clara trotta 41

Upload: bruno-pessoa-villela

Post on 11-Jul-2015

21 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

LOCKE E ROUSSEAU: A QUESTO DOS DIREITOS CIVIS COMO EXTENSO DOS DIREITOS NATURAIS Clara Maria C. Brum de Oliveira* Wellington Trotta** 1. Introduo O propsito do presente trabalho analisar a relao existente entre os contedos daquilo que comumente denominamos direitos civis com as teses de John Locke (1632-1704) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) quando defendem o direito natural como princpio constitutivo do direito positivo. Para tanto, tomamos como ponto de partida a Constituio brasileira de 1988, que defende os valores da livre iniciativa, do trabalho, da propriedade privada, da diviso dos poderes polticos e a representatividade democrtica como instrumentos a organizar um governo civil capaz de atinar para as expectativas dos indivduos. Se de fato isso ocorre ou no na ordem material, constitui um problema a ser devidamente estudado numa outra oportunidade, por ora nos preocupamos to-somente em tomar os dois pesadores supra para analisar em que medida os contedos dos nossos direitos civis esto estreitamente ligados s formulaes postas pelos corolrios dos direitos naturais inalienveis que fundam o Estado moderno. Assim, dividimos o presente texto em trs tpicos e uma concluso. No primeiro tpico trabalhamos a noo de direitos civis a partir da Carta de 1988 sem travar nenhuma discusso doutrinria. No segundo tpico desenhamos o pensamento poltico de Locke situando-o na tradio filosfica como um pensador preocupado em refletir, a partir das relaes sociais, o sentido de legalidade como premissa fundamental e necessria na defesa do direito de propriedade. J no terceiro e ltimo tpico assinalamos as premissas rousseaunianas como avano do pensamento poltico ocidental na perspectiva de construir uma sociedade que levasse em conta a igualdade como pressuposto libertrio, destacando que esse princpio talvez seja a sntese da melhor produo terica do ocidente at a metade do sculo XIX. Quanto concluso, ficou circunscrita sua natureza: poucas palavras. 2. Noo de direitos civis dentro da Constituio de 1988 Primeiramente preciso entender o significado de direitos civis e com isso verificar o grau de responsabilidade que a Constituio de 1988 imps ao Estado brasileiro na consecuo de seu fim. Por direitos civis podem-se entender, segundo o art. 5 da Carta Magna, todos os direitos concernentes ao homem no tocante vida, liberdade, segurana, igualdade e

54

propriedade nos termos estabelecidos pela lei. Entende-se que tais direitos so essenciais aos planos individual e coletivo, assumindo, dessa forma, a dimenso de necessidade social pela satisfao dos interesses dos indivduos, implicados no equilbrio da sociedade que pensada como um corpo representado pelas perspectivas-expectativas dos seus associados. Para pensar os direitos civis como direitos inalienveis do ser humano, tomamos o item propriedade como problema central, isso porque a propriedade no sistema poltico contemporneo ainda assume a possibilidade do homem se manifestar no somente como igual, mas tambm como necessariamente responsvel pelo corpo social. Pode-se dizer que a propriedade assume um carter imprescindvel nas relaes poltico-sociais porque implica o nvel de liberdade do indivduo e o sentir-se cidado de fato. Ironicamente a propriedade ainda pronuncia o status do indivduo socialmente, apontando, por sua vez, o grau de dignidade da pessoa na medida em que dispe de si mesmo como ser capaz de decidir sobre o destino poltico da sociedade. Necessariamente os direitos civis se confundem com os direitos humanos, ou melhor, a terminologia que se adota para expressar o conjunto de direitos que compreende a dignidade da pessoa no vai longe do sentido de direitos civis, que, ao tempo dos jusnaturalistas, eram chamados de direitos naturais por serem dados pela condio racional dos homens, que naturalmente deveriam viver segundo a mais profunda racionalidade. Esse sentido de racionalidade, ao contrrio do que se pensou, no passou de esforos significativos de inteligncias particulares segundo suas condies histrico-culturais objetivas, limitadas pelo esforo em se encontrar uma explicao aos problemas dos direitos, sejam eles civis, humanos ou naturais. Importa saber, sobretudo, que os nossos direitos humanos constituem, historicamente, o processo dos direitos ditos sociais expressos pelos princpios gerais de direito. Portanto, pouco relevante se so polticos, civis, sociais ou humanos, desde que, obviamente, atendam aos novos reclames das necessidades humanas, isso para pensar sociedade. Resta assinalar que so direitos civis os existentes na vida da cidade; o que so os direitos polticos seno aqueles na vida da polis; o que so direitos humanos seno aqueles que privilegiam a digna existncia humana. Assim, os direitos humanos denominados diversamente pela cultura do tempo podem, desde que estejam categoricamente vinculados s expectativas dos indivduos, ser os preceitos vinculativos-normativos da vida em sociedade, desde que levem em conta a necessidade do todo precedendo s partes, originalmente, o que j contraria o sabor liberal de compreender o mundo a partir dos indivduos isolados, o que constitui um contra-senso ao bom senso cartesiano.

