioso concerto (DURAND, 2012, p.346) como

mencionei na fala de uma acadêmica, a qual aproximei ao mitema do transmutamento:“Um

aspecto que me marcou fortemente e irei mudar em relação a esse ponto”. Esta é a energia

móvel de mudança de atitude da imaginação sintética, que assimila para se adaptar novamente

e assim num eterno movimento continuo, entre a assimilação e a acomodação que a jornada

docente nos chama.

Algumas considerações

Esta investigação buscou aproximar a técnica da autoscopia com a abordagem teórico-

mitodológica do Imaginário, me utilizei das falas destes estagiários e, no meu entender

emergiram os mitemas que discuti nos parágrafos acima, porém, na releitura das narrativas

dos estagiários para construção deste artigo, deparei-me com uma fala que ecoou

profundamente em mim e não pude deixar de trazer nestas considerações finais. Até este

momento não tinha estabelecido a relação, de forma emblemática, que estabeleci com a fala

desta estagiária e o ambiente escolar, assim transcrevo.

Fala de Vermelha: [...] o meu estágio foi, dessa vez, uma experiência muito positiva

em relação professor-aluno, a relação minha com eles foi muito positiva pra mim. No dia da

despedida, chorei, fiquei muito contente e vi como valia a pena de verdade, como a aluna que

me agradeceu por ela atingir uma meta que nunca tinha anteriormente conseguido – quase

gabaritei a prova professora, eu nunca tinha conseguido isso, muito obrigada – e o carinho

deles me agradecendo pela dedicação com eles, tudo foi lindo.

A fala desta acadêmica me remete a uma questão que se faz hegemônica nas escolas

que é a predominância da estrutura heroica em que a estagiária se encontra que apesar de “ter

chorado muito, fica contente” e percebe que “vale a pena” a docência. Esta acadêmica sai do

abismo e chega ao cume que se materializa internamente com a sua identificação com a

profissão docente, ato heroico que a faz triunfar, como uma guerreira que conseguiu chegar

do outro lado.

O que me causou certo estranhamento e por isso me impactou profundamente é o fato

deste polo heroico vir enraizado, enjoiozado desde a academia no mito diretor que rege o

trabalho docente nesta acadêmica, quiçá este enraizamento venha desde os bancos escolares

desta acadêmica. Isto significa, ainda que numa amostragem pequena, um pequeno sinal de

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mantença do polo heroico no mito diretor dos acadêmicos que estão formando-se professores,

que estão a recém saindo da academia, em seu início de jornada.

Precisamos encontrar uma razão sintética de ser que busque dialetizar o polo heroico

com o polo místico da existência na docência, pois esse inflacionamento do polo heroico

torna hegemônica a relação de complementaridade e antagonismo necessária para o

dinamismo organizador na prática simbólica na educação (TEIXEIRA, 2003).

Urge que caminhemos com o sentido da polarização com a estrutura mística visto que

as escolas estão impregnadas do regime diurno, de atos heroicos e de profissionais que se

percebem, muitas vezes, como titãs, sem experimentar o outro polo que remete a um olhar

para dentro, ao aprofundamento de suas ações, da descida, de devanear para encontrar razões

fundantes de se fazer o que se faz.

Compete a nós profissionais da educação buscar a tensão dinâmica entre esses polos

para a relação de complementaridade e antagonismo acontecerem de forma equilibrada no

ambiente escolar. Neste sentido cabe a nós que estudamos a Teoria do Imaginário

remitologizar esta escola tão heroica, revestir a educação de uma hermenêutica do vivido

(ARAÚJO, 2014) como mediadora entre razão e imaginação. Uma educação que valoriza o

papel dos símbolos e dos mitos, sensivelmente construída a partir da história do educando.

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Alberto Filipe. O ritual iniciático e a formação de si-mesmo. Razão Imaginante na vida de Pinóquio. In: Revista Cadernos de Educação. n. 48, FAE/PPGE/UFPEL. 2014. Disponível em http://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/caduc/issue/view/335. Acesso em 15/05/2015. ARAÚJO, Alberto Filipe; SILVA, Armando Malheiro da. Mitanálise e Interdisciplinaridade. Subsídios para uma hermenêutica em educação e em ciências sociais. In: Revista Portuguesa de Educação.n. 8(1), p.117-142 Universidade do Minho,1995.

ARAÚJO, Alberto Filipe; ARAÚJO, Joaquim Machado de. As lições de Pinóquio: Estou farto de ser sempre um boneco! Curitiba: CRV, 2012. ______. Imaginário Educacional – figuras e formas. Niterói: Intertexto, 2009. BACHELARD, Gaston. A poética do Devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1988. DURAND, Gibert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2012. ______. Campos do Imaginário. Lisboa: Instituto Piaget, 1996. ______. A fé do sapateiro. Brasília: Universidade de Brasília, 1995. ______. A imaginação simbólica. São Paulo: Cultrix, 1988.

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Sistema IDA: uma metodologia de criação artística em diálogo com as ciências do imaginário

IDA system: an artistic creation methodology in dialogue with science of imaginary

Système IDA : une méthodologie de la création artistique dans le dialogue avec les

sciences de l’imaginaire

Aline Fatima da Silva Costa MAGNO1 Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.

Resumo Este trabalho visa apresentar aos demais pesquisadores presentes neste congresso a esfera teórico-metodológica da pesquisa estética realizada pela Neopardas Cia. D’Artê, cujas expressões materiais vêm, desde 2012, circulando nos espaços das artes (centros culturais, galerias de artes, museus, etc.) de São Paulo por meio de performances, vídeos, espetáculos de dança, obras plásticas e musicais. A Cia. traz em suas práticas criativas e de pesquisa concepções acerca da imagem, do imaginário e seus processos que dialogam com as encontradas em autores como Joseph Campbell e Carl Gustav Jung e especialmente na obra de Gilbert Durand. Palavras-chave: imaginário; arte; produção cultural, sistema IDA.

Abstract This paper presents the other researchers present at this congress the theoretical and methodological sphere of aesthetic research conducted by Neopardas Cia. D'art materials whose expressions have, since 2012, circulating in the arts spaces (cultural centers, art galleries, museums, etc. .) of São Paulo through performances, videos, dance performances, visual and musical works. Cia. Incorporated to their creative practices conceptions of the image, the imaginary and its processes, found in the works of Gilbert Durand, Joseph Campbell and Carl Gustav Jung. Key words: imaginary; art; cultural production; IDA system.

Introdução e breve discurso

Buscamos neste trabalho, sistematizar e compartilhar de maneira interdisciplinar –

apresentando a produção artística como método de pesquisa possível – o diálogo, em

1 [email protected]

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constante construção, entre a teoria de Gilbert Durand acerca do imaginário e a pesquisa

teórica e criação artística da Neopardas Cia. D’Artê, companhia residente na Cidade de São

Paulo. Fundada em 2011, a Cia. vem desenvolvendo uma pesquisa estético-teórica cujo ponto

de partida é o imaginário, o objetivo primeiro de um olhar atento e curioso.

Assim, em meio a pesquisas e experimentos, elaboramos e desenvolvemos um modelo

e uma metodologia de investigação do imaginário, que receberam respectivamente os

seguintes nomes: Modelo do Imaginário e Sistema Ida. A elaboração desse conteúdo

acontece a partir da relação construída pela Cia. entre uma teorização intuitiva, não acadêmica

– porém sistemática e a obra de Gilbert Durand, especialmente o livro As Estruturas

Antropológicas do Imaginário, estudado na academia.

A Neopardas Cia. D’Artê é formada atualmente por Aline Magnos e Thiago Magnos.

Nossa pesquisa estética a partir da investigação do imaginário tem início bem antes de 2011.

Thiago é músico, ator, produtor musical e diretor da Cia., tem uma formação autodidata e

desde os anos noventa vem refletindo sobre fenômenos da mente, inclusive sobre a função das

imagens e o funcionamento do imaginário. Aline iniciou seus estudos nesse campo em 2010

ao produzir um TCC na Faculdade de Letras (USP) cujo título anunciava o tema Atualizações

do Sagrado Feminino em Ensaio sobre a Cegueira; através do qual travou primeiro contato

com autores como Mircea Eliade, Joseph Campbell, Carl Gustav Jung e Gilbert Durand.

Em 2013, depois de muito estudo e pesquisa, foram escritos e publicados no blog da

Cia. o Modelo do Imaginário e o Conceito Ida2. Neste mesmo ano, Aline passa a frequentar o

GEMsI (Grupo de Estudos de Mitos e Imaginário) na Faculdade de Educação da USP. Nesse

grupo ocorre o contato mais aprofundado com a obra de Durand, especialmente, como dito a

cima, com a leitura dAs Estruturas Antropológicas do Imaginário. Nessa contato, surge um

conteúdo motivador do exercício de diálogos, aproximações e distanciamentos entre o

Sistema IDA, o Modelo do Imaginário e a teoria de Durand acerca da imagem e do

funcionamento do imaginário.

É importante frisar que o presente texto não se pretende acadêmico, ele é, a princípio,

um breve relato dos experimentos de cunho científico realizados no campo das artes pela

Neopardas. Apresenta de forma sucinta como se deram os diálogos entre a produção teórico-

metodológica da Cia. e os fundamentos de Durand, bem como uma proposta de leitura e

2 Nome do documento oficial no qual consta o Sistema Ida.

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prática de sua obra. Chamamos também a atenção para a não conclusão desta pesquisa, ela

está em andamento e tem um caráter aberto, dialógico.

Modelo do imaginário e sistema IDA

Primeiramente é necessário chamar atenção para a palavra “modelo”, cujo significado

que utilizamos aqui é aquele que o considera como um esquema teórico em matéria cientifica

representativo de um comportamento de um fenômeno ou conjunto de fenômenos. O Modelo

do Imaginário é uma obra estética e científica cuja realização se dá no campo da

fenomenologia, ou seja, pelo estudo dos fenômenos em si mesmos, independentemente dos

condicionamentos exteriores a eles, pelo estudo da consciência e dos objetos da consciência.

Trata-se de uma obra estética porque é uma idealização, uma ideia envolta em aura

poética e, antes de tudo, um modelo imaginado, fruto da criatividade.

No momento do livro já citado em que declara já ter feito a “morfologia classificadora

das estruturas do imaginário”, referindo-se aos Regimes Diurno e Noturno da Imagem,

Durand apresenta a necessidade de uma “fisiologia da função do imaginário” (p.378), de uma

filosofia do imaginário, e lembra o nome sugerido por Novallis para tal estudo: fantástica

transcendental. O autor lembra ainda que a fenomenologia considera a imagem como “uma

consciência e, portanto, como qualquer consciência é, antes de mais nada, transcendente.” (p.

22).

O Modelo do Imaginário pode ser compreendido a partir de tal perspectiva. Fantástico

porque “existente somente na imaginação”3 e transcendental por se apresentar em um plano

que está além do mundo sensível4. Um “mundo” que, embora dificilmente provável em

termos materiais, segundo Durand, tem um papel fundamental em nossa humanidade, pois:

“(...) a alvorada de toda criação do espírito humano, teórica ou prática, é governada pela

função fantástica.” (DURAND, 2002, p.397) e complementa ainda perguntando:

(...) a função fantástica desempenha um papel direto na ação: não há ‘obras da imaginação’ e toda criação humana, mesmo a mais utilitária, não é sempre aureolada de alguma fantasia? (ibid., p. 397)

O Modelo do Imaginário é um estudo cuja metodologia se aproxima da descrição

fenomenológica na medida em que, como esta última, considera os fenômenos neles mesmos,

3 Dicionário Academia brasileira de Letras. 4 (ibidem).

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de forma independente da chamada “realidade material”. É uma afirmação do importante

papel do imaginário enquanto elemento constituinte do ser humano e como possível

objeto/objetivo da ciência, pois como nos alerta Durand: “O mito e o imaginário (...)

manifestam-se como elementos constitutivos – e instaurativos, como julgamos ter mostrado –

do comportamento específico do homo sapiens.” (p.429).

O texto do Modelo do Imaginário não será transcrito aqui, será feita uma apresentação

explicativa de seus elementos essenciais. O texto original está disponível no blog da Cia5.

De início o Modelo do Imaginário anuncia uma idealização da existência dividindo-a

em Realidade e Imaginário. A Realidade é tudo o que existe entre matéria e vácuo, menos as

ondas do Imaginário. O Imaginário é definido como “o aglomerado das criações da

imaginação e demais memórias”; é formado por duas “partes”, o Imaginário Pessoal, lugar em

que se encontram as imagens do indivíduo, e Imaginário Intermitente, lugar onde estão

reunidas todas as imagens de todos os indivíduos.

O primeiro é representado aqui imageticamente por uma bolha líquida localizada em

alguma região do cérebro humano. Essa bolha traz em seu perímetro todos os sentidos (olfato,

visão, etc.) reunidos; nós chamamos essa região de Perímetro da Percepção. Ela é o limite, a

fronteira entre o Imaginário Pessoal e o Imaginário Intermitente. O Imaginário Intermitente é

composto por tudo o que está fora desta bolha líquida. Esse “tudo” são as ondas do

Imaginário, no Imaginário Intermitente estão reunidas todas as imagens já produzidas pelos

humanos.

Partimos do pressuposto de que as ondas, perturbações oscilantes de alguma grandeza

física no espaço e periódicas no tempo6, fazem parte da constituição de tudo o que existe,

afirmamos que as imagens são compostas por conjuntos de ondas que captamos pelos

sentidos. Quando esses conjuntos de ondas, que, naturalmente, estão ondulando e ecoando

infinitamente, passam pelo nosso Perímetro da Percepção, todos os sentidos reunidos agem ao

mesmo tempo gerando a imagem: modo de a consciência “ler o mundo”.

A consciência é neste Modelo chamada de Foco de Atenção e está sempre orientado

na direção de ondas amplas. A Amplitude e a Frequência são as características físicas da onda

que usamos como referencia nesse Modelo: ondas com altas amplitudes estão sempre mais

próximas do Foco de Atenção (consciência). As ondas menos amplas, estando distantes do

Foco de Atenção, vão se tornando cada vez mais fracas, elas formam as imagens que vamos 5 Neopardascideartes.blogspot.com 6 https://pt.wikipedia.org/wiki/Onda

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esquecendo com o passar do tempo. Porém, quando ocorre um encontro entre este tipo e

algum outro conjunto de ondas de mesma frequência, as amplitudes se somam e essas ondas,

que antes estavam baixas, esquecidas, se reaproximam do Foco de Atenção, da consciência. A

esse fenômeno chamamos de “amplificação de ondas do imaginário” e ele explica o processo

de lembrança.

As ondas vindas da Realidade se movimentam em direção ao Imaginário Pessoal

atravessam o Perímetro da Percepção e são traduzidas em imagem, continuam ecoando até

chegarem em um epicentro, quando retornam na direção inversa até atravessar novamente o

P.P; nesses trajetos, ao atravessar um limite de meio (líquido para o gasoso, por exemplo) as

ondas vão perdendo força, amplitude; nesse movimento de ir e vir infinito da onda ela vai

enfraquecendo, porém sua força nunca chega a zero. O lugar das ondas muito próximas de

zero, ou seja, de baixíssimas amplitudes, chamamos de “Baixo Mar do Imaginário”.

A poética para, nós nesses processos, se apresenta em situações como esta, quando

ondas baixíssimas são resgatadas e amplificadas, em outras palavras, afirmamos que

memórias ancestrais, imagens primordiais resurgem ou são resgatadas de tempos em tempos.

O Sistema Ida é uma forma de resgatar imagens arquetípicas do Imaginário, no sentido de

arquétipo que Jung nos traz, o qual seria, simplificadamente, uma imagem primordial,

exemplar.

O Modelo do Imaginário é uma obra descritiva desse espaço transcendental. Pois

devido ao “caráter pluridimensional, portanto, ‘espacial’, do mundo simbólico” (p. 32),

compreendemos o imaginário como um lugar. E, segundo o mesmo autor, não poderia ser

diferente, afinal “só há intuição de imagens no seio do espaço, lugar de nossa imaginação”.

Na medida em que é um espaço, ele pode ser “explorado”. Aqui chegamos ao Sistema Ida,

que é um método de “exploração” desse espaço transcendental, com o objetivo de mapear o

que for possível em uma vida.

Na prática funciona da seguinte forma: a Ida é a incursão da consciência no

Imaginário. A pessoa praticante partirá de uma Origem, alguma situação marcante como o

estrondo ou tomar um gole de algum líquido repentinamente. A Origem marca o início da

incursão, esta que é acompanhada pela Referência, algo repetitivo que a praticante “possa

captar pelos sentidos, como uma batida sonora, por exemplo.” (Conceito Ida). Durante a

incursão, além da Referência, elemento que “cria o caminho que se estende da Origem ao

Término”, há o Registro, uma forma de marcar as impressões da incursão de forma

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instantânea, podendo ser a gravação com uma câmera de vídeo, ou com um gravador, a

escrita, o desenho e a pintura, a dança e o movimento espontâneo. Ao final da incursão, no

Término, quando a Referência chega ao fim, nos debruçamos sobre o registro para catalogar

as imagens presentes ali, chamamos esse catálogo de “mapa”.

É a partir desse mapa, dentre outras metodologias criativas utilizadas pela Cia., que

são criadas e executadas as obras artísticas da mesma. Em outras palavras, esses mapas do

imaginário, construídos por meio do uso do Sistema Ida, tornam-se a matéria prima das obras

artísticas da Neopardas Cia. D’Artê, ou seja, a produção se dá a partir de um conjunto de

imagens identificadas por uma pessoa em um processo meditativo de observação do próprio

conteúdo imaginário. O imaginário foi certa vez definido belamente por Durand como sendo

um “museu”. A Ida é um promener entre os infinitos corredores desse museu que é a um só

tempo ancestral, contemporâneo e de vanguarda.

