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CISC CENTRO INTERDISCIPLINAR DE SEMIÓTICA DA CULTURA E DA MÍDIA CORPO Dietmar Kamper

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CISC

CENTRO INTERDISCIPLINAR DE SEMIÓTICA DA CULTURA E DA MÍDIA

CORPO

Dietmar Kamper

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“O espírito é a verdade existente da matéria, uma vez que a matéria em si

não tem nenhuma verdade.” GW.F Hegel

O corpo, do latim corpus, intenso no sentido de corpo morto dos

chefes e, mais tarde, no sentido de cadáver pode ser na verdade

considerado como natural ou original. De costume, como “resultado”

vital e ativo da evolução, ele é atribuído à pré-história e à história.

Isso deve dar às ciências humanas e sociais, e, particularmente, à

antropologia histórica, uma prioridade com relação às ciências da

natureza e às variantes da antropologia que tomam isso como

modelo. A medicina, por exemplo, é antes um fator de mortificação

do corpo, ao passo que a civilização é somente uma breve, embora

devastadora, fase da longa história do corpo, que deixa dentro de si

o corpo humano como um corpo-prótese, como uma construção

defeituosa e inservível para as viagens espaciais, como fator de

perturbação da espiritualização tecnológica, como resíduo não

integrável e fall out (precipitação) como “problema de varredura”.

Do ponto de vista de uma teoria da civilização, o corpo humano

esteve presente na qualidade de “objeto de troca”, de local de

aplicação – absolutamente não passivo –de repressões e

disciplinamentos que comumente apresentam-se sob a máscara da

emancipação. Da tese da soma-sema dos platônicos, o duplo jogo

de sujeição e libertação, repressão e produção (Foucault) foi

conduzido com a máxima intensidade até o presente imediato. O

fato de que a alma pode, enfim, ser descrita como cárcere, como

também as prescrições que se fazem valer na relação com o corpo,

não depende em última análise do fato de que esse cárcere

encontra-se com os muros arruinados. A tese de uma totalização da

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repressão e do disciplinamento surge no momento em que torna-se

claro o princípio da construção, e isto significa que o

desenvolvimento espiritual da humanidade formou uma órbita

imaginária que age, enfim, como uma espécie de cadeia para todos

os esforços materiais. O desejo está sujeito à lei em todos os

sentidos, e esse princípio, todavia, responde, ao mesmo tempo, a

um desejo de liberdade.

Por um lado o corpo se cansa, é mortal, precário; por outro, é

determinado como sexo, no duplo sentido de gênero (gender) e

sexo (sex). É produtivo e reprodutivo, gera e acolhe, age e é

dominado, submetendo-se de qualquer maneira ao assunto

preliminar de estar destinado a perecer. Somente um assunto assim

se mantém ligado à história da soberania humana. Todo o resto

acelera somente a sociedade disciplinar, a qual no seu estágio

“panottico” destrói aquilo que tenta novamente tomar o controle. No

corpo e nos seus sentidos, pode-se ler um história específica da

dor, da qual se retira uma das expressões da história do niilismo

europeu, ou seja, daquela direção espiritual que acaba no “nada”,

escrito com letras minúsculas.

Morte e sexualidade representam ainda as duas fraquezas

fundamentais do corpo, cargas de angústia primordial.

Historicamente, para dar adequada resposta a ambas existe uma

única estratégia da civilização: a transformação do corpo

(transitório) em imagem (eterna). Tal forma da relação com si,

baseada na remoção e no esquecimento, era inicialmente

reservada a poucos, porém desde algumas décadas é acessível,

em princípio, para todos. Isso quer dizer que algo de decisivo foi

modificado: a diferença entre a realidade corpórea e seu reflexo é

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menor. Há ainda unicamente imagens do corpo e essas imagens

têm uma tendência à eternidade. As imagens são monumentos da

vida que foi. Em uma palavra, a imagem é a morte. Somente na

dimensão do corpo desmembrado sabia-se haver uma vida com a

qual podia-se fazer alguma coisa. Por isso a categoria da dor

permanece imprescindível para uma antropologia histórica.

