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Caio Prado Júnior Florestan Fernandes CLÁSSICOS SOBRE A REVOLUÇÃO BRASILEIRA EDITORA EXPRESSÃO POPULAR

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Page 1: CLÁSSICOS SOBRE A REVOLUÇÃO BRASILEIRA...Foto da capa: Manifestação das ligas camponesas em Recife, 1963. Apoio: Iconographia A REVOLUÇÃO BRASILEIRA Caio PradoJunior (1966)

Caio Prado JúniorFlorestan Fernandes

CLÁSSICOS SOBREA REVOLUÇÃO BRASILEIRA

EDITORAEXPRESSÃO POPULAR

Page 2: CLÁSSICOS SOBRE A REVOLUÇÃO BRASILEIRA...Foto da capa: Manifestação das ligas camponesas em Recife, 1963. Apoio: Iconographia A REVOLUÇÃO BRASILEIRA Caio PradoJunior (1966)

RevisãoAna Corbisier

Projeto gráfico, capa e diagramaçãoZAP Design

APRESENTAÇÃOPlinio de Arruda Sampaio Jr.Plinio de Arruda Sampaio 7

Foto da capa: Manifestação das ligas camponesas em Recife, 1963.Apoio: Iconographia

A REVOLUÇÃO BRASILEIRACaio Prado Junior (1966) 25

O QUE É REVOLUÇÃOFlorestan Fernandes (1981) 55

Impressão e acabamentoCromosete

SETE NOTAS SOBRE A TEORIA DAREVOLUÇÃO BRASILEIRAPlinio de Arruda Sampaio J r. 149

Todos os direitos reservados.Nenhuma parte deste livro pode ser utilizadaou reproduzida sem a autorização da editora.

EDITORA EXPRESSÃOPOPULARRua Bernardo da Veiga, 14CEP 01252-020 - São Paulo-SPFone/Fax: (l1) 3105.5087e-mail: [email protected]

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A REVOLUÇÃO BRASILEIRA

o termo "revolução" encerra uma ambigüidade (aliásna verdade muitas, mas fiquemos aqui na principal)que tem dado margem a freqüentes confusões. No sen-tido em que é ordinariamente usado, "revolução" querdizer o emprego da força e da violência para a derruba-da de governo e tomada do poder por algum grupo,categoria social ou outra força qualquer na oposição."Revolução" tem aí o sentido que mais apropriadamen-te caberia ao termo "insurreição". Mas "revolução" temtambém o significado de transformação do regime po-lítico-social que pode ser e em regra tem sido histori-camente desencadeada ou estimulada por insurreições.Mas que necessariamente não o é. O significado pró-prio se concentra na transformação, e não no processoimediato através de que se realiza. A Revolução Fran-cesa, por exemplo, foi desencadeada e em seguida

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acompanhada, sobretudo em seus primeiros tempos,de sucessivas ações violentas. Mas não foi isso, por cer-to, que constituiu o que propriamente se entende por"revohição francesa". Não são, é claro, a tomada daBastilha, as agitações camponesas de julho e agosto de1789, a marcha do povo sobre Versalhes em outubrodo mesmo ano, a queda da Monarquia e a execução deLuís XVI, o terror e outros incidentes da mesma or-dem que constituem a Revolução Francesa, ou mes-mo simplesmente que a caracterizam e lhe dão con-teúdo. "Revolução" em seu sentido real e profundo,significa o processo histórico assinalado por reformase modificações econômicas, sociais e políticas sucessi-vas, que, concentradas em período histórico relativa-mente curto, vão dar em transformações estruturais dasociedade, e em especial das relações econômicas e doequilíbrio reciproco das diferentes classes e categoriassociais. O ritmo da História não é uniforme. Nele sealternam períodos ou fases de relativa estabilidade eaparente imobilidade, com momentos de ativação davida político-social e bruscas mudanças em que se al-teram profunda e aceleradamente as relações sociais.Ou mais precisamente, em que as instituições políti-cas, econômicas e sociais se remodelam a fim de me-lhor se ajustarem e melhor atenderem a necessidadesgeneralizadas que antes não encontravam devida satis-fação. São esses momentos históricos de brusca transi-ção de uma situação econômica, social e política paraoutra, e as transformações que então se verificam, queconstituem o que propriamente se há de entender por"revolução" .

É nesse sentido que o termo "revolução" é empre-gado no título do presente livro. O que se objetiva neleé essencialmente mostrar que o Brasil se encontra naatualidade em face ou na iminência de um daquelesmomentos acima assinalados em que se impõem depronto reformas e transformações capazes de reestrutu-rarem a vida do país de maneira consentânea com suasnecessidades mais gerais e profundas, e as aspiraçõesda grande massa de sua população que, no estado atu-al, não são devidamente atendidas. Para muitos - masassim mesmo, no conjunto do país, minoria insignifi-cante, embora se faça mais ouvir porque detém nas suasmãos as alavancas do poder e a dominação. econômica,social e política - tudo vai, no fundamental, muito bem,faltando apenas (e aí se observam algumas divergênci-as de segunda ordem) alguns retoques e aperfeiçoa-mentos das atuais instituições, às vezes não mais quesimples mudança de homens nas posições políticas eadministrativas, para que o país encontre uma situaçãoe um equilíbrio satisfatórios. Para a grande maioria res-tante, contudo, e mesmo que ela não se dê sempre contaperfeita da realidade, incapaz que é de projetar em pla-no geral e de conjunto suas insatisfações, seus desejose suas aspirações pessoais, o que se faz mister, para lhedar condições satisfatórias e seguras de existência, émuito mais que aquilo. E sobretudo algo de mais pro-fundo e que leve a vida do país por novo rumo.

