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BIANCA FERREIRA RODRIGUES CIRCULAÇÃO DO DISCURSO EM UMA INSTITUIÇÃO APAQUEANA: UM ESTUDO CRÍTICO NA PERSPECTIVA PSICANALÍTICA São João Del-Rei PPGPSI-UFSJ Março 2018

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BIANCA FERREIRA RODRIGUES

CIRCULAÇÃO DO DISCURSO EM UMA INSTITUIÇÃO

APAQUEANA: UM ESTUDO CRÍTICO NA PERSPECTIVA

PSICANALÍTICA

São João Del-Rei

PPGPSI-UFSJ

Março 2018

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BIANCA FERREIRA RODRIGUES

CIRCULAÇÃO DO DISCURSO EM UMA INSTITUIÇÃO

APAQUEANA: UM ESTUDO CRÍTICO NA PERSPECTIVA

PSICANALÍTICA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em

Psicologia da Universidade Federal de São João del Rei, como parte

dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Psicologia.

Área de Concentração: Psicologia

Linha de Pesquisa: Fundamentos Teóricos e Filosóficos da

Psicologia

Orientador: Fuad Kyrillos Neto

Co-Orientador: Wilson Camilo Chaves

São João Del-Rei

PPGPSI-UFSJ

Março de 2018

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Ao meu padrinho, Antônio de Castro, por

todo apoio durante meu percurso e por

sempre ter acreditado em mim.

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AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer a todos que tornaram possível a travessia por essas veredas de

conhecimento, de autoconhecimento e de superação. Primeiramente à minha mãe, Anália,

que sempre me incentivou a seguir meu coração, mas nunca deixando de ser um exemplo de

pessoa dedicada e batalhadora. Agradeço também aos meus avós, José e Maria, pelo ombro

amigo e pelo porto seguro ao qual eu sempre pude recorrer. Aos meus tios e tias, em especial,

Antônio e Maria da Penha, pessoas que nunca hesitaram em auxiliar o próximo, mesmo que

prejudicando a si mesmos. À minha irmã Helena, que sempre foi um incentivo para que eu

melhorasse, para que fosse um bom exemplo a ser seguido. Aos meus amigos, que me

acompanharam nessa jornada, em especial à Luma e ao Miguel, companheiros que eu levo

sempre comigo; à Samira, Aline, Lívia, Mariana e Anna, apesar dos tropeços pelo caminho;

à Amanda, Pedro, André, Gustavo e Luan, pelos momentos de apoio e de descontração; à

Christiane e Juliana, pela parceria que me proporcionou um grande crescimento. Ao meu

melhor amigo e, sorte a minha, companheiro, Antônio Marcos, pela cumplicidade, pelo

apoio e pela leveza que leva por onde passa. Agradeço aos professores do NUPEP, pelo

aprendizado durante todo o meu percurso pela psicanálise, em especial Maria Gláucia,

Roberto e Pedro. Agradeço imensamente aos meus orientadores: Fuad e Wilson, pelo

incentivo, pela compreensão e pela extrema humanidade no trato com o outro. À

Universidade Federal de São João del-Rei, por possibilitar a minha formação profissional.

À CAPES, pela concessão da bolsa de mestrado

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RESUMO

Este trabalho tem por objetivo mapear os impasses e os pontos de tensão que se colocam a

partir da tentativa de recuperar criminosos por meio da terapêutica penal denominada

método APAC (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados). Para tal, iniciaremos

nosso percurso realizando uma caracterização de tal método, primeiramente a partir de uma

revisão histórica do desenvolvimento de sua filosofia e de sua instituição e, posteriormente,

caracterizando como o método se apresenta nos dias atuais, incluindo sua dimensão

institucional e a sua materialização no cotidiano. Realizaremos uma revisão da crítica

psicanalítica à religião, a partir das obras de Freud e Lacan, tendo como base a religião que

se presentifica no método APAC e realizando um percurso desde o seu surgimento, até o

que se acredita que será seu futuro, passando pelas relações entre a religião e as instâncias

do real, simbólico e imaginário. O conceito de ideologia será então utilizado como forma de

refletir acerca da religião apaqueana a partir de sua inserção política e social. Nos

debruçaremos no conceito de ideologia enquanto discurso, materialização deste discurso em

Aparelhos Ideológicos de Estado e em sua dimensão fantasística que se volta para a tentativa

de construir um todo social harmonioso utilizando-se da figura do criminoso como a

encarnação do que deve ser extirpado. Por fim, a concepção de sujeito para a psicanálise nos

possibilitará a reflexão acerca dos possíveis impactos da metodologia apaqueana nos sujeitos

que cumprem pena sob seus preceitos. O grafo do desejo será a direção pela qual seguiremos,

passando pelo surgimento do sujeito, pela constituição do eu e das identificações, pela

instalação do desejo e pelo que resta do gozo, reorganizado a partir das zonas erógenas. Com

isso, chegamos às considerações de que a APAC pode se constituir como uma alternativa

viável às formas de encarceramento praticadas no Brasil, desde que a religião não seja um

elemento obrigatório e que seus esforços se voltem para a construção de possibilidades de

saídas do crime, que cada sujeito irá se agarrar ou não, a partir de suas próprias escolhas.

Palavras-chave: Método APAC; Psicanálise; Religião; Ideologia; Sujeito.

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ABSTRACT

This work aims to map impasses and tension issues that arise from the attempt to recover

criminals through the criminal therapy denominated APAC (Association of Protection and

Assistance to the Convicted) method. In order to do so, this method is described, firstly from

a historical perspective of the development of its philosophy and its institution and, later,

characterizing how the method presents itself today, including its institutional dimension

and its materialization in everyday life. We carry out a review of the psychoanalytic critique

of religion, starting with works of Freud and Lacan, which are based on the religion, what is

present in the APAC method. Then we present the journey from its beginning to what are

the perspectives and expectations for its future, always considering the relations between

religion and the instances of the real, symbolic and imaginary. Therefore, this concept of

ideology is used as a way to reflect on the APAC religion from its political and social

insertion. The focus is the concept of ideology as a discourse, the materialization of this

discourse in Ideological State Apparatus and its fantastical dimension that turns to the

attempt to construct a harmonious social whole using the figure of the criminal as a

personification of what must be extirpated. Finally, the subject conception for

psychoanalysis enables the reflection on the possible impacts of the APAC methodology on

subjects who serve their sentences under their precepts. The graph of desire will be the

direction we will go, through the emergence of the subject, through the constitution of the

self and the identifications, through the installation of desire and what remains of enjoyment,

reorganized from the erogenous zones. Finally, it is shown how APAC can be a viable

alternative to the forms of imprisonment practiced in Brazil, provided that religion is not a

mandatory element and that its efforts are directed towards the construction of possibilities

of exit from crime, that each subject will grasp or not, from their own choices.

Keywords: APAC method; Psychoanalysis; Religion; Ideology; Subject.

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SUMÁRIO

LISTA DE FIGURAS.........................................................................................................10

1 INTRODUÇÃO...............................................................................................................11

2 ASSOCIAÇÃO DE PROTEÇÃO E ASSISTÊNCIA AOS CONDENADOS

(APAC)................................................................................................................................19

2.1 Raízes históricas e filosóficas do projeto teórico institucional: Pastoral Carcerária........19

2.2 Raízes históricas e filosóficas do projeto teórico institucional: o aspecto prisional.........26

2.3 Projeto teórico institucional: o método APAC................................................................34

2.4 O cotidiano institucional: orai e vigiai.............................................................................38

3 PSICANÁLISE E RELIGIÃO........................................................................................44

3.1 Às voltas com o real........................................................................................................52

3.2 Pelo caminho das ilusões.................................................................................................59

3.3 ...com destino à felicidade?.............................................................................................65

4 A RELIGIÃO EM SUA ACEPÇÃO IDEOLÓGICA...................................................68

4.1 A ideologia “Em-si”........................................................................................................70

4.2 A ideologia “Para-si”......................................................................................................77

4.3 A ideologia “Em-si-e-para-si”........................................................................................82

5 O SUJEITO LACANIANO NO CONTEXTO APAQUEANO....................................91

5.1 Grafo 1: A célula elementar do desejo.............................................................................92

5.2 Grafo 2: O imaginário.....................................................................................................94

5.3 Grafo 3: O simbólico.......................................................................................................99

5.4 Grafo 4: O real...............................................................................................................106

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................113

7 REFERÊNCIAS.............................................................................................................117

8 ANEXOS.........................................................................................................................122

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1. Grafo 1..................................................................................................................92

Figura 2. Grafo 2..................................................................................................................95

Figura 3. Grafo 3................................................................................................................100

Figura 4. Grafo do desejo completo...................................................................................107

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1 INTRODUÇÃO

Diante do crescimento alarmante do número de pessoas presas, a questão criminal

no Brasil tem sido alvo de discussões nos últimos anos, porém sem o impacto positivo

esperado nos níveis de violência, especialmente nos grandes centros urbanos. O Brasil

figura hoje na quarta posição do ranking mundial em número de presos, contando com

607.7311 encarcerados em junho de 2014 e ficando atrás apenas de Estados Unidos, China

e Rússia. Todavia, enquanto esses países vêm diminuindo sua taxa de aprisionamento nos

últimos anos, com destaque para uma diminuição de 24% na Rússia, o Brasil continua em

rápido crescimento, estimado em 33% no período de 2008 a 2014. Se considerarmos as

últimas décadas, os valores são ainda mais preocupantes. De 1990 a 2014, o crescimento

da população carcerária foi estimado em 575%; ou seja, o número de pessoas privadas de

liberdade em 2014 era 6,7 vezes maior do que em 1990.

O debate, entretanto, demonstra um clamor popular por mais rigor punitivo,

colocado em pauta mediante projetos de lei, como os que propõem a redução da

maioridade penal (PEC 171/1993), a privatização dos presídios (PL 3.123/2012) e a

criminalização da “pílula do dia seguinte” (PL 5.069/2013)2. Tais projetos refletem a

insatisfação da população com os níveis de violência e a sensação de impunidade

corroborada por discursos midiáticos que se valem de casos pontuais em prol de uma

veiculação sensacionalista. Concomitantemente, crescem os casos de linchamento e de

propagação de ódio, incluindo bordões populares, como bandido bom é bandido morto ou

tá com pena, leva pra casa – repetidos, inclusive, pela classe política, na tentativa de

angariar a simpatia dos desgostosos com a situação nacional.

No entanto, tal rigor punitivo pode ser considerado bastante seletivo. No Brasil,

dois a cada três presos são negros, mais da metade são jovens de 18 a 29 anos e 80% deles

têm, no máximo, o Ensino Fundamental completo. Isto é, trata-se, em sua maioria, “de

jovens negros, de baixa escolaridade e de baixa renda” (Departamento Penitenciário

Nacional, 2014, p.6). Além disso, a maior parte dos presos no Brasil foi destinada a

cumprir até oito anos de prisão, mas cerca de 40% das pessoas privadas de liberdade ainda

1 Os dados acerca da população carcerária brasileira foram obtidos do Levantamento Nacional de

Informações Penitenciárias (INFOPEN). Recuperado em 20 de fevereiro, 2015, de

http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2015/11/080f04f01d5b0efebfbcf06d050dca34.pdf 2 Projetos de lei (PL) e Propostas de Emenda à Constituição (PEC) recuperados em 12 de janeiro, 2016, de

http://www.camara.leg.br/buscaProposicoesWeb/pesquisaSimplificada

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não receberam condenação – a mesma proporção de pessoas encarceradas no regime

fechado.

Diante de tal panorama, faz-se importante destacar que as demandas por ferocidade

penal e sua seletividade são permanências histórico-culturais. Seguindo o modelo de

Portugal, após a independência, as elites brasileiras passaram a incorporar alguns aspectos

da modernidade, mas sem abrir mão do autoritarismo absolutista (Batista, 2009). Um

exemplo claro era a grande facilidade processual para se decretar a pena de morte para réus

escravos em contraposição à invulnerabilidade a ela de seus senhores. Posteriormente, a

transição da ditadura para a democracia trouxe consigo grandes investimentos na “luta

contra o crime”, contribuindo para a manutenção de uma ordem desigual e hierarquizada

(Batista, 2009, p. 22).

Atualmente, são diversos os mecanismos que contribuem para a manutenção desse

status quo. A nova lei de drogas, promulgada em 2006; a imposição do regime fechado de

forma indiscriminada e a permanência nele por mais tempo do que o legalmente previsto; o

alto índice de prisões preventivas e a duração delas por mais de 90 dias; o poder do

flagrante e as denúncias de forjamento deles pela polícia; entre tantas outras que podemos

citar (Rede Justiça Criminal, 2016), soma-se a isso a dificuldade de obtenção e de

consolidação de dados relativos à população prisional. Durante o último senso realizado,

por exemplo, São Paulo, estado responsável por um terço da população prisional brasileira,

não forneceu dados ao Ministério da Justiça.

Consolida-se, dessa forma, um processo de encarceramento em massa e

criminalização da pobreza, no qual a prisão parece ser a principal perspectiva dos jovens

nas favelas (Batista, 2009). Jovens que são submetidos a condições sub-humanas de

cumprimento de pena, em locais superlotados, insalubres e violentos. Segundo o relatório

da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), realizado no sistema carcerário nacional, o

Brasil apresenta inúmeras violações de direitos dos presos, incluindo falta de assistência

médica, ausência de nível adequado de higiene, alimentação deteriorada, água insuficiente,

ausência de banhos de sol e celas superlotadas com pouca iluminação e precária ventilação.

Os depoimentos do relatório impressionam:

As celas têm 1.80 de altura (sem janelas), são quentes e escuras, lembrando um

calabouço. Ao meio dia, a temperatura ultrapassa os 40 graus. O mau cheiro

denuncia a sujeira: urina apodrecida misturada com fezes, restos de comida azeda e

suor de homens sem banho por dias. (Câmara dos Deputados, 2009, p. 97)

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Além disso, também foi detectada a violência dos presos entre si e com os agentes

em cotidianos que comportam maus-tratos, espancamentos, torturas e mortes. No primeiro

semestre de 2014, foram registradas 565 mortes nas unidades prisionais brasileiras sem

contar as unidades de São Paulo e do Rio de Janeiro, que não forneceram essa informação.

Destas, “cerca de metade podem ser consideradas como mortes violentas intencionais”

(Departamento Penitenciário Nacional, 2014, p. 115), como o caso relatado à CPI

carcerária, em que uma mulher foi morta com cacos do vazo sanitário, no presídio de

Colatina, Espírito Santo. Apesar dos gritos de socorro, ela teria permanecido por horas

agonizando na cela sem forma alguma de auxílio (Câmara dos Deputados, 2009).

Entre as poucas experiências positivas encontradas durante a realização da CPI

carcerária, tiveram destaque no relatório as Associações de Proteção e Assistência aos

Condenados (APACs) de Minas Gerais, figurando no primeiro lugar do ranking das

melhores unidades prisionais do País. Para eles, as APACs representam experiências

vencedoras, cuja filosofia revolucionária vem trazendo ótimos resultados. Diante disso,

foram apontadas, inclusive, como “a grande alternativa para a ressocialização de quem

pratica uma infração penal”. (Câmara dos Deputados, 2009, p. 445)

Mário Ottoboni foi o precursor e idealizador da metodologia APAC, que surgiu em

São José dos Campos em 1972. Naquela época, o trabalho realizado era voltado

principalmente para a assistência espiritual dos detentos, configurando-se como uma

experiência de pastoral carcerária. Com o passar dos anos, o método se expandiu e foi

exportado para outros Estados do Brasil e, até mesmo, para outros países do mundo,

destacando-se atualmente como uma terapêutica penal amplamente apoiada por estudiosos

e autoridades. Porém, apesar das modificações que sofreu, permanece a religião cristã

como base fundamental do método, sendo seu principal objetivo a valorização humana

realizada por meio da evangelização.

Dessa forma, constitui-se a religião cristã, especialmente a religião católica, como o

fundamento filosófico do método, que se propõe a recuperar criminosos por meio da

evangelização. A proposta tem em si um viés moralizante, que não se interessa por uma

mudança de posição subjetiva, mas se volta para o estabelecimento da obediência a Deus,

às leis e aos bons costumes. As intervenções realizadas se localizam em níveis discursivo e

comportamental, numa dinâmica semelhante aos conventos ou seminários, nos quais os

indivíduos trabalham corpo e mente com o objetivo de moldá-los em um novo ser.

Diante da situação alarmante encontrada no sistema penitenciário nacional e do

rápido crescimento do método APAC como alternativa a esse cenário, consideramos

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relevante a construção de um estudo acerca de tal método a partir da perspectiva da

psicanálise. Assim, neste estudo, temos como objetivo principal mapear os impasses e os

pontos de tensão que se apresentam a partir da tentativa de recuperar criminosos por meio

de tal terapêutica. A análise da circulação do discurso em uma instituição apaqueana do

interior de Minas Gerais será central para a nossa exposição na medida em que nos permite

ter acesso à materialização da filosofia institucional em práticas e enunciados que se

colocam diariamente aos apenados ali presentes. Por outro lado, a construção de um grupo

de conversação, distanciado de tal filosofia, nos possibilitou a escuta dos sujeitos para além

dos rótulos do crime ou da religião.

Utilizaremos neste estudo a perspectiva da psicanálise, especificamente o método

da psicanálise aplicada, que não deixa de possuir conexões com a clínica, mas não se

restringe especificamente a ela. Para tanto, analisaremos a filosofia institucional por meio

das obras de Mário Ottoboni, assim como analisaremos o discurso dos sujeitos

encarcerados a partir de suas falas em um grupo de conversação conduzido pela

pesquisadora. Por meio dessas análises discursivas e de observações do cotidiano

institucional, temos a intenção de mapear os limites e as possibilidades do método APAC e

de seus propósitos.

A teoria psicanalítica não é essencialmente um método de produzir conhecimento.

Portanto, não é uma teoria explicativa, nem uma teoria descritiva, mas fundamentalmente

uma ética, que diz respeito ao sofrimento psíquico e suas variações (Dunker, 2013). O

pesquisador psicanalítico não tenciona apenas recitar autores ou validar aplicações, mas

antes construir uma problematização que não seja limitada pela confirmação da teoria

(Iribarry, 2003). Para isso, apropria-se do método freudiano e o singulariza, pois “retomar

um lugar de dizer não é a mesma coisa que repetir os ditos, mas, pelo contrário, abrir a

possibilidade de que ditos sempre novos possam se produzir” (Elia, 1999). Ou seja, não se

trata de uma repetição pura e simples dos mestres, mas da possibilidade de recorrer às suas

contribuições na construção do novo.

A psicanálise aplicada, especificamente, trata “de problemáticas que envolvem o

sujeito enredado nos fenômenos sociais e políticos, não estritamente ligado à situação de

tratamento” (Rosa, 2004, p. 333). Iniciada pelo próprio Freud, a partir da recusa da divisão

entre indivíduo e sociedade ou entre psicologia individual e social, foi retomada por Lacan

como psicanálise em extensão, representando a prática, o recenseamento do campo

freudiano e a articulação da clínica com ciências afins. Sendo importante destacar que, ao

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situar-se na dependência da clínica e ao basear-se numa concepção ética, esta se aproxima

de uma crítica social (Rosa, 2004).

No presente trabalho, utilizaremos não só a psicanálise aplicada, mas também o

discurso analisante a ela conectado, para, com isso, obtermos um método de investigação

compatível com a hipótese do inconsciente e sua correlativa divisão subjetiva. Como

sistematizado por Dunker (2013, p. 71), num primeiro nível de exigências metodológicas,

estão presentes as características essenciais ao discurso analisante: a “recordação”, que

pressupõe as dimensões histórica e contingencial; a “implicação”, que leva às

interrogações éticas acerca dos estranhamentos com que se depara; e a “transferência”, que

realiza articulações a uma suposição de saber. Já num segundo nível, estamos às voltas

com a relevância desse discurso, ou seja, com a necessidade de ele possuir algum poder de

generalização para a situação, caso ou acontecimento abordado. Como resultado final,

obteremos a particularidade e a universalidade num discurso que opera tanto em nível do

enunciado quanto da enunciação.

Levando em consideração a psicanálise aplicada e seus níveis de exigências

metodológicas, será feita a análise das anotações da pesquisadora acerca de um grupo de

conversação realizado na sede da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados

(APC) de uma cidade de médio porte do interior de Minas Gerais. Tal instituição conta

com aproximadamente 200 recuperandos sem distinção de crimes ou tempo de

permanência. Entre estes, cinco foram escolhidos aleatoriamente a partir do interesse em

participar do grupo, que teve frequência semanal e duração aproximada de uma hora.

Ao contrário das demais atividades da instituição, a participação no grupo de

conversação não possuiu caráter obrigatório, podendo haver desistências durante qualquer

momento de sua realização. Nos casos de desistência, houve substituição por outros

apenados que manifestaram inicialmente interesse em participar do grupo. Tal grupo de

conversação foi realizado como forma de roda de conversação sem a utilização de roteiros

ou questões previamente estabelecidas. Os temas foram escolhidos pelos próprios

recuperandos e trabalhados com o auxílio de algum material, como filmes, músicas e

notícias, entre outros. A pesquisadora se posicionou de maneira a deixar a conversa fluir

livremente com o mínimo de interferências possíveis. É importante ainda ressaltar que os

encontros foram realizados sem a presença de pessoas da instituição de modo que os

sujeitos não se sentissem coagidos a se posicionar frente às questões colocadas a partir do

institucionalmente prescrito.

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Além disso, foram levados em consideração todos os procedimentos éticos para a

realização de pesquisas envolvendo seres humanos, incluindo os termos da Resolução

66/12 e artigos referidos no protocolo de pesquisa do Comitê de Ética em Pesquisa da

UFSJ (CEPSJ)3. As anotações da pesquisadora foram feitas após o término de cada

encontro de maneira a selecionar seus aspectos mais significativos. Nessas anotações, não

houve a identificação de nenhum dos participantes, pois foram utilizados nomes fictícios e

apenas pequenos trechos de fala que se mostrassem relevantes ao desenvolvimento da

pesquisa. Tais registros foram feitos como forma de anotação livre pela pesquisadora

contando com a sua memória. Ou seja, não foi realizada forma alguma de gravação de

áudio, filmagem ou fotografia. Dessa maneira, a privacidade dos participantes foi garantida

por meio da utilização de nomes fictícios, da não divulgação de qualquer informação

pessoal e da não utilização de nenhuma informação que possa ser relacionada a algum

participante específico do estudo. Dados pessoais, como endereço, filiação ou telefone

permaneceram e permanecerão em completo sigilo.

A análise a ser realizada terá como base os procedimentos utilizados na práxis

psicanalítica, quais sejam: uma escuta flutuante, isto é, descentrada do tema central, um

recorte do texto privilegiando temas, expressões, brechas e palavras; e uma reconstrução

desse texto, que permita ao analista criar ali um sentido que desvele o subentendido,

trazendo à tona outra verdade sobre o texto.

O percurso se iniciará com uma exposição acerca da metodologia apaqueana. Por se

constituir como um fenômeno extremamente complexo, utilizaremos diferentes enfoques

para dizer de sua história, sua evolução, sua constituição atual e sua aplicação. O início

como Pastoral Carcerária fundou bases religiosas que sustentam ainda hoje as práticas

realizadas e resultam num cotidiano de disciplina, trabalho, estudo, comprometimento e

respeito. O respeito aos direitos dos presos e a garantia das condições necessárias ao

cumprimento de pena são características indiscutivelmente louváveis, mas a circulação do

discurso numa instituição apaqueana demonstra elementos que suscitam nosso debate.

Um desses elementos é justamente a religião, especificamente a utilização da

religião com o objetivo de recuperar criminosos. Assim, serviremo-nos das considerações

de Freud e Lacan para realizar uma exposição sobre as ideias religiosas, especialmente

aquelas que versam acerca do surgimento da religião, de sua relação com o Real, do seu

caráter de ilusão e do que se acredita que será seu futuro. Por se tratar de uma aplicação

3 A aprovação do presente estudo pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFSJ pode ser confirmada através do

portal Plataforma Brasil (https://plataformabrasil.org.br/) pelo CAAE: 54987316.7.0000.5151

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específica da religião, procuraremos sempre relacionar as ideias psicanalíticas ao método

APAC e aos seus diversos discursos.

No próximo capítulo, o método APAC será analisado a partir do conceito de

ideologia. Em sua face discursiva, podemos situar a ideologia como a difusão de crenças e

valores por um poder dominante, de modo que se tornem aceitas como naturais e

inevitáveis, moldando a compreensão da realidade para se favorecer. Como instituição,

temos a materialização desse discurso em um Aparelho Ideológico do Estado (AIE)

englobando os indivíduos em suas práticas. E, por fim, temos a dimensão fantasística, na

qual um elemento do edifício simbólico é responsável por fechar o círculo da realidade ao

mesmo tempo em que encarna sua impossibilidade imanente.

O método APAC é assim considerado, inicialmente, como uma formação textual

que pretende dissimular suas próprias intenções, mas que pode ser analisada mediante a

crítica sintomal da busca pelo sentido que emerge da própria distorção. Já em sua

dimensão material, podemos perceber que a ação dos indivíduos inseridos em suas

instituições dá origem à própria base ideológica que os submete numa lógica de criação

que se retroalimenta. Chegando ao último ponto de nossa exposição: o criminoso enquanto

o objeto fantasístico do universo ideológico apaqueano, aquele que representa o obstáculo

que deve ser combatido em prol da construção de uma sociedade harmoniosa, mas que

nunca será totalmente eliminado, demonstrando, assim, os impasses de tal projeto.

Por fim, dedicaremos um capítulo para a análise do possível impacto do método

APAC, enquanto discurso, instituição e método, naqueles que cumprem pena sob seus

preceitos. Para esta análise, utilizaremos trechos de falas que se presentificaram nos

encontros do grupo de conversação, realizado numa instituição apaqueana do interior de

Minas Gerais, bem como trechos do cotidiano institucional, os quais nos permitam traçar

um olhar para os apenados enquanto sujeitos de desejo, de gozo e de fantasia. Nesse

sentido, o conceito de sujeito e o grafo do desejo, elaborados por Lacan, serão de extrema

importância para localizarmos o olhar psicanalítico que se volta para esses indivíduos e

para o contexto no qual eles estão inseridos de maneira ímpar.

Para Lacan, o sujeito emerge da operação em que uma intenção mítica, pré-

simbólica, corta a rede de significantes em um determinado ponto, tornando-a faltosa,

porosa. Ou podemos considerar o corpo do infante, que é atravessado pelo significante e

reescrito por ele, se tornando fragmentado, civilizado. Independente do ponto de partida, o

que temos aqui é a junção entre o homem e a linguagem, que dá origem ao que

denominamos de sujeito na psicanálise e que não pode ser desconsiderado ao analisarmos

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um dispositivo, como a APAC, que tem como premissa a oferta de significantes religiosos

com a intenção de recuperar criminosos.

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2 ASSOCIAÇÃO DE PROTEÇÃO E ASSISTÊNCIA AOS CONDENADOS (APAC)

2.1 Raízes históricas e filosóficas do projeto teórico institucional: Pastoral Carcerária

O percurso histórico da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados

(APAC) remonta à iniciativa do então estudante de Direito, Mário Ottoboni. No início de

1972, ele se deparou com a vontade de participar de um apostolado que pudesse realizá-lo

como cristão e permitisse retribuir as graças recebidas ao atuar em favor dos irmãos mais

necessitados. Segundo ele, essa vontade surgiu após a participação em um cursilho no ano

de 1969 (Ottoboni, & Marques Netto, 1976). Os cursilhos da cristandade são movimentos

da Igreja Católica que se fundamentam na aplicação do cristianismo como forma de

resolução das questões humanas e sociais mediante a promoção dos valores morais e do

poder renovador do espírito cristão (Dana, 1975 citado por Camargo, 1984). Estes eram

muito comuns no Brasil na década de 1970 e consistiam em reuniões, com duração de até

três dias, que se caracterizavam pela presença de “vivências espirituais” (Massola, 2005, p.

57). Conforme Massola (2005), a promoção de trabalhos de evangelização era incentivada

e apresentava-se como um resultado esperado pelos promotores desses encontros

religiosos, sendo comum sua concretização na esfera social do cursilhista.

Um dia, quando meditava sobre o assunto, ocorreu à Ottoboni a ideia de concretizar

seu trabalho de apostolado no cárcere. Ao realizar sua primeira visita à cadeia local de São

José dos Campos, alarmou-se perante o cenário de degradação com que se deparou – de

acordo com ele, um verdadeiro “depósito humano”, capaz de perturbar seriamente sua

estrutura de cidadão (Ottoboni, & Marques Netto, 1976, p. 18). A partir daí, percebeu a

real necessidade de um trabalho espiritual junto aos presos e convenceu o delegado a

autorizar sua iniciativa.

Segundo Ottoboni, sua primeira atitude foi a realização de uma pesquisa para

averiguar a religião dos encarcerados, resultando no montante de “98 católicos, um de

família protestante, ainda indeciso, e um macumbeiro convicto” (Ottoboni, & Marques

Netto, 1976, p. 20). A partir daí, já era possível traçar o caminho a ser seguido, iniciado em

novembro de 1972, por meio de uma missa realizada no pátio do presídio, contando com a

participação dos apenados e de 15 cristãos da comunidade local. Essa primeira experiência

acabou se concretizando de maneira inesperada, incluindo a diminuição do tempo da

celebração pelo bispo a apenas 15 minutos, a falta de interesse dos encarcerados e a

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desistência de oito cristãos a continuarem na empreitada (Ottoboni, & Marques Netto,

1976).