55

3. A propriedade como princpio poltico, segundo John Locke Levando em conta o interesse associativo dos homens, pode-se pensar com Locke que o corpo poltico tem por fim a administrao dos conflitos dos homens em sociedade no tocante ao respeito do direito de propriedade. No entanto, para isso preciso que analisemos o fundamento terico que norteia as reflexes desse filsofo ingls. Tomemos como ponto de partida o significado de direito natural, para depois situar seu pensamento na perspectiva em que est posto historicamente. Segundo o cientista poltico italiano Guido Fass: Jusnaturalismo uma doutrina segundo a qual existe e pode ser conhecido um direito natural, ou seja, um sistema de normas de conduta intersubjetiva diverso do sistema constitudo pelas normas fixadas pelo Estado (direito positivo). Este direito natural tem validade em si, anterior e superior ao direito positivo e, em caso de conflito, ele que deve prevalecer. 1 Em contrapartida, h especificidades dentro do pensamento jusnaturalista, a comear pela distino entre jusnaturalismo antigo e jusnaturalismo moderno, enquanto aquele se assentava na tese de que o direito natural deveria representar um sistema de normas objetivas, cravadas no cotidiano legal da sociedade, a tese jusnaturalista moderna compreende que o direito natural deveria expressar uma relao de princpios compreendidos pela razo, ou, se quisermos, como Locke, descoberta pela razo, que justamente a capacidade de compreenso existente nos homens. Tais direitos no seriam uma ddiva dos Estados ou das legislaes mas um ditame da justa razo que mostraria aos homens os limites daquilo que convm em uma sociedade civil, ou seja, direitos naturais qual racionais. nesse contexto que surge a figura de John Locke como um verdadeiro filho do sculo XVII. O jusnaturalismo de Locke pressupe uma ordem universal em que Deus criou os homens para o propsito segundo o qual, todos pelo trabalho, pudessem construir sua prosperidade. Nesse aspecto, a prosperidade est diretamente relacionada ao sentido de propriedade, que, para o mdico ingls, pode ser sintetizada em vida (bem-estar), posses e liberdade, assinalando que todo homem tem direito ao fruto do seu trabalho, logo a propriedade assume o status de categoria poltico-epistemolgica, levando em conta o fato de que promove a compreenso da propriedade como chave interpretativa dos movimentos polticos que determinam as formas de pensar a organizao coletiva, visando com isso um modo especfico

1

BOBBIO, Norberto (org.) Dicionrio de cincia poltica. Braslia: UnB, 2000: 655.

56

de produo social de bens. Outrossim, a propriedade no uma determinao jurdica mas racional, pois anterior ao Estado que por fim a protege legalmente. No entendimento de Locke o homem deixa o estado de natureza, situao de relativa paz, para fundar uma sociedade civil, trocando a irrestrita liberdade que desfrutava por uma condio jurdica que poderia remediar o respeito propriedade, pois o homem vivendo sob a sociedade civil teria mais segurana, j que a propriedade intrnseca ao indivduo. Nesse sentido, a sociedade civil no tem outro fim seno defender tal valor, tal princpio, tal necessidade existencial. na propriedade que os homens constroem a felicidade por meio do trabalho, pois no h como separar felicidade de liberdade, trabalho de propriedade, justia de bem-estar comum, riqueza de esforo permanente. Em torno de tais perspectivas funda-se uma organizao poltica capaz de promover a justia sob o primado da lei, o esprito de legalidade como princpio elaborado pelo mundo europeu a partir da maturidade burguesa, classe em ascenso que no privilegia a palavra dita como forma de acordo, mas o contrato a termo que fixa, obriga e clareia expectativas desejadas. Locke no concebe uma sociedade civil vivendo sob o arbtrio do poder absoluto, capaz de resolver tudo pela oniscincia. O poder absoluto no visa ao bem-comum pelo simples fato do seu julgamento sempre ser parcial (voltado para si), uma espcie de ao por reflexo, onde o poder total est a sua volta para inteira satisfao de si. No sistema absoluto, o imperioso a vontade particular, contrria aos interesses de todos, pois ameaa propriedade e o resultado do trabalho quotidiano dos indivduos. O poder deve ser uma relao entre homens, uma renncia coletiva capaz de estabelecer padres possveis de conduta; por isso a lei ser o novo referencial, a ordenao precisa dessa mesma conduta. Nesse ponto Locke afirma que ningum pode na sociedade civil isentar-se das leis que a regem. a sociedade civil enquanto instncia legal desse princpio. Sendo a sociedade civil uma construo pelo consentimento, observa-se,2

As garantias devem ser

iguais para todos no corpo poltico em razo do direito natural considerar todos como iguais, e

imediatamente, a razo como instrumento dessas vontades particulares consentidas, e que precisam contratar os meios pelos quais essas concesses sero respeitadas. Locke aponta a lei como guardi dessa vontade expressa pela racionalidade. a lei e no mais a vontade o parmetro da vida comunitria, para isso necessrio constituir um juiz permanente, conhecido, imparcial e que governe seu julgamento sob a gide da lei, elaborada pela mesma sociedade civil por meio da representao parlamentar. Se a lei obedece ao critrio da razoabilidade, seu surgimento s pode ser construdo pela discusso, e o frum desse processo2

LOCKE, John. Os pensadores. In: Segundo tratado sobre o governo. SP: Abril, 1973: 76.

57

o Legislativo. Assim, a sociedade como um corpo poltico e orgnico comandada pelo imprio da lei que se constri no parlamento, pensado como poder supremo. No Segundo tratado sobre o governo civil, Locke vaticina que a sociedade sob um poder poltico somente existe para promover a paz com vistas a permitir o gozo, o uso e a disponibilidade da propriedade, bem como na execuo da justia entendida como bem-estar comum. Ao construir sua tese de que o homem abandona o estado de natureza (condio prlegal) e contrata com outros homens a sociedade civil para a preservao da propriedade, Locke est pensando naqueles homens possuidores de terra e no naqueles sem posses, inclusive os que no possuem a si mesmos. Todavia, forosamente, podemos pensar que o filsofo ingls trouxe algo de novo, mesmo no atentando para tal princpio, que sendo a propriedade um direito natural e os homens iguais, todos, sem distino, devem ser contemplados no seu direito ao uso, gozo e disponibilidade daquilo que constituiu pelo trabalho. Destarte pode-se, por relao, supor que todos os que formam uma sociedade devem ter direitos resguardados por ela, pois sendo o homem um ser racional, tem na liberdade o seu fim ltimo que por sua vez no pode ser separada da poltica, cujo princpio formular as condies racionais para paz, harmonia, tolerncia e felicidade, garantidas por leis civis. Considerando que o estado de natureza a condio perfeita de liberdade onde no h uma regulamentao quanto posse e outras relaes, vivendo os homens nos limites da lei de natureza, no se submetendo a ningum, vivendo conforme o corolrio da razo, Locke julga conveniente a constituio de um Estado poltico em que a igualdade seja recproca sob um nico poder jurisdicional, onde nenhum tendo mais que o outro, no possui o direito de liberdade para destruir quem quer que seja, ou mesmo qualquer criatura que esteja em sua posse, seno quando uso mais nobre do que a simples conservao o exija.3

O Estado

poltico deve ser pautado, tambm, pela razo da lei de natureza, isto , sendo todos iguais e independentes, nenhum deve prejudicar a outrem na vida, na sade, na liberdade ou nas posses.4

Para impedir a transgresso dessa lei de natureza, respeitando direitos alheios como5

paz, concrdia etc., deve-se colocar no poder pblico a execuo da lei de natureza nas mos de todos os homens para castigar seus ofensores.