E os fatos, adequadamente analisados e profundos,o confirmam. O Brasil se encontra num destes instan-tes decisivos da evolução das sociedades humanas emque se faz patente, e sobretudo sensível e suficiente-

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mente consciente a todos, o desajustamento de suasinstituições básicas. Donde as tensões que se observam,tão vivamente manifestadas em descontentamento einsatisfações generalizadas e profundas; em atritos econflitos, tanto efetivos e muitos outros potenciais, quedilaceram a vida brasileira e sobre ela pesam em per-manência e sem perspectivas apreciáveis de soluçãoefetiva e permanente. Situação essa que é efeito e causaao mesmo tempo, da inconsistência política, da inefi-ciência, em todos os setores e escalões, da administra-ção pública; dos desequilíbrios sociais, da crise econô-mica e financeira, que vinda de longa data e mal enco-berta durante curto prazo - de um a dois decênios -por um crescimento material especulativo e caótico,começa agora a mostrar sua verdadeira face; da insufi-ciência e precariedade das próprias bases estruturais emque assenta a vida do país. É isso que caracteriza o Bra-sil de nossos dias. É acima de tudo, e como comple-mento, o mais completo ceticismo e generalizada des-crença no que diz respeito a possíveis soluções verda-deiras dentro da atual ordem de coisas. O que leva,não se enxergando, ou não se enxergando ainda, emtermos concretos, a mudanças dessa ordem, a uma cor-rida desenfreada para o "salve-se quem puder", cadaqual cuidando unicamente (e por isso erradamente)de seus interesses imediatos e procurando tirar o me-lhor partido, em proveito próprio e para o momentoem curso, das eventuais oportunidades que porventurase apresentem ao alcance da mão.

É esse o panorama desalentador que oferece a reali-dade brasileira de nossos dias, para quem vai com sua

análise ao fundo das coisas e não se deixa iludir poralgumas aparências vistosas que aqui ou acolá disfar-çam o que vai por detrás e constitui a substância da-quela realidade. Na base e origem desses graves sinto-mas se encontram desajustamentos e contradições pro-fundas que ameaçam e põem em choque o desenvol-vimento normal do país e a própria conservação de seusvalores morais e materiais. É isso que se encontra emjogo, e é o que se procurará mostrar no presente livro,ao mesmo tempo que tentando trazer a complemen-tação dessa análise que vem a ser as diretrizes, emboramuito gerais e amplas pelas quais se deverão, ou antes,se poderão orientar as reformas institucionais de vultoque a atual conjuntura impõe. Uma questão se liga oudeve necessariamente ligar-se à outra. Não é praticávelpropor reformas que constituem efetivamente soluçãopara os problemas pendentes, sem a condição de queessas reformas propostas se apresentem nos própriosfatos investigados. Em outras palavras, de nada servi-ria, como tantas vezes se faz, trazer soluções ditadaspela boa vontade e imaginação de reformadores, inspi-rados embora na melhor das intenções, mas que, pormais perfeitas que em princípio e teoricamente se apre-sentem, não encontram nos próprios fatos presentes eatuantes as circunstâncias capazes de as promover, im-pulsionar e realizar. É de Marx a observação tão justa ecomprovada por todo o decorrer da História, que osproblemas sociais nunca se propõem sem que, ao mes-mo tempo, se proponha a solução deles que não é, nempode ser forjada por nenhum cérebro iluminado, masse apresenta, e aí há de ser desvendada e assinalada, no

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próprio contexto do problema que se oferece, e na di-nâmica do processo em que essa problemática se pro-põe. E é assim porque contrariamente a certa maneiramuito vulgarizada, mas nem por isso menos falsa deconsiderar os fatos históricos, esses fatos não se desen-rolam em dois planos que seriam, um deles, aquelesfatos propriamente; e o outro, o da problemática e dasdecisões a serem aplicadas aos mesmos fatos. Em ou-tras palavra.s, não se podem destacar - embora se dis-tingam, mas dialeticamente se liguem, isso é, se inte-grem em conjunto num todo - os fatos históricos (quesão acontecimentos políticos, econômicos e sociais) daconsideração desses mesmos fatos, do conhecimentoou ciência deles, para o fim de lhes dar este ou aqueleencaminhamento desejado. Os fatos históricos, huma-nos que são, diferem dos fatos físicos que são exterio-res ao Homem. Neles, pensamento e ação (que cons-titui o fato) se confundem, ou antes se interligam numtodo em que, separados embora, se compõem em con-junto. O Homem é nos fatos de que participa, simul-taneamente autor e ator, ser agente e ser pensante; e éagente na medida em que é pensante, e pensante comoagente. Não pode assim - e de fato não é assim que sepassam as coisas - dirigir os acontecimentos, nem mes-mo considerá-Ios adequadamente e os analisar, de foradeles .•E "direção" e "análise" já constituem em si, epor si, propriamente fatos que também hão de ser leva-dos em conta. Em conseqüência, a solução dos pen-dentes problemas econômicos, sociais e políticos, e asreformas institucionais que se impõem, hão de ser pro-curadas e encontradas nas mesmas circunstâncias em

que tais problemas se propõem. Nelas e somente nelasse contêm as soluções cabíveis e exeqüíveis. É no mes-mo processo histórico de que participamos na atuali-dade, e em que se configura a problemática que en-frentamos, que se configuram também as respostas aessa problemática e as diretrizes que se hão de adotar eseguir. Ou contrariar o que é outra perspectiva e posi-ção que, se podem eventualmente adotar, e que ado-tam efetivamente as forças políticas conservadoras, eno caso mais extremo, as reacionárias. É essa e somen-te essa a alternativa que efetivamente se propõe, e forada qual não existe senão o utópico e irrealizável quefreqüentemente não é senão maneira de fantasiar e dis-farçar a oposição a qualquer modificação, o apego aostatus quo.

