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entrevistas edição 19 - Ciências do Brasil Professora Márcia Ferraz O nascimento da Ciência no Brasil Nesta entrevista, a professora Márcia Ferraz, coordenadora do Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Ciência da PUC/SP traça um panorama do surgimento e desenvolvimento do fazer científico no Brasil e revela quais são os desafios atuais para o País solidificar sua posição de destaque no cenário mundial. CC - Em que momento histórico podemos dizer que o fazer científico começa a ser praticado no Brasil? Antes de responder exatamente ao que me pergunta, é importante fazer algumas observações preliminares. Primeiramente, temos de considerar o que se entende por Ciência ou, se quiser, "fazer científico" - com todo o cuidado, pois o termo "científico" foi cunhado no século XIX e, estritamente falando, poderíamos aplicá-lo apenas a atividades que se desenvolveram a partir desse momento -, para depois pensar quando ela passa a ser praticada. Se estivermos pensando no fazer ou praticar a Ciência como o interesse pela natureza ou fenômenos naturais e sua tentativa de explicá-los, podemos dizer que desde a chegada dos europeus a estas terras sempre houve alguém que a praticasse. E, nesse caso, estamos deixando completamente de lado a forma dos habitantes originais pensarem esses mesmos fenômenos simplesmente por uma questão de recorte temporal e étnico. Essa forma de fazer Ciência (de acordo com cada período) se reflete, por exemplo, nos inúmeros textos escritos, seja por portugueses seja por estrangeiros, que nem sempre tinham autorização para se aventurarem pelas terras do Brasil. Poderíamos considerar ainda como exemplo o trabalho que os jesuítas realizavam nos locais onde estabeleceram seus colégios, que contavam com pessoas encarregadas de conhecer as plantas medicinais brasileiras e preparar remédios a partir delas. Ou, ainda, os resultados das viagens que diversos estudiosos realizaram pelo Brasil no século XVIII, encarregados pela Coroa Portuguesa de descrever tudo que encontrassem em termos de vegetais, animais, minerais, acidentes geográficos etc. Ainda que muitos desses estudos tivessem permanecido secretos ou desconhecidos, pois não foram publicados ou viriam a ser publicados muito tempo mais tarde, eram formas de fazer Ciência. No entanto, em pouco contribuíram para o estabelecimento das ciências no Brasil. Pois, até 1808, quando aqui chega a Família Real, estavam proibidos os cursos superiores e a instalação de tipografias. Ou seja, sem escola e sem livros pouco se podia fazer. Para complicar ainda mais, os barcos que chegavam aos poucos portos brasileiros eram severamente revistados para que nenhum livro proibido aqui entrasse e a lista era bem longa... CC - A partir de quais necessidades e anseios sociais, culturais e econômicos o fazer científico começa a ser praticado? Com a chegada da Família Real foram criados alguns cursos superiores no Brasil, pois até então, o que existia, era quase que apenas as escolas de "primeiras letras", quer dizer, onde se ensinava o básico para ler, escrever e fazer contas. De fato, Portugal fazia de tudo para manter o Brasil o máximo possível ligado à Metrópole, pois temia que ares de liberdade pudessem ganhar forma na colônia. Uma das vias para se conseguir isso era obrigar os brasileiros a irem estudar em Portugal onde, principalmente em Coimbra, realizavam sua formação em uma das carreiras clássicas - Medicina, Direito e Teologia - ou, ainda, em poucos outros campos, como a Filosofia Natural. Esta última área foi introduzida na Universidade de Coimbra com a reforma de 1772 e contemplava também estudos de Química, Física e História Natural. Em boa parte, esses brasileiros acabavam ficando na Metrópole, exercendo diferentes cargos, e poucos voltavam ao Brasil. Assim, quando a Família Real chegou ao Brasil, já na Bahia - onde uma parte da frota parou por algum tempo - criou-se a primeira "escola" de Medicina em nossas terras. Na verdade, não era um curso como entendemos hoje, mas uma "cadeira" para a qual foi nomeado um professor que, com seus livros e instrumentos, deveria ensinar a Medicina. Ao chegar ao Rio de Janeiro, o Príncipe Regente criou outro "curso" de Medicina tão precário como o primeiro! Algum tempo depois, foi criado um "curso" para formar engenheiros civis e militares. Se quisermos pensar em anseios sociais, culturais e econômicos podemos considerar que a chegada da Família Real e sua Corte teria criado uma situação em que médicos e engenheiros (que se dedicassem às construções de edifícios, pontes, calçadas etc. e também à defesa do País) se tornaram necessários. Mesmo que de forma muito precária, esses "cursos" para formar médicos e engenheiros deveriam propiciar estudos e "fazeres" em Química, Física, História Natural, Mineralogia, Metalurgia, Anatomia, Farmácia etc. E, temos, então, um contexto que viria a propiciar o início da institucionalização das ciências no Brasil. Pois, além dos "cursos" criados, com seus professores e alunos, foi a instalada uma tipografia no Rio de Janeiro que passou a publicar livros para esses "cursos". Sem dúvida, havia ainda um longo caminho a percorrer, mas esse foi o início. CC - Qual Ciência é a primeira a surgir por aqui? Por quê? Em qual contexto? Que pesquisador esteve à sua Click Ciência http://www.clickciencia.ufscar.br/portal/edicao19/entrevista1_pr... 1 of 3 5/17/15 11:32 PM

