clínica psiquiátrica do trauma e narração

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CLÍNICA DO TRAUMA E NARRATIVA DO SOFRIMENTO http://dx.doi.org/10.1590/1984-0292/1330 César Pessoa Pimentel H Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil RESUMO Pretende-se analisar o nexo entre trauma e narração. Nos concentraremos no arco histórico que liga a categoria de “síndrome do sobrevivente”, popular na década de 1960, até o reconhecimento da categoria de “Transtorno de Estresse pós-traumático” em 1980. O tema é analisado pela leitura de autores contemporâneos ligados à genealogia foucaultiana, como Ruth Leys, Ian Hacking e Paulo Vaz. Conclui-se que essa nova concepção do trauma modifica a relação entre trauma e narração, fazendo com que a experiência traumática seja destacada em narrativas midiáticas, literárias e cinematográficas como evidência de atrocidades externas e independentes do sujeito. Em outros termos, tendem a realçar a fragilidade humana. Palavras-chave: trauma; síndrome do sobrevivente; narrativa; subjetividade. CLINIC OF TRAUMA AND NARRATIVE OF SUFFER ABSTRACT It is intended to analyze the link between trauma and narration. We will focus on the historic arch that connects the category of “survivor syndrome”, popular in the 1960s, to a recognition of the category of “Posttraumatic Stress Disorder” in 1980’s. The theme is analyzed by reading contemporary authors linked to Foucault’s genealogy, as Ruth Leys, Ian Hacking and Paulo Vaz. It is concluded that this new conception of trauma modifies the relationship between trauma and narrative, making the traumatic experience is highlighted in media, literary and cinematic narratives as evidence of atrocities external and independent of the subject. In other words, tend to emphasize human frailty. Keywords: trauma; survivor syndrome; narrative; subjectivity. H Endereço para correspondência: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Reitoria, Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Avenina Pasteur, 250 – Urca. 22290240 - Rio de Janeiro, RJ – Brasil. E-mail: [email protected]

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Artigo acadêmico publicado na revista Fractal que busca realizar uma arqueologia de uma categoria psiquiátrica em franca expansão, conhecida como Transtorno de Estresse Pós-traumático. O artigo trabalha com a ideia de que dois modelos de trauma psicológico existem em perpétua tensão na explicação do sofrimento psíquico. Conclui que o modelo de trauma anti-mimético foi de fundamental importância para o surgimento e expansão da categoria psiquiátrica do TEPT.

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  • ClniCa do trauma e narrativa do sofrimentohttp://dx.doi.org/10.1590/1984-0292/1330

    Csar Pessoa PimentelHUniversidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

    resumo

    Pretende-se analisar o nexo entre trauma e narrao. Nos concentraremos no arco histrico que liga a categoria de sndrome do sobrevivente, popular na dcada de 1960, at o reconhecimento da categoria de Transtorno de Estresse ps-traumtico em 1980. O tema analisado pela leitura de autores contemporneos ligados genealogia foucaultiana, como Ruth Leys, Ian Hacking e Paulo Vaz. Conclui-se que essa nova concepo do trauma modifica a relao entre trauma e narrao, fazendo com que a experincia traumtica seja destacada em narrativas miditicas, literrias e cinematogrficas como evidncia de atrocidades externas e independentes do sujeito. Em outros termos, tendem a realar a fragilidade humana.

    Palavras-chave: trauma; sndrome do sobrevivente; narrativa; subjetividade.

    CliniC of trauma and narrative of sufferabstraCt

    It is intended to analyze the link between trauma and narration. We will focus on the historic arch that connects the category of survivor syndrome, popular in the 1960s, to a recognition of the category of Posttraumatic Stress Disorder in 1980s. The theme is analyzed by reading contemporary authors linked to Foucaults genealogy, as Ruth Leys, Ian Hacking and Paulo Vaz. It is concluded that this new conception of trauma modifies the relationship between trauma and narrative, making the traumatic experience is highlighted in media, literary and cinematic narratives as evidence of atrocities external and independent of the subject. In other words, tend to emphasize human frailty.

    Keywords: trauma; survivor syndrome; narrative; subjectivity.

    H Endereo para correspondncia: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Reitoria, Centro de Filosofia e Cincias Humanas. Avenina Pasteur, 250 Urca. 22290240 - Rio de Janeiro, RJ Brasil. E-mail: [email protected]

  • Csar Pessoa Pimentel

    O objetivo do artigo analisar as implicaes de uma certa concepo de trauma psicolgico, elaborada dentro da clnica psiquitrica norte-americana, so-bre a narrao do sofrimento de indivduos e coletividades. Nos concentraremos no arco histrico que liga a categoria de sndrome do sobrevivente, elaborada pelo psiquiatra Robert Jay Lifton (2005) na dcada de 1960, at a incluso da categoria de Transtorno de Estresse ps-traumtico em 1980 no manual de psi-quiatria americana DSM-III (APA, 1980).