Essas premissas nos fornecem o método a seguir naindagação que interessa, e desde logo afastam certasquestões preliminares que freqüentemente se propõem,nos dias que correm, nos círculos políticos da esquer-da brasileira. Isto é, precisamente naqueles setores queaceitam e pretendem impulsionar a revolução.Referimo-nos em particular, e sobretudo, à indagaçãoacerca da "natureza" ou "tipo" de revolução que se tra-ta de realizar. Será "socialista", ou "democrático-bur-guesa", ou outra qualquer? Indagação como essa situadesde logo mal a questão e de maneira insolúvel naprática, pois a resposta somente se poderá inspirar -uma vez que lhe falta outra premissa mais objetiva econcreta - em convicções predeterminadas de ordempuramente doutrinária e apriorística. Isso porque dosimples conceito de revolução dessa ou daquela natu-

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reza nada se poderá extrair em matéria de norma polí-tica e de ação efetivamente praticável. A qualificação aser dada a uma revolução somente é possível depois dedeterminados os fatos que a constituem, isto é, depoisde fixadas as reformas e transformações cabíveis e quese verificarão no curso da mesma revolução. Ora, éprecisamente dessas reformas e transformações que setrata. E uma vez determinadas quais sejam - o que so-mente é possível com a análise dos fatos ocorrentes,passados e presentes - terá um interesse secundário(pelo menos imediato e para os fins práticos que são oque realmente no momento interessa) saber se a qua-lificação e classificação conveniente é esta ou aquela.Pouco importa assim, ao se encetar a análise e a inda-gação das transformações constituintes da revoluçãobrasileira, saber se elas merecem esta ou aquela desig-nação, e se se encerram nesta ou naquela fórmula ouesquema teórico. O que vale é a determinação de taistransformações, e isto se procurará nos fatos ocorrentese na dinâmica desses mesmos fatos. É disso que preci-sam preliminarmente compenetrar-se os teóricos eplanejadores da revolução brasileira. A saber, que tam-bém no terreno dos fatos humanos, tanto quanto nodos fatos físicos, onde já de há muito não se pensa deoutra forma, o conhecimento científico consiste emsaber o que se passa) e não o que é. A concepção metafísicadas "essências" - o que as coisas são - precisa dar lugarnas ciências humanas, de uma vez por todas, como jádeu há tanto tempo nas ciências físicas, à concepçãocientífica do que acontece. Concepção essa em que opróprio ser não é senão o acontece1) um momento desse

acontecer. É o que "acontece" que constitui o conheci-mento científico; e não o que é. Precisamos saber queacontecerá, ou pode e deve acontecer no curso da re-volução brasileira. E não indagar de sua natureza, da-quilo que ela é, da sua qualificação, definição ou cata-logação.

É numa tal linha de pensamento que se há de fazera determinação das reformas e transformações consti-tuintes da revolução brasileira. Isto é, não pela dedu-ção a priori de algum esquema teórico preestabelecido;de algum conceito predeterminado da revolução. E simpela consideração, análise e interpretação da conjun-tura econômica, social e política real e concreta, pro-curando nela sua dinâmica própria que revelará tantoas contradições presentes, como igualmente as solu-ções que nela se encontram imanentes e que não pre-cisam ser trazidas de fora do processo histórico e a eleaplicadas numa terapêutica de superciência que pairaacima das contingências históricas efetivamente pre-senciadas. A análise e determinação adequadas daque-las contradições nos devem revelar desde logo - sobpena de se infirmar a análise e interpretação efetuadasque se revelariam em tal caso falhas ou insuficientes -devem revelar por si e sem maiores indagações as so-luções que naturalmente implicam e em conseqüênciacomportam e justificam.

É claro que, para um marxista, é no socialismo queirá desembocar afinal a revolução brasileira. Para ele, osocialismo é a direção na qual marcha o capitalismo. Éa dinâmica do capitalismo projetado no seu futuro. Eseja qual for a feição particular em que o capitalismo se

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apresente em cada país da atualidade - feição "particu-lar", bem entendido, no que diz respeito a circunstân-cias e elementos secundários que não excluem, e antesimplicam a natureza essencialmente única do capita-lismo, que é um só e o mesmo em toda parte - sejaqual for o grau de desenvolvimento, extensão e matu-ração das relações capitalistas de produção, o certo éque o capitalismo se encontra na base e essência da eco-nomia contemporânea fora da esfera socialista; e nelase incluem, embora sob formas e modalidades várias,todos os países e povos além daquela esfera. Assim sen-do, o socialismo, contrapartida que é do capitalismoem vias de desintegração numa escala mundial, é ondeirá desembocar afinal, mais cedo ou mais tarde, a hu-manidade de hoje.

Isso, contudo, representa uma previsão histórica,sem data marcada nem ritmo de realização prefixado.E podemos mesmo acrescentar, também sem progra-ma predeterminado. Ela não interfere assim diretamen-te ou não deve interferir na análise e interpretação dosfatos correntes, e muito menos na solução a ser dadaaos problemas pendentes ou na determinação da linhapolítica a ser seguida na emergência de situações ime-diatas. Noutras palavras, a previsão marxista do socia-lismo não implica necessariamente a inclusão dela, emtodos os lugares e a todos os momentos, na ordem dodia. Para um marxista, exemplificando, a mais simplesgreve ou desentendimento entre empregados e empre-gadores, capitalistas e trabalhadores, representa umpasso para o socialismo, por mínimo que seja, e este-jam os participantes da disputa conscientes disso ou

não - e em regra não o estão. Isso não significa, toda-via, que as reformas socialistas, ou quaisquer referên-cias ao socialismo se proponham no caso.