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Marcia Ferraz

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entrevistas edição 19 - Ciências do Brasil

Professora Márcia Ferraz

O nascimento da Ciência no Brasil

Nesta entrevista, a professora Márcia Ferraz, coordenadora do Programade Estudos Pós-Graduados em História da Ciência da PUC/SP traça umpanorama do surgimento e desenvolvimento do fazer científico no Brasil erevela quais são os desafios atuais para o País solidificar sua posição dedestaque no cenário mundial.

CC - Em que momento histórico podemos dizer que o fazer científicocomeça a ser praticado no Brasil?

Antes de responder exatamente ao que me pergunta, é importante fazeralgumas observações preliminares. Primeiramente, temos de considerar oque se entende por Ciência ou, se quiser, "fazer científico" - com todo ocuidado, pois o termo "científico" foi cunhado no século XIX e, estritamentefalando, poderíamos aplicá-lo apenas a atividades que se desenvolveram apartir desse momento -, para depois pensar quando ela passa a serpraticada. Se estivermos pensando no fazer ou praticar a Ciência como ointeresse pela natureza ou fenômenos naturais e sua tentativa de explicá-los,

podemos dizer que desde a chegada dos europeus a estas terras sempre houve alguém que a praticasse. E, nessecaso, estamos deixando completamente de lado a forma dos habitantes originais pensarem esses mesmosfenômenos simplesmente por uma questão de recorte temporal e étnico. Essa forma de fazer Ciência (de acordo comcada período) se reflete, por exemplo, nos inúmeros textos escritos, seja por portugueses seja por estrangeiros, quenem sempre tinham autorização para se aventurarem pelas terras do Brasil. Poderíamos considerar ainda comoexemplo o trabalho que os jesuítas realizavam nos locais onde estabeleceram seus colégios, que contavam compessoas encarregadas de conhecer as plantas medicinais brasileiras e preparar remédios a partir delas. Ou, ainda, osresultados das viagens que diversos estudiosos realizaram pelo Brasil no século XVIII, encarregados pela CoroaPortuguesa de descrever tudo que encontrassem em termos de vegetais, animais, minerais, acidentes geográficosetc. Ainda que muitos desses estudos tivessem permanecido secretos ou desconhecidos, pois não foram publicadosou viriam a ser publicados muito tempo mais tarde, eram formas de fazer Ciência. No entanto, em pouco contribuírampara o estabelecimento das ciências no Brasil. Pois, até 1808, quando aqui chega a Família Real, estavam proibidosos cursos superiores e a instalação de tipografias. Ou seja, sem escola e sem livros pouco se podia fazer. Paracomplicar ainda mais, os barcos que chegavam aos poucos portos brasileiros eram severamente revistados para quenenhum livro proibido aqui entrasse e a lista era bem longa...