Início turbulento, mas que não desanimou Ottoboni. Este, a partir de então, voltou

seus esforços para a mobilização de outros cristãos na continuidade das celebrações e,

principalmente, na adesão dos presos. Em suas palavras: “Todos os meios foram

empregados visando buscar a participação dos detentos que, embora decorridos oito meses,

pouco interesse demonstravam, exceto dois ou três que pareciam acreditar” (Ottoboni, &

Marques Netto, 1976, p. 32). Nesse contexto, outras atividades foram iniciadas, como a

instalação de uma biblioteca, um concurso mensal de composições e a escolha de um

representante de cada cela, responsável por administrar as solicitações mensais, que

costumavam incluir: roupas, artigos de higiene pessoal e materiais para trabalhos manuais

(Ottoboni, & Marques Netto, 1976).

Entretanto, com o passar do tempo, a notícia do apostolado foi se espalhando pela

cidade e o trabalho do grupo foi se firmando, rendendo seus primeiros frutos: o batismo

daquele detento de família protestante, que passou a ser o terceiro afilhado de Ottoboni, e a

conversão de Benedito Barbosa, “macumbeiro convicto, impertinente e mal-educado,

através do testemunho de que, efetivamente, iniciou uma nova vida, correta e digna”

(Ottoboni, & Marques Netto, 1976, p. 37). Além disso, incentivados pelos membros do

apostolado, os presos passaram a rezar o terço, de início em uma ou duas celas e depois se

espalhando pelo cárcere, “num espetáculo comovente e inusitado” (Ottoboni, & Marques

Netto, 1976, p. 33).

Motivados pelos resultados positivos, os trabalhos do apostolado se expandiam,

assim como a confiança nos detentos. Iniciou-se, dessa forma, um curso de valorização

humana, uma preparação para a crisma e a meditação nas celas, tendo como principais

colaboradores Franz de Castro e irmã Elisa Maria, pequena missionária de Maria

Imaculada. Em contrapartida, um dos detentos que se destacava em matéria de crescimento

espiritual teve a oportunidade de participar de um cursilho fora do presídio e sem

supervisão direta, 33 presos receberam autorização para passar o Natal com suas famílias e

passou-se a realizar escoltas sem a presença de algemas, policiais ou armas de fogo.

Ottoboni relata, inclusive, um episódio referente ao modo como as saídas dos detentos era

realizada, no qual, diante da surpresa de um magistrado à falta de algemas, o próprio réu

argumentou: “Eu estou algemado e escoltado. Escoltado por Cristo e algemado pelo

coração” (Ottoboni, & Marques Netto, 1976, p. 54).

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Durante o ano de 1974, Ottoboni conheceu Sílvio Marques Netto, na época

professor substituto de Direito Tributário e juiz de Direito Corregedor dos Presídios. Este

também fazia parte do movimento Cursilhos da Cristandade e acabou se interessando

largamente pelo trabalho de apostolado que estava sendo realizado. Por sua sugestão, a

APAC foi oficializada como Associação em 15 de junho de 1974 e se tornou órgão auxiliar

da corregedoria dos presídios, em 1975, por meio do Provimento 02/1975. Porém, é

importante ressaltar que, apesar dessas mudanças, o aspecto espiritual continuou sendo o

foco dos trabalhos realizados. No primeiro livro publicado acerca do método APAC, Cristo

chorou no cárcere, os autores Mário Ottoboni e Sílvio Marques Netto relatam que a meta

principal do trabalho realizado era “despertar em cada coração sentimentos de amor a

Deus”, para que, aos poucos, ocorresse “o milagre do renascimento pela crença nas

palavras do Evangelho, num processo em que o abandono, a maledicência, o aviltamento à

pessoa humana cederiam lugar a uma vivência em clima de oração e de conversão”

(Ottoboni, Marques & Netto, 1976, p. 8).

Ademais, o apoio das autoridades eclesiásticas também esteve presente desde o

início do método. José Antônio de Couto, bispo diocesano, apontou, em 1976, a APAC

como “uma séria e já eficiente experiência de pastoral carcerária, reconhecendo a validade

desta audaciosa e generosa experiência num dos setores mais complexos e necessitados de

pastoral diocesana” (Ottoboni, & Marques Netto, 1976, pp. 12-13). Já frei Tiago M.

Coccoline, na época diretor espiritual da APAC, relatou que “APAC é mini-igreja,

comunidade de fé, de esperança e de amor, onde Jesus no meio faz e realiza as maravilhas

da sua graça vivificante, transformadora, salvadora” (Ottoboni, 1978, p. 35).

Nesse sentido, como já foi possível observar, a APAC remonta suas bases à religião

católica, sendo seu primeiro regimento interno voltado “à atuação de voluntários católicos

e à escala de recuperação para presos católicos” (Ottoboni, 1984b, p. 219). Mesmo após a

estruturação do trabalho realizado como Pastoral Carcerária em uma metodologia penal, a

religião ainda permaneceu oficialmente como elemento inovatório e fator de base presente

em vários momentos da sua “escala de recuperação” (Ottoboni, 1984b, p. 29). Podemos

encontrá-la desde a participação em terços (nas celas e juntamente com a família),

passando por saídas para ir à missa, batismos, crismas e casamentos, até a participação em

cursilhos e movimentos cristãos – culminando na “perseverança na fé”, ou seja, na

continuação da fé mesmo após a saída da APAC (Ottoboni, 1984b, p. 102).

Entre as funções dos voluntários católicos, destaca-se o sistema de apadrinhamento,

apontado por Ottoboni como a descoberta mais significativa realizada durante o

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aprimoramento do método depois de quase um ano de atividades. O sistema consiste na

atribuição de dois detentos a cada casal de voluntários, que deverão assisti-los

espiritualmente, assim como suas famílias, com o intuito de promover a reintegração social

de ambos (Ottoboni, & Marques Netto, 1976). Na prática, esses casais são o elo entre o

preso, sua família e a pastoral, acompanhando de perto sua evolução e propiciando

oportunidades de maior envolvimento em terços, missas e encontros cristãos. Mas, para

isso, o padrinho necessita “estar em perfeita sintonia com as coisas de Deus. Desenvolver a

parte que lhe cabe com desvelo, humildade, generosidade e ter a paciência de esperar em

Deus” (Ottoboni, 1984b, p. 211). Dessa forma, os padrinhos têm o dever de sempre

participar da eucaristia e de se manterem o mais próximo possível de seus afilhados e suas

famílias, mas sem se tornarem fiscais de comportamento, atuando apenas através de

conselhos e de amizade.

Nos primeiros contatos entre o detento e seus padrinhos, Ottoboni (1984b, p. 37)

aconselha que se deixe bem claro o papel que eles irão desempenhar através de diálogos

como esse: “Viemos para ajudar. Se você aceitar a nossa colaboração, as vantagens na sua

recuperação serão enormes e mais facilmente você desfrutará dos benefícios do sistema”.

Com o passar do tempo e através de posicionamentos como este, a intenção é incutir “na

mente do reeducando que os padrinhos são meros instrumentos da vontade de Cristo”

(Ottoboni, 1984b, p. 213), que estão ali apenas para auxiliá-lo em sua jornada, lembrando

sempre que nunca se deve forçar o preso a uma conversão, o que pode levar a uma

simulação, mas se deve ser piedoso, confiante e compreensivo, a fim de que a verdadeira

conversão brote de seus corações.

Em relação às simulações, “ser autêntico” era uma das recomendações aos detentos,

juntamente com o alerta do perigo de indivíduos que não são como aparentam ser. Para

esse tipo de indivíduo, haveria duas possibilidades: “Ou ele é um hipócrita – contrário de

ser autêntico – ou ele é um doente – anormal, esquizofrênico, paranoico” (Ottoboni, 1984b,

p. 61). Ao contrário, ser autêntico significaria “ser sincero e criterioso consigo mesmo e

com os outros” (Ottoboni, 1984b, p. 65), expressando equilíbrio e bom uso da liberdade.

Isso seria importante não somente no contexto apaqueano, mas na vida como um todo, pois

é Cristo que exige autenticidade e “não quer vê-lo dividido interiormente” (Ottoboni,

1984b, p. 67).

Reflexões como essa se faziam presente principalmente durante a Jornada

Carcerária de Evangelização, posteriormente denominada Jornada de Libertação com

Cristo – ponto alto dos trabalhos da Pastoral. Constituída nos moldes dos cursilhos da

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cristandade, esta “nasceu da necessidade de se provocar uma definição do sentenciado

quanto à adoção de uma nova filosofia de vida” (Ottoboni, 1984b, p. 109). Trata-se de um

retiro, realizado durante três dias e composto por palestras inspiradas pelo evangelho,

mesclando elementos de vivência do expositor com elementos da realidade prisional.

Busca-se sempre, por meio de uma linguagem simples e acessível, “preparar o preso para

que aceite Deus, fonte de todo poder e único meio de que o homem dispõe para recuperar-

se” (Ottoboni, 1984b, p. 139). Um exemplo dessa preparação é o exame de consciência dos

detentos, no qual o criminoso realiza um levantamento de seus pecados por meio de várias

indagações interiores. Ao conhecer seus pecados, ele poderá arrepender-se deles e, com

isso, não voltar a cometê-los. Ottoboni (1984b, p. 147) traz 23 perguntas como modelo de

exame de consciência, voltadas para a prática de orações, o auxílio ao irmão que também

errou e o engajamento nas ações da APAC – dentre as quais, podemos destacar: “Tenho

procurado agir com reta intenção para me integrar na sociedade, e não apenas para agradar

a APAC e receber dela alguma recompensa?”. Entretanto, caso alguma questão importante

seja exteriorizada, a recomendação é clara: problemas morais devem ser encaminhados

para o sacerdote (Ottoboni, 1984b).

Franz de Castro Holzwart, um dos integrantes mais importantes da Pastoral

Carcerária, era eventual candidato ao sacerdócio (Ottoboni, 1984c). Esteve entre os

primeiros voluntários da APAC, iniciando sua atuação por meio de uma preparação para a

crisma de detentos e chegando até mesmo a presidir a Associação durante um período de

tempo. No dia 14 de fevereiro de 1981, Franz e Mário Ottoboni foram solicitados a

comparecer na Delegacia de Polícia de Jacareí (SP), na qual estava ocorrendo uma rebelião

de presos. Por terem o hábito de visitar os presos e realizar com eles um trabalho de

evangelização, teriam maiores chances de concluir uma negociação pacífica, sem riscos

adicionais para os reféns, que estavam sob ameaça. As negociações ocorreram conforme o

planejado e o resultado foi a concessão de dois carros, um dirigido por Mário Ottoboni e

outro por Franz de Castro, com vistas à fuga dos presos rebeldes e à consequente libertação

dos reféns (Ottoboni, 1984c).

O primeiro carro a sair do local com uma parcela dos presos foi dirigido por Mário

Ottoboni, que realizou o procedimento como combinado e voltou à Delegacia em

segurança. Todavia, quando estavam para adentrar no segundo carro os demais presos,

juntamente com Franz de Castro, teve início um intenso tiroteio, que acabou por matá-los.

Não se sabe de onde partiu o primeiro disparo, mas acredita-se que tenha sido de algum

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policial. Franz foi perfurado por mais de 30 projéteis, entrando para a história como o

primeiro a morrer pela causa apaqueana (Ottoboni, 1984c).

Desde então, Franz é reconhecido como “o mártir da APAC”, tendo seu processo

de canonização sido aberto em 2009 pela Diocese de São José dos Campos (Andrade,

2014, p. 66). Em 2010, o processo foi enviado para a Congregação da Causa dos Santos,

no Vaticano, e, em 2011, Franz foi declarado por essa Congregação “Servo de Deus –

primeira etapa para seu reconhecimento oficial como santo, mártir dos Direitos Humanos,

protetor dos encarcerados e padroeiro de todas as APACs” (Andrade, 2014, p. 66). Por se

tratar de um martírio, somente é exigida a comprovação de um milagre na fase final de

santificação após a beatificação. Porém, os efeitos de sua doação à causa já são visíveis em

diversos depoimentos, demonstrando como sua vida e suas ações se tornaram fonte de

inspiração e motivação para aqueles que lutam pela APAC.

Padre Zezinho, que esteve presente no momento da tragédia, relatou que “ali nada

estava salvo, exceto o Franz” (Ottoboni, 1984c, p. 80). Para Sílvio Marques Neto, Franz

“era, verdadeiramente, uma imitação de Cristo” (Ottoboni, 1984c, p. 80). Já para os

detentos, que foram beneficiados por suas ações como voluntário, Franz “deixou o

apostolado mais unido e firme no seu propósito”, devendo a APAC “sentir-se mais

fortalecida, porque seu alicerce fundamenta-se agora sobre um mártir” (Ottoboni, 1984c, p.

90). Assim como a Câmara Municipal de São José dos Campos, que fez menção a

Tertuliano4 para lembrar que “o sangue dos mártires é semente de cristãos” (Ottoboni,

1984c, p. 90), ou seja, que o sacrifício de Franz seria combustível para as obras que ele

iniciou, mobilizando mais cristãos a se dedicaram ao apostolado.

Mais tarde, em 1997, pode-se dizer da ocorrência de mais uma mobilização em prol

da causa apaqueana mediante sua inclusão como uma alternativa de Pastoral Penitenciária

no texto base da Campanha da Fraternidade daquele ano, cujo tema era “A fraternidade e

os encarcerados”. Por meio desse reconhecimento, posto em prática pelos membros da

Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o método pôde ser oficialmente

acolhido e consagrado pela Igreja Católica no Brasil (Ottoboni, 2006).

Com o passar do tempo, o método APAC acabou se transformado bastante,

focalizando a questão religiosa através de outros ângulos. Em seu livro publicado em 2006,

Vamos matar o criminoso?, Ottoboni o caracteriza como um método de recuperação de

presos, composto por 12 elementos fundamentais, figurando entre eles a religião e a

4 Nascido no ano 160, em Cartago, foi o primeiro autor cristão a produzir uma obra literária (corpus) em

latim.

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Jornada de Libertação com Cristo. Assim, por mais que ainda encontremos nessa obra

aspectos claramente derivados da concepção religiosa, mola propulsora inicial, eles estão

diluídos em meio aos demais elementos, como o mérito ou o auxílio da comunidade. Um

exemplo, é a definição de que “valorizar o ser humano é, em sua essência, evangelizá-lo,

reconhecê-lo em seu todo como irmão incluído no plano de felicidade”,

concomitantemente à definição de que a finalidade da APAC seria “recuperar o preso,

proteger a sociedade, socorrer a vítima e promover a justiça” (Ottoboni, 2006, pp. 30-33).

Definições que parecem conviver pacificamente na filosofia atual, mas que demonstram

certa modificação do discurso apaqueano em comparação com as obras de Ottoboni dos

anos 1970 e 1980.

A Jornada de Libertação com Cristo e o curso de aperfeiçoamento do método

APAC especialmente para presos foram descritos separadamente da metodologia e do

regulamento disciplinar em um livro publicado em 2004 e nomeado de Parceiros da

Ressurreição, com coautoria de Valdeci Antônio Ferreira – precursor e principal expoente

da APAC de Itaúna, em Minas Gerais. Nessa obra, a Jornada é descrita como peça

fundamental dentro do contexto proposto, pois revela ao jornadeiro “os caminhos seguros e

oportunos para uma vida cristã de absoluta normalidade” (Ottoboni & Ferreira, 2004, p.

15). Além disso, ambos os eventos se constituiriam como ferramentas para “o despertar de

novas lideranças cristãs” (Ottoboni & Ferreira, 2004, p. 10) de acordo com o Cardeal Dom

Serafim Fernandes de Araújo, arcebispo metropolitano de Belo Horizonte. Isso nos leva a

pensar que, por mais que aparentemente a religião tenha se tornado apenas mais um

elemento do método, este ainda “está em perfeita comunhão com a Igreja” (Ottoboni &

Ferreira, 2004, p. 19, grifo nosso).

Entretanto, estar em consonância com a igreja católica não significaria a exclusão

das demais religiões. Na perspectiva de Ottoboni, o método seria fundamentado na religião

católica apostólica romana, pois esta seria a religião de 99% dos detentos, seja por escolha

própria ou por tradição familiar. Porém, se o infrator adotar outra religião, a assistência a

ele dirigida será a mesma. Assim como posto pelo Regimento Interno, publicado em 1984:

“estendem-se, nos mesmos dias e horários, os direitos e obrigações concedidas aos

detentos que professam outras religiões ou cultos religiosos” (Ottoboni, 1984b, p. 253). O

mais importante a se levar em consideração é que “a recuperação tem que visar o lado

espiritual e não o material” (Ottoboni, 1984a, p. 11). Ou seja, de nada adianta focar-se na

educação, na geração de renda ou na formação para o trabalho, porque, entre um bandido

analfabeto e um bandido torneiro mecânico, qual seria a diferença? Diante disso, “o

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método APAC proclama, pois, a necessidade imperiosa de o recuperando ter uma religião,

crer em Deus” (Ottoboni, 2006, p. 79). Pela conversão, faz-se admissível, para o

criminoso, “mudar de mentalidade e de comportamento, passar do egoísmo e do desamor

para uma vida de amor e de doação” (Ottoboni, 2006, p. 79).

A partir dos depoimentos contidos no livro Cristo sorrindo no cárcere, é possível

perceber vários dos elementos religiosos e filosóficos já elencados. Nele, estão registradas

cartas escritas por detentos, voluntários e pessoas que possuem alguma relação com a

APAC, dizendo de suas experiências, realizando agradecimentos ou indo à busca de

auxílio da entidade para superar dificuldades. Entre esses depoimentos, com relação ao

aspecto religioso, pode-se destacar o trecho de uma carta escrita por um recuperando, que

afirma: “Antes de ser um detento, eu não conhecia o Cristo” (Ottoboni, 1978, p. 113).

Lugar de encontro e de aprofundamento, assim como relata irmã Elisa Maria em carta

enviada a Mário Ottoboni: “Devo à APAC minha maturidade cristã e religiosa” (Ottoboni,

1978, p. 74).

A APAC se constituiria, dessa maneira, como uma forma de introduzir os preceitos

cristãos àqueles que não os conhecem, como também um local para que aqueles que já

creem em Cristo possam amadurecer sua fé complementando-a com atos. Além disso, é

chamada de “obra de Deus”, como no seguinte trecho, em que um recuperando se dirige a

Ottoboni, porém referenciando algo que estaria além dele: “Sabendo que a APAC é uma

obra divina, onde ressoa a voz de Deus, se mentir não estaria enganando ao senhor, mas

sim a Deus” (Ottoboni, 1978, p. 97). Isto é, a APAC seria um instrumento divino, com o

objetivo de fazer com que o próximo e, em especial, os detentos sejam felizes e tenham o

anseio de revelar a todos “o segredo que faz alguém feliz: CRISTO” (Ottoboni, 1978, p.

128).

2.1 Raízes históricas e filosóficas do projeto teórico institucional: o aspecto prisional

Ao realizar suas viagens pelo Brasil, com o intuito de transmitir o método APAC a

outras comarcas do País, Ottoboni (1984a, p. 108) chega à conclusão de que a origem do

criminoso é “fundamentalmente de ordem moral”. Visto que, “quanto mais se preservam

os valores ético-morais e religiosos, menores são as incidências de atos que atentam contra

a harmonia social” (Ottoboni, 1984a, p. 110). Ainda, segundo ele, estaria em voga

relacionar pobreza e miséria à criminalidade, mas essa associação seria apenas aparente. A

verdadeira violência seria a degradação moral da sociedade, com ensinamentos que vão

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contra a decência e a honradez da família, como a apologia ao sexo e ao erotismo, o uso de

anticoncepcionais e a guerra contra o casamento, entre outros. E o pior: “essa violência,

infelizmente não é crime” (Ottoboni, 1984a, p. 111). Partindo, então, desse ponto de vista,

o criminoso seria “cópia de um padrão atual de nossa sociedade” (Ottoboni, 1978, p. 101).

É imprescindível destacar a necessidade de proteger e conscientizar nossos jovens com o

objetivo de fazê-los resistir aos “desvalores” que são veiculados na propaganda, na

literatura, no cinema e nos meios de comunicação em geral, “a fim de evitar que os mais

imaturos se envolvam em suas malhas” (Ottoboni, 1984a, p. 113).

No caso daqueles que seguiram o padrão social, foram corrompidos pela

imoralidade e acabaram se tornando criminosos, a situação é ainda pior, pois “a prisão aqui

é, indubitavelmente, fator criminogênico por excelência” – estando a sociedade, durante o

período de reclusão do detento, “preparando o verdadeiro bandido para vir molestá-la ao

final da pena” (Ottoboni, 1984a, p. 44). Isso acontece, pois, ao adentrar nos presídios, o

infrator acabaria aprimorando sua crueldade, a fim de sobreviver ao ambiente inóspito,

recheado de criminosos de todas as espécies, perdendo a oportunidade de arrepender-se e

de perceber o castigo como desestímulo ao crime. Nas palavras de Ottoboni (1984a):

O sentenciado acaba emergindo num mundo projetado pelo demônio, em dia de

grande inspiração e onde devia receber a indicação de novos rumos, ensinamentos

capazes de fazê-lo reconsiderar uma série de comportamentos, acaba, isto sim,

achando justificativa para a sua ação irregular. (p. 54)

Além disso, Ottoboni (1984a) afirma que leis concedendo benefícios e favores a

criminosos podem até diminuir a população carcerária, mas são fatores que estimulam a

violência, pois trazem consigo a sensação de impunidade. Assim, as penas em liberdade e a

prisão albergue só funcionariam como um terceiro estágio da sentença após a preparação

do detento nos regimes fechado e semiaberto.

O Estado não seria capaz de tratar o delinquente e não se interessaria pelas causas

do crime, resultando num círculo vicioso de “prende e solta cada vez pior, no qual o Estado

está a serviço da violência e do crime” (Ottoboni, 1984a, p. 44). Além do despreparo das

autoridades, que estariam fazendo “literatura, lazer e demagogia em cima da miséria de

milhares de condenados” (Ottoboni, 1984a, p. 119), sem conseguir enxergar o homem, o

ser humano, mas se apegando apenas às formalidades, como o prazo de reclusão estipulado

pela sentença.

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Diante da ineficiência do Estado em tratar o criminoso e da degradação moral da

sociedade, seria preciso deixar de apenas falar e começar a agir. Para Ottoboni (1984a, p.

85), jamais será apenas pela prisão, pelas leis e pela polícia nas ruas que os índices de

reincidência e de criminalidade irão diminuir: “É preciso alterar mentalidades, sair do

convencional e partir para uma ação conjunta, com o apoio da comunidade, em busca de

resultados imediatos e positivos”. Foi em busca desse ideal que ele iniciou seus trabalhos

voltados à população carcerária, inicialmente com foco no aspecto espiritual, mas

englobando outras atividades com o passar do tempo, concretizando um método próprio e

firmando-se como instituição prisional alternativa.

Esse percurso como instituição prisional se iniciou em 15 de junho de 1974, por

meio da aprovação dos estatutos e da oficialização da APAC como Associação de Proteção

e Assistência Carcerária (Ottoboni, & Marques Netto, 1976). Nessa época, a APAC

contava com sócios que realizavam trabalho voluntário e se reuniam em assembleias para

decidir o futuro da Associação. Aproximadamente um ano mais tarde, em 30 de setembro

de 1975, esta foi oficializada pelo juiz Silvio Marques Neto por meio do Provimento

02/1975. Ficou, então, estabelecida a APAC como órgão auxiliar da corregedoria dos

presídios, configurando as normas e regras presentes em seu estatuto como “partes daquele

Provimento, devendo, como tal, serem obedecidas” (Massola, 2005, p. 58).

Anteriormente à sua oficialização, a APAC já administrava metade das celas da

cadeia pública de São José dos Campos e, em 1974, iniciou a experiência de uma prisão

albergue ainda inexistente no código penal. No início, a assistência material aos detentos

consistia em doações mensais, principalmente artigos de higiene e limpeza. Com o tempo,

a construção de um segundo pavilhão, denominado Centro de Reeducação, possibilitou a

inauguração de um II Estágio, no qual o detento passava a dispor “de todo o conforto e

assistência integral” (Ottoboni, 1978, p. 43).

O apoio das autoridades policiais e jurídicas foi essencial durante esse período.

Conforme Ottoboni (1984b), Sílvio Marques Neto teria possibilitado o acesso do

presidente da República a um exemplar do livro Cristo chorou no cárcere. Esse último

teria, então, solicitado ao ministro da Justiça, na época, dr. Hélio Fonseca, “urgentes

estudos a respeito do sistema APAC” (Ottoboni, 1984b, p. 7). Como resposta, teriam sido

enviados dois funcionários do Ministério para São José dos Campos com o intuito de

conhecer em loco o método e a escala de recuperação apaqueana. Algum tempo depois, foi

realizada uma modificação no Código Penal, mediante a aprovação e promulgação, pelo

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presidente da República, da Lei n° 64165, de 24 de maio de 1977. Para Ottoboni (1984b, p.

8), é clara a transposição de vários elementos do método para o texto legal, como

“estágios, saídas para atos religiosos, domingo em família, trabalhos dentro e fora do

presídio, entre outros”.

A experiência de São José dos Campos foi ganhando visibilidade e passou a ser

replicada em instituições semelhantes em diferentes comarcas pelo País (Massola, 2005).

Segundo Camargo (1984), um dos fatores que explicam a rápida expansão do método seria

a sua filiação aos Cursilhos da Cristandade, nos quais existiria uma intensa rede de

comunicação, além de incentivos em prol da participação em uma experiência de pastoral

carcerária como meio de apostolado aos cursilhistas ou integrantes de movimentos

congêneres como Encontro de Casais com Cristo e Curso de Liderança Cristã.

O Primeiro Congresso Nacional das APACs ocorreu em 1981, em São José dos

Campos, e reuniu cerca de 180 pessoas, a maioria proveniente do estado de São Paulo.

Nesse encontro, foi incentivado a todos os grupos ali presentes que adotassem

integralmente o método e a sigla APAC por configurar-se como a experiência mais bem-

sucedida no que se refere à diminuição da reincidência (Camargo, 1984). Além disso, foi

proposta a fundação da COPOBRAPAC, a Confederação Brasileira das APACs, sendo o

critério adotado para sua composição apenas a adoção da sigla APAC pela Associação,

desconsiderando aspectos como organização e grau de desenvolvimento do trabalho. Dessa

forma, experiências consolidadas, como a AMAPARE de Campo Grande e a ARAE de

Ribeirão Preto, foram impedidas de integrar a Confederação. Coube a Mário Ottoboni a

Presidência da COBRAPAC “num intuito claro de manter fidelidade ao espírito e à prática

da APAC de São José dos Campos” (Camargo, 1984, p. 31). Sua fundação foi oficializada

em 1995, sendo mais tarde rebatizada de Federação Brasileira das APACs (FBAC).

Atualmente, possui sede em Itaúna, Minas Gerais, executando tarefas de coordenar,

fiscalizar, orientar e classificar segundo as atividades desenvolvidas nas APACs no Brasil

e no mundo (Ottoboni, 2006).

Faz-se importante destacar um evento marcante para a APAC de São José dos

Campos: a administração total da cadeia pública em 1984. Não se tem acesso completo às

informações desse período, mas sabe-se que a cadeia pública foi desativada em 1979, data

da ocorrência de uma paralisação dos carcerários em prol de melhores condições de

5 Altera dispositivos do Código Penal (Decreto-lei número 2.848, de 7 de dezembro de 1940), do Código de

Processo Penal (Decreto-lei número 3.689, de 3 de outubro de 1941), da Lei das Contravenções Penais

(Decreto-lei número 3.688, de 3 de outubro de 1941), e dá outras providências.

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trabalho. A partir de então, os condenados ao regime fechado eram enviados para cumprir

sua sentença em outro munícipio, permanecendo na cidade apenas os condenados aos

regimes semiaberto e aberto (Massola, 2005). Em 1893, os sócios da APAC recorreram ao

juiz Nilo Cardoso Perpétuo para alertar quanto à necessidade de uma preparação dos

detentos no regime fechado. Nos regimes aberto e semiaberto, os detentos passam a maior

parte do tempo em liberdade, dificultando o trabalho de recuperação e resultando em uma

menor aderência ao método. Dessa forma, o método vinha deturpando sua imagem e

comprometendo sua continuidade por apresentar resultados inferiores àqueles do início do

programa. Respondendo a tal pedido, foi realizada uma reforma das instalações da cadeia

pública, porém nem a Polícia Civil, nem a Militar se dispuseram a administrar o local

devido às mesmas condições que o desativaram em 1979. O magistrado, então, convidou a

APAC para administrar o Presídio Humaitá, sem o concurso da Polícia, apenas por

intermédio de seus voluntários (Ottoboni, 2006). De acordo com Massola (2005), é

provável que tal empreendimento estivesse relacionado com o clima nacional de pós-

ditadura militar, marcado pela ideia dos direitos humanos dos presos, no qual se procurava

adequar as penas no País à Carta das Nações Unidas, que dispõe sobre as regras mínimas

para o tratamento de prisioneiros.

O método APAC foi ganhando força e se espalhando cada vez mais pelo País,

sendo reconhecido, até mesmo, internacionalmente, pela sua filiação à Prison Fellowship

International (PFI), ONG cristã com status consultivo da ONU em assuntos penitenciários,

como Prevenção do Direito e Justiça Penal (Vargas, 2011). Mediante essa vinculação, o

método passou a ser divulgado nos países onde a FPI atua, por meio de seminários e

congressos, além de possibilitar visitas de delegações e representantes a São José dos

Campos para conhecer e estudar a experiência (Vargas, 2011).

A exportação para Minas Gerais teve início em 1984 na cidade de Itaúna.