    Embora o campo esttico no seja visado diretamente, inevitvel que o tema da narrativa conduza a experincia estticas que buscam dar sentido ao sofrimento traumtico, sejam estas literrias, advindas das artes plsticas ou do cinema. Por outro lado, a sintomatologia da experincia traumtica cercada de metforas sobre imagens visuais que inundam o aparato psquico (HACKING, 2000). De acordo com o psicanalista Ernst Simmel (apud SELIGMANN-SILVA, 2009, p. 1), a tcnica de produo de imagens se assemelha experincia traum-tica, que seria uma estampa fotograficamente exata

    Conceituamos trauma psicolgico no sentido empregado pelo filsofo Ian Hacking (2009). No se trata de uma realidade inscrita desde sempre na na-tureza humana, mas de um tipo de enunciado sobre essa natureza capaz de modi-ficar as aes e o significado que os indivduos constroem sobre seu sofrimento. Isso no significa dizer que antes do surgimento do termo, pessoas no sofressem e apresentassem sintomas tais como os descritos posteriormente pela psicanlise, psicologia do desenvolvimento e psiquiatria. No entanto, a reunio desses sinto-mas, a explicao sobre sua origem e as possibilidades de modific-los prpria a um momento recente da Histria das sociedades industriais, podendo ser recuada ao sculo XIX (HACKING, 2000; 2009). Quando isso realizado dentro da cl-nica, os indivduos passam a ser categorizados de diversas formas: responsveis ou no pelos seus atos, simuladores ou enfermos, as mais lcidas das testemunhas ou as mais atordoadas (FASSIN; RECHTMAN, 2009).

    Nesse sentido, a clnica do trauma dentro do presente recorte histrico visada como condio de possibilidade para a emergncia de uma figura da subje-tividade: a vtima de situaes desumanas na qual permanece um resto de humani-dade. No perodo compreendido pela inveno e uso das categorias de Sndrome do sobrevivente e Transtorno ps-traumtico, essa testemunha, conforme vere-mos, na medida em que se torna cada vez mais fidedigna e habilitada para narrar se torna cada vez mais passiva frente a acontecimentos disruptivos.1

    A hiptese com que iremos trabalhar, baseada nos trabalhos de Ian Ha-cking (2000), Ruth Leys (2008), Fassin e Rechtman (2009) e Paulo Vaz (2011), estabelece o encontro da clnica americana do trauma e movimentos sociais entre as dcadas de 1960 e 1980 como condio de possibilidade para uma mudana fundamental no nexo entre trauma e narrao. A crtica literria Beatriz Sarlo (2006) que aborda o mesmo tema no campo das ditaduras latino-americanas, su-blinha que antes da Segunda Guerra, a dificuldade em narrar eventos traumticos aparece frequentemente realada em textos como O narrador de Walter Ben-jamin. Benjamin (2008) afirma que aps a Primeira Guerra os homens voltaram

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    silenciosos, sem muito a dizer sobre o que viveram, apesar da intensidade dos acontecimentos ao seu redor. Da dcada de 1960 em diante, a relao entre trau-ma e narrao se reconfigura: no importa se a memria traumtica nebulosa, os que sobrevivem a condies limite sero testemunhas do inacreditvel. Portanto, o silncio deve ser rompido. Tentaremos mostrar que boa parte dessa reconfigu-rao toma impulso a partir da clnica psiquitrica norte-americana do trauma, da qual Robert Lifton (2005) importante representante. O autor, entrevistou e re-gistrou os sobreviventes de Hiroshima, ao final teorizando sobre a culpa da vtima como sintoma de ocorrncia de situaes de extrema violncia.

    Dessa interpretao clnica e outras que a seguiro, sobreveio uma im-portncia dada memria, narrao e ao trauma em campos geogrficos e te-mas muito mais amplos do que os originais. Como apontam Fassin e Rechtman (2009), a partir da publicao do DSM-III, a noo de trauma se generaliza, sen-do aplicada hoje a situaes que atravessam as fronteiras entre natureza e cultura. O evento traumtico necessrio para o diagnstico, mas sua definio acolhe eventos tanto intencionais, como abuso sexual e assassinato, como no intencio-nais, a exemplo de Tsunamis, enchentes e terremotos.

    Segundo a linha de investigao dos autores citados, inspirada nos traba-lhos genealgicos de Michel Foucault, quando um modo de explicar o compor-tamento humano muito bem sucedido no presente, seu passado esquecido. Quando o trauma se generaliza a tal ponto que eventos de carter to diverso so etiologicamente equiparados, cabe questionar por sua origem histrica dire-cionando a reflexo crtica para o tema ancestral, mas segundo a filsofa Susan Neiman (2009), incontornvel que o sofrimento humano.

    1-trauma e narrao

    A ligao entre o ato de narrar e a experincia traumtica pode ser remonta-da ao sculo XIX. O filsofo Ian Hacking (2000) aponta que Pierre Janet e Freud empregaram mtodos psicoteraputicos com finalidade de trazer tona eventos esquecidos porque experimentados com perturbadora intensidade. Apesar de ex-plicitamente rivais na explicao do funcionamento psquico, ambos usaram a hipnose para tratar condies patolgicas etiologicamente ligadas a certos con-tedos mentais relacionados a quadros com sintomas histricos. Freud, ainda no final do sculo XIX, props como mtodo de cura a ab-reao que articulava, hipnose e catarse afetiva, destacando que na palavra que o homem encontra um substituto para ao (FREUD apud LAPLANCHE; PONTALIS, 1980, p. 22). A ao referida seria aquela em que o indivduo diante do horror despertado por um acontecimento traumtico no foi capaz de levar a cabo.