Ao começar uma projeção sobre o corpo na história, seu <<lugar

extremamente fantástico>> (Barthes), e o devido ceticismo a

respeito de um poder atual da fantasia, deve-se ainda alicerçar

numa crítica do abstrato. O suspeito se induz a dizer que a tão

enfatizada fantasmagoria da realidade moderna pôde contrastar o

jogo da imaginação somente porque essa, ligada à abstração

social, simula ultrapassar os corpos humanos (os quais, a rigor, não

podem ser transferidos), confirmando, desse modo, não obstante

sua posição parasitária, da aparência de ser uma atividade

“produtiva”.

Aqui seria necessário evidentemente registrar um acontecimento

desconcertante, embora já tenham passado muitos anos desde

quando era possível falar de um corpo absolutamente mudo, parece

chegado agora o momento do seu retorno. Ou, pelo menos se

multiplicam as estratégias mais disparatadas que apelam ao corpo

na teoria e na prática, e se refletem em sua “linguagem”, em sua

“imagem”. Seria, por esse motivo, oportuno tentar uma análise do

clima, e do espírito do tempo no qual, embora as velhas

hostilidades não tenham desaparecido, pode-se anunciar uma nova

compreensão do corpo.

Até agora viu-se na abstração, no “prescindir de” – das situações

opressoras de uma vida corpórea enredada no concreto – o

elemento característico do processo de civilização. Somente por

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meio desta generalização dos “esqueletos” idênticos e

identificadores do agir e do pensar pôde-se instalar aquele controle

orientado para aquilo que não vive, o qual, no seu crescimento

excessivo, precipita-se agora no contrário da ordem vivente. Em

toda parte, por isso, a simples continuação do processo de

civilização entra em crise. O corpo humano, recusando a própria

ternura condescendente exercita algo como uma “crítica prática das

relações”.

Trata-se, por conseguinte, de algo que está ocorrendo no âmbito do

processo de civilização que avança: o corpo se faz sentir,

inicialmente, de modo quase involuntário e não intencional, e age

pelo menos como fator de perturbação, senão como ocasião de

subversão. Pode-se interpretar isso dizendo-se que a abstração

social ultrapassou os limites bem além de onde o já habitual silêncio

do corpo é progressivamente interrompido”. O projeto da civilização

voltado para um distanciamento cada vez maior, repressão e

normalização da vida corpórea visando-se produzir contribuições

produtivas e instrumentais sempre mais elevadas, seja no campo

prático, seja no campo teórico, parece não ter proceder

posteriormente. A incorporeidade potencializada da terceira

revolução das forças produtivas, a eletrônica, encontra claramente

resposta numa multiplicidade de formações simbólicas e

sintomáticas do corpo, as quais reportam – talvez também somente

destrutivamente – de novo em jogo a verdadeira força produtiva; por

outro lado, isso “condena” antes de tudo a reflexão, a simples

função suplementar. Esse estágio particular e, a muito custo,

compreendido da história do corpo repousa sobre um

desenvolvimento que apresenta algumas dificuldades para a

elaboração teórica. Por um lado, de fato, inclusive a teoria que se

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ocupava de tais questões se achava até agora inteiramente sob a

influência da separação cartesiana de res cogitans e res extensa;

por outro lado, o próprio caráter silencioso do “objeto” impediu uma

historiografia apropriada. Somente a partir da II Guerra Mundial

quando a Dialettica dell'iluminismo (Horkheimer, Adorno 1947),

despedindo-se da filosofia da subjetividade de Cartesio, oferece o

ponto de partida de uma “história subterrânea do corpo”, é tornada

possível uma nova meditação sobre o que é fundamental e o que é

parasitário na sociedade.

Recentemente revela-se devastador para o corpo e para o espírito,

a tematização das conseqüências que são produzidas na relação

social com a natureza interna e externa ocorrida essencialmente em

duas etapas. Enquanto numa primeira etapa considerou-se os perfis

de dita história subterrânea e se, numa tentativa fatigante de

reconstrução, evocou-se novamente e esclareceu-se no detalhe

histórico o aspecto removido e excluído da repressão secular (Elias

1978; Zur Lippe 1974; Kamper, Rittner 1976), a segunda etapa foi

percorrida particularmente por Foucault (1975): nessa fase era e

ainda é tratado um aspecto das relações entre poder e corpo que

completa e corrige o aspecto da repressão corpórea, e, isto é, da

dimensão de uma produção microfísica de novos estados da

corporeidade sob as (incontestadas) condições da repressão, a qual

se cruza com um desencadear-se das imagens-corpo que resulta

no equivalente à intervenção do imaginário no processo civilizatório

(Kamper 1989). Os sucessos de ambas as etapas podem

“brevemente” serem reassumidas como segue.