CC - A partir de quais necessidades e anseios sociais, culturais e econômicos o fazer científico começa a serpraticado?

Com a chegada da Família Real foram criados alguns cursos superiores no Brasil, pois até então, o que existia, eraquase que apenas as escolas de "primeiras letras", quer dizer, onde se ensinava o básico para ler, escrever e fazercontas. De fato, Portugal fazia de tudo para manter o Brasil o máximo possível ligado à Metrópole, pois temia que aresde liberdade pudessem ganhar forma na colônia. Uma das vias para se conseguir isso era obrigar os brasileiros a iremestudar em Portugal onde, principalmente em Coimbra, realizavam sua formação em uma das carreiras clássicas -Medicina, Direito e Teologia - ou, ainda, em poucos outros campos, como a Filosofia Natural. Esta última área foiintroduzida na Universidade de Coimbra com a reforma de 1772 e contemplava também estudos de Química, Física eHistória Natural. Em boa parte, esses brasileiros acabavam ficando na Metrópole, exercendo diferentes cargos, epoucos voltavam ao Brasil. Assim, quando a Família Real chegou ao Brasil, já na Bahia - onde uma parte da frotaparou por algum tempo - criou-se a primeira "escola" de Medicina em nossas terras. Na verdade, não era um cursocomo entendemos hoje, mas uma "cadeira" para a qual foi nomeado um professor que, com seus livros einstrumentos, deveria ensinar a Medicina. Ao chegar ao Rio de Janeiro, o Príncipe Regente criou outro "curso" deMedicina tão precário como o primeiro! Algum tempo depois, foi criado um "curso" para formar engenheiros civis emilitares. Se quisermos pensar em anseios sociais, culturais e econômicos podemos considerar que a chegada daFamília Real e sua Corte teria criado uma situação em que médicos e engenheiros (que se dedicassem àsconstruções de edifícios, pontes, calçadas etc. e também à defesa do País) se tornaram necessários. Mesmo que deforma muito precária, esses "cursos" para formar médicos e engenheiros deveriam propiciar estudos e "fazeres" emQuímica, Física, História Natural, Mineralogia, Metalurgia, Anatomia, Farmácia etc. E, temos, então, um contexto queviria a propiciar o início da institucionalização das ciências no Brasil. Pois, além dos "cursos" criados, com seusprofessores e alunos, foi a instalada uma tipografia no Rio de Janeiro que passou a publicar livros para esses"cursos". Sem dúvida, havia ainda um longo caminho a percorrer, mas esse foi o início.

CC - Qual Ciência é a primeira a surgir por aqui? Por quê? Em qual contexto? Que pesquisador esteve à sua

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frente?

É sempre algo muito complicado determinar o que ocupa o primeiro lugar, pois, por um lado, isso pressupõe queestamos com a verdade quando nomeamos o primeiro. E, ao tratarmos de acontecimentos históricos, sempre se podedescobrir outro que poderia ocupar esse lugar. Por outro, falar do primeiro exige estabelecer parâmetros. Assim, se aHistória Natural estava preocupada em reconhecer e descrever as plantas, os animais e os minerais, poderíamosdizer que desde os primeiros séculos da chegada dos europeus nas terras depois nomeadas como Brasil, já se faziaCiência. Poderíamos também considerar o trabalho dos poucos médicos que estiveram pelo Brasil tentandoreconhecer as novas doenças com que se defrontaram e aí, talvez, a Medicina seria a primeira. Ou ainda, seconsiderarmos todo o trabalho dos jesuítas na tentativa de utilizar as plantas aqui encontradas no lugar daquelas quechegavam já deterioradas da Europa, a Farmácia seria a primeira. Essas e outras poderiam ser as primeiras,dependendo da forma como considerássemos a situação. Acho que o mais interessante seria considerarmos, maisuma vez em termos institucionais, ou seja, em termos de locais e grupos em que as ciências puderam se estabelecere desenvolver plenamente. Isso nos livra também de nomear algumas poucas e deixar de lado um grande número depessoas que também contribuíram para o que temos hoje em termos de Ciência, numa forma geral. A ciênciamoderna se mostrou, ao menos desde o século XVII, como uma atividade de grupos de pessoas em interação. É certoque quando fazemos a história de áreas específicas de ciências no Brasil, verificamos que há sempre nomes que sedestacam, e concluímos que, muitas vezes, uma área se estabeleceu por esforço individual, mas isso é cada vezmenos frequente. Assim, lembrando o que foi dito antes, as primeiras áreas a terem cursos contemplados, foram aMedicina e a Engenharia, seguidas pelo Direito em 1827, em instituições que se modificaram ao longo do século XIX,e de forma mais ou menos precária, pois faltavam professores, livros e espaços para as atividades decorrentesdesses estudos, se responsabilizaram pela formação dos diferentes profissionais.

