clarissa josgrilberg pereira * suelen de aguiar silva · ao incluirmos a teoria apresentada por...

15
INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 5, Edição número 23, Março/Setembro 2016 - p 1 DISCURSO MÍDIATICO E TECNOESPETÁCULO: APROXIMAÇÕES E DESLOCAMENTOS EM FOUCAULT E KELLNER Clarissa Josgrilberg Pereira * Suelen de Aguiar Silva ** RESUMO: O artigo discute no contexto da cultura da mídia a apropriação do discurso que o entretenimento faz da fé cristã e a repercussão disso no imaginário social. O objetivo consiste em verificar como a cultura da mídia se apropria do humor para retratar o discurso da fé cristã, enquanto produto midiático, e como isso se reverbera em espetacularização. Os procedimentos metodológicos partem da pesquisa bibliográfica, especialmente a pautada em Michel Foucault (1996) e Douglas Kellner (2001-2006), e da análise empírica de duas animações do Pastor Metralhadora disponíveis no site do Mundo Canibal. Conclui-se que esse site se apropria dos discursos do cotidiano para fazer humor, tendo relevância ou não para a sociedade. Os idealizadores do produto não se importam como o tipo de humor que fazem pode influir no imaginário dos sujeitos, no que tange à fé. Transformam, assim, qualquer aspecto do cotidiano em tecnoespetáculo. ABSTRACT: The article discusses the media culture context of ownership that the entertainment is of christian faith and the repercussion in the social imaginary. The aim is to verify how the media culture appropriates humor to portray the Christian faith, while media product, and how it reverberates spectacle. The methodological procedures depart from the literature, especially guided by Foucault (1996) and Kellner (2001-2006), and empirical analysis of two machine gun Pastor animations available in World Cannibal site. It concludes that this site uses any everyday topic to humor, or not having relevance to society. The creators of the product do not care how the kind of humor that make can influence the imagination of the subject, with regard to faith. Turn, so any aspect of everyday life in technospectacle. PALAVRAS CHAVE: Tecnoespetáculo. Mídia. Discurso. KEY WORDS: Technospectacles. Media. Discourse. INTRODUÇÃO Há quem defenda que mulher, futebol e religião não se discute, mas no cotidiano não é isso que vemos. Questões do feminino como moda e corpo são assuntos que sempre estiveram em alta. E o futebol? É a menina dos olhos do Brasil, tão amado e odiado, em meio a vitórias e derrotas. Agora, se falar sobre religião é cutucar onça com vara curta, pensa discutir o discurso e imaginário social sobre a fé cristã e sobre Jesus Cristo? O artigo primeiro da lei nº 9.459 (BRASIL, 1997) prevê como crime a discriminação e o preconceito religioso, mas parece que a mídia, produtora de entretenimento, é avessa a algumas leis. Podemos pensar que a cultura da mídia por meio de seus espetáculos surge como um princípio organizativo da vida cotidiana, ela influi em todas as esferas da vida do indivíduo, afinal, vivemos um momento em que a mídia é onipresente. Nada mais justo então, do que estudar essas novas ou não tão novas formas de espetáculo. Afinal,

Upload: lykhue

Post on 13-Dec-2018

212 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 5, Edição número 23, Março/Setembro 2016 - p

1

DISCURSO MÍDIATICO E TECNOESPETÁCULO: APROXIMAÇÕES E

DESLOCAMENTOS EM FOUCAULT E KELLNER

Clarissa Josgrilberg Pereira *

Suelen de Aguiar Silva **

RESUMO: O artigo discute no contexto da cultura da mídia a apropriação do discurso que o

entretenimento faz da fé cristã e a repercussão disso no imaginário social. O objetivo consiste em

verificar como a cultura da mídia se apropria do humor para retratar o discurso da fé cristã, enquanto

produto midiático, e como isso se reverbera em espetacularização. Os procedimentos metodológicos

partem da pesquisa bibliográfica, especialmente a pautada em Michel Foucault (1996) e Douglas

Kellner (2001-2006), e da análise empírica de duas animações do Pastor Metralhadora disponíveis no

site do Mundo Canibal. Conclui-se que esse site se apropria dos discursos do cotidiano para fazer

humor, tendo relevância ou não para a sociedade. Os idealizadores do produto não se importam como o

tipo de humor que fazem pode influir no imaginário dos sujeitos, no que tange à fé. Transformam, assim,

qualquer aspecto do cotidiano em tecnoespetáculo.

ABSTRACT: The article discusses the media culture context of ownership that the entertainment is of

christian faith and the repercussion in the social imaginary. The aim is to verify how the media culture

appropriates humor to portray the Christian faith, while media product, and how it reverberates

spectacle. The methodological procedures depart from the literature, especially guided by Foucault

(1996) and Kellner (2001-2006), and empirical analysis of two machine gun Pastor animations available

in World Cannibal site. It concludes that this site uses any everyday topic to humor, or not having

relevance to society. The creators of the product do not care how the kind of humor that make can

influence the imagination of the subject, with regard to faith. Turn, so any aspect of everyday life in

technospectacle.

PALAVRAS CHAVE: Tecnoespetáculo. Mídia. Discurso.

KEY WORDS: Technospectacles. Media. Discourse.

INTRODUÇÃO

Há quem defenda que mulher, futebol e religião não se discute, mas no cotidiano não é

isso que vemos. Questões do feminino como moda e corpo são assuntos que sempre

estiveram em alta. E o futebol? É a menina dos olhos do Brasil, tão amado e odiado, em

meio a vitórias e derrotas. Agora, se falar sobre religião é cutucar onça com vara curta,

pensa discutir o discurso e imaginário social sobre a fé cristã e sobre Jesus Cristo? O

artigo primeiro da lei nº 9.459 (BRASIL, 1997) prevê como crime a discriminação e o

preconceito religioso, mas parece que a mídia, produtora de entretenimento, é avessa a

algumas leis.