À medida que fazemos Idas, vamos pouco a pouco conhecendo nosso

território/conteúdo interior. Identificamos personagens, sentimentos, estéticas, diversos

elementos enfim que passam a formar um acervo consciente de imagens para as quais há

diversas finalidades. A Neoparda faz uso dessas imagens “coletadas” nas Idas como ponto de

partida para produções artísticas nas mais diversas linguagens como artes visuais (fotografias,

vídeo-dança, performances, pinturas, músicas, vestuário e esculturas).

No que concerne à produção artística, Joseph Campbell também contribui para a

construção da base teórica que norteia nossas práticas, nos referimos especialmente à sua obra

As Máscaras de Deus - Mitologia Criativa, na qual apresenta algumas concepções sobre arte e

sobre o artista que corroboram com nossa proposta estética, quando diz, a respeito dos

“artistas realmente criativos do ocidente”:

Tendo permitido que suas imaginações fossem despertadas pela força dos símbolos, eles seguiram os ecos de sua expressão interior – cada um abrindo um caminho próprio para o espaço do silêncio, onde os símbolos deixam de existir. E retornando então ao mundo e à sua comunidade, depois de aprenderem em suas próprias profundezas a gramática da linguagem simbólica, eles estão aptos a dar uma nova vida ao passado obsoleto, bem como aos mitos e sonhos do seu presente (...) (CAMPBELL, 2010, p. 94).

Em suma, o Modelo do Imaginário explica esse lugar e seu funcionamento; o Sistema

Ida é a metodologia que desenvolvemos para investigar esse lugar e seu conteúdo: as imagens.

Os artistas da Neopardas Cia. D’Artê usam essas imagens apreendidas “em suas próprias

profundezas” como matéria prima para suas criações.

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No filme IDA, por exemplo, temos a exemplificação da Ida quando uma personagem

recebe um comando misterioso, o “dance escondida” que ao ser executado a leva para uma

viagem introspectiva na qual ela encontra diversas personagens de seu imaginário com as

quais forma um “grupo treinado para quebrar tabus”. A heroína passa por provações como

lutas e desafios numa saga rumo ao auto conhecimento e à superação de si mesma.

O vídeo dança Cenas de Ridarco & Sátiros foi elaborado a partir das imagens

coletadas nas idas de dois bailarinos da Cia.. Seres ancestrais como o centauro e o satyro

surgiram como personagens e toda a narrativa constante nessas idas foi transportada para a

linguagem coreográfica e audiovisual. O espetáculo Ultraéden, realizado em 2014 também foi

totalmente construído a partir das imagens que os artistas coletaram de seus próprios

imaginários por meio do Sistema Ida.

Acreditamos que vimos contribuindo, dessa forma, com a produção de novas

metodologias de criação artística o que tem como conseqüência imediata o desenvolvimento

da arte brasileira. Assim, entendemos também que a criação artística (intuitiva e reflexiva)

desenvolvida pela Neopardas Cia. D’Artê, vem fomentar a difusão das teorias que envolvem o

imaginário dando vazão ao seu enlace com outras linguagens, que não somente a científico-

acadêmica.

A “não conclusão” e as reflexões sobre o tema

Observar os processos imaginários, fenomenológica e antropologicamente,

proporcionou ao grupo um aparato teórico capaz de dialogar diretamente com essa produção

estética original, que se realiza consciente e sistematicamente. A densidade da abordagem

durandiana sobre o imaginário nos forneceu ferramentas científicas suficientemente poéticas

para as finalidades artísticas as quais almejamos. A imagem, diz o autor em dado momento do

livro “é veículo não semiológico de alegria criadora”.

Assim reafirmamos que nossa pesquisa tem sido contínua, o que inclui o estudo detido

dos textos durandianos. Não há outra conclusão senão a de que a imagem é terreno fértil para

as artes, todos sabem. O que a Neopardas Cia. D’Artê traz como contribuição original é

exatamente um formato original de apreensão do Imaginário e um sistema próprio de

observar, analisar e catalogar as imagens que existem ali, num movimento ondulatório eterno

e, pela lógica de Durand, regido pelos Regimes Diurno e Noturno da Imagem.

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Acreditamos que as ciências do imaginário têm ainda muito por fazer, embora seja

uma área do conhecimento que vê seu desenvolvimento a partir da primeira metade do século

XX. Os grupos de estudos espalhados pelo mundo e o CRI2I (e toda herança científica

deixada por Durand e seus antecessores, como Gaston Bachelard) tem um papel crucial no

processo de difusão, preservação e produção de conhecimento dentro das ciências do

imaginário.

A Neopardas traz o anseio de contribuir de alguma forma para esses estudos, pois

cremos fortemente no potencial criativo da investigação do imaginário, estudo esse que pode

ajudar-nos muito nesse momento pelo qual passamos, um momento de transição de

paradigma cujos valores éticos e estéticos podem ser descobertos, vivenciados e

transformados a partir da investigação poética e sistemática desse terreno ainda pouco

conhecido do espírito humano.

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CENAS de Ridarco & Sátiros. Direção de Sandro Caje. Brasil, 2015. 10’15 min. Cor. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=-A3-aspT-I0

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Renovação da Casa de Reza (opy’i) em aldeias GuaraniMbya: imaginário e xamanismo

Renovation of the House of Prayers (opy) in Guarani Mbya villages: imaginary and

shamanism

Aménagement de la Maison de Priere (opy'i) dans les villages Mbya Guarani : imaginaire et chamanisme

Marília G.G. GODOY1 Alzira L.A. CAMPOS2

RESUMO Os programas culturais promovidos pela Secretaria Estadual de Cultura (SP), mediante o Edital ProAC nº 28/2014, possibilitaram a realização de iniciativas culturais de líderes religiosos Guarani Mbya com relação à construção e renovação da Casa de Reza (opy’i) em seus meios comunitários. A atuação xamânica de três lideranças retrata-se na contextualização dos valores simbólicos ligados às concepções míticas e suas expressões como prática social. O compromisso com as realizações rituais e o empenho na construção e renovação das opy’i têm as suas origens comprometidas com o imaginário mítico, configurando um mundo de experiências subjetivas anteriores às ações. As opy’i retratam-se como um locus do imaginário coletivo Guarani Mbya e mobilizam, de forma prática e renovadora, as vivências míticas também expressivas dos rituais e cerimoniais tradicionais. Palavras-chave: xamanismo; Guarani Mbya; imaginário; Casa de Reza; programa cultural. ABSTRACT The cultural programs promoted by the State's Secretary of Culture (SP), according to the ProAC nº 28/2014, made possible the realization of cultural initiatives of Guarani Mbya religious leaders, regarding the construction and renovation of the House Of Prayers (opy'i), in its communal environments. The shamanic practices of the leaderships is portrayed in the contextualization of the symbolic values linked to the mythical conceptions and its expressions as social practices. The commitment to the ritual practices and the effort put in the construction and renovation of the opy'i have its origins committed to the mythical imaginary, configuring a world of subjective experiences, followed by the actions. The opy'i are portrayed as a locus of the Guarani Mbya collective imaginary and mobilize, in a practical and innovating way, the mythical experiences, also expressed in the rituals and traditional ceremonies. Key-words: Shamanism; Guarani Mbya; Imaginary; House of Prayers; cultural program. Introdução

1 Mestrado em Antropologia Social (USP-SP), doutorado em Psicologia Social (PUC-SP). Docente do Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade de Santo Amaro (UNISA - SP). Membro do Grupo de Pesquisa Arte Cultura e Imaginário e do CERU (USP-SP) e-mail: [email protected].. 2 Mestre e Doutora em História Social (USP-SP). Livre-docente em Metodologia da História (UNESP-SP). Docente Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Santo Amaro (UNISA-SP) e-mail: [email protected].

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A experiência etnográfica aqui relatada tem como foco iniciativas de chefes religiosos

Guarani Mbya, considerados xamãs no universo simbólico e étnico ao qual pertencem.

Entende-se um trabalho com o objetivo de realizar projetos por eles reivindicados e os quais

têm como foco a construção, reconstrução e renovação da Casa de Reza, entre eles designada

opy ou opy’i no seu diminutivo. Os projetos mobilizaram um público ligado de forma

comunitária, às vezes mediante laços de parentescos, com o líder proponente, em suas

respectivas aldeias.

Essa demanda inseriu-se nas propostas oferecidas pelo Edital ProAC (no28/2014) da

SEC (SP). Três projetos encaminhados para o processo seletivo, considerados como um meio

de defesa da continuidade e preservação da cultura indígena, foram escolhidos, constando

entre as dez vagas preenchidas. Definiu-se um prêmio de R$20.000,00 para a realização de

cada um deles.

A descrição seguinte possibilita uma inicial visibilidade dos temas e considerações

sobre os conteúdos dos projetos:

* Projeto 1: Fortalecimento e revitalização das tradições religiosas Guarani Mbya (Aldeia Boa

Vista – Ubatuba – SP).

Compreende a iniciativa do líder religioso Maurício Santos em reformar a Casa de

Reza da Aldeia Boa Vista (Ubatuba). Trata-se de uma reforma que foi realizada por uma

equipe de líderes também comprometidos com o desempenho cultural religioso. A aldeia Boa

Vista possui uma comunidade de 48 famílias (aproximadamente 250 membros) e situa-se no

litoral norte de São Paulo, próxima à divisa com o Rio de Janeiro.

* Projeto 2: Ara Pyau Porã (Feliz Ano Novo): tempo e renovação entre os Guarani Mbya da

Aldeia do R. Silveira.

* Projeto 3: Resgate da Palmeira Guarikanga e Construção da cobertura da Casa e Reza (opy).

Os projetos dois e três compreendem iniciativas de líderes religiosos residentes em

áreas particularizadas onde residem suas famílias extensas. Ambos têm por objetivo projetar o

ambiente religioso de forma original e propõem distinções representativas das concepções

religiosas. Estão situados na Aldeia do R. Silveira que possui uma média de 500 habitantes.

Essa aldeia compreende um povoamento que adquiriu uma dimensão histórica central nos

últimos 50 anos, entre as várias aldeias mbya do litoral de São Paulo. O foco principal dessa

tendência e o seu magnetismo expressivo é decorrente do grande desempenho religioso

principalmente com relação à realização dos rituais e curas terapêuticas. Essas competências

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construíram-se sob a liderança de um dos mais famosos xamãs da região yvyapyre: Jijoko. Há

três anos o ambiente religioso vem sendo desafiado com o falecimento desse líder.

Conhecendo a vocação religiosa que impregna a vida cultural dos Guarani Mbya,

cujos ensinamentos são regidos pela palavra-alma — “a palavra é tudo, e tudo para eles é a

palavra” (Melià, 1989, p. 306), procura-se enfocar a presença do mito nas iniciativas

descritas, levando-se em conta a situação étnica das ocupações e o universo cultural. As

representações míticas surgem comprometidas com a vida cerimonial e religiosa na Casa de

Reza.

Pode-se refletir sobre a presença do tema do imaginário na forma em que ele irrompe

como imaginário mítico “entendido quer como o impulso para a criação ou expressão de

imagens míticas, quer como o corpo tradicional e sempre renovado dessas imagens” (Borges,

Paulo, A. E., 2003, p.45- 46).

Mediante histórias orais descritas pelos participantes e proponentes do projeto,

origina-se um campo de narrativas que remetem para uma vivência anterior a sua objetivação

como mito. Visualiza-se “uma experiência plena de integração no mundo que compromete

todas as potências do homem” (ib: p.49), permitindo que se compreenda como os Guarani

pensam e interpretam o mundo, conferindo-lhe significado e lhe acrescentando emoção. É

mais um capítulo da História das Mentalidades, de tendência etnográfica, que estuda o modo

como as pessoas comuns entendem o mundo, como organizam a realidade em suas mentes e a

expressam em seu cotidiano, criando a sua cosmologia (Darton, Robert, 1986, pp. XIII-XIV).

1. Representatividade demográfica e étnica das aldeias indígenas no Estado de São Paulo.

No Brasil os Guarani Mbya estão presentes no Rio Grande do Sul, Santa Catarina,

Paraná, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Tocantins e Pará. No estado de São Paulo constata-se a

presença de 19 aldeias (sendo três mistas com a etnia Nhandeva) com uma população de

3.177 índios (conforme FUNAI & ISA, fevereiro de 2013).3

A diversidade étnica das aldeias paulistas abrangem as etnias Terena, Nandeva (Tupi-

Guarani, Xiripá), Guarani Mbya, Kaingang, Fulni-ô, Atikum. No total eles compreendem

5.774 (conforme FUNAI & ISA, fevereiro de 2013).

3 A população geral Guarani é estimada em cerca de 98 mil, sendo que no Brasil somam perto de 51.000 (em 2008) conforme FUNASA/FUNAI (disponíveis em www.pib.sócioambiental.org/pt/c/quadro - geral acessado em 23 de fevereiro de 2012).

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Nota-se que a presença étnica dos Mbya abrange quase 80% da população indígena do

Estado. Torna-se também evidente a concentração dos núcleos de povoamento desse povo na

área litorânea do Estado de São Paulo.

Imagem 1

É preciso esclarecer que esta concentração dos Mbya tem suas raízes na temática da

sua mobilidade em direção ao leste, ao litoral. Essa definição ocorre em registros

historiográficos expressivos como “guarani modernos” (Melià, 1989; Godoy, 2003).

Tal denominação é procedente pela situação espacial e cultural que manteve os

subgrupos guaranis de forma isolada, como moradores do mato designados de forma genérica

Kaingua (Melià, 1987, p. 37). O seu isolamento permaneceu até a segunda metade do séc.

XVIII, quando viviam separados do domínio colonial (ib: p.24).

Uma estratégia de reguaranização foi mencionada por Cadogan (1959), Melià (1989,

1981), indicando populações indígenas que, após terem obtido conhecimentos dos jesuítas,

retornaram às suas tradições e práticas nativas.

Há um certo consenso entre os autores acima citados em reconhecer os antigos

Kaingua como sendo os Mbya. Consta que eles seriam os mais avessos aos ensinamentos dos

jesuítas (Melià ib:36, Godoy, ib). Não vamos esquecer que as pendências com um passado

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missioneiro surgem com frequência na bibliografia especializada no assunto (Shapiro, 1987;

Melià, 1981; Schaden, 1974; Laraia, 1986). Os temas de estudo concernentes aos Guarani

Mbya, estabelecidos nas aldeias do litoral norte do estado de São Paulo, retratam o

radicalismo cultural mencionado. Os autores registram a migração e mobilidade social dos

Guarani Mbya como provenientes do sul do Brasil, da Argentina e do Paraguai.

As levas migratórias ocorridas nos fins do século XIX e século XX estão ligadas a

fatores históricos decorrentes das influências da sociedade envolvente. Entretanto, o motivo

primordial decorre da concepção mítica desse povo, ligada à Serra do Mar, ao litoral e à

região marítima, como o locus sagrado da Terra sem Males (Yvy Mara E’ỹ) ou Terra Sagrada

(Yvyju), também representada pelo termo yvyapy (extremidade da terra), significando término,

extremo, limite. Nesses locais, um sentido de efervescência invade os habitantes e eles se

consideram eles fortalecidos e em contacto direto com as divindades. Estas se alojam nos seus

“altares” designados amba, situados no complexo geográfico descrito (ver detalhes em

Ladeira, 1992). Pertencem também a esse ideário mítico a flora, a fauna, a hidrografia, das

quais surgem objetos diversos da originalidade em questão (pedras, cascalhos, etc.).

O modo de vida designado nhandereko, torna-se viável pela construção das aldeias,

designadas tekoa (literalmente significa “local dos costumes”) no ambiente mba’eypy. Esse

termo tem o sentido de ser originário e significa também mito (Dooley, 1982:280).

Os estudos realizados a respeito aconselham que se devem evitar interpretações de

caráter essencialista sobre o tema da mobilidade e a busca da Terra Sem Males, priorizando-

se, desde os anos 80 do século passado, as condições históricas ligadas à sociedade

englobante.

As aldeias Boa Vista do Sertão do Promirim (Ubatuba) e Ribeirão Silveira (São

Sebastião) foram demarcadas nos anos de 1980, configurando uma situação espacial definida

que significou um ganho diante do sentido competitivo que invade vários alojamentos. O

padrão de dispersão próprio dos Mbya marca a organização social no interior das aldeias.

O padrão adotado é o de ter, em cada localidade, uma família extensa liderada

politicamente por uma figura masculina que a representa e a dirige. Esse aspecto é importante

porque assinala que cada liderança procurará viver em um local distinto, com sua família

extensa (Garlet & Assis, 2004, p.49).

2. Sobre a Casa de Reza (opy): universo simbólico, práticas míticas

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O enfoque central da cultura Mbya consiste em entender a sua cosmologia, o caráter

espiritual que rege a concepção da pessoa humana e sua orientação para um aperfeiçoamento

pessoal e cultural. De forma evidente, trata-se de uma realidade comprometida com uma

moldura heroica peculiar, afirmando-se também que todo Guarani é um profeta e um poeta.

(Melià 1989, p. 313).

Do ponto de vista cosmológico, a obra de Nimuendaju (1914, 1987) foi responsável

pela inauguração de um mito fundador do conhecimento sobre concepções cataclismológicas

desse povo (Villar & Combès, 2013). O foco destacado está fundamentado na existência da

Terra Sem Males (Yvy Mara E’ ỹ). Esse foco norteia o destino daqueles que seguiram os

valores responsáveis pela sobrevivência, de modo efetivo e exemplar e também indica um

desejo contínuo de procura e aproximações diversas. Dessa forma, como um movimento de

“relações” com o divino, definem-se as vivências religiosas. Elas ganham sentido pela palavra

profética e pelas formas de canto e dança.