De modo semelhante à relação com a natureza, com seus materiais

e figuras, inclusive na relação com o corpo humano impõe-se –

historicamente, a partir da Idade Média - um princípio organizador

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de domínio e desfrute, tendencialmente hostil, que por um lado

procura as leis genuínas do seu "objeto", e por outro negligencia-o

sem se importar com nenhuma das eventuais conseqüências

subsequentes. Num disciplinamento, inicialmente lento e específico,

das funções e das expressões corporais (modos de convivência,

formas de relacionamento, regras de boa educação), a "natureza

interna" é ativada para objetivos que se encontram no exterior, e o

corpo é submetido a uma global abstração social, de maneira a

funcionar simultaneamente em acordo e em desacordo com essa

abstração. Em longo prazo, sua espontaneidade é explorada e

utilizada para extrair energia. Nas fábricas, nas casernas, nas

escolas, nas prisões, nas hospedarias chega-se a um adestramento

surprendentemente unitário, cujo sentido, progressivamente mais

evidente, é aquele de uma cooperação voluntária dos homens. O

controle deve se transformar em auto-controle, a hostilidade entre o

espírito formador e a materialidade do corpo deve tornar-se um

assunto interno.

Tal instrumentação acelera-se sempre mais (certamente a partir da

época da industrialização) até ´chegar ao fato, hoje, de que o corpo

- agora, como base insuperável da socialização – parece negar seu

apoio auxiliador para uma posterior escalation do processo de

disciplinamento. O corpo humano é transformado em serviço - como

força de trabalho, atendente, aprendiz, objeto de observação e

objeto sexual, foco de doenças - além dos limites apropriados. Ele

deixa de trabalhar, torna-se impotente ou frígido, produz sintomas

crônicos, envia sinais cada vez mais incompreensíveis e confusos,

subtraindo dessa maneira “paulatinamente” os princípios

fundamentais para o princípio da organização social, aquela

instância abstrata e geral sob o domínio da natureza. Aqui parece

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residir a circunstância decisiva para tornar-se evanescente o que é

estável, a fúria do dissipar tudo o que é confiável. Se Nietzsche

podia ainda – por assim dizer «sobre o fio condutor do corpo»

(Schipperges 1975) – escapar para os espaços debilitados de uma

burocracia do intelecto, agora está igualmente expandida sobre o

planeta uma espiritualidade corpórea, sob forma de absolutos – ou

seja, liberados de tudo em si – procedimentos de controle, que as

exceções à regra do abstrato pode-se descobrir apenas em zonas

de reserva. Do todo inescapável transforma-se agora a

“produtividade do poder”, porque essa, devido à imprevisibilidade de

suas conseqüências, pode sempre ser novamente oferecida como

estratégia de solução própria àqueles problemas que provocou.

Em tal exacerbação a separação entre corpo e espírito ameaça

tornar-se total, trazendo conseqüências irreparáveis para ambos os

lados. As possibilidades de uma defesa simples mediante o corpo: a

mobilização, portanto, da sensibilidade ou de um “imediatismo

natural", feita valer positivamente, assim como se fez no início

sobretudo no âmbito da “teoria crítica", parecem agora escassas,

desde quando isto é uma microfísica do poder (Foucault), que

colocou em evidência que a produtividade histórica “da

autodisciplina” e do autocontrole sobre o corpo é bastante

penetrante e tem efeitos em grande parte irreversíveis. Isso é

motivo para se acreditar que justo os atuais movimentos de

emancipação (humanização do mundo do trabalho, cidadãos em

uniformidade, reforma da escola, moderno sistema penal, liberação

sexual, melhoria da assistência médica) faz somente adicionar,

conquanto sob o manto de uma “transformação emancipadora" do

corpo em imagens do corpo, a obtusidade do corpo classe no curso

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da história, não sustando de fato os processos de separação em

ação.