Como a violncia em si no causa original da fundao do Estado, mas a busca de solues inteligentes para garantir a propriedade, Locke, ao contrrio de Thomas Hobbes (1581-1672), insiste que o poder poltico deve ser entendido como o direito de fazer leis com pena de morte e, conseqentemente, todas as penalidades menores para regular e preservar a3 4 5

LOCKE, John. Os pensadores. In: Segundo tratado sobre o governo. SP: Abril, 1973: 42. Ibidem. Ibidem.

58

propriedade,

6

empregando a fora da comunidade na execuo de leis contra agresso

externa e defesa do bem-comum. O governo civil constitui o antdoto para os inconvenientes do estado de natureza na busca de um juzo imparcial que possa compor os conflitos a partir de uma racionalidade necessria, considerando, por sua vez, o poder absoluto como um estado de guerra. Nesse sentido, o direito de resistncia tem o escopo de obrigar o prncipe a respeitar a legalidade cuja preocupao com a ordem na segurana e defesa da propriedade atravs do apelo moral. A partir desse princpio, a sociedade civil resolve o problema da propriedade que a lei natural no resolveu eficazmente, remediando as lacunas dadas pelas subjetividade e insegurana. Portanto, atravs do poder poltico visa-se paz, felicidade, liberdade, bem-estar e segurana contra o estado de guerra que uns buscam escravizar e se apropriar da propriedade dos outros, rompendo o estado de natureza e instaurando a beligerncia. Dessa forma Locke repudia severamente o poder monrquico de sua poca, defendendo a rebelio como meio de preservar a vida, pois quem tenta impedir a liberdade de algum est declarando guerra a este algum. O estado de natureza diferente do estado de guerra, esto distantes um do outro porque este malcia, inimizade, violncia, destruio mtua; aquele amizade, solidariedade, paz. Quando os homens vivem juntos conforme a razo, sem um superior comum na terra que possua autoridade para julgar entre eles, verifica-se propriamente o estado de natureza,7

mas quando no existe esse mesmo superior para julgar os homens em conflito, quando um determina que o outro deve lhe servir, aviltando-lhe a pessoa instou-se um estado de guerra, e Locke deixa claro que essa a finalidade do Estado civil: garantir paz, justia, liberdade e o direito propriedade. Evitar esse estado de guerra cujo apelo em direo ao cu, pois falta a quem se dirigir em razo da inexistncia de um poder civil, Locke defende que os homens se renam em sociedade, deixando o estado de natureza no propsito de submeter a uma autoridade legislativa que tenha como regra a lei de natureza, agora posta como uma obrigatoriedade jurdico-penal. bom que se diga, que a liberdade em sociedade passa a ser uma extenso da liberdade do estado de natureza, isto , a liberdade em sociedade consiste em norma permanente, pois liberdade no qual licena, uma condio existencial protegida pelo poder competente, com regras claras e constantes na intransigente defesa da propriedade como lcus do trabalho, e nesse caso Deus, que deu o mundo aos homens em comum, tambm lhes deu a razo para que a utilizassem para maior proveito da vida e da prpria convivncia,8

logo, a terra, os frutos naturais e os animais alimentados ali naturalmente pertencem 6 7 8

LOCKE, John. Os pensadores. In: Segundo tratado sobre o governo. SP: Abril, 1973: 40. LOCKE, John. Os pensadores. In: Segundo tratado sobre o governo. SP: Abril, 1973: 47. Idem, 1973: 51.

59

humanidade. Mesmo sendo a terra, os animais e os frutos da mesma propriedade comum entre os homens, todo homem tem uma propriedade em si prprio, sendo seu direito exclusivo. Pode-se dizer que o trabalho do seu corpo e a obra das suas mos so propriamente9

do homem; a terra e seus frutos no naturais so propriedades daquele que a

lavrou, pois o trabalho a medida de todas as coisas, o que quer dizer que o homem em si mesmo a base da propriedade. Assim, o trabalho, no comeo, proporcionou o direito propriedade sempre que qualquer pessoa achou conveniente empreg-lo sobre o que era comum, salientando, por outro lado, que a mesma lei de natureza que deu a propriedade, igualmente estabeleceu o seu limite. O homem se apropria da terra extraindo o seu sustento, no sendo proprietrio do excedente que pertence humanidade, uma vez que Deus deu a razo para o bem da boa convivncia. Os homens nascem com direito perfeita liberdade, tendo o controle de todos os direitos e privilgios da lei de natureza com o poder de preservar no s sua propriedade dos danos e ataques diversos como castigar aqueles que infringem tal lei; nesse sentido, s haver sociedade poltica quando cada um dos membros renunciar ao prprio poder natural, passando-o s mos da comunidade em todos os casos que no lhe impeam de recorrer proteo da lei por ela estabelecida. Esto em sociedade civil uns com os outros quando este mesmo corpo dispe de lei estvel anterior ao fato e judicatura devidamente alicerada para dirimir conflitos, resguardando direitos e punindo opressores. O poder julgador essencial existncia da comunidade, que a seu turno assegura a propriedade, evitando os inconvenientes do estado de natureza. Na sociedade civil h um juiz capaz de dirimir conflitos primando pela imparcialidade, uma vez que ningum pode na sociedade civil isentar-se das leis que a regem. Isso significa que ningum pode ser expulso de sua propriedade sem o seu prprio consentimento, pois os homens, por natureza, so livres, iguais e independentes. A pessoa que abandona sua liberdade natural, constituindo uma comunidade, deseja viver com outras pessoas em segurana e paz, gozando as garantias dadas propriedade. Assim, um corpo poltico comandado pela maioria. Quando qualquer nmero de homens, pelo consentimento de cada indivduo, constitui uma comunidade, tornou, por isso mesmo, essa comunidade um corpo, com o poder de agir como um corpo, o que se d to-s pela vontade e resoluo da maioria. 10 Sendo a liberdade na sociedade civil maior que no estado de natureza em virtude da proteo legal, o ato da maioria em uma assemblia um ato de todos, e, nesse caso, impossvel em uma assemblia todos concordarem uns com os outros visando composio do9

10

Ibidem. LOCKE, John. Os pensadores. In: Segundo tratado sobre o governo. SP: Abril, 1973: 77.