    Segundo Lapalanche e Pontalis (1980), ainda nos primrdios da obra freu-diana, se aventa a hiptese de que um acontecimento traumtico possa ser in-serido dentro de uma cadeia significativa sem o uso da hipnose, apenas por sua associao com outras memrias. A narrao do evento teria, portanto, o mesmo efeito curativo da ab-reao. Com o amadurecimento da teoria da sexualidade,

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    Melo e Ribeiro (2008) apontam o surgimento no apenas de uma, mas de diver-sas, teorias do trauma dentro prpria da obra freudiana, que sero recuperadas e revisadas por discpulos prximos, como Sandor Ferenczi e Douglas Winnicott.

    Com a ecloso da Primeira Grande Guerra, o trauma foi tematizado tam-bm fora da clnica. O campo de batalha, orientado pela situao das trincheiras, alarmes, disparos de bombas terrestres e areas desencadearia o que Walter Benja-min (2008) chamou de pobreza da experincia. O filsofo fala em dois tipos de experincias: uma privada e somente acessvel quele que a vivencia e outra que se d no intercmbio discursivo pela narrao (BENJAMIN, 2000). As condies ultra estimulantes da Guerra comprometeria a passagem da primeira para a segun-da, processo essencial para tornar as sensaes interiores em elementos psquicos estveis. Ainda que a palavra no seja o nico elemento que permita o comparti-lhamento de experincia, a arte de narrar, segundo Benjamin (2008), um de seus domnios mais desenvolvidos e importantes. na ausncia de estrias e histrias sobre a Guerra, entre outros importantes fenmenos, que Benjamin (2008) en-contra fundamento para seu diagnstico da cultura moderna como espao-tempo veloz onde a informao circula de modo a obstruir a possibilidade de narrar.

    Modry Eksteins (1991), historiador da Primeira Guerra mundial, afirma que o ambiente da Guerra favorecia uma condio subjetiva de encapsulamento e distanciamento do mundo. Pesquisando diversos relatos de soldados, o histo-riador encontrou mais descries de estados emocionais de espanto e xtase do que propriamente narrativas sobre o exterior. Nesse sentido, o diagnstico que o psicanalista Sandor Ferenczi fez dos combatentes enfermos psiquicamente cor-responderia condio geral de todo combatente: a libido recua do objeto para o ego, aumentando o amor a si mesmo e reduzindo o amor objetal ao ponto da total indiferena (FERENCZI apud EKSTEINS, 1991, p. 273).

    Indo ao encontro de Benjamin (2008), o historiador tambm nota a escas-sez de relatos escritos por combatentes que estiveram no front. Apesar disso, a partir de 1918, algumas obras comeam a ser publicadas, sobretudo na Alemanha, retratando o conflito blico como ocasio propcia a demonstraes de herosmo. No eram exatamente relatos pessoais, mas descries exemplares da situao de guerra e dos valores que os combatentes deveriam exaltar, como honra, sacrifcio e patriotismo. O sofrimento do combatente era geralmente reconhecido por inte-lectuais, como foi o caso do escritor E. C. Cummings. Este autor, nota Ekstein, expressa pessoal e publicamente sua desolao com os grandes valores quando passa a assinar seu nome com letras minsculas.

    Segundo Eksteins (1991), um retrato bastante diverso, surge no ano de 1929, com a publicao do romance do ex-combatente Erich Maria Remarque, Nada de novo no front. Refletindo sobre o absurdo das situaes vivenciadas pelos soldados, a obra aponta o panorama de inutilidade da guerra, a falta de pers-pectiva e sentido como a condio psicolgica predominante. No mesmo ano, publicado uma obra que SeligmaNn-Silva (2009) considera inaugural do ponto de vista historiogrfico por se basear inteiramente nos testemunhos dos soldados: Tmoins de Jean Norton Cru.

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    2) dois modelos de trauma

    No entanto, para os antroplogos Didier Fassin e Richard Rechtman (2009), as condies patolgicas dos militares foram predominantemente veladas ao pblico e seus relatos restritos escuta psicoteraputica.