As estratégias, sobretudo à razão do que até este ponto foi

perfilado, se encontram sendo, em certo grau, desorientadas. Não

se pode tratar de prosseguir, às cegas, os processos de

valorização, nem parece possível praticar-se uma alternativa

plausível qualquer para a abstração social sem que essa seja

finalmente substantivada sob o princípio que pretende combater.

Nessa perspectiva, uma crítica concreta para a abstração é

impossível uma vez que, para a identificação de uma lógica

substantiva é imprescindível um procedimento lógico, ficando assim

aberta a porta para uma conciliação. Para que o "inimigo" possa

estabelecer as armas ou arsenal bélico, a armadilha é inevitável.

Uma única possibilidade parece consistir em fazer o corpo voltar a

falar, mobilizando-o contra as imagens que o cercam. Como

trabalhos preliminares para essa finalidade pode-se considerar

vários recursos a fragmentos de uma (amplamente distruída)

linguagem corporal, os gestos, as formas de comunicação não

verbal, e dessa forma também, as muitas terapias do corpo, seja

esse de procedência asiática ou euro-americana. Com base numa

consideração análoga, um objetivo de primeira importância seria a

redescoberta do corpo como um «arquivo da história da

humanidade» (Nietzsche), a qual mostra-se no trabalho teatral, nas

artes corpóreas e também nas ciências humanas orientadas

sociologicamente.

Mesmo somando-se tudo em esforços semelhantes obteria-se

apenas um ganho de tempo. A resistência que interessa aqui não

pode partir do corpo. É de preferência no vértice da reflexão, e essa

reflexão deve estar totalmente progredida na disputa das divisões,

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das separações e das fraturas, as quais necessitam deste

investimento. Para um tal movimento de pensamento deve-se

garantir a ajuda dos corpos animados, porém o adversário, que está

literalmente nos calcanhares da humanidade civilizada, pode ser

abalado somente por uma força que contribuiu para colocá-lo no

trono.

É tempo para uma crítica não reacionária à modernidade, para um

investimento não referente às situações históricas, mas sim a

respeito das forças históricas. Até agora as críticas à modernidade

foram preferivelmente conservadoras, mobilizaram reais ou

presumidas verdades de sempre contra a desventura.

Recentemente conduziu-se a crítica do ponto de vista do "pós-

moderno”, e apontou-se para uma dissolução dos resíduos do

sentido da história (com base no mote: aquilo que cai está

derrotado) e ao invés do futuro optou-se por "seguir a imperfeição",

seguindo rotas laterais, vias transversas. Ambas as perspectivas,

ou ambas as procedências, negam a história, isto é, seja o seu

curso real desde o fim da Idade Média, seja o "fundamento

transcendental" da sua possibilidade: o fantasma misterioso do

corpo.

Deve-se conseguir desconstruir a conexão linear do progresso, sem

que para isso seja necessário suspender qualquer futuro. Decisiva

nesse sentido é a ascensão da reversibilidade das direções

fundamentais históricas. A estrela polar de tal reconstrução não é a

idéia de que a linha se feche novamente num círculo, mas que o

centro móvel de um mistério corporal abra tanto mais o futuro

quanto o passado permanece mais presente.

A crítica da violência, representada pelo próprio pensamento, pode

somente ser ainda um pensamento: a fantasia exata (Goethe).

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Refere-se ao quanto é retido na mente para evitar recair em

irracionalismos racionalmente determinados. A força que conta

historicamente é a imaginação, uma faculdade que Goethe vê

construída conforme a medida do corpo humano: uma síntese

concreta dos sentidos, por um lado determinante pela apropriação

de um mundo imperfeito e, adicionalmente, para liquidar todo o

excesso, do outro lado separável da concreção corpórea no espaço

e no tempo somente ao preço de uma falência. Somente sob a

condição de que o corpo não a tenha abandonado, a "fantasia

exata" é confiável. Ao avançar para mais além, essa fantasia

transforma-se naquela vaga fantasmagoria que colabora com o

poder e comporta o fim de toda sensibilidade. Somente, portanto,

sob a condição dos corpos contingentes, uma desaprovação da

razão dominante pode livrar-se à sombra do poder e pode levar

adiante uma autocrítica. Todavia, isso produz-se necessariamente

das manchas escuras que impedem que a história da separação

hostil do corpo e do espírito torne-se perfeitamente visível. Na

verdade, como em toda reconstrução teórica que leva em conta

também o destino da teoria, esta última serve de embaraço a si

mesma.