É aliás esse um dos pontos, e de capital importân-cia, em que mais claramente se caracterizam posiçõessectárias e frontalmente antimarxistas, a saber, na visãode uma revolução socialista sempre eminente eimanente em todas as ocorrências da luta social e polí-tica. O que leva a atitudes e formulações que não têmoutro efeito, na prática, senão isolar os que assumemaquelas posições sectárias e os neutralizar. A previsãomarxista do socialismo não exclui, muito pelo contrá-rio, a concentração da luta em objetivos que imediata-mente e de forma direta não se relacionam com a re-volução socialista. E podem mesmo, aparentemente,contrariá-la - como foi o caso, num exemplo máximo,da partilha e entrega da terra, na revolução russa de1917, aos camponeses. São considerações de ordemteórica e de alcance que vai muito além dos fatos domomento, que permitem ao marxista estabelecer aquelerelacionamento que para não-marxistas pode passarinteiramente despercebido. E não pode mesmo, emmuitos casos, ser por eles compreendido, e nem mes-mo admitido, pois isso seria concordar com a inter-pretação que o marxismo dá à evolução histórica. É ocaso, no exemplo acima lembrado, da greve. Para omarxismo, a greve é manifestação da luta inerradicâvelde classe que separa e faz com que se enfrentem prole-tariado e burguesia. É um simples episódio dessa lutaque tem seu desenlace final e fatal, quaisquer que se-jam as vicissitudes momentâneas, na vitória do prole-

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tariado em conjunto e como classe, e na instituição porele do socialismo.

Para os não-marxistas as coisas se apresentam natu-ralmente sob outro aspecto, e a greve nada mais cons-titui que um incidente passageiro provocado por cir-cunstâncias ocasionais, que se resolve simplesmente noatendimento ou não, parcial ou integral, das reivindi-cações propostas, sem conseqüências de maior impor-tância na organização básica e estrutural do sistemacapitalista. Mas a posição do marxista, apesar de suasimplicações teóricas, não quer dizer que ele enxerguena greve unicamente ou mesmo essencialmente a suaprojeção socialista, e interprete (como se acusa os co-munistas, e infelizmente julgam muitos sectários, tãolonge disso do marxismo como seus próprios adversá-rios) simples agitação e como que exercitação do pro-letariado para o ato final da insurreição e da tomada dopoder. Lembremo-nos aqui da velha polêmica de Marx,retomada por Lenin, contra os anarquistas para os quaisas greves não seriam mais que preliminares da "grevegeral" com que se daria o ensaio final da insurreição ederrubada do poder da burguesia ... O marxismo émuito diferente disso, e quem não o percebe nada temde marxista. Qualquer greve - e isso se pode e devegeneralizar para os demais incidentes da luta revolucio-nária, seja qual for sua fase, etapa ou momento - temuma significação própria e em si. O que essencial efundamentalmente se objetiva em cada incidente daluta revolucionária é a conquista das reivindicaçõespropostas, das fiFlalidades e aspirações na ordem do dia.E a tática empregada se orienta inteiramente nesse sen-

tido, e não objetivando o socialismo e a revolução queo há de instituir. A greve ou outro incidente da lutarevolucionária não encobre finalidades secretas eexcusas, não constitui manobra astuciosa que visariaoutros objetivos que não os expressos e que lhe ser-vem de bandeira e programa. Os comunistas que as-sim pensam e agem não são verdadeiros marxistas, masantes fatores adversos à revolução e à vitória do socia-lismo. Objetivos ocultos ou disfarçados não existem,ou não devem existir na luta revolucionária. O queexiste é a dialética dos fatos históricos que não são daresponsabilidade dos comunistas, e que não cabe a eles,ou a quem quer que seja, determinar. É essa dialéticaque, independentemente da vontade dos indivíduos,levará a luta do proletariado ao momento decisivo emque se proporá sua natural conclusão que é o socialis-mo, por meio de ações em favor de objetivos mais res-tritos e imediatos, que são os que se propõem concre-tamente na conjuntura do momento. Quanto às in-tenções e à ação dos comunistas nesse momento, elasse concentram ou devem concentrar-se no incidenteem curso e nos expressos objetivos que neles se apre-sentam e que é tudo quanto na ocorrência os devemomentaneamente interessar.

São essas circunstâncias, aliás, essa posição e pers-pectiva dos comunistas inspirados no verdadeiro mar-xismo, que fazem possível a união de suas forças comas de outras correntes políticas que podem não aceitaro socialismo e lhe serem mesmo adversas, mas que comeles coincidem nos objetivos que no momento se pro-põem. É que são esses objetivos, e somente eles que

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inspiram os comunistas. E se os comunistas os relacio-nam com a ação que implicam, com outras aspirações- e o socialismo em última instância - fazem-no emplano unicamente teórico, e como simples previsãocientífica de quem considera a História de um pontode vista dialético em que cada fato encerra um devenirque o projeta no futuro e na fatal transformação da so-ciedade. O que não é a interpretação dos não-marxis-tas que podem assim se unir aos comunistas que nãotêm no que respeita à ação prática imediata - e é esseum ponto capital do marxismo - outra finalidade quea deles, a saber, a consecução da vitória no terreno daação em curso e dos objetivos que nela se propõem.

A teoria revolucionária brasileira, que é a resposta aser dada às questões propostas na atual conjuntura dopaís, não se inspira assim em um ideal expresso na "na-tureza" da revolução para a qual se presumiria a priorique marcha ou deve marchar a evolução histórica bra-sileira - revolução socialista, democrático-burguesa ououtra qualquer. Revolução essa a que se trataria, namesma ordem de idéias, de ir aproximando e afeiço-ando as instituições do país, e ajustando assim os fatosà finalidade de alcançar um modelo preestabelecido.Nada há de mais irreal e impraticável que isso. A teoriada revolução brasileira, para ser algo de efetivamenteprático na condução dos fatos, será simplesmente - masnão simplisticamente - a interpretação da conjunturapresente e do processo histórico de que resulta. Pro-cesso esse que, na sua projeção futura, dará cabal res-posta às questões pendentes. É nisso que consiste fun-damentalmente o método dialético. Método de interpre-

tação) e não receituário de fatos, dogma, enquadramentoda revolução histórica em esquemas abstratos preesta-belecidos.