Podemos pensar que a cultura da mídia por meio de seus espetáculos surge como um

princípio organizativo da vida cotidiana, ela influi em todas as esferas da vida do

indivíduo, afinal, vivemos um momento em que a mídia é onipresente. Nada mais justo

então, do que estudar essas novas ou não tão novas formas de espetáculo. Afinal,

INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 5, Edição número 23, Março/Setembro 2016 - p

2

A cultura da mídia é industrial; organiza-se com base no modelo de produção

de massa e é produzida para a massa de acordo com tipos (gêneros), segundo

fórmulas, códigos e normas convencionais. É, portanto, uma forma de cultura

comercial, e seus produtos são mercadorias que tentam atrair o lucro privado

produzido por empregas gigantescas que estão interessadas na acumulação de

capital. A cultura da mídia almeja grande audiência; por isso, deve ser eco de

assuntos e preocupações atuais [...] (KELLNER, 2001, p.9).

Ou ainda, podemos pensar que ela é apenas um discurso, nem melhor, nem pior, nem

superpoderosa e nem inferiorizada. Apenas um discurso. Para Michel Foucault (1996,

p.9) a produção do discurso em toda sociedade é “ao mesmo tempo controlada,

selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por

função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório [...]”.

É preciso deixar claro que não produzimos esta discussão a partir de uma incoerência

teórica. Foucault (1996) e Kellner (2001-2006) são autores muito diferentes, mas

quando se fala em comunicação, quando se pensa no discurso da mídia, há uma

tentativa de pensar as novas perspectivas de poder envolvidas nesse campo. E, portanto,

nesta discussão ambos os autores se fazem necessários.

A metodologia utilizada para o desenvolvimento do trabalho partiu de referências

bibliográficas, bem como análise empírica no site do Mundo Canibal. Analisamos duas

animações do Pastor Metralhadora, levando em consideração os comentários dos

internautas na própria página das animações. Não tivemos a pretensão de quantificar os

comentários, mas sim de buscar uma compreensão, mesmo que de forma geral, sobre o

imaginário dos frequentadores do site em relação as animações que têm como mote a

humanização de Jesus Cristo.

Nesse sentido, buscamos verificar como a mídia se apropria do humor para retratar a fé

cristã e como isso pode se reverberar em espetacularização. Portanto, a pergunta que

move o presente estudo é em que medida o discurso da mídia quando se apropria do

discurso humorístico para tratar de determinados temas do cotidiano, especialmente a fé

cristã, pode reverberar em espetacularização?

Douglas Kellner (2001, 2006), Zygmunt Bauman (1998), Roger Silverstone (2002),

Michel Foucault (1996) dentre outros, fornecem o arcabouço teórico para tratarmos das

correlações e complexidades entre discurso, cultura, consumo e mídia. É o que

pretendemos com o texto que segue. Para tanto, a primeira ação é pensar sobre o

discurso.

1. O DISCURSO EM FOUCAULT

De acordo com Foucault (1996, p.9), a produção do discurso em toda sociedade é “ao

mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de

procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu

acontecimento aleatório [...]”. E um desses procedimentos, podemos dizer, é a exclusão

e aquele dito o mais familiar, é a interdição. De acordo com a análise foucaultiana, a

INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 5, Edição número 23, Março/Setembro 2016 - p

3

sexualidade e a política são os principais dispositivos, que a sua vez são interditos,

devido suas características intrínsecas ao poder, pois são lugares privilegiados do

exercício de poder. O discurso, alerta Foucault (1996, p. 10), não é simplesmente aquilo

que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo pelo o que se luta, o poder

do qual quer-se apoderar.

No entanto, outro procedimento de exclusão diz respeito a separação e a rejeição. Em

Foucault (1996, p.10) relação entre razão e loucura, por exemplo. Desde a idade média

o discurso do louco era aquele que não podia circular como o dos outros. Sendo sua

verdade nula, sem valor, sem importância. Era por meio de suas palavras, segundo

Foucault, que se conhecia a loucura “do louco”. Hoje, o louco já não está mais do outro

lado, sendo necessária a escuta, a espreita, mesmo assim, os procedimentos de

separação ainda funcionam, mesmo que de uma forma mais refinada.

Quando Foucault escreve sobre a “História da Loucura”, ele não está pensando

exatamente a loucura, mas sim no modelo de “despsiquiatrização” na década de 1960.

Percebe-se, no entanto, o discurso da psiquiatria. Não são mais necessários

determinados procedimentos de interdição, como o choque elétrico, por exemplo. As

práticas institucionalizadas avançaram, e o louco, à primeira vista, liberado. No entanto,

pensando com Foucault será que não aprisionamos o louco a outro tipo de discurso? É

uma questão a ser debatida na contemporaneidade, no entanto, os discursos de liberação

estão impregnados de relações de poder.

O pensamento foucaultiano não busca uma linearidade histórica no que diz respeito a

causas e efeitos das práticas sociais, entretanto, busca as rupturas, as descontinuidades.

Nesse sentido, os discursos dos saberes não deveriam ser analisados a partir de outros

saberes já institucionalizados, como no caso citado. Contudo, não cabe em nossa

exposição adentrar sobre a “História da Loucura” aventada por Foucault, mas o

exemplo é importante porque permite a partir dessas práticas entender como o discurso

é colocado em questão e como se alimenta o saber dessas práticas discursivas.