Os três elementos constitutivos da religião Guarani, conforme foram registrados

inicialmente por Nimuendaju (ib), destacam-se a importância da palavra em toda a vivência

religiosa, o mito da criação e da destruição do mundo, como fundamento das crenças, e a

dança-oração, que é o grande sacramento ritual pelo qual se expressam com especial

intensidade (Nimuendajú, ib; Melià, ib: 304).

O sentido espiritual da pessoa humana é considerado pela presença do termo nhê’e que

significa: 1. fala, 2. som, 3. alma. (Dooley, 1982, p.28).

A condição humana inicia-se pela formação sagrada e original quando a alma-palavra

(ayvuouñe’e) está identificada pelo nome-alma (ery) o qual guia os seres humanos através da

sua revelação. Ocorre por ocasião do batismo e exige um empenho de convencimento e

devoção dos xamãs, dos xeramoĩcomo são designados, significando “nosso avô”.

Quando se pensa no termo ery, leva-se em conta toda a vida do ser humano como um

elo com as divindades que exprimem o nome (ver Godoy, ib, Ladeira, ib). Observa-se com

frequência o dom que surge dessa condição subjetiva e que exige objetividade, através do

xamanismo. “Aexaukaxeramoĩpe” (vou me demonstrar, deixar olhar-me ao xamã), ouve-se

com frequência na relação saúde-doença, que se impõe na eficácia ery (nome) como uma

força vital controlada no meio coletivo. Pertence a essa contextualização uma frequente

consideração da exigência do equilíbrio aqui/acolá “erymo’ã a”, aquilo que se mantém em pé,

o fluir do dizer (Cadogan, 1959,p . 40-42).

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Pode-se ter uma visão dessas afirmações no texto seguinte.

Essa palavra exemplar se manifesta, segundo vários autores, no mito, considerado a experiência mais direta, autêntica, imediata e originária da realidade (Eliade, 1972; Heidegger, 1960; Ricouer, 1975, 1978). Entre os Guarani, o mito aparece em rezas, hinos e relatos, aprendidos de líderes religiosos que no passado podem ter participado mística e excepcionalmente da palavra, de um ato de contemplação (hechakára). Contudo, esse ato de contemplação jamais pode suplantar a excelência da palavra entre os Guarani. Parafraseando Heidegger, pode-se dizer que a contemplação - enquanto palavra mostrada, presenciada, substantiva – (Zeige) é um estar a caminho ( Unterwegs) para a linguagem (Sprache). Depois de contemplar o grande Falar (Sagen original), anterior à fala dos mortais, o imperativo é dizer (sagen), pois no dizer original é que surgem todos os outros dizeres e em todos eles há sempre um ato passivo, um “deixar-se mostrar” que precede o dizer e o mostrar humanos (Heidegger, 1960). É certo que só falar humano não seria possível extrair estas verdades. Elas procedem do fundamento da linguagem humana: substância da divindade, porção da sabedoria criadora (Cadogan, 1959, p. 19). Palavra: a justa medida para os mortais e os imortais (H. Clastres, 1978, p.88-9). Ayvu: substância simultânea do divino e do humano. E por poderem apenas viver conforme sua própria substância, os seres humanos não tem outra alternativa do que conforma-se incessantemente à relação original que os sujeita à divindade (P. CLASTRES, 1990, p. 27),...(CHAMORRO, 1998, p. 51).

Essas considerações ressaltam como o fortalecimento da pessoa e sua realização

implicam a forma como a vida tem continuidade e como é preciso dispor do esforço e

reversibilidade do tekoaxy, significando o modo de ser imperfeito próprio da atualidade e

representativo da situação de envolvimento com os juruá (termo utilizado para designar os

brancos).

Ao lado das caminhadas (oguataa), que foram estudadas como práticas renovadoras da

sobrevivência, destaca-se a busca contínua da Terra Sem Males, notando-se o empenho que

os mitos exigem como práticas sociais.

Litaiff (2004, p.16-17) considera o sentido prático dos mitos como forma de

orientação e justificação das práticas sociais, “mito e práxis” (ib). O pensamento e as práticas

guarani sugerem a perspectiva holística, que prescreve que, para ter acesso à Terra Sem

Males, é necessário estar vivo e pertencer a uma comunidade “guarani”. Há, ademais, um

sentido próprio de uma relação ecológica com o meio ambiente (ib).

A Casa de Reza, ao fazer circular mitos da comunidade e ensinar o Guarani a viver

conforme o nhandereko, define-se como um centro de uma comunicação terrena/extra terrena.

Os rituais (canto e dança, xamanismo) que aí são realizados implicam performances e

especializações, com destaques para as lideranças “consagradas”.

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Originam-se nos discursos diários frases expressivas ligadas ao termo jaa (vamos!),

que se complementam com os termos jaajajeroky (vamos dançar), jaajaporaei(vamos

cantar),jaajapytaopy’ire (vamos “ficar” na Casa de Reza), e outros como monhendu (fazer

ouvir), nhembo’e (aprender), poraei (cantar), mbojerovia(fazer crer). Os verbos indicam o

sentido centrípeto da opy na definição do cotidiano. Assim, a educação decorre dessas

iniciativas, ligadas ao viver ao lado das divindades pelos rituais sagrados. Estes, por sua vez,

compreendem os rituais de batismo e de consagração da erva mate, com a ordenação do ciclo

ritual. Entretanto, são nos encontros cotidianos que ocorrem os rituais rotineiros, que dão um

sentido pleno de continuidade.

O caráter sagrado e intrínseco da opy surge em todas as comunidades e às vezes

concretiza-se como espaço relativamente informal nas próprias moradias. Tem como foco o

amba, traduzido como altar, que expressa o locus interior dianteiro, situado na direção leste

(nhanderenondere), como a direção das moradias celestes. É nessa área que incide, de forma

expressiva, o ambiente sagrado, representativo de uma dramatização conectada com o

sobrenatural. Nas palavras dos devotos, os jurua (os brancos) não conseguem entender o que

se passa no amba, “eles não enxergam”. Essa situação relembra a afirmação de que:“toda a

vida mental do guarani converge para o Além... Seu ideal de cultura é a vivência mística da

divindade, que não depende das qualidades éticas do indivíduo, mas da disposição espiritual

de ouvir a voz da revelação. Essa atitude e esse ideal são os que determinam a personalidade”

(Schaden, 1954, p. 248-9).

Com frequência ouve-se que as opy’i (Casa de Reza) podem-se transformar em

veículos de transporte para a Terra Sagrada, com o empenho dos grandes xamãs. Madrugada a

fora, o clima interior ligado ao som (endu), à fumaça (ataxĩ) ao uso do cachimbo (petỹgua),

do fumo (petỹ) permite a origem de um estado contextualizado como mbaraete(forte) ou

nemomburu(esforçar-se). Utopia e realidade desenvolvem-se nessa contextualização,

encontrando-se a orientação diária da movimentação da terra frente à divindade solar

(Kuaray, sol), presentes na obra de um conhecido antropólogo, intitulada Os Filhos do Sol...

(Littaif, ib).

Na sociocosmologia guarani a abordagem dos princípios de organização social e de

dimensão ritualizada originam-se na opy’icomo um centro da aldeia ou dos grupos patrilocais,

que se constituem nas comunidades de parentelas.

A construção das casas de rezas dos projetos mencionados são reconhecidas como

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iniciativas de uma profecia e do desejo de encaminhar a liderança a se expressar por meio do

xamanismo. O termo xamanismo manifesta-se pelas definições: opytava’e (aqueles que

fumam) e moãtaxĩva’e(aqueles que curam).

Compreende-se que

O cosmos guarani se apresenta mais como uma plataforma circular, cujas referências principais são os pontos cardeais este e oeste. Os deuses se situam em função desses pontos cardeais, neles se revelam preferentemente, e a partir deles atuam. A orientação leste-oeste não é apenas uma referência solar; outros fenômenos meteorológicos como trovões, relâmpagos, chuva, vento, têm sua origem num lugar desse espaço. O trovão, personificado, geralmente em Tupã, procede do ocidente, e vai em direção ao oriente, manifestado no fulgor do relâmpago (MELIÀ, ib: p.327).

3. O edital ProAC da Secretaria Estadual de Cultura (SP)

A Secretaria da Cultura do Governo do Estado de São Paulo, comprometida com uma

política pública de inclusão cultural, implementou medidas de ampliação do acesso aos bens

culturais, à descentralização das atividades, ao fomento da produção cultural e à valorização

do patrimônio cultural paulista. Dessas medidas, destaca-se o Programa de Ação Cultural –

ProAC, criado por meio da Lei Estadual 12.268/06, incumbido de desenvolver ações para

promover projetos de preservação das manifestações culturais, criandonovos espaços de

defesa do patrimônio histórico e aumentando as formas de circulação de bens culturais no

Estado de São Paulo. A modalidade “Editais”promove, financeiramente, projetos artísticos,

selecionados por meio de editais específicos, que visam a contemplar expressões culturais,

tais como teatro, dança, música, literatura, circo, artes cênicas para crianças, festivais de arte,

audiovisual, museus, diversidade e artes visuais. Incluem-se editais específicos para a

continuidade cultural de comunidades tradicionais (afro-descendentes, caiçaras, caipiras,

indígenas), que são lançados anualmente.Os editais funcionam como concursos, nos quais os

projetos inscritos são avaliados por uma comissão composta por especialistas do segmento

escolhido. A verba é oriunda de recursos próprios da Secretaria da Cultura do Estado de São

Paulo. No período de 2007 até 2014 (oito anos), foram contemplados 82 projetos do ProAC

Indígena, com uma verba de R$ 1.826.000,004.

A partir dos títulos de alguns projetos selecionados, pode-se esclarecer como se

originam os temas representativos da cultura indígena.

4 Esses dados, resultam de registros publicados nos editais da secretaria estadual de cultura (SP), de 2007 até 2014.

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- Penacho Indígena Pankararé (Etnia Pankararé, residente na área urbana de SP).

Prêmio R$18.000,00.

- Loja de Artesanato Indígena Fulni-ô (Etnia Fulnio, residente na área urbana de SP).

Prêmio R$18.000,00.

- Petygua – Cachimbo Guarani – Prêmio R$18.000,00 (Etnia Mbya).

- Mbaraetenhandereko. Fortalecer a cultura guarani R$18.000,00 (Etnia Mbya).

- KyringueNhembovy’a – os guardiões guarani (CD). Prêmio R$18.000,00 (Etnia

Mbya).

- NhandeKuerynhembo’ea: Nossas Aprendizagens, Educação Tradicional Guarani

Prêmio R$40.000,00 (Etnia Mbya).

Esses títulos sugerem a dimensão educacional tradicional dos projetos, além do

sentido de interculturalidade, características que permitem supor que venham a se tornar um

produto cultural expressivo de linguagem e de letramento moderno (ver Canclini, 2008).

4. Esclarecimentos sobre os projetos.

Projeto 1 – Fortalecimento e revitalização das tradições religiosas Guarani Mbya (Aldeia Boa

Vista – Ubatuba – SP).

Construiu-se o projeto a partir das palavras do proponente líder religioso e político da

Aldeia de Ubatuba Altino dos Santos (Wera), que retratou o sentido central da opy em sua

história na aldeia, desde os anos 90 do século XX. Esse passado destacou a emersão de muitos

rezadores e rezadoras, enfatizando que as cerimônias de batismo puderam fazer a aldeia

“crescer”. Nesse caso (diferente dos outros), trata-se de um centro da aldeia e com uma

grande representação nos cerimoniais, que mobilizam populações mais distantes.

Dado o estado precário da opy, havia um esvaziamento do público local (chuvas e

ventos invadiam o interior). “Do jeito que está não pode mais ficar” (palavras do líder).

Fotos propostas no projeto selecionado. (Projeto 1).

Foto 1 Foto 2

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Foto 3 Foto 4

Fotos da Casa de Reza em reforma

Foto 5 Foto 6

Foto 7 Foto 8

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Foto 9 - Foto da Casa de Reza Reconstruída

Projeto 2 –Ara Pyau Porã (Feliz Ano Novo): tempo e renovação entre os Guarani Mbya

da Aldeia R. Silveira

O projeto foi construído com a vontade e a disposição de Liveiz de Lima, um líder

religioso jovem (xeromoĩipyau), que está tentando assumir a antiga liderança religiosa de

Jijoko, um dos mais renomados chefes religiosos da região yvyapyre (o litoral). O empenho é

de renovação do local, principalmente pela cobertura feita com capim navalha. Trata-se de

uma matéria prima encontrada no interior da mata, a qual desperta grande interesse no

contexto místico.

Ela tem sido um meio de atrair exclusividade em um local onde a efervescência

religiosa tem uma demanda complicadíssima. Fotos propostas no projeto selecionado:

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Foto 10 - Casa de Reza de Liveis de Lima

(proponente)

Foto 11 - Telhado da Casa de Reza o qual

será substituído

Foto 12- Casa de Reza Amba (Altar)

Esse projeto deverá ser encerrado com a festa Ara Pyau (Feliz Ano Novo). Será

realizado em agosto, contando com uma grande festa, da qual participarão outras aldeias e

pessoas civilizadas conhecidas e amigas dos indígenas.

Projeto 3 – Resgate da Palmeira Guarikanga e Construção da cobertura da Casa de Reza (opy)

– Aldeia do R. Silveira.

“Preciso reflorestar a guarikanga da mata”. “Quero fazer um projeto para que meus

filhos aprendam esse plantio, temos que expandir essa planta na mata. A Casa de Reza precisa

ser refeita. Quero fazer com cobertura de guarikanga” (fala do líder proponente). Assim, o

projeto realizado por Sérgio Macena (KaraiTataendy), que é um líder religioso de uma

parentela, ganha projeção, formando um núcleo importante no interior da Terra Indígena. A

guarikanga é uma palmeira nativa da Mata Atlântica, utilizada para a cobertura de casas, que

se ouve estar em extinção.

Esse projeto prevê uma festa de inauguração, programada para agosto-setembro, com

muita devoção e animação. Será também, como no caso anterior, a festa Ka’a’i (consagração

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da erva-mate).

Fotos propostas no projeto selecionado:

Foto 13- Construção da nova Casa de Reza Foto 14 - Reflorestamento da Guarikanga

Foto 15 - Casa de Reza a ser reconstruída Foto 16 - Moradia

Foto 17 –Preparação da Cobertura Foto 18 - Guarikanga

Foto 19 – Preparação do Telhado Foto 20 – Estrada R. Silveira

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Foto 21 – Estrada R. Silveira

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pode-se entender a práxis-mito e os projetos culturais comprometidos em situações

educativas tradicionais Guarani Mbya como realizações destinadas ao fortalecimento da

identidade cultural, nas quais os sentidos religiosos expressam um imaginário mítico, que

monopoliza o mundo real. O caráter imagético e dramático que conduz à formação do

psiquismo humano indica-se coletivamente como uma representação guarani mbya do

imaginário mitológico.

Esta análise salienta o comprometimento dos projetos efetuados com a dimensão

xamânica no protagonismo dos chefes religiosos e os entende como uma fonte de valores e de

dados sobre o pensamento e a ação dos xamãs. A explicação adotada comporta princípios

explicativos que se reportam a uma instância anterior, ou o “mundo da experiência mítica”. O

grau de saber que miticamente se exprime, é o de uma realidade que não põe problemas para

resolver, nem enigmas para decifrar (Eudoro de Sousa apud Borges, Paulo A. E., ib. p.53).

O imaginário mítico procede da constituição ou manifestação imaginária do ser e de

sua imaginação íntima (Borges, Paulo A. E., ib. p.62).

REFERÊNCIAS

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O Quilombo do Paredão pela atmosfera do imaginário

The Quilombo of Paredão by the atmosphere of the imaginary

Le Quilombo de Paredão par l'atmosphère de l'imaginaire

Cláudio Baptista CARLE1 UFPel, Pelotas, Brasil

Resumo Este trabalho apresenta um estudo das características fundamentais de instalação do Quilombo do Paredão no Rio Grande do Sul, Brasil, através das ideias sobre a atmosfera do Imaginário de Gilbert Durand. O Paredão é um quilombo arqueológico com população viva ocupando a área e está em processo de demarcação territorial. O estudo tenta demonstrar porque estes escravizados escolheram este lugar para se esconder. Encontrei no campo do imaginário, no seu trajeto antropológico, a resposta. Palavras-chave: quilombo; imaginário durandiano; africanidade.

Abstract Study of fundamental characteristics of installation of the Quilombo of Paredão, in Rio Grande do Sul, Brazil, through ideas about the atmosphere of the imaginary Gilbert Durand. The Paredão is an archaeological quilombo live with population occupying the area and is in the territorial demarcation process. The study tries to demonstrate why these enslaved chose this place to hide. We found in the imaginary field in its anthropological path, the answer. Key words: quilombo; imaginary durandiano; africanity.

Introdução

O mundo religioso assegura um bom dia, uma boa colheita, uma vida segura, uma

morte gloriosa, uma vida eterna e assim por diante. É importante destacar o conhecimento que

obtive através da leitura de estudiosos da manifestação religiosa do africano no Brasil – Roger

Bastide (2001), Pierre Verger (2000; 2002) –, pela vivência na Capoeira Angola e nas casas

de Batuque e Umbanda em Porto Alegre, Cruz Alta e Pelotas. A religião para Gilbert Durand

(1997), assim como para Lévi-Strauss (1989), é um universo do pensamento humano que

sistematiza parte do sistema mítico das sociedades. Quando observa-se os quilombos não

deve-se, portanto, observá-los através da ótica ocidental, pois não são grupos constituídos a 1 [email protected]

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partir desta visão de mundo. Ao dizer isso, indico que também não mergulharemos ao

universo arquetipal, citado por Lévi-Strauss e referendado por Durand, onde “segundo Jung,

significações precisas estariam ligadas a certos temas mitológicos que ele denomina

arquétipos” (LÉVI-STRAUSS, 1989, p.241). Cabe ressaltar que muitas vezes, e eu já escutei

isso de uma antropóloga saindo de um quilombo, muitos pesquisadores não aceitam tal trajeto

antropológico das comunidades (DURAND, 1997). Tratarei das bases míticas de constituição

destes espaços, bases estas que criam a atmosfera do Imaginário (DURAND, 1997) do

Quilombo do Paredão, que são a potência na criação destes universos humanos, fruto de sua

determinação como quilombo pela sociedade envolvente.