    Como ilustrao, lembram que o cineasta John Huston finalizou uma tri-logia de documentrios sobre a Segunda Guerra com uma obra sobre a Mason House, instituio situada em Long Island empregada para o tratamento de com-batentes psiquicamente adoecidos. Finalizado em 1946, Let There Be Light teve sua divulgao proibida por mais de 30 anos. Segundo os autores, mesmo dentro da clnica psicanaltica do trauma desenvolvida durante a Segunda Guerra por au-tores como Sandor Ferenczi, Karl Abraham, Ernst Simmel e Victor Tausk, no se considerava que a Guerra seria causa suficiente para a ecloso de sintomas neur-ticos. Em geral, os quadros tratados no eram vistos como reflexo das situaes--limite (que mais tarde, filmes como O franco atirador ou Platoon e, sobretudo, Apocalypse Now iro sublinhar em relao Guerra do Vietn). Abraham (apud FASSIN; RECHTMAN, 2009, p. 61-62) bastante representativo dessa posio, ao se referir aos neurticos de guerra como indivduos incapazes de sacrifcio:

    Na ocasio da guerra, esses homens so colocados sob condies diferenciadas e sob cargas extraordinrias. Eles devem estar preparados todo tempo para sacrificar-se incondicionalmente em prol do bem comum. Isso envolve renncia a todos privilgios narcsicos. Indivduos saudveis so capazes de inibir totalmente seu narcisismo. Assim como so capazes de transferir seu amor, so tambm capazes de sacrificar seu ego comunidade. Nesse aspecto aqueles predispostos neurose ficam para trs dos que apresentam boa.

    Para a historiadora da cincia Ruth Leys (2008), a narrao de experincias traumtica ganhar maior publicidade pelo jogo/ tenso entre dois modelos de trauma. Para distinguir modelos de trauma, a autora parte de uma leitura da teoria freudiana do trauma na qual a identificao o processo psquico de maior im-portncia. A partir dessa interpretao, Leys frisa que existe uma perptua tenso entre um modelo mimtico e outro anti-mimtico. No modelo mimtico, o trauma produzido por uma situao violenta a ponto de obstruir o processo de assimila-o psquica. Paralisado pelo espanto, o indivduo permanece inteiramente dentro da cena, sem conseguir o distanciamento suficiente entre sujeito e objeto, entre interno e externo, para que possa represent-la.

    Nessa condio, se experimentaria uma angstia ligada sensao de no mais existir. Ento, o modelo mimtico dir que se regride a um estado de pro-fundo desamparo, no qual ocorrer um tipo de identificao bastante primitiva prxima imitao cega que se d em estados hipnoides. Devido a esse estado de diminuio de atividade psquica, a cena no assimilada plenamente, retor-nando sob a forma de comportamentos imitativos da cena originria, pesadelos

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    ou ento imagens repentinas que assaltam conscincia. O psicanalista Ernst Simmel (apud SELIGMANN-SILVA, 2009, p. 1) tentou assim descrever o as-pecto intrusivo das imagens traumticas: A luz do flash do terror cunha/estampa uma impresso fotograficamente exata. Pode-se dizer que a experincia no se d como memria. Ao contrrio, se d como percepo, como se estmulos exte-riores estivessem naquela ocasio posterior imediatamente chegando ao aparelho psquico com intensidade esmagadora.

    Aplicado a situaes onde h violncia provocada por agentes humanos, esse modelo tende a desacreditar a narrao de eventos traumticos. Isto se ex-plicaria pelo fato de o modelo mimtico enfatizar um narrador psiquicamente entretecido com seu agressor. Uma ilustrao bastante curiosa, mas pertinente dada por Leys (2008) no campo do interrogatrio sob tortura. Por exemplo, at a dcada de 1960 a Agncia americana de informaes (CIA) produziu ma-nuais que recomendavam o uso de hiper estimulao, voltados para a produo de fadiga e desorientao, com a finalidade obter informaes fidedignas em condies de tortura. Posteriormente, o mtodo questionado porque a situao de extremo desamparo induziria uma identificao com o agressor, tornando qualquer informao dada como suspeita. Se o torturado se identificava com o torturador, ele agiria para agrad-lo, relatando situaes que no eram verda-deiras. Segundo Melo e Ribeiro (2006), esse modelo est igualmente presente na obra de Ferenczi, sobretudo em seus estudos sobre abuso sexual. A criana quando abusada sexualmente por um adulto em que confiava tende a negar o acontecimento. Seu relato no seria, portanto, fidedigno em relao situao traumtica. Caberia perfeitamente clnica psicanaltica acolh-lo, mas sua di-vulgao pblica no teria sentido.

    Tanto Leys (2008) quanto Fassin e Rechtman (2009) apontam uma mudan-a na relao entre trauma e narrao lentamente instalada no perodo posterior Segunda Guerra Mundial. Usando a terminologia da autora, a tenso entre mode-los de trauma se resolver em direo ao modelo anti mimtico. Nesse modelo, o trauma tambm compreendido pelo mecanismo de imitao, porm enten-dido de modo diferente. A experincia emocionalmente perturbadora igual-mente apontada na gnese das condies traumticas, no entanto ela no dispara um processo de imerso na cena, mas um alheamento totalmente em relao ao acontecimento. Em outros termos, enquanto no outro modelo, o distanciamento insuficiente, neste, o distanciamento excessivo. No modelo mimtico, o indi-vduo passa pela experincia apavorante de indistino entre si e mundo externo, no anti-mimtico, h, forando o contraste, a experincia absolutamente passiva onde o indivduo observa a si mesmo. Ento, Leys (2008) conclui que a narrao da experincia traumtica tende a ser validada nesse ltimo modelo, pois sujeito e objeto esto numa posio onde possvel haver a distncia necessria ao conhe-cimento do exterior. Ainda que as memrias traumticas possam ser consideradas imensamente perturbadoras e extremamente fragmentadas, a atividade do evento confrontada passividade do sujeito abre terreno para um tipo de narrativa realis-ta, por no se estar comprometido pela identificao com o agressor.