60

conflito. A soluo para tal problema a votao: a idia vencedora aquela que conta com a maioria, sendo esta seguida pela parte vencida. Se para fundar uma sociedade civil fosse necessria a unanimidade de todos os presentes, tal sociedade seria impossvel de ser constituda, e por isso que se justifica a maioria dos votos como soluo do conflito. Quem deseja instituir uma sociedade civil, saindo do estado de natureza, deve abandonar todo poder necessrio visando aos fins associativos, consistindo o pacto no assentamento da sociedade poltica. Nesse caso, o que firma a sociedade civil no outra razo seno a concordncia do nmero necessrio de homens livres (proprietrios), capazes de maioria para comp-la, politicamente. Somente pelo livre consentimento foi possvel o pacto que legtima a origem do governo, e uma vez feito o pacto o pactuante jamais poder romper o acordado, estando obrigado, perpetuamente, a ser sdito dessa sociedade. Ao iniciar o captulo XI do Segundo tratado, Locke enfatiza que o objetivo pelo qual o homem ingressa na sociedade civil consiste em elaborar normas para garantir a propriedade e, nesse sentido, cabe ao Legislativo o papel de edific-las. Por isso na formulao poltica lockeana o papel do poder legislativo de ordem primordial, isto , tem a funo de estabelecer normas necessrias existncia da sociedade como um corpo poltico, e sendo assim, o poder legislativo assume o status de poder supremo dentro de uma sociedade que pretende a legalidade. O poder legislativo institui normas para comandar a sociedade, o executivo para aplic-las. Essas funes distintas so para que no haja arbitrariedade por parte dos poderes constitudos. Se o poder legislativo agir de forma diversa de sua destinao, ou, se todos os poderes em seus atos no respeitarem o povo, que o verdadeiro titular do poder, caber ao prprio povo apelar para os cus no sentido de resistncia civil. Para Locke, tais poderes pblicos somente existem em funo do soberano, logo seria absurdo um governo que fugisse de suas funes essenciais, mas caso ocorra, caber ao povo destitu-lo e formar um outro que atenda ao pacto firmado como fim ltimo. Uma sociedade governada por uma autoridade competente tem por fim fazer valer o julgado conforme lei. O estado de natureza, embora sendo o ideal, est sujeito s paixes, e, nesse caso, pelas ms condies enquanto nele permanecem, so rapidamente levados sociedade.11

O governo civil deve estabelecer lei estvel para que haja segurana, portanto o

poder supremo deve levar em conta trs aspectos a serem observados: no deve ser arbitrrio sobre a vida e a fortuna da pessoa; ele apenas o seu representante; o poder legislativo no governa por decretos extemporneos e arbitrrios, mas sim por leis estabelecidas, conhecidas e por juzes autorizados.

11

LOCKE, John. Os pensadores. In: Segundo tratado sobre o governo. SP: Abril, 1973: 89.

61

O poder absoluto arbitrrio ou o governo sem leis fixas e estabelecidas no se podem harmonizar com os fins da sociedade e do governo pelo qual os homens abandonassem a liberdade do estado de natureza para sob ele viverem, se no fosse para preservar-lhes a vida, a liberdade e a propriedade, e para garantir-lhes, por meio de regras estabelecidas de direito e de propriedade, a paz e tranqilidade. 12 O poder supremo no pode tirar de qualquer dos seus membros parte da sua propriedade sem o seu consentimento, visto ser a preservao da propriedade o objetivo do governo e por isso ter-se concebido como conditio sine qua non da sociedade civil. O poder legislativo no pode transferir sua competncia, visto ter sido o povo quem o delegou para tal funo, somente o povo pode ter o poder legislativo para si. Nessa ordem, so obrigaes e encargos a ele conferidos pela sociedade e pela lei de Deus, a saber: 1 - Governncia pautada sob a lei promulgada, anterior, conhecida, invarivel; 2 - As leis s podem visar o bem-estar do povo; 3 - No pode lanar impostos sobre a propriedade sem o consentimento do povo; 4 A competncia do poder legislativo intransfervel. E, sendo o legislativo a expresso da vontade da sociedade, seu smbolo exemplar a chancela poltica de seus interesses. O poder legislativo s o ordenador da sociedade porque tem representao popular e sua destinao elaborar leis justas e precisas ao bem-comum, ao passo que o poder executivo aquele que executar as leis, poder permanente na administrao dos negcios pblicos escolhidos pelo legislativo. Atua no mbito comunal, isto , nos problemas intra-sociedade. O poder federativo, por sua vez, uma extenso do executivo, sua funo relativa aos negcios estrangeiros no que tange paz ou guerra. Os exerccios dos poderes executivo e federativo podem ser realizados pelos mesmos membros, distintos do legislativo, cujos partcipes no podem pertencer a outro poder, que ao seu turno no tem atuao permanente, pois, ao elaborar leis, extingue-se a legislatura e seus membros voltam a ser sditos das leis por eles institudas. O legislativo s pode ser convocado na necessidade de promulgao de leis e desobedincia por parte do poder executivo. Cabe ao povo o poder supremo de destituir o legislativo quando este no atende aos fins pelo qual fora criado, agindo contra a mesma comunidade constituda. A comunidade preserva o poder de se salvaguardar de quem quer que seja para fazer valer os princpios do bem-estar, da liberdade e posses. Ningum pode renunciar a autopreservao, no podendo tolerar qualquer forma de arbitrariedade. Assim, no necessrio e conveniente que o poder legislativo esteja sempre reunido, ao passo que o poder executivo, sim, visto como nem sempre h necessidade de elaborar novas leis, mas

12

Idem, 1973: 94

62

sempre existe a necessidade de executar as que foram feitas.