É certo, e repetimo-Io novamente, que, como mar-xistas, e considerando por conseguinte a revolução bra-sileira dentro do contexto geral do mundo contempo-râneo, estamos seguros de que iremos afinal desembo-car no socialismo, isto é, na socialização dos meios deprodução, na eliminação da exploração do trabalho eda divisão da sociedade em classes antagônicas, bemcomo nas demais conseqüências de toda ordem mate-rial e moral que daí decorrem. Mas isso por força, nãode uma previsão que seria antes adivinhação, nemtampouco de uma pressuposta fatalidade histórica, deum Destino que tenderia necessariamente a se reali-zar, mas em conseqüência tão-somente do desenrolardos fatos que, a partir do momento atual (que se trataagora de interpretar), se irão sucedendo uns em segui-mento e em conseqüência dos imediatamente anterio-res. Conhecendo-se esses fatos atuais na sua interligaçãoe nas suas contradições, podemos daí inferir as solu-ções a serem dadas a tais contradições. Soluções reais,no sentido de promoverem o progresso e desenvolvi-mento histórico, e não o seu estancamento por tentati-vas de conciliação e harmonização dos contrários, o querepresenta a saída conservadora, senão reacionária, daproblemática social. E são essas soluções reais, no sen-tido acima, que, aplicadas e realizadas (e nisso consisteo problema político por excelência, que ele também sedefine e propõe na mesma interpretação da conjuntu-ra presente), se farão, por seu turno, em nova série de

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fatos e nova situação e conjuntura a que se aplicará omesmo método. E se baseados em considerações deordem muito mais geral e ampla que as proporciona-das pelos simples dados oferecidos pela realidade bra-sileira atual, podemos antever o desenrolar desse pro-cesso no sentido do socialismo, não o fazemos, porqueisso seria irrealizável e utópico, na base da série com-pleta de fatos que se interpõem entre o dia de hoje e odo socialismo afinal realizado. Não nos é dado adivi-nhar essa série, mas tão-somente o momento presentecomo resultante que é de um processo passado, e pro-jetando-se, em conseqüência, num momento seguin-te e continuação deste que se trata de promover e in1-pelir para diante na base de uma ação política e normarevolucionária, ditadas pela mesma conjuntura em quehoje se propõem as questões pendentes.

Esse desdobramento por etapas da teoria revolucio-nária, epari passu com os próprios fatos que interpreta eao mesmo tempo se propõe orientar, torna-se bem claroquando se considera o exemplo histórico bem próximode nós, tanto no espaço como no tempo, bem comotambém pelos muitos traços que tem em comum comnosso caso, e que vem a ser o ocorrido em Cuba. Partiu-se aí da luta contra uma ditadura opressiva e violenta,que chegara aos limites extremos da corrupção e domais cínico desrespeito aos mais elementares direitosdos cidadãos. É isso que, fundamentalmente, inspirou eestimulou a oposição de Fidel Castro e de seu partido aoregime de Batista, oposição essa que culminou com odesembarque na praia Colorada e a organização da in-surreição de Sierra Maestra.

Chegada, contudo, a esse ponto, a simples oposiçãoa Batista e seu regime começa precipitadamente a evo-luir e se transformar no sentido de uma revolução agrá-ria e antiimperialista. Essa rápida maturação da revolu-ção cubana prova o acerto, do ponto de vista revolucio-nário, da posição assumida por Fidel, fossem quais fos-sem, até o momento, as limitações do seu movimento,restrito até então, como estava, à oposição a Batista. Oque, sobretudo, vale na ação revolucionária não é o quese proclama e em última instância se projeta. E sim osentido dialético dessa ação, isto é, sua potencialidadeem projeção para o futuro e seu conteúdo, latente em-bora, inexpresso e até mesmo inesperado para a gene-ralidade dos participantes, de transformações políticas,econômicas e sociais que nele se encerram e deles de-rivam como conseqüência e natural desdobramento.

Era assim o movimento desencadeado por Fidel eseu punhado de companheiros da Sierra Maestra.Movimento esse que já continha em germe a futura epróxima revolução socialista, embora ninguém, e nemmesmo o próprio Fidel Castro, cogitasse disso no mo-mento. Se é que mesmo o suspeitassem, pois tudo levaa crer que foram antes o profundo instinto revolucio-nário de Fidel e sua grande agudeza política que o guia-ram, ele e seu movimento. E não a conseqüência clara-mente distinta do que estava ocorrendo e das conse-qüências que se seguiriam.

Mas, seja como for, a insurreição de Sierra Maestra,embora lançada inicialmente com projeção muito me-nor, nada mais que a derrubada da ditadura, logo quecomeça a tomar corpo e se afirmar já assume o caráter

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de revolução agrária. Para se fazer, logo depois da to-mada do poder, em antiimperalista também. Esses doisaspectos da revolução se achavam inteiramente ligadosentre si por força da predominância de monopóliosimperialistas norteamericanos na agroindústria do açú-car em que se fundamenta a economia cubana. Do acer-to inicial, e sob o impulso revolucionário conseqüentedos fidelistas, derivavam os acertos seguintes e odesencadeamento do processo que daria na revoluçãosocialista em que Cuba ora se encontra. E pode-seacompanhar pari passu o progressivo desdobramento ea maturação da teoria revolucionária de Fidel, que, par-tida do constitucionalismo (ataque ao quartel Moncada,1952) e do liberalismo antiditatorial (desembarque napraia Colorada e organização do levante da SierraMaestra), evolui para a revolução agrária e antiim-peralista, para desembocar afinal na revolução socialis-ta (1961).

É entre outros, nesse exemplo que havemos de noslouvar no Brasil. Trata-se de definir uma teoria revo-lucionária que seja expressão da conjuntura econômi-ca, social e política do momento, e em que se revelemas questões pendentes e as soluções possíveis para asquais essas questões apontam. Ou antes as alternativasdessas soluções, das quais se escolherão as que signifi-quem o impulsionamento e a aceleração do processohistórico, a marcha dele para frente. A transformaçãoem oposição à conservação do status quo. É de uma teo-ria dessas que necessita a revolução brasileira, e não deespeculações abstratas acerca da "natureza" dessa revo-lução, do seu tipo e de sua correspondência com al-

gum esquema ideal, proposto fora e acima dos fatosconcretos e dados imediatamente pela realidade eco-nômica, social e política que o país está efetivamentevivendo.