Deste modo mostra-se uma contingência que, em definitivo, dá

conta da perfeição do discurso ao invés de suprimi-lo artificialmente

(como no caso de uma razão espacial e extra-temporal). A fantasia

exata, por conseguinte, é uma imaginação corpórea que se pode

desenvolver somente nos tempos e nos lugares determinados,

fisionômica até dentro dos corações; está ligada intimamente ao

alfabeto visível do corpo, e está sempre sobre indícios dos traços

das correspondências que, mesmo depois da "repressão" e da

"emancipação", ainda são legíveis. A imaginação, nessa

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perspectiva, se mostra como o espelho reflexivo da própria vida:

sobre o ponto de costura do corpo com o espírito joga-se aquelas

cenas que são vistas como fundo de antecipação e residual dos

dramas históricos e biográficos. Além disso, a reconstrução

procede como uma arqueologia. Seus materiais são os (mudos)

testemunhais no percurso do emudecimento do corpo, aqueles

números simbólicos que no contexto da história permanecem

enigmáticos e devem ser traduzidos para uma outra, até agora

menos exercitada, linguagem. Também neste conflito de dois tipos

de leitura age a rachadura secular da qual se está aqui tratando.

Essa consiste na ambivalência da civilização que, na primeira

leitura, emerge como sistemática apropriação da natureza, para

universalização (espiritual) dos particulares (corpóreos), na

segunda. Como abstração impossível de deter, como formalização

de qualquer conteúdo. De Hegel, até agora entendido como

concreto universal, o sistema cumprido da mediação espiritual é

enfim mostrado como movimento no vazio, que – numa permanente

repetição – faz supor uma corporeidade sem espírito sob uma

espiritualidade sem corpo.

Não era, portanto, um retorno do corpo que cá e lá anunciava-se há

algumas dezenas de anos. Não era a liberação da sensibilidade,

das necessidades e desejos humanos, aquela que já se festejava

em impetuosas e programáticas porfias de posição. Essas imagens

que retornam foram imagens do corpo, colocadas em cena para os

olhos, um dilúvio de publicidade erótica. Eram imagens até o início

mediado que exercitavam claramente constrições semelhantes

àquelas das estratégias de socialização, dos projetos educativos e

dos paradigmas de civilização. Isso que se manifesta foi, na sua

perfeição, um novo tipo de imaginário, o qual doravante, por meio

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de uma ampliada indústria cultural, produz inquietude e

insegurança, mas também fascinação e brilhante carreira da

aparência, seja no mundo da vida como nas ciências humanas e

sociais.

É preciso insistir nessa diferença: emancipação dos corpos sim,

porém em imagem, em efígie, no espelho. Se até agora

aumentaram as pressões das normas de civilização, educação e

socialização, essas eram e são agora "liberadas” em imagens

especulares, espectros, fantasmas corpóreos que exercem – até

retroativamente – poder e violência. Inclusive onde são

aparentemente espalhados (nos esportes, nos consumos, no sexo)

os corpos seguem as imagens, suas regras quase involuntárias;

uma vez que, concernente ao imaginário, nada é mais rechaçado

do que a suposição segundo a qual se teria um livre curso da

fantasia. A lógica das imagens funciona como uma armadilha. Tudo

isso é o êxito de um processo que foi preparado durante muito

tempo e impõe novos competidores que se proponham a pensar

nele.

Portanto, deve-se dar a uma próxima teoria do imaginário o mais

amplo perfil e a mais alta atensão. A velha divisão do trabalho entre

iconoclastas e iconodules já está há muito tempo superada; uma

nova edição dela seria esforço desperdiçado. O duplo pedido,

sendo a própria imagem, ainda antes do seu uso, criadora de luz ou

se ela contiver aquelas forças explosivas contra razão e intelecto,

necessárias para a superação dos vínculos não humanos, dissolve-

se a tensão paradoxal e a amplitude do perfil e de impostação do

problema mesmo antes que disso se possa tirar experiência e dar

formulações. Aqui, como em nenhuma outra parte, está em jogo a

angústia, a qual tem necessidade de elaboração própria e não

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deve, casualmente ser metodicamente rejeitada. Se é verdade que

nas ciências do homem o desejo vale como pai do pensamento,

então a angústia deve ser designada como mãe do método. Quem

não segue imediatamente o primeiro, dever opor resistência

também ao segundo. Isso significa que na antropologia a

implementação metodológica é decidida nas possibilidades do

conhecimento. Seria ideal proceder de maneira menos metódica

possível sem abrir inteiramente o uso ao arbítrio ou a exigências

absurdas.