Inicialmente, realizado dentro das instalações da cadeia pública, o método acabou se

expandindo com o passar dos anos, culminando, em 1997, no funcionamento em prédio

próprio, com administração dos três regimes penais sem o concurso da Polícia. Dessa

forma, a APAC de Itaúna entrou para a história como a segunda prisão no País a realizar

suas atividades sem a presença de policiais militares ou civis, ou de agentes penitenciários

(Vargas, 2011). Fundamentais experiência obteve destaque, ainda em 1997, devido a dois

acontecimentos importantes. O primeiro diz respeito à inclusão da experiência apaqueana

como uma alternativa de Pastoral Penitenciária, pelos membros da Conferência Nacional

dos Bispos do Brasil (CNBB), no texto-base da Campanha da Fraternidade daquele ano,

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cujo tema era “A fraternidade e os encarcerados” (Ottoboni, 2006). O segundo

acontecimento foi a visita realizada pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do

Sistema Carcerário, assim como relata Durval Ângelo de Andrade, na época, vice-

presidente da Comissão. Segundo ele, dos 32 estabelecimentos penais visitados, a APAC

de Itaúna foi apontada no relatório final como “a única realmente relevante no Estado”

(Andrade, 2014, p. 15).

O sucesso da APAC de Itaúna foi decisivo para a continuação do método, já que em

São Paulo a APAC-mãe de São José dos Campos perdeu forças diante da experiência de

Bragança Paulista, modelo adotado como oficial pela lei estadual devido à sua excelência

em gestão. Após 27 anos de funcionamento, São José dos Campos possuía larga

experiência, um método consolidado e a administração dos três regimes. Entretanto,

realizava seus trabalhos somente mediante doações e a ação de voluntários, que vinham

diminuindo a cada ano, juntamente com o apoio das autoridades locais e estaduais. O então

juiz da Comarca passou a determinar diversas portarias que dificultavam o trabalho da

APAC, num processo que culminou em sua desativação em 1999. Por ordem judicial, uma

invasão policial removeu todos os recuperandos e encerrou as atividades no local (Vargas,

2011).

Entretanto, enquanto a APAC-mãe encerrava sua atuação, sua “filha” recebia

destaque. A visita da CPI Carcerária à APAC de Itaúna fez com que esta fosse projetada

aos olhos do Estado. Em dezembro de 2001, foi lançado o Projeto Novos Rumos na

Execução Penal, posteriormente regulamentado pela Resolução nº 433/20046 da Corte

Superior do Tribunal Judiciário de Minas Gerais (TJMG). Joaquim Alves de Andrade

(2009), coordenador do projeto, colocou como seu objetivo incentivar a criação e

ampliação das APACs por meio de orientação jurídica e articulação de parcerias com o

Estado, municípios, empresas privadas e outras entidades. Além disso, foi aprovada, em

2004, a realização de convênios entre o estado de Minas Gerais e as APACs, para a

administração de unidades prisionais destinadas ao cumprimento de pena privativa de

liberdade (Andrade, 2014).

No estado de São Paulo, merece destaque a experiência de Bragança Paulista,

fundada em 1978, utilizando-se da sigla APAC, porém com outro significado: Associação

de Proteção e Assistência Carcerária. Essa primeira tentativa acabou fracassando devido a

dois fatores: a morte de Franz de Castro Holzwarth como refém em uma rebelião e a

6 Objetiva incentivar a criação das Associações de Proteção e Assistência aos Condenados (APACs),

apoiando sua implantação nas comarcas ou municípios do estado de Minas Gerais.

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evasão de um detento que havia conseguido autorização para trabalhar numa área externa

(Massola, 2005). Porém, a Associação nunca foi dissolvida oficialmente, sendo reativada

em 1994 por um conselho da comunidade que acabara de participar de uma Jornada

Carcerária na APAC de São José dos Campos. Nesse mesmo ano, o então juiz de Bragança

Paulista, Nagashi Furukawa, se reuniu com o governador Mário Covas e conseguiu

autorização para assumir com a APAC todo o funcionamento da cadeia pública da cidade,

mas recebendo do Estado apenas a verba para a alimentação dos presos. A proposta era

ousada, mas rendeu grandes frutos. A administração conseguiu não só manter, mas

melhorar a alimentação, contratar uma série de profissionais (advogados, psicólogos,

professores etc.), assim como construir um novo prédio, com 230m² e 120 vagas. Além

disso, contava com a participação da comunidade por meio de trabalhos voluntários,

arrecadações de cestas básicas e cursos para os detentos, como pintura e alfabetização

(Massola, 2005).

Tal experiência obteve destaque e seu idealizador, Nagashi Furukawa, chegou até

mesmo a ocupar o cargo de chefe nacional do Departamento Penitenciário, convidado

pelo então ministro da Justiça José Carlos Dias. Posteriormente, em 1999, foi contratado

como secretário da Administração Penitenciária de São Paulo, com o intuito explícito de

estender a experiência de Bragança Paulista a outras cidades do Estado. Já em 2000, foi

promulgado um decreto estadual para a efetivação de convênios com entidades privadas,

pelo programa que ficou conhecido como “Cidadania no Cárcere” – responsável pela

criação de 16 Centros de Ressocialização em apenas três anos de funcionamento

(Massola, 2005, p. 65). A cadeia pública de Bragança Paulista foi então transferida para

a Secretaria de Administração Penitenciária, passando a denominar-se Centro de

Ressocialização de Bragança Paulista. Devido a essa transferência, foram realizadas

modificações importantes na instituição, gerando depoimentos de que o método APAC

não era mais o direcionador de sua terapêutica penal. Entre tais modificações, Massola

(2005) cita a vigilância rigorosa quanto às ações dos voluntários por agentes

penitenciários e a proibição de parte das regalias a que os presos tinham acesso.

Diante disso, pode-se dizer que o método APAC passou por uma ramificação

filosófica e metodológica, resultando numa vertente fortemente religiosa, representada

pela ONG original de São José dos Campos, mais tarde exportada para Minas Gerais; e

uma vertente em que a religião não possui tanto destaque, representada pela ONG de

Bragança Paulista, replicada principalmente em São Paulo (Vargas, 2011). Tal

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ramificação passou a causar equívocos, pois ambas as vertentes denominam suas

unidades como Centros de Ressocialização e algumas experiências derivadas de

Bragança Paulista conservam a sigla APAC, porém com outros significados, como

Associação de Proteção e Assistência Comunitária ou Associação de Proteção e

Assistência Carcerária. Assim como realizado por Vargas (2011), utilizaremos a

denominação APAC para a vertente de São José dos Campos e CRs para a vertente de

Bragança Paulista.

A principal semelhança entre as ramificações seria a valorização do preso e da

pena privativa de liberdade. Entretanto, diferenças significativas merecem destaque,

como: 1) Administração estritamente realizada pela sociedade civil nas APACs em

contrapartida à cogestão entre a sociedade civil e o Estado no CRs; 2) Trabalho técnico

especializado (psicólogos, assistentes sociais, médicos, dentistas, advogados etc.)

realizado principalmente por voluntários nas APACs e por profissionais contratados pela

instituição nos CRs; 3) Excelência em gestão, particularmente no aspecto econômico,

em Bragança Paulista, enquanto a APAC joeense nasceu e sobrevivia pela solidariedade

das empresas locais; e 4) A religião como aspecto central, indispensável para a

recuperação do preso, no método APAC, contrariamente aos CRs, em que a religião

ocupa um lugar marginal em relação às suas concepções. Essa última diferença expressa,

principalmente, “a laicidade de São Paulo e a religiosidade católica de Minas Gerais”

(Vargas, 2011, p. 60).

Devido à regulamentação e aos incentivos anteriormente elencados, Minas Gerais é

o Estado brasileiro com maior número de APACs, contando com 70 unidades organizadas

juridicamente, sendo 36 funcionando em prédio próprio, sem o concurso da Polícia.

Nacionalmente, existem APACs organizadas juridicamente em 17 Estados, incluindo cinco

unidades em prédios próprios. “Ao todo, estima-se que, hoje, no país, há cerca de 2,5 mil

recuperandos acolhidos em unidades da APAC administradas sem o concurso da polícia e

de agentes penitenciários” (Andrade, 2014, p. 16). Internacionalmente, as APACs se

encontram em diferentes fases de implantação em 23 países, incluindo Noruega, Costa

Rica, Chile, Colômbia e Estados Unidos (Andrade, 2014).

Vale ressaltar que o idealizador do método, Mário Ottoboni, assim como a

Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados (FBAC), consideram como válidas

diversas formas de aplicação do método: em estabelecimentos administrados pela Polícia,

em pavilhões de penitenciárias e até com sentenciados em liberdade condicional, penas

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alternativas e sursis (Ottoboni, 2006). Além disso, ele aconselha que se façam convênios

com o Estado para repasse de verbas, o que pode ser importante para o êxito do trabalho,

“desde que não exista desvirtuamento do Método” (Ottoboni, 2006, p. 53). Pois, “se existe

uma crise penitenciária, a solução está aqui, testada e provada” (Ottoboni, 1984a, p. 13).

2.3 Projeto teórico institucional: o método APAC

Diante da necessidade de uma assistência espiritual junto ao preso e da

insuficiência do Estado no tratamento do criminoso, surgiu, então, o método APAC,

definido por Ottoboni (2006) a partir destas duas dimensões: espiritual e jurídica. Mais

especificamente, o método APAC seria “um método de valorização humana, portanto de

evangelização, para oferecer ao condenado condições de recuperar-se e com o propósito de

proteger a sociedade, socorrer as vítimas e promover a justiça” (Ottoboni, 2006, p. 29).

Para alcançar seus propósitos, o método se constituiu, especialmente, a partir de

“elementos inovatórios, de resultados incontestavelmente positivos” (Ottoboni, 1978, p.

11), quais sejam: a religião como fator de base, recuperando de estágio superior na escala

de recuperação cuidando de outro recuperando ainda iniciante e reintegração social do

detento concomitantemente à de sua família. Além disso, Ottoboni propôs, desde o começo

de seus trabalhos, soluções ao quadro prisional brasileiro, deficiente em diversos aspectos,

como exposto anteriormente. Para ele, seria necessária a descentralização dos presídios, a

subordinação destes à Secretaria da Justiça, a participação da comunidade na execução da

pena, a mobilização de tribunais de justiça e do Ministério Público em prol do problema

carcerário, a obrigatoriedade da cátedra de direito penitenciário nos cursos de direito, assim

como a necessidade de “uma legislação humana, moderna e exequível” (Ottoboni, 1978, p.

163). Esses aspectos facilitariam a implantação do método nos diferentes tipos de

comarcas, de forma integral, com vistas a alcançar aquele que seria seu objetivo principal:

“matar o criminoso e salvar o homem” (Ottoboni, 2006, p. 45).

Tal objetivo esteve presente desde o início do método e permaneceu, aparentemente

inalterado, até os dias atuais. Sua importância deriva do fato de que, antes de adentrarem

numa instituição que dispõe do método APAC, estaríamos às voltas com “indivíduos

cínicos, desconfiados, descrentes, revoltados”; ou melhor, “gente-problema” (Ottoboni,

1984b, p. 215). Mas, por meio do trabalho realizado, se faria possível “tirar um irmão do

mais repugnante charco que a vida poderia oferecer” e, dessa forma, dar a ele uma vida

nova (Ottoboni, 1984b, p. 216).

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Filosofia de renascimento e vida nova que também esteve presente nos

depoimentos dos apenados. Segundo um deles, devido ao auxílio de Franz de Castro,

estaria resolvendo um grande problema, ele mesmo: “Graças a ele, eu estou resolvendo um

grande problema, que era eu mesmo. Estou saindo de mim. Estou renascendo novamente”

(Ottoboni, 1978, p. 122). Outro depoimento afirma ainda, enfaticamente: “Aquele Nelson-

Nelsinho morreu, e nasceu um novo, com vida nova” (Ottoboni, 1978, p. 83). Isso nos

remete à ideia de que, sendo outro homem, um novo homem, não haveria possibilidade de

ter as mesmas atitudes de antes. Assim como afirma um recuperando: “Depois de tudo que

aprendi, sou incapaz de voltar a errar” (Ottoboni, 1978, p. 54). Porém, isso nem sempre era

concretizado, já que fugas eram registradas e havia a atuação de uma “patrulha da APAC”

(Ottoboni, 1978, p. 163) composta de recuperandos do II estágio responsáveis por

recapturar os fugitivos.

Os depoimentos dos detentos eram muito significativos no início do método, pois a

escala de recuperação e de progressão penal era baseada somente na conversão e na

aceitação da nova vida. Para iniciar seu processo, o preso deveria realizar um requerimento

demandando a assistência da APAC, que realizava uma pesquisa social junto à sua família

para “constatar vícios, afeto, dedicação ao trabalho, amizades etc.” A partir de então,

atribuía a ele um casal de padrinhos, incluía-o nas primeiras atividades religiosas e de

aprendizado do método e, por fim, conduzia a “verificação de aceitação presumida”

(Ottoboni, 1984b, p. 33). Esta consistia no exame do comportamento do preso, pelos

padrinhos e dirigentes da APAC, a fim de constatar “se houve ou não adesão ao trabalho;

se foram despertados sentimentos de amor ao próximo no condenado” (Ottoboni, 1984b, p.

40). Porém, todo o processo deveria ser feito sem pressa, já que poderia demorar meses, e

às vezes até anos, de atividade e perseverança para que fosse notado “o surgimento do

homem novo” (Ottoboni, 1984b, p. 40). Paciência e perseverança, pois, como afirmou um

recuperando: “No início, não foi muito fácil aceitar a vida que estou tendo” (Ottoboni,

1978, p. 146).

Atualmente, com o sistema progressivo oficializado no Código Penal, o método

APAC dá ênfase ao mérito como aspecto indispensável para a conquista de benefícios por

parte do detento. Segundo Ottoboni (2006, p. 47), “o mérito deve sempre sobrepor-se ao

aspecto objetivo da pena, exatamente porque é nele que reside a segurança do condenado e

da sociedade”, lembrando que o sistema é progressivo, mas também pode ser regressivo,

caso a conduta do preso não seja condizente com o regime que desfruta. Além disso, a

remissão da pena mediante trabalho ou estudo também seria um ponto positivo da

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legislação atual, pois vemos premiados aspectos verdadeiramente importantes do

cumprimento de pena. A conquista da liberdade seria, então, realizada “por etapas e

consenso de responsabilidade” (Ottoboni, 2006, p. 49).

Os elementos fundamentais do método também passaram por alteração, todavia

sem abrir mão daqueles iniciais: religião, recuperando ajudando recuperando e família.

Foram, assim, adicionados outros aspectos, totalizando 12 elementos indispensáveis, pois é

no seu conjunto que será obtido um todo harmonioso. São eles: 1) participação da

comunidade, 2) recuperando ajudando recuperando, 3) trabalho, 4) religião, 5) assistência

jurídica, 6) assistência à saúde, 7) valorização humana, 8) família, 9) o educador social e o

curso para sua formação, 10) Centro de Reintegração Social (CRS), 11) mérito e 12)

jornada de libertação com Cristo (Ottoboni, 2006).

Estss elementos terão sua aplicação melhor compreendida pela exposição do

cotidiano institucional, que será feita adiante. Por ora, faz-se necessário esclarecermos

alguns aspectos de sua concretização e de sua relação com o restante da filosofia

institucional. Começando pelas assistências jurídicas e à saúde, estas podem ser realizadas

no interior da instituição ou mediante o encaminhamento a serviços públicos de acordo

com o tipo de demanda. A realização de convênios com o Estado, e o consequente repasse

de verbas, facilitam a contratação de profissionais especializados. Entretanto, a APAC

conta também com a participação da comunidade para a realização das assistências, por

intermédio de voluntários, desde que estes tenham o perfil adequado e sejam corretos “em

todas as atitudes” (Ottoboni, 2006, p. 150). Assim como definido pelos elementos 1 e 9 já

elencados, os voluntários têm um papel essencial no método, mas devem passar por um

curso de formação e ter extremo zelo no tratamento com os recuperandos.

Quanto à valorização humana, esta estaria interligada ao elemento religião, pois,

conforme definição de Ottoboni (2006, p. 30): “Valorizar o ser humano é, em sua essência,

evangelizá-lo, reconhecê-lo em seu todo como irmão incluído no plano de felicidade”.

Definição importante, pois somente por meio da valorização humana seria possível reverter

a situação que leva as pessoas ao mundo do crime: “a falta de conhecimento do amor de

Deus pelos homens” (Ottoboni, 2006, p. 30). E, por fim, o Centro de Reintegração Social

representa o local de aplicação do método, sendo obrigatória a sua denominação como

Franz de Castro Holzwart em homenagem ao mártir das APACs.

Podemos perceber, portanto, como a APAC passou por modificações em sua forma

de atuação sem deixar de acompanhar os avanços sociais e legislativos. No entanto, sua

filosofia foi alvo de poucas reformas, enquadrando-se numa dinâmica que conservou os

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mesmos propósitos, mas foi capaz de se resguardar diante das demandas e das questões da

modernidade. Como relata Ottoboni (2006):

(...) diante das dificuldades que foram surgindo para o desenvolvimento do trabalho

de assistência aos presos, viu-se forçado a transformar o trabalho, que era apenas de

Pastoral Penitenciária, em uma entidade civil de direito privado, com finalidade

definida, mantendo os mesmos objetivos. Essa providência veio propiciar condições

de defesa da própria equipe, que passou a valer-se do remédio jurídico adequado

para defender-se e para que fossem respeitados os direitos dos presos. (p. 31, grifo

nosso)

Assim, concretizou-se o método APAC como um modelo de terapêutica penal

alternativa, apoiado por diversos autores e autoridades políticas e jurídicas, que destacam

seus avanços com relação ao cenário brasileiro. Para Sá (2012, p. 7), trata-se de um

“brilhante método e uma das alternativas mais viáveis para o nosso atual sistema prisional

brasileiro”. Além disso, chama a atenção para o fato de que a APAC é a instituição que

mais se aproxima do cumprimento da Lei 7.210, de 11 de julho de 1984, que dispõe sobre

a execução penal, os direitos e os deveres do condenado. Ou seja, a APAC se propõe a

realizar o que o sistema convencional deveria estar fazendo desde 1984. Esse é um dos

motivos elencados por Andrade (2014) para a adoção do método, além de outros, como:

descentralização dos presídios, municipalização do cumprimento de pena, menor número

de condenados juntos, melhores instalações, manutenção da ordem, ausência de ociosidade

e possibilidades de escolarização e de capacitação profissional. Carvalho e Pimenta (2014)

ressaltam o baixo custo de manutenção, sendo 1/3 menor do que o custo de um preso no

sistema convencional. Já Oliveira (2010, p. 7) o classifica como “uma proposta de sucesso”

ao conseguir contemplar os princípios dos Direitos Humanos em suas práticas. Entre

outros autores, que apoiam e recomendam a aplicação do método apaqueano em

instituições prisionais, citamos: Mattos (2009), Barros (2009), Salum (2009), Oliveira

(2009) e Carvalho (2009).

Ottoboni (2006, pp. 29-30), por sua vez, o classifica como um rompimento quanto

ao sistema penal vigente, “cruel em todos os aspectos e que não cumpre a finalidade

precípua da pena: preparar o condenado para ser devolvido em condições de conviver

harmoniosa e pacificamente com a sociedade”, concretizando, segundo ele, um método

inédito com resultados positivos inquestionáveis. O criminoso pode se esquivar de sua

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responsabilidade, pode fugir da prisão e pode escapar da polícia, porém (como pregam os

dizeres no muro de uma das unidades) “do amor ninguém foge”.

2.4 O cotidiano institucional: orai e vigiai

Como exposto anteriormente, o método APAC pode ser aplicado em diferentes

instituições prisionais e em diversos níveis. Será apresentado aqui o cotidiano institucional

de uma unidade masculina, de uma cidade de médio porte, do interior de Minas Gerais.

Durante a realização do presente estudo, a unidade em questão estava iniciando os

trabalhos em uma nova sede, com capacidade aproximada para 200 recuperandos,

construída mediante o repasse de verba estadual e da doação do terreno pela Prefeitura.

Além disso, a mão de obra necessária para a construção do local foi exclusivamente

advinda de presos, o que se traduzia em certo respeito pela instituição, que foi erguida

graças aos esforços deles mesmos7.

Outra especificidade dessa unidade são portarias e decisões singulares do juiz de

Execução Penal da Comarca. Este era favorável ao trabalho da APAC, mas aparentemente

com algum receio, chegando até a sugerir o destacamento de policiais para auxiliar na

segurança do Centro de Reintegração – o que acabou não se concretizando. Porém,

algumas medidas eram mais do que apenas sugestões, como a proibição de qualquer tipo

de ligação telefônica e o corte ao acesso a estações de rádio pelos recuperandos. Além

disso, quase a totalidade dos presos que ingressavam na APAC já havia passado pelo

presídio convencional, geralmente em regime fechado. Dessa maneira, voltar ao pesídio se

constituía como penalidade máxima ao recuperando e as lembranças dessa experiência

faziam parte do cotidiano, no qual, para eles, estar na APAC era como estar no “céu” e

voltar para o presídio equivaleria a ir para o “inferno”. Mas não se sabe qual era o critério

utilizado para a designação do preso à APAC, já que características como bom

comportamento, antecedentes criminais, duração da sentença e tipo de crime variavam

bastante entre os escolhidos.

O momento da chegada de novos detentos era significativo. Todos com uniforme

laranja, cabeças raspadas, calçados precários, magros e cabisbaixos. Eles eram recebidos

7 Art. 34 do Código Penal – Decreto Lei 2.848/40: § 3º - O trabalho externo é admissível, no regime fechado,

em serviços ou obras públicas. Art. 36 da Lei 7.210/84: O trabalho externo será admissível para os presos em regime fechado somente em

serviço ou obras públicas realizadas por órgãos da Administração Direta ou Indireta, ou entidades privadas,

desde que tomadas as cautelas contra a fuga e em favor da disciplina.

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com boas vindas por toda a equipe, que se apresentava e dizia sua função. As famílias dos

presos eram, então, contatadas para que enviassem roupas, sapatos e artigos de cama,

banho e higiene pessoal. Nos primeiros meses da nova sede, as famílias também podiam

fazer o “sacolão”; ou seja, podiam trazer artigos alimentícios uma vez por semana.

Todavia, com o tempo, isso acabou se tornando uma espécie de competição entre eles e a

Direção julgou melhor proibir o envio de alimentos. Quanto àqueles que não possuíam

família, a instituição se encarregava de arrecadar os artigos necessários por meio do

repasse de verba estadual, de doações da comunidade ou de outros recuperandos. Os presos

passavam a usar roupas comuns, cortes de cabelo de sua preferência (desde que não fossem

compridos) e a serem chamados pelo próprio nome. Destaca-se que o uso de apelidos,

gírias ou qualquer expressão que fossem relacionados ao mundo do crime eram proibidos e

cabíveis de punição.

A proteção da unidade ficava a cargo dos “plantonistas ou auxiliares de

segurança”, homens com alguma experiência em vigilância que supervisionavam os

recuperandos e o fluxo de pessoas na instituição, além de realizarem rondas e vistorias.

Alguns desses plantonistas possuíam experiência como agentes penitenciários ou

integrantes do Exército, mas relatavam que o trabalho na APAC era diferente de qualquer

outro. Havia um relacionamento de respeito, e às vezes até mesmo amigável, entre eles e

os detentos. Na época deste estudo, eram realizados campeonatos de futebol semanais entre

recuperandos e plantonistas, com tabelas de pontos e expectativa quanto aos vencedores.

Entretanto, a vigilância exercida era principalmente comportamental – uma simples

palavra ou atitude não condizente com a metodologia poderia significar uma falta

disciplinar. Um exemplo disso ocorreu justamente durante os jogos: o recuperando se

irritou com a atitude de um companheiro, discutiu com ele e saiu do jogo. Devido a isso,

ele recebeu uma sanção e teve que permanecer alguns dias totalmente fechado em sua cela.

As faltas disciplinares eram registradas no prontuário do preso, no relatório enviado

ao juiz e no quadro disciplinar afixado na parede do regime correspondente. Esse quadro

era composto pelo nome de todos os recuperandos daquele regime, com suas respectivas

faltas, classificadas em leves, médias ou graves. Para cada um desses níveis, havia castigos

correspondentes, que variavam desde ficar totalmente fechado em sua cela até a regressão

penal, podendo voltar ao presídio em casos extremos. Algumas faltas individuais poderiam

ser punidas coletivamente, pois se entendia que os demais integrantes daquele regime

permitiram de alguma forma a ocorrência da transgressão, tendo, assim, sua parcela de

culpa. Além disso, na maioria das vezes, havia ainda um castigo posterior, designado pelo

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juiz a partir dos relatórios recebidos. Essa era outra particularidade do juiz local, que se

interessava e designava sanções até mesmo para faltas leves que já haviam sido punidas

pela instituição. Situação que não agradava muito aos recuperandos, especialmente pelo

fato de que a sanção do juiz geralmente correspondia à proibição de saída nos feriados,

como Dia das Mães e Natal.

Outra forma de vigilância dos recuperandos era o Conselho de Sinceridade e

Solidariedade (CSS). Composto por recuperandos escolhidos ou aprovados pela Direção, o

CSS tinha a função de orientar os demais quanto ao método, fazer cumprir o regulamento,

realizar assembleias para discussões e conduzir mediações entre o regime e a Direção da

unidade. Dessa forma, seus integrantes podiam aplicar faltas e castigos, assim como

auxiliar na resolução de algum conflito entre presos e Direção. Isso se constituía como uma

posição ambígua, pois o membro do CSS poderia receber favores e ser bem quisto pela

instituição, mas, para isso, ele precisava ir contra o código de ética do crime em uma de

suas piores resoluções: o delator.

A lista de deveres e proibições aos recuperandos era extensa. De segunda a sexta,

eles tinham sua rotina totalmente definida, começando pelo horário de acordar até o de se

deitar, incluindo pequenos intervalos entre as atividades. Todas as atividades eram

obrigatórias e incluíam: trabalho, estudo, orações, participação em cultos, palestras e

assembleias entre outros. Ainda, era obrigatório o uso de crachá, de vestimentas adequadas

para cada ocasião e de sempre ser cortês e prestativo no tratamento com os demais.

Portanto, o uso de boné ou bermuda durante uma palestra representava uma falta leve, mas

poderia se constituir apenas como uma advertência verbal, dependendo do plantonista ou

membro do CSS que estivesse presente. Os demais aspectos da rotina, como refeições,

banhos, televisão e academia, entre outros, também possuíam horário e tempo de duração

definidos.

Assim, a repetição e o automatismo se constituíam como as principais

características do cotidiano na tentativa de controlar cada vez mais o comportamento dos

recuperandos. Um exemplo disso foi a iniciativa da Direção em prol da diminuição do

número de fumantes e do número de cigarros consumidos por dia. Primeiramente, foi

proibida a entrada na instituição de cigarros falsificados, que são mais baratos e mais fáceis

de serem conseguidos. Dias depois, foram definidos horários específicos, de duração

aproximada de dez minutos, nos quais era permitido fumar. Dessa maneira, o cigarro foi

oficialmente incluído no cronograma diário, com consequente castigo em caso de

descumprimento. Outro exemplo é a “oração do recuperando”, uma oração que eles eram

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obrigados a recitar todos os dias, nos momentos em que estavam reunidos, como após a

lista de chamada matinal ou antes de almoçar. Essa oração tinha sido impressa em um

banner grande e permanecia exposta na sala comunal durante todo o tempo.

Aos sábados, eles podiam tirar o dia livre para descansar um pouco e, aos

domingos, aconteciam as visitas familiares. Apenas familiares de primeiro grau e

companheiras com registro de casamento ou união estável eram autorizados a realizar a

visita, salvo casos especiais em que o recuperando possuía uma constelação familiar

peculiar. Além disso, cada recuperando tinha direito a uma visita íntima por mês desde que

fosse casado ou possuísse união estável e fosse visitado regularmente pela companheira

aos domingos por pelo menos três meses. Uma das maiores vantagens da APAC com

relação ao Presídio, segundo eles, era a não realização da revista íntima, procedimento no

qual o familiar precisa ficar totalmente nu e abaixar três vezes em cima de um espelho para

detectar se estaria entrando com algum material não autorizado. Motivo de tristeza e de

sentimentos de humilhação nos detentos, a revista íntima era sempre apontada como um

procedimento vexatório, que era realizado, inclusive, com idosos e crianças, mas que não

fazia sentido, pois o contrabando era realizado de outras formas – inclusive pelos próprios

agentes penitenciários conforme relatos.

O trabalho se constituía como um dos elementos mais importantes do método e da

rotina da instituição, estando presente nos três regimes, porém de maneira distinta. No

regime fechado, era voltado para atividades artesanais, geralmente envolvendo papel,

plástico, tecido ou material reciclado. Denominado pela metodologia apaqueana de

laborterapia, esse tipo de trabalho tinha a intenção de que, por meio da construção de

pequenos objetos ou artigos artísticos, eles pudessem refletir sobre suas vidas e sobre os

atos criminosos que cometeram. Dessa forma, esse trabalho não era voltado para a

obtenção de lucro, mas para a disponibilidade de um momento em que se pudesse construir

algo novo ao mesmo tempo em que a mente se voltaria para novas perspectivas. O regime

semiaberto interno realizava trabalhos na instituição como jardinagem, trato dos porcos ou

da horta, auxiliar de plantonista e porteiro, cozinheiro, entre outros. O semiaberto

autorizado ao trabalho externo realizava atividades na cidade como limpeza de ruas e

manutenção de praças por meio de um convênio da Prefeitura com a APAC. Entretanto,

eles saíam apenas para trabalhar, não podendo ir a outros lugares ou desobedecer ao

regulamento disciplinar, já que não se tratava de um regime aberto.

