civilizaÇÃo ou cultura? caminhos e descaminhos … · homem, voluntária e forçada...
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CIVILIZAÇÃO OU CULTURA? CAMINHOS E DESCAMINHOS DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA.
“Os pontos altos da cultura e da civilização são diferentes: não se deve incorrer em erro em relação ao antagonismo abissal entre cultura e civilização. Os grandes momentos da cultura foram sempre, dito moralmente, tempos de corrupção; por outro lado, foram épocas da domesticação animalesca do homem, voluntária e forçada (‘civilização’ -) os tempos de impaciência para as naturezas mais espirituais e ousadas. Civilização quer algo diverso do que quer a cultura: talvez algo inverso... (NIETZSCHE, 1888/2010, p. 88)
“No fim do artigo do mês passado, lancei aos nossos congressistas uma sugestão: que façam uma lei determinando que toda escola pública coloque uma placa de boa visibilidade na entrada principal com o seu Ideb. A lógica é simples. Em primeiro lugar, todo cidadão tem o direito de saber a qualidade da escola que seu filho frequenta. Hoje, esse dado está "escondido" em um site do Ministério da Educação. É irrazoável achar que um pai que nem sabe o que é o Ideb vá encontrar esse site. Já que o dado existe e é de grande relevância para a vida do aluno e de sua família, não vejo nenhuma razão pela qual ele não seja divulgado para valer”. (Yoschep, Revista Veja)
Neste trabalho pretende-se problematizar o impacto das relações estabelecidas
entre as exigências das políticas educacionais e a prática pedagógica exercida no
cotidiano do trabalho docente. Três instâncias entram em relação quando, de saída,
pretende-se fazer a correspondência entre a produção de um tipo ideal, configurado
nos dispositivos legais onde se cristalizam determinado horizonte de mundo, e os
ideários civilizatórios, a saber: a instância portadora do sentido de mundo; a instância
veiculadora do sentido de uma prática e a instância executora por intermédio de
práticas e tecnologias. Trata-se de três momentos que compõem as condições pelas
quais um processo de subjetivação se constitui. A problematização ora pretendida
organiza-se em torno de uma questão fundamental: sob que viés o sentido da
formação humana poderá se dar? E sendo a forma homem indefinida, destinada a
abertura, torna-se oportuno indagar sobre o sentido acerca do qual vem se
hegemonizando os princípios aplicados à formação na contemporaneidade. Este
questionamento buscará tornar visíveis as pretensões sobre o sentido geral da
formação e suas repercussões sobre a tarefa e a finalidade da educação
contemporâneas.
A organização do trabalho docente na contemporaneidade, em relação direta
com as instâncias portadoras, executoras e fiscalizadoras das intenções de
determinada política educacional, vem se organizando na direção da formação de
sujeitos capazes de atenderem as expectativas de produção de bens de consumo e
serviços atrelados aos princípios norteadores da lógica do mercado. Buscam ainda, a
construção de comportamentos morais adequados aos fins em questão, prefigurados
nos ditames da economia do conhecimento, na qual a conquista da riqueza de um
país e ou indivíduo decorre do nível de conhecimento desenvolvido e aplicado à
produção dos bens e serviços dos quais são produtores ou partícipes. O binômio
conhecimento e riqueza que se apresenta como a chave de compreensão para a
finalidade da educação no mundo contemporâneo ganha ainda mais importância
quando se percebe sua extensão e aplicabilidade na instauração dos processos de
subjetivação e produção operados nos dispositivos civilizatórios da nossa época. A
ordem de produção, nas suas exigências de manutenção do lucro e da
competitividade das empresas privadas e ou públicas, em momento algum é colocada
em questão, tendo em vista a necessidade de investimento na manutenção das
condições gerais da competição, sobretudo, em cenário de veloz mudança dos
sistemas de produção decorrente dos avanços perpetrados pela ciência e tecnologia.