De qualquer maneira, a atenção já foi endereçada a uma certa

direção. Os resultados das diversas teorias da civilização,

formuladas em vista do escopo, mostram um quadro complexo que

se deve ter bem em mente. A coação para repetir é o resultado de

uma ordem simbólica pervertida que não está mais em condição de

transmitir o segredo do tempo. Este último vaga livremente, e está

no momento privado de forma. Porém o imaginário é "atemporal",

como o sonho, não obstante sua ligação com o instante, e não se

presta a organizar em termos históricos a relação do homem com o

tempo. No "panotticismo" a transparência torna-se motor das

coações. Isso contrasta todas as esperanças colocadas sobre a luz

e sobre esclarecimento. De agora em diante são os muros feitos de

fantasmas luminescentes a enjaular os homens. Isso que no melhor

dos casos pode “panotticamente" emergir é o caráter aprisionador

das imagens. A indústria cultural faz seus exercícios de civilização

utilizando um modelo. de mito e de modernidade todo aparafusado

em si mesmo. A precipitação irremediável da razão em loucura

deve ser impedida com um espelho que é feito do mesmo horror

que mostra. A mimese do apavorante, a dispersão programática da

arte moderna, como no perigo da estetização, da repetição, do

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redobramento simulativo. No conceito reificado de homo clausus

(Elias 1978, Introduzione), a angústia é transformada em método. A

imagem científica do homem produzida pelas ciências humanas e

sociais serve como construção defensiva, a qual permite não

perceber a contraditoriedade e a multiplicidade da existência

humana. Todavia fez-se isso retroagir teorizando-se normas que

são seguidas na prática. Isso depende da não determinação da

natureza humana e da maneabilidade de um concerto que fala

também à segurança, objeto das ciências. Quem, em uma reflexão

antropológica da mais ampla respiração, segue esse movimento

circular autoreferencial pode fazer uma boa idéia da potência do

imaginário.

Existem três versos isolados de Hòlderlin que Norbert von

Nellingraffi propôs para o tardio hino Mnemosyne. Esses, dobrando-

se ao nível do sinal pela ascensão da imaginação em direção à

razão e, caracterizando de modo próprio as conseqüências da

espontaneidade criativas dos sinais, contrastam expressamente

com a versão hegeliana do distender-se da memória humana: Ein

Zeichen sind wir, deutungslos / Schmerzlos sind wir und baben fast /

Die Sprache in der Fremde verloren» (Nós somos um sinal não

significativo, / indolor, quase havíamos perdido / no exílio a

linguagem », Hòlderlin 1943, trad. it. p. 695).

Lembre-se: Mnemosyne, a memória profunda da humanidade, foi a

amante de Zeus durante nove noites, por essa razão a mãe das

Musas. Hòlderlin considera provável a perda dessa memória, pelo

menos aquela da sua ressonância no interior do mito. Ao mesmo

tempo, ele remete-se ao puro fato de um vestígio comemorativo que

nenhum dos dois pode ser removido: «Nicht vermògen / Die

Himmlischen alles. Nàmlich CS reichen / Die Sterblichen eh an der

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Abgrund. I Also wendet es sich, den Echo, / Mit diesen. Lang ist /

Die Zeù, es ereignet sicli aber / Das Wahre» (Não posso tudo / i

Celesti. Prima / os mortais atingem o abismo. / Volta-se assim o eco

junto a eles. / Longo é o tempo / mas a verdade aparece »,

Hòlderlin 1943, trad. it. p. 695).

O contraponto de Hòlderlin refere-se a um grafismo da dor que

simplesmente nada significa. No sinal o tempo torna-se suportável.

Somente no tempo os acontecimentos são possíveis e sua verdade

narrável, porém o íntimo da experiência é desprovido de sentido. A

memória do corpo não conta nenhuma história, porém consta de

marcas que talvez atestem a realidade dos deuses, aquela que uma

vez ardeu na carne dos homens.