Uma terceira exclusão de que fala Foucault (1996, p.17) diz respeito a uma vontade de

verdade e é apoiada institucionalmente. Ora, seu sistema de pensamento rejeita uma

verdade, única, universal. No entanto, parte da ideia de como essa vontade de verdade é

reconduzida pelo modo como o saber é aplicado em uma sociedade. Dos três sistemas

de exclusão mencionados, o terceiro, a vontade de verdade, foi mais debatido pelo

autor. A despeito do discurso relacionado à vontade de verdade temos a seguinte

assertiva:

O discurso nada mais é do que a reverberação de uma verdade nascendo

diante de seus próprios olhos; e, quando tudo pode, enfim, tomar a forma do

discurso, quando tudo pode ser dito e o discurso pode ser dito a propósito de

tudo, isso se dá porque todas as coisas, tendo manifestado e intercambiado

seu sentido, podem voltar à interioridade silenciosa da consciência de si

(FOUCAULT, 1996, p.40).

INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 5, Edição número 23, Março/Setembro 2016 - p

4

Segundo o autor, interdições, supressões, fronteiras e limites podem servir à

proliferação de discursos, e que, existe um grande temor relacionado a não se possuir

um discurso determinado sobre algo. Mas, deixa pistas para o enfrentamento desse

temor quando sugere que ele seja analisado em suas condições de possibilidades, seus

jogos e seus efeitos. Mas para que tal arranjo seja exequível, aponta ainda, o

questionamento sobre a vontade de verdade, a restituição do discurso ao caráter de

acontecimento, e em última instância, suspender a soberania do significante

(FOUCAULT, 1996, p.50-51).

2. DESLOCAMENTOS E APROXIMAÇÕES

Uma forma de contextualizar o discurso em Foucault (1996), nos estudos na área da

comunicação, especialmente na cultura da mídia e seus produtos é entendê-lo, como um

discurso como outro qualquer. Outrossim, busca-se as condições de possiblidades para o

surgimento e reverberações de determinado discurso, neste texto, especificamente, o

midiático.

Colocar em dispersão os discursos que são produzidos e representados midiaticamente,

é uma forma de situar o discurso midiático como um, entre muitos outros discursos de

nossa sociedade. No entanto, longe de desqualificar o discurso midiático, e seu peso nas

mediações socioculturais, como afirma Martín-Barbero (2008), o importante é entendê-

lo a partir de suas especificidades e suas relações de poder e saber, assim como, o

discurso político, por exemplo.

Ao incluirmos a teoria apresentada por Douglas Kellner (2001-2006) sobre a cultura da

mídia, às representações discursivas midiáticas, pensada a partir de uma leitura

foucaultiana do discurso, pode parecer contraditório, no entanto, não é. Primeiro porque

entendemos assim como Kellner que a questão da ideologia na contemporaneidade não

deve ser pensada somente em sua relação de opressor e oprimido. Ao apontar os estudos

de Marx e Engels sobre ideologia, Kellner (2001, p.77) propõe uma análise que busca o

entendimento da ideologia para além das noções de classe social ao incluir outros

produtos e outros textos em sua análise. Ainda, segundo Kellner (2001, p.81) “a

ideologia participa da reprodução e do funcionamento precisamente das instituições, dos

discursos e das práticas que Foucault e outros querem analisar”. Em outras palavras,

para o autor, ao invés de descartar o conceito de ideologia, é necessário reconstruí-lo e

expandir a crítica da ideologia que traça suas funções e efeitos na vida social.

Segundo, apesar de Foucault rejeitar em seu sistema de pensamento a questão da

ideologia, uma discussão de fundo, por um lado, são as relações de poder e saber no

jogo discursivo, e por outro, o entendimento de que não existe uma verdade, como já

apontamos, mas verdades, que sejam ao mesmo tempo provisórias e que produzam

positivamente subjetividades. Segundo Foucault (1996, p.52-53) “os discursos devem

ser tratados como práticas descontinuas, que se cruzam por vezes, mas também se

ignoram e se excluem”.

INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 5, Edição número 23, Março/Setembro 2016 - p

5

3. DISCURSO MIDIÁTICO

Como já sabemos pensar o discurso por meio de Foucault é pensá-lo como um discurso

qualquer, que não carrega “carga ideológica” porque ele rejeita esse conceito. Mas é

entender o discurso midiático como prática social que possuiu verdades que não podem

ser consideradas universais, mas ante a isso, colocar em perspectiva, aquilo que não é

dito no discurso.

Autor, comentário e disciplina são três elementos importantes a serem levados em

consideração na análise de textos, pois, para Foucault, são procedimentos de exclusão

que estão intrínsecos aos discursos. Sobre o autor, Foucault afirma:

seria absurdo negar, é claro, a existência do indivíduo que escreve e inventa.

Mas penso que – ao menos desde certa época - o indivíduo que se põe a

escrever um texto no horizonte do qual paira uma obra possível retoma por

sua conta a função do autor: aquilo que ele escreve e o que não escreve [...]

Todo este jogo de diferenças é prescrito pela função do autor, tal como ele,

por sua vez, a modifica (FOUCAULT, 1970, p.28-29).

Já o comentário “procura dizer enfim o que estava articulado no texto primeiro; ele

busca um significado não dito por detrás daquilo que é dito” (CANDIOTTO, 2010,

p.53). Enquanto que a “disciplina não é a soma de tudo o que pode ser dito de

verdadeiro a respeito de alguma coisa; tampouco é o conjunto de tudo o que pode ser

aceito, a propósito de um mesmo dado, em virtude de um princípio de coerência ou de

sistematicidade” (FOUCAULT, 1996, p. 32-33).

Assim sendo, os elementos autor, comentário e disciplina mostram princípios de

exclusão na busca pela verdade que atravessa séculos. Dessa forma, “por mais que o

discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam

logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder” (FOUCAULT, 1996, p.1).