Ademais, todos os recuperandos da instituição realizavam trabalhos de limpeza,

organização e manutenção dos espaços diariamente. As celas eram especialmente

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vistoriadas todos os dias e deveriam estar em perfeita organização e limpeza. Havia ainda

um concurso mensal para definir a cela mais limpa, que recebia um troféu, e a cela mais

suja, que deveria expor um porquinho em suas grades durante todo o próximo mês – mais

um motivo para fazer o máximo possível pela limpeza e organização.

Juntamente com o concurso das celas, era realizado um concurso de composição e a

escolha do recuperando do mês, que poderia chamar sua família para acompanhar a entrega

do prêmio. O recuperando do mês era escolhido com base em seu comportamento. Para

isso, era necessário não só ter cumprido com rigor as determinações da instituição, mas ter

contribuído com ela de alguma forma. Pois, como prega a filosofia apaqueana, não basta

não errar, é preciso praticar o bem. Assim, havia uma pequena festividade mensal, com

salgadinhos, refrigerantes e apresentações dos recuperandos. A instituição possuía alguns

instrumentos de percussão, com eventuais aulas de música e canto ministradas por

voluntários. E aqueles presos que já sabiam tocar e possuíam seus próprios instrumentos

recebiam autorização para se apresentar.

Anualmente, eram realizados a Jornada de Libertação com Cristo e o curso para

formação de voluntários. A primeira é voltada para os próprios recuperandos, com base

nos cursilhos da cristandade, em que há uma imersão de três dias de palestras, orações e

ensinamentos bíblicos. Ao final do terceiro dia, ocorre o encerramento com a participação

dos familiares e uma homenagem a cada recuperando por estar iniciando vida nova. Já o

curso para formação de voluntários, por sua vez, é realizado aos sábados e tem duração de

dois a três meses, sendo composto por ensinamentos acerca do método, da realidade

prisional brasileira e do regulamento disciplinar da instituição. Ao concluir o curso, o

voluntário está apto a iniciar suas contribuições de acordo com suas habilidades pessoais.

Uma das atividades que poderia ser realizada por voluntários era a Valorização

Humana. Esta possuía frequência semanal e consistia em uma espécie de palestra,

geralmente envolvendo temas cotidianos dos recuperandos, com reafirmações dos

princípios da metodologia e dos ensinamentos bíblicos. Uma das valorizações que a

pesquisadora presenciou reafirmava a igualdade de tratamento dentro da APAC, dizendo

que eles eram todos iguais, como os cavaleiros da távola redonda, independente do tipo de

crime cometido ou da duração da sentença. Houve, então, discordâncias quanto a isso, com

argumentos de que eles já haviam presenciado injustiças e tratamentos diferenciados para

as mesmas situações dependendo do recuperando. Ao que receberam o contra-argumento

de que eles mesmos não se tratavam com igualdade, pois permitiram que um preso natural

de São Paulo fugisse da instituição naquela semana. A discussão continuou, mas não se

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chegou a um consenso ou acordo entre as partes, deixando algumas questões no ar, como:

eles realmente poderiam ter impedido essa fuga? Não seria melhor considerar que um

fugiu, mas os demais escolheram permanecer?

Os regimes eram separados fisicamente entre si e a comunicação entre eles era

proibida. Quanto à comunicação externa, era realizada somente por intermédio das visitas

aos domingos e por carta, pois, como dito anteriormente, as ligações telefônicas foram

proibidas pelo juiz. Todas as cartas recebidas e enviadas eram primeiramente lidas por um

profissional da instituição e, se aprovadas, poderiam seguir seu curso. Cartas não

aprovadas ficavam retidas e caso se constatasse alguma irregularidade, como um

planejamento de fuga, o recuperando poderia ser contatado para outros esclarecimentos.

Além disso, cartas com questões sentimentais delicadas eram encaminhadas à psicóloga da

instituição.

Diante das explanações anteriores, é possível perceber que o cotidiano institucional

era composto principalmente pela disciplina, pela ocupação do tempo e pela transmissão

dos ensinamentos oficiais. Esses últimos se faziam presente nas palestras e nos retiros

espirituais, mas era possível detectá-los, particularmente, nos pequenos aspectos do dia a

dia. No discurso dos presos, havia a repetição frequente de que estavam mudados, que

tinham verdadeiramente iniciado nova vida no caminho de Deus. No comportamento,

havia polidez e solicitude exacerbadas, incluindo interrupções no atendimento psicológico

de outros recuperandos para oferecer à profissional um ventilador ou um copo d’água.

Existia, inclusive, o medo de irem contra o regulamento durante um momento de emoção

intensa, ou, nas palavras deles, “medo de perder a cabeça”. Frases como “Eu não preciso

me esconder atrás da bíblia” demonstravam como as ideias cristãs eram escudo e

esconderijo, moldando falas, pensamentos e sentimentos.

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3 PSICANÁLISE E RELIGIÃO

Freud dedicou uma parcela considerável de sua obra à construção de elaborações

acerca da religião: seu surgimento, sua constituição, seus efeitos, suas instituições e seu

futuro. A maior parte dessas elaborações sofreram duras críticas, do momento em que

foram lançadas até os dias atuais, seja de religiosos, de estudiosos de outros campos do

saber – como antropólogos, biólogos e historiadores, entre outros – e, até mesmo, dentro

do próprio movimento psicanalítico. Como consequência, surgiram diferentes chaves de

leitura para esses trabalhos freudianos, propiciando debates a partir de diversas

perspectivas: psicanaliticamente, como obras de literatura, de história, de antropologia etc.

Lacan, ao retomar os escritos de Freud, não desconsidera suas contribuições acerca

da religião, nem as tacha de incorretas. O que ele propõe é uma nova maneira de encarar

esses escritos, ampliando sua abrangência e sua contribuição. A maior diferença entre eles,

aquilo no qual não há aproximação de ideias, diz respeito ao prognóstico da religião. Para

Freud, a religião é apenas mais um estágio no desenvolvimento da humanidade, por isso

está fadada a ser superada. Já Lacan a considera um poderoso instrumento de construção

de sentido, que poderia ser capaz, até mesmo, de repelir completamente o real.

Essa é uma divergência fundamental, que retomaremos adiante em nosso percurso.

Por ora, gostaríamos de trazer à tona algumas considerações de Freud e Lacan acerca do

surgimento e do desenvolvimento da religião, objetivando uma análise mais ampla da

questão, mas tomando o cuidado para que as duas perspectivas não se misturem ou se

confundam. Apesar de se aproximarem em alguns pontos, não podemos perder de vista que

se trata de chaves de análise distintas, advindas de diversos autores e de diferentes

contextos histórico-sociais.

Freud, por exemplo, foi bastante influenciado pelo movimento positivista do século

XIX, acreditando sempre em seus avanços e se considerando um fiel seguidor de seus

princípios apesar de transgredi-los em sua obra (Morano, 2014). A análise da religião foi

precisamente o que o fez expandir suas teorias para além da clínica, mas sem nunca perdê-

la de vista, utilizando-se sempre de analogias entre o fenômeno religioso e o neurótico.

Influenciado pelo positivismo, especialmente o darwinismo, Freud foi à busca de um início

da religião, passando por seu desenvolvimento ao longo da história e culminando no seu

desaparecimento, em um futuro talvez não tão distante – utilizando de contribuições de

outros campos do saber e de achados da experiência clínica, como o Complexo de Édipo e

o retorno do recalcado, para construir e analisar todo esse percurso.

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A religião costumava se constituir como uma questão dogmática, ou seja, “o que

importava era dar voz aos documentos religiosos desaparecidos dos povos que dominaram

a escrita e esclarecer a íntima conexão entre religião e linguagem” (Küng, 2005, p. 31).

Entretanto, antropólogos e etnólogos britânicos começaram a se lançar numa investigação

diferente: o estudo dos povos primitivos, ou seja, aqueles que não dispunham de linguagem

escrita, em busca das primeiras religiões (Küng, 2005). Freud se insere nessa última

tradição, baseada no evolucionismo darwinista, e utiliza autores como Robert Smith,

Atkison, Reinach, Wundt, Frazer e o próprio Darwin8, para construir um saber acerca do

início da religião.

Para Freud, o totemismo teria sido a primeira forma de religião na história da

humanidade, vinculando-se, desde o início, “aos regulamentos sociais e às obrigações

morais” (Freud, 1939[1934-1938]/2006). Este se constitui a partir de dois tabus principais:

não matar o totem e não se casar ou manter relações sexuais com membros do mesmo clã

(exogamia). Por isso, pode ser caracterizado de duas formas: como uma organização social

ao estabelecer nomeações aos diferentes clãs e classificar seus membros como irmãos e

irmãs; e como organização religiosa devido às relações de respeito e proteção mútuos entre

um homem e seu totem. Todavia, essa divisão é apenas didática, pois os dois aspectos

estão interligados mutuamente. Assim como o significado da palavra tabu, que pode ser

interpretada tanto como algo sagrado, como algo proibido, perigoso, correspondendo

frequentemente à ideia de “temor sagrado” (Freud, 1912-1913/2015).

A partir de seus estudos com os neuróticos, Freud (1912-1913/2015) lança nova luz

à questão dos tabus e aponta a ambivalência de sentimentos como ponto de concordância

entre estes e as proibições obsessivas. Primeiramente, é imprescindível levar em

consideração que uma proibição é necessária apenas quando está presente um forte pendor

inconsciente contrário a ela; ou seja, quando um impulso inconsciente deve ser impedido

de se manifestar. O resultado de tal proibição é a ambivalência de sentimentos, porque, de

um lado, temos a inclinação inconsciente e, de outro, o imperativo da proibição. Por se

localizarem em diferentes instâncias, as duas correntes são irreconciliáveis, restando

apenas a possibilidade de uma solução de compromisso – uma descarga de energia que traz

a marca do impedimento, mas também se configura como uma satisfação substitutiva do

8 Como aponta Araújo (2014), as principais fontes bibliográficas de Freud em Totem e Tabu são: The Descent

of Man and Selection in Relation to Sex (1871), de Charles Darwin; Lectures on the Religion of the Semites

(1889), de William Robertson Smith; Primow Law (1903), de James Jasper Atkinson; os quarto volumes de

Cultes, Mythes et Religions (1905-1912), de Salomon Reinach; Elemente der Völkerpsychologie (1912), de

Wilhelm Wundt; The Golden Bought (1890) e Totemism and Exogamy (1910), de James George Frazer.

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que foi barrado. Esse é o mecanismo psíquico presente tanto no sintoma neurótico como no

tabu dos homens primitivos, devendo conceder aos “homens primitivos um maior grau de

ambivalência do que o encontrado no homem civilizado de hoje” (Freud, 1912-1913/2015,

p. 110).

Partindo da teoria psicanalítica freudiana, pode-se afirmar, portanto, que os dois

principais tabus do totemismo correspondem aos mais fortes desejos da humanidade: matar

o totem e ter relações sexuais com membros do mesmo clã. Porém, a psicanálise ainda

contribui para se pensar mais uma questão: qual o significado do totem? Utilizando-se

dessa vez da análise de crianças, Freud (1912-1913/2015) aponta a zoofobia como o

correlato psíquico da veneração ao totem dos selvagens, pois em ambos os casos ocorre um

deslocamento de sentimentos do pai para o animal; ou seja, o animal se torna um substituto

do pai.

Retomando o caminho percorrido, Freud (1912-1913/2015, p. 203) demonstra que,

se o animal totêmico é o substituto do pai, os dois principais tabus do totemismo

correspondem aos crimes de Édipo, que assassinou o pai e desposou a mãe, e aos “dois

desejos primordiais da criança, desejos cuja repressão insuficiente ou cujo redespertar

forma o núcleo de talvez todas as psiconeuroses”. Tal equiparação será uma das noções

utilizadas para a tentativa de Freud de explicar o surgimento do totemismo, juntamente

com o ritual da refeição totêmica, apontado por Smith, e com a hipótese darwiniana sobre a

divisão da humanidade em hordas nos tempos primevos.

Esta seria a cena inicial: um pai primevo, chefe da horda, que tinha o controle e a

posse exclusiva de todas as mulheres. Certo dia, os machos mais jovens, que haviam sido

expulsos do grupo, se unem e retornam para tomar o lugar do pai. Eles, então, matam e

devoram o pai com a intenção de identificarem-se com ele e, ao mesmo tempo, receberem

parte de sua força. Os irmãos odiavam o pai, já que este se constituía como um

impedimento às suas necessidades sexuais e de poder, mas também possuíam sentimentos

afetuosos para com ele de amor e admiração. Após o assassinato, os sentimentos afetuosos

retornaram na forma de arrependimento, resultando numa consciência de culpa.

Dessa forma, “o morto tornou-se mais forte do que havia sido o vivo” (Freud 1912-

1913/2015, p. 219); isto é, a representação do pai e sua autoridade tornaram-se mais

eficientes após sua morte, levando os irmãos a uma obediência a posteriori. Eles, então,

renunciam a seu ato e instituem os dois tabus fundamentais do totemismo a partir da

consciência de culpa – não matar o totem, substituto do pai, e a proibição de desposar as

mulheres que haviam conquistado. A renúncia às mulheres refletia não só a obediência ao

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pai morto, mas se fazia precisa também por outro motivo: nenhum dos irmãos era tão forte

quanto o pai. A luta entre eles os faria sucumbir juntamente com a nova organização. Já o

tabu que protege o animal totêmico representa o aspecto religioso do totemismo,

possibilitando a exteriorização da culpa e do arrependimento, ao mesmo tempo em que

garante ao substituto do pai os cuidados necessários e a promessa de que o crime não se

repetirá.

A partir dessa definição, Freud faz coincidir ontogênese e filogênese na medida em

que reúne no Complexo de Édipo “os começos da religião, moralidade, sociedade e arte,

em plena concordância com a verificação psicanalítica de que esse complexo forma o

núcleo de todas as neuroses” (Freud, 1912-1913/2015, p. 238). Isso se faz possível graças à

noção de “psique das massas” (Freud, 1912-1913/2015, p. 239), na qual os processos

psíquicos são transmitidos de uma geração a outra, desenrolando-se coletivamente, assim

como na vida psíquica individual. Todas as religiões posteriores se constituiriam, portanto,

como tentativas de resolução da mesma questão: a reconciliação com o pai ofendido e,

consequentemente, a mitigação da culpa. Além disso, é possível traçar uma linha evolutiva

através da história, iniciando-se a partir do Totemismo e seguindo um percurso análogo ao

desenvolvimento de uma neurose: trauma primitivo – defesa – latência – desencadeamento

da doença neurótica – retorno parcial do reprimido (Freud, 1939[1934-1938]/2006).

O assassinato do pai primevo corresponderia ao trauma primitivo, que foi recalcado

como forma de defesa do aparelho psíquico, resultando num período de latência.

Entretanto, nada do que já teve lugar na vida psíquica desaparece completamente, mas

retorna de forma distorcida, trazendo consigo tanto a marca do conteúdo inconsciente

quanto o efeito da repressão. Assim, o ato memorável se manifesta, de maneira inicial,

através da religião totêmica, na qual o animal substitui a figura do pai e a refeição totêmica

representa seu assassinato. Com o passar do tempo, ocorreu a humanização do totem e,

posteriormente, sua evolução para o monoteísmo, caracterizando o retorno do recalcado na

figura de um deus único, que inclusive é chamado abertamente de pai. Tal evolução foi

desenvolvida por Freud utilizando-se de fatos históricos e princípios psicanalíticos na

construção de uma nova visão acerca da figura de Moisés e do surgimento do judaísmo.

Segundo ele, Moisés era egípcio, provavelmente aristocrata. Migrou com os judeus

e transmitiu a eles a religião do deus Aton criada pelo faraó Akenaton. Porém, acabou

sendo assassinado e seus ensinamentos, que não receberam boa acolhida, permaneceram

ignorados por bastante tempo. Muitos anos depois, esses ensinamentos encontraram espaço

ao se mesclarem à outra religião monoteísta, a religião de Javé, tendo como expoente outro

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Moisés, dessa vez Medianita. Dessa fusão, teria surgido o judaísmo, que se configura como

uma evolução não só pelo fato de ser monoteísta, mas também pela proibição de se fabricar

uma imagem de Deus – um “triunfo da intelectualidade sobre a sensualidade” (Freud,

1939[1934-1938]/2006, p. 113), já que a percepção sensorial fica assim submetida à ideia

abstrata. Além disso, trata-se de um percurso que demonstra novamente a evolução do

processo neurótico, em que o evento traumático se repete, seu conteúdo é deixado de lado

por um tempo, mas não desaparece, retornando posteriormente de forma distorcida.

Porém, o trauma original vem a se repetir novamente, dessa vez, na busca de uma

resolução mais eficaz: o sacrifício do filho para mitigar os atos contra o pai. Por meio do

cristianismo, o ato primordial é reconhecido e introduzido em sua doutrina pelo mito do

“pecado original”, que é certamente um pecado contra Deus-pai e certamente um

assassinato, já que pela lei do talião uma vida só se paga com outra vida. Assim, o filho

abre mão da própria existência para se reconciliar com o pai ao mesmo tempo em que

solidifica sua renúncia a todas as mulheres pelas quais se rebelou. No entanto, a

ambivalência de sentimento permanece, pois, ao se sacrificar, o filho se ergue à condição

de deus no lugar do pai. Ou seja, “a religião do filho substitui a religião do pai” (Freud,

1912-1913/2015, pp. 234-235). A representação dessa substituição é a atualização da

refeição totêmica, realizada a partir de então com a carne e o sangue do filho, na forma de

comunhão.

Apesar de ter como base a religião judaica, o cristianismo apresentou

diferenciações importantes, principalmente com relação ao monoteísmo e à proibição de se

construir uma imagem de Deus. A incorporação de tradições de povos vizinhos

proporcionou o restabelecimento da deusa-mãe e de diversas figuras divinas, direção bem

distinta daquela trilhada pelo alto nível intelectual do judaísmo (Freud, 1939[1934-

1938]/2006). Todavia, a redenção do pecado original foi um elemento decisivo para sua

aceitação e popularização ao longo dos anos, pois reflete uma herança arcaica, elementos

de origem filogenética que renascem com cada indivíduo e se atualizam mediante o drama

do Édipo.

Ao iniciar sua incursão na relação entre psicanálise e religião, Lacan vai ao

encontro da concepção freudiana acerca da gênese da religião, presente em Totem e Tabu e

Moisés e o Monoteísmo. Nesses textos, Deus é apresentado como o retorno do pai devido

ao Complexo de Édipo, ou seja, à “transmissão para a humanidade da lei edipiana da

proibição do incesto” (Julien, 2010, p. 44). Porém, Lacan destaca um ponto crucial, que

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chegou a ser colocado pelo próprio Freud: estas obras se constituem como “mitos

científicos”, devendo sempre ser encaradas como tais (Julien, 2010).

A função do mito não é criar um conhecimento dito científico, mas a tentativa de

dizer do inominável; ou seja, “a tentativa de dar forma épica ao que se opera da estrutura”

(Lacan, 1993, p. 55). Freud se lança na construção do mito a partir do objeto fóbico

infantil, no qual o animal se constitui uma substituição, uma metáfora do pai. A fobia,

dessa forma, significaria o retorno a algo anterior, que Freud caracteriza como a figura do

totem e com o qual hoje podemos estabelecer um paralelo ao ancestral animal que o

evolucionismo busca para o homem; um ancestral anterior à cultura, que simbolize o

representante de um gozo puro, tido como primordial:

Miticamente – e é o que quer dizer mítica mente – o pai só pode ser um animal. O

pai primordial é o pai anterior ao surgimento da Lei, da ordem das estruturas da

aliança e do parentesco, em suma, anterior ao surgimento da cultura. Eis porque

Freud faz dele o chefe da horda, cuja satisfação, de acordo com o mito animal, é

irrefreável. (Lacan, 2005a, p. 73)

Nesse sentido, a figura do pai é de uma significação ímpar, pois representa o laço

social invisível, aquele que é fundado culturalmente – ao contrário do laço materno, que é

carnal, fundado numa realidade manifesta. A função do pai representa, portanto, o ponto

crítico entre a onipotência do desejo e sua interdição, dinâmica que funda a um só tempo a

lei e o desejo. Ou seja, o assassinato do pai é o que vem marcar a saída da origem biológica

e a fundação de um sujeito inserido na linguagem a partir da interdição do desejo do pai e

da sua elevação à lei simbólica.

Mediante a morte do pai, o desejo será mais ameaçador e demandará uma

interdição mais rígida. O pai privador será então introjetado no psiquismo e dará origem ao

supereu, uma instância crítica reguladora. Por isso, Lacan destaca sempre que o pai é um

pai morto, pois, se ele está morto, nada mais é permitido (Lacan, 2005b). Ou seja, “em vez

de trazer liberdade, a queda da autoridade opressiva dá origem assim a novas e mais

severas proibições” (Zizek, 2010, p. 114). O resultado dessa operação será a transferência

do enunciado do desejo “a um Outro, a esse inconsciente que nada sabe daquilo que

suporta sua própria enunciação” (Lacan, 2005b, p. 30).

Da definição do desejo como desejo do Outro, funda-se o sujeito: inserido na

linguagem, dividido, sujeito ao inconsciente. Diferentes posicionamentos frente ao desejo

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darão origem a diferentes formas de ser sujeito. O neurótico será aquele que foge do desejo

do pai e o confunde com sua demanda, o perverso colocará seu desejo no mesmo nível do

desejo do pai, ao passo que o misticismo se caracterizará pela busca desse desejo, um

mergulho em sua direção (Lacan, 2005a).

Não por acaso, Freud utiliza a tradição judaico-cristã para a construção do mito,

pois “o que marca o misticismo judaico, até mesmo no amor cristão, e mais ainda na

neurose, é a incidência do desejo de Deus” (Lacan, 2005a, p. 76). Lacan (2005a) usa,

então, uma passagem do Êxodo para demonstrar que a incidência da tradição judaico-cristã

não é a do gozo, isto é, a do pai primevo, mas sim a do desejo, especificamente do desejo

de Deus de Moisés. Segundo as escrituras, ao se dirigir a Moisés na sarça ardente, Deus se

identifica pelos dizeres “Eu sou aquele que sou” (Lacan, 2005a, p. 77). Ou seja, ele é o

inominável, o vazio, ou, partindo das instâncias estabelecidas por Lacan, trata-se de um

Deus localizado no Real.9 Por sua impossibilidade de simbolização, o Real se faz presente

através da angústia – uma sensação de vertigem, ou, como caracterizado por Lacan (2005a,

p. 78), “aquilo que não engana”.

Entretanto, ao se anunciar aos antepassados de Moisés, Deus o fez sob a forma de

um Nome. Isso significa que Deus não nomeia a si próprio. Ele só pode ser nomeado a

partir de seus filhos e filhas, que dirão “Nosso Pai, que estás no céu, santificado seja o teu

nome” (Julien, 2010, p. 48). Partindo desse raciocínio, podemos concluir que a função

paterna não configura uma característica inata, mas uma nomeação, uma posição a que se é

elevado a partir da ação de outrem. Isto é, não se trata do homem que chama a si mesmo de

pai, mas da nomeação que este recebe a partir da mulher que lhe confere um lugar

diferenciado, o lugar de seu desejo. Para Lacan, essa seria a representação da paternidade

no registro simbólico; ou seja, na dimensão dos significantes. A partir da ocupação desse

espaço pelo pai, a criança pode respirar aliviada: ela não é tudo, nem nada, mas efeito do

desejo de sua mãe enquanto mulher (Julien, 2010).

A instância simbólica fica assim caracterizada como a sede da lei que o pai

promulga, na qual a estrutura da neurose se articula em torno de um desvio, um déficit

(Lacan, 2005b). A segunda dimensão da função paterna provém da demanda do filho: “ter

um pai com uma imagem grande, forte e digna de ser admirada e amada” (Julien, 2010, p.

50). É a dimensão do imaginário, que pode ser encontrada na interpretação realizada pelos

teólogos dos dizeres do Êxodo como “Sou aquele que é” (Julien, 2010, p. 50), dando

9 O Real aqui pode ser caracterizado como aquele do final do ensino de Lacan, enquanto o impossível da

relação sexual, isto é, o impossível de ser inscrito no simbólico (Chaves, 2009).

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origem a um pai ideal, todo-poderoso. Porém, em algum momento, essa imagem de

soberano vacila, revelando certa porção de fragilidade à figura paterna, como quando nos

vemos desamparados pelo Criador. Deste conflito entre o pai simbólico e o pai imaginário,

vem à tona o pai real, o homem que ocupa o lugar do desejo da mãe, instaurado e

transmitido ao filho. Um pai humano, nada onipotente, mas importante para que o pai ideal

seja superado e para que seja transmitida ao filho outra lei: a lei do desejo. A partir de

então, o filho será capaz de abandonar as figuras materna e paterna para ir à busca de um

cônjuge proveniente de outra família (Julien, 2010).

A transição do pai ideal para o pai real pode ser sede de conflitos e dificuldades, já

que muitas vezes o neurótico se agarra a seus ideais e abre mão de subterfúgios para

consolidá-los. Uma dessas saídas é a religião, que investe na figura de Deus onipotente,

com o intuito de fazer semblante de pai perfeito. As religiões não disponibilizam a imagem

de um pai real, que demonstre suas falhas, abrindo a possibilidade para que o filho possa ir

além dele. Pelo contrário, “elas não têm interesse algum nesse desvencilhamento do

indivíduo” (Nani & Chaves, 2011, p. 359). Elas se interessam pela dependência do sujeito

à figura paterna, pois assim permanecerão exercendo seu controle. Dessa forma, os fiéis

perpetuam tentativas de dar consistência ao pai idealizado, atraídos por promessas de

reestruturação da ordem, baseadas numa referência absoluta, voltando seus esforços ao que

é impossível (Nani & Chaves, 2011).

Ao dizer do impossível, estamos adentrando no campo do Real, conceito elaborado

por Lacan, que foi adquirindo cada vez mais importância ao longo de sua obra. Porém, não

se trata de algo delimitado, uma ideia que seria apreendida como um todo – como a noção

de “coisa em si” elaborada por Kant. Como explicado por Zizek (2010, p. 82), “não é nem

a teia de aranha do imaginário (ilusões, mal-entendidos), que distorce o que percebemos,

nem a ‘muralha da linguagem’, a rede simbólica através da qual nos relacionamos com a

realidade”, mas o fracasso irredutível que marca a sexualidade humana através da

impossibilidade da relação sexual. Isto é, ao entrar no regime da diferenciação sexual,

regulado simbolicamente, algo do sujeito se perde – algo irredutível e inacessível. “Um

‘resto’ impossível de transmitir, e que escapa à matematização” (Roudinesco & Plon,

1998, p. 646).

O analista será aquele que se ocupa especificamente do Real, ou seja, aquele que irá

voltar sua prática para “o que não funciona” (Lacan, 2005b, p. 63) ao contrário de outras

perspectivas, que se empenharão em negar ou esconder esse real, numa tentativa de

apaziguar os sujeitos frente aos seus impasses. A religião se insere nessa segunda linha de

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atuação não só através do fortalecimento da imagem de um pai ideal, mas também

produzindo respostas para todas as perguntas e dando sentido a tudo que causa angústia.

Por esse motivo, nossa investigação agora se volta para a relação entre religião e Real,

especialmente a religião que se presentifica no discurso e nas práticas apaqueanas, na

medida em que mescla religião e poder com um intuito bem específico: recuperar

criminosos.

3.1 Às voltas com o real...

O método APAC (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados) foi

construído a partir da religião cristã, especialmente a católica, tanto em sua dimensão

filosófica quanto em seu cotidiano e práticas institucionais. Como apontado no capítulo

anterior10, a APAC surgiu a partir de um programa de apostolado cristão, expandiu seus

horizontes e ampliou sua abrangência, porém sem nunca perder de vista suas origens. A

religião cristã ainda está presente na própria definição do método como um de seus

elementos principais e como prática obrigatória, incluindo a Jornada de Libertação com

Cristo, as orações diárias e as celebrações eucarísticas entre outros. Até mesmo o processo

de canonização de Franz de Castro, considerado o mártir das APACs, atesta como a íntima

ligação entre o método e a religião católica sobreviveu com o passar dos anos.

Freud teve grande interesse pelo fenômeno religioso, mas não se dedicou ao estudo

de todas as religiões – seu interesse se voltou com mais afinco para as tradições judaica e

cristã. Todavia, Freud critica especificamente a garantia dada aos fiéis de uma vida após a

morte, expectativa muito mais cristã do que judaica, e chega, até mesmo, a realizar a

declaração de que o verdadeiro inimigo a ser combatido é a Igreja Católica Apostólica

Romana (Araújo, 2014). Foram, sobretudo, os católicos que se incomodaram com as

críticas de Freud, que reagiram aos seus escritos e que estabeleceram um diálogo com suas

considerações acerca da crença em Deus. Por isso, podemos dizer que “Freud fez que os

católicos falassem, interrogou o catolicismo, desinstalou-o, deixou-o pensativo” (Araújo,

2014, p. xi).

Para Lacan, por sua vez, “há uma verdadeira religião, é a religião cristã” (Lacan,

2005b, p. 67). Segundo ele, somente o cristianismo constrói com naturalidade uma

narrativa acerca da morte de Deus, através do drama da paixão, e a torna solidária ao único

10 Página 17.

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mandamento existente: “Amarás o próximo como a ti mesmo” (Julien, 2010, p. 54). Além

disso, retoma os dizeres de São João, “No começo era o Verbo”, a fim de especificar sua

correspondência à formulação psicanalítica de que é a entrada na linguagem, ou a

encarnação do verbo, que dá origem ao sujeito11. Compartilhando a noção de que, a partir

de sua fundação no discurso, o homem já não se assemelha mais a um animal, ou a

qualquer outra coisa, “está devastado pelo verbo” (Lacan, 2005b, p. 74).