13

O legislativo pode dissolver o

poder executivo caso este esteja sendo arbitrrio na aplicao das leis. Mas, caso o executivo impea a reunio do poder legislativo, qual o remdio? O verdadeiro remdio contra a fora sem autoridade opor-lhe a fora;14

resistncia ao estado de guerra, ao essencial da

sociedade quanto s suas respectivas segurana e preservao, visto que nesse caso a contrafora torna-se resistncia civil como ato extremo para resguardar a legalidade.

3. A democracia como radicalizao genebrina O homem nasce livre e por toda a parte encontra-se a ferros,15

acorrentado por

cadeia de elos convencionados por diversos interesses. Assim, Jean-Jacques Rousseau inicia O contrato social, com uma observao pertinente: a liberdade no uma conveno ou uma prerrogativa legal, mas uma condio natural intrnseca condio humana, visto ser a liberdade anterior determinao legal. a liberdade a nica condio legtima de organizao poltica, em que repousa toda autoridade subordinada vontade de uma idia coletiva. A liberdade a prpria qualidade humana, ao passo que a escravido, como anttese, a plena renncia dessa humanidade sustentada por conveno e interesse mesquinhos. Foi para garantir a liberdade e os bens que o homem superou as inconvenincias do estado de natureza e instituiu a sociedade civil. Tal passagem supe que ocorreu nas condies em que os homens tinham pela frente, obstculos prejudiciais sua conservao e limite de foras que cada um dispunha; o estgio primitivo j no podia subsistir e o gnero humano, se no mudasse de modo de vida, pereceria. Portanto, os homens trocaram sua liberdade irrestrita pela liberdade civil, sendo, porm, a fora e a liberdade de cada indivduo os instrumentos primordiais de sua conservao.16

bem verdade que a sociedade civil, para Rousseau, tem um carter contraditrio, ao mesmo tempo em que assegura com mais eficincia a liberdade civil natural pela proteo do Estado-juiz, tambm traz consigo a pecha de perverter o homem originrio, atribuindo propriedade os males sociais at hoje existentes, corrompendo os homens e os atirando ao atoleiro em que se encontra, muito embora tambm essa mesma sociedade deva ser capaz de encontrar as sadas necessrias ao bem-comum. Mas quais as vantagens da sociedade poltica sobre a vida no estado de natureza, uma vez que esse estado, mesmo imaginado para conceber os pressupostos polticos dos jusnaturalistas, no tenha existido? Nessa perspectiva pergunta Rousseau: qual o fim da associao poltica? A conservao e a prosperidade de13 14 15 16

LOCKE, John. Os pensadores. In: Segundo tratado sobre o governo. SP: Abril, 1973: 100. Idem, 1973: 101 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os pensadores. In: O contrato social. SP: Nova cultural, 1991: 22. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os pensadores. In: O contrato social. SP: Nova cultural, 1991: 32.

63

seus membros,

17

responde o autor de Emlio, convencendo-nos de que O contrato social tem

como escopo refletir sobre uma associao poltica capaz de guardar a pessoa e os seus bens, em que todos, unidos pelo mesmo objetivo, cada um obedea a si mesmo procurando manter-se to livre quanto livre fora no estado de natureza. E, nesse caso, a liberdade assume valor mpar, subordinando-se somente igualdade cuja condio absoluta torna todos realmente livres. Importa salientar que a igualdade civil uma decorrncia da igualdade natural entre os homens, logo o plano social deve ser uma extenso racional do natural. A sociedade civil no se estrutura para livrar o homem do medo permanente do homo homini lupus, como tambm no se organiza para proteger, gozar e dispor da propriedade por mais amplo que seja o seu conceito. O pacto social visa conservar a liberdade pelo esprito de igualdade em que a posse se transforme em propriedade pelo trabalho, garantida pela vontade geral, coercitivamente sob o primado da lei emanada do soberano. Destarte todos os cidados so forosamente iguais para livremente deliberar leis necessrias vida civil. Para isso Rousseau concebe vontade geral como expresso de um desejo de todos, Essa mesma vontade geral no uma soma de vontades particulares, mas a materializao do soberano, a suprema fonte de poder da sociedade que se constitui em instncia deliberativa do corpo poltico em que o povo se assume como ser livre sustentado pela igualdade. A igualdade uma condio de semelhana na sociedade civil, cujo soberano no admite, em seu seio, homens desiguais, pois se assim no for a soberania deixa de ser uma emanao de poder e se torna centro de lutas individuais, representando interesses particulares. O soberano s pode ser o povo no momento de sua deliberao legislativa, vontade geral, o que Karl Marx (1818-1883) chamar de interesse geral.18

Sendo o soberano a instncia deliberativa, para Rousseau, a mediao parlamentar tem apenas um carter metafsico, visto ser o poder soberano o prprio exerccio da vida social, sendo todos os sditos obrigados ao poder soberano, ao passo que o mesmo no obrigado aos sditos, isso porque no h nem pode haver qualquer espcie de lei fundamental obrigatria para o corpo do povo, nem sequer o contrato social,19

o soberano

a legitimao da ordem social sob a forma de assemblia enquanto fonte da vontade geral. Ao soberano o pacto social proporciona poder sobre seus membros e sua propriedade, existindo juridicamente graas legitimao poltica. Assim, o limite do poder soberano est adstrito ao sentido do interesse pblico como norte da vida coletiva cujas deliberaes obedecem aos princpios de igualdade-liberdade na17 18 19

Idem, 1991: 98. MARX, Karl. Crtica da filosofia do direito de Hegel. Lisboa: Presena, 1983. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os pensadores. In: O contrato social. SP: Nova cultural, 1991: 34.