Assim sendo, acreditamos que a cultura da mídia é uma das formas de manifestar esse

poder.

A cultura da mídia, assim como os discursos políticos, ajuda a estabelecer a hegemonia

de determinados grupos e projetos políticos. Produz representações que tentam induzir

anuência a certas posições políticas, levando os membros da sociedade a ver em certas

ideologias “os modos como as coisas o são”.

Para Douglas Kellner (2006), nas últimas décadas, os meios de comunicação têm

possibilitado a multiplicação de espetáculos por meio de novos espaços e sites, e o

próprio espetáculo está se tornando um dos princípios organizacionais da economia, da

política, da sociedade e da vida cotidiana. Kellner (2006, p.04) afirma que “a economia

baseada na internet permite que o espetáculo seja um meio de divulgação, reprodução,

circulação e venda de mercadorias”. Ao mesmo tempo em que um sem número de sites

de informação e entretenimento surge na internet, intensifica-se a formaespetáculo da

cultura da mídia.

INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 5, Edição número 23, Março/Setembro 2016 - p

6

A cultura veiculada pela mídia fornece material que contribui para que os sujeitos

construam suas identidades, noções de classe, de etnia, de sexualidade, de fé. Corrobora

para modelar visões de mundo e seus valores, ajudando a definir aquilo que é bom ou

mau, o que é positivo ou negativo. As narrativas midiáticas fornecem símbolos, mitos,

estereótipos que ajudam a construir uma cultura comum, de certa forma, rasa,

superficial, para que possa atender a maioria dos sujeitos. De acordo com Kellner,

(2001, p.9) é por meio da cultura atravessada pela mídia que esses sujeitos se inserem

nas sociedades tecnocapitalistas, produzindo uma nova forma de cultura global.

Na sociedade dita pós-moderna, a cultura da mídia (KELLNER, 2006, p.5) não aborda

apenas os grandes momentos da experiência contemporânea, mas também oferece

material para fantasia e sonho, modelando pensamentos, construindo e reconstruindo até

identidades. Como aponta Bauman (1998), na modernidade as identidades eram

projetadas para serem rígidas, com o projeto de construção de uma identidade nacional

ligada ao Estado a fim de diminuir as diferenças existentes na sociedade. Agora, essas

mesmas identidades precisam ser fluídas e frouxas até a segunda ordem, pois seguem a

lógica do mercado, visto que há o esfacelamento do Estado. Aquele que era o regulador

da ordem, da vida cotidiana e que ditava as normas, por meio do estado de bem estar

social. Agora prima-se pela desregulamentação, pois existe uma outra ética, a do

mercado.

Passamos da sociedade dos produtores para a sociedade dos consumidores, e ,segundo o

estudioso polonês, se antes a primazia era em busca da segurança, hoje a primazia é em

busca da liberdade em detrimento da segurança. Já não existe uma estabilidade, pois

cresce a busca por novas experiências e sensações. Se antes a liberdade era concedida

pelo Estado, que legislava a ordem; hoje, o Estado legisla para o bom funcionamento do

mercado e a liberdade é adquirida junto com um quinhão de incertezas. Já não se pode

mais contar com o estado de bem estar social. Cada um é responsável por suas escolhas.

Por isso a identidade dos sujeitos tende a ser flexível, apenas uma identidade não dá,

temos que ser várias coisas ao mesmo tempo.

Essa é a identidade que se ajusta ao mundo em que a arte de esquecer é um bem mais

importante que arte de lembrar, uma identidade de palimpsesto, diz Bauman (1998,

p.36). Nenhum emprego é garantido, nenhuma posição é inteiramente segura, nenhuma

perícia é de utilidade duradoura. Para Bauman (1998, p.32), “o mundo pós-moderno

está se preparando para a vida sob uma condição de incerteza que é permanente e

irredutível”.

Se a modernidade se esforçou para desconstruir a morte, em nossa época pós-moderna é

a vez da imortalidade ser descontruída, as palavras de Bauman (1998, p.203) são

emblemáticas e sintetizam em partes, o problema que trazemos aqui para a discussão.

Durante séculos prevalecia a ideia da existência de Deus, Ser soberano e que era a

medida de todas as coisas. Porém, a ideia da razão humana com todas as vicissitudes e

prejuízos, trazida pelo iluminismo do século XVIII, aponta que o homem deveria ser o

INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 5, Edição número 23, Março/Setembro 2016 - p

7

centro de todas as coisas e passar a buscar suas respostas por meio do conhecimento

científico, que até então eram calcadas na fé.

No penúltimo capítulo em, “O Mal-Estar da Pós-Modernidade”, Bauman (1998, p.205)

discute a religião pós-moderna. Já mencionamos que nosso interesse não recai sobre as

religiões, mas esse capítulo torna-se importante para situar a questão que se coloca à

prova pelos produtos midiáticos analisados. Deus e sua onipotência enquanto Ser

irrefutável cedendo lugar para a autossuficiência humana na pós-modernidade. A

religião, diz o autor (1998, p.205), “pertence a uma família de curiosos e às vezes

embaraçados conceitos que a gente compreende perfeitamente até querer defini-los”. O

espírito pós-moderno, reitera ele, concorda em suprir essa família, maltratada ou

condenada à deportação pela razão científica.

A ideia da auto-suficiência humana minou o domínio da religião

institucionalizada não prometendo um caminho alternativo para vida eterna,

mas chamando a atenção humana para longe desse ponto; concentrando-se,

em vez disso, em tarefas que os seres humanos podem executar e cujas

consequências eles podem experimentar enquanto ainda são “seres que

experimentam” – e isso significa aqui, nesta vida (BAUMAN, 1998, p.205).