CC - Quais seriam as condições para o estabelecimento e desenvolvimento da prática científica? Como issose deu no Brasil?

Coerente com o que disse até agora, a Ciência moderna é uma prática de grupos. Para a institucionalização de umaárea, ou seja, para a criação das bases de seu estabelecimento e desenvolvimento são necessárias algumascondições. Podemos nomear como um primeiro ponto a formação de pessoas que a ela vão se dedicar, ou seja,devem-se fundar escolas responsáveis pela construção de uma tradição em pesquisa. Uma segunda condição a sercontemplada é a realização de pesquisas que vão, muitas vezes, retroalimentar o trabalho docente. Dessa maneira,se propicia a formação de pessoal realmente engajado com o que há de mais recente na área. O conjunto secompleta com a criação de diferentes meios de exposição dos resultados da pesquisa, com destaque para apublicação em periódicos especializados de grande circulação e a aplicação dos resultados. Como se vê, a realizaçãode todas essas condições pressupõe a participação de grupos de pessoas, ainda que, em diferentes momentoshistóricos nos deparemos com alguns nomes indispensáveis para o estabelecimento de uma área da Ciência. Dequalquer forma, a atuação individual está sempre associada a fatores sociais e econômicos e, em última instância, àvontade política dos governantes, mesmo porque a Ciência moderna depende de financiamentos. Talvez pudéssemosconsiderar alguns momentos constitutivos de fases para a institucionalização das ciências no Brasil. Assim, o primeiroseria a chegada da Família Real no Brasil, com a criação dos primeiros cursos ao mesmo tempo em que se iniciaimpressão autorizada de livros no Brasil com a criação da Impressa Régia. Parece pouco, pois por si mesmas essascondições não levam à institucionalização de uma área, mas, já foi um começo, se compararmos com a situação deproibição de estabelecimento de cursos superiores e tipografias e a revista sistemática dos navios na barra do portopara evitar a entrada de livros proibidos (o que incluía a Bíblia em Português). Poderíamos mencionar ainda tentativasde se modificar a forma de fazer Ciência no Brasil de acordo com modelos praticados em outros locais, como foi ocaso da Escola de Minas de Ouro Preto que tanto empenho exigiu de D. Pedro II, mas que acabaram por não surtirtotalmente o efeito desejado. Poderíamos citar, também, a Escola de Medicina da Bahia, onde um grupo de médicos,na segunda metade do século XIX, se propôs a buscar soluções próprias para questões médicas particulares dapopulação do Estado, veiculadas na Gazeta Médica da Bahia, criada em 1866. No quadro desta divisão artificialproposta, um segundo momento, já alcançado o final do século XIX, se refere à criação das instituições que deveriamse dedicar em grande parte à pesquisa e sua tarefa, principal, era resolver um grave problema que irradiava de portosbrasileiros: a peste bubônica. Essas instituições seriam o Instituto Butantan, em São Paulo, e o Instituto Soroterápicono Rio de Janeiro, que seria pouco mais tarde denominado Instituto Oswaldo Cruz. As duas instituições, criadas nummomento de sérios problemas de saúde de extensas parcelas da população, mantêm até hoje significativa produçãoem pesquisa, ao lado de fármacos, vacinas e soros. No caso do Instituto Oswaldo Cruz, não tardou em estabelecercursos