64

lei como fora da vontade geral, meio que fixa e estabelece todos os direitos-deveres dos cidados. O poder soberano, pela sua prpria natureza, quem institui o poder executivo, aquele que ir executar e administrar o bem pblico mediante leis promulgadas. O poder executivo, que um corpo intermedirio estabelecido entre os sditos e o soberano,20

encarregado da manuteno das liberdades civil e poltica, estabelece a relao do todo com o todo, do soberano com o Estado. Entretanto, no se pode confundir o soberano com instncias administrativas de poder, visto que o soberano permanente enquanto pilar da vontade geral em assemblia. Segundo Rousseau, o poder legislativo no existe fora do soberano, isso porque no se podem representar vontades. O povo no pode prescindir do seu direito-dever de participar da vida poltica do seu Estado, abrir mo dessa condio arruinar todo o corpo poltico, colocando sob perigo toda organizao estatal constituda. O povo quem elabora e ratifica a lei, isso porque nula toda lei que no leva sua chancela, porque a diminuio do amor ptria, a ao do interesse particular, a imensido dos Estados, as conquistas, os abusos do governo fizeram com que se imaginassem o recurso dos deputados ou representantes do povo nas assemblias da nao.21

Dessa forma, a liberdade s existe quando a justia e a

igualdade so anunciadas como pressupostos necessrios de uma ordem poltica em que o homem cidado. Nesse ponto a misria um peso para a igualdade que obsta a liberdade como soberana construo poltica, pois, para o filsofo genebrino, a ao poltica visa, em ltima instncia, a prosperidade como fim do homem. No sem razo que a democracia eleita como forma de ao poltica e no como simples forma de governo; enquanto ao a democracia asseguraria a liberdade do cidado nos negcios da cidade. Porquanto ser autor de si mesmo um plano de igualdade na participao dos assuntos pblicos, no se podendo falar em liberdade quando se nega ao membro do soberano igualdade e justia, por isso as condies de liberdade so a igualdade como uma necessidade em que o homem no pode dispor de si mesmo assim como se dispe de um objeto. Em face desse princpio, Rousseau responsabiliza o homem por levar adiante a liberdade como um projeto perptuo; ao contrrio de Locke, toma essa manifestao do esprito da vontade humana como expresso da vida comunitria. Nesse caso, a liberdade a disposio de todo homem em viver com outros no seio da sociedade, logo liberdade uma sntese da vida moral. E, se a liberdade condio necessria ao corpo poltico como fundamento da soberania, o soberano a legtima condio atravs do qual os homens depois de terem perdido sua liberdade natural, ganham em troca a sua liberdade civil de servido a

20 21

Idem, 1991: 74. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os pensadores. In: O contrato social. SP: Nova cultural, 1991: 107.

65

liberdade igual. Portanto, povo livre aquele que elabora suas leis em p de igualdade, cabendo a si deciso legislativa, buscando a unidade poltico-moral pela lei como vontade visvel e obrigao contratante consigo mesmo e com o prximo ao mesmo tempo: compromisso mtuo de igualdade-liberdade. Precisamente a vontade geral e o interesse geral redundam nos atos gerais, isto , nas leis, ao passo que o soberano a prpria vontade geral. Obedecer ao soberano ser verdadeiramente livre, isso porque o soberano incorpora a vontade geral como contrato social, estabelecendo um pacto legtimo em torno da liberdade civil. Obedecer lei que se prescreve a si mesmo um ato de liberdade, cuja obedincia vontade geral fundamentando-se na igualdade, dessa forma o governo o funcionrio do soberano, visto que na ordem civil uma administrao pode ser legitima e segura, tendo o homem como ele e as leis como podem ser, compatibilizando direito e necessidades, justia e utilidade. E, como por natureza, todo homem livre, a sociabilidade pode acorrent-lo, mas, se, pela fora, um povo oprimido, pela fora este mesmo povo rompe com a opresso: quando obrigado a obedecer e obedece, prudente; quando reage e liberta-se, usa um direito que antes no deveria ter sido subtrado. Em sociedade tudo se faz por conveno, porm preciso estabelecer convenes justas baseadas na igualdade-liberdade. A fora no condio para que o forte se perpetue no poder, a no ser que transforme fora em direito e obedincia em poder. A fora que deve prevalecer a do direito, pautada na fora moral do interesse pblico. Nesse postulado a fora no fazendo o direito s obriga a obedecer aos poderes legtimos, pois a vontade s tem validade se estiver atrelada liberdade. No se aliena a vida, muito menos um povo; um indivduo s se escraviza por necessidade ou pela fora: renunciar a liberdade ir contra a natureza moral da vida. Os homens em absoluto no so naturalmente inimigos; a relao entre as coisas e no a relao entre os homens que gera a guerra,22

nem no estado de natureza onde a propriedade no constante, nem no

Estado social, onde tudo est sob a proteo da lei. A guerra no uma relao de homens contra homens, mas sim de Estado contra Estado, declaradas pela ausncia do cidado livre, alienado de sua condio do corpo soberano. As guerras so vontades de prncipes em busca de seus desejos, e nesse caso, a escravido fruto de interesses diversos posto por convenes, pois h diferena entre subjugar uma multido e reger uma sociedade, est na relao de que esta associao de homens livres que pactuam, enquanto aquela uma complexa relao entre senhor e sditos, portanto uma situao de servido.

22

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os pensadores. In: O contrato social. SP: Nova cultural, 1991: 28.