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    Um quadro denominado sndrome do sobrevivente (que ganhar muita fora na dcada de 1960) une tanto traos de configurao anti-mimtica quanto de traos de configurao mimtica (LEYS, 2008). Os estudos que levaram essa classificao surgem relacionados situao psquica do sobrevivente dos campos de concentrao. Segundo Fassin e Rechtman (2009), o psicanalista Bruno Bettelheim publicou os primeiros escritos sobre o tema. Bettelheim vi-venciou essa condio como ex-prisioneiro de Dachau e Buchenwald nos anos 1938-1939, conseguindo escapar e imigrar para os Estados Unidos, onde inicia pesquisas sobre seus efeitos traumticos. Nota com frequncia um imenso e de-solador sentimento de culpa entre os sobreviventes, que encaram sua sorte como resultado do sacrifcio da vida de outrem. A libertao dos campos de concentra-o ao invs de ser vivenciada como um retorno vida, instala a dvida quanto ao prprio carter e mrito por ter escapado ao destino de milhes. Na absoluta aleatoriedade da morte, que se furta a qualquer explicao, a busca do sentido se faz obrigao incontornvel para o sobrevivente. O problemtico que tal aleato-riedade cancela a priori qualquer coerncia narrativa (LIFTON, 2005)

    Embora frise o impacto do evento exterior sobre um sujeito passivo, Bet-telheim, segundo Leys (2008) ainda trabalha a partir do modelo mimtico do trauma. A sintomatologia tpica da sndrome do sobrevivente seria uma culpa atordoante e injustificada pelo destino diferenciado. A explicao desse senti-mento se dava a partir da regresso a um estado de identificao com o agres-sor. Como resultado, a vtima experimenta um vnculo ambguo de amor e dio pelo seu carrasco, enxergando a si mesmo com caractersticas alheias. Imagina-se agressivo, ainda que imensamente desamparado. No momento seguinte, a violn-cia que acredita possuir inconscientemente voltada para seu interior Ao final, se transforma em culpa, ou seja, traduzida como dio por si mesmo.

    3- a CrtiCa sndrome do sobrevivente

    A teoria de Bettelheim ser muito importante na clnica psiquitrica do trauma americana da dcada de 1970. Um dos principais autores a expandir sua teoria para contextos distintos dos campos de concentrao foi Robert Jay Lif-ton (2005), que realizou extensas pesquisas com os sobreviventes da bomba de Hiroshima chegando a concluses semelhantes. O autor, que em artigo recen-te afirmou que os americanos, todos sem exceo, devem ser considerados so-breviventes em virtude do atentado terrorista s torres gmeas em 2001, buscou tambm investigar os mecanismos comportamentais que favoreceriam a sobrevi-vncia em situaes-limite.

    A partir dos estudos de Fassin e Rechtman (2009), Hacking (2000) e de Leys (2008), pode-se dizer que a contribuio de Lifton para a predominncia de um modelo anti-mimtico reside em duas instncias. Em primeiro, por articular em seus estudos os mecanismos intra-psquicos com condies objetivas que aca-bam sendo melhor especificadas em seu funcionamento. As chamadas situaes limites esto ligadas, como igualmente sublinhou a filsofa Hannah Arendt, no tanto extenso dos assassinatos, mas sua aleatoriedade, que as tornam imper-

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    meveis a explicaes racionais. Em segundo lugar, Lifton desenvolve pesquisas a partir de entrevistas com sobreviventes, nas quais a expresso do sofrimento est referida a acontecimentos coletivos e objetivos. O prprio sintoma de culpa intensa uma evidncia de que o indivduo vivenciou situaes desumanizadoras (FASSIN; RECHTMAN, 2009). Com Lifton, a clnica do trauma vai do sintoma ao acontecimento, enquanto uma gerao anterior realizava o movimento contr-rio, indo da Guerra ao, por exemplo, narcisismo.

    Endossando a necessidade de se narrar publicamente vivncias traumti-cas, as demandas formuladas por movimentos sociais se funde ao tipo de aborda-gem empregado por Bettelheim e Lifton. Este ltimo relata como foi procurado por organizaes de sobreviventes dos campos de concentrao para expandir a importncia dos testemunhos, que j havia se destacado no julgamento de Eis-chman em Israel Enquanto no imediato ps-guerra, predominavam depoimentos escritos como peas jurdicas usadas contra nazistas, esse julgamento foi marca-do pela presena das vtimas e por relatos dentro do tribunal (VAZ, 2010).

    Torna-se importante nesse momento, usar a memria contra a repetio do passado (HACKING, 2000). O cineasta Uli Edel, no filme O grupo Baader-Mei-nhof, frisa a generalizao do holocausto como modelo de explorao humana. No relato do filme, fica claro que o grupo se configura inicialmente contra a Guer-ra do Vietn entendendo-a como um segundo Holocausto.