Entretanto, é importante destacarmos que, no que concerne ao método APAC, não

estamos lidando com a religião cristã propriamente dita, mas com sua utilização com uma

finalidade específica: recuperar criminosos. Dessa forma, estamos às voltas com vários

elementos religiosos, sendo possível perceber seu apelo em diferentes dimensões. Porém,

alguns desses elementos são atravessados por outros interesses, outras ideologias, outras

forças, que modificam, principalmente, o modo como os sujeitos lidam e são afetados por

essa religião. Por esse motivo, será realizado um recorte específico das visões de Freud e

Lacan acerca da religião de acordo com o uso que é feito dela no método APAC. O aspecto

ideológico do método e seus atravessamentos político-sociais serão analisados no próximo

capítulo.

A primeira interpretação do fato religioso realizada por Freud diz respeito à

utilização da religião como uma forma de repressão consciente. A “perversão da vontade”,

processo observado por ele na neurose histérica, foi o que possibilitou a construção do

conceito de “dissociação da consciência”, isto é, a existência de um querer inconsciente,

que sofre a ação do recalcamento, mas ainda possui forças para se impor ao querer e à

vontade conscientes (Morano, 2014, p. 35). A partir dessa divisão do psiquismo, temos a

noção de um constante embate de forças entre o poder da repressão versus o poder do

conteúdo recalcado. A religião seria uma ferramenta a favor da repressão e do poder

conscientes, configurando-se “como um importante oponente do mundo dos desejos e

pulsões do indivíduo” (Morano, 2014, p. 35) e, muitas vezes, contribuindo para o

adoecimento psíquico.

Um exemplo dessa função da religião pôde ser observado na APAC durante a

realização do presente estudo. Um dos detentos teve uma polução noturna, isto é, foi alvo

de uma ejaculação involuntária durante o sono. Ao acordar e se perceber naquela situação,

sujeitou-se a três dias de jejum e orações intensificadas, para que seu corpo fosse

11 Da operação em que o homem ascende à condição de ser falante, obtém-se como consequência uma

divisão estrutural e irreversível, que dará origem, de um lado, ao que chamamos de Eu e, de outro, ao

inconsciente. Dessa maneira, o inconsciente será “a soma dos efeitos da fala, sobre um sujeito, nesse nível

em que o sujeito se constitui pelos efeitos do significante” (Lacan, 1964/2008, p. 126).

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purificado do pecado. Tratava-se do detento mais abertamente religioso daquela APAC,

destacando-se entre os demais pelas roupas sociais que usava diariamente e por sempre

incluir elementos bíblicos em seu discurso. Porém, ele possuía ainda uma característica

importante: era o presidente do Conselho de Sinceridade e Solidariedade (CSS),

representando, dessa maneira, uma autoridade perante os demais presos, com certa

liberdade para legislar no interior do regime. Defensor e entusiasta ferrenho do método,

dizia que estava curado do mundo do crime e das drogas, graças a nosso senhor Jesus

Cristo e à APAC. Por isso, era bem quisto pela direção da instituição e por alguns detentos,

que o viam como uma pessoa correta em suas atitudes.

A proibição do pensamento é uma das ferramentas da religião para manter sua

influência ao longo do tempo num processo em que se furta do exame da razão para

manter-se intacta e assegurar sua sobrevivência (Araújo, 2014). No entanto, com um

adendo relevante: proibições do pensamento, embora atinjam inicialmente uma

determinada área, tendem a se alastrar e causar “graves inibições na conduta de vida da

pessoa” (Freud 1933[1932]/2006, p. 167), gerando situações como a mencionada

anteriormente, na qual aquilo que é considerado pecado ou impuro é fortemente inibido,

indo se manifestar no que escapa ao sujeito e ultrapassando os limites de sua vontade

consciente.

A proibição do pensamento e a repressão consciente são favorecidas pelas

características do discurso religioso, quais sejam: um discurso circular, fechado em si

mesmo, englobante e totalizante. Para dizer dessas características, Freud

(1933[1932]/2006) utiliza um conceito especificamente alemão, a Weltanschauung, que

pode ser traduzido para o português como “visão do universo” ou “cosmovisão”, mas que

em suas palavras fica definido como:

uma construção intelectual que soluciona todos os problemas de nossa existência,

uniformemente, com base em uma hipótese superior dominante, a qual, por

conseguinte, não deixa nenhuma pergunta sem resposta e na qual tudo o que nos

interessa encontra seu lugar fixo. (p. 155)

Ou seja, um tipo de discurso que impossibilita manifestações da individualidade, já

que possui tudo resolvido, pronto e acabado.

Ao responder a todas as perguntas, a religião acalma e transmite segurança,

satisfazendo a sede de conhecimento do homem e diminuindo o medo com relação ao

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futuro, além de estabelecer normas que regulam e direcionam a vida dos indivíduos,

englobando-os em um sistema de crenças que não deixa espaço para a dúvida. Entretanto,

o estudo dos neuróticos obsessivos irá demonstrar outra face desse processo: a capacidade

de o conteúdo inconsciente vir à tona de maneira disfarçada mediante a solução de

compromisso entre proibição e desejo.

Os neuróticos obsessivos, ao contrário das histéricas e em consonância com o

homem religioso, procuram atenuar a angústia por meio de cerimoniais. Os cerimoniais

neuróticos se caracterizam por “pequenas alterações em certos atos cotidianos, em

pequenos acréscimos, restrições ou arranjos que devem ser sempre realizados numa mesma

ordem ou com variações regulares” (Freud, 1907/2006, p. 109). Inicialmente, estendem-se

apenas a atividades solitárias e por bastante tempo não chegam a afetar a esfera social do

neurótico. Porém, o não cumprimento do cerimonial implica intolerável ansiedade, que

geralmente obriga o indivíduo a retificar sua posição e a realizá-lo mesmo a posteriori.

Apesar de se afigurarem para o indivíduo e para aqueles que o rodeiam como atos sem

qualquer sentido, a investigação psicanalítica demonstra que estamos diante de

representações de elementos inconscientes fortemente catexizados; ou seja, estes se

configuram como uma forma de “expressar motivos e ideias inconscientes” (Freud,

1907/2006, p. 113).

Tanto o neurótico obsessivo quanto o homem religioso possuem desejos recalcados

que se fazem sentir através de intensos sentimentos de culpa. Pelo fato de o enunciado do

desejo estar presente apenas no inconsciente, nada se sabe acerca desse sentimento de

culpa, ao que se pode denominá-lo “sentimento inconsciente de culpa” (Freud, 1912-

1913/2015, p. 113). Este possui sua origem no assassinato do pai primevo, mas sempre se

renova diante de cada tentação, causando grande ansiedade diante da possibilidade de

infortúnio ou punição. Assim, o cerimonial terá a função de medida protetora, um ato de

defesa contra a ansiedade e com o objetivo de manter recalcado o enunciado do desejo, que

não cessa sua tentativa de vir à tona. Porém, infortunadamente, esses cerimoniais incitam

justamente aquilo que desejam evitar. Isto é, os atos que buscam reprimir o desejo trazem

consigo a marca desse desejo, obrigando o neurótico a repeti-los cada vez mais

intensamente (Morano, 2014, p. 37). O resultado se configura como um ciclo, no qual

repressão e desejo, mesmo antagônicos, se presentificam a cada cerimonial, garantindo a

continuidade do processo.

O cotidiano institucional apaqueano se constitui como um exemplo desse processo

em que a repetição diária gera um automatismo acrítico, mas que deixa transparecer sua

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inconsistência quando algo estanca. Como apontado no capítulo anterior12, todos os dias,

pela manhã, era realizada a revista nas celas, com perda de pontos se algo estivesse fora

dos conformes. Mensalmente, a cela que acumulasse o maior número de pontos era a

vencedora e passava a exibir em suas dependências um bonito troféu até o próximo mês, e

assim sucessivamente. Até que, um dia, o encanamento de toda a unidade teve um grave

problema, causando vazamento de esgoto e mau cheiro por todo o entorno. Isso aconteceu,

pois, para não perderem pontos durante a revista das celas, os presos jogavam qualquer

tipo de coisa no vazo sanitário e davam descarga, causando sobrecarga e consequente

colapso do encanamento. Como resultado, houve uma reunião com todos para dizer da

importância da revista das celas e da proibição de descarte de objetos no vazo com o

consequente retorno à rotina institucional.

Em Atos Obsessivos e Práticas Religiosas, Freud (1907/2006) explicita a analogia

entre comportamentos obsessivos e religiosos, nos quais estão presentes ambas as

tendências: reprimida e repressora. Assim como no exemplo citado, em que podemos

perceber tanto a repressão diária da vistoria quanto o desejo do sujeito, apresentado de

maneira indireta e distorcida, dentro de suas possibilidades de manifestação. Freud

(1907/2006, p. 116) chega até mesmo a considerar a neurose obsessiva como a

correspondente patológica de uma religião individual e a religião “como uma neurose

obsessiva universal”. A principal semelhança seria a renúncia às pulsões constituintes do

ser humano e a principal diferença seria a natureza dessas pulsões: de caráter

exclusivamente sexual na neurose e de procedência egoísta na religião. Essa diferenciação

iria desaparecer mais tarde, a partir da postulação do narcisismo, no qual o Eu passa a

também ser alvo das pulsões sexuais. Entretanto, as semelhanças entre neurose obsessiva e

religiosidade podem ser observadas ainda hoje tanto no indivíduo como em manifestações

sociais. O próprio Freud aponta como é possível perceber ao longo da história a “solução

de compromisso” em atitudes religiosas, pois é bastante comum a maneira pela qual, em

nome da religião, muitas vezes se comentem os atos que ela oficialmente recrimina

(Morano, 2014).

O método APAC se constituiria como um exemplo desse tipo de “solução de

compromisso”, já que utiliza de seu poder como representante do Estado, da disciplina e de

outros mecanismos totalitários para realizar em nome da religião cristã aquilo que ela

recrimina oficialmente. Frei Betto, em prefácio à obra de Camargo (1984), lembra-nos

12 Páginas 39-40.

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acerca da Inquisição, época na qual a tortura era utilizada como ferramenta para que os

hereges confessassem seus crimes, numa forma de coação religiosa realizada pelo poder da

Igreja. Para ele, é disso que se trata na APAC, a utilização do poder para coagir

religiosamente os apenados, deturpando a verdadeira natureza da fé ao transformá-la numa

“ideologia disciplinadora de caráter religioso” (Camargo, 1984, p. 10), corroborando a

obra de Camargo (1984) e a própria Igreja Católica, que regulamenta na Declaração

Dignitatis Humanae, aprovada no Concílio Vaticano II e assinada pelo Papa Paulo VI, que

todos os homens possuem liberdade religiosa, isto é, que ninguém deve ser obrigado a ir

contra a própria consciência, nem impedido de agir de acordo com ela, em assuntos

religiosos.

Assim, seja através de uma repressão consciente, dos cerimoniais ou da rotina

preestabelecida que não deixa espaço para a singularidade, a APAC vai em busca do maior

número possível de conversões, porque, como diz o ditado: cabeça vazia, oficina do diabo.

E quanto mais cheia a cabeça, menor o medo, menores as dúvidas, menor a angústia.

Para Lacan (2005a, p. 59), “a angústia é o afeto do sujeito”. Assim como diversas

outras proposições de Lacan, essa também precisa ser elucidada para que tenhamos melhor

acesso ao seu sentido. Em primeiro lugar, não estamos nos referindo a qualquer sujeito,

mas especificamente ao sujeito que deixou para trás sua condição exclusivamente

biológica, a fim de se tornar um sujeito inserido na cultura, apropriando-se e sendo

apropriado pela rede simbólica que caracteriza o meio social. Ou seja, um “sujeito que fala,

se funda e determina em um efeito do significante” (Lacan, 2005a, p. 59). Esse sujeito será

afetado pelo real, que pode ser caracterizado menos como algo que não se permite apanhar

pela linguagem e mais como as fissuras integrantes dessa rede simbólica inerentes à sua

própria constituição (Zizek, 2010). Porém, ele é afetado pelo real “de maneira imediata,

não dialetizável” (Lacan, 2005a, p. 59). Por esse motivo, a angústia é o afeto do sujeito e,

por isso, ela se caracteriza como aquilo que não engana – pois é algo intenso, imediato e

que não pode ser simbolizado. Além disso, a angústia é aqui também a representação de

uma “hiância existencial”: a falta introduzida na dimensão subjetiva dos indivíduos após a

perda do objeto e o consequente desejo (sempre insatisfeito) de retornar a essa condição

inicial de completude (Lacan, 2005a, p. 63).

Diante disso, podemos perceber que a angústia é parte constituinte do significa ser

sujeito – limitado, dividido e incompleto. Aqueles que sofrem, seja através do corpo ou do

pensamento, irão demandar a cura – para médicos, psicólogos, psicoterapeutas, padres,

xamãs etc. Como aponta Lacan (1993), não é preciso que essas pessoas saibam o que estão

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fazendo, porque é fácil perceber o poder das palavras. Todavia, essas práticas comumente

buscam transmitir aos sujeitos a ideia de que a vida caminharia na direção de uma

consciência interior cada vez maior e um poder também cada vez maior de subjugar o

mundo em prol de seus desejos – propósitos humanamente irrealizáveis. “É aí que a

psicoterapia, qualquer que seja, estanca, não que ela não faça algum bem, mas ela conduz

ao pior” (Lacan, 1993, p.21). Ela representa as diversas formas de sugestão, geralmente

revestidas pelo manto do bom senso, que se ocupam com a padronização dos sujeitos,

especialmente os desajustados, para que ingressem nos quadros sociais com a cabeça

“curvada sob a norma do psicólogo” (Lacan, 2005a, p. 62).

Da mesma maneira, a religião irá se constituir com o objetivo de “curar os

homens”; isto é, com o intuito de produzir sentidos que ocultem as lacunas do real, a fim

de que os homens “não percebam o que não funciona” (Lacan, 2005b, p. 72) para

apaziguar a angústia, acalmar e transmitir segurança. Nesse sentido, nos casos mais

intensos, é possível perceber como o crente utiliza os dizeres religiosos, com o objetivo de

explicar qualquer acontecimento pessoal ou social e como se apega às promessas de bem-

aventurança para amenizar os medos com relação ao futuro. Entretanto, este movimento de

defesa contra o real irá desembocar numa impotência cada vez maior de ir ao encontro de

seu próprio desejo, “não encontrando senão infelicidade em sua busca, a qual ele vive

numa angústia que restringe cada vez mais o que poderíamos chamar de sua chance

inventiva” (Lacan, 2005b, p. 18). Ou seja, o resultado são sujeitos cada vez mais

subjugados e distantes do próprio desejo.

Nessa perspectiva, não podemos perder de vista que todo e qualquer discurso é

semblante, isto é, se configura como a parte exterior, a representação de algo. A diferença

reside no fato de que o discurso do inconsciente possui como verdadeira intenção o desejo,

exatamente aquilo que é excluído dos sistemas de pensamento fechados em si mesmos.

Assim, o desejo se faz presente no discurso de forma indireta, como uma intenção que

opera à revelia do sujeito, demonstrando como “o impasse sexual secreta as ficções que

racionalizam o impossível de onde ele provém” (Lacan, 1993, p. 55). Ou seja, a

impossibilidade do homem em atingir a completude, por sua própria constituição como ser

sexuado, faz com que ele esteja sempre em busca de algo que se inscreva nesse lugar, que

traga sentido ao não sentido. Os impasses que surgem na dimensão do signo são as lacunas

nas quais é possível tocar o real e ter acesso a uma parcela da verdade. Somente a uma

parcela, pois, como provém do real, “dizê-la toda é impossível, materialmente: faltam as

palavras” (Lacan, 1993, p. 11).

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O analista será aquele que irá se ocupar do Real, na medida em que o sintoma “é a

manifestação do real em nosso nível de seres vivos” (Lacan, 2005b, p. 76). Isto é, por

sermos seres falantes, devastados pelo verbo, somos seres doentes. A análise representa a

possibilidade de desatar o sintoma, ir de encontro ao real. A religião, por sua vez, ao

engajar suas forças na direção contrária, teria poderes suficientes para curar os homens,

para “repelir completamente o real” (Lacan, 2005b, p. 75). Porém, enquanto a religião não

atinge esse patamar, Lacan (2005b, p. 76) adverte que não devemos nos esforçar

unicamente em repelir a angústia: “deve-se poder habituar ao real”.

Podemos concluir, portanto, que a religião se constitui como uma forma de defesa

contra o Real, uma tentativa de repeli-lo completamente através da produção de sentidos,

da repressão consciente contra os conteúdos recalcados ou da solução de compromisso, em

que a angústia se apazigua pela distorção do enunciado do desejo. No entanto, não é

apenas disso que se trata a religião. Seu poder e influência sobre os sujeitos ainda contam

com outro importante aspecto do psiquismo: a ilusão.

3.2 Pelo caminho das ilusões

A ilusão aparece no texto freudiano como uma forma de realização de desejos,

assim como o sonho. Porém, a ilusão não está presente exclusivamente nas ideias

religiosas. Pode ser observada também em outros campos, como na ideia romântica de um

aperfeiçoamento do caráter instintivo do ser humano, resultando numa espécie de super-

homem (Morano, 2014). Seu traço distintivo é a derivação de desejos humanos e, nesse

sentido, não têm necessariamente que ser falsa ou irrealizável. A ilusão pode estar

conectada com a realidade, mas não é daí que deriva o seu valor. Sua força advém dos

desejos dos quais provém seu enunciado: “o segredo de sua força é a força desses desejos”

(Freud, 1927/2014). As ideias religiosas, portanto, não se constituem a partir da

experiência ou do trabalho do pensamento, mas são realizações de desejo, especificamente

os maiores desejos da humanidade.

O homem é uma das espécies mais frágeis ao nascer. O bebê humano não é capaz

de dispensar as proteções materna e paterna mesmo após alguns anos após o seu

nascimento. Ao se tornar adulto, o homem ainda experimentará o desamparo,

principalmente frente às forças da natureza, do destino e do convívio com os outros

homens. O resultado da impotência humana será o anseio pelo pai, aquele que protegeu a

criança durante sua infância, e que, aos seus olhos, possuía todas as características

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necessárias para garantir seus desejos e salvá-la das intempéries da vida. Para Freud

(1927/2014), será esse desamparo infantil que moldará posteriormente a religião,

persistindo na vida adulta e demandando a proteção de um Deus, que inclusive é chamado

abertamente de pai.

“Assim é criado um acervo de concepções, nascido da necessidade de fazer

suportável o desvalimento humano, protegendo os indivíduos em duas direções: contra os

perigos da natureza e do destino e contra os danos oriundos da própria sociedade humana”

(Freud, 1927/2014, p. 251). Além disso, satisfazem a sede de conhecimento dos homens

por meio de informações sobre a origem e a existência do universo, assim como

estabelecem preceitos, proibições e restrições, resultando numa “notável combinação de

ensino, consolo e exigências” (Freud, 1933[1932]/2006, p. 159).

Assim, as ideias religiosas são capazes de apaziguar o medo frente às forças da

natureza e do destino além de compensar os sofrimentos da vida terrena através de

promessas de uma vida perfeita após a morte. A morte em si não seria o fim, mas o início

de uma nova existência, na qual seria feita a justiça: todo o bem seria recompensado e todo

o mal punido. Essas tarefas estariam a cargo de uma providência benevolente, que vela

sobre cada indivíduo com o intuito de proteger e apaziguar os corações diante dos

sofrimentos que advêm da natureza hostil, das privações que a civilização nos impõe e do

convívio com os outros seres humanos (Araújo, 2014).

As ideias religiosas não necessitam de comprovação ou refutação, pois se

constituem como desígnios de Deus. O que não quer dizer que não existam verdades nas

doutrinas religiosas, mas estas estão tão deformadas e disfarçadas, que são imperceptíveis

para a maioria das pessoas (Freud, 1927/2014). Além disso, se elas advêm da necessidade

de proteção humana, ou seja, se são ilusões, realizações de desejos, “são de ordem psíquica

e não real, de ordem subjetiva e não objetiva” (Julien, 2010, p. 16). São ensinamentos,

formulações acerca do mundo objetivo ou subjetivo, que dizem acerca daquilo que o

indivíduo não tem acesso por seu próprio trabalho do pensamento e que, portanto, “exigem

a crença” (Freud, 1927/2014, p. 259). Figuram entre as “atividades psíquicas mais

elevadas” (Freud, 1930/2014, p. 55) da civilização e influenciam os indivíduos de maneira

isolada ou coletivamente, organizando-se por meio de diferentes instituições ao longo da

história.

Talvez, a maior dessas instituições seja a Igreja Católica Apostólica Romana, cujo

poder atingiu seu auge na Idade Média, mas que ainda permanece bastante expressivo ao

redor do mundo. A Igreja é caracterizada por Freud (1921/2014) como uma massa

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artificial, isto é, um conglomerado de pessoas que se mantêm unidas e coesas numa certa

estrutura devido a uma imposição externa. Ao ingressar numa massa, seja ela artificial ou

natural, os indivíduos passam por grandes modificações subjetivas, entre elas: uma

tendência a ceder aos instintos, com consequente diminuição da censura; o contágio mental

com outros integrantes; a sugestionabilidade, uma condição que se aproxima do estado

hipnótico; e a tendência a transformar imediatamente as ideias em atos. Por se configurar

como uma massa artificial, na Igreja, assim como no Exército, não é dada aos indivíduos a

liberdade de escolha; ou seja, não se pergunta se desejam ingressar na massa e a tentativa

de desligamento costuma ser desestimulada ou punida. Além disso, as massas contam

ainda com outro aspecto importante: “nunca tiveram a sede da verdade. Requerem ilusões,

às quais não podem renunciar” (Freud, 1921/2014, p. 29). No caso da Igreja, a ilusão

presente é a de que há um “chefe supremo que ama com o mesmo amor todos os

indivíduos da massa” (Freud, 1921/2014, p. 47).

O amor, ou Eros, é a força responsável por unir os indivíduos na construção da

civilização e por transformar egoísmo em altruísmo em prol dos desenvolvimentos sociais.

A psicanálise foi responsável por demonstrar essa força através da concepção de ligação

libidinal, na qual a pulsão sexual é direcionada aos objetos e realiza a união do indivíduo

aos elementos de seu mundo exterior. Porém, essa não é a primeira forma de ligação

afetiva experenciada pelo ser humano. A identificação se constitui como um processo

psíquico mais primitivo, no qual o Eu se modifica em consonância com aquele tomado por

modelo (Freud, 1921/2014, p. 62). A combinação entre essas duas formas de ligação dará

lugar à idealização do objeto, uma dinâmica em que o objeto é utilizado para alcançar um

ideal que o próprio Eu foi incapaz. Nesse processo, o objeto é colocado na posição de ideal

do Eu, concretizando a tentativa de satisfazer o narcisismo ao obter indiretamente as

perfeições que o indivíduo aspirou para si próprio.

Uma massa será governada por esses processos subjetivos na medida em que os

indivíduos que a compõem possuem um único objeto em comum na posição de ideal do Eu

e, consequentemente, encontram-se identificados entre si em seu Eu. Dessa maneira, “são

ligações libidinais que caracterizam a massa” (Freud, 1921/2014, p. 56), fazendo com que

os indivíduos permaneçam identificados entre si por meio do mesmo ideal de Eu,

geralmente personificado na figura de um líder.

No caso do cristianismo, Cristo seria o líder da massa. Ou seja, Jesus ressuscitado

seria o modelo ideal a ser seguido e transformaria os cristãos em irmãos e irmãs pela força

de um amor que dispensa igualmente a todos. Porém, a Igreja demanda não somente que os

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indivíduos tomem Cristo como ideal e se identifiquem entre si. Para ela, todos os que

creem devem também se identificar com Cristo a fim de que, assim como ele, possam

ofertar um amor total e dispensar um tratamento fraternal aos demais cristãos (Morano,

2014). Por isso, a desintegração de uma massa religiosa traz à tona impulsos agressivos e

hostis – e, por isso, “toda religião é uma religião de amor para aqueles que a abraçam, e

tende à crueldade e à intolerância para com os não seguidores” (Freud, 1921/2014, p. 54).

A massa religiosa é então direcionada pela ilusão amorosa, que realiza a ligação

libidinal entre os indivíduos e o líder por um lado, e dos indivíduos da massa entre si por

outro. A APAC, ao situar-se como uma “obra de Deus” e ao ser reconhecida oficialmente

pela Igreja como uma forma de Pastoral Carcerária, se insere na massa religiosa e,

consequentemente, obtém como chefe supremo Jesus Cristo. Desse modo, seus integrantes

não se remetem ao diretor da unidade ou ao presidente da federação brasileira das APACs,

mas diretamente a Cristo, assim como deixa claro o depoimento explicitado no capítulo

anterior13, no qual o recuperando diz que, se mentir, não estaria indo contra o dr. Ottoboni,

mas contra o próprio Deus na medida em que a APAC se constitui como uma de suas

obras.

Entretanto, a APAC vai além da Igreja, pois utiliza essa ilusão amorosa para seus

fins de contenção e conversão. Os dizeres no muro de uma sede apaqueana, “Do amor

ninguém foge”, ilustram perfeitamente a questão mediante a exposição diária e obrigatória

aos indivíduos da soberania do amor sobre a vontade individual. O resultado são sujeitos

que não só estão ligados libidinalmente entre si e com o líder, mas estão estancados, presos

a um “amor” que limita, ordena e sufoca. Como apontado anteriormente14, o próprio

Ottoboni relata um episódio em que o recuperando se diz abertamente “escoltado por

Cristo e algemado pelo coração” (Ottoboni, & Marques Netto, 1976, p. 54). Ou seja,

utilizam-se os significantes vinculados à prisão “escoltado e algemado” fazendo a cadeia

significante deslizar em associação com significantes cristãos: “Cristo” e “coração”. Nesse

fragmento discursivo, a condição de criminoso é mantida, porém associada a algo sublime,

valorizado: a religião cristã. Estaríamos falando de um sujeito que não reflete sobre seus

atos e por isso mesmo se apresenta como um criminoso abençoado?

Em seu movimento de reflexão acerca do cristianismo, Lacan coloca em evidência

um trecho do evangelho segundo Mateus (22, 37-39), no qual estão presentes os dois

mandamentos cristãos acerca do amor: “o amor a Deus e o amor ao próximo como a si

13 Página 24. 14 Página 18.

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mesmo” (Julien, 2010 p. 54). Segundo Lacan, os dois mandamentos seriam solidários,

principalmente porque, se Deus está morto, o único mandamento é, com efeito, “Amarás o

próximo como a ti mesmo”. Isto é, não se trata de amar teu próximo como ele te ama, o

que Freud julga mais compreensível, mas se identificar com o outro, vê-lo como meu

semelhante, próximo de meu eu. Nessa perspectiva, amar o outro é querer-lhe o bem, e

“não é qualquer bem, mas o mesmo que quero pra mim” (Julien, 2010, p. 55).

Portanto, amar o outro é querer-lhe o bem, sabendo o que é melhor para ele, já que

eu o amo como a mim mesmo. Ou seja, um movimento em que o amor ao próximo faz

com que eu acredite que o melhor para mim também é, inevitavelmente, o melhor para ele,

resultando numa tentativa de submeter o outro à minha vontade – “Deves me obedecer

pelo seu bem” (Julien, 2010 p. 55). Entretanto, tal empreendimento encontra alguns

empecilhos. O primeiro deles é colocado por Freud na medida em que aponta o caráter

precioso de meu amor, dispensado como um privilégio para aqueles próximos a mim. Já o

desconhecido, não só não merece meu amor, como não hesita em me prejudicar sempre

que terá alguma vantagem ou que poderá satisfazer algum prazer com isso. Isto é, ele não

só não merece meu amor, como “tem mais direito à minha hostilidade, até ao meu ódio”

(Freud, 1930/2014, p. 74). A esse argumento soma-se aquele que diz do outro que recusa

meu amor. Nesse caso, o que eu acredito que seja melhor para o outro não condiz com suas

próprias convicções ao que ele recusa o amor e o bem que são ofertados em prol de suas

próprias escolhas. São duas objeções que podem ser resumidas numa única proposição:

“existe uma alteridade irredutível do tal próximo que torna impossível poder se identificar

com ele” (Julien, 2010, p. 56).

A saída encontrada por Lacan para essa irredutibilidade do outro é a modificação

do mandamento cristão no seguinte enunciado: “Torna-te próximo dessa estranheza em ti

mesmo” (Julien, 2010 p. 57). Ou seja, ao invés de tentar submeter o outro à minha vontade,

é preciso reconhecer o vazio presente em nós mesmos, essa alteridade que se constitui

como nosso próprio inconsciente. A partir do momento em que cada um se torna

responsável por seu próprio inconsciente, é possível tornar-se próximo dessa terceira

dimensão que assusta, pois carrega em si as capacidades para o bem e para o mal que

recalcamos. Assim, o que o sujeito repudia no outro percebe que também é plenamente

capaz de exercer, reconhecendo em si o horroroso e o devastador. “Como dizia Lacan a

respeito de Sade, o que está em jogo é tornar-se ‘suficientemente vizinho da própria

maldade para nela reconhecer o próximo’” (Julien, 2010 p. 57).