Apoiamo-nos na afirmação acima e acrescentamos o papel desempenhado pela indústria

cultural, principalmente a do entretenimento, por meio da produção e disseminação de

suas mercadorias, hoje simbólicas. Por meio da cultura da mídia, as mercadorias

fornecem o ideal identitário, a experimentação de novas sensações e reforçam o caráter

unívoco e onipotente da mídia. Bauman (1998, p.217) afirma que a modernidade desfez

o que o longo domínio do cristianismo tinha feito repelindo a obsessão com a vida após

a morte, daí concentrando a atenção na vida “aqui e agora” e é exatamente isso que faz a

cultura da mídia por meio de seus produtos.

A preocupação cotidiana dos sujeitos recai na vida terrena, na consumação de bens não

só materiais, mas principalmente simbólicos. Hoje, mais importante que ter é aparecer.

Numa sucessão de espetáculos a vida cotidiana se conforma, vida pública, vida privada,

trabalho, diversão, imaginário, a fé no transcendental.

Tudo pode ser transformado em espetáculo, mas por outro lado, nem tudo pode ser

medido, nem os efeitos, nem as benesses e nem os prejuízos alavancados por imagens

sobrepostas por outras imagens, daí a complexidade. Então, por que estudar produtos

midiáticos? Para Silverstone (2002) é necessário compreender a mídia por meio da sua

dimensão cultural, social, política e econômica. Já em Kellner (2001) é importante

conhecer os efeitos da cultura da mídia, bem como para produzir leitura crítica sobre

ela.

Kellner (2001) pesquisa e analisa os meios de comunicação numa perspectiva

multidimensional, produzindo e pensando produção e economia política, análise textual

e estudos de recepção. Dessa maneira, ele considera que existem várias formas de

perceber os produtos midiáticos. Kellner (2001) aplica a sua abordagem na prática e

demonstra como podemos delinear nosso objeto, seja um estudo de caso ou determinado

INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 5, Edição número 23, Março/Setembro 2016 - p

8

tipo de produto midiático. Nesse ponto, segundo ele, o seu pensamento se difere do

autor da sociedade do espetáculo, pois traz exemplos práticos sobre essas

materialidades. Citamos aqui o fenômeno Madonna, estudado por ele (2001, p.335-

375). Mais do que se perguntar o que é Madonna e o que ela representa é perguntar

como ela é veiculada e de que forma ela potencializa lutas políticas sobre as mulheres,

por exemplo. Tais produtos midiáticos na visão de autor são interpretados na sua

produção, na sua textualidade, mas também como eles são vinculados pela mídia.

O espetáculo é ambíguo, contraditório e sujeito a reviravoltas. Empresas, celebridades e

o próprio Estado não têm certeza alguma se serão beneficiados ou vítimas dele

(KELLNER, 2006, p.143). O tecnoespetáculo no ciberespaço segue a mesma lógica.

Novos modelos de organização social e espaço-temporal, bem como de política, cultura,

vida cotidiana surgem na rede, assim como novos tipos de contestação (KELLNER,

2006, p.144). Em escala planetária vivemos num ambiente dominado pelas mídias,

especialmente, pelas mídias online, numa sociedade de infoentretenimento cada vez

mais expansiva, “uma economia interligada em rede e uma nova tecnocultura da

Internet” como aponta Kellner (2006, p.144).

Consumimos a mídia e ela nos consome. Consumimos o tecnoespetáculo e ele nos

consome. Para o teórico inglês Roger Silverstone o consumo é uma forma de mediação,

à medida que os valores e significados dados a objetos e serviços são traduzidos e

transformados nas linguagens do cotidiano do individual ao coletivo. Consumimos

objetos, bens, informação, consumimos o valor simbólico que atribuíamos às coisas.

Nas palavras de Silverstone (2002, p.150), “nesse consumo, em sua trivialidade

cotidiana, consumimos nossos próprios significados, negociamos nossos valores e ao

fazê-lo, tornamos nosso mundo significativo”.

No entanto, o cerne da análise tanto da espetacularização como da cultura da mídia, é o

surgimento e a consolidação de uma nova cultura do espetáculo. O tecnoespetáculo, em

escala global, cujas implicações no plano cultural e comunicacional são evidentes. A

partir dessas considerações e das exposições anteriormente feitas, discutimos a seguir

como elas se configuram num produto midiático digital.

4. MUNDO CANIBAL: TECNOESPETÁCULO OU ENTRETENIMENTO? OU

OS DOIS?

Antes de iniciarmos a contextualização sobre os produtos fruto da nossa reflexão, faz-se

necessário reforçar que esse recorte visa a demonstrar como a mídia retrata a fé cristã,

pelas vias do humor e do entretenimento, independente de denominações religiosas.

Mundo Canibal1 é um portal brasileiro de animações e vídeos próprios, criado em 1998

pelos Irmãos Piologo e Rogério Vilela, diretor da Fábrica de Quadrinhos.

Os próprios idealizadores afirmam na sessão institucional do site,

“O Mundo Canibal é ruim...mas é „bão‟!”. Fazem um tipo de humor caricato, por vezes,

grosseiro. Se apropriam de qualquer produto, tais como personagens clássicos de filmes,

INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 5, Edição número 23, Março/Setembro 2016 - p

9

jogos infantis etc e acrescentam o estilo próprio da equipe, chamando suas próprias

produções de porcaria. Muitas de suas produções se tornaram febre entre os internautas,

como a clássica Avaiana de Pau, que segundo o próprio site já ultrapassou a marca de

16 milhões de exibições. Além desta, possui vídeos da chamada série ParTOBA, e

outros personagens como Bonequicha, Donizete, Carlinhos, Tomelirolla e Pastor

Metralhadora, este último, objeto de nossa análise.