de formação em especialidades médicas, ao lado das demais escolas médicas do País e a fundar o periódico"Memórias do Instituto Oswaldo Cruz". Temos assim exemplos importantes de como se concretizam algumas dascondições necessárias para a institucionalização das ciências em um país. Mas o quadro não estava completo. Hámuito se clamava no Brasil pela criação da Universidade, como local que congregasse as várias facetas da Ciência,com possibilidade de formar pessoal especializado e realizar pesquisas, tanto no que se denominavam CiênciasBásicas quanto nas Aplicadas. Para ficar apenas no século XX, algumas tentativas efêmeras se verificaram nasprimeiras décadas. No entanto, algo duradouro se deu em 1920 com a criação da Universidade do Rio de Janeiro(depois Universidade Federal do Rio de Janeiro), com a conglomeração de três faculdades já existentes. A criação daUniversidade de São Paulo em 1934 significará um diferencial às instituições existentes, pois a Faculdade deFilosofia, Ciências e Letras propiciaria a formação especializada nas Ciências Básicas, como a Química, a Física e aMatemática, ao mesmo tempo em que se mantinha as escolas tradicionais, como a Medicina, Politécnica, Direito etc.Além disso, a possibilidade de os docentes se dedicarem integralmente à Universidade levaria à obrigatoriedade de serealizar pesquisas ao lado da formação de pessoal para as ciências. A pesquisa, entretanto, exige cada vez maisverbas para acontecer plenamente, notadamente nos últimos dois séculos. O financiamento dessa atividade pode ficara cargo do Estado ou da iniciativa privada. No Brasil mesmo hoje - diferente de outros países, como os EstadosUnidos ou muitos países da Europa - é o Estado que financia primordialmente o trabalho de pesquisa. Assim, emmeados do século XX, mais exatamente em 1951, é criada a primeira agência de fomento no Brasil, o CNPq, comverbas destinadas à formação de grupos de pesquisa. Ainda que a atenção dada à Física com a aquisição deequipamentos de alto custo seja muito enfatizada em estudos sobre a institucionalização das ciências em nosso País,as ciências ligadas ao cuidado com o Homem e sua saúde receberam especial destaque. Uma década mais tarde, foia vez das agências estaduais de fomento à pesquisa começarem a sair do papel. Prevista pela constituição estadualde 1947, a Fapesp começa a funcionar em 1962, dois anos depois de sua criação, com verbas proporcionais àarrecadação estadual de impostos. Completavam-se, assim, as condições essenciais, ao menos em projetos, paraque a Ciência no Brasil se realizasse plenamente. A partir daqui cabia ao esforço do pessoal envolvido com o fazercientífico e muito de vontade política para que nosso país pudesse fazer parte da agenda mundial da Ciência.

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CC - De acordo com o seu ponto de vista, quais são as Ciências de maior destaque hoje, no Brasil? Odestaque de hoje se deve a fatores históricos?

Uma área da Ciência apenas se estabelece se foram propiciadas determinadas condições que não se geram pordecreto. Um intenso esforço é necessário para criar a tradição do "fazer científico" realmente produtivo. Depende daatenção dada em diferentes períodos às necessidades particulares da área. Muito esforço individual, mas tambémmuita vontade política refletida nos financiamentos concedidos.