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Todavia, a APAC demonstra outro tipo de olhar acerca da constituição psíquica na

medida em que propõe “matar o criminoso para salvar o homem”, como se fosse possível

a simples erradicação do aspecto vil e cruel do ser humano. Nessa perspectiva, tenciona-se

concretizar a separação entre o bem e o mal presentes em cada sujeito15, assim como

ilustram as demais oposições significantes comuns ao catolicismo: céu e inferno, deus e

demônio etc. Essa operação não só não é possível, como a tentativa de colocá-la em prática

pode acarretar sérias implicações. Ao “matar o criminoso”, não se está responsabilizando o

sujeito, mas negando uma parte importante dele mesmo. Nesse sentido, o discurso de que o

crime havia sido praticado ou motivado pelo demônio era comum na unidade na qual foi

realizado o estudo – não importando o nível de premeditação ou planejamento do crime em

questão. José16, um dos recuperandos que participou do grupo de conversação, foi preso,

porque se entorpeceu com drogas, foi até a residência de um traficante rival e o matou e a

família deste a tiros. Questionado acerca do motivo, ele apenas respondeu: “Não fui eu, foi

o demônio”. Outro recuperando perguntou, então, se José escolheu matar o rival para

resguardar a própria vida, ao que ele respondeu: “Sim, ele tinha me jurado de morte. Mas

não fui eu que matei ele, foi o demônio”.

Para Freud (1930/2014, p. 76), a verdade por detrás do mandamento cristão, de

difícil aceitação para a maioria das pessoas, é que o homem “não é uma criatura branda,

ávida de amor, que no máximo pode se defender quando atacado, mas sim que ele deve

incluir, entre seus dotes instintuais, um forte quinhão de agressividade”. Nesse sentido, não

haveria necessidade de uma lei que pregasse o amor se não houvesse uma tendência natural

contrária a ela no ser humano. Para se perpetuar, a civilização teve que desenvolver

diversos métodos de defesa, objetivando a inibição dos impulsos sexuais e a sua

transformação em móbil para relações afetivas baseadas no amor fraterno. Além disso,

também como forma de defesa, o mal foi transferido para a alçada do Diabo numa tentativa

de desculpar Deus e de desresponsabilizar os sujeitos.

Nesse ponto, já não restam dúvidas quanto ao poder ilusório da religião, seja pela

incorporação dos maiores desejos da humanidade, seja por meio da massa artificial

personificada pela Igreja católica, que utiliza o amor como forma de manter os sujeitos sob

seus preceitos. É evidente que seria do agrado de todos a existência de um Deus

onipotente, onisciente e onipresente, que vela sobre seus filhos de modo a garantir

15 Um exemplo desse tipo de raciocínio pode ser encontrado na ficção de Robert Louis Stevenson, Strange

Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde, publicada em 1886. 16 Todos os nomes utilizados são fictícios para preservar a identidade dos participantes.

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segurança e tranquilidade na vida terrena e até após a morte. Porém, seria muita

coincidência que tudo fosse exatamente da maneira como desejamos ou que nossos desejos

sejam realizados exatamente da maneira como foram construídos (Freud, 1921/2014).

Por isso, é essencial refletir acerca das ideias religiosas, a fim de analisar suas

diferentes manifestações, durações e intensidades, além do poder de sua influência

individual e social. Freud e Lacan, por exemplo, se perguntaram acerca do futuro da

religião e chegaram a diferentes respostas. Na verdade, eles não só diferem entre si nesse

aspecto, como seguem direções opostas. Para Freud, a religião é apenas um estágio no

desenvolvimento da humanidade e, inevitavelmente, desaparecerá. Já Lacan acredita que

ela triunfará, pois será capaz de produzir sentidos suficientes para repelir completamente o

real. Tais posições são significativas para abordarmos criticamente as manifestações

religiosas no âmbito da APAC.

3.3 ... com destino à felicidade?

Diante do que foi exposto até aqui, é evidente que a religião se constitui como um

dos principais elementos da cultura humana, contando com grande poder de influência

psíquica, principalmente sobre as massas. Nessa perspectiva, é preciso o reconhecimento

de que a religião prestou grandes serviços à civilização, especialmente no que diz respeito

ao controle das pulsões associais (Freud, 1927/2014). Porém, não podemos perder de vista

que a pulsão é irredutível. Ou seja, um controle total de sua energia está longe da

capacidade humana. Por esse motivo, “a imoralidade não encontrou menos apoio na

religião do que a moralidade”, mediante a postulação do homem como fraco e pecador, em

oposição a Deus, perfeito e soberano (Freud, 1927/2014, p. 277). Isto é, mesmo auxiliando

no controle das pulsões, a religião também faz concessões ao lado instintual humano, a fim

de não perder seu poder e influência sobre os indivíduos.

Além disso, pode-se fazer o seguinte questionamento: levando em consideração que

eu não posso matar outro ser humano, porque irei contra a vontade de Deus, se não houver

nenhum Deus, eu poderei matar livremente? Para Freud (1927/2014, p. 279), a resposta a

essa questão é sim: “se esse alguém descobre que não há nenhum Deus, que não precisa

temer sua ira, então matará o próximo sem qualquer escrúpulo. Por isso, adverte que é

perigoso vincular à fé religiosa a obediência aos princípios éticos”, pois estes se constituem

como indispensáveis à manutenção da cultura e, portanto, necessitam de bases mais

sólidas, que não caiam por terra diante de um simples exame do pensamento (Freud,

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1933[1932]/2006, p. 164). Segundo ele, seria, então, “uma vantagem indiscutível se

deixássemos de atribuir motivos religiosos e reconhecêssemos a origem puramente humana

de todas as instituições e normas culturais” (Freud, 1927/2014, p. 281).

Seria um avanço não mais atribuir a obediência a Deus como o móbil do respeito às

prescrições sociais, assim como seria profícuo o abandono de qualquer religião em prol do

desenvolvimento científico. Essa é a visão de Freud (1927/2014), que retoma as

semelhanças entre religião e neurose obsessiva para demonstrar que ambas se constituem

como apenas uma fase no desenvolvimento, social e individual, respectivamente, e,

portanto, estão fadadas a serem superadas. A fim de sermos mais exatos, nas palavras de

Freud (1927/2014, p. 284): “o afastamento da religião deverá suceder com a mesma fatal

inexorabilidade de um processo de crescimento”.

Um dos fatos que corrobora essa perspectiva é a proteção que se observa no homem

religioso contra “certas enfermidades neuróticas”, pois, ao integrar uma neurose coletiva,

ele não necessita dispensar suas energias em uma neurose individual (Freud, 1927/2014, p.

285). Os efeitos das ideias religiosas são até mesmo comparados aos de um narcótico num

processo em que a crença em Deus compensa a renúncia às substâncias que causam prazer,

embriaguez ou estimulação. Porém, estamos aqui nos referindo a indivíduos que foram

expostos aos preceitos da crença desde a tenra infância e, portanto, já estariam viciados

nesse paliativo do sofrimento. Mas, e se nossas crianças não recebessem tal educação

religiosa? A diferença entre o intelecto limitado do adulto e a intensa criatividade infantil

não poderia ser explicada por essa precoce exposição à religião?

São questões que Freud nos coloca e coloca a si próprio na medida em que percorre

o caminho da possibilidade de uma vida sem a crença num poder superior. Não há dúvidas

de que não se trata de um trajeto de fácil acesso, pois o ser humano “terá de admitir seu

completo desamparo, sua irrelevância na engrenagem do universo” (Freud, 1927/2014, p.

292). Todavia, mesmo se tratando de uma árdua trajetória, esta seria inevitável, pois o

“infantilismo” (Freud, 1927/2014, p. 292) estaria fadado a ser superado, mais cedo ou mais

tarde. A superação e o abandono das ilusões podem até mesmo estar a uma grande

distância, mas não estão numa posição inalcançável, porque, “a longo prazo, nada pode

resistir à razão e à experiência” (Freud, 1927/2014, p. 298), e a religião consegue ir contra

ambas.

Fica claro, portanto, qual é O futuro de uma ilusão para Freud (1927/2014): a

religião, como a conhecemos, está fadada a ser superada, a ser abandonada em prol da

racionalidade e do trabalho científico. O resultado serão indivíduos com bases éticas mais

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sólidas, que não tiveram seus intelectos limitados no processo de crescimento e que não se

empenharão em negar o inconsciente, mas poderão trabalhar a partir dele no processo de

análise. Freud (1927/2014) ainda admite que seu prognóstico possa estar errado e que este

também pode se constituir como uma ilusão, uma forma de distorcer a realidade por meio

dos desejos. Porém, ao basear suas análises na Weltanschauung científica, não se propõe a

construir um saber completo e autossuficiente, mas um saber aberto a críticas e a avanços a

partir de cada nova perspectiva (Freud, 1933[1932]/2006).

Uma nova perspectiva do futuro da religião será construída por Lacan a partir das

considerações freudianas, porém sem o compartilhamento de noções fundamentais. Como

dito anteriormente17, conforme Lacan, a principal função da religião é produzir sentidos

que apaziguem a angústia advinda do real. Assim como Freud, ele acredita que a ciência

irá progredir em seus avanços, porém o resultado desse progresso não será mais respostas,

e sim mais perguntas. Isto é, o real irá se estender e a ciência “introduzirá um monte de

coisas perturbadoras na vida de todos” (Lacan, 2005b, p. 65).

A religião, nomeadamente a Igreja Católica Apostólica Romana, será capaz de

secretar sentido às reviravoltas da ciência, pois “são capazes de dar um sentido realmente a

qualquer coisa” (Lacan, 2005b, p. 65). É por esse motivo que a religião triunfará não

somente sobre a psicanálise, mas sobre tantas outras coisas, pois possui um poder

inimaginável, com recursos que nem suspeitamos – apesar de já termos presenciado seu

funcionamento ao postularem um sentido à vida e a diversos outros aspectos naturais.

Assim, Lacan (2005b, p. 67) acredita que ela “encontrará uma correspondência de tudo

com tudo”, pela construção de sentido, de “forma que efetivamente nele nos afoguemos”.

Ou seja, estamos lidando com um poder capaz de repelir completamente o real ou, como

dito anteriormente, de curar os homens.

A psicanálise, por sua vez, se constituiria como um sintoma e, portanto, só poderá

durar a partir desse título. Isto é, como mal-estar na civilização, a psicanálise é apenas

passageira, um lampejo de verdade que não tem obrigação alguma de durar. Para Lacan

(2005b, p. 67), chegará o dia em que a humanidade será curada da psicanálise, pois, “por

mergulhá-lo no sentido, no sentido religioso naturalmente, acabarão recalcando esse

sintoma”.

17 Página 56.

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4 A RELIGIÃO EM SUA ACEPÇÃO IDEOLÓGICA

A religião, elemento central do método APAC, comporta três campos semânticos

diferentes, autônomos em seus significados, mas que possuem uma imbricada relação no

plano concreto. São eles: o campo da religião, o da religiosidade e o da fé (Libânio, 2011).

O primeiro diz respeito à religião enquanto um sistema de representações, de orientações e

de normatividade. É a dimensão objetiva da religião que comporta mitos, símbolos,

doutrinas, práticas, constituições, organizações e tradições e tem por objetivo religar a

experiência humana com o divino. O segundo complexo semântico, o da religiosidade,

abarca a face subjetiva, individual, da religião. Aqui, estamos às voltas com a dimensão

sentimental com a percepção do sagrado por parte do sujeito em sua experiência.

Finalmente, o terceiro campo irá se referir ao fenômeno da revelação profética, que pede

adesão – a fé propriamente dita (Libânio, 2011).

O campo semântico da religião, portanto, pode ser definido como portador de uma

dinâmica que organiza, preserva e reproduz um sistema de crenças. É o lado social,

objetivo e histórico da experiência religiosa. Seus traços fundamentais seriam a “tradição”,

que lhe confere legitimidade, e a “comunidade”, que se agrupa em torno da crença e

adquire identidade a partir da pertença (Libânio, 2011, p. 90). Nesse sentido, não há

necessidade da dimensão transcendental ou subjetiva para se pertencer a uma religião. O

rito, o comportamento simbólico, herdado por tradição e posto em prática no contexto de

uma comunidade, é suficiente (Libânio, 2011).

A valorização do rito, do comportamento simbólico, foi observado por Silva Júnior

(2013) numa sede apaqueana por ocasião da XVIII Jornada de Libertação com Cristo,

ponto alto do método. Segundo ele, era perceptível que os recuperandos “apenas ‘mexiam

a boca’ para, externamente, parecerem orar aos dirigentes. Outros sequer balbuciavam as

palavras; antes, se entreolhavam e riam nas orações” (Silva Júnior, 2013, p. 88). Tal

posicionamento, ainda conforme Silva Júnior (2013), parece advir da obrigatoriedade das

rezas e da falta de pluralismo religioso no método, que se recusa a acolher manifestações

não cristãs.

No andamento de nossa pesquisa, esse aspecto também se fez presente a partir de

um encontro, cujo tema era religião. Os integrantes do grupo solicitaram imagens de outras

religiões, como a umbanda, o hinduísmo e o budismo. Durante a conversação, Ramón

comentou que, quando jovem, tinha o hábito de ir beber com os amigos no cemitério

ouvindo rock pesado e usando pentagramas em roupas ou pingentes. De acordo com ele:

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“A gente ia no cemitério e fazia pentagrama com fogo no chão, sentava nas catacumbas

pra ficar bebendo e ouvindo metal. Meu cantor preferido é o Marilyn Manson. Ele é muito

doido, até tirou umas costelas pra fazer aquilo com ele mesmo”. Júlio disse ainda que se

considerava devoto de Zé Pilintra, pois, quando estava doente, este foi o único a atender às

suas preces. Em suas palavras: “Eu tava muito doente, muito mal. Rezei pra tudo quanto

era santo, mas nenhum resolveu. Então, eu falei: ‘Ah, quer saber? Vou pegar com Zé

Pilintra’. E deu certo! Agora, eu só peço as coisas pra ele. Ele é malandro igual eu

(risos)”. Porém, nenhum dos dois poderia exercer ali a sua fé, já que a umbanda e o rock

pesado eram proibidos.

Em sua pesquisa, Silva Júnior (2013) ouviu relatos acerca de instituições

apaqueanas em que havia uma transmissão paralela do espiritismo, na qual um dos

recuperandos indicava leituras sobre o tema para aqueles que se interessassem. Entretanto,

durante o VII Congresso Nacional das APACs, ele teve a oportunidade de presenciar o

próprio Ottoboni confirmar a religião oficial da APAC:

Ottoboni, idealizador do método, também por ocasião do VII Congresso, ratificou

uma abertura apenas teórica ao asseverar que ‘a APAC é cristã’ e ‘qualquer outra

religião vai ter que se ajustar ao método’. Isso porque ‘nossa imaginação é o Cristo’

e, por isso, ‘ateu não entra na APAC’. (Silva Júnior, 2013, p. 91)

Esta é a religião que se presentifica no método APAC em sua dimensão simbólica:

a doutrina que carrega consigo a perspectiva do ato, da normatividade e da identidade.

Desde a nomeação dos presos como recuperandos, até a sua inserção na comunidade,

passando pela disciplina do cotidiano e pela obrigatoriedade das rezas, existe um discurso

que confere unidade e sentido às diversas práticas sociais e institucionais englobadas pela

denominação método APAC.

Como apontado pelo próprio Libânio (2011, p. 90), essa face da religião reflete seu

funcionamento como “dispositivo ideológico”, no qual o sentimento individual e coletivo

de integração a uma linha particular de crença é desenvolvido por meio de conteúdos

práticos e simbólicos. Nesse sentido, acreditamos que o conceito de ideologia se configura

como essencial, a fim de se obter um olhar crítico da religião, e do próprio método APAC,

enquanto fenômeno discursivo que legitima práticas sociais inseridas em determinado

contexto histórico.

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Utilizaremos, assim como Zizek (1996), três eixos principais para nortear a

reconstrução lógico-narrativa da noção de ideologia: como um conjunto de ideias, como a

materialização dessas ideias e como espontaneidade, elemento da realidade social. Tais

categorizações advêm da distinção realizada por Hegel a propósito da religião, como

doutrina, ritual e crença, e se aproximam de sua tríade do Em-si, Para-si e Em-si-e-Para-si.

Dessa forma, partiremos do conceito propriamente dito, indo em direção ao sujeito, mas

sem perder de vista as especificidades de nosso objeto de estudo: o método APAC.

4.1 A ideologia “Em-si”

A ideologia nasceu como uma disciplina científica na França, no contexto do sonho

iluminista da racionalidade, com o objetivo de investigar os determinantes na formação e

no desenvolvimento das ideias. Isto é, surgiu como o estudo das ideias humanas, mas

acabou tendo sua significação modificada para se referir aos próprios complexos de ideias.

Surgiu, assim, um conceito que recebeu diferentes definições ao longo da história, nem

todas compatíveis entre si. Seguiremos os passos de Eagleton (1997) para nos

aproximarmos de uma noção inicial de ideologia em que estejam presentes peças-chave na

sua compreensão, mas tomando cuidado para que o termo não se expanda demais a ponto

de abarcar tudo.

Durante uma conversa corriqueira, o termo ideologia costuma ser empregado com o

intuito de classificar uma percepção distorcida pela ação de um conjunto de ideias

preconcebidas: vejo as coisas como elas realmente são, você as vê através de uma lente que

modifica a realidade. Nesse sentido, o oposto de ideologia estaria mais próximo à “verdade

empírica” do que à “verdade absoluta” (Eagleton, 1997, p. 17). O impasse dessa definição

é evidente, já que não existem pensamentos livres de algum tipo de determinação. Talvez

seja, então, a rigidez dos pensamentos, que nos forneça a pista inicial em direção ao

conceito.

Entretanto, nem todo conjunto rígido de ideias pode ser considerado ideológico.

Como demonstra Eagleton (1997), posso ter convicções bastante inflexíveis acerca de

minha escovação dentária, mas se sou obcecado com meus dentes, pois, se os ingleses não

se mantiverem sadios, os soviéticos irão comandar nossa pátria débil e desdentada, então

meu comportamento já seria mais facilmente classificado como ideológico. Ou seja, o

termo ideologia parece fazer referência não só à rigidez de crenças, mas também à sua

interligação com questões de poder mais ou menos centrais à sociedade (Eagleton, 1997).

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Tal interligação nos remete à tese de que a ideologia envolve a legitimação de um

poder social dominante, pela difusão de crenças e valores, de modo que se tornem aceitas

como naturais e inevitáveis, moldando a compreensão da realidade para favorecer-se. Esta

se constitui, talvez, como a definição mais amplamente aceita do termo, conhecida

frequentemente como “mistificação”, uma forma de resolver imaginariamente conflitos

presentes na realidade (Eagleton, 1997, p. 19). Porém, duas questões se colocam a partir

deste ponto: a primeira diz respeito a quais lutas de poder podem ser consideradas centrais

à sociedade e quais não o são. Levar em consideração que o poder se imprime em toda

parte nas nossas relações pode ser um ganho político, como demonstra o feminismo, mas

corremos o risco de considerar que tudo seja ideológico – e então nada mais o será. Por

esse motivo, afirmar que certas questões de poder são mais importantes que outras requer

argumentar a favor dessa posição e estar aberto às críticas (Eagleton, 1997).

Já a segunda questão envolve a associação da ideologia a um poder político

dominante. Aqui, podemos nos referir novamente ao feminismo, ou até mesmo ao

socialismo, com o intuito de questionar se eles podem, ou não, ser considerados como

ideológicos. Nesse sentido, uma definição neutra (com relação à confirmação ou

confrontação da ordem social vigente) seria mais integrante, porém abriríamos mão de

elementos considerados centrais por vários autores, como “o obscurecimento e a

naturalização da realidade social, bem como a resolução ilusória de contradições reais”

(Eagleton, 1997, p. 20).

Na perspectiva de Karl Marx, por exemplo, utilizar o conceito de ideologia para se

referir aos dominados é um contrassenso, já que esta se constitui como um instrumento de

dominação (Chauí, 2008). Juntamente com seu colaborador, Engels, Marx foi responsável

por inaugurar a conotação moderna mais amplamente aceita do termo, conectando o campo

das ideias às relações de poder (Eagleton, 1997). A partir da concepção hegeliana da

dialética como produtora da realidade, ele irá construir a noção de luta de classes, na qual a

contradição se presentifica entre homens reais em condições históricas reais (Chauí, 2008).

Dessa forma, sua dialética é materialista, pois considera trabalho material propriamente

dito na relação do homem com a Natureza e, principalmente, dos homens entre si pela

divisão social do trabalho.

A divisão social do trabalho coloca, de um lado, os proprietários do capital, ou seja,

dos meios de produção, de distribuição e dos produtos resultantes, e, de outro, a massa dos

trabalhadores assalariados, que possuem apenas sua força de trabalho e a vendem como

mercadoria ao proprietário do capital (Chauí, 2008). Tal desmembramento da sociedade

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implica não somente a dominação dos proprietários sobre os trabalhadores, como também

a produção de ideias e representações que ocultam essa dominação. Isso acontece, pois, a

partir do momento em que a produção das ideias fica a cargo dos intelectuais e estas

passam a não se vincular diretamente às condições materiais de existência, figurando como

entidades autônomas, como descobertas. Ou seja, ao invés da representação da distância

entre os pensadores e o mundo material, o que temos são as ideias como algo separado da

realidade, que a explica a partir de fora (Chauí, 2008).

O processo histórico pelo qual os homens se afastaram cada vez mais da Natureza e

dos produtos de sua atividade, que passam então a se apresentar como uma força

independente, é denominado por Marx de alienação. Isto é, trata-se de um conceito chave

em sua obra, cujo propósito se relaciona à mensuração dos custos humanos da civilização

capitalista. Para Marx, um desses custos seria a transformação dos seres humanos, de

sujeitos criativos a objetos passivos dos processos sociais, especialmente do processo de

trabalho. Nele, os operários são alienados a partir: de seu produto, que não mais lhes

pertence; do próprio trabalho, que se transformou em apenas um meio de sobrevivência; de

si próprios, através de um sentimento de autoincompatibilidade; e das outras pessoas da

fábrica na medida em que cada uma vende sua força de trabalho de maneira isolada

(Outhwaite & Bottomore, 1996, p. 8).

A história seria, dessa maneira, a perda dos seres humanos em seus próprios

produtos e, posteriormente, a recuperação de si próprios, mediante a prática de pessoas

reais (Outhwaite & Bottomore, 1996). De fato, Marx considera que uma das atitudes

ideológicas por excelência consiste em conceber as ideias como independentes da

realidade histórica, ignorando as condições de sua produção. Numa sociedade dividida em

classes, a produção das ideias seguirá a lógica da dominação social, a fim de confirmar e

sustentar tal dominação (Chauí, 2008). Nessa perspectiva, como aponta Eagleton (1997, p.

86), a ideologia tem o propósito de “ocultar a verdade da sociedade de classes”,

assemelhando-se a “uma máscara ou véu que impede um sujeito já constituído de

compreender o que está diante dele”.

A alienação religiosa, segundo Marx, seria apenas um dos aspectos da alienação

econômica, explicável a partir da tendência dos seres humanos a se alienarem em seus

próprios produtos (Outhwaite & Bottomore, 1996). Ou seja, assim como as mercadorias, os

elementos religiosos adquirem como que vida própria, influenciando os indivíduos sem

que estes se apercebam controlados por algo que eles próprios criaram. No caso do método

APAC, a ligação entre economia e religião talvez seja ainda maior, já que não basta a

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conversão, são necessárias ainda a adaptação social e a saída da criminalidade. A partir do

momento em que uma instituição se propõe a persuadir indivíduos a concordarem e a

seguirem as normas de uma ordem social vigente, podemos dizer que estamos no

imbricado campo da ideologia.

Para alcançar seus propósitos, a ideologia possui a seu serviço certos mecanismos,

modos de funcionamento. A racionalização é, essencialmente, um conceito psicanalítico

que foi transposto de sua utilização original para designar uma estratégia ideológica. Na

esfera clínica, racionalizar significa, grosso modo, a tentativa de explicar de forma lógica e

coerente, ou socialmente aceitável, comportamentos, sentimentos e pensamentos que

possuem seus verdadeiros motivos recalcados. Aqui, é importante destacarmos, assim

como Eagleton (1997), que reprimir conhecimentos, no sentido freudiano, é diferente de

não ter conhecimento de algo. No caso da ideologia, o motivo pode até mesmo ser

conhecido, mas estará presente, necessariamente, a busca por fornecer justificativas

plausíveis para comportamentos sociais discutíveis.

O mecanismo de racionalização está intimamente associado ao de legitimação. Este

se refere às tentativas de um poder dirigente conseguir a concordância dos indivíduos à sua

autoridade, seja pela inatividade da população, seja pela elevação de certos interesses ao

patamar de serem amplamente aceitáveis (Eagleton, 1997). Um exemplo clássico dessa

forma de dominação pode ser vista quando aqueles que estão subordinados julgam suas

próprias ações, e as de seus pares, pelos critérios de quem os governa.

Para alcançar tal legitimação, um artifício utilizado pela ideologia é a sua própria

universalização numa dinâmica em que interesses e valores específicos de uma classe

social são transmitidos como se fossem compartilhados por toda a humanidade. Em A

ideologia alemã, Marx e Engels demonstram que o mecanismo da universalização apenas

entra em jogo quando uma classe revolucionária chega ao poder. Durante sua ascensão, ela

precisará se unir a outros movimentos populares, que possuem seus próprios interesses,

mas acreditam que estes serão considerados ao se associarem à revolução. Entretanto, uma

vez que a luta tenha sido ganha, os interesses da classe principal ficarão mais evidentes

alcançando um patamar de universalidade (Eagleton, 1997). Segundo esse ponto de vista,

portanto, determinada consciência de classe apenas se torna ideológica quando necessita

dissimular as contradições entre os seus interesses e os de toda a sociedade.

Assim como a universalização, a naturalização faz parte da tentativa de negar a

dimensão histórica da ideologia, rejeitando o fato de que certas ideias e crenças pertençam

à determinada época, lugar e grupo social; naturalizar parte da noção de que a natureza em

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geral e a natureza humana, particularmente, são imutáveis e duradouras. A ideologia, nessa

perspectiva, congela a história e a transforma em sua “segunda natureza, apresentando-a

como espontânea, inevitável e, assim, inalterável” (Eagleton, 1997, p. 62). Dessa forma, as

ideias se afiguram como autoevidentes, como parte integrante do senso comum de uma

sociedade, que ninguém consegue imaginar como poderia ser diferente.

Isso não significa, todavia, que as ideologias sejam necessariamente falsas. Para

serem eficazes, elas devem ser mais do que ilusões impostas, devem dar sentido à

experiência das pessoas, devem corresponder, em algum nível, ao que elas entendem por

sua realidade social a partir da interação prática diária. Nas palavras de Eagleton (1997), as

ideologias

devem ser ‘reais’ o bastante para propiciar a base sobre a qual os indivíduos possam

moldar uma identidade coerente, devem fornecer motivações sólidas para a ação

efetiva e devem empenhar-se, o mínimo que seja, para explicar suas contradições e

incoerências mais flagrantes. (p. 27)

Ou seja, as ideologias, quanto ao seu conteúdo positivo, devem ser bastante

acuradas, transmitindo aos indivíduos uma visão da realidade social que seja reconhecível

o suficiente para não ser imediatamente rejeitada. Isso não significa que todos os

enunciados ideológicos sejam verdadeiros. Alguns deles são completamente falsos, como a

inferioridade dos judeus ou a irracionalidade das mulheres (Eagleton, 1997). Porém, o que

se deve levar em consideração não é o enunciado em si, mas como este se relaciona com a

postura subjetiva presente no ato da enunciação. Dessa maneira, não importa se o conteúdo

é falso ou verdadeiro. Podemos caracterizá-lo como ideológico se é funcional a alguma

forma de dominação social, mas de maneira não transparente.

Nesse ponto, situa-se a definição que Zizek (1996, p. 15) realiza da ideologia Em-

si, como “doutrina, conjunto de ideias, crenças, conceitos, e assim por diante, destinada a

nos convencer de sua ‘verdade’, mas, na verdade, servindo a algum inconfesso interesse

particular de poder”. Ou seja, trata-se de um texto, uma comunicação, sistematicamente

distorcido por interesses sociais não declarados, em que seu sentido público oficial se

distancia de sua verdadeira intenção. Por esse motivo, Eagleton (1997) sugere que a

ideologia não é tanto uma questão de linguagem, mas de discurso. Isto é, estamos às voltas,

menos com as propriedades linguísticas inerentes a uma comunicação do que com a

interpretação de quem está falando, o que e com que finalidade.

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O discurso ideológico se constituiria, dessa maneira, como uma junção de

proposições empíricas e o que pode ser denominado de “visão de mundo” (Eagleton, 1997,

p. 33). Assim como numa obra literária, os elementos empíricos seriam organizados como

componentes de uma retórica global, servindo como suportes para uma determinada

perspectiva central do texto. Nesse sentido, uma verdade empírica pode ser modificada

para servir ao propósito da retórica, como no caso de um romance histórico que julgue

necessário deixar Tancredo Neves vivo por mais dez anos. Ou, ainda, um racista que

acredite que os asiáticos serão mais numerosos no Reino Unido do que os brancos em 2018

pode não ter sua crença abalada se for confrontado com as estatísticas reais, pois é

provável que tal afirmação seja um suporte, e não um motivo para o racismo.