Infelizmente, é essa especulação que tem caracteri-zado os debates e as tentativas de teorização da revolu-ção brasileira. O que representa, a nosso ver, um dosprincipais fatores das desfavoráveis vicissitudes - e quevicissitudes! - que têm sofrido o processo de transfor-mação de nossas instituições e a marcha para diante dopaís. É um enfocamento falseado e arredado da reali-dade brasileira, porque se perde em abstrações inspira-das em modelos apriorísticos, que tem impedido a ela-boração de uma teoria adequada da revolução brasilei-ra, capaz de orientar e encaminhar os fatos de maneiraverdadeiramente conseqüente e fecunda. As forças re-volucionárias vêm adquirindo no Brasil, sobretudo apartir da última Grande Guerra, um impulso conside-rável. Não somente em termos de agregação e acumu-lação de potencialidades, mas ainda de consciência co-letiva do processo em curso e em que, tão claramentese evidencia a necessidade de reformas substanciais eprofundas de nossas estruturas políticas, econômicas esociais. A consciência revolucionária tem hoje no Bra-sil - e isso já vem de data relativamente afastada, e ga-nhando terreno dia a dia - considerável projeção. Nãoé por acaso nem por simples exibicionismo que o gol-pe de 10 de abril de 1964 se enfeitou com o nome de"revolução". É que seus promotores sabiam, como sa-bem, da ressonância popular dessa expressão e da pe-netração que tem em largas camadas da população bra-

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sileira. E a par dessa consciência revolucionária, as con-tradições imanentes na vida brasileira já atingem umatal agudeza que não há mais como disfarçá-Ias, e mui-to menos com alguns retoques de superfície, como sefaz patente com as medidas que vem adotando o go-verno saído do golpe de abril. Medidas essas que, ape-sar dos consideráveis sacrifícios que vêm impondo aimportantes setores da população, não conseguemabrandar nenhum dos grandes males que afligem o paíse que lhe freiam o progresso material e cultural. E an-tes pelo contrário, vêm agravando muitos deles.

Contudo apesar daquelas circunstâncias altamentefavoráveis à maturação do processo revolucionário bra-sileiro, o que se tem visto, afora agitação superficial,por vezes aparatosa, mas sem nenhuma profundidadeou penetração nos sentimentos e na vida da população,afora isso, o que há de real é a estagnação daquele pro-cesso revolucionário. Ou pior ainda, a sua degeneres-cência para as piores formas de oportunismo demagó-gico, explorando as aspirações populares por reformas.Foi esse o espetáculo que proporcionou ao país o con-vulsionado governo deposto a 10 de abril. Muitos, naverdade quase toda a esquerda brasileira, interpreta-ram aquele período malfadado como de ascenso e avan-ço revolucionário. Mas de fato ele de nada mais serviuque para preparar o golpe de abril e o encastelamentono poder das mais retrógradas forças da reação. Issoporque deu a essas forças ajustificativa de que necessi-tavam - o alarma provocado pela desordem adminis-trativa, implantada à sombra da inépcia governamen-tal, aproveitada e explorada por agitação estéril sem

nenhuma penetração no sentimento popular, e esti-mulada no mais das vezes por interesses subalternos emesquinhas ambições pessoais. É isso que permitiu àreação encobrir seus verdadeiros propósitos, e iludirboa parte da opinião pública, com o pretexto da salva-ção do país do caos que parecia iminente. E levar essaopinião, senão ao apoio, ao menos à aceitação passivado golpe.

Foi isso o governo de João Goulart e seu triste fim.E nele, e para sua infausta trajetória colaboraram asdesorientadas esquerdas brasileiras sem outra perspec-tiva que esta de se servirem, ou melhor de se porem aserviço de ambições políticas que nada tinham nempodiam ter em comum com seus ideais e finalidades.

Ao analisarmos nos próximos capítulos a "teoria"da revolução brasileira oficializada e consagrada, emsuas linhas gerais, nos círculos dirigentes das nossasesquerdas, a começar, e em primeiro e principal lugarpelos comunistas, bem como a estratégia e tática de-correntes daquela "teoria", teremos ocasião de verifi-car como as graves distorções observadas na interpre-tação da realidade política, econômica e social brasilei-ra contribuíram paTa os erros que vinham sendo co-metidos desde longa data na ação política da esquerda,e que levaram afinal ao desastre de 10 de abril. Esseserros se agravaram consideravelmente depois da renún-cia deJânio Quadros em agosto de 1961, degenerandoentão nesse elementar e grosseiro oportunismo a quefizemos referência, e que caracterizou a situação de-posta em abril de 1964. Não é de admirar que as es-querdas brasileiras, privadas de uma teoria satisfatória

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e capaz de as conduzir com segurança a seus objetivos,se tivessem deixado levar pelas seduções de demago-gos instalados no poder. E marchassem com eles parao desastre que qualquer observador menos apaixona-do e preconcebido por opiniões estranhas à realidadebrasileira, poderia com facilidade ter previsto.

Realmente, na ausência de um tal teoria, e incapa-citadas por isso de se conduzirem na complexidade dosfatos reais que não se ajustavam a seus esquemas teóri-cos sem correspondência com a realidade, as esquer-das brasileiras não podiam, como de fato não logra-ram, mobilizar efetivamente as verdadeiras forçasrevolucionárias. No que se refere ao proletariado, nãoforam além de reivindicações salariais imediatas que aprecipitada inflação tornava fácil não apenas levantar,como conduzir a aparentes vitórias. Isso nas cidades,porque no campo, onde o assunto se apresentava mui-to mais complexo, a coisa era pior, pois as prédicas parauma massa trabalhadora rural fantasiada para a circuns-tância de campesinado do tipo europeu dos séculosXVIII e XIX, e as imprecações contra o "feudalismo"não encontravam aí, nem podiam encontrar, nenhu-ma ressonância.