Os autores Bastide (2001) e Verger (2000; 2002), mencionados acima, comungam

suas ideias ou pensamentos, pois as palavras expressam estes pensamentos, como os

praticantes das magias africanas. O que está manifesto no espaço público é para conhecimento

público, é o que tem valor amplo a ser mostrado, embora todo o “negro” se sinta africano nos

princípios individuais não expressos a público (BASTIDE, 2001). As formas de ser e de

pensar daquele que se identifica como africano, não são manifestas abertamente, pois o ser e a

aparência deste, como a proposta filosófica de Heidegger (1966), estão separados de maneira

evidente.

O conceito de Quilombo, ideia chave deste texto, mais antigo que encontrei (datado de

02 de dezembro de 1740) considerava "toda habitação de negros fugidos que passem de cinco,

em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles"

(MOURA, 1987, p.16). É uma construção não africana, mas ainda vigora no universo comum

da academia.

Reconheci os padrões de organização física deste espaço vinculados à africanidade – a

ideia de ser africano fora da África na articulação com as possibilidades locais de manter seu

Trajeto Antropológico (DURAND, 1997). Cabe dizer que utilizo o termo africano por uma

total impossibilidade, ainda, de reconhecer a qual contexto imagético específico este grupo

humano ali estabelecido até o presente se faz representar, pois não sei a que contexto mítico

original ele pertence, mas é evidente que está ligado a um plano não ocidental de ação, nem

mesmo no presente. Este quilombo do Paredão está constituído por afrodescendentes, como

tantos outros que já trabalhei. Identifiquei as formas de assentamento dos grupos de

remanescentes de africanos distinguindo-os pelos padrões de organização física e mítica que

os possibilitaram implementar. O trabalho que venho realizando destaca o Vale do Rio dos

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Sinos e a embocadura do Delta das ilhas formadoras do estuário do Guaíba. Diretamente o

abrigo do Monjolo no Município de Santo Antônio da Patrulha, a antiga ilha do Quilombo no

Delta do Jacuí, município de Porto Alegre, e na localidade de Paredão na divisa dos

municípios de Gravataí e Taquara – este último, tema principal deste texto. Realizei uma

interlocução com o primeiro remanescente de quilombo oficializado no RS, que são as

Comunidades de Casca em Mostardas, do Morro Alto, da Fazenda da Cachoeira, do

Maçambique, do Areal (quilombo urbano) e muitos outros na região de Pelotas (área com 34

comunidades quilombolas).

Assumi uma posição ideológica que revigora o status do saber mítico e da filosofia

popular e tentei me destituir do discurso científico iconoclasta que se coloca como o único

possuidor de verdade (LUZ, 1995). Alicerçado pela africanidade assumi posições, propus

defesas de patrimônio e retomei um pouco do conhecimento já escrito sobre a história do

período da escravidão no Rio Grande do Sul. Intensifiquei a africanidade com a retomada de

ideias míticas aqui expressas em Yorubá, que é a língua que ainda permanece forte.

A relação direta em o ser na terra e o seu ente no céu

Aprendi que o conhecimento mítico africano é utilizado a todo o momento, pois é o

elo entre nós e os nossos espíritos, e somos humanos, portanto, possuidores de espíritos.

Percebi que se isto é básico hoje para os afro-brasileiros modernos, o era com mais

intensidade no passado. Os locais de refúgio simbolizavam não apenas uma fuga aos trabalhos

e maus tratos, mas sim a possibilidade de reestruturação de seu modelo de vida.

O pensar do africano no Brasil “aparece” no seu modo de viver, então, busco os

escritos de Martim Heidegger (1966) no que este se refere ao concreto-etnológico da

existência mítica e conjugo com os conhecimentos desenvolvidos por Pierre Verger (2002),

quando este trata do africano no Brasil.

É importante dizer que a língua é a “casa do ser”, onde o ser chega e “atua”. Assim

sendo, tento expor através da língua e na interação entre iorubanos e bantus a sua

fundamentação. Não só o ser tem que possuir entendimento, mas a sua existência física, e esta

se dá no espaço, mesmo que este espaço seja imaginário, ou seja, fruto da mente humana. A

delimitação do ser é o delimitar o que é o ser e as variações em relação a isto. Neste sentido, a

forma é base para compreender, pois do termo forma é que advém o conceito de estrutura em

Levi-Strauss (1989) e Durand (1997) e que constituiu as estruturas utilizadas pelos mesmos

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autores e que, neste caso, serve para entender a relação entre estes dois mundos dos africanos

no Brasil.

O pensamento do ser africano é uma relação direta com o seu ente fora dele, mas não

desligado do mesmo, pois constitui a estrutura dele. Poderia-se dizer que o africano não está

de forma alguma distante de seu estar no mundo com relação aos desígnios dos seus

representantes nas forças da natureza, os “Orixás”, “òrìşà” (VERGER, 2002, p.17). Acima

destes está “Olódùmarè” (VERGER, 2000, p.21), o deus supremo que não recebe nenhum

culto, pois está acima da compreensão humana, ele criou os òrìşàs para governarem e

supervisionarem o mundo, então o ser humano deve se dirigir a eles com preces e oferendas.

O africano é o pensamento dos seus constituidores como entes na terra e assim o

conhecimento sobre estes é vital. Assim remontando a ideia do Olódùmarè que mora no além,

o Òrun, traduzido geralmente para “céu”, possibilita entender uma força maior que a dos

òrìşàs e dos seres humanos. Para alguns, o Òrun pode estar representado debaixo da terra. Em

Ifé há um lugar chamado de Òrun Òba Adó, onde haveriam dois poços sem fundo que seriam

o caminho mais rápido para o além. Seria isto confirmado durante as oferendas aos òrìşàs,

quando o sangue dos animais sacrificados é derramado no ojúbò, um buraco cavado na terra

em frente ao local consagrado ao deus, e os olhares se voltam para o chão e não para o céu

(VERGER, 2002, p. 22).

O certo é que o Òrun é o além, o infinito, o longínquo, em oposição ao ayé, o período

da vida, o mundo, o aqui, o concreto. Neste habitam os mortos, os Ará Òrun, que

periodicamente voltam ao Ayé para se tornarem, novamente, seres vivos Ará Ayé. E o fazem

o mais rápido possível ao que se diz Babatúndé ou Ìyátúndé, o “pai ou a mãe voltou”, isto está

longe do céu paradisíaco dos cristãos e muçulmanos. Os próprios “òrìşà” não gostam de

permanecer neste lugar e durante as cerimônias apressam-se em voltar a terra encarnando-se

nos corpos em transe dos seus descendentes que lhes são consagrados.

A base da estrutura do surgir no mundo é causa importante da confiança do

permanecer nele, mesmo que em lugar não seu inicialmente, o não território, como poderia

pensar após o seu translado para a América, mas o lugar qualquer do ser no mundo, pois ainda

era possível ao africano reconhecer este lugar como o mundo.

O mundo está em constante resolução para os africanos e estes pressupostos de

Heidegger são importantes para entender os processos da africanidade. O constante da

inconstância dos seres humanos está na inconstância da natureza e no ato contínuo de

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pretender ser. A existência de babalaôs, os “pais do segredo”, no Brasil possibilitou a

continuidade da cosmovisão africana e sua ritualização. A multiplicidade étnica trazida e

misturada no Brasil é vinda da Senegâmbia até Angola e de Moçambique da Ilha de São

Lourenço (Madagascar) (VERGER, 2002).

É importante ressaltar que não era apenas uma mão de obra que atravessava o

Atlântico durante mais de 350 anos, mas também a sua “personalidade, a sua maneira de ser a

de se comportar, as suas crenças” (VERGER, 2002, p. 23). O constitutivo banto veio ao Rio

Grande do Sul já no início da ocupação portuguesa deste estado, pela ação do tropeiro que o

transfere as perspectivas do ser tropeiro, mas que inevitavelmente possibilita uma fricção

interétnica, onde muitos termos e formas de agir se incorporam à maneira do tocador de tropa.

Os festejos eram considerados apenas lembranças nostálgicas de uma África perdida.

É provável que eles não desconfiassem que em meio a estas ‘fuzarcas’, as preces aos vodun e

inkissi se desenvolviam (na língua bantu, Inquice é a divindade dos cultos correspondente aos

orixás Nagô). Vodun é uma designação genérica de cada uma das divindades do panteão jeje,

equivalentes aos orixás iorubas – vodum: plural de vodus. No candomblé de rito jeje, o culto

aos vodus ('divindades') está ligado a religiosidade africana. Esta raiz mítica, semelhante ao

candomblé praticado no Brasil, é seguida especialmente pelos negros do Haiti e, em menor

grau, também de outras ilhas das Índias Ocidentais. O voduísmo, vudu, vuduísmo, também é

um provérbio do fon vodú que trata o 'espírito' humano e o jeje vodú que indica a 'deidade

tutelar’ ou o ‘demônio' (DICIONÁRIO ELETRÔNICO HOUAISS). É importante ressaltar

que a versão sobre Demônio, que enfatiza este dicionário, está constituída através de

concepções cristãs e preconceituosas sobre as manifestações religiosas africanas, tendo em

vista a associação direta dos rituais africanos com os desígnios do mal, criadas a partir das

pregações do Santo Ofício. A linguagem utilizada para os senhores era usada para louvar,

pelo menos nas desculpas dos praticantes, aos “santos do paraíso”. Os senhores, ainda neste

período, não sabiam das divindades dos africanos e pouco ou nada os africanos sabiam das

divindades dos europeus – o certo é que o primeiro conhecimento maior veio provavelmente

com a pesquisa do Santo Ofício da Inquisição. Aí estão as bases também para a constituição

de uma pensamento único chamado de ciência positiva “que explora um regime isomorfo

exclusivo, o objetivismo semiológico contemporâneo” e “fecha-se a priori a um humanismo

pleno” (DURAND, 1997, p. 429).

Os processos sincréticos são difíceis de precisar em sua origem, mas são notórios na

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religião atual dos afro-brasileiros. Há de se convir que os uádi (abismos) são constituídos na

separação da “mãe-África” e o remontar de seu âmago na intersecção de diversos cultos dos

múltiplos grupos culturais.

O processo de limitação que se impunha na relação com os “òrìşà” estava na sua

redefinição espaço temporal na América, tendo em vista que na África cada um estava

diretamente ligado a uma cidade e, por vezes, a um reino. “O que vem a ser ainda não é e o

que é já não necessita vir a ser” – nesta fala Heidegger (1966, p. 156) apresenta chaves para

identificar as possibilidades que aquelas cidades teriam ao serem transladadas ao Brasil, não

mais agora como cidades, nem como aldeias, mas como parcelas constitutivas destas, a

primeira parcela é o próprio indivíduo, que não se sente no mundo, mas que entende que o

òrìşà já não necessita vir a ser, ele é, e está presente nele.

E reconhecido pelo praticante das diversas religiões africanas, o òrìşà “é”, pois não

nasceu e nem precisa aparecer, é sozinho e em si mesmo sem necessitar em absoluto de

aperfeiçoamento, pois já é a perfeição. É a força natural que sustenta a existência dos outros e

dele, mesmo que num espaço que originalmente não deveria ser seu, mas que potencialmente

se tornou, a senzala.

O aprendiz dos segredos da religião e o iniciado sabem que este òrìşà não foi outrem

antes, portanto, não será depois, pois, quando se faz presente e sempre se faz, é ele todo

simultaneamente, sem meias formas nem subterfúgios típicos dos humanos, ele é único,

reunindo a si mesmo em si mesmo a partir de si mesmo, é inegavelmente cheio de força e

presença, com toda a capacidade do unificador.

Os “òrìşà” viajavam para longe junto com as famílias e, ao inserir-se em uma região

com o crescimento da família e do poder do olorixá, sacerdote do “òrìşà”, se a família é pouco

numerosa a reverência era de cunho pessoal e se abrangente era expansiva a toda a família

extensa. A ação deste olorixá não é substituída pelos membros da família que apenas o

apoiam na realização das obrigações. Com o advento da separação entre os familiares no

Brasil, as obrigações deveriam ser cumpridas individualmente até se localizar uma casa de

“òrìşà” para fazê-lo em grupo, onde aparece a ideia de um tal “pai-de-santo” que o ajudará a

cumprir corretamente suas obrigações – se este deve se tornar filho-de-santo, cabe a este “pai”

ou “mãe” preparar o “assento”, e nos terreiros existem então múltiplos “òrìşà” pessoais,

reunidos em torno do “òrìşà” do terreiro, simbolizando o reagrupamento dispersado pelo

tráfico (VERGER, 2002, p. 33).

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A constituição dos quilombos

Os vestígios localizados na área do Paredão não reportaram a existência de um

quilombo do século XIX, mas a permanência de afro-brasileiros naquela região desde, no

mínimo, o final do século XIX, mas que apresentam um dado importante de um jornal que

remonta a localidade ao final do primeiro quartel do século XIX. Depois desta rápida análise,

pode-se verificar que não foram estes os motivos que definitivamente marcaram estes locais

como quilombos.

A afirmativa de que estes locais possibilitaram acobertar escravos em fuga está

relacionada diretamente a condição física de sua inserção no terreno. O sítio do Paredão

apresenta hoje várias estradas que o cortam em várias direções, tendo em vista a ocupação

total da área por chácaras de lazer. A estrutura viária original se compunha de uma estrada

que seguia contornando a morraria principal que lhe deu nome, pelo lado oeste, até chegar ao

topo do morro, tendo de fundos uma grande falésia que impede o prosseguimento do

caminho, esta falésia está voltada para nordeste e dela é possível avistar o rio dos Sinos.

A ideia básica e inicial do estudo dos sítios em questão está ligada diretamente a

fricção interétnica, que é ocasionada por atração, onde a cultura africana não se exterminou,

mas permitiu uma transformação cultural. Esta é importante para entender estes espaços como

quilombos. O estudo em campo que visava entender Unidades Sociológicas facilitou

determinar áreas de atividades e sem atividade dentro destes sítios. O mito africano é que fez

com que estes locais se constituíssem e manteve acesa a memória em relação a seus

ancestrais, seus rituais e vitalizaram os espaços para conceber uma dinâmica africana no

Brasil. Buscando em Heidegger (1966) a relação do concreto-etnológico da existência mítica,

afirmam-se as ideias simbólicas deste povo, ratificando a filosofia africana à qual buscou-se

identificar através da religião. A busca da permanência deste africano de seu sentimento de

ser no mundo e com isso o relacionamento a toda sua religiosidade, a qual explica até a sua

condição em plena escravidão, possibilita o entender como o africano se relacionou com estes

lugares.

A primeira forma de ser, pensando já a partir de Heidegger (1966), está na língua que

é “casa do ser”, e eu tive uma particular tentativa de rememorar a língua na definição das

ideias que apresentei. A concretude do símbolo que o ser africano traz de seu mundo, além da

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língua, está para Heidegger (1966) expressa na arte, a arte que este trouxe e manteve o quanto

pode nos seus quilombos. A arte que aparece nas formas de assentarem-se e nas maneiras de

reagir dos habitantes atuais da comunidade do Paredão.

As relações entre terra e além-mundo são reverenciadas pelos africanos e expressas na

arte, diretamente no humano como ser, que é como o africano visa sentir-se no espaço do

quilombo, simbolizado nas suas ações em relação aos locais que ocuparam. Os africanos

veem nas manifestações religiosas, pela língua no trato com os orixás e pela organização

simbólica do espaço, a sua fundamentação enquanto ser no mundo. A compreensão do espaço

está no seu entendimento, tanto dele africano enquanto ser, como do seu algoz como outro

ser, e os dois explicáveis miticamente. Este mítico delimita a forma de organizar-se em

relação àquele e assim cria seus sistemas de entendimento sobre este outro.

A aparência, em Heidegger (1966), torna-se uma definição importante para determinar

o espaço para o africano. O espaço está determinado pela visão das formas que a estrutura

mítica dá ao contexto natural. Os orixás são forças da natureza e por eles é que o africano vê o

mundo, pois os vivencia a todo o momento. Esta relação com o espaço, que explicarei melhor

adiante, é feito pela aparência que é a forma como estes e nós mesmos vemos o mundo.

Os vestígios marcaram o espaço e o próprio local, que se tornou objeto deste estudo, e

a natureza foi de certa forma manipulada pelos seus habitantes. A matemática envolveu o meu

pensamento e o que poderia ser refugo demonstrou ser o ponto de partida para o entendimento

do humano por traz dele. As práticas de deposição do refugo constituíram o espaço doméstico

e, como tal, domesticado, amplos no Paredão.

As várias maneiras de tratá-los marcaram os resultados deste trabalho que, em grande

forma, estão aqui neste texto no que este pode atingir. A ação cultural, na maioria dos casos,

na ideia do oráculo, Orumilá Baba Ifám, o Pai de Ifá, ou seja, aquele que realiza a revelação

dos destinos.

Reconstruiu no Itan, história ou mito, que indicaram e indicará o processo da consulta

o que se aplica à situação concreta. Esta concretude, como relatei antes, foi atingida pela

matemática. Onde os números formam uma parte pequena deste estudo, mas diria

fundamental, pois com eles datamos e reconhecemos a inserção de um modelo ou outro de

pensamento na fricção interétnica que se estuda. As quantidades e as relações com a

estratigrafia foram medidas e reconhecidas, bem como se tentou delimitar os espaços de ações

destes africanos nestes sítios.