Os níveis de escolaridade exigidos, diante do alargamento da relação de dependência
entre a produção complexa de bens e serviços e os avanços dos terrenos da ciência e
da tecnologia, tendem ao crescimento exponencial consolidando-se hegemonicamente
sobre a superfície do globo. A manutenção da competição e a consequente produção
de riquezas - índice de compreensão de desenvolvimento – reivindicam a necessidade
da produção incessante de sujeitos e processos capazes de interagirem entre si para
a manutenção dos desejos de expansão e a conquista de novos mercados. O binômio
produção e consumo passa a determinar o horizonte geral da época. Sob essa divisa,
não basta produzir sujeitos capazes de produção, mas sujeitos vinculados ao consumo
imediato e constante daquilo que se produz. O círculo econômico virtuoso expressa a
divisa geral do sistema, de que o crescimento demanda um excedente que permita o
contrainvestimento nas manutenções gerais de crescimento, medido pela capacidade
de ampliar o ganho e reduzir os custos – diretamente vinculados à racionalidade
calculadora e pragmática da fabricação de instrumentos e produtos e homens mais
eficazes. Contudo, a manutenção das taxas de crescimento mantém a exploração
como parte integrante do círculo econômico vigente, tendo em vista a disparidade
entre o nível de riqueza produzida por um uma empresa e ou País e a distribuição
sobre a totalidade dos sujeitos presentes na relação de produção. No caso brasileiro, a
disparidade da produção da riqueza e a conquista de níveis adequados de direito
extensíveis à totalidade da população de trabalhadores demonstra e torna visível a
manutenção e aumento das desigualdades vinculadas à lógica de produção e
crescimento vigentes. Conta-se ainda com o submetimento do governo aos interesses
gerais da assertiva do sistema. Sob esse viés é tarefa da política educacional
normatizar as exigências gerais do sistema econômico vigente sobre a totalidade dos
sujeitos, visando a adequação e formação de condições que os permitam ser
utilizados em sua plenitude. Assim, sob o signo das exigências econômicas, dão-se a
formação da sociedade e a tarefa e os fins da educação. Essa compreensão é
expressa por Yoschep ao reivindicar a publicidade dos resultados alcançados no Ideb
por parte das escolas, com o intuito de tornar visível o nível de eficiência desses
estabelecimentos na consecução da sua esperada e justificada tarefa. Sob esse signo,
os estabelecimentos de ensino encontram o reconhecimento da sua função na
conquista dos níveis de desenvolvimento que lhes são destinados a produzir,
auferidos pelo desempenho dos estudantes nas avaliações externas de larga escala.
Tomados como unidades de produção, estes estabelecimentos devem ser geridos
com fins a atingir o desenvolvimento das exigências fundamentais para a consecução
dos níveis de produção almejados pelo sistema de produção de riquezas.
A formação de ampla uniformidade atende aos interesses da efetivação de
uma massa de sujeitos que se adéque aos modelos de sociedade e nação pretendidos
pelas instâncias designadoras. A legitimidade das intenções designadoras assenta-se
no postulado que supõe como certo e seguro as tomadas de decisão por parte dos
legisladores que, delimitados pelo espaço da legalidade constitucional, forjam suas
opiniões nos fóruns destinados – as casas legislativas - e as dinâmicas gerais de
proposição de projetos por parte dos poderes executivo e legislativo. Em linhas gerais,
o respeito pelos trâmites e instâncias democráticas vinculadas às decisões manteria a
lisura e a tensão da formação de consensos esclarecidos. A legitimidade do processo
assenta-se nas premissas da governabilidade democrática, na qual, a totalidade das
decisões que regem uma nação apóia-se sobre a universalidade do voto, livre e
esclarecido da sua população. Tecnologia instauradora da validade e universalidade
da representação, festejada nos ritos das eleições. Sob essa perspectiva, as diretrizes
da política educacional encontram suas justificativas nos dispositivos institucionais
estabelecidos na relação de isonomia e autonomia dos poderes e no sistema de
representação decorrente. Uma política é válida por representar os interesses que
foram legitimados na formação dos consensos decorrentes dos debates realizados
pelos representantes eleitos pela população nas casas afins. A formação de consenso
supõe o amplo e irrestrito debate em torno das posições que se manifestam nos fóruns
legítimos de manifestação dos interesses plurais de uma nação. A suposição de base
atesta que as mudanças válidas de sentido de mundo decorreram primeiramente da
manutenção das regras gerais do jogo, sob pena de invalidar o estado de direito