Esses são apenas alguns sintomas, entre outros, daslimitações encontradas pelas esquerdas em sua atua-ção prática. Veremos melhor esses pontos, e outros se-melhantes, no desenvolvimento da matéria que cons-tituirá objeto dos próximos capítulos. Em conjunto ederivado dessa desconexão entre a teoria e a prática, asesquerdas não conseguiram despertar e mobilizar demaneira efetiva e revolucionariamente fecunda as for-,

ças progressistas do país. Com raras exceções, não fo-ram além de uma agitação de superfície, promovidaem torno de "slogans", e que desbaratava sem maiorproveito as energias revolucionárias e as desencantavade seus aparentes líderes. Eassim a ação revolucioná-ria se reduziu de fato a pequenas minorias e se concen-trou em acanhadas cúpulas que, se muito se agitavamdando possivelmente a impressão, às vezes e para aque-les que nelas se envolviam, de grandes acontecimen-tos, na realidade marcavam passo à espera de um felizacaso que fizesse algum dia cair-Ihes nas mãos o poder,como um fiat do Destino. Quando se observa com aten-ção as ocorrências políticas brasileiras nestes últimosanos, verifica-se que de fato o que se achava efetiva-mente mobilizado e atuando na luta revolucionária, ouantes naquilo que se pretendia tal, eram unicamentereduzidas cúpulas esquerdizantes que enchiam todo ocampo que deveria ser daquela luta. Cúpula políticano Congresso Nacional e numa ou noutra AssembléiaEstadual ou Câmara Municipal, cúpula sindical nossetores operários, cúpula intelectual nos setores pro-fissionais, cúpula estudantil, cúpula militar ... Tudo mais,as bases, as massas populares, assistiam passivamente,ou pouco mais que isso, aos acontecimentos. E namelhor das hipóteses faziam, nos momentos de maiortensão, de torcida, como nos jogos de futebol.

Nessas condições, encerradas em seus "slogans",que nem por sua infinita e monótona repetição seabriam e projetavam em diretrizes eficazes e normasfecundas de ação - pois para isso não serviam os seusinaplicáveis esquemas teóricos - e privadas assim de

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perspectivas concretas, as esquerdas não lograramnunca atinar, afora uma agitação no mais das vezescompletamente estéril, com outra saída para seu iso-lamento que a triste contingência de alianças comquaisquer dispositivos partidários que aceitassem seuapoio e concurso em troca da migalha de pequenosfavores políticos muito mais de natureza pessoal queoutra coisa qualquer. E assim se procedia mesmo àcusta de concessões e abdicações de ordem ideológi-ca. A instância máxima disso, depois de muitas outrasanteriores de menor envergadura, foi sem dúvida oapoio e colaboração emprestados, nas eleições presi-denciais de 1955, ao candidato do dispositivo PSD-PTB, o sr. Juscelino Kubitschek. Data aliás dessa alian-ça espúria a trajetória política da esquerda brasileira,e dos comunistas em particular, que iria terminar como desastre de 10 de abril.

Espúria - espúria além de qualquer dúvida - por-que Juscelino Kubitschek se apresentava com seu pro-grama de desenvolvimento e metas que implicava cla-ramente, e pode-se mesmo dizer expressamente, apromoção dos interesses do grande capital brasileiro einternacional. Particularmente desse último, pois é nabase do apelo aos grandes trustes internacionais e estí-mulo às iniciativas deles no Brasil que, fundamental-mente, se assentava o programa desenvolvimentistaendossado pelo candidato. O que se comprovariaquando o presidente eleito viajaria pela Europa, antesda posse, entendendo-se com grandes grupos interna-cionais aos quais ofereceria com promessas formais delargo favorecimento por parte de seu próximo gover-

no, generosa participacão nas atividades econômicasbrasileiras. E depois de inaugurado o governo, foi oque se viu e em que não precisamos aqui insistir. N un-ca se vira, e nem mesmo imaginara tamanha orgia im-perialista no Brasil e tão considerável penetração doimperialismo na vida econômica brasileira.

Paralelamente e ligada a essa política de favoreci-mento dos interesses imperialistas, estava a promoçãodo grande capital nacional, seja por estímulos creditícios(para o que funcionava o Banco do DesenvolvimentoEconômico, dirigido pelo mais puro expoente da eco-nomia capitalista, o sr. Roberto Campos, e que reu-nindo capitais arrancados através de empréstimos for-çados do conjunto dos contribuintes brasileiros, o adi-cional do imposto de renda, deles se servia para finan-ciar as grandes empresas), seja pela inflação, que reduzos salários reais e acrescenta com isso os lucros capita-listas. Entreguismo e inflação em escala sem precedentes,foi isso o essencial do governo Kubitschek, sem contaras negociatas e oportunidades de bons negócios à custado Estado e da N ação, como em particular no caso daconstrução de Brasília. E foi isso que levou, de um lado,ao total enfeudamento da economia brasileira ao capi-tal imperialista, e doutro, à redobrada exploração dotrabalho pelo capital (que é a conseqüência mais diretae imediata da inflação), e à decorrente concentração eacumulação capitalistas em proporções jamais vistas noBrasil. Nunca se enriqueceu tanto no Brasil como nes-tes "50 anos de desenvolvimento em 5" do governoKubitschek, como também se empobreceu tanto e tãorapidamente. O que, se disfarçado pela euforia inflacio-