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As análises dos indícios deixados por estes grupos são o grande veio deste estudo, que

se afirma através de uma analogia generalista dos modos vivendis dos africanos, da sua

interação com o ambiente e da sua manifesta vontade de inserção de seu modelo de mundo na

América. Foucault (1994) escreve que a retórica dos “anciãos” deve ser o caminho a ser

desenvolvido por nós que temos origem europeia, pelo menos que manifestamente nos

vinculamos a ela e nos consideramos como tal invocando a nossa sensação de pertencimento

(BARTH, 1998), mas assim também o são o africano e seu descendente, tanto hoje quanto no

passado no Brasil.

O estudo do mito que se realiza representado pelas sutilezas da cultura material deve, a

partir da arqueologia, levar em consideração que a escolha do ambiente é faceta clara da

cultura material, assim, o próprio assentamento em sua localização é cultura material com a

qual deve-se abordar o interlocutor que é o registro deixado pela sociedade no passado. O

estudo de assentamentos de africanos e descendentes devem ser vistos, também, pelo menos

como proposta ideal, pelo próprio olho daquele que os constituiu (MERLEUA-PONTY, 2002,

166), e entremeados aos documentos da cultura material, possibilita o entendimento de uma

“estrutura de repetição”, que é o ato de eterno retorno, do reviver do mito através da filosofia

que aqui entre estes africanos, e como em quase todas as sociedades, a designa, a identifica,

dá regra e estrutura à seus hábitos.

A minha vivência com o mundo do batuque possibilitou o contato ao nível pessoal

com um dos maiores alabês do batuque gaúcho, tocador de tambor que faz com que as

divindades òrìsà se manifestem nos cultos – o Mestre Boréu (falecido Walter Calisto Ferreira

– Alabê no batuque do Rio Grande do Sul), cujo filho de sangue Jaburu (José Alberto Mello

Ferreira – professor de Capoeira Angola), me conscientizou do que pode ser dito daquilo que

não deve. É importante ressaltar este dado, pois muitos aprendizados que se tem na religião e

na ética africana não devem ser expressos pela fala e menos ainda pela escrita, pois estes têm

um momento especial para ser apreendido e tem um momento especial para ser utilizado o

conhecimento, mas não deve ser manifesto. O segredo disto mantém até hoje a própria

religião africana em uma suspeita da sociedade envolvente, que a caracteriza então como

sendo voltada para o mau.

A constatação acima permitiu estudar África e a dinâmica das populações africanas no

Brasil, entrelaçando o conhecimento étnico-religioso dos grupos africanos e descendentes. A

possibilidade de identificar o seu habitus e habitat, quando em espaço brasileiro, mas com

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toda a carga da filosofia africana, é que se apresentou diante deste estudo. O mito, em

oposição à ideologia do pequeno grupo que detém o poder, é produto coletivo e coletivamente

apropriado (BORDIEU, 2001, p.10) por estes indivíduos e perpetuado nos quilombos. A

tensão entre o Aiyê (mundo) e o Orun (além mundo), segundo Luz (1995) está na essência

deste povo. O Aiyê permeado pela ideologia está indissociável do Orun, onde o mito está

assegurado, mas deve ser revivido sempre. O mito é mais importante que a ideologia para o

africano.

Considerações finais

Ao analisar o Quilombo do Paredão sob a luz do pensamento filosófico-mítico

africano que em Bantu (língua mais comum no sul do Brasil no período da escravidão) pode

ser afirmado como o Ongira Camutuê sobre o Paredão, ou seja, o Caminho da Sabedoria

sobre o Paredão, depara-se sempre com as relações já estabelecidas sobre os africanos no

Brasil. Se há um quilombo dir-se-á que há uma Casa Grande e Senzala.

O que verifiquei nos estudos de vários quilombos, tais como Casca em Mostardas, Ilha

do Quilombo em Porto Alegre, Morro Alto em Osório, Monjolo em Santo Antônio da

Patrulha, Maçambique, Favila e Paço dos Lourenços em Canguçu, Fazenda da Cachoeira em

Piratini, Algodão em Pelotas e tantos outros, é que o quilombo do Paredão não foge a uma

lógica que está relacionada hoje a religião e, portanto, ao pensamento filosófico-mítico dos

africanos no Brasil.

Os orixás marcam todo o agir e pensar destes indivíduos mesmo que submetidos

fortemente a um panteão católico. Analisei alguns destes Orixás, tais como: o Exu (na África

e no Candomblé) ou Bará (no Batuque) – O senhor dos caminhos; Orumilá – O senhor dos

destinos e das consultas; Oxalá – Òrïsànlá ou Obàtâlá – “O Grande Orixá” ou “O Rei do

Pano Branco”; Ogum ou Ògún – O senhor da Guerra; Xangô ou Şàngó – O senhor da Justiça;

Iemanjá ou Yemọjá – A senhora do mar (ou das águas); Ode e Otim ou Oxossi – Òsóòsì –

Senhor das matas.

A iniciação religiosa que perdura até hoje, dos africanos e descendentes, foram

mantidos velados até a libertação em 1888, serviam para fortemente aproximar-se da

cosmovisão africana. Rituais, que repetiam o cotidiano de suas vidas na África de origem,

seguiam sendo vivenciadas no Brasil com a inclusão de outros aspectos e bens, mas mantendo

a maneira de agir, memória do ser africano.

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No Paredão verifiquei, assim como em outros sítios, a presença do Caminho, o Exu,

que aparece claramente. A Ilha do Quilombo é composta pelo caminho e pela água (Yemanja

ou Obá). Na área de casca – Mostardas – aparece a água salgada e doce em seus limites e

sempre foi o Caminho (das tropas para produção da zona sul do estado) que o marcaram. No

caso do Morro Alto aparece fortemente a água, o caminho e a pedra (na Fazenda Cachoeira a

Casa de Pedra). E tem-se a presença marcante de diversos cemitérios que dão os limites de

toda a área – as lideranças mais velhas são também as protetoras dos cemitérios e suas

mantenedoras, alusão clara aos Voduns (Eguns e Egunguns). O cemitério do Quilombo do

Algodão (Pelotas) e o cemitério do Rincão dos Maias no Quilombo da Favila (Canguçu) são

demarcadores fortes para aquelas comunidades, como visto no caso do Paredão. No sítio do

Monjolo ainda há matos, na representação a Ode e Otim ou Oxossi. O abrigo do Monjolo sob

rocha é um demarcador importante da Pedra, elemento vital ao africano. “A organização

dinâmica do mito corresponde muitas vezes à organização estática a que chamamos

‘constelação de imagens’” (DURAND, 1997, p. 63)

O Paredão, ao ser visto de satélite, aflora a dita pedra dos assentamentos anteriores. O

cemitério e as casas servem para a demarcação dos seus limites, apesar de terem perdido boa

parte de suas terras e a luta pela terra ainda estar profundamente imbricada pela ideia de

preservar os vizinhos, o que não é um privilégio só daquele assentamento.

No Paredão, a Religião que é pensamento filosófico-mítico do povo africano se fez

representar pelo Exu na sua proximidade ao antigo caminho das tropas. Para seu assentamento

aparece fortemente a figura de Orumilá, o senhor das consultas e dos destinos, Mandú (1880)

no passado escravista e Anita no presente quilombola. A força de Oxalá, “O Rei do Pano

Branco”, está na nobreza com que tratam seus antepassados no cemitério, o qual é guardado

por uma senhora de muita idade que compreende a força dos Eguns, antepassados, e

egunguns, antepassados míticos que demarcam o lugar de viver destes grupos, firmando o

assentamento. Neste está também marcada a presença de Ogum, o Senhor da Guerra, pois foi

no conflito permanente, que este resistiu no lugar e ainda resiste. “O mito é já um esboço de

racionalização, dado que utiliza o fio do discurso, no qual os símbolos se reúnem em palavras

e os arquétipos em ideias” (DURAND, 1997, p. 62).

Ode e Otim ou Oxossi – Òsóòsì, Senhor das Matas, aparece, mesmo no que ainda

restou da antiga mata do lugar. Ela estava lá, matas do passado africano no quilombo refúgio

é mítica. A força da tradição no Orun que conjuga a representação da passagem pelo Aiye,

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ainda que esteja representada pelos símbolos cristãos, está fortemente vincada no cemitério

dos “pretos” do Paredão. O poder da permanência marca o território onde os mais velhos

lembram sempre aos mais novos, a que se destinam e de onde vieram, como falou a senhora

guardiã do cemitério, o cotidiano na África é o cotidiano aqui.

REFERÊNCIAS

BARTH, Fredrick. Grupos Étnicos e suas Fronteiras. In.: POUTIGNAT, Philippe; STREIFF- FENART, Jocelyne. Teorias da Etnicidade, 1ª reimpr. São Paulo: Ed. Unesp, 1998. p.185-227. BASTIDE, Roger. O candomblé da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 4ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. DURAND, Gilbert. Estruturas antropológicas do imaginário: introdução a arqueologia (sic) geral. 12ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. (O sic é por ser arquetipologia). DICIONÁRIO ELETRÔNICO HOUAISS. Ed. Objetiva, Versão 1.0, Dez. de 2001. FOUCALT, Michel. Le Language De L’Espace. In: Dits et Écrits. (1954 – 1988). Páris: Gallimard, 1994. HEIDEGGER, Martin. Introdução a Metafísica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1966. LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. LUZ, Marco Aurélio. Agadá, Dinâmica da Civilização Africano-Brasileira. Salvador: SECNEB/CED-UFB, 1995. MERLEAU-PONTY, Murice. A prosa do mundo. São Paulo: Cosac & Naif, 2002. MOURA, Clóvis. Quilombos e Rebelião Negra. 7ª ed. Col. Tudo é História - Vol. 12. São Paulo: Brasiliense, 1987. VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás. Deuses Iorubás na África e no Novo Mundo. 6ª ed. Salvador: Corrupio, 2002. ______. Notas sobre o culto aos orixás e Voduns de todos os Santos, no Brasil, e na antiga Costa dos Escravos, na África. São Paulo: Ed. USP, 2000. ______. Notícias da Bahia – 1850. 2ª ed. Salvador; Corrupiu, 1999.

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O corpo e a corporeidade pelo viés da ecolinguística e da antropologia do imaginário

The body and the corpority throught the point of ecolinguistics and the antropology of imaginary’s

Le corps et la corporalité par le biais de l’écolinguistique et de l’anthropologie de

l’imaginaire

Zilda DOURADO-PINHEIRO1 Universidade Federal de Goiás, Goiás

Resumo: O presente artigo pretende tecer apontamentos iniciais para um estudo do corpo pelo viés da Ecolinguística, ciência que estuda as relações entre a língua e o meio ambiente (natural, mental e social) e da Antropologia do Imaginário, ciência que estuda o imaginário humano e os mitos. Essa proposta de estudo será esboçada a partir da confluência teórica das duas disciplinas já mencionadas, porque ambas estudam o ser humano de modo holístico tendo em vista a linguagem verbal e simbólica/mítica. Em vista disso, o artigo irá apresentar dois conceitos fundamentais: corpo e corporeidade. Palavras-chave: Corpo. Imaginário. Ecolinguística. Abstract: This paper intents to make initial apointments for a study about the human body through the point of the Ecolinguistics, the science which studies the relations about the language and the environment (natural, mental and social) and the Anthropology of Imaginary, the science which studies the human's imaginary and the myths. This proposal of research will be made from the theoretical confluence of the two themes mentioned before, because both of them study the human being in a holistic way, considering the verbal and symbolic/mythical language. The paper will introduce two important concepts: body and corporeity. Keywords: Body. Imaginary. Ecolinguistics.

Introdução

O presente trabalho apresenta os apontamentos iniciais para um estudo do corpo

humano segundo duas teorias: a Ecolinguística e a Antropologia do Imaginário. A primeira

teoria estuda as relações entre língua e meio ambiente (natural, mental e social) e a segunda

teoria estuda o modo como o ser humano produz imagens simbólicas em seu psiquismo em

uma perspectiva individual e social. Enquanto a Ecolinguística estuda as interações

1 Email da autora: [email protected]

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linguísticas no meio ambiente, a Antropologia estuda as interações simbólicas, ao nível do

imaginário, entre o ser humano e o seu grupo social. Dessa maneira, a união dessas duas

disciplinas permite um estudo da linguagem humana (verbal e simbólica) de modo holístico,

pois integra o biológico, ao psíquico, ao social e ao simbólico, de maneira que possibilite um

direcionamento para o estudo do corpo.

Para tecer essa proposta de estudo, o artigo está dividido em três partes. A primeira

apresenta a confluência entre a Ecolinguística e a Antropologia do Imaginário. A segunda

expõe a Ecologia do corpo e de que modo esta disciplina contribui para uma teorização

holística do corpo. E a terceira mostra uma primeira sistematização de um estudo

ecolinguístico e mítico do corpo, por meio de dois conceitos, o de corpo e o de corporeidade.

Ecolinguística e Antropologia do Imaginário

A Ecolinguistica é um novo paradigma nos estudos da linguagem, ela pratica a ecologia

da língua (COUTO, 2007). A ecologia tem como objeto de estudo os seres vivos e as suas

interações no meio ambiente, formando o ecossistema. A Ecolinguística se apropria desses

conceitos de interação e de ecossistema para direcioná-los ao estudo da linguagem, de modo a

definir a língua como interação e propor o estudo das inter-relações, que se dão nos níveis

mental, natural e social dentro do Ecossistema Fundamental da Língua (doravante EFL).

O nível mental diz respeito à faculdade da linguagem presente no cérebro (conforme

postula o gerativismo); o nível natural é o território onde é possível vivenciar o uso da língua;

o nível social são as relações sociais que orientam as interações entre os falantes de um

território. Para a Ecolinguística, esses três níveis estão conectados entre si nas interações

linguísticas dos falantes. Nesse sentido, eles estão presentes simultaneamente em aspectos

como o território dos falantes, as suas posições sociais e os seus conhecimentos linguísticos.

A língua é considerada como interação e se baseia na visão que a ecologia tem das

interações estabelecidas dentro de um ecossistema. Para a Ecologia, a vida se fundamenta nas

interações dos organismos vivos em seu habitat natural e só assim é possível garantir a

sobrevivência do grupo enquanto espécie. A Ecolinguística entende do mesmo modo a língua,

ela tem um ecossistema cuja sobrevivência depende das interações de seus falantes entre si,

como um povo, ocupando um determinado território e por meio de seus conhecimentos e uso

da língua.

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Couto (2009) afirma que a Ecolinguística estuda as interações verbais que se dão entre

os organismos (pessoas) do Ecossistema Fundamental da Língua (EFL) por meio da Ecologia

da Interação Comunicativa. As interações verbais de membro p¹ com um membro p² em um

espaço bem específico do território são denominadas de Atos de interação comunicativa

(AIC). Esse ato pressupõe um código, a própria língua, por isso ela é a interação linguística,

objeto de estudo da Ecolinguística.

Dentro do EFL, os atos de interação comunicativa fazem com que a língua seja viva e

diversa no uso promovido pelos seus falantes. Portanto, a língua é basicamente interação. Por

essas definições, a Ecolinguística também propõe um estudo holístico da linguagem, isto é,

estudar as inter-relações nos níveis mental, natural e social do EFL como integradas, sem

correr o risco de reificar a língua. Ecolinguisticamente, a língua é uma totalidade, e cabe ao

ecolinguista descrevê-la em sua completude.

Segundo Couto (2012), as interações no interior do EFL são de dois níveis:

exoecológicos e o endoecológicos. Os primeiros dizem respeito à relação da língua com o

mundo exterior a ela, as interações dentro da comunidade de fala, da comunidade de língua,

do contato entre línguas. As endoecológicas dizem respeito ao sistema da língua, são as inter-

relações nos níveis sintáticos, morfológicos, fonológicos e lexicais. Esses dois tipos de

interação são simultâneos dentro do EFL e por meio delas a Ecolinguística estuda as relações

entre língua e mundo natural, como também as relações entre língua e mundo social, bem

como as que se dão entre a língua e meio ambiente mental.

Acerca do meio ambiente mental, a Ecolinguística teoriza que nele está o cérebro dos

falantes, lugar de registro e desenvolvimento do conhecimento linguístico. Contudo, o cérebro

também dinamiza as nossas percepções corporais, psíquicas do mundo natural e social. Por

isso, Nenoki do Couto (2012) propõe que o meio ambiente mental comporta no cérebro o

imaginário humano, de modo que a imagens simbólicas produzidas pelo biopsiquismo

individual estão em interação com as imagens do meio social, elas são dinamizadas pela

imaginação humana, segundo os estudos da Antropologia do Imaginário.

O Imaginário e o Ecossistema mental da língua

A Antropologia do Imaginário é uma teoria epistemológica formulada por Gilbert

Durand, em 1960, com o intuito de estudar as motivações simbólicas expressas em imagens –

sejam elas verbais ou não –, a fim de investigar uma retórica profunda que, dando primazia ao

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espaço figurativo, por meio da descrição de suas atividades de conjunção e disjunção,

confirme sua função essencial de eufemização dos males do mundo. Segundo essa

perspectiva, as imagens são estudadas de acordo com o sentido e a interação que se estabelece

entre o indivíduo (aquele que imagina) e o meio cósmico e social no qual ele está inserido.