    Segundo Leys (2008), essa mesma gerao se sente de tal forma impelida a dar credibilidade aos depoimentos dos sobreviventes a ponto da prpria cate-goria de sndrome do sobrevivente se tornar questionvel. Nesse momento, o modelo anti-mimtico do trauma ganhar mais um terreno contra o modelomimtico. O objetivo de vrias crticas dirigidas noo de culpa do sobrevi-vente retirar todo e qualquer peso do indivduo sobre seu sofrimento. Aquele que foi poupado das mquinas de destruio do sculo XX no sofre pelo dio que dirige a si mesmo, mas simplesmente porque o fizeram sofrer. Qualquer explicao que se demore muito em vetores intermedirios entre o agressor e o sofredor ser considerada imoral por ampliar a dor da vtima (VAZ, 2010). Leys (2008) cita a crtica de Terence De Pres dirigida diretamente a autores como Lifton e Bettelheim: Ns estamos em meio a uma conspirao do silncio e retiramos a autoridade do sobrevivente definindo-a pela culpa. Se ele culpado, talvez ento seja verdade que as vtimas da atrocidade colaboraram para sua prpria destruio (DE PRES apud LEYS, 2008, p. 62).

    4- ClniCa do trauma e movimentos soCiais

    No cenrio americano dois movimentos sociais em particular tiveram suas trajetrias intensificadas pela clnica psiquitrica do trauma (FASSIN; RECHT-MAN, 2009). Primeiramente, na dcada de 1960, o movimento feminista se vol-tou fortemente para a temtica do abuso sexual. Pela compreenso scio-histrica empregada, o ndice superior de crianas do sexo feminino entre as vtimas estava relacionada profundamente ao patriarcalismo da sociedade. Se o poder se con-centrava em torno dos membros masculinos da famlia, a autoridade sobre bens e

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    nas deliberaes poderia facilmente deslizava para o corpo e sexualidade femini-na. Reverter essa configurao histrica passaria pela denncia pblica do abuso, dando voz vtima. As feministas tiveram sucesso na mobilizao de profissionais clnicos como pediatras e radiologistas que eram capazes de mostrar as marcas fsicas da violncia. Porm, esbarraram na questo de no haver provas objetivas para as feridas invisveis impressas no psiquismo das vtimas. Demonstrar essas marcas tambm implicaria em revelar nexos causais entre passado e presente, j que muito das vtimas de abuso infantil eram agora adultas (VAZ, 2010).

    Como afirma Leys, jamais houve momento histrico em que um dos modelos de trauma desaparecesse, estes sempre conviveram com diferentes nfases. No basta, portanto, remontar s teorias psicolgicas do trauma, preciso ampliar o escopo para os atores interessados em que uma das verses se tornasse proeminente.

    A demanda do movimento feminista encontrou na clnica psiquitrica do trauma bases clnicas para sua crtica social. Afirmar que as vtimas sofrem em silncio, que no se pronunciam porque se dividem entre a sua dor e o ponto de vista do agressor, foi um mecanismo importante para superar o problema do hiato temporal. O silncio seria sinal do segredo. Por outro lado, o estudo de autores como Lifton sobre as situaes desumanizadoras, foram interessantes para o mo-vimento em defesa dos ex-combatentes do Vietn. Como j havia sido notado, ao final da dcada de 1960, o Holocausto estava se tornando modelo de compreenso para diversos tipos de regimes e situaes totalitrias (FASSIN; RECHTMAN, 2009). A Guerra do Vietn foi interpretada nessa chave no somente como massa-cre imposto aos vietnamitas, mas tambm em relao aos combatentes enviados contra vontade prpria. O estado americano deveria, ento ser responsabilizado pela morte e sofrimento de milhares de sobreviventes.

    Neste momento, a clnica do trauma comeou a se dirigir para outro fen-meno: a agressividade dos combatentes. At ento, o fenmeno majoritariamente estudado estava ligado vtima evidente de uma agresso, mas o algoz no tinha ainda recebido a mesma ateno. As teorias se expandiram para os efeitos psico-lgicos de situaes adversas sobre o comportamento de combatentes envolvidos em extermnio de aldeias como May Lai. A partir de entrevistas, foi sugerido um retrato bastante diferente do esperado. Esses militares teriam conduta e carter prova de dvida, criando vnculos profundos de solidariedade entre si. Ao ver seus companheiros abatidos, eles reagiam exageradamente. Corroborava a hip-tese, as entrevistas terem revelado que aqueles que se recusaram a participar dos ataques aos vietnamitas no tinham vnculos grupais fortes.

    Essa explicao estimulava a empatia dos no militares com os combatentes e, a contraluz, depositava a responsabilidade pelo sofrimento coletivo no Estado ameri-cano, que passou a indenizar financeiramente os ex-combatentes traumatizados.

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    5- estresse ps-traumtiCo e narrao do sofrimento.