Exatamente aqui não passa do limiar, da linha de separação entre a

escritura e a matéria. Até o "saber" das células ter o caráter de

escritura. Os conhecimentos mais recentes confirmam de modo

inaudito a tese do micro-macrocosmo que percorre

subterraneamente a tradição ocidental. O corpo mostra a mesma

estrutura do muito pequeno e do muito grande: da dupla hélice até a

espiral cósmica, aqui são constantes cifras de tipo astronômico,

geológico e genético, que voltam ao corpo como vestígios de

escrituras. Portanto, o corpo jamais esteve nu. Ele sempre serviu

como fundo memorial para inscrições pré-históricas, históricas e

biográficas.

Também a cultura humana tem, desde o início, funcionado como

escritura codificante, como tatuagem universal, que sinalizava

cicatrizes conforme as medidas dos grandes ordenamentos. O

assim chamado imprinting da primeira infância, que tanto de

decisivo antecipa, nada mais é do que isso. Estruturas inter-

estelares se impõem sobre o corpo sob a forma de constelações

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familiares, conforme as seqüências das fases sensíveis dos

sentidos humanos. Assim opera a ordem simbólica: impõe uma

escritura corporal que não pode mais ser cancelada da qual está

tocado. Aquilo que é dito "natural" torna-se por conseguinte cada

vez mais improvável a medida que se vai adiante na arqueologia

dos escritores de protocolos. O corpo é até no seu íntimo o lugar de

uma penetrante imaginação que funciona como um espelho do

universo.

E, contudo, a pergunta sobre que coisa está do outro lado da

escritura, a matéria, e que coisa possuía-se propriamente, não está

assim reduzida ao silêncio. Na reflexão sempre houve uma

incessante busca pelo não escrito, pelo <<outro corpo>> (Kamper;

Wulf 1984) que jaz além da ordem escritural. Nessa busca se

apresentou o problema de constituir, no interior da linguagem, uma

não-língua que pudesse valer como garantia da realidade não

linguística dentro da língua: o resto, o recusado, isso que avança

quando tudo já foi escrito. Provavelmente trata-se da dor, que

sempre comparece quando falha a desesperada tentativa de deixar

para o corpo aquilo que lhe é peculiar enquanto se segue o

caminho da escritura. Alguma coisa não se resolve na ordem

simbólica. Disto trata a arte. Algo de selvagem fica para trás,

alguma coisa que procura os confins que deixam emergir o corpo

desmembrado e aquele sem órgãos, aquela realidade desértico-

arenosa da pele humana. A ainda enigmática divisão do corpo

numa marionete quase sem matéria e num punhado de terra quase

sem escritura é atual, aquele corpo que vemos avançar através de

uma cadeia de luto, melancolia e depressão. Presumivelmente, ao

cume da modernidade, o homem reage cegamente para uma

direção , abandonando-se, na sua procura por um programa

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tecnológico substitutivo da vida, para um redobramento espiritual do

corpo sinalizado pelas escrituras; por outro lado, ele reage

depressivamente, com insustentável carga, a essa escritura do

mundo tornada abstrata e levada de modo irritado até o

autocontrole.

Próprio à leitura de Hegel, o qual não obstante não admite dúvidas

sobre o sentido histórico da abstração social das relações, torna

involuntariamente claro isso que mais tarde Nietzsche chamou de "a

atrocidade da mnemotécnica". Na sua psicologia (Hegel 1970)

Hegel segue no homem o «transformar-se espírito da natureza»,

atribuindo ao sinal um papel decisivo. O auto-estranhar-se do corpo

humano que acontece no processo de significação é reconhecido e

elogiado por Hegel como o passo mais denso de conseqüências da

civilização primitiva. Sobre esse ponto ele omite o lamento de

Hòlderlin, porquanto – presumivelmente – o tinha escutado.