O imaginário, assim, compreende o conjunto das relações que as imagens estabelecem

no psiquismo humano, sempre em relação com a corporeidade, as pulsões subjetivas e os

meios social e natural. Uma vez que compõe todo o psiquismo humano, em sua subjetividade

(sonhos, delírios e devaneios) e racionalidade (pensamento mediado pelo conhecimento

linguístico e todas as suas possibilidades de construção de sentido), o imaginário é o entre

lugar da racionalidade e da sensibilidade, do corpo e da mente, da alma e do espírito, do

individual e do social. É essa característica fronteiriça que possibilita reconhecer a dinâmica e

a polissemia estruturante do que foi denominado por Durand de trajeto antropológico. Este é

“a incessante troca que existe ao nível do imaginário entre as pulsões subjetivas e

assimiladoras e as intimações objetivas que emanam do meio cósmico e social” (DURAND,

2002, p.41).

A imaginação, de acordo com a Antropologia do Imaginário, é a faculdade humana de

perceber, assimilar e criar imagens. Sendo assim, a imaginação é o reduto capaz de fornecer

as imagens para a construção do imaginário. Ela é a dinamização cognitiva das imagens,

enquanto que o imaginário é o modo ou o exercício de organizá-las e representá-las no

psiquismo humano. Por esse motivo, imaginar é atualizar as imagens do meio social no

psiquismo individual e vice-versa. É a imaginação que nos permite pensar, refletir, sonhar.

Por isso é uma faculdade humana. O imaginário é o que sustenta os nossos pensamentos,

sonhos, representações verbais e não-verbais.

A partir dos estudos de reflexologia de Betcherev, Gilbert Durand (2002) defende que

o imaginário humano é organizado em uma estrutura sensório-motora básica e dividida em

três gestos dominantes, típicos da espécie humana: a dominante da verticalidade, da

deglutição e a copulativa. A dominante da verticalidade refere-se à posição ereta que

coordena ou inibe todos os outros reflexos humanos. A dominante da deglutição é o ato de

nutrir-se do ser humano, a sucção e mastigação do alimento. E a dominante copulativa é o

reflexo sexual que incita o ser humano a sentir prazer e, ao mesmo tempo, a perpetuar a sua

espécie.

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Segundo Durand (2002), cada dominante reflexa (verticalidade, deglutição e cópula)

tem o imperativo de conclamar o sentido de certos símbolos para si de modo a organizá-los

em uma segunda estrutura, a qual Durand denominou de regime. O regime é o lugar onde as

imagens se agrupam em seu semantismo, ao comporem os esquemas (schémes), responsáveis

por aliarem os gestos dominantes da espécie humana (postural, digestiva e

reprodutiva/cíclica) à representação simbólica na formação das estruturas do imaginário.

Como afirma Pitta (2005, p. 22), a estrutura é uma norma de representação imaginária

relativamente estável que, ao agrupar as imagens em seu isomorfismo, possibilita a sua

classificação e a compreensão de sua significação imaginária. Desse modo, o isomorfismo

desses elementos, ou seja, a coesão de significado que relaciona esses elementos entre si,

constrói uma constelação de imagens denominadas de regimes do imaginário. Estes podem

ser divididos em diurno e noturno.

O regime diurno tem a ver com a dominante postural, a tecnologia das armas, a sociologia do soberano mago e guerreiro, os rituais de elevação e da purificação; o regime noturno subdivide-se nas dominantes digestivas e cíclicas, a primeira subsumindo as técnicas do continente e do habitat, os valores alimentares e digestivos, a sociologia matriarcal e alimentadora, a segunda agrupando as técnicas do ciclo, do calendário agrícola e da indústria têxtil, os símbolos naturais ou artificiais do retorno, os mitos e os ramas astrobiológicos. (DURAND, 2002, p. 58).

Posteriormente, houve uma reformulação da análise do regime noturno e um terceiro

regime foi postulado, o crepuscular (STRÔNGOLI, 2009, p. 27). Nele, as outras estruturas do

imaginário se aliam na construção de um tempo positivo e cíclico que reúne fases de morte e

renascimento para a construção de uma filosofia de vida. Conforme afirma Durand (2002, p.

312), “o esquema rítmico do ciclo se integrava ao arquétipo do filho e aos rituais de recomeço

temporal, da renovação e do domínio do tempo pela iniciação, pelo sacrifício e pela festa

orgiástica”. E, no prolongamento desse isomorfismo, está o mito.

Assim, o mito é um sistema dinâmico de símbolos e arquétipos que se compõe numa

presença semântica recorrente no discurso (DURAND, 2002). É a linguagem que constrói o

imaginário e funda o sentido do discurso. Os símbolos e os arquétipos revelam os mitemas,

traços e sequências míticas (unidades mínimas do mito) que estão implícitas na construção do

sentido e que, ao se repetirem, também apresentam as suas lições, como a função pedagógica

de orientar o ser humano em relação aos mistérios de sua existência. O mito é materializado

na linguagem, na educação e constitui as visões de mundo do ser humano. Por seu caráter

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pedagógico, possibilita a criação das narrativas lendárias, dos contos de fadas, das religiões e

sistemas filosóficos e, assim, permite a construção da identidade individual e coletiva pela

organização das imagens simbólicas no imaginário, conforme assinala Pitta (2005).

Para defender o imaginário como parte do ecossistema mental da língua, Nenoki do

Couto (2012) assinala que a imagem é uma impressão psíquica proveniente de uma atividade

mental, fisiológica, sustentada pela corporeidade do sujeito. Elas são (re) produzidas pelo

cérebro a partir das interações do sujeito em sua vida social em um território. Dessa maneira,

o imaginário tem um lado individual, social e um natural, os processos mentais que o

dinamizam, portanto, o colocam como o centro do ecossistema mental da língua.

Diante dessas considerações, podemos desenvolver o conceito de corporeidade de

modo a justificar o modo como ela sustenta o imaginário individual e social. Esse conceito

também irá contribuir para relacionar os estudos do imaginário com os estudos ecolinguísticos

da linguagem a partir da contribuição da ecologia do corpo.

A Ecologia do corpo: contribuições para o estudo da corporeidade

Na obra Ecologia do corpo, Celso Sanchez (2011) afirma que, para a Ecologia, o ser

humano é repleto de dimensões relacionais, por isso ele é essencialmente relacional. A saber

pelo fato de que a espécie Homo Sapiens sapiens só se definiu enquanto grupo social pelas

interações com o seu meio ambiente natural.

A estrutura de cada ser vivo está, constantemente, buscando acoplar-se com o meio em que vive, adaptar-se a ele e, para tal, modifica-se ao mesmo tempo em que modifica o próprio meio. (SANCHEZ, 2011, p.21).

Tais interações permitem compreender o corpo como elemento relacional em busca de

acoplamento e adaptação desde a sua ontogênese por meio das interações do seu ambiente

interno (células, órgãos) com o meio ambiente externo (natureza, sociedade). Desse modo, se

consideradas as interações intracelulares, entre os órgãos, a Ecologia define o corpo humano

como o seu primeiro ecossistema, e, a partir dele, como produtor de um modo de particular de

interagir com o mundo.

O corpo pode ser visto como um ecossistema que mantém seu equilíbrio dinâmico interno, homeostase, por meio de trocas dinâmicas de matéria e energia com o meio em que se relaciona. Na dimensão

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humana, estas trocas não são apenas materiais, mas são também simbólicas, linguísticas. (SANCHEZ, 2011, p.43).

Sanchez (2011) afirma que modo como o corpo humano interage com o seu meio

ambiente é denominado pela Ecologia de corporeidade. Ela é a interação ecológica dos seres

humanos em diferentes dimensões a saber: biológicas, fisiológicas, sociais, linguísticas e

simbólicas.

Segundo Sanchez (2011), a corporeidade é construída tanto biologicamente quanto

socialmente. Os diferentes grupos sociais constroem nos seus membros uma corporeidade

característica do seu meio cultural. Assim, tem-se uma sociodiversidade, diferentes

corporeidades atuando em um território e permitindo ao corpo a manutenção da vida como

espécie humana e membro de uma comunidade.

Direcionando os conceitos de corpo e corporeidade para a Ecolinguística e

Antropologia do imaginário, pode-se considerar o corpo como um ecossistema. A homeostase

é a troca de matéria e energia com o meio e a corporeidade enquanto as trocas sociais,

linguísticas e simbólicas. A corporeidade é elo entre o corpo individual e o corpo social, por

isso há uma sociodiversidade, diferentes modos de corporeidade.

Couto (2007) afirmou que o Ecossistema fundamental da língua integra o meio

ambiente mental, social e natural. Essa integração pode ser interpretada pela corporeidade dos

falantes na sua interação linguística, de modo que é a corporeidade do falante que sustenta a

interação linguística nos meios ambientes social, mental e natural. Cada falante é um corpo

em interação com um espaço, onde acontecem as interações linguísticas e simbólicas dos

membros de uma comunidade. Essas interações compõem a corporeidade.

Vale ressaltar a especificidade do meio ambiente mental, o do imaginário humano. As

trocas simbólicas do corpo são dinamizadas pelo intercambio de imagens entre o meio social

e o individual que Gilbert Durand denominou como o Trajeto Antropológico. Portanto, a

corporeidade é composta pelas interações sociais, linguísticas e simbólicas de um corpo

inserido em um ato de interação comunicativa e em um trajeto antropológico, segundo a

ecologia da interação comunicativa e a antropologia do imaginário, respectivamente.

Pode-se ilustrar essas considerações com um exemplo, a roda de capoeira angola. Nela

existe a ciranda, ela é formada pelas pessoas sentadas no chão, em círculo, de frente a uma

bateria de instrumentos (atabaque, pandeiro, três berimbaus, pandeiro, agogô e reco-reco) e

dois jogadores posicionam-se no centro. O Mestre de capoeira angola toca o berimbau

principal e dá início ao jogo. Enquanto os angoleiros jogam, todos entoam cantos de capoeira,

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eles são proferidos em conformidade com o tipo de jogo desenvolvido. Por exemplo, se há

uma mulher e um homem jogando e ela apresenta uma vantagem sobre o seu oponente, há o

costume de cantar a seguinte música: “Pimenta madura que dá semente/ já vi moça bonita

matar muita gente!”. Isso até a dinâmica do jogo mudar, daí o Mestre entoa outro canto.

A roda de capoeira angola pode ser considerada como um ato de interação linguística

porque existem membros de uma comunidade interagindo por meio de uma língua. Esse ato

está dependente do modo como os corpos desses falantes estão dispostos no espaço, como

eles se movimentam e incitam diferentes cantos consagradores da musicalidade e

comunicação nessa mesma roda. Isto é, a corporeidade pressupõe e sustenta a interação

linguística.

Um outro exemplo é a sala de aula. A aula como um ato de interação comunicativa

está sustentada pela corporeidade do professor e do aluno. Os alunos sentados em filas em

frente a um professor, este coloca-se em pé, numa postura altiva, diante de sua turma. Daí ele

começa a ministrar o seu conhecimento como o maior detentor do mesmo naquela interação

comunicativa. Quando um professor pretende inovar as suas aulas, a primeira coisa que ele

faz é interferir no modo como os corpos relacionam-se com o espaço. O professor altera a sua

corporeidade e a de seus alunos em sala de aula para modificar a dinâmica da sua interação

linguística com a turma.

Dessa maneira, faz-se necessário sistematizar um estudo do corpo e da corporeidade

pelo viés da Ecolinguística e da Antropologia do Imaginário para situar essa abordagem em

relação àquelas já consagradas pelas ciências sociais e pelos estudos da performance.

Por uma teoria ecolinguística-imaginária do corpo: conceitos básicos

A proposta de uma teoria Ecolinguística-imaginária do corpo tem como principal

objetivo construir uma análise holística do corpo. Isso pode ser alcançado pela confluência

das teorias da Ecolinguística e da Antropologia do Imaginário, porque ambas estudam o ser

humano em sua totalidade, numa perspectiva holística, aquela pela interação linguística e essa

pela interação ao nível do imaginário humano. A ecologia do corpo também pode contribuir

para o estudo holístico do corpo por considerar as diferentes interações que ele estabelece

com o seu meio ambiente.

Evidentemente, o objeto de estudo dessa teoria Ecolinguística- imaginária do corpo é o

próprio corpo. Ele é o primeiro ecossistema do ser humano, a morada do ser, o primeiro

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ecossistema do indivíduo, de onde partem todas as interações referentes ao meio ambiente

externo. Contudo, já existe a ecologia humana que estuda o corpo em sua biologia e

fisiologia, o que exige a delimitação de qual elemento (ou quais elementos) do ecossistema

corpo cabe ao estudo.

Conforme Sanchez (2011), as dimensões relacionais do corpo também são sociais,

simbólicas e linguísticas. Considerando a existência do diferentes filósofos (Foucault, Le

Breton, Courtine, etc.) estudiosos da dimensão social do corpo, ao descreverem o modo como

a cultura subjetiva e disciplina os corpos, a nossa ocupação será com as dimensões simbólicas

e linguísticas. Desse modo, o corpo é o ecossistema do ser humano por excelência e cabe à

teoria ecolingusítica-imaginaria estudá-lo em suas interações linguísticas e imaginárias.

Delimitado o objeto, cabe à pergunta, onde estudá-lo? Onde situar o corpo para

análise? O corpus de pesquisa será a corporeidade, como definida anteriormente, ela é a

interação ecológica do corpo com o meio externo. Pela interação do corpo, há a interação

linguística e há a interação simbólica, simultaneamente. A corporeidade, portanto, pode ser

considerada como a dinâmica de uma linguagem integradora dos elementos linguísticos,

extralinguísticos, proxêmicos (distância entre os corpos na comunicação), cinésicos

(expressão corporal) e simbólicos. Estudar o corpo em sua corporeidade é analisar o modo

como essa linguagem integradora está significada dentro do ecossistema ao qual o corpo

busca acoplar e se adaptar. Dessa maneira, podemos indicar alguns procedimentos iniciais de

análise.

Para iniciar um estudo ecolinguístico e imaginário do corpo faz-se necessário situar

esse corpo em acoplamento ou adaptação ao ecossistema fundamental da língua, integradora

dos meios ambientes mental, social e natural, segundo a Ecologia da interação comunicativa.

Em seguida, cabe delimitar qual será o ato de interação comunicativa (AIC) onde o corpo será

estudado em sua corporeidade. Delimitado o AIC, primeiro caberá ao analista descrever a

linguagem integradora dos elementos linguísticos, extralinguísticos, proxêmicos e cinésicos

para compor a corporeidade do corpo em estudo.

Depois de descrita a corporeidade na AIC, o analista irá interpretar quais imagens

estão evidenciadas pela corporeidade do corpo em questão, analisar o seu semantismo e qual é

o mito diretivo fundador dessa significação imaginária.

Retomando o exemplo da roda de capoeira angola, ela foi delimitada como um ato de

interação comunicativa. Na realização desse ato devem ser descritos os movimentos corporais

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e o modo como eles associam-se às interações linguísticas sustentadas pelos mesmos. No

exemplo anterior foi citada a situação de uma mulher em vantagem sobre um homem, pode-se

imaginar uma situação típica em que ela defere uma rasteira e derruba o seu oponente no

chão. Tal movimento a consagra no meio da roda e logo o jogo é associado ao canto “Pimenta

madura que dá semente/ já vi moça bonita matar muita gente”.

Segundo Nenoki do Couto (2012), existem as interações endoecológicas referentes ao

modo como as palavras inter-relacionam-se conforme a estrutura linguística da língua. Dessa

maneira, o sintagma nominal “Pimenta madura” introduz uma oração subordina adjetiva pelo

pronome relativo “que” e evidencia a supremacia do sujeito à sua ação, senão teríamos a

ordem direta da oração “A pimenta madura dá semente”. A segunda oração está marcada em

primeira pessoa e evidencia a ação “matar gente”, por meio de uma referência a algo externo

ao “eu” que diz, o que pode ser comprovado pelo sintagma verbal “Já vi”. Por tudo isso, as

palavras do canto estão organizadas na estrutura linguística do português em favor da

valorização da mulher forte, feminina (adjetivos madura e bonita) que está jogando na roda.

Feita a descrição podemos partir para a análise das imagens, segundo a Antropologia

do Imaginário. Como foi dito anteriormente, o imaginário humano possui três regimes:

diurno, noturno e crepuscular. No regime diurno agrupam-se as imagens de luta, de distinção

e heroísmo. No regime noturno estão as imagens de introspecção, comunhão e eufemização. E

o regime crepuscular comporta imagens diurnas e noturnas no desenvolvimento de uma

filosofia de vida.

No jogo da roda de capoeira angola mencionado anteriormente, a movimentação do

homem com a mulher em confronto evidencia o regime diurno das imagens, caracterizado

pelo heroísmo e pela distinção. A rasteira da mulher evidencia a quebra da verticalidade do

homem, ele é derrubado em posição de desvantagem, isso evidencia a distinção homem e

mulher, ambos heróis e oponentes. Essa distinção também é reforçada pelo canto.

Segundo Durand (2002), as imagens são ambivalentes, elas podem ter significados

distintos pelo modo como elas aparecem nos regimes diurno, noturno e crepuscular. O

alimento pode ter uma significação de intimidade, descida e acolhimento, quando pertencente

ao regime noturno das imagens (idem), contudo a Pimenta é um fruto picante, de difícil

consumo e digestão, de modo que esse alimento possui o semantismo diurno da distinção e

não da comunhão. Ainda assim, trata-se de uma pimenta madura que dá semente.

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A semente remete ao próprio ciclo da vida, representada pelo símbolo da árvore, um

ciclo dinamizado por morte e renascimento. Assim, associada à mulher, figura universal da

fertilidade, aquela que dá a vida aos seres humanos, as imagens desse canto convergem para o

a imagem da mulher terrível, representada no ocidente pela figura da Lilith, a mulher

detentora do mal e do poder de destruir a vida.