conquistado. As propostas de ruptura geral são relegadas ao tom jocoso da denúncia:
autoritarismo, golpe ou revolução. Por outro lado, a disparidade de posição e projetos
assentada na diversidade e pluralidade dos sujeitos garante as variações e mudanças
de direção no universo de questões que movem o cotidiano de decisões de uma
nação. Desse modo, mantido o respeito pelas regras gerais, as variações seriam
decorrentes da mudança dos horizontes de exigências manifestas na variabilidade de
projetos que se apresentariam como possíveis, na elaboração ideológica das posições
e sujeitas ao pleito e aos fóruns de produção de consenso. Os projetos atestam a
visibilidade das disputas em torno dos sentidos possíveis para as tomadas de posição
de uma nação frente a seu povo. Nesse sentido, as exigências que norteiam os
passos e rumos das práticas pedagógicas justificam-se pela coerência geral do
sistema de validação das posições – a sua hegemonização figura apenas como um
lance em um jogo de regras certas e constituídas. As possíveis mudanças se
orientariam pela vontade da população expressa na renovação dos seus
representantes e na celebração de outros projetos. Entretanto, no caso do sentido da
formação, tendo em vista o espectro da sua influência, correm-se sérios riscos, pois a
equação, entre formação e mudança, aponta para uma relação de dependência, qual
seja: a tomada de decisão de uma população frente aos sentidos e práticas que
orientaram a sua vida constitui-se junto aos processos de subjetivação que decorrem
de determinado horizonte de constituição, logo, pode uma política educacional,
adequada à formação de sujeitos voltados para as exigências do mercado, produzir
condições cognitivas que os permitam alterar suas escolhas nos processos de
eleição? Podem os sujeitos formados nessas condições produzir projetos que
escapem à demanda que os constitui? A formulação do questionamento nessas bases
reconhece a assombrosa uniformidade e aceitação do primado veiculado pela
sociedade do conhecimento na construção do imaginário social sobre os fins e sentido
da educação. Além disso, torna-se patente o reconhecimento dessas premissas por
parte dos governos que se alinham ao projeto civilizacional dos EUA e Reino Unido.
Como também, torna-se patente o reconhecimento das premissas por parte da
sociedade civil representada pelo texto de Yoschpe, no qual reconhecem-se os
instrumentos de avaliação externa como legítimos e eficazes para a demarcação dos
limites de eficiência por parte dos aparelhos educacionais. Nessa direção, as
Secretarias de Educação de Minas Gerais e São Paulo passam a responsabilizar os
educadores pelos resultados obtidos por seus alunos nos sistemas de avaliação e
vinculam o recebimento de dividendos extras àqueles que obtiverem os resultados
esperados nos exames, reincidindo na lógica de remunerar pela eficiência, os
processos de formação. Na outra via, pais passam a pressionar as escolas, através do
fluxo de matrículas, em função da obtenção de índices que passam a vigorar como
condição para a ascensão em um mercado de trabalho assolado pela competição por
melhores salários. Um contingente de alunos passa a reconhecer e exigir uma
educação de qualidade com fins a atingir os objetivos pragmáticos para os quais estão
sendo formados enquanto a violência em sala de aula disputa os espaços nos jornais
e tele jornais da nação. Como pano de fundo, parte dos trabalhadores da educação
começam a se subjetivar a partir das exigências mensuradas nas avaliações externas,
passando a operar na lógica da preparação dos alunos para a feitura dos exames,
além disso, se vêem responsabilizados pelos resultados esperados.
Consequentemente, com o acúmulo de atividades e na sofrida solidão que encerra
suas práticas cotidianas em sala de aula, acentuam-se o número de adoecimentos e
afastamentos de professores por problemas de saúde. Em linhas gerais, pode-se
perceber que os atores envolvidos na questão passam a se ver a partir do conjunto de
exigências vinculadas ao modo de produção e da axiomática capitalista: o sentido da
vida humana esgota-se na produção e fruição maximizada de bens de consumo,
acumulados segundo a lógica presente nas competições que se instalam capilarmente
pela totalidade do tecido social. Paradoxalmente, a prerrogativa de defesa da
liberdade escapa à democracia. Espécie sofisticada de tirania, sobretudo pela
formulação de consensos gerados por um senso comum disseminado pelo tecido
social. A suposta razão emancipada acabou por forjar mecanismos burocráticos
extremamente eficientes para a obtenção dos seus resultados na consecução das
suas intenções, dirigida por setores da produção que detém os mecanismos de
ascensão no sistema de poder vigente.