Trata-se, aqui, não de negar que existam discursos ideológicos específicos, como

aqueles vinculados ao fascismo ou ao comunismo, mas de pontuar que os elementos de

uma ideologia não possuem um sentido inerente. Estes se configuram como significantes

soltos, cujo sentido é fixado a partir de sua articulação em cadeia com os demais elementos

(Zizek, 1996). Um fragmento de linguagem pode ser considerado ideológico em um

contexto, e não em outro, assim como podemos falar de qualquer tema a partir de

diferentes ideologias: conservadora, estatal, socialista, feminista, anarquista etc.

Entretanto, faz-se imprescindível destacar que, para interpretar os discursos

ideológicos, não basta reordenar ou traduzir seus elementos, mas demonstrar os

significados presentes nas próprias distorções. Ou seja, não é apenas uma questão de

decifrar um texto acidentalmente alterado, mas antes de expor as forças em atividade, das

quais as obscuridades linguísticas são um efeito necessário. Habermas seria o último

grande representante dessa tradição, que aproxima o funcionamento da ideologia ao do

sintoma neurótico. Como expõe Eagleton (1997), o comportamento neurótico pode ser

visto como uma estratégia para acolher, gerenciar e, até certo ponto, solucionar conflitos

reais ainda que de forma imaginária. As ideologias se aproximam desse funcionamento, na

medida em que não são meros produtos das contradições sociais, mas se empenham em

abrangê-las, manejá-las e resolvê-las imaginariamente.

Pode-se afirmar, portanto, que o caráter contraditório da ideologia advém do fato de

não reproduzir com fidelidade a contradição real. Sua “verdade”, como no sintoma

neurótico, não está presente naquilo que confessa, nem naquilo que esconde, mas na

unidade controversa que compõem (Eagleton, 1997, p. 123). A modalidade crítica

correspondente a essa noção será nomeada por Zizek (1996, p. 15) de “crítica sintomal”,

cujo objetivo é “discernir a tendenciosidade não reconhecida do texto oficial, através de

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suas rupturas, lacunas e lapsos”. Segundo ele, a figura do judeu no nazismo é facilmente

reconhecida como um sintoma, ou seja, uma mensagem codificada a partir de uma rede de

sobredeterminação simbólica. Primeiramente, há o deslocamento do antagonismo social

para a figura do judeu pela associação que é realizada entre a população judia e as questões

financeiras. Tal deslocamento é, então, reforçado pela condensação de traços opostos,

associados às classes alta e baixa (sujos e intelectuais, voluptuosos e imponentes), assim

como pela condensação de diferentes formas de antagonismo (econômico, político, moral-

religioso, sexual etc.). A “leitura sintomal” irá possibilitar a desconstrução da experiência

espontânea do sentido, demonstrando como o edifício ideológico (e o judeu, nesse caso

específico) resulta da articulação de significantes soltos numa determinada formação

simbólica (Zizek, 1992, p. 122).

De fato, Lacan (1971-1972/2012) pontua que a descoberta do sintoma deve ser

atribuía a Marx, e não a Freud. Isso se deve ao modo como Marx conceituou a passagem

do feudalismo ao capitalismo, na qual as relações de dominação e servidão foram

recalcadas. No capitalismo, as relações entre os homens se afiguram como livres de

qualquer forma de determinação, mas a verdade irrompe no sintoma da presentificação da

dominação nas relações sociais das coisas. Ou seja, ocorre um deslocamento, a relação

entre o Senhor e o Escravo no sentido hegeliano, que no feudalismo ocorria entre os

indivíduos, no capitalismo é transposta para ocorrer entre as mercadorias, dissimulando a

rede positiva das relações sociais (Zizek, 1991).

Nesse sentido, foi com a ascensão da burguesia que o terreno foi preparado para o

surgimento do conceito de ideologia, porque, a partir desse ponto, os sistemas de ideias

foram obrigados a se depararem com formas de discurso estranhas ou alternativas,

percebendo sua própria parcialidade. Efetivamente, podemos dizer que todo discurso é

parcial. O próprio marxismo, que possui como premissa considerar apenas o homem real,

por meio do processo de vida real, não é isento de suposições teóricas. Quando Marx e

Engels falam de tomar como ponto de partida a realidade, em oposição ao mundo das

ideias, se arriscam num empirismo ingênuo, o qual é incapaz de compreender que não

existe realidade sem interpretação (Eagleton, 1997).

Como aponta Zizek (1996, p. 16), “a própria ideia de um acesso à realidade que não

seja distorcido por nenhum dispositivo discursivo ou conjunção com o poder é ideológica”.

Assim, a proposição de que haveria níveis descritivos e argumentativos na linguagem não é

válida, pois não existe a possibilidade de um conteúdo descritivo neutro – toda descrição

pressupõe um espaço discursivamente pré-construído. Ou seja, qualquer enunciado implica

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a estruturação de um espaço simbólico, de uma posição discursiva que possibilite que algo

seja percebido como falta ou excesso (Zizek, 1996).

O método APAC se posiciona simbolicamente a partir do discurso religioso,

especialmente de sua face moral, com o intuito de manter, sustentar e justificar a

obediência às normas sociais. Não há uma preocupação acerca das causas da criminalidade

ou de transformações macrossociais, mas pressupõe-se que a conversão religiosa é a

resposta, já que a questão é individual. Nesse sentido, para Silva Júnior (2013, p. 93), a

valorização do sacramento penitencial faz com que o crime se transforme cada vez mais

em “uma espécie de doença social a ser combatida, estreitando a relação entre crime e

pecado”, com vistas à obtenção do arrependimento e da mudança do comportamento ilegal.

A ideologia cristã é central nessa perspectiva, porque condensa elementos

contraditórios que, nesse caso, se colocam a serviço de uma retórica global em prol do

abandono da “vida do crime”: insurreição contra os corruptos, mas obediência a Deus;

valorização da pobreza em oposição à riqueza da igreja; valorização do trabalho manual,

pois “cabeça vazia é oficina do diabo”; amar ao próximo como a si mesmo ao contrário do

criminoso que odeia até a si próprio; etc. Os efeitos de tal comunicação podem ser vistos

nas falas dos próprios recuperandos, que se veem confrontados com a perspectiva de

corresponderem à ideia de alguém adaptado socialmente; ou seja, alguém que trabalha

honestamente e frequenta a igreja regularmente com sua esposa e filhos, como apontou

Júlio, durante uma conversação: “Eu não tenho estudo, não tenho profissão. Como é que

eu vou sair daqui e trabalhar se como servente de pedreiro eu ganho 100 reais por dia? Só

esse meu relógio aqui foi 500 reais, imagina o resto”. Ou seja, como adquirir um relógio

de 500 reais com trabalho honesto se ele não possui qualificação alguma, nada que garanta

um salário digno por mês? Teria que se contentar, que se adaptar ao seu lugar na

sociedade?

4.2 A ideologia “Para-si”

A ideologia, entretanto, não se configura apenas como dimensão textual, mas se

materializa, a fim de constituir sua alteridade-externalização. Como apontamos

anteriormente, a religião inclui um tipo específico de discurso, na forma de sua doutrina,

mas também pressupõe a Igreja como instituição e os rituais na perspectiva do ato.

Podemos perceber, assim, o mecanismo de funcionamento da materialização da crença: a

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dimensão institucional, que ordena a vida dos indivíduos de cima para baixo, e a dimensão

individual, como ações inseridas nessas instituições (Zizek, 1996).

Marx concebeu o funcionamento da sociedade de maneira semelhante, mediante a

metáfora de um edifício composto pela “infraestrutura ou base econômica”, que representa

as forças produtivas e as relações de produção, e pela “superestrutura”, dividida entre a

instância jurídico-política e a ideológica (Althusser, 1970, p. 109). A vantagem teórica

dessa metáfora é que ela condensa, simultaneamente, três proposições fundamentais: que a

base é determinante na sustentação do edifício, que a superestrutura possui certa autonomia

e, por fim, que existe uma ação recíproca do topo sobre a base. A desvantagem dessa

representação é que ela é apenas descritiva e não nos fornece informações sobre seu modo

de funcionamento. Diante disso, Althusser (1970) utiliza a noção marxista de reprodução

com a finalidade de construir uma teoria do funcionamento do edifício social,

especialmente da superestrutura em sua face ideológica.

Para iniciar sua exposição, Althusser (1970) nos lembra que, se toda formação

social advém de um modo de produção dominante, ocorre que o processo de produção

implica as forças produtivas segundo as relações de produção definidas. Isto é, a formação

social (superestrutura) colocará em andamento o funcionamento da produção (base) de

acordo com seus princípios. No caso do capitalismo, a produção ocorrerá a partir de

relações de dominação, nas quais o proprietário determina a atividade do trabalhador.

Porém, é importante destacar que não basta produzir. É preciso ainda reproduzir as

condições de produção.

A reprodução acontece a partir de duas frontes. De um lado, temos a reprodução

das condições materiais de produção: matérias-primas, instalações fixas (prédios),

instrumentos de produção (máquinas) etc. Para o capitalista, é essencial repor o que foi

gasto na produção, resultando numa imbricada rede de dependência, na qual a matéria-

prima de uma empresa é fabricada por outra organização, que, por sua vez, adquire seu

material de outro fornecedor, e assim por diante. Por outro lado, deve haver também a

reprodução da força de trabalho, assegurada pelo fornecimento de meios materiais para sua

reprodução: os salários. Estes se configuram como uma parcela do valor produzido,

calculada para suprir apenas o necessário ao trabalhador: moradia, alimentação, vestuário

etc. Isto é, o salário é pensando para permitir ao indivíduo a sua apresentação no portão da

fábrica no dia seguinte – e, convém acrescentar, para possibilitar também ao trabalhador

criar e educar seus filhos, nos quais se reproduz (Althusser, 1970).

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Todavia, o desenvolvimento das forças produtivas implica que a força de

trabalhado deve ser qualificada e, portanto, deve ser reproduzida como tal. Althusser

(1970) aponta que no capitalismo a qualificação é majoritariamente obtida por meio do

sistema educacional, e não fornecida in loco, como era frequente na Idade Média. Essa

mudança na forma de transmissão dos conhecimentos é fundamental, pois, a partir da

criação da escola, foi possível ensinar aos indivíduos não somente as técnicas e teorias

necessárias ao lugar que lhe foi destinado na sociedade, como também o respeito pela

divisão do trabalho e pela dominação de classe. Em outras palavras, a escola “ensina a

‘habilidade’, mas sob formas que assegurem a sujeição à ideologia dominante” (Althusser,

1970, p. 108). Um exemplo desse funcionamento reside no fato de que pessoas

consideradas inferiores em determinado contexto devem aprender a sê-lo: não basta dizer-

lhes que não passam de uma forma de vida inferior; é preciso ensinar-lhes ativamente essa

lição (Eagleton, 1997).

A superestrutura terá, dessa maneira, um papel crucial na garantia da reprodução

dos meios de produção. O Estado, na visão de Marx, se configura claramente como um

instrumento de repressão, que permite às classes dominantes assegurar sua dominação.

Este é usualmente denominado como Aparelho de Estado, pois comporta desde a polícia,

os tribunais e os presídios até o chefe de Estado, o governo e a administração. Althusser

(1970) irá se servir dessa definição de Aparelho de Estado, mas postulando que esta se

refere apenas à face jurídico-política da superestrutura – à sua face ideológica será

necessária a construção de outra definição: a de Aparelhos Ideológicos do Estado.

A dimensão repressiva e a dimensão ideológica estarão presentes na superestrutura

como um todo, porém com uma divisão importante: enquanto o Aparelho (repressivo) de

Estado funciona majoritariamente pela violência, os Aparelhos Ideológicos de Estado

(AIE) se voltam essencialmente para a ideologia. Além disso, existe uma pluralidade de

AIE, pertencendo em sua maioria ao domínio privado, em oposição ao Aparelho

(Repressivo) de Estado, que é unificado e se encontra na esfera pública. Entre os diferentes

AIE elencados por Althusser (1970), gostaríamos de destacar o religioso (o sistema das

diferentes Igrejas), o jurídico, o da informação (imprensa, rádio, televisão etc.) e o cultural

(literatura, esportes, artes etc.).

Ao que se sabe, “nenhuma classe é capaz de deter o poder estatal por um período

prolongado sem, ao mesmo tempo, exercer sua hegemonia sobre e dentro dos Aparelhos

Ideológicos de Estado” (Althusser, 1970, p. 117). Nesse sentido, não foi por acaso que a

luta ideológica pré-capitalista teve seu foco no combate à classe eclesiástica, já que a Igreja

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representava o Aparelho Ideológico de Estado dominante, concentrando em si não só as

funções religiosas, como as escolares, de informação e de cultura. Atualmente, podemos

considerar que o AIE escolar exerce maior influência social, mas cada um irá contribuir à

sua maneira para o mesmo resultado: a reprodução das relações de produção.

O conceito de Aparelhos Ideológicos do Estado e o seu modo de funcionamento são

aqui essenciais para compreendermos a tese de que as ideias ou representações que

compõem uma ideologia não estão presentes apenas no plano ideal ou espiritual, mas

possuem materialidade. Um indivíduo que acredita em Deus deve dirigir seus atos de

acordo com sua crença: deve ir às missas, rezar, confessar, jejuar, realizar penitência, fazer

caridade etc. Isto é, deve inscrever suas ideias em sua prática material, que, por sua vez, se

insere na realidade material de um Aparelho Ideológico de Estado. Nas palavras de

Althusser (1970):

No que tange a um único sujeito (tal qual indivíduo), a existência das ideias que

formam sua crença é material, pois suas ideias são seus atos materiais, inseridos

em práticas materiais regidas por rituais materiais, os quais, por seu turno, são

definidos pelo aparelho ideológico material de que derivam as ideias desse sujeito.

(p. 130, itálico do autor)

É evidente que o adjetivo “material” é aqui empregado para se referir a diferentes

formas de materialidade, como o deslocamento para ir à igreja e a repetição de uma frase

de oração. No entanto, o que importa destacar é que as instituições e seus rituais não são

uma simples externalização da crença, mas antes representam os próprios mecanismos que

a geram. Quando Pascal, citado por Althusser (1970, p. 130), diz “Ajoelhe-se, mexa seus

lábios numa oração e você terá fé”, ele se refere à dependência da crença interna em

relação ao comportamento externo. Althusser (1970) transcende esse modelo, pois concebe

um mecanismo retroativo de produção autônoma, no qual a ação dá origem à sua própria

base ideológica. A formulação mais coerente com essa lógica seria, portanto: “Ajoelhe-se e

você acreditará que se ajoelhou por causa de sua fé” (Zizek, 1996, p. 18).

Nesse ponto, Zizek (1996) demonstra como a comparação entre Althusser e

Foucault dá origem a uma constatação interessante. Esse último abandona a problemática

da ideologia, pois considera que o poder se constitui de baixo para cima, através de uma

rede complexa de inter-relações, que têm como efeito secundário a imagem de um topo (o

monarca ou outra representação de autoridade). Os processos disciplinares seriam, no nível

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do micropoder, a maneira como o poder se inscreve diretamente no corpo, contornando a

ideologia. O problema dessa concepção fica evidente quando surge a necessidade de

demonstrar como a imagem de um topo emerge da pluralidade de micropráticas, já que o

abismo entre os microprocessos e o espectro do poder continua insuperável. A resposta a

essa questão pode ser encontrada em Althusser na medida em que este concebe os

microprocessos como integrantes dos Aparelhos Ideológicos de Estado, isto é, como

“mecanismos que, para serem atuantes, para ‘captarem’ o indivíduo, sempre já pressupõem

a presença maciça do Estado, a relação transferencial do indivíduo com o poder do Estado”

(Zizek, 1996, p. 18).

Para Eagleton (1997), a própria noção marxista de superestrutura deve ser

apreendida como um termo relacional, ou seja, como testemunho de que certas instituições

funcionam como sustentáculo das relações sociais dominantes. Nesse sentido, podemos

situar a APAC como uma instituição apoiada diretamente pelo governo executivo e

judiciário de Minas Gerais não apenas pelo financiamento mensal de suas atividades, como

por meio de incentivos em prol da construção de novas unidades. A APAC se constitui

como uma alternativa altamente viável à prisão convencional, porque necessita de menos

recursos para o seu funcionamento e apresenta menores taxas de reincidência. Além disso,

configura-se como uma instituição capaz de materializar a própria ideologia em rituais

religiosos e disciplinares, transformando o cotidiano num misto de orações coletivas e

trabalho manual.

Ao contrário dos presídios tradicionais, que exigem apenas a submissão e o

assentimento, as instituições apaqueanas exigem que os sujeitos sejam ativos, que tenham

não apenas compromisso com o que é proposto, mas também proatividade e manifestações

de repúdio à vida do crime. Alguns recuperandos podem até não concordar com o discurso

transmitido, mas serão obrigados a repetir esse discurso e a dirigir suas ações na mesma

direção. Um exemplo disso é o fato de que na APAC não é permitido o uso de

medicamentos prescritos durante a estadia no presídio. Faz-se necessária uma nova

consulta médica para averiguar se aquelas substâncias são mesmo precisas. O motivo é que

os médicos do presídio costumam administrar fármacos com o intuito de manter os

encarcerados “dopados”, para que consigam permanecer anos trancados em pequenas

celas, sem qualquer tipo de distração, mas sem se sentirem muito desconfortáveis a ponto

de se rebelarem. Na APAC, por sua vez, o conforto físico aos presos é visivelmente maior,

porém os remédios que acalmam e que entorpecem são rigorosamente proibidos.

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4.3 A ideologia “Em-si-e-Para-si”

Aqui, divisa-se um terceiro conjunto de fenômenos ideológicos, composto por

pressupostos e atitudes implícitas, quase espontâneas, que se presentificam na reprodução

de práticas consideradas não ideológicas, como as econômicas, legais, políticas e sexuais

entre outras. Ao examinarmos tais práticas mais atentamente, especialmente seus

mecanismos considerados extraideológicos, percebemos adentrar no campo em que a

realidade e a ideologia se confundem. Um exemplo disso é o direito criminal, elemento

importante da norma legal que regula a reprodução social, mas que pressupõe uma crença.

A responsabilidade pode ser individual ou coletiva. Irá depender da convicção de que o

crime é um desvio pessoal ou um produto das condições sociais. Assim como aponta Zizek

(1996, p. 20), a operação acontece como que subitamente quando percebemos a presença

“de um ‘para-si’ da ideologia que está em ação no próprio ‘em-si’ da realidade

extraideológica”.

A noção de fetichismo da mercadoria é exemplar nesse contexto, pois designa não

uma teoria da economia, mas a configuração estrutural em que se inserem as trocas de

mercado em sua prática real (Zizek, 1996). Marx se apropria do termo religioso fetiche

com a intenção de demonstrar como a mercadoria não só adquire vida própria, como ainda

exerce um poder sobre seus crentes e adoradores, dominando-os através de uma força

misteriosa (Chauí, 2008). Nesse sentido, Marx não está afirmando que os seres humanos

possuem uma percepção distorcida da realidade, imaginando que as mercadorias regem

suas vidas. Ou seja, as mercadorias não parecem exercer um domínio sobre as relações

sociais. Na verdade, elas efetivamente o fazem. Aqui, não estamos às voltas com uma

questão de falsa consciência, mas de a consciência refletir uma inversão real: os homens

são realmente transformados em coisas e as coisas são realmente transformadas em gente

(Eagleton, 1997).

A ideologia, nessa perspectiva, foi como que transferida da superestrutura para a

base ou, pelo menos, significa que existe uma relação especialmente próxima entre elas. É

a lógica material, rotineira, da vida cotidiana que mantém o sistema em seu funcionamento

básico, no qual é a própria mercadoria, e não algum conjunto de discursos ou doutrinas,

que produz a ideologia (Eagleton, 1997). O problema que se coloca a partir dessa definição

é a dificuldade de se traçar uma linha demarcatória do que seria ideológico ou não, pois a

noção começa a se tornar forte demais e a abarcar, inclusive, o terreno que costumamos

considerar neutro, aquele que fornece o padrão para medirmos as distorções ideológicas.

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Esse é um dos principais motivos elencados para o abandono progressivo do conceito,

porque estaríamos sempre incluídos no campo das ficções simbólicas, envoltos no universo

da pluralidade de discursos e nunca lidaríamos com realidade em si (Zizek, 1996).

Outro motivo para o abandono da noção de ideologia seria a consideração de que

ela é redundante nas sociedades capitalistas modernas. Isso acontece, pois, em sua vertente

clássica, a ideologia pressupõe certa ingenuidade: existe uma distância entre o que se faz e

a falsa consciência acerca disso, que pode ser esclarecida mediante uma análise crítica das

condições reais de existência. Entretanto, no ambiente do pós-modernismo, dificilmente

alguém admitiria ser iludido pela própria retórica oficial, porque seríamos todos muito

espertos para sermos trapaceados. Essa condição é denominada por Peter Sloterdijk como

“falsa consciência esclarecida, na qual o indivíduo não é uma vítima infeliz da falsa

consciência, mas sabe exatamente o que está fazendo e, mesmo sabendo, continua a fazê-

lo” (Eagleton, 1997, p. 46).

Desse modo, a ideologia funcionaria cada vez mais de maneira cínica, tornando

inócua a forma crítica tradicional. O cinismo, nessa perspectiva, não se trata de uma

subversão da ideologia oficial ingênua, nem de uma postura imoral direta, mas de utilizar a

própria moral a favor da imoralidade. Assim, a honradez é tida como a maior das

desonestidades, a moral se transforma na forma mais pura de perversão e a verdade no

modo mais acurado de mentir. Como aponta Zizek (1992, p. 60), trata-se de uma espécie

de “negação da negação pervertida”, na qual, por exemplo, o enriquecimento honesto seria

um crime mais grave do que o roubo comum, contando, ainda, com a proteção da lei. O

que seria “o assalto de um banco comparado à fundação de um banco?” (Zizek, 1992, p.

60)

Todavia, a conclusão de que a ideologia em sua forma espontânea e/ou a posição

cínica representa(m) os indícios de uma falência do conceito pode ser considerada a

posição ideológica por excelência. A falta de importância dada pela maioria das pessoas à

ideologia se configura não como um empecilho, mas como um elemento indispensável

para seu funcionamento. Ou seja, “a ideologia reinante nesse sistema se exerce justamente

pelo fato de não ser ‘levada a sério’ por ninguém” (Zizek 1992, p. 146). Neste ponto, a

noção de sujeito-suposto-crer, correlata à de sujeito-suposto-saber, é essencial para

entendermos como, apesar do funcionamento cínico, a crença continua a exercer seu papel

no estabelecimento de um conjunto social.

Suponhamos que, num país socialista real, se espalhe o boato de que os papéis

higiênicos estão em falta nas lojas. Na realidade, o boato não é verdadeiro: as lojas estão

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cheias de papéis higiênicos. Porém, o raciocínio mais comum é considerar que algumas

pessoas serão ingênuas o bastante para acreditar e irão se abastecer. Assim, a melhor

atitude é realmente ir às compras antes que os ingênuos o façam, resultando numa

verdadeira escassez do produto. Dessa maneira, cada um irá fazer referência a um sujeito

que supostamente acredita, alguém inocente e iludido, que, mesmo não existindo em parte

alguma, produz efeitos na realidade – como a ausência de papel sanitário nas lojas (Zizek,

1992).

Na instituição apaqueana alvo deste trabalho, fica clara a presença do sujeito-

suposto-acreditar no discurso dos apenados. Ali, ele ganha a forma de alguém que

necessita de fato da APAC, pois lhe faltam as condições financeiras e os recursos internos

para lidar com os abusos inerentes ao sistema prisional convencional. Assim, os

recuperandos dizem aceitar os preceitos apaqueanos e segui-los à risca, para servir de

modelo e para sustentar o funcionamento da instituição em prol daqueles que realmente

precisam daquele espaço. Como no exemplo do papel sanitário, não importa se tal sujeito

exista na realidade social, seus efeitos estarão presentes.

O sujeito-suposto-saber ainda serve como base para dois outros sujeitos. O sujeito-

suposto-gozar representa a figura do “outro como suporte de um gozo ilimitado,

insuportável, traumatizante” (Zizek, 1992, p. 148). Podemos perceber essa lógica no

racismo, no qual o que nos inquieta é a forma como o outro organiza seu gozo, ou na visão

que o obsessivo tem de certa mulher como portadora de um gozo transbordante,

aniquilador. Já o sujeito-suposto-desejar caracteriza o outro que sabe desejar, que possui o

conhecimento acerca do impasse do desejo humano. Aqui, relaciona-se especialmente à

posição histérica, que necessita de um outro para organizar seu desejo, como no caso de

Dora que via na Sra. K a encarnação do saber desejar.

A lição a se extrair disso tudo, segundo Zizek (1992, p. 147), é que o que

chamamos de realidade social se trata de “um constructo ético que se apoia num ‘como

se’”. Ou seja, agimos “como se” acreditássemos: que o patrão gostaria de pagar um salário

maior, mas é impedido pela alta carga tributária; que o programa televisivo de calouros ou

reality show é imparcial; que os outros partidos políticos roubam, mas o meu jamais faria

isso etc. Essa crença é elementar para a própria tessitura do social não por alguma condição

psicológica, mas por seu caráter objetivo, efetivo, como materialidade.

Da diferenciação inicial da ideologia como ordem simbólica e como materialidade,

podemos agora subdividir a materialidade em seus aspectos institucional (os Aparelhos

Ideológicos de Estado) e extrainstitucional (o fetichismo da mercadoria). Os AIE são

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responsáveis por materializar o Outro espiritual e insubstancial da ideologia, enquanto o

fetichismo da mercadoria origina a espiritualização do corpo-mercadoria. Ou seja, estamos

às voltas com a materialidade necessária à ideologia ao mesmo tempo em que a ideologia

se faz necessária à materialidade. Essa oposição se configura, em última instância, na

oposição entre Estado e Mercado, entre a organização social imposta de cima e a auto-

organização da base. Nas palavras de Zizek (1996, p. 24), “a ideologia como universo da

vivência espontânea”, alternativamente à “ideologia como uma máquina radicalmente não

espontânea, que distorce de fora para dentro a autenticidade da nossa experiência de vida”.

Essa tensão entre as duas formas opostas de materialidade implica certo

distanciamento reflexivo, no qual uma ideologia apenas consegue se afirmar ao se

distinguir de outra ideologia – é preciso outro corpo de ideias para identificar uma posição

como ideológica ou verdadeira. Marx, no começo de sua obra, recai nessa problemática ao

opor a ilusão ideológica à busca pela vida real. Porém, ao introduzir o conceito de

fetichismo da mercadoria, o que ele tem em mente é a subversão desta oposição entre

realidade e ilusão na medida em que indica que não há espiritualidade pura sem o

componente da matéria espiritualizada. Assim, a ideologia oficial de nossa sociedade pode

ser considerada o cristianismo, mas sua base material necessária não pode ser outra senão a

idolatria ao Bezerro de Ouro, o dinheiro (Zizek, 1996).

Para Zizek (1991), este seria o problema não resolvido por Marx: o da

materialidade sublime do dinheiro. Segundo ele, o corpo do dinheiro seria como o da

vítima do sádico, um corpo que persiste para além de todas as tribulações com a beleza

intacta. Uma espécie de “corporeidade imaterial do corpo sem corpo”, um objeto sublime

indestrutível, mas que implica a garantia de uma autoridade simbólica – neste caso, aquela

que cunha a moeda e assegura sua pureza (Zizek, 1991, p. 137). Outro exemplo é a

afirmação de que os comunistas seriam feitos de um “estofo à parte”, pois a encarnação da

“razão objetiva da história” (Zizek, 1991, p. 188) transformá-los-iam em portadores de um

corpo sublime, necessário para a superação da materialidade frágil.

Jacques Derrida emprega o termo espectro para designar essa pseudomaterialidade

apresentada por Marx. Conforme Zizek (1996), talvez este seja o ponto elementar, a matriz

que dá origem a todas as formações ideológicas: o fato de que a realidade apenas se torna

completa através da inserção de um componente espectral. Isso acontece, pois, como

postulado por Lacan, o que entendemos por nossa realidade já é sempre constituído e

estruturado por mecanismos simbólicos, mas de maneira falha, incompleta. O espectro vem

justamente para tapar esse buraco deixado pela simbolização deficiente, completando o

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círculo da realidade. Em outras palavras, “o espectro dá corpo àquilo que escapa à

realidade (simbolicamente estruturada)” (Zizek, 1996, p. 26).

Ou seja, o que o espectro oculta não é a realidade em si, mas seu “recalcamento

primário”, o ponto irrepresentável no qual esta se fundamenta (Zizek, 1996, p. 26). Algo

deve ser excluído para que a realidade se constitua e o melhor exemplo disso talvez seja o

conceito marxista de luta de classes na medida em que designa o antagonismo que impede

a constituição de um todo social fechado em si mesmo. Concebida como um princípio

totalizador da sociedade, a luta de classes representa, antes, a coesão pelo antagonismo,

pela própria cisão que impede a formação de um todo completo. Embora não esteja

presente em parte alguma, funciona em sua própria ausência, como o que permite situar

qualquer fenômeno não como um significado transcendental, mas como mais uma tentativa

de esmaecer, apagar os vestígios do antagonismo. Assim como aponta Zizek (1996), é

justamente esse o paradoxo, um efeito que tenta dissipar sua própria causa, que, de certo

modo, resiste à sua causa.

De fato, “não é possível isolar nenhum processo ou mecanismo social ‘objetivo’

cuja lógica mais íntima não implique a dinâmica ‘subjetiva’ da luta de classes” (Zizek,

1996, p. 28). Até mesmo a paz, a ausência de luta, também pode ser considerada uma

forma de luta de classes, já que significa a vitória temporária de um dos lados. Ou seja,

toda posição social é sobredeterminada pela luta de classes, resultando na ausência de um

lugar neutro, onde seria possível localizá-la. Podemos, assim, relacionar a luta de classes

com o conceito de real em Lacan em seu sentido estrito: um obstáculo que dá origem

sempre a novas simbolizações, uma vez que nos esforçamos por incorporá-lo, absorvê-lo,

mas este não cessa de condenar esses esforços ao fracasso.