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Segue-se, com o pequeno intervalo do meteóricogoverno de Jânio Quadros, a aventura janguista acimajá referida. E sempre, sem nenhuma hesitação ou exa-me de consciência e autocrítica que lhes abrissem osolhos para a esterilidade de uma luta que nada poderiatrazer, muito pelo contrário, para seus objetivosprogramáticos, e que apenas favorecia as manobraspolíticas de seus espúrios aliados, as esquerdas brasi-leiras continuaram insistindo em sua oportunista li-nha política de apoio a um dispositivo partidário vaziode qualquer conteúdo ideológico, e que essencialmentenão disputava senão as vantagens da posse e do usufru-to do poder para a sua facção. Em contrapartida, o queas esquerdas ganhavam com esse apoio era unicamen-te a oportunidade de uma projeção política que porsuas próprias deficiências elas não logravam alcançarpor outros meios mais construtivos. Projeção essa, con-tudo, que não resultava afinal em mais que uma agita-ção demagógica e superficial, sem reais perspectivasrevolucionárias e fadada ao desastre de abril, que jámuitos meses antes somente não era previsto por in-gênuos embriagados na euforia de momentâneos eaparentes sucessos, ou então cegados por falsas ilusõesacerca do verdadeiro conteúdo e sentido da luta emque se tinham engajado.

É este último ponto que nos interessa aqui mais deperto. A saber, o papel que tiveram as insuficiênciasteóricas das esquerdas brasileiras na gênese daquelasilusões que não lhes permitiram enxergar a realidadeda situação e pressentir o desenlace que as aguardava.Foram sem dúvida essas insuficiências teóricas que tor-

nária e especulativa destes últimos anos, começa agoraa se fazer sentir bem claramente.

Apesar disso, as esquerdas brasileiras, inclusive oscomunistas, continuaram apoiando o governo Kubits-chek e as forças políticas que o presidente representa-va. E se mantiveram nessa linha por ocasião da suces-são de 1960, levando seu concurso à candidatura doMarechal Lott, que, além do que se conhecia de suasretrógradas opiniões políticas, já se destacara no coman-do da II Região Militar (São Paulo) como nitidamenteorientado para a reação. Fora ele o primeiro chefe mi-litar que em São Paulo estendeu suas atribuições e fun-ções para além da esfera militar que lhe cabia, a fim deperseguir jornalistas e órgãos da imprensa popular, en-cenando processos militares escandalosos (precurso-res, e certamente modelos também, dos IPMs de nos-sos dias) que mal disfarçavam, sob pretextos fúteis, afúria anticomunista e antipopular do então comandanteda Região de São Paulo. Lembro-me aliás que foi oMarechal Lott quem, em 1957, na qualidade de Mi-nistro da Guerra, aprovou sem reservas a cessão da Ilhade Fernando de Noronha ao exército norte-america-no, consumando com isso o mais ostensivo golpe des-ferido pelo imperialismo contra a soberania brasileira.E abrindo um precedente que frutificaria abundante-mente. Foi esse o candidato "nacionalista" que as nos-sas esquerdas apoiaram nas eleições de 1960. *

* Não vai aqui nenhum menosprezo às qualidades pessoais do Marechal Lott,mas unicamente uma críica à desorientada e oportunista linha de ação polí-tica da esquerda brasileira.

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naram possível encaixar o mesquinho embate de fac-ções, que agitava o cenário político brasileiro, em teo-rias deca1cadas sobre modelos estranhos e completa-mente alheados da realidade do país, e com isso asse-melhando aquela luta a grandes e profundos aconteci-mentos revolucionários: nada menos que conflitosdecisivos de classes e categorias sociais que diziam res-peito à própria estrutura econômica e social do país.Uma revolução agrária, antifeudal, antiimperialista ...Que não se tratava de nada disso, virificou-se amarga-mente quando uma simples passeata militar bastou paradeitar por terra a aventura e dispersar sem maior esfor-ço os iludidos pseudo-revolucionários. Mas enquantoa aventura durou, foi a ilusão alimentada por grossei-ros erros de interpretação teórica da realidade brasilei-ra, a saber, de que o país estava vivendo momentos re-volucionários profundos e decisivos, foi isso sem dú-vida que deslumbrou e estimulou as esquerdas brasi-leiras - a sua parte honesta e sincera, sem dúvida, porqueinteresses personalistas também tiveram aí o seu papel- a prosseguirem em sua desacertada ação política. Açãoessa que, por não contar com diretrizes justas, não foicapaz de despertar e mobilizar, senão em proporçõesmínimas e largamente insuficientes, as verdadeiras for-ças e os impulsos revolucionários. E que por isso seperdeu em estéril agitação.

Analisaremos adiante, com os necessários porme-nores, aquelas concepções teóricas das esquerdas e osesquemas de ação que, por seus desacertos, levaramsua campanha a tão funesto desfecho. O que sobretu-do aqui nos interessa é chamar a atenção para os graves

riscos e males deles decorrentes, de uma insuficiênciateórica como aquela verificada no caso das esquerdasbrasileiras. Embora contando com condições altamentefavoráveis para o desencadeamento do processo revo-lucionário, dada a maturidade das contradições presen-tes na conjuntura econômica e social brasileira, as es-querdas não somente permaneceram anos marcandopasso - uma vez que a estéril agitação na qual se mete-ram não se pode reputar processo - mas ainda com-prometeram e atrasaram consideravelmente a marchadaquele processo.

Trata-se, pois, em primeiro lugar, nesta nova faseem que nos encontramos, de reconsiderar atentamen-te, e sem convicções e atitudes preconcebidas, as cir-cunstâncias em que se processa a evolução histórica,social e econômica de nosso país. E procurar aí, e nãoem esquemas abstratos desligados da realidade brasi-leira, as forças e os fatores capazes de promoverem astransformações econômicas e sociais imanentes na con-juntura presente. Bem como a natureza, direção e even-tual ritmo dessas transformações. Trata-se em suma dereelaborar a teoria da nossa revolução, a fim de por elaacertadamente pautar a ação política da esquerda bra-sileira. Mas para isso devemos antes começar pela apre-ciação crítica das concepções teóricas até hoje consa-gradas e que de maneira tão lamentavelmente erradavêm inspirando as forças políticas renovadoras do nos-so país.