66

O contrato social pretende encontrar uma forma de associao que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda fora comum, e pela qual cada um unindo-se a todos, s obedece, contudo a si mesmo, permanecendo to livre quanto antes,23

logo

retornar ao estado de natureza pelo principio de liberdade cujas clusulas do contrato so determinadas pelo teor do ato, e, nesse caso, o pacto social no formal pelo fato de se fundar na natureza do ato, e sua violao coloca o homem em estado de natureza, perdendo a liberdade convencionada. Suas clusulas reduzem todos a condio de igualdade, no havendo onerosidade para este ou aquele, em que cada um se dando a todos no se d a ningum. Este preceito de igualdade contrrio ao individualismo, pois o individuo dentro do coletivo est sujeito vontade comum, visto que, no lugar da pessoa particular, aps o pacto, produzse um corpo moral-coletivo, constitudo de tantos membros quanto de votos na assemblia, solidariamente. Essa unio forma uma pessoa pblica cujo nome Repblica, compreendendo um compromisso recproco entre o pblico e os particulares, e dessa forma pactua-se consigo mesmo. O soberano estabelece os princpios pelos quais o Estado deve se portar em razo da integridade do contrato, uma vez que o corpo poltico no pode alienar-se nem mesmo como parte, no podendo derrogar este ato primitivo obrigando-se com outro ou mesmo se submeter a outro soberano: a prpria autodestruio, isso porque no se pode atacar o corpo sem ofender os membros, como no pode ofender este ou aquele membro sem ofender o corpo: Ora, o soberano, sendo formado to-s pelos particulares que o compem no visa nem pode visar o interesse contrario aos deles.24

O soberano obrigado, por sua natureza, a celebrar

medidas que no prejudiquem os particulares e vice-versa. Aquele que visa viver sob o contrato social no pode superestimar sua vontade particular, pois essa forma de agir implica uma impossibilidade de viver como cidado, ignorando, por assim dizer, sua qualidade de sdito do soberano. Mas, para que o pacto no se torne algo nulo em si mesmo, como se fosse um simples formulrio, deve-se tornar um compromisso fundamental capaz de vigorar nos outros aquilo que vigora para si, no podendo recusar obedecer vontade geral, sendo a condio que cada cidado entrega-se ptria com o propsito de se posicionar contra qualquer dependncia sob outra pessoa, isto , no pode ser privado de sua liberdade social, e qualquer tentativa de fugir do corpo poltico que sustenta essa mesma liberdade poder cair na dependncia de outrem. Assim, para Rousseau, a liberdade s existe no corpo poltico, isso porque no contrato social o homem perde a liberdade natural, o direito ilimitado e tudo o quanto aventura pode ensejar, ganhando, com isso, a

23 24

Idem, 1991: 32. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os pensadores. In: O contrato social. SP: Nova cultural, 1991: 35.

67

liberdade civil e a propriedade de tudo que possui. A liberdade moral torna o homem verdadeiramente senhor de si mesmo porque o impulso do puro apetite escravido, portanto est na obedincia lei que se estatui a condio de membro da comunidade, dando-se a ela no momento de sua formao. Nesse caso a posse no muda de natureza mudando do particular para o soberano, mas segundo o soberano torna-se propriedade pela legalidade. Todo homem tem naturalmente direito o quanto lhe for necessrio, todavia o ato que lhe faz proprietrio de um bem o afasta de tudo que no lhe pertence, uma vez investido na posse de sua parte no lhe permitido mais do que j tem, a posse como o mando, deve legitimar-se para torna-se direito, que atribuio da sano coletiva. O direito de ocupante no estado de natureza frgil ao passo que no Estado civil respeitado e torna-se condio de propriedade, isto , condies necessrias para autorizao de direito de primeiro ocupante sobre bem imobilirio: poro necessria subsistncia. A posse pelo trabalho e pela cultura so os nicos sinais de propriedade respeitados pelos outros membros da sociedade na ausncia de titulo legal de propriedade. Para Rousseau, os possuidores so depositrios dos bens pblicos (posse legitima) na medida em que o liame social a fora verdadeira da soberania. Nesse sentido: O pacto fundamental, em lugar de destruir a igualdade natural, pelo contrario substitui por uma igualdade moral e legitima aquilo que a natureza poderia trazer de desigualdade fsica entre os homens, que, podendo ser desiguais na fora e ou no gnio, todos se tornam iguais por conveno e direito. 25 A igualdade aparente e ilusria sob governos que servem to-somente para que o rico fique mais rico e o pobre mais pobre, e nesse caso as leis so sempre teis aos que tm em detrimento dos que no tm. No Estado social s vantajoso aos homens quando todos tm algo e nenhum tem demais, a partir deste princpio que a vontade geral torna o interesse comum como conscincia pblica cuja vontade geral dirige as foras do Estado no interesse do bem-comum. O liame social formado pelo que existe de mais ntimo nos interesses dos membros da sociedade civil, em que a soberania, o exerccio da vontade geral, impossibilita sua alienao pelo sentido de que o soberano um ser coletivo. possvel que uma vontade particular no coincida com a vontade geral, s que tal situao impossvel por muito tempo, pois as vontades particulares tendem a predilees, ao passo que a vontade geral igualdade: se, pois, o povo promete simplesmente obedecer, dissolve-se por esse ato, perde sua qualidade de povo desde que h um senhor, no h mais soberano e, a partir de ento, destri-se o corpo poltico.26

25 26

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os pensadores. In: O contrato social. SP: Nova cultural, 1991: 39. Idem, 1991: 44.

68

O estabelecimento de partidos constitui obscurecimento vontade geral, isso porque se devem evitar as particularidades, o que no quer dizer que os cidado no possam opinar a partir de si, mas que fique claro: o poder dirigido pela vontade geral sobre todos os sditos chamado de soberania, firmada no pacto social, constitui direito-dever dos cidados junto ao soberano. Os compromissos no pacto o so porque so mtuos, pois o pacto social d ao corpo poltico um poder sobre seus membros, muito embora o poder soberano deva ser convencionado pelo interesse geral. O poder soberano fica restrito ao pacto e as convenes gerais, no onerando nenhum membro em favor do outro, privilegia o interessa pblico nos limites do bem-comum, segundo a liberdade convencionada pela igualdade de direitos-deveres naturais. So, pois, necessrias convenes e leis para unir os direitos aos deveres, e conduzir a justia a seu objetivo.27