Há dois séculos Nietzsche viveu o processo de unificação da Alemanha e
formulou uma série de questionamentos frente aos desejos da época em forjar para si
um conceito de indivíduo, povo e nação. Naquele momento, as forças vinculadas ao
interesses do Mercado, do Estado, e grande parte dos Intelectuais disputavam as
assertivas em torno do sentido geral para o ser alemão. Nietzsche aponta como pano
de fundo uma séria divergência entre os processos de subjetivação presentes ao
modo civilizatório e aqueles vinculados aos ditames da cultura. Em linhas gerais, no
processo civilizatório, o interesse estreito de grupos passa a predominar como o
sentido que orientaria os processos de subjetivação, através dos quais pairariam a
divisa da uniformidade e da instrumentalidade dos sujeitos. As suas máximas
educacionais exigiriam a formação baseada na instauração e especialização das
faculdades, usando como instrumento a centralização dos sujeitos em uma
uniformidade especializada. Do ponto de vista civilizatório é de fundamental
importância estabelecer parâmetros para a conversão instrumental de um povo,
tornando-o eficiente e de fácil utilização para os setores de produção. A ampliação dos
saberes atesta apenas a multiplicação de mercados, tendo em vista, a necessidade de
expansão do consumo. Nietzsche vê nascer as bases da indústria cultural moderna,
nas quais converte-se o esforço de esculturação de si para as esferas de consumo em
um produto, como antídoto para as angústias, as tensões e os riscos da tarefa da
esculturação de si. Esquecer de si mesmo e transformar-se em objeto de rápido
consumo passa a figurar como o sentido dos desígnios da civilização contemporânea
segundo Nietzsche. Para isso contribuem as artes, que se deslocam do terreno ético
da produção de si para a esfera estética da fruição construída para atender aos
interesses de um sujeito fadado ao divertimento e as ciências que se desviam do
desejo de conhecimento para o alinhamento aos interesses de grupos que pretendem
a hegemonização dos seus lugares de destaque e na manutenção dos seus
horizontes teóricos estreitos, bem como a filiação aos interesses produtivos do
mercado. Para além desses desvios, instaura-se por intermédio das artes e dos
eruditos o consumo e a fruição das invenções culturais de outros povos. A imitação
dos estilos passa a imperar frente às necessidades de elaboração de um si mesmo e
da estilização de si. Nesse sentido, a civilização produz, via uniformidade, o
apaziguamento e o esquecimento da tarefa de esculpir a si mesmo, de se educar. Por
esse viés pretende-se minimizar os espaços de ruptura e de emergência de linhas de
fuga e resistência. Poderíamos contrapor as exigências morais de disciplinamento
presentes às demandas civilizatórias às postulações éticas da esculturação de si na
cultura. Nesse sentido o embate do terreno da educação desenrola-se na tensão entre
as exigências morais e éticas vinculada respectivamente aos projetos civilizacionais
antagônicos.
Aos olhos de Nietzsche, em função de um erro crasso, difundido pelos filisteus
cultos, que confundiram a vitória alemã pelas armas com a vitória alemã sobre a
cultura francesa na guerra Franco-Prussiana de 1870, corre-se o risco de perder de
vista as condições que permitiriam a constituição de uma cultura, pois as qualidades
morais de estrita disciplina e de obediência tranquila não têm nada “haver com a
cultura”, apesar de contribuírem para a vitória das armas. A questão do destino de um
povo passa ao primeiro plano quando a confusão entre os fins de uma civilização se
apresenta no seu horizonte, quando se toma por cultura aquilo que é signo de
barbárie. Por barbárie Nietzsche compreende “a ausência de estilo ou a mistura
caótica de todos os estilos”. (NIETZSCHE, 1873/1986, p. 11)
A barbárie.