A imaginação tem [...] em si mesma três formas nas quais se

estende. Isso é em geral o que determina as imagens. Em primeiro

lugar, essa não faz nada além de determinar as imagens a entrar no

ser determinado. Essa é assim a imaginação puramente

reprodutiva. Esta última tem o caráter de uma atividade puramente

formal. Em segundo lugar, porém, a imaginação não se limita a

chamar para si as imagens que estão presentes na lei, mas as

coloca em relação entre si e deste modo as eleva a representações

universais. Nesse nível, a imaginação aparece conseqüentemente

como a atividade da associação das imagens. O terceiro nível [...] é

aquele no qual a inteligência identifica a próprias representações

universais com a particularidade das imagens, com isso dando-lhes

uma existência figurada. Esse ser determinado sensível tem a dupla

forma do símbolo e do sinal; de modo que esse terceiro grau

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compreende a fantasia simbolizante e aquela significante, a cuja

ultima se constitui a passagem para a memória.

(Hegel 1970, trad. it. pp. 314-315)

Já nas discussões de Hegel com os românticos, tal bela sucessão

foi atacada. Friedrich Schlegel chamou de «arabesco» o tema

primitivo da imaginação, Novalis a chamou de a «imagem de si».

Que isso em Hegel se manifeste segundo uma seqüência

processual deve-se à sua concessão da abstração, a qual, no

interior da fenomenologia do espírito, na ciência da experiência da

consciência, assume uma classe mais tardia, por ser mais elevada.

Em todo caso, é ele mesmo que observa com precisão o

contraponto de Hòlderlin:

A fantasia [significadora] é o ponto médio, no qual o universal e o

ser, o próprio e o que é inventado, o interior e o exterior, são

fundidos numa unidade perfeita. [...] Enquanto atividade que opera

esta unificação, a fantasia é razão [...]. Precisa declarar que o sinal

é algo de grande.

Quando a inteligência designou alguma coisa, essa se

desembaraçou do conteúdo da intuição, e deu como alma ao

material sensível um significado estranho a ela. [...] O caráter

arbitrário, que aqui aparece, da ligação da matéria sensível com

uma representação universal, tem como conseqüência necessária

que precisa antes de mais nada aprender o significado dos

símbolos. [...] O sinal á uma intuição imediata qualquer, que

representa um conteúdo completamente diferente daquele que tem

por si mesma: a pirâmide, na qual é transposta e conservada uma

alma estranha. O sinal é diferente dos símbolos; intuição, esta

última, cuja determinação própria, quanto à essência e ao conceito,

coincide mais ou menos com o conteúdo que essa exprime

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enquanto símbolo. No caso do sinal enquanto tal; pelo contrário, o

conteúdo próprio da intuição e aquele do qual é sinal, não têm

nada que ver um com o outro. Enquanto significativa, a inteligência

demonstra portanto um arbítrio e um domínio no uso da intuição

mais livre do que não enquanto criadora de símbolos. [...] Esta

atividade criadora de sinais pode ser chamada principalmente de

memória produtiva (a Mnemosyne inicialmente abstrata), uma vez

que a memória [...] não tem absolutamente nada a fazer com os

sinais. A intuição [...] uma vez empregada como sinal, recebe a

determinação essencial de ser assim somente quando superada.

Essa sua negatividade é a inteligência: por isso, a figura mais

autêntica da intuição-sinal, é um ser determinado no tempo.

<Hegel 1970, trad. it. pp. 318-321)

Isso que na experiência do espírito – o tema de Hegel – aparece

como passagem conseguinte do concreto para o abstrato, poderia

ser desenvolvido na história do corpo exatamente ao contrário. O

fato de uma primitiva abstração do sinal, muito antes da capacidade

do concreto, é, deveras, sempre enigmático. Que coisa induz, por

exemplo, as crianças, nos seus primeiros desenhos, a encontrar

para o homem, animal, árvore, casa, nave etc., figuras que não são

abstratas de aparições reais, porém preferivelmente, ao contrário,

oferecem modelos para a percepção da realidade? Como se pode

compreender, por exemplo, a densidade dos sinais paleolíticos, que

também precedem de muito as pinturas das cavernas? Na resposta

a tais perguntas ocorrem assumir uma correspondência, até hoje

não decifrada de fato, entre o corpo sinalizado escrituralmente e a

capacidade de contar e figurar. Provavelmente tudo isso tem a ver

com o nascimento da linguagem humana e com a configuração com

base na cruz da imagem do homem.

21

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Este texto foi extraído do livro “Cosmo, Corpo, Cultura. EnciclopediaAntropologica. A cura di Christoph Wulf. Ed. Mondadori. Milano. Italia. 2002.