    Um passo fundamental para que essa indenizao se tornasse procedimen-to corrente foi dado pela fora-tarefa psiquitrica responsvel pela elaborao da terceira verso do DSM. Os principais responsveis pelas pesquisas compar-tilhavam pelo menos duas ambies: dar fundamento clnico para que os ex--combatentes traumatizados pudessem ser financeiramente ressarcidos e criar um sistema classificatrio mais objetivo, centrado na descrio dos sintomas ao invs de em sua explicao. Enquanto nas verses exteriores, predominava o vocabul-rio psicanaltico expresso no campo traumtico como neurose de guerra, novas nomenclaturas recobriram o campo.

    Uma expresso desse esforo foi a incluso do Transtorno de Estresse ps-traumtico, apontado em uma pesquisa extensa realizada em 1995 com sendo a quinta enfermidade mental com maior prevalncia nos Estados Unidos (KESSLER, et al, 1995). No Brasil, tanto no campo emergente da psicologia das emergncias, h preocupaes em se delimitar sua prevalncia e tratamento adequado (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2011), quanto estudos de neuro-imagem que revelam modificaes estruturais e funcionais em siste-mas ligados s memrias emocionais (PERES, 2009). Pode-se notar demandas para o desenvolvimento de pesquisas, usando-se argumentos ligados a alta taxa de criminalidade urbana e bitos por acidentes de trnsito (FIGUEIRA; MEN-DOWLICZ, 2003). Mas o que talvez seja mais interessante aqui destacar que a introduo do TEPT expandiu a compreenso do que se considera evento traum-tico e o papel desses eventos na ecloso dos sintomas.

    So trs tipos de critrios considerados: em primeiro, a experincia direta ou indireta de um evento estressor; em segundo distrbios da memria, como am-nsia e hipermnsia e uma suscetibilidade exacerbada a estmulos que disparam reaes de fuga e enfrentamento, e terceiro, o evitar fbico de situaes que po-dem suscitar reaes de alarme (GROHOL, 2014). O primeiro critrio no apre-senta uma definio precisa do que seria um evento estressor. Na primeira verso, so mencionados acontecimentos sbitos e violentos, que incluem desde assaltos at catstrofes naturais. Na segunda verso do TEPT, apresentada no DSM-IV na dcada de 1990, incluem-se como critrios a resposta emocional aos acontecimen-tos. Deste modo, um evento relativamente banal, destaca o DSM-IV-R, como ser informado sobre bitos de parentes poderia ser includo como evento estressor desde que seja recebido com intensidade emocional. Na verso mais recente do DSM, lanada em 2013, so retirados os aspectos subjetivos de resposta emocio-nal e os critrios tornam-se novamente estritamente objetivos (GROHOL, 2014).

    Trata-se de uma concepo do trauma anti-mimtica, na medida em que separa claramente um sujeito passivo e um evento disruptivo. A noo de culpa do sobrevivente que ainda permanecia no DSM-III, tornou-se secundria em sua reviso publicada em 1987 (LEYS, 2008). Embora, o escopo psicanaltico que garantia um espao para o processo de identificao tenha sido retirado, o DSM em sua terceira verso em diante considerada por Leys um modelo anti-mi-mtico por separar etiologicamente sujeito e objeto. Como efeito, a narrao do

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    sofrimento traumtico que j havia sido valorizada a partir do movimento femi-nista torna-se inteiramente habilitado, apesar das memrias traumticas serem tomadas como fragmentrias. Hacking (2000) nota que o retorno de imagens do evento traumtico considerado uma prova da inscrio desse acontecimento no psiquismo. Essa observao validada em um caso de percia psiquitrica reali-zado no Brasil. O fato do demandante de indenizao, um militar que participou de operaes militares na Repblica Dominicana, ter relatado com clareza suas memrias invalidou o diagnstico de TEPT (MENDLOWICZ; BERGER, 2011).

    Com a separao clara entre sujeito e evento traumtico embutida na ca-tegoria de TEPT, as narraes de experincias traumticas tm adquirido maior credibilidade. O filsofo Paulo Vaz (2010), a partir de pesquisa extensa sobre a narrativa miditica tanto em semanrios impressos e telejornais, prope que a forma narrativa para o sofrimento traumtico est ligada compaixo. Hannah Arendt (2001) estabelece uma diferena entre compaixo e piedade a fim de apreender o posicionamento dos que no sofrem frente ao sofrimento alheio. A compaixo tem na crucificao de Cristo seu prottipo; trata-se de uma ex-posio ou narrao de um sofrimento nico, fortemente individualizado. J na piedade, o sofrimento representado tem carter exemplar, pois pretende ser a representao de uma realidade coletiva.

    Comentando a narrao miditica das fortes chuvas que assolaram a regio de Angra dos Reis em 2010, o filsofo nota uma representao individualizada do sofrimento, onde so relatados detalhes pessoais da vida das vtimas, seus hobbies e vnculos afetivos e projetos inconclusos. As referncias ao sofrimento traumtico aparecem tanto sob a forma de distrbios da memria, como pesade-los, como invaso do passado no presente apagando a perspectiva de futuro. O relato feito a partir da perspectiva das vtimas frequentemente fotografadas em expresses emocionais de desespero.