Por fim, a motivação para o surgimento desse canto, a rasteira da mulher no homem,

no plano do imaginário evidencia a queda feminizada, segundo as palavras do próprio

Durand:

Como sugere profundamente a tradição cristã, se foi pelo sexo feminino que o mal se introduziu no mundo, é que a mulher tem poder sobre o mal e pode esmagar a serpente. (DURAND, 2002, p.115)

Essas interpretações mínimas nos permitem concluir o modo como a mulher

capoeirista pode evidenciar a imagem da mulher terrível em relação ao homem em um jogo de

capoeira. Dessa maneira, os princípios de uma metodologia de estudo do corpo pela

Ecolinguística e pela Antropologia do Imaginário partem da descrição da interação linguística

e a análise das imagens em movimento evidenciadas pela corporeidade dos indivíduos em um

ato de interação comunicativa.

Considerações finais

Esses apontamentos iniciais permitem uma análise do corpo mais holística por

considerá-lo em sua totalidade e em interação com outras totalidades em sua linguagem

integral e em seu imaginário. Ao contrário de outras teorias que estudam o corpo ora como

um produto social de disciplinamento e subjetivação para o capitalismo ora como uma poética

performática, levando em consideração apenas a sua movimentação como arte. A validade

dessas abordagens é inquestionável, ainda assim considerar o corpo como uma totalidade em

interação com o meio permite compreendê-lo em sua vivência social, imaginária (mental) e

natural. Dessa maneira, pode ser bastante profícuo o desenvolvimento de uma teoria

ecolinguística-imaginária do corpo.

Referências bibliográficas

COUTO, Hildo. Ecolinguística: estudo das relações entre língua e meio ambiente. Brasília: Thesaurus, 2007.

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DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. Martins Fontes: São Paulo, 2002. NENOKI DO COUTO, Elza. Ecolinguística e Imaginário. Thesaurus, 2012. PITTA, Danielle Perin Rocha. Iniciação à teoria do imaginário de Gilbert Durand. Rio de Janeiro: Atlântica, 2005. REIS, Letícia. O mundo de pernas para o ar: a capoeira no Brasil. São Paulo: Publisher Brasil, 1997. SANCHEZ, Celso. Ecologia do corpo. Wak: Rio de Janeiro, 2011. STRÔNGOLI, Maria Thereza. O imaginário da menina e a construção de feminilidade. In: Letras de Hoje. Porto Alegre, v.44.n.4, p. 26-40, out/dez, 2009. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fale/article/viewFile/6543/4749>. Acesso em: 15 ago. 2012.

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Escrituras do corpo biográfico: um estudo a partir do imaginário e da memória

Writings of the biographical body: a study based on imaginary and memory

Écritures du corps biographique : une étude à partir de l’imaginaire et de la mémoire

Andrisa Kemel ZANELLA1 Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, São Luiz Gonzaga, RS, Brasil

Lúcia Maria Vaz PERES Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, RS, Brasil

Resumo Este trabalho refere-se a uma pesquisa desenvolvida ao longo de quatro anos no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pelotas/RS/Brasil. A pesquisa teve por objetivo realizar um estudo sobre as memórias do trajeto formativo inscritas no corpo de acadêmicas do Curso de Pedagogia, enfocando o corpo biográfico e o imaginário. O corpo biográfico foi abordado como memória decorrente do trajeto formativo de quatro alunas do Curso de Pedagogia, da Universidade Federal de Pelotas, RS, Brasil. E, o imaginário como um reservatório antropológico que no decurso da formação pode fermentar as representações sobre si mesmo e, consequentemente, sobre os futuros alunos. Palavras-chave: imaginário; corpo biográfico; memória; formação de professores. Abstract This text refers to a research developed in four years in Post-Graduation Program in Education of the Federal University of Pelotas / RS / Brazil. The research aimed at describing a study of memories that were inscribed in Pedagogy students’ bodies during their education process, with enphasis at the biographical body and the imaginary. The biographical body was addressed as the memory resulting from the formative path of four pedagogy students at the Federal University of Pelotas, RS, Brazil. The imaginary will be understood as an anthropological reservoir that can ferment representations of the self and, consequently, of future students, during training teacher formation. Key words: imaginary; biographical body; memory; teacher education

Este trabalho tem por objetivo apresentar os resultados de uma pesquisa de doutorado

realizada ao longo de quatro anos no Programa de Pós-Graduação em Educação da

Universidade Federal de Pelotas, vinculada ao Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Imaginário,

Educação e Memória (GEPIEM), com orientação da Profª. Drª. Lúcia Maria Vaz Peres. O

foco foi direcionado à interpretação do gesto como tradução do imaginário nas escrituras do

1 E-mail: [email protected]

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Corpo Biográfico, a partir da realização de um estudo sobre as memórias do trajeto formativo

inscritas no corpo das acadêmicas do Curso de Pedagogia da UFPel.

O que desencadeou a pesquisa realizada foi o pressuposto de que a memória do corpo

está nos reservatórios do trajeto formativo de cada pessoa. O que queremos dizer com isto é

que o ser humano, no decurso de sua existência, vivencia uma infinidade de acontecimentos

que poderão ficar registrados nos estratos mais profundos de si. A somatória de cada registro

integra o que aqui denominamos reservatório do trajeto formativo do sujeito, que neste

trabalho, é tematizado a partir da interpretação dos gestos das estudantes como uma tradução

do imaginário na escritura2 do Corpo Biográfico, evidenciando assim a memória inscrita no

corpo. Este enfoque foi fundador para aprofundar tal pressuposto e investir na relação entre

Imaginário e Corpo Biográfico.

Pontualmente, desenvolvemos este estudo para legitimar o corpo como um saber

relevante a ser abordado na formação de professores, pois dá visibilidade a uma linguagem

não valorizada na Educação. Linguagem que é reveladora da história do sapiens, pois está

relacionada à maneira como cada sujeito se constitui no decorrer de sua vida a partir das

experiências vividas em conexão com as heranças bio-psico-sociais herdadas de seus

ancestrais.

A pesquisa foi desenvolvida em dois campos teóricos: o Imaginário e o Corpo

Biográfico. O Imaginário inseriu-se como um campo teórico potencializador para abordar o

ser humano e a teia simbólica que o constitui. E o Corpo Biográfico inseriu-se como o campo

teórico que sustenta a premissa de que o ser humano guarda nele (corpo) uma memória. Esta

memória está relacionada às experiências que foram marcantes na vida de cada pessoa e, por

isso, ficam impressas em seu corpo, gerando mudanças por afetar o estado afetivo e

emocional.

Para efetivar o estudo proposto elaboramos um plano de trabalho focado no exercício de

biografização corporal pela improvisação teatral. Esta proposta foi desenvolvida em seis

encontros ao longo de um semestre, com quatro acadêmicas do Curso de Pedagogia da UFPel,

privilegiando o gesto como linguagem à biografização de si, num movimento de evocação das

memórias dos acontecimentos vividos e visibilização das inscrições corporais.

2 Escritura, neste contexto, é entendida como os registros que ficam inscritos no corpo de cada estudante, no âmbito físico e psíquico, a partir das experiências vivenciadas no decurso de seu trajeto formativo de vida e que, de alguma maneira, refletem na sua interação com/no mundo.

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O Imaginário: denominador das criações humanas

O ser humano, no decurso de sua existência, vivencia uma infinidade de

acontecimentos que poderão ficar registrados na forma de memória nos estratos mais

profundos de si. A somatória de cada memória integra o que aqui nomeamos os conteúdos

imaginários do trajeto formativo do sujeito, que compõem seu reservatório imaginário.

Reservatório que agrega um conjunto de crenças e valores pertencentes a uma pessoa

(DURAND, 1996). Pensamos ser necessário acrescentar que o imaginário de cada sujeito está

vinculado a um imaginário coletivo. Isto é, as imagens pessoais estão de alguma maneira

conjugadas as imagens arquetipais. São estas imagens, somadas aos sentimentos, aos gestos,

as lembranças, as experiências e as visões do real que proporcionam realizar o imaginado

(MACHADO DA SILVA, 2006). Enfim, as tonalidades de tudo que foi vivido e que de

alguma maneira repercutiu e repercute no ser humano cotidianamente. Diante disso, o

reservatório imaginário pode ser caracterizado como a impressão (gráfica) do mundo no

corpo, ao longo do processo formativo de cada pessoa.

No entanto, para acessar essa dimensão do corpo e visibilizar o reservatório imaginário

que impulsiona o ser humano a agir, é necessário um processo de retomada do que foi vivido

de algum modo. Foi este processo de retomada e visibilização do que está inscrito no corpo, a

partir de um trabalho focado na biografização corporal pela improvisação teatral, que nos

alicerçamos para tematizar sobre o Imaginário e o Corpo Biográfico.

O ser humano, nas interações com o meio, constrói um repertório de saberes e

experiências definidores da maneira como ele vai se constituindo. Nesse processo, o

imaginário tem um papel fundamental, sendo o grande denominador onde se encontram todas

as criações do pensamento humano, ativando, assim, a partir de uma perspectiva simbólica,

diferentes modos de compreensão do mundo.

Deste modo, pode-se dizer que o imaginário contempla as aptidões inatas e as heranças

ancestrais ao meio social e cultural em que o sujeito está inserido. Portanto, ele é o conector

que estrutura o entendimento humano; que, para Durand (2001), passa a ser um conector

obrigatório pelo qual se forma qualquer representação humana, que é tramada nas articulações

simbólicas que advêm das intimações de toda a ordem do vivido, arraigado numa bio-história

pessoal. Para Durand (1988, 1996, 2002), a representação é sempre uma re-(a)presentação do

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objeto ausente. Por isso, ao longo do texto é utilizado as duas formas de escrita: representação

e re-(a)presentação.

Esta conexão proporciona uma maneira singular do indivíduo interagir, intimando-o a

um movimento de expansão e renovação embasado em processo de simbolização que o fazem

efetivamente participar da totalidade do mundo. É na confluência dessas articulações que se

dá a composição de imagens. Imagens que partem de um trajeto antropológico com suas

trocas entre as pulsões sociais, culturais e psíquicas.

A noção de trajeto antropológico (DURAND, 1988, 1996, 2001, 2002) engloba

aspectos que vão desde o nível neurobiológico até o nível cultural. Isto quer dizer que a

imagem, pregnante de conteúdo, vai ser produzida pelos imperativos do sujeito que estão

associados à forma como ele assimilou e acomodou as experiências vividas (experiências

afetivas e subjetivas) e os estímulos do universo que lhe rodeia. Cabe ressaltar que a

articulação dos conceitos de assimilação, acomodação e adaptação, propostos por Piaget, com

o campo teórico do Imaginário, foi empreendida por Durand. Nessa relação subsume-se um

jogo que acontece via imaginário entre os gestos pulsionais, o meio social e material em que

está inserido, bem como suas matrizes fundadoras. Tais matrizes são frutos da herança dos

antecessores e das diferentes demandas que advêm do meio, compondo assim a base sobre

como cada pessoa se constituiu e interage em seu contexto.

Corpo e memória: o corpo tem memória!

A abordagem do corpo na pesquisa está associada à ideia de habitáculo (JOSSO,

2009a), que abarca a concepção de “suporte” onde ficam registradas as experiências humanas.

Ao mesmo tempo, associa-se a ideia de protagonista das assimilações e acomodações de

elementos conhecidos e não conhecidos, a partir de uma linguagem que não necessita

prioritariamente da palavra, mas que fala a partir da rigidez e fluidez dos gestos. Gestos que

trazem vestígios das experiências que foram significativas no decorrer do trajeto formativo e

que deixaram registros no corpo do indivíduo. Tais registros integram a biografia do corpo e

constituem a referência do modo como o ser humano se expressa no mundo. A somatória de

tudo isto compõe o que estamos chamando de memória do corpo.

Leloup (1998) considera o corpo como o lugar de nossa memória mais arcaica, onde

nada é esquecido. Seja na primeira infância ou na vida adulta, cada acontecimento vivido

deixa sua marca no corpo de maneira profunda. Grotowski (2010) também discute sobre a

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ideia de que o corpo é memória, tendo como premissa que o corpo-memória é determinante

na maneira que o ser humano se relaciona com certas experiências ou ciclos de experiências

no decorrer de sua vida.

Essa memória constitui-se na relação do ser humano (corpo) com o meio em que está

inserido, perpassada por diferentes dimensões (JOSSO, 2008b, 2009), que dilatam a relação

do ser humano com/no mundo a partir da ideia de que para estar vivo em diferentes níveis é

necessária uma vinculação e relação consigo mesmo e o cosmos. São essas interações que

ficam na memória do corpo, registradas no reservatório de cada pessoa, podendo ser

resgatadas em algum momento, através de uma escuta do que emerge de si.

Em outras palavras, os acontecimentos vividos pelo ser humano no decorrer de sua

vida e que de algum modo lhe tocaram instalam, segundo Bois (2008b), “um estado

particular”, sendo armazenados em forma de memória em suas células e no seu universo

cognitivo, afetivo e gestual. Essa memória é “constituída por uma mistura de hábitos, de

crenças e de saberes oriundos de tempos imemoriais, transmitidos a cada um por meio de

condições específicas à sua inscrição sócio-histórica” (LAPOINTE; RUGIRA, 2012, p. 53).

As constatações do autor dizem respeito a uma memória corporizada, resultado dos

modos como o sujeito, ao longo do seu trajeto formativo, foi tocado pelos acontecimentos que

lhe sucederam. Tudo o que tocou, roçou, acariciou, os golpes que recebeu, as feridas que se

formaram, os traumas, as emoções e os afetos sentidos, ligadas a situações positivas ou não, a

maneira que assimilou as experiências vividas, mesmo reelaboradas pelo intelecto, esquecidas

e/ou apagadas, por terem se instalado de forma indelével no corpo, ficaram armazenadas em

suas camadas mais profundas, nos estratos mais subterrâneos do ser (SINGER, 2005). Diante

disso, podemos pensar no corpo do ser humano como uma memória viva do trajeto que ele

percorreu no decurso de sua vida, repercutindo na forma dele interagir no e com o mundo.

Nesse sentido, a relação homem-mundo perpassa o corpo em dois sentidos: como

repercussão de uma história herdada e de acontecimentos vividos, que produzem memórias

que se inscrevem no corpo e podem afetar tanto o aspecto anatômico/fisiológico quanto o

aspecto psíquico/emocional; e, como elemento motor à ação, pois busca nessas inscrições as

bases que servem de referências para sua interação efetiva no mundo.

O Corpo Biográfico e suas convergências

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Diante do que já foi apresentado, podemos pensar o corpo como a inscrição viva e

concreta do trajeto formativo de cada pessoa. Nesse sentido, é importante pensar que cada

acadêmica, ao chegar ao Curso de Pedagogia, traz em seu corpo os registros de um vivido.

Registros que compõem a dimensão biográfica do corpo e que são fundadores a nível físico,

cognitivo, afetivo e psíquico do que elas se tornaram e vêm se tornando no decorrer de sua

vida. Tudo isto integra o reservatório imaginário onde cada estudante busca suas referências

para interagir no espaço em que está inserida.

Por mais que o corpo esteja presente, como bem evidenciou Josso (2010), em tudo o

que elas fazem ao longo de sua vida, nem todas têm consciência do seu Corpo Biográfico,

pois para acessá-lo e visibilizá-lo é necessário assumir uma postura de pesquisador de si,

lançando-se a uma “garimpagem” minuciosa de seu patrimônio vivencial.

Cabe ressaltar que o conceito de Corpo Biográfico, inicialmente cunhado por Danis

Bois (2008a, 2008b) e, posteriormente, estudado por Marie-Christine Josso (2008a, 2008b,

2009a, 2010) e outros pesquisadores, constitui-se na conjunção de três dimensões: a vivência,

a memória e o imaginário, permeada por uma temporalidade, aqui nomeada como motores

(a)temporais no trajeto antropológico. Ou seja, a partir de uma vivência específica – neste

caso, o exercício de biografização corporal pela improvisação teatral – há a evocação de

memórias dos acontecimentos vividos, e consequentemente, a possibilidade de visibilização

do imaginário. Nesta conjunção a ideia de motores (a)temporais é entendida como o

movimento que o sujeito empreende ao garimpar seu reservatório imaginário com vistas à

presentificação das memórias que foram significativas no decurso de seu trajeto de vida. Este

movimento recorre às experiências do passado, atualizando a situação vivida no presente,

projetando-se também em direção ao futuro.

Para uma melhor compreensão, vejamos o diagrama:

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A vivência, na teoria de Bois, pode ser compreendida como a dimensão fundamental

para o desenvolvimento de um trabalho focado no Corpo Biográfico. No estudo de doutorado,

ela caracterizou-se pelo exercício de biografização corporal, enfocando a linguagem gestual

como primordial na narração de si. A partir do momento em que focamos na relação entre a

vivência e o Corpo Biográfico ancorada na teoria em questão, fomos adentrando na dimensão

fenomenológica (dimensão sensível). Nela, o corpo não é meramente objeto, mas protagonista

de reservatórios e memórias.

Desse modo, a vivência caracterizou-se pela postura de sujeito ator-espectador que cada

estudante assumiu durante o momento de experienciação com o seu corpo, exigindo uma

atenção voltada ao aqui-agora. Isto significou estar presente ao exercício corporal e a si

mesmo o tempo todo.

Neste processo, tentou-se apreender suas memórias. Elas são um registro do vivido que

assegura ao ser humano, não apenas a consciência da sua existência, mas, acima de tudo,

representa a possibilidade de regressar e (re)criar os momentos que foram fundantes em uma

vida. Em outras palavras, a memória comporta um caráter eufemizante, constituindo um dos

caminhos para driblar o tempo e o destino. Na pesquisa, significou a possibilidade de

reencontro com um tempo vivido, experimentando uma relação experiencial com o corpo.