A noção de barbárie remete para aquela de caos e de excesso de estilos, pois,
em ambos os casos, a bela harmonia-tensa, signo de uma potente cultura é
desarticulada e remetida aos excessos que caracterizam o caos. O caos que orienta a
barbárie se expressa como ausência de estilo e de organização, contrapondo-se à
tensão de estilização própria a harmonia. Por harmonia-tensa Nietzsche compreende
os processos de organização próprios ao estabelecimento das culturas. Os processos
de constituição de uma cultura acabam por esculpir, a partir do conjunto de tensões,
inerentes aos indivíduos e povos, uma forma que expressa e mantém a tensão que
propicia a organização em uma bela-harmonia. O signo que o jovem pensador institui
como condição para a conquista de uma cultura é o de “uma diversidade diluída na
harmonia de um estilo único”. (NIETZSCHE, 1873/1986, p. 14)
Deste modo, a barbárie é produzida quando o conjunto de pulsões presentes
em uma dada configuração se expressa na ausência de um processo de estilização
que as orientaria em uma dada direção. Orientar, na compreensão de Nietzsche, não
remete para a destruição das pulsões, pois as mesmas prefiguram como essenciais
para a produção da forma de um dado estilo. Por outro lado, também são
compreendidos como excessivos, os processos de importação de estilos, de aquisição
de formas que se distanciem do caos das pulsões internas, pois bárbaro também é um
povo que não soube frear as suas necessidades de conhecimento e aquisição de
estilos de povos estrangeiros - uma miscelânea de freira. Nesse caso, o equilíbrio
expresso em uma dada cultura é sempre tenso, pois se alinha em um território em que
várias pulsões se expressam e querem imperar. A noção de harmonia-tensa é
decisiva para delinearmos a ambiência do questionamento, pois a desordem remete
para ausência de harmonia, porém por harmonia entende-se a expressão de tensões
que se organizam, que se transfiguram em beleza. Poderíamos perceber dois modos
de ser da barbárie, porém em ambos paira o império do caos, quer seja pela irrupção
imediata das pulsões no seu descontrole sem forma, quer pelo acúmulo de forma sem
a devida incorporação, prefigurada nos interesses de uniformidade e instrumentalidade
dos indivíduos. A noção de incorporação vital é decisiva para a compreensão da
noção de cultura.
A cultura.
“A cultura é, antes de mais, uma unidade de estilo que se manifesta em todas as atividades de uma nação”. (NIETZSCHE, 1873/1986, pg. 11)
Culto é aquele que se deu uma forma. Por forma compreende-se a unidade
assentada em uma multiplicidade de tensões. O trajeto das tensões dá-se na
configuração das pulsões. Por pulsões compreende-se: o impelir a. Nietzsche, na
juventude, distingue dois modos básicos do impelir: o dionisíaco e o apolíneo. O
dionisíaco remete para o elemento não formado das pulsões, a sua irrupção
momentânea e selvagem. O dionisíaco puro é a loucura, a insensatez e a destruição
total. O apolíneo remete para os processos da instauração da forma, do limite,
prefigurando, também, como o anunciador da individuação e da beleza. A oposição
entre Apolo e Dionísio é destituída no seio da arte trágica quando o elemento
destruidor e sem forma do dionisíaco é festejado na bela aparência apolínea. O selo
da união fraternal é celebrado por Nietzsche como o signo maior da cultura grega no
seu pessimismo da força, quando não se repele o mais duvidoso e destruidor das
pulsões, no seu eterno, inocente e criativo jogo de fazer-desfazer, acabando por dar-
lhe a santificadora e benfazeja visibilidade, na expressão da bela harmonia-tensa.
“a tragédia é bela na medida em que o movimento instintivo, que na vida cria o horrível, manifesta-se aqui como pulsão artística, com seu sorriso, como criança que brinca. O que há de comovente e surpreendente na tragédia em si, é que nós vemos o instinto terrível transformar-se diante de nós em instinto de arte e de jogo”.(NIETZSCHE, 1870/1994, p. 187)
Essa transformação do mais abissal em algo possível de ser visto prefigura
com a condição mesma da transfiguração das pulsões em uma forma específica. A
forma não pode se distanciar da tensão que a constitui, como também, não pode
deixar de expressar o possível da sua tonicidade. Por tonicidade compreende-se
aquilo que toca o sem forma, sem se confundir com o seu caráter destruidor. Assim,
uma bela forma remete-nos para o fundo incessante que a constitui, não no intuito de
invalidar a sua expressão, mas de torná-lo possível de ser experenciado pelo indivíduo
e pelos outros. A noção de experiência é decisiva nas considerações que se seguem,
pois é na experiência do totalmente outro da pulsão que se pode vislumbrar o esculpir
de uma dada forma. Alinham-se ao nosso campo as noções que tornam problemática
a relação entre a pulsão e sua tonicidade, bem como a sua capacidade de invalidar o
sujeito enquanto experiência e os ecos vindos da necessidade de estilização. O signo
da cultura alinha-se ao processo de aliança fraterna entre Apolo e Dioniso, quando na
sua relação permite esculpir o visível da sua tonicidade. O visível da tonicidade é a
cultura, quer de um indivíduo ou de um povo. O visível aqui remete para o processo de
constituição da bela-harmonia tensa que é capaz de visibilidade no conjunto de
pulsões de um dado acontecimento, no caso de Nietzsche, do homem. Desse modo, a
bela harmonia-tensa é o signo da unidade de estilo de um povo, a sua cultura que
deveria se expressar “no mais pequeno olhar sobre o seu vestuário, os móveis, a
casa, o passeio pelas ruas da cidade, as visitas às lojas de arte”. (NIETZSCHE,
1873/1986, p. 16)
A conquista de si mesmo e a tarefa dos educadores.