    H um efeito indiretamente teraputico quando as notcias denunciam a irresponsabilidade das autoridades, frisando sua inpcia na gesto de riscos. Vi-sa-se que essa memria narrada e divulgada no espao pblico impea que novos desastres ocorram. As entrevistas conduzidas pelo historiador Michael Pollak (2010) com vtimas do Holocausto so mais diretamente articuladas teraputi-ca. O autor afirma que somente atravs desses depoimentos que a subjetividade da vtima pode ser reconstruda. Criticando as teorias de Lifton e Bettelheim, o historiador afirma que a experincia de condies desumanas afeta o psiquismo sempre de modo individual e no h como determinar que a culpa o que articula a condio psquica dos sobreviventes.

    No terreno cinematogrfico, o polmico Shoah de Claude Lanzmann e o mais recente A imagem que falta do cambojano Rithy Pahn apresentam caracte-rsticas da forma compassiva de narrao. O primeiro um estudo pormenoriza-do da dificuldade de narrar o Holocausto, mas que insiste em sua possibilidade, recolhendo testemunhos de sobreviventes. Com mais de nove horas de durao, Shoah alterna silncios com paisagens que nada mais aparentam do cenrio des-trutivo do passado. Diante desse enorme apagamento histrico que mostrado,

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    enfatizada a importncia do relato em primeira pessoa. Ainda que o aconteci-mento seja impossvel de plena representao, a estrutura fragmentada do filme busca ser fiel forma ilgica, irracional do acontecimento. A impossibilidade de representar no cancela a busca da representao, mas a move por caminhos no lineares, no linearidade prpria experincia traumtica.

    A imagem que falta se refere ao genocdio conduzido pelo Kmher verme-lho entre 1976-1979, que resultou na morte de aproximadamente dois milhes de cambojanos. O autor vivenciou ainda no incio da adolescncia, os eventos que busca resgatar a partir da narrativa cinematogrfica. Essa recorre a um recurso potico, usando pequenas miniaturas feitas de madeira para compor cenrios de uma memria nebulosa que vai ganhando seus contornos com o desenvolvimento narrativo. Alternam-se essas imagens estticas com cenas documentais produzidas pelo regime totalitrio com a finalidade de mostrar a adeso da populao, que apesar de apresentar movimento, se mostram extremamente automticas. Curiosa-mente, as cenas estticas formadas por cenrios artesanais com peas de madeira comparativamente aparentam mais vitalidade. Esse recurso usado para dar conta da ausncia de registro imagtico, bem como suplementar a memria com a ati-vidade manual que resultou nos cenrios estticos. A memria artesanalmente forjada, sem que isso comprometa sua autenticidade. Pelo contrrio, na narrativa da compaixo, a memria pode ser criada e ser verdadeira ao mesmo tempo.

    Consideraes finais

    O percurso aqui traado envolve diversos atores sociais e teorias acerca do trauma, resultando na predominncia de um modelo anti-mimtico. Tal modelo enfatiza a fragilidade humana perante acontecimentos externos, permitindo a dis-tncia necessria para uma narrao da experincia traumtica.

    Roger Luckhurst (2003) nota alguns paradoxos envolvidos nessa narra-o. Ao supor um sujeito traumtico, a narrao do sofrimento se d a partir da premissa de que esse sujeito faltoso, impossvel e fragmentado. O autor diagnostica uma espcie de traumatofilia na extensa publicidade que alguns relatos de experincias traumticas adquirem. Seria fundamentalmente arriscado articular trauma e narrao em primeira pessoa, na medida em que a legitimao do sofrimento das vtimas se d a partir de um evento externo que encontra um indivduo passivo. Narrar de modo compassivo o sofrimento traumtico recorre a enunciados clnicos que descrevem a condio humana pelo sofrimento de emo-es profundamente perturbadoras.

    E, sobretudo, a etiologia vaga e ampla do TEPT expande a possibilidade de sofrer a todo indivduo. Na viso de Paulo Vaz (2010), essa etiologia contribui para a formao de uma condio subjetiva vulnervel to generalizada, ao ponto de ser capaz de nos tornar vtimas virtuais.

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    nota1 Como observa Michael Rothberg (2000), existem diversos pesquisadores do Holocausto que consideram-no inarrvel, usando o argumento que o sujeito do Holocausto no o sobrevivente, mas os que foram exterminados. No entanto, pode-se dizer que ainda assim, essa linha terica costuma reconhecer que h verdade na memria dos sobreviventes, ainda que seja, como memria traumtica, fragmentada, de difcil acesso, fundamentalmente inacabada. Assim argumentam documentrios sobre o genocdio judeu como Shoah (acidente em hebraico) de Claude Lanzmann (1985) ou o A imagem que falta, sobre o genocdio cambojano, de Rithy Panh (2013), nos quais se frisa a impossibilidade de resgatar a totalidade do acontecimento.

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    Recebido em: 02 de julho de 2014 Aceito em: 03 de setembro de 2014

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