Embora a vontade geral esteja sempre certa, as vezes pode carecer

de esclarecimento quanto ao julgamento, nesse caso importante a figura do legislador, jogando luzes pblicas sobre o problema. Segundo Rousseau, seria preciso deuses para dar leis aos homens isentas de paixes, entretanto, aos que ousam tal empreendimento devem se sentir capazes de mudar a natureza humana para melhor; nesse sentido, a educao aparece como idia-ao poltica revolucionria: enfim, a igualdade como pressuposto da liberdade. 4. Concluso Poderamos terminar este trabalho de diversas maneiras, tentando privilegiar os autores supra, tomando em oposio, por exemplo, Thomas Hobbes, que recebe um tratamento especial da tradio, muito embora as teses de Locke sejam encontradas em diversos ordenamentos jurdicos, especialmente o brasileiro que se prope liberal, ou Rousseau pelo determinante contgio que exerceu sobre as inteligncias insatisfeitas com as irracionalidades polticas. Tambm poderamos concluir fazendo uma habitual comparao entre os dois tericos do pensamento poltico moderno. Porm, pensamos que isso no s seria trivial como pouco inteligente. No entanto, apenas pretendemos destacar, por ora, algumas consideraes supostamente instigantes, pelo menos do ponto de vista epistemolgico. Tanto Locke como Rousseau, assim como muitos jusnaturalistas, construram seus modelos a partir do direito natural - este a liberdade, aquele a propriedade -, para justificar as suas respectivas concepes polticas. O interessante que seus modelos so abstratos ao mesmo tempo em que ensejam alternativas sbrias e concretas, acenando para a possibilidade de uma ordem poltico-jurdica, insistentemente, preocupadas em satisfazer os interesses dos indivduos. Essa ordem nasceria de um contrato em que poria tudo a termo com o fim de27

Idem, 1991: 54.

69

propiciar o livre curso das disposies naturais existentes nos indivduos, o que de alguma forma possibilitaria a sociabilidade. O direito natural estaria intrinsecamente atrelado ao direito positivo por lhe ser supostamente superior em razo de sua racionalidade universal e necessariamente vlida. Se o jusnaturalismo resgata a concepo tico-poltica dos esticos, partindo do lgos como instncia determinante, o faz porque necessita construir uma concepo poltica vlida universalmente, acreditando, para isso, que todos os homens estariam inteligentemente a salvos das intempries arbitrrias dos interesses mais translocados que animam as associaes no-jurdicas. Nesse caso, as sociedades polticas almejariam edificar estruturas legais que racionalmente comporiam os conflitos de interesses, livrando os indivduos da violncia absolutamente desnecessria. O jusnaturalismo a primeira expresso terica burguesa consistente que engendra, ao mesmo tempo, o liberalismo, o contratualismo e o constitucionalismo. Ao buscar a universalizao da ordem pela razo, no mesmo instante que solapa as pequenas ordensculturais, o jusnaturalismo, enquanto movimento de idias, reflete a expectativa burguesa que justifica a existncia do direito como primado cientfico, ora pela fsica de Galileu, ora pela fsica de Newton. No importa hoje se as teorias cientficas estavam erradas, o fundamental assinalar que o pensamento moderno estava vido por uma ordem natural-imanente, longe da revelao e o mais prximo da racionalidade matemtica que buscava o equilbrio do mundo para o mundo do mercado. Seja como for, entendemos que o jusnaturalismo continua como uma fora viva, mesmo que, pessoalmente, a ele no nos filiemos. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ALVES, Joo L. Rousseau, Hegel e Marx, percurso da razo poltica. Lisboa: Livros Horizonte, 1983 BOBBIO, Norberto. O pensamento poltico de Kant. Braslia: UnB, 1990. ______. Locke e o direito natural. Braslia: UnB, 1997. ______ (org.). Dicionrio de cincia poltica. Braslia: UnB, 2000. CASSIRER, Ernst. O mito do Estado. SP: Cdex, 2003. ENGELS, F. Do socialismo utpico ao socialismo cientfico. Lisboa: Presena, 1980. LOCKE, John. Os pensadores. In: Segundo tratado sobre o governo civil. SP: Abril, 1973. MARX, Karl. Crtica a filosofia do direito de Hegel. Lisboa: Presena, 1983. MOSCA, Gaetano. Histria das Doutrinas Polticas.RJ: Zahar Editores, 1983. SABINE, George H. Histria das Teorias Polticas. Vol. 2. RJ: Fundo de Cultura, 1961. REALE. G. e ANTISERI, D. Histria da filosofia. Vol. II. SP: Paulinas, 1990.

70

SANTILLN, Jos F. Locke y Kant: ensayos de filosofia poltica. Mxico: Fondo de Cultura, 1992. SCHILLING, Kurt. Histria das idias sociais. RJ: Zahar Editores, 1966. SKINNER, Quentin. As fundaes do pensamento poltico moderno. SP: Companhia das Letras, 1996. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os pensadores. In: O contrato social. SP: Nova cultural, 1991. VOLPE, Galvano Della. Rousseau e Marx, a liberdade igualitria. Lisboa: Edies 70, 1982. Resumo: O propsito do presente trabalho analisar a relao existente entre os contedos daquilo que comumente denominamos direitos civis com as teses de John Locke e JeanJacques Rousseau quando defendem o direito natural como princpio constitutivo do direito positivo. Para tanto, tomamos como ponto de partida a Constituio brasileira de 1988, que defende os valores da livre iniciativa, do trabalho, da propriedade privada, da diviso dos poderes polticos e a representatividade democrtica como instrumentos a organizar um governo civil capaz de atinar para as expectativas dos indivduos. PALAVRAS-CHAVE: Estado jusnaturalismo propriedade liberdade direito. * Clara Maria Cavalcante Brum de Oliveira graduada Comunicao Social, Filosofia e Direito. Especialista e Mestre em Filosofia pelo IFCH-UERJ, ex-bolsista da CAPES. Atualmente leciona Filosofia do Direito na UNESA. ** Wellington Trotta graduado em Direito e Filosofia, Mestre em Cincia Poltica pelo IFCSUFRJ, ex-bolsista da FAPERJ, ora doutorando em Filosofia pelo IFCS-UFRJ. Atualmente leciona Filosofia do Direito na UNESA.

71