Em Schopenhauer Educador Nietzsche tematiza as vantagens e os perigos da
ausência de um modelo que possa guiar os homens na constituição e conquista da
expressão da sua singularidade. A instituição de um modelo de homem, que teve a
ousadia e a coragem de esculpir a si mesmo em uma dada direção, apresenta-se ao
jovem filósofo, como imprescindível aos homens que almejam atingir o estatuto de
cultos, pois devido aos perigos que rondam a arte da escultura de si mesmo, corre-se
o risco de perder-se ou diluir-se nas exigências da Zivilization e da sua barbárie,
guiada, apenas, pelas exigências de conformidade, de utilidade e de uniformidade. A
tarefa dos educadores seria a de pavimentar o caminho que elevaria os homens até a
sua lei fundamental, até a conquista da sua celebrada forma. A imitação do modelo
garante a certeza de que apesar de árduo, o caminho da conquista de si é possível,
pois outrora outros o realizaram, nos legando eles mesmos como signos da conquista
de um belo ordenamento, no qual a distinção entre a invisibilidade das pulsões e
exterioridade das formas é abolida, onde a busca por um centro ou por uma periferia é
questionada. Para Nietzsche, é necessário analisar as duas máximas que guiam a
educação da sua época, a fim de delimitar o papel que os modelos e a educação têm
na arte da conquista de si.
“Uma exige que o educador deva imediatamente reconhecer o ponto forte dos seus alunos e dirigir todas as suas energias todas as suas forças e todo o raio de sol sobre esse ponto a fim de levar à maturidade e à fecundidade esta única virtude. A outra máxima quer, ao contrário, que o educador tire partido de todas as forças existentes, as cultive e faça reinar entre elas uma relação harmoniosa”. (NIETZSCHE, 1875/2003, pg. 143)
No questionamento dos elementos das duas máximas, que operam na
restrição do periférico, em prol de um centro único, ou desprezam o centro, em nome
do ordenamento da periferia, Nietzsche percebe o risco para a conquista da cultura,
expressa no rosto, no andar, no pensar e escrever do homem cultivado. Para
Nietzsche os modelos indicam que não é só possível, porém, necessário, orientar-se
por homens que não desprezaram a totalidade das suas capacidades, mas as
tonificaram, com a tenacidade da sua propriedade, acabando por configurarem-se
como educadores,
“Este educador filósofo com quem eu sonhava poderia, não se deve duvidar, não somente descobrir a força central, mas também impedir que ela agisse de maneira destrutiva com relação às outras forças; eu imaginava que sua tarefa educativa consistiria principalmente em transformar todo homem num sistema solar e planetário que me revelasse a vida, e em descobrir a lei da sua mecânica superior”. (NIETZSCHE, 1875/2003 pg. 143)
Para além de prefigurarem como signos de um belo estilo, os educadores têm
a tarefa de libertarem as potencialidades presentes nos indivíduos com fins a ampliar a
sua capacidade de esculpir a si mesmos, pois “teus educadores não podem ser outra
coisa senão teus libertadores”. (NIETZSCHE, 1875/2003 pg. 142)
Como questão, seriam esses os interesses que regulam as políticas
educacionais brasileiras? Como resistir às pressões, encontrar caminhos para a
prática de resistências ao sentido que se hegemoniza? Como encaminhar
resistências...
Referências.
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