O portal é amplo e divido por várias seções, tais como animações, vídeos, stand up,

horroróscopo, Compra Canibal etc, todo o material disponibilizado segue a linha

humorística caricata do Mundo Canibal. Além das produções, o portal mantém uma loja

virtual que fornece produtos derivados de suas produções, como cadernos, estojos,

chicletes, camisas, bonés e outros objetos que já viraram produtos de licenciamento.

As animações que analisamos tem como personagem principal o Pastor Metralhadora.

De forma geral, ele é representado por um homem de cor negra, cujas mãos simulam o

poder. Em uma delas está a bíblia e a outra mão representa simbolicamente uma

metralhadora. Quando encontra-se em situações adversas, o Pastor Metralhadora faz uso

dessas armas. Dependendo do nível e intensidade das batalhas, digamos assim, ele

solicita do céu, armas mais potentes, como o Meteoro de Chessus, e quando este não

resolve, solicita o Titanic de Noé. Nota-se que apesar do Pastor Metralhadora ser o

personagem principal das animações ele depende e se reporta sempre a Chessus, seu

superior.

Entre as animações do Pastor Metralhadora estão: “Crente Crush”, “Vídeo game coisa

do capeta”, “Salvando o aí! Pára!”, “Milagre da purificação”, “Milagre da cegueira”, “O

fim do mundo”, além das curtinhas do Pastor Metralhadora, tais como: “Assalto”,

“Festa junina”, “Olimpíadas” etc. Os personagens que compõe as animações, de alguma

forma, coadunam com o que a sociedade chama de diferente. Fazemos uma analogia

com o refugo de Bauman (1998), quando fala dos consumidores falhos. Entre eles, estão

o gay, o viciado em sexo, o assaltante, o drogado, entre outros.

No entanto, para a análise mais atenta selecionamos duas animações2, mais

especificamente aquelas que retratam ou representam Jesus Cristo. São elas: “O fim do

mundo” e “Mundo Canibal Apocalipse - o pior jogo do mundo”, esta última é a abertura

de um game desenvolvido também pelo Mundo Canibal, falaremos dele mais adiante.

ATENÇÃO//ATENÇÃO//ATENÇÃO. O vídeo a seguir NÃO DEVE SER

VISTO POR NINGUÉM. Todos os personagens e eventos (mesmo aqueles

baseados em pessoas reais) são inteiramente fictícios. Gostaríamos de

ressaltar que somos TOTALMENTE contra qualquer tipo de preconceito,

prática de violência, e que também não fazemos NENHUMA apologia a

comportamentos que agridam a moral, os costumes e os seres viventes de

todas as espécies !!! (MUNDO CANIBAL, online, s/d).

É desta forma que se inicia as animações do Mundo Canibal. Eles fazem questão de

afirmar que o vídeo não deve ser visto por ninguém, ao mesmo tempo em que enfatizam

não fazer apologia a comportamentos que não condizem com a moral e com os

costumes da vida cotidiana.

INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 5, Edição número 23, Março/Setembro 2016 - p

10

4.1 O FIM DO MUNDO

Na iminência do fim do mundo, Pastor Metralhadora “pede” para que todos livrem-se

dos seus bens. Ele garante que ninguém levará nada para o céu e afirma, “Chessus disse

que isso é pecado”. O Pastor Metralhadora olha em seu relógio, de ouro reluzente, e faz

a contagem regressiva na frente de uma multidão. Ao final de cinco segundos, olha par

ao céu e faz um sinal de ok. Lá de cima, recebe o retorno. Lado a lado, o mal e o bem.

Em seguida, o Pastor Metralhadora se revolta quando um oriental reclama pelos seus

bens e o da multidão. A animação é encerrada com a seguinte frase: “Enquanto existir

trouxa nesse mundo a religião sempre vencerá. Livro de Meteus. Capíntulo 21-12-2012

– Testículo De Bois” (vídeo online, s/d).

Figura 1 – Imagens do episódio “O Fim do Mundo”

Fonte: (Mundo Canibal, online, [s/d]).

Quando o Pastor Metralhadora dá o sinal de ok e olha para o céu é para avisar aos seus

superiores que todos os bens (dinheiro, carro, ouro etc) já estão em sua posse, ou seja,

tudo o que tenha valor, financeira e simbolicamente, já que Diabo e Chessus estão lado

a lado. Eles não são trouxas, são sociedade alternativa, assim finaliza o Pastor

Metralhadora.

Contabilizamos 30 comentários3 sobre “O Fim do Mundo” na própria página de

exibição do vídeo. Contudo, não tivemos a pretensão de quantificar ou mesmo

qualificar tais comentários, mas nosso interesse recaiu sobre a questão da fé cristã e

como ela se configura no imaginário social. Dos 30 comentários exibidos na página, 16

parecem apoiar os vídeos do Pastor Metralhadora, afirmando que eles reproduzem a

realidade, fazendo uma crítica às igrejas evangélicas em suas configurações atuais,

marcadas por escândalos, pastores corruptos e enganação aos fiéis etc. O comentário de

número três, identificado pelo internauta, Rafael Gomes Pereira, diz o seguinte “Olá,

aqui quem fala é Jesus, vocês que acreditam em qualquer coisa semelhante a Deus são

todos otários, a grana de vocês está aqui comigo, vou gastar tudo com putas e joias.

Continuem pagando seus dízimos, obrigado”.

INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 5, Edição número 23, Março/Setembro 2016 - p

11

Os outros 16 demonstram que os internautas não gostaram das críticas feitas à religião,

e principalmente, ao nome de Deus e de Jesus. Esses, criticam a postura do Mundo

Canibal no desenvolvimento de animações que brincam com a fé cristã. O comentário

número 10, de um dos internautas, identificado por Beto, diz o seguinte: “Sei que o

propósito de vocês é o humor, mas procurem não atingir a fé das pessoas com

insinuações maldosas, sei bem que tem pastores ruins, como padres também, mas a

grande maioria dos líderes espirituais são sérios e a fé é uma coisa real”.

4.2 MUNDO CANIBAL APOCALIPSE - O PIOR JOGO DO MUNDO

Quatro minutos e quarenta e cinco segundos de aberturado vídeo traz à tona o Mal Estar

da Pós-modernidade criticado por Bauman (1998). O que não presta para a sociedade

precisa ser eliminado. Aqui, pelo menos nessa vida, não há espaço para o refugo. A

sociedade do consumo precisa de consumidores ativos, voláteis, ansiosos e Chessus do

Mundo Canibal precisa de fiéis “arrombados” (vídeo online, s/d) dispostos a dar todos

os seus bens materiais e quando este ato de fé não é mais realizado, faz-se necessário

apelar para o Apocalipse. “Chessus, a casa caiu! Estamos na zona de rebaixamento do

instituti ofi populáriti”, diz o Pastor Metralhadora. Anime, funk, deputado polêmico,

web celebridades e outras porcarias faz mais sucesso que nós, reitera ele, afirmando que

o dinheiro está acabando.

Piririm piririm piririm alguém ligou para mim” toca o telefone de

Chessus. “Porcaria de funk, bla bla, blá....tá tá tá tá, entendi. Ai, o

Pastor se preocupa à toa. Deixa eu voltar para o meu jogo aqui. O

quê? Não! Não! Não!!! Peraí, o dinheiro? Sem dinheiro? Sem

dinheiro, a empresa fecha” (vídeo online, s/d). Em seguida, pega um

manual, simbolizando a Bíblia e procura pela solução do problema.

Chessus diz, “tá na hora de jogar o Apocalipse, na hora que eu zerar

esse jogo tudo voltará a ser como era antes. Vou acabar com essa

putaria (vídeo online, s/d).

Chessus chama então, o Pastor Metralhadora, nomeado o primeiro faxineiro do

Apocalipse, e em seguida monta um time para “jogar” no Apocalipse. O objetivo do

jogo é faxinar e eliminar políticos, otakus4, funkeiros, marombeiros, gordos etc. O jogo

possui dezenas de fases diferentes, passando por locais como favela, eventos de anime,

palácio do planalto, com a finalidade de bater em todo mundo "em nome de Chessus".

A figura abaixo é parte da visualização do cenário. Ao fundo temos a imagem

humanizada de Jesus, o Chessus, que observará atento a ação dos faxineiros do

apocalipse, ao início do jogo.

Figura 2 – Imagem do jogo “Apocalipse”

INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 5, Edição número 23, Março/Setembro 2016 - p

12

Fonte: (Mundo Canibal, online, [s/d]).

Verificamos doze comentários sobre a abertura do jogo na página do vídeo, dos quais

10 versam sobre a qualidade ruim do jogo, sobre o conteúdo e falta de criatividade das

animações. Dois dos comentários estão relacionados à crítica ao Mundo Canibal em

relação à utilização do nome de Jesus. “Cara, por que vocês só falam de Jesus? Não

cansam de blasfemar? Sim, sou evangélico e vou receber um monte de ignorantes me

xingando lalala, mas isso tá cansando... todo mundo sabe que isso perdeu a graça. Faz

uma animação que preste na boa. Chega de falar de Jesus e pastor metralhadora”.

Comentário de número quatro, do internauta Nathanael.

Devido ao esgarçamento das relações humanas, ao consumismo desenfreado, a inversão

de valores, a descrença no ser humano e no próprio Deus, a cultura da mídia se

reinventa. A cultura da mídia e o tecnocapitalismo, como já falamos anteriormente, se

apropria de qualquer produto que seja vendável para adquirir lucro. A indústria do

entretenimento cresce a passos largos, Mundo Canibal é apenas mais um deles. O

avanço das tecnologias de comunicação e informação proporciona acesso rápido e

irrestrito a esses tipos de produtos, que são atravessados em nosso cotidiano. Não existe

respeito e tampouco parcimônia na elaboração de conteúdos que são produzidos e

veiculados pela indústria do entretenimento.

A crítica que se pretende com as animações do Pastor Metralhadora, extrapola o

esfacelamento e o desgaste já existente das religiões. Padres pedófilos, pastores

juntando dinheiro com “rodo”, autoridades religiosas utilizando o nome de Deus para

ganhar dinheiro, escândalos, corrupções etc, esse, talvez, fosse o mote das histórias

contadas nas animações. Contudo, a luz das teorias empreendidas aqui e por meio de

vários depoimentos no próprio site do Mundo Canibal, percebe-se que além da crítica à

religião cristã, existe um escárnio com o nome de Jesus Cristo e a sua própria

humanização. O que passa pela indústria cultural, acaba virando produto e a cultura da

mídia se apropria e faz os seus tecnoespetáculos. Afinal, tecnoespetáculo,

entretenimento, ou os dois?