Sem dúvida, as áreas da Ciência relacionadas à saúde se destacam nos noticiários. Por se tratar de algo que afligediretamente a população como um todo, há grande interesse do público quando se divulga a descoberta deprocedimentos para tratar doenças como o câncer, a AIDS ou a gripe suína. E também grande parcela dosfinanciamentos públicos é destinada à pesquisa nessas áreas, incentivando a produção científica. Outras questões, noentanto, levam ao desenvolvimento de trabalhos que já estão colocando o Brasil no centro do debate internacional dasciências. Lembremos o caso do Projeto Genoma, que incluiu o Brasil entre o grupo internacional organizado pararealizar sequenciamentos genéticos dos seres vivos. A participação brasileira foi tornada possível especialmenteatravés da Fapesp, a agência de fomento à pesquisa do Estado de São Paulo. Com isso a Ciência realizada no Brasilfoi destaque em capas de importantes periódicos internacionais. Outro exemplo do "fazer científico" brasileiro que estáchamando atenção de grupos internacionais é o caso dos estudos de biocombustíveis. O Brasil já havia chamado aatenção para produção e uso do álcool no lugar dos derivados de petróleo, especialmente a gasolina. Por conta dediversos problemas notadamente de ordem política, houve um descaminho na produção e venda do álcool paraveículos e o que deveria ser mais barato que a gasolina acabou por se mostrar menos compensador. Hoje, a situaçãomundial se mostra diferente e a busca de combustíveis alternativos é de fundamental importância. Além do álcool -obtido aqui principalmente a partir da cana-de-açúcar, mas que em outros países se processa a partir do milho, porexemplo - outros materiais têm servido para produzir biocombustíveis. No Brasil importantes grupos de pesquisa sededicam a essa questão com representantes nas instâncias governamentais. Com isso, se geram patentes e acordosentre grupos e governos internacionais. Internacionalmente, já se reconhece a potencialidade da produção científicaem nosso país e se busca uma aproximação cada vez maior. O Brasil precisa ficar atento, para valorizar e negociar deforma adequada "as joias" que está produzindo.

CC - Na sua opinião, e a partir de uma perspectiva dos desafios, o que significa fazer pesquisa no Brasil? Emque patamar nos encontramos hoje comparado com as grandes "potências da Ciência"?

Fazer pesquisa em qualquer parte do mundo significa primeiramente o esforço árduo de convencer as instituições deque o trabalho proposto vale à pena. Em seguida, sair em busca de financiamentos que podem ter diferentes origens.Pois, ainda que boa parte da pesquisa no Brasil aconteça junto às universidades oficiais, o orçamento dessasinstituições praticamente não contempla verbas para essa atividade. É uma situação completamente diferente dosEstados Unidos, país em que grande parte das universidades é de iniciativa privada de onde provêm também osfinanciamentos. No Brasil, pouco do financiamento para a pesquisa vem da iniciativa privada, ainda que isso venha semodificando nas últimas décadas. Assim, grande parte da verba destinada à pesquisa tem origem notadamente nasagências de fomentos, como o CNPq e as FAPs [Fundações de Amparo à Pesquisa de âmbito estadual]. O volume deverbas em cada Estado depende de quando e como se organizaram as agências estaduais e disso dependem asconcessões. Se num Estado como São Paulo temos uma agência forte, também nos defrontamos com um númeromaior de pedidos devido à concentração proporcional dos pesquisadores em nosso Estado. De qualquer forma, issoleva a uma seleção mais rigorosa e com resultados também mais significativos. Em alguns casos, os grupos têm decriar as condições materiais iniciais para seu trabalho, o que demanda um esforço ainda maior. Não podemos nosesquecer que o Brasil é muito novo em termos das instituições em Ciência. Ou seja, há muito pouco tempo secompletaram as condições fundamentais para o "fazer científico" integral: formação de pessoal especializado,realização de pesquisa, publicação de seus resultados em periódicos de alcance internacional editados mesmo noBrasil e, ainda, a aplicação do conhecimento.

Assim como o Projeto Genoma, outros trabalhos científicos têm, da mesma forma, contribuído para chamar atençãopara o valor da pesquisa aqui realizada. Mas temos ainda um longo caminho a percorrer que depende não só deesforços individuais e de grupos de pesquisa, como também da vontade política científica. Precisamos de uma políticacientífica que tenha como entender que as modificações institucionais não se dão de um dia para o outro e nemmesmo no espaço temporal de um período de governo.

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