Rompeu-se com a lógica temporal, buscando os acontecimentos significativos do passado,

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que marcaram cada uma. É fruto de uma criação que atribui uma espessura ao que foi vivido,

a partir de uma esfera fantástica, desvinculando-se das ordens do tempo.

Neste sentido, a memória possibilita organizar, a partir de um fragmento, o conjunto

que compõe o todo, impregnada pelas significações do momento. Para Durand:

A organização que faz com que uma parte se torne “dominante” em relação a um todo é bem a negação da capacidade de equivalência irreversível que é o tempo. A memória – como imagem – é essa magia vicariante pela qual um fragmento existencial pode resumir e simbolizar a totalidade do tempo reencontrado (...) que motiva todas as nossas representações e aproveita todas as férias da temporalidade para fazer crescer em nós, com a ajuda das imagens das pequenas experiências mortas, a própria figura da nossa esperança essencial (DURAND, 2002, p. 403).

A memória é essa magia vicariante, à medida que possibilita ao ser humano, a partir de

um processo (a)temporal, reencontrar-se com o que foi significativo em sua vida, em forma de

imagens que remetem às experiências vividas. Imagens que atribuem um novo sentido ao

tempo presente, renovando a esperança diante das adversidades de um tempo que a todo o

momento relembra a esse ser, a sua finitude.

A memória, segundo Izquierdo (1989)3, é resultado das coisas que no decorrer da vida a

pessoa percebe ou sente. Relaciona-se diretamente ao armazenamento e evocação, também

chamada de recordação ou lembranças, de informações adquiridas pelas experiências vividas.

A aquisição destas memórias chama-se aprendizado. Para o autor:

O aprendizado e a memória são propriedades básicas do sistema nervoso; não existe atividade nervosa que não inclua ou não seja afetada de alguma forma pelo aprendizado e pela memória. Aprendemos a caminhar, pensar, amar, imaginar, criar, fazer atos-motores ou ideativos simples e complexos, etc.; e nossa vida depende de que nos lembremos de tudo isso. (IZQUIERDO, 1989, p.90).

Nesse sentido, a memória assume um papel fundamental, pois o armazenamento de tudo

que aprendemos no decorrer da vida, em forma de lembrança, é fator determinante à evolução

do ser humano. Assim, a aquisição de outras aprendizagens dependerá da memória produzida

anteriormente.

Esta abordagem efetivou-se como o caminho escolhido para acessar o reservatório

imaginário de cada estudante, evidenciando o trajeto antropológico que compõe a sua história

bio-psíquica-social. É neste ponto que se evidencia a contribuição do Imaginário, pois permite

3 Médico, pesquisador da área de Neurociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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acessar um conjunto de imagens, símbolos, crenças, valores, sentimentos, afetos, vestígios

que constituem a história biográfica do indivíduo.

Para Durand (2002), o imaginário, como já mencionado anteriormente, vai se produzir

na conjuntura entre o pessoal e o meio cultural, o subjetivo e o objetivo, constituindo-se na

trajetividade entre o gesto pulsional e o meio material e social. São nos entrelaçamentos entre

os gestos do corpo, os centros nervosos e as representações simbólicas que o imaginário

ganha uma ancoragem corporal que se alicerça na ligação entre a motricidade primária,

inconsciente e a representação.

Para a Antropologia do Imaginário, a representação parte de um trajeto antropológico

que resulta da constante troca, ao nível imaginário, entre os impulsos subjetivos e

assimiladores do sujeito e as intimações objetivas que partem do meio cósmico e social.

(DURAND, 2002). Neste trajeto, a representação é

A afirmação na qual o símbolo deve participar de forma indissolúvel para emergir numa espécie de “vaivém” contínuo nas raízes inatas da representação do sapiens e, na outra “ponta”, nas várias interpelações do meio cósmico e social. Na formulação do imaginário, a lei do “trajeto antropológico”, típica de uma lei sistêmica, mostra muito bem a complementaridade existente entre o status das aptidões inatas do sapiens, a repartição dos arquétipos verbais nas estruturas “dominantes” e os complementos pedagógicos exigidos pela neotonia humana (DURAND, 2001, p. 90).

No cenário da pesquisa de doutoramento, o trajeto contempla as experiências que foram

significativas na vida das estudantes no decorrer de sua história de vida. Isto é, que inscrições

relativas a estes acontecimentos ficaram impressas no corpo, abarcando uma perspectiva

relativa ao movimento que envolve o trajeto antropológico do anthropos4, a partir da

interpretação dos gestos que apareceram na proposta metodológica do estudo aqui

apresentado.

O imaginário expresso na motricidade do corpo revela a dimensão fundante na

constituição do conceito do Corpo Biográfico, uma vez que direciona a pensar o corpo como

um manancial racional e não-racional de impulsos para a ação. Por ser possuidor de sentidos,

emoções, sentimentos, afetos, imagens, símbolos e valores decorrentes do trajeto

antropológico de cada sujeito traz os vestígios da história individual e também da história da

humanidade. Estes são os fomentos dos reservatórios imaginários humanos!

4 O movimento pode ser seguido no sentido da fisiologia em direção à sociedade ou ao contrário, sociedade em direção à fisiologia (DURAND, 1988).

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Diante do que foi exposto e retomando a imagem do diagrama, a relação entre o

Imaginário e o Corpo Biográfico, efetiva-se por uma ideia motora que agregou as outras

dimensões que integram a constituição do conceito. Ou seja, sem uma vivência específica – o

exercício de biografização corporal pela improvisação teatral – não haveria a evocação de

memórias dos acontecimentos vividos e, consequentemente, não seria possível tentar

visibilizar este imaginário e, por sua vez, problematizar o Corpo Biográfico.

O campo metodológico

A partir de uma proposta focada na biografização corporal pela improvisação teatral

através do exercício de imaginação simbólica cada estudante lançou-se a uma “garimpagem”

do seu reservatório pessoal. Isto é, propusemos ativar, via “conhecimento indireto”

(DURAND, 1996), as memórias inscritas no corpo no decurso do trajeto formativo: memórias

decorrentes de acontecimentos presentes e sempre lembrados; acontecimentos adormecidos,

escondidos, ou que nunca haviam sido pensados. Para Durand (1988, p. 11-12), esta via de

acesso à consciência, proporciona re-(a)presentar o objeto ausente através de uma imagem no

sentido amplo do termo.

O exercício de evocação das memórias dos acontecimentos vividos mobilizou uma

consciência imaginante que criou novas narrativas. Narrativas oriundas dos matizes das

escrituras a que cada participante deu visibilidade no decorrer da pesquisa. Ou seja, ao

remexer nos seus guardados interiores, elas acessaram uma esfera mais profunda, que para

além dos fatos, trouxeram à tona as repercussões que estes causaram em si, atribuindo uma

“tonalidade”5 (BOIS, 2008a, 2008b) aos gestos como uma tradução do imaginário na escritura

do Corpo Biográfico, efetivando, assim, a construção de uma narrativa corporal. Esse

processo pode ser visto como resultado de uma atividade de imaginação simbólica que deu

vazão para uma história atualizada e fundadora do que cada pessoa vem sendo e se tornando

no percurso de sua vida.

Nesse viés, o gesto representou a presentificação de ações que ficaram “radicadas no

corpo” (PEREIRA, 2010). Na pesquisa, são abordados como a tradução do imaginário nas

escrituras do Corpo Biográfico e conteúdo simbólico que revelou algo preexistente relativo à

5 Danis Bois utiliza o termo tonalidade para indicar as sensações experimentadas durante as situações de terapia manual ou introspecção sensorial. Aproprio-me do termo para indicar as sensações experimentadas no decorrer do trajeto formativo do sujeito e que de alguma maneira ficaram registradas em seu corpo, sendo fundantes na maneira de interagir no mundo, atribuindo diferentes intenções à ação. Ação expressa através dos gestos durante o processo de biografização corporal pela improvisação teatral.

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experiência do mundo, à vida humana e ao processo de assimilação e acomodação do vivido.

Assim, os gestos adquirem o papel de protagonistas do movimento de interação e

simbolização do homem no mundo e a linguagem gestual apresenta-se como potente e

detonadora de imagens das quais muitas vezes a palavra não consegue dar conta. Desta

maneira, “o ‘corpo inteiro colabora na constituição da imagem’ e as ‘forças constituintes’ que

coloca na raiz da organização das representações parecem-nos muito próximas das

‘dominantes reflexas’” (DURAND, 2002, p. 50).

A interpretação do gesto contemplou os aspectos que envolvem o ser humano e a

maneira que ele interage no mundo, como resultado de uma somatória de inscrições corporais

decorrentes das experiências vividas no decurso de sua vida, a partir de um processo de

interpretação dos diferentes níveis de sentido.

Para dar visibilidade as memórias inscritas no corpo das acadêmicas do Curso de

Pedagogia foi realizada uma análise qualitativa, que culminou na convergência dos achados

da pesquisa em núcleos simbólicos para chegar aos "mitemas" (DURAND, 1996).

A pesquisa registrada em vídeo por nós, e no Diário da Experiência6 pelas acadêmicas,

contemplou três etapas de análise. São elas: 1) análise descritiva e hermenêutica dos registros

de vídeo realizado no decorrer dos encontros, com base na interpretação dos gestos, como

intuito de agrupar em núcleos simbólicos as repetições significativas; 2) análise do Diário da

Experiência das quatro estudantes em três etapas: classificatória, fenomenológica e

hermenêutica, buscando as imagens simbólicas presentes na escrita; 3) convergência dos

dados empíricos da pesquisa em núcleos simbólicos para chegar aos mitemas. Optamos neste

trabalho em enfocar somente a 3ª etapa.

Assim, entende-se por mitema o agrupamento de palavras que de algum modo exercem

o papel mitêmico. O mitema que para Durand (1996, p. 256) “é o elemento significativo mais

pequeno de um mito, caracterizado por sua redundância, a sua metábole”, é constituído por

um “pacote de relações”, imbuído de significação impregnadas de filamentos condensados.

Não se reduz a uma única palavra ou mesmo sintaxe, constituindo-se por um conjunto

semântico, abarcando a palavra significada, o atributo e o verbo.

Neste estudo o mitema representa o sentido latente que está subsumido na memória

inscrita no corpo de cada estudante. Dos mitemas encontrados (A infância presente no Corpo-

6 O Diário da Experiência é caracterizado por ser um caderno em que as estudantes registravam suas impressões em relação ao vivido. Não havia um modelo a ser seguido, foram sugeridas algumas possibilidades como: relatar, através de palavras, desenhos, imagens ou texto narrativo. Cada uma tinha total liberdade de escrita.

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terno; O desejo do voo no Corpo-cativo; Um Ser de carne que pensa, outro que age no Corpo-

fracionado; A busca pela liberdade desejada no Corpo-comedido) apresentaremos abaixo o

mitema – Um ser de carne que pensa, outro que age no corpo fracionado, como uma pequena

amostra do que foi encontrado.

Uma amostra empírica: Um ser de carne que pensa, outro que age no corpo fracionado7.

Um ser de carne que pensa, outro que age no corpo fracionado agrega o sentido latente

presente nos gestos da acadêmica C. e dá visibilidade à memória inscrita no corpo. Este

mitema congrega a ideia de separação, de divisão, evidenciada nos gestos de M. como a

desconexão entre a ação e o pensamento. Desconexão que aparece vinculada à aparição do

tempo como um inimigo presente, que provoca uma aceleração interna e privilegia a atividade

mental como soberana sobre o corpo.

A dicotomia entre o pensar e o agir, alicerçado em um racionalismo operante, insere-

se no Regime Diurno das imagens ligado à estrutura esquizomorfa – por se tratar de um

processo – e gravita em torno dos verbos de separação e segregação8. O Regime Diurno da

imagem corresponde, conforme ressalta Durand (2002, p. 180), a um “racionalismo

espiritualista”, ancorando-se no dinamismo da antítese. O autor a partir da leitura de

Minskowski, ao reconhecer os traços estruturais típicos do Regime Diurno, ressalta que o

racional

Compraz-se no abstrato, no imóvel, no sólido e rígido; o movente e o intuitivo escapam-lhe; pensa mais do que sente e apreende de maneira imediata; é frio, tal com os seus contornos nítidos, ocupam na sua visão de mundo um lugar privilegiado (DURAND, 2002, p. 185).

Nesse sentido, um ser de carne que pensa, outro que age no corpo fracionado, o

mitema de M. refere-se à dinâmica identificada em seu corpo no exercício de biografização

corporal, em que a razão, que é o ato de pensar – com a “cabeça” e não abrangendo um todo –

caracteriza-se como o comando que determina e antecipa a ação, que por estar numa posição

inferior não consegue corresponder integralmente. Esta separação é um indício forte de como

as experiências vividas no decorrer do seu trajeto formativo foram sendo assimiladas a partir

da antítese pensamento e ação. Assim, os gestos de M. caracterizaram-se pela ilustração de

7 Para nos referir às protagonistas da pesquisa, utilizamos somente letras que correspondem à inicial do seu nome, conforme sugestão das mesmas. 8 Como reflexos dominantes a perpassar este regime, a dominante postural, com os seus derivados manuais e adjuvante das sensações à distância (vista, audiofonação) (DURAND, 2002).

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um vivido, não havendo a correspondência do corpo à intenção pretendida. Diante disso, é

possível perceber uma automatização do corpo que passou a estar vinculado a uma ordem

descolada do sentir, ditando uma determinada maneira de interagir cotidianamente,

evidenciando uma rigidez nos gestos.

É necessário ressaltar, também, que este mitema é perpassado pelo elemento tempo9

que aparece visivelmente nos gestos da estudante, a partir da ideia de formigamento que se

constitui pelo esquema da agitação, do fervilhar (DURAND, 2002). Ou seja, um ritmo

operante de aceleramento que perpassou os gestos de M., representando certa angústia

relacionada a uma corrida contra o tempo – associado por ela à imagem “mundo do relógio”.

Dessa maneira, a análise aqui realizada levou-nos ao reconhecimento do esquema da

separação nos gestos de M., a partir da oposição pensamento (razão) e ação (corpo), associada

à imagem simbólica do gládio, como uma verdade operante, que corta e decepa, mas também

promove a conjunção.

A partir deste movimento vivido por M. no decorrer da pesquisa, é que abordamos o

mitema que congrega o sentido latente de suas inscrições corporais. Uma mulher que se

constituiu a partir de uma ideia predominante, que enfatiza o pensar dissociado do agir,

repercutindo em um corpo a serviço desse pensamento. Em função disso, o corpo foi deixado

de lado, como um coadjuvante no trajeto de vida.

Diante disso, pensamos que a memória inscrita no corpo de M. evidencia-se num

racionalismo que veio sendo responsável por um modo operante de agir e que resultou em

uma rigidez corporal, vista durante o exercício de biografização corporal. Exercício que, ao

mesmo tempo em que visibilizou este corpo, trouxe à tona outra possibilidade, que o colocou

como centro e protagonista da ação.

Considerações

Os mitemas, ou seja, os pequenos temas simbólicos que emergiram do empírico são

uma evidência simbólica de que o corpo é uma escritura viva das experiências que foram

significativas na vida do ser humano. Tais experiências vão sendo registradas em sua

9 Segundo o dicionário de símbolos de Chevalier & Gheerbrant (2009, p. 876), “simboliza um limite na duração e a distinção mais sentida com o mundo do Além, que é o da eternidade. Por definição, o tempo humano é finito e o tempo divino infinito ou, melhor ainda, é a negação do tempo, o ilimitado”.

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anatomia, repercutindo na dimensão física, cognitiva, afetiva e psíquica, que o faz semelhante,

mas nunca igual à outra pessoa.

Neste trabalho o corpo foi tematizado como o “habitáculo” jossoniano que abriga a

história do ser humano, ao mesmo tempo em que se constitui numa “caixa de ressonâncias”

quereniano, em cujos gestos repercute a história singular e plural. Ao mesmo tempo em que

revela o trajeto de formação das estudadas, também pode reverberar em outras pessoas com

histórias e trajetos similares.

O que queremos dizer com isto é que a memória corporizada, visibilizada ou não

através dos gestos, pode ser resultado do modo como assimilamos os acontecimentos vividos

em consonância à herança biológica e ancestral. Esta assimilação, invariavelmente, pode não

estar associada a um processo consciente, mas direta ou indiretamente o que é significativo

fica em nós, nas suas diferentes formas. Por exemplo: alegria, tristeza, medo, segurança,

saúde, doença, dentre outras possíveis manifestações.

Tudo isto constitui as escrituras do Corpo Biográfico, que foi problematizado através do

mitema apresentado como representante do reservatório do imaginário de cada pesquisada.

Assim, o corpo pode ser comparado a uma "escritura de argila" (CREMA, 1998) que

revela o nosso texto mais concreto que está sempre sendo reescrito. À medida que as

intimações vão se apresentando a cada pessoa, novas escrituras são somadas ao Corpo

Biográfico, atribuindo outras tonalidades ao repertório gestual.

Diante disso é possível dizer que através da leitura dos gestos é possível encontrar os

indícios que fazem o sujeito (re)agir no contexto em que está inserido como porta de acesso às

escrituras que compõem o reservatório imaginário de cada ser humano. Além disso, o gesto é,

genuinamente, o Imaginário para Gilbert Durand (2002), por ser ele universal e atemporal.

Nesse sentido, a visibilização da memória inscrita no corpo legitimou o corpo como um

saber relevante, o qual se constitui num saber ser-fazer. Apresentando-se, assim, como uma

possibilidade para contemplar outra abordagem na formação inicial de professores.

Abordagem centrada no corpo como uma matéria sutil e sensível, tão importante quanto às

matérias pragmáticas e utilitárias e que precisa ser “acordada” e valorizada, para então,

repercutir nos projetos curriculares dos Cursos de Pedagogia.

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