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mais do que apresentar dados o artigo buscou uma reflexão sobre o momento atual, em

que os produtos midiáticos estão imbricados em nosso cotidiano. O entretenimento

como vimos, passou a exercer papel importante na vida dos sujeitos. Hoje, o

INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 5, Edição número 23, Março/Setembro 2016 - p

13

entretenimento já não é mais visto como, banalização da cultura, proveniente de uma

cultura dita inferior ou somente diversão para as massas. Todas as produções são

válidas desde a alta cultura às culturas populares, justamente porque não cabe falar de

uma cultura única, tampouco, pura. Nas palavras de Canclini (2009, p.41), “a cultura

abarca o conjunto de processos sociais de produção, circulação e consumo da

significação na vida social”. Todavia, o que se torna premente é o que fazemos a partir

da leitura que temos da cultura da mídia, de seus produtos, desse atravessamento em

nosso cotidiano.

Logo no início da introdução comentamos apoiados no senso comum que mulher,

futebol e religião não se discutem. E fizemos também questão de frisar que no cotidiano

não é isso que vemos. Realmente, para além das discussões teóricas, filosóficas e do

senso comum, existe algo com mais vigor. É a experiência de vivenciar essas questões

aqui e agora, forjadas pela grande mediadora das relações sociais, a cultura da mídia.

Fazemos questão de relembrar, que Foucault (1996) jamais levaria em consideração tal

perspectiva, mas tentaria entender quem fala e porque fala, voltando a história. E, ainda,

buscaria entender o poder do discurso da mídia presente em seus Intercísticos e nas

exclusividades presentes em seu interior.

Assim sendo, acreditamos ser importante nos atentarmos para o papel que a mídia vem

desempenhando em todos os setores da vida cotidiana, rearranjando agendas, pautando

compromissos, já que o dia a dia acontece ao redor dela. Um assunto tão peculiar

quanto à fé cristã carece ser estudada no contexto da cultura da mídia, pois da mesma

forma que ela oferece aparatos para uma leitura enviesada, para o humor grosseiro e

para a alienação social, pode oferecer também mecanismos para uma leitura crítica da

sociedade.

Os exemplos trazidos com as animações do Mundo Canibal colaboram no sentido de

direcionarmos um olhar crítico para as produções deste tipo. Resta- nos saber o que

leitor mais atento encontrará ao abrir as cortinas dos tecnoespetáculo, já que as mídias

são a maior fonte de entretenimento do século XXI.

REFERÊNCIAS

BRASIL, Presidência da República – Casa Civil. LEI Nº 9.459, DE 13 DE MAIO DE

1997. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9459.htm. Acesso em

02/02/2016.

BUCCI, Eugênio. O espetáculo e a mercadoria como signo. In: Novaes, Adauto (org).

Muito além do espetáculo. São Paulo: Senac, 2005.

CANCLINI, Néstor García. Diferentes, desiguais e desconectados. Mapas da

interculturalidade. Rio de janeiro: Ed. UFRJ, 2009.

CASTRO, Gisela G. S; ROCHA, Rose de Melo. Consumindo o entretenimento:

dimensões comunicacionais de um processo sócio-cultural. Revista Compós, s/d.

INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 5, Edição número 23, Março/Setembro 2016 - p

14

CASTRO, Gisela G. S; ROCHA, Rose de Melo. Cultura da mídia, Cultura do

Consumo: Imagem e espetáculo no discurso pós-moderno. LOGOS 30. Tecnologias de

Comunicação e Subjetividade. Ano 16, 1º semestre 2009.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do

espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2002.

CANDIOTTO, Cesar. Foucault e a crítica da verdade. Coleção Estudos

Foucaultianos. Belo Horizonte: Autêntica editora; Curitiba: Champagnat: 2010.

DIJK, Teun A. Van. Discurso e contexto: uma abordagem sociocognitiva. Tradução de

Rodolfo Ilari. São Paulo: Contexto, 2012.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 3.ed. Edições Loyola: São Paulo, 1996.

KELLNER, Douglas. Cultura da mídia e triunfo do espetáculo. In: MORAES, Dênis de

(Org.). A sociedade midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad, 2006.

KELLNER, Douglas. A cultura da mídia. Estudos culturais: identidade e política entre

o moderno e o pós-moderno. Bauru, SP: Edusc, 2001.

LIPOVETSKY, Gilles. A Era do Vazio: ensaios sobre o individualismo

contemporâneo. Barueri – SP: Manole, 2005.

MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e

hegemonia. 5.ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008.

MUNDO CANIBAL Apocalipse - o pior jogo do mundo. Produção de Mundo Canibal.

São Paulo. Animação. Disponível em <http://mundocanibal.com.br>

O FIM do mundo. Produção de Mundo Canibal. São Paulo. Animação. Disponível em <

http://mundocanibal.com.br>

SILVERSTONE, Roger. Por que estudar a Mídia? São Paulo: Loyola, 2002.

ZYGMUNT, Bauman. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Zahar,

1998.

* Jornalista e Doutoranda em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo.

Docente na Universidade Regional de Blumenau (FURB).

** Publicitária e Doutoranda em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São

Paulo. E

INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 5, Edição número 23, Março/Setembro 2016 - p

15

_______ 1 Mais informações podem ser acessadas diretamente do site http://mundocanibal.com.br

2 As animações do Pastor Metralhadora podem ser encontradas no site do Mundo Canibal, disponível em

http://www.mundocanibal.com.br/aba/mc/ordem/recente/> e no canal que mantém no youtube, disponível

em <https://www.youtube.com/user/OficialMundoCanibal>. 3 Todos os comentários apresentados aqui foram transcritos literalmente, apenas corrigimos alguns erros

ortográficos, de forma que não afetasse sua compreensão ou sentido. 4 Originado no Japão o termo é utilizado para designar fãs de animes, mangás ou outras atividades que

são realizadas em excesso, tornando o fã obcecado ao ponto de encerrar demais relações e outras

atividades em prol de sua obsessão. Porém, é um termo pejorativo utilizado para ofender as pessoas que

não estão adequadas aos padrões da moda e de beleza, por exemplo.