A partir dessa perspectiva, é possível ainda se desvencilhar da ideia de que

devemos abandonar a noção de ideologia devido ao fato de que o acesso à realidade em si,

sem forma de mediação alguma, é impossível. Pois, se antes a crítica da ideologia exigiria

um posicionamento epistemológico insustentável, algo como uma visão divina dos

fenômenos mundanos. Agora, considerando que a realidade se estrutura a partir de um

recalcamento primário, a posição extraideológica que nos permite classificar experiências

como ideológicas não é a realidade em si, mas o real do antagonismo. A ideologia não é

tudo. É possível apropriar-se de um lugar que nos mantenha a certa distância dela, “mas

esse lugar de onde se pode denunciar a ideologia tem que permanecer vazio, não pode ser

ocupado por nenhuma realidade positivamente determinada” (Zizek, 1996, p. 23). No

momento em que preenchemos esse lugar, voltamos à ideologia.

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Dessa forma, a crítica à ideologia pode não apenas se manter viva, como denunciar

os mecanismos em ação no totalitarismo, no capitalismo pós-moderno ou até mesmo no

exercício de uma religião. As contribuições de Lacan à psicanálise também nos auxiliam

nesse processo crítico ao considerarmos, principalmente, o funcionamento do campo

simbólico e a lógica da fantasia, delimitando e mascarando o real, respectivamente. Assim,

o ponto de vista marxista, que considera a denúncia da universalização e eternização de

constelações históricas concretas como o processo crítico ideológico por excelência, recebe

seu complemento necessário mediante a identificação do núcleo real que retorna sempre o

mesmo através das diversas historicizações. Os dois pontos de vista são completares, pois,

enquanto a universalização apressada nos cega para sua determinação histórica, a

historicização precipitada nos ofusca o real, que não cessa de não se inscrever (Zizek,

1991).

O real que se presentifica na ordem social é delimitado pela tautologia “a lei é a

lei”, que atesta o cunho infundado da lei, seu estabelecimento como possuidor de um

caráter ilegal e ilegítimo (Zizek, 1992, p. 63). Ou seja, a lei social se sustenta a partir de

uma violência ilegítima: é necessário um fora-da-lei, um real da violência que coincide

com o próprio ato de sua instauração. Porém, esse real deve ser dissimulado, mascarado,

para que a autoridade da lei seja vivenciada como autêntica e eterna por seus subordinados.

Somos, assim, aprisionados na lei através de uma estrutura sincrônica, mas que pressupõe

um vazio constitutivo, uma “falta onde a fantasia política vem se inscrever e ganhar

consistência” (Zizek, 1992, p.64).

A fantasia, nesse sentido, se configura como um correlato do espectro, algo que

vem com a intenção de mascarar esse furo no simbólico, porém sem preenchê-lo. Sua

consistência é como a da imagem, um anteparo que não possui profundidade, mas que

esconde o que há por trás. Na dimensão simbólica da ideologia, cuja crítica é a análise

sintomal, a ilusão está presente na dimensão do saber. Já na fantasia ideológica, a ilusão é

o que estrutura a própria realidade, o que determina nosso posicionamento e nossa ação.

Como aponta Zizek (1992, p. 62), “o lugar apropriado da ilusão é a realidade, o processo

efetivo social”. O cínico, que reconhece de antemão a inutilidade das proposições

ideológicas e que sabe muito bem o que está fazendo, desconhece justamente a fantasia

que estrutura a realidade social, a ilusão fetichista que norteia sua própria atividade efetiva.

Aqui, faz-se importante a distinção entre as noções de fetiche para Marx e para

Freud. No marxismo, o fetiche dissimula a rede positiva das relações sociais e o olhar

ideológico é aquele parcial, que está fechado para a totalidade social. Ao passo que, para

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Freud, o fetiche dissimula a castração, a falta em torno da qual se articula a rede simbólica

(Zizek, 1991). O judeu é o fetiche no sentido freudiano, o elemento que oculta o

antagonismo social, ao mesmo tempo em que o encarna: ao desempenhar o papel de

perturbador que introduz de fora o excedente da luta de classes, o judeu é realmente o

desmentido positivado do antagonismo, que impede a harmonia comunitária. Em outras

palavras, o judeu é um “elemento externo, um corpo estranho que introduz a corrupção no

tecido social sadio” (Zizek, 1992, p. 124).

De fato, o desafio da fantasia social é a realização de uma totalidade social, de uma

relação harmoniosa, orgânica e complementar entre as suas diversas partes. Como aponta

Zizek (1991), o constructo fantasístico em que se baseia um campo ideológico nos remete,

em última análise, à fantasia de uma relação de classes, uma utopia que se liga à imagem

da sociedade como um corpo constituído, perfeito. A noção de fantasia ideológica se

constitui, dessa maneira, como a contrapartida necessária ao conceito de antagonismo, já

que denomina precisamente a maneira como tal antagonismo é dissimulado. Além disso, a

fantasia é o modo pelo qual a ideologia considera antecipadamente sua própria falha. O

judeu, por exemplo, em sua presença positiva, representa a presentificação da

impossibilidade do projeto totalitário; isto é, de seu limite imanente. Todo o esforço da

ideologia fascista se volta para a luta contra esse elemento, que encarna de forma fetichista

uma barreira fundamental no caminho de uma sociedade totalmente transparente e

homogênea (Zizek, 1992).

A crítica ideológica deve, então, inverter a perspectiva usual totalitária, que enxerga

no judeu a causa positiva da impossibilidade, em prol da visualização de que, antes, ele

representa a própria encarnação da impossibilidade. Em outras palavras, “o judeu é o ponto

em que a negatividade social como tal assume uma existência positiva” (Zizek, 1992, p.

124). Ou seja, não são os judeus que frustram a sociedade de alcançar sua compatibilidade

plena, mas sim sua própria natureza contraditória, seu bloqueio intrínseco, que é neles

projetado. O método básico da crítica se converte, dessa maneira, na identificação, dentro

de um edifício ideológico, do elemento que desempenha o papel de sua impraticabilidade.

Entretanto, essa lógica não é suficiente para explicar o fascínio que se liga à figura

do judeu, como esta é capaz de cativar nosso desejo, penetrando nossas defesas. Como

aponta Zizek (1992), a fantasia é, essencialmente, um roteiro que vem encobrir o vazio de

uma impossibilidade fundamental. Ao entrar no contexto da fantasia, o judeu se integra ao

modo como nosso gozo é estruturado, pois, para “além do campo da significação, mas, ao

mesmo tempo, no interior desse campo, uma ideologia implica, manipula e produz um

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gozo pré-ideológico estruturado na fantasia” (Zizek, 1992, p. 122). A impossibilidade

fundamental que a fantasia oculta é a de que não há relação sexual e, por isso, em última

análise, esta é sempre a encenação, a representação dessa relação. Além disso, por se

constituir como um anteparo que mascara um vazio, não deve ser interpretada, mas

atravessada: devemos perceber que por trás dela não há nada e que sua função é,

precisamente, esconder esse nada.

Paralelamente à figura do judeu, temos a figura do criminoso, que atualmente

representa o elemento excedente, aquele que introduz de fora a corrupção no tecido social.

Assim como no fascismo, existe uma crença de que a eliminação desse elemento seria a

solução última para todos os problemas, o triunfo em prol de uma sociedade harmoniosa.

Nesse sentido, é emblemático o título de uma das obras de Ottoboni, Vamos matar o

criminoso?, pois deixa claro o intuito de sua metodologia. Todavia, o criminoso, como é

descrito por ele, se afigura mais como persona mítica do que como uma possibilidade real,

pois condensa em si todas as desvirtudes e a capacidade para o mal ao contrário do

homem, que seria exatamente o seu oposto, a fim de confirmar a necessidade de matar o

primeiro para que este possa ocupar seu lugar.

Tal posicionamento apaqueano também foi percebido por Silva Júnior (2013, p.

80), que afirma: “A perspectiva moralizante da APAC nos parece cristalina. O preso-

pecador deve se emendar, corrigir suas condutas, a fim de que retorne recuperado para o

convívio social”. Ou seja, o que deve se modificar é o detento, e não a sociedade. Além

disso, Silva Júnior (2013, p. 93) completa ainda que o método exige um padrão moral tão

elevado que não é passível de ser cumprido, nem mesmo pelo próprio Ottoboni, “que, num

de seus livros, asseverou já ter violado a ética perante o Judiciário”.

Assim, a ideologia apaqueana constrói um ideal de homem: adaptado socialmente,

moralmente orientado e temente a Deus. Por reconhecer de antemão a existência de

indivíduos que fogem a esse padrão, surge a figura do criminoso: insolente, imoral,

inescrupuloso e ignorante quanto às questões divinas. Porém, nem tudo estaria perdido, já

que ele erra por desconhecimento, por falta de orientação, por estar preso dentro de si

mesmo. Como aponta Silvio Marques Neto, em prefácio de Ottoboni (1984a, p. 12): “Não

se trata de aplicar a discutida Teologia da Libertação, tão preocupada com jugos e

opressões materiais, mas de libertar o preso de sua prisão interior através das verdades

eternas do Evangelho”.

Isto é, o criminoso nada mais é do que uma face do homem, mas que pode ser

“morta” por meio da evangelização e da conversão. A disciplina, a educação e o trabalho

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seriam aspectos complementares, essenciais para a integração na comunidade, mas

secundários diante da força e do poder do evangelho.

O elemento do edifício ideológico apaqueano que se faz necessário para sua

completude, mas que, ao mesmo tempo, representa sua impossibilidade imanente é,

portanto, o criminoso. Ele é o motor que impele o projeto, enquanto o condena a nunca

alcançar o sucesso, porque sempre haverá criminosos, sempre haverá trabalho a ser feito.

Mas, disso, o método já sabe. O que ele desconhece, ou tenta desconhecer, é a dimensão do

gozo, a capacidade do ser humano não só desejar o imoral, mas gostar (gozar) dele. A

religião, como componente da fantasia, estrutura o gozo do sujeito de maneiras mais

aceitas socialmente, mas este é indestrutível. As tentativas de negá-lo apenas contribuem

para sua efetivação. Afinal, matar o criminoso não seria justamente uma forma de

manifestação do gozo?

Podemos perceber, nesse ponto, como a travessia da fantasia é correlata à

identificação ao sintoma. Os judeus, ou os criminosos, são um sintoma social: o ponto em

que o antagonismo como negatividade imanente assume uma existência positiva, penetra

no tecido social e demonstra como o viver coletivo em consonância não funciona.

Consequentemente, sua eliminação seria a atitude necessária para o estabelecimento da

ordem e da coesão. Entretanto, ao atravessarmos a fantasia e percebermos que o criminoso,

tal como concebido, se configura como apenas um roteiro que oculta essa falha imanente,

outro posicionamento também deve advir: a identificação com o sintoma. Nas palavras de

Zizek (1992, p. 125): “Temos que reconhecer, nos traços atribuídos ao ‘judeu’, o produto

necessário de nosso próprio sistema social, temos que reconhecer, nos ‘excessos’

atribuídos aos ‘judeus’, nossa própria verdade”.

Identificar-se com o sintoma, implica, assim, reconhecer nos excessos, nos erros,

nos distanciamentos do que é considerado como normalidade, o caminho para o encontro

com o verdadeiro funcionamento. No caso do criminoso, como aponta poeticamente frei

Betto, “Exigir que um homem preso seja exemplo de virtudes é, no mínimo, querer tirar o

cisco do olho alheio sem ver a trave no próprio” (Camargo, 1984, p. 12). É querer negar a

dimensão assustadora, radicalmente desumana, presente em cada sujeito, conceituada por

Freud como pulsão de morte e por Lacan como das Ding. Assim como nos lembra Zizek

(1992, p. 194), tal negação só pode resultar em sua concretização brutal: “Os crimes mais

assustadores, desde o holocausto nazista até os expurgos stalinistas, foram cometidos

justamente em nome da Natureza Humana Harmoniosa”.

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5 O SUJEITO LACANIANO NO CONTEXTO APAQUEANO

Em nosso percurso de análise do método APAC, a partir de suas diversas facetas e

baseando-nos na metodologia da psicanálise aplicada, deparamo-nos agora com a questão

do sujeito que cumpre pena privativa de liberdade sob seus preceitos em suas instituições.

Nosso interesse aqui é refletir como esse aparato discursivo, institucional e metodológico

se apresenta àqueles a quem se destina, mas considerando-os como sujeitos de desejo, de

gozo e de fantasias. Ao contrário da APAC, nosso olhar é estrutural, mas individualizado;

abrange os aspectos sociais e o que está para além disso.

O conceito de sujeito é um dos mais importantes da psicanálise, pois, apesar de ter

sido cunhado por Lacan, a descoberta freudiana do inconsciente modificou de maneira sem

volta a imagem que o ser humano tinha de si mesmo. Assim, como Lacan se empenhou em

demonstrar: “Em Freud, não há uma teoria do conhecimento, mas um sujeito em busca de

um saber, um sujeito, tal como a ambiguidade da palavra sugere, ao mesmo tempo sujeito e

assujeitado ao inconsciente” (Chaves, 2005, p. 84). O dispositivo freudiano da associação

livre é aquele que fornece as condições de emergência desse sujeito ao possibilitar o

advento da repetição, da transferência e das chamadas formações do inconsciente, como

atos falhos, lapsos, chistes, sonhos e sintomas (Elia, 2010).

Tendo isso em mente, a tentativa de acesso aos sujeitos encarcerados foi realizada a

partir de um grupo de conversação, em uma instituição apaqueana do interior de Minas

Gerais, como exposto anteriormente em nossa metodologia18.As questões mais importantes

colocadas pelo grupo, assim como aquelas que se fizeram presente no cotidiano

institucional, serão relacionadas ao conceito de sujeito propriamente dito, exposto a partir

do grafo do desejo, já que este condensa de maneira ímpar como o sujeito se constitui nas

esferas do imaginário, do simbólico e do real, além de demonstrar as relações entre esses

registros e os produtos decorrentes dessas relações. Privilegiaremos a leitura de Zizek

(1995), porque este analisa o grafo a partir de um viés político, que inclui a relação do

sujeito com a ideologia e se aproxima do que viemos utilizando até então. Tudo isso, sem

perder de vista o que singulariza o olhar psicanalítico e a percepção de que o grafo “nos

servirá aqui para apresentar onde se situa o desejo em relação a um sujeito definido por sua

articulação pelo significante” (Lacan, 1966/1998, p. 819).

18 Página 13.

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5.1 Grafo 1 – A célula elementar do desejo

No primeiro nível do grafo do desejo, temos basicamente a representação da

relação entre o significante e o significado (Zizek, 1992). Para Lacan, os significantes são

os correspondentes na linguística do que Freud denominou Vorstellungsrepräsentanzen, ou

seja, os representantes de representação. Estes são aqueles que sofrem a ação do recalque e

passam a estabelecer relações entre si no inconsciente, desenvolvendo um complexo

conjunto de ligações. Tais relações são constituídas da mesma maneira das existentes entre

os elementos de qualquer linguagem, o que levou Lacan a postular seu famoso aforismo de

que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Ou seja, temos no inconsciente a

observância de um tipo de gramática, “um conjunto de regras que comandam a

transformação e o deslizamento que existe dentro dela” (Fink, 1998, p. 26).

Na teoria de Ferdinand de Saussure, o significante se constitui como imagem

material acústica, à qual um significado, representando um conceito ou uma ideia, se

conecta, a fim de formar o signo linguístico (Elia, 2010). A relação entre significante e

significado se daria, esquematicamente, por duas linhas curvas paralelas ou duas faces da

mesma folha de papel, demonstrando suas progressões e articulações lineares e paralelas.

Lacan subverte esse posicionamento, já que confere ao significante primazia na produção

do significado, além de estruturar esse duplo movimento de progressão e articulação de

maneira totalmente diferente (Zizek, 1992).

Figura 1. Grafo 1

Fonte: Lacan (1966/1998, p. 819).

Para Lacan, a cadeia significante, representada pelo vetor S-S’, é perpassada por

uma intenção mítica, pré-simbólica, retratada pela insígnia ∆. Essa operação é denominada

de “ponto de basta”, porque, através dela, “o significante detém o deslizamento da

significação, de outro modo indefinido” (Lacan, 1966/1998, p. 820). O resultado desse

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basteamento, ou seja, o que surge após a penetração da rede de significantes pela intenção

mítica, é o sujeito, notado no grafo por $, que representa tanto o sujeito dividido, como o

furo, a falta de significante. O ponto de basta se constitui, dessa maneira, como “o ponto de

subjetivação da cadeia significante” (Zizek, 1992, p. 100) e o ∆ refere-se justamente a isso,

ao fato de que é ao menos entre dois significantes que o sujeito pode advir como sujeito

dividido.

Muito antes do nascimento de uma criança, o campo em que ela irá se alçar já se

encontra estruturado. A cultura, a sociedade e a família, com toda a sua complexidade

inerente, já possuem demandas, desejos e desígnios que se encontram em ação desde muito

antes da perspectiva de uma nova vida, mas que, ainda assim, são direcionados a ela e

determinam, inclusive, as condições de seu nascimento. Porém, é importante salientar que

essa pré-história do bebê possui um estatuto simbólico, “não se confundindo nem como

constituição genética nem como experiências factuais na gravidez” (Elia, 2010, p. 38). É a

linguagem, como campo de constituição do sujeito, que já se encontra plenamente

estabelecida à sua espera. O nome próprio, por exemplo, é um desses elementos simbólicos

que já aguarda o sujeito desde o seu estabelecimento na ancestralidade (Elia, 2010).

Na perspectiva de Zizek (1992), estamos lidando aqui com o processo de

interpelação dos indivíduos como sujeitos, a exemplo do que ocorre na teoria de Althusser,

para quem os indivíduos interpelados não são conceitualmente definidos, mas devem ser

pressupostos enquanto um X hipotético. O ponto de basta será, assim, aquele que une um

significante a um sujeito, interpelando-o mediante o apelo a algum significante mestre

como Deus, Liberdade ou Comunismo. Um aspecto essencial desse processo é o fato de

que o vetor da intenção subjetiva ultrapassa a cadeia significante de trás para frente. Ou

seja, ele se insere num ponto anterior ao que trilhou inicialmente. O que Lacan pretende

destacar com isso é o “caráter retroativo do efeito de significação” (Zizek, 1992, p. 100),

isto é, que a produção do sentido ocorre sempre a posteriori, assim como no basteamento

ideológico, no qual temos significantes soltos que passam a ter seu significado fixado

retroativamente pelo efeito de um significante mestre (Zizek, 1992).

Este efeito a posteriori do ponto de basta também pode ser observado tendo como

palco a construção de uma frase, na qual a ascensão da significação só ocorre no momento

de seu encerramento, com seu último termo, mas “cada um desses termos é antecipado na

construção dos precedentes e seu sentido só se dá pelo efeito retroativo dos demais”

(Chaves, 2005, p. 101). Esta dinâmica da produção do sentido é denominada por Lacan

(1966/1998) como diacrônica, evidenciando seu desenrolar temporal, em oposição à

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função sincrônica, que representa a metonímia e seu poder de desprezo pela semelhança ao

objetivar de inúmeras formas a mesma coisa. Por outro lado, teríamos o fenômeno da

transferência, que, segundo Zizek (1992), consistiria na ilusão de que a significação já

estava ali presente desde o começo como uma essência imanente.

Um exemplo deste efeito a posteriori da significação teve como palco um dos

encontros do grupo de conversação, cujo tema inicial era festa, mas a discussão logo se

encaminhou para as questões que envolviam o relacionamento com as mulheres. Nesse

sentido, o que primeiro veio à tona foi o assédio feminino que eles recebiam enquanto

eram traficantes e tinham coisas a oferecer a elas. Como dito por um recuperando: “Mulher

gosta mesmo é de carro, moto, arma e dinheiro”. Entretanto, isso não se sustentou por

muito tempo, já que eles se lembraram de que estavam presos, não tinham absolutamente

bem material algum para oferecer e ainda assim possuíam companheiras que os visitam aos

finais de semana. Ou seja, a significação apenas foi completa ao final, demonstrando como

um novo elemento na sequência de significantes, “ser preso”, foi capaz de alterar o sentido

anterior.

Já a ilusão transferencial de um significado como estabelecido desde sempre pôde

ser observada num encontro em que o tênis da condutora do grupo foi posto em questão

por ser de uma marca famosa. Nesse encontro, ficou claro que o tênis representava para

eles um tipo específico de classe social e de mulher que foi transferido para a condutora do

grupo na ilusão de que aquela significação também condizia com ela. Assim, foi

questionado se a condutora era patricinha, se gostava de gastar e, até mesmo, se aceitaria se

relacionar com um ex-presidiário, demonstrando como um simples calçado pode ser a

chave para a constituição de determinada forma de transferência.

5.2 Grafo 2 – O imaginário

Na segunda fase do grafo do desejo, temos, com clareza, a representação do que

ocorre quando a intenção ∆ atravessa a cadeia significante por meio dos símbolos A,

correspondendo ao grande Outro, e s(A), o significado (Zizek, 1992).

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Figura 2. Grafo 2

Fonte: Lacan (1966/1998, p. 822).

O ponto de basta é encarnado na posição do Outro, do código sincrônico, na cadeia

significante diacrônica. Aqui, temos a noção de grande Outro “enquanto a coleção de todas

as palavras e expressões de uma língua” (Fink, 1998, p. 22). Ou, como colocado por Lacan

(1966/1998, p. 820), “o lugar do tesouro do significante”. O que não significa que esse seja

o lugar do código, pois não há a correspondência pré-fixada de um signo e uma coisa, mas

sim a concepção de que um significante apenas se constitui em reuniões sincrônicas e

enumeráveis, nas quais a sustentação de cada elemento se efetua pela oposição aos demais.

Dessa forma, é no interjogo, nas relações que suas materializações simbólicas estabelecem,

que os significados são produzidos (Elia, 2010). O significado, a significação, efeito

retroativo da ação do grande Outro, passa a ser representado por s(A) ali onde ele se

constitui como produto acabado. Segundo Lacan (1966/1998, p. 820), “é o que se pode

chamar de pontuação”.

A dissimetria entre estas duas posições, A e s(A), se manifesta no entendimento de

que, mesmo que ambos participem da oferta de significantes que o basteamento produz,

enquanto um atua como local de receptação, o outro se coloca como um momento,

perfuração para a saída. Além disso, o grande Outro, como lugar no qual será constituído o

sujeito, ocupa uma posição de dominação, de maestria, antes mesmo de concretizar sua

existência. Isso acontece, pois, só se pode falar de um código na medida em que esse

código já é do Outro, assim como na dimensão da Fala, na qual o mentir já pressupõe o

Outro como testemunha da Verdade. Para Lacan (1966/1998, p. 822), a Fala só começa

quando o fingimento que observamos nos animais é alçado ao significante e este exige um

outro lugar, “o lugar do Outro, o Outro-testemunha, o testemunho Outro que não qualquer

de seus parceiros”, para que essa fala possa mentir; ou seja, dizer a Verdade do

inconsciente.

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Diferentemente da voz, que deve ser entendida como um objeto sem significação,

aquilo “que resta depois de termos subtraído do significante a operação retroativa de

basteamento que produz a significação” (Zizek, 1992, p. 103). Assim como a voz

hipnótica, que, ao ser indefinidamente repetida, perde sua significação e permanece apenas

como presença inerte, podemos dizer que é a voz como objeto, como dejeto objetal da

operação significante (Zizek, 1992). Já o sujeito, representado novamente por $, teve sua

posição modificada, de resultado da operação, passa agora a figurar no ponto de partida do

vetor, local onde antes havia a intenção mítica ∆. “Efeito de retroversão”, nas palavras de

Lacan (1959-1960/2008, p. 823), no qual o sujeito transforma-se no que era antes, sendo

percebido como algo que sempre existiu, sempre esteve ali. Para Elia (2010, p. 39), trata-se

de uma “anterioridade anteriormente inexistente”, mas que passa a existir no momento em

que é criada; como um encontro que origina seu próprio passado, mas que nem por isso

deixa de ser determinado por esse passado.

Esse efeito de retroversão tem sua origem e suporte na relação entre o eu e seu

outro imaginário, dinâmica que se inicia na imagem especular e culmina na constituição do

eu, passando pela subjetivação da cadeia significante, como demonstrado no grafo através

do vetor i(a)-m, que possui sentido único, mas dupla articulação: primeiramente, como

curto-circuito em $-I(A), e, posteriormente, como retorno em s(A)-A. De fato, para Lacan,

o eu se forma a partir da sedimentação de imagens que se transformam num objeto fixo

com o qual a criança aprende a identificar e a se identificar. Mais especificamente,

estaríamos lidando aqui com uma “retrovisão” (Lacan, 1966/1998, p. 823), na qual o

sujeito percebe vir ao seu encontro a imagem antecipada que ele tem de si mesmo, em seu

espelho. Trata-se de um processo antecipatório, pois, no estágio em que as imagens no

espelho passam a ser importantes, a criança ainda é apenas uma junção desordenada de

sensações e impulsos. A cristalização dessas imagens é o que permite um “sentido do eu

coerente”, o que equivale a uma construção, um objeto mental; ou melhor, um “lugar de

fixação e de identificação narcisística” (Fink, 1998, p. 57).

“Aqui se insere a ambiguidade de um desconhecer [méconnaftre] essencial ao

conhecer-me [me connaftre]”, pois nesta operação de constituição do eu o sujeito precisa

se alienar, colocar sua identidade fora dele, na imagem de seu duplo (Lacan, 1966/1998, p.

823). Este duplo, a imagem alterada de si próprio, já que invertida pelo espelho, será o

modelo a partir do qual todas as formas de semelhança serão constituídas, incluindo um

toque de hostilidade advindo da transformação da alegria no reconhecimento de si mesmo

ao confronto com o semelhante no escoamento da agressividade. O outro imaginário i(a)

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marca a posição desse outro semelhante a nós mesmos, do qual fazemos com facilidade o

nosso reflexo, e que está implicado nos desconhecimentos presentes no nosso próprio eu

(Lacan, 1959-1960/2008). Nesse nível imaginário, a ilusão de um eu como um operador

independente, presente e atuante desde o início do processo, nos remete novamente ao

efeito de retroversão, o qual desconhece ainda, por consequência, a dependência radical do

sujeito à ordem simbólica, que o causa (Zizek, 1992).

A fixação da imagem especular dá origem ao ideal do eu, que pode ser definido

como “a identificação com a imagem na qual nos parecemos passíveis de ser amados,

representando essa imagem ‘o que gostaríamos de ser’” (Zizek, 1992, p. 104). Essa

identificação imaginária é o que permanece após o processo de constituição do eu através

do estágio do espelho e se relaciona àquela que estabelecemos ao longo da vida com

pessoas semelhantes a nós ou, como Lacan denomina, com pequenos outros. Entretanto, é

preciso salientar que o traço presente no outro que nos liga a ele por meio da identificação

não necessariamente se constitui como uma característica de prestígio como supõe o senso

comum. De fato, esse traço normalmente é oculto e muitas vezes pode ser uma falha, uma

fraqueza, uma culpa ou qualquer outro aspecto considerado deficiente que se assemelhe ao

nosso (Zizek, 1992).

Outro ponto importante da identificação imaginária, geralmente desconsiderado, é

que esta se constitui, sempre, como “uma identificação para um certo olhar do Outro”

(Zizek, 1992, p. 105). Isso significa que, para além da imitação de uma imagem modelo, se

faz necessário analisar para quem o sujeito desempenha aquele papel; ou melhor, qual

olhar é considerado quando o sujeito se identifica a determinada imagem. Um exemplo

clássico é a atuação teatral posta em prática pelas histéricas desenvolvida para se oferecer

ao Outro como objeto de desejo. Nesse caso, a questão central não é o conteúdo da atuação

em si, mas quem se deleita com esse espetáculo, já que estamos falando aqui da pessoa que

encarna para ela a posição de Outro (Zizek, 1992).

Para Zizek (1992, p. 105), essa situação pode ser mais bem articulada por meio do

par hegeliano “para o outro/para si” e, ao demonstrarmos que o neurótico se comporta

como se estivesse representando um papel para o outro, “sua identificação imaginária é seu

‘ser para o outro’”. Mas o que a psicanálise pode demonstrar é que esse Outro não passa

dele mesmo, ou seja, que na verdade este é seu “ser para si”, porque ele próprio já se

encontra simbolicamente identificado com o olhar para o qual desempenha seu papel. A

identificação simbólica, presente no grafo como I(A), equivale à identificação a um traço

significante do Outro, ou seja, à “identificação ao significante da onipotência, do ideal do

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eu” (Lacan, 1959-1960/2008, p. 279). Esse significante é aquele que representa o sujeito

para um outro significante, como postulado pelo famoso aforismo lacaniano, assumindo,

usualmente, a forma concreta de um nome ou uma missão que são recebidos ou escolhidos

pelo sujeito (Zizek, 1992). Desse modo, a introjeção simbólica se refere a um ponto visado,

aquele no qual tenho condições de atingir o ideal do que eu quero ser (Chaves, 2005).

Retomando a questão do olhar, podemos dizer que a identificação simbólica se

efetua em relação ao lugar de onde somos observados por nós mesmos de forma a

parecermos amáveis, merecedores de amor. Nesse sentido, a diferença entre o simbólico e

o imaginário seria precisamente a diferença entre o ponto de onde somos observados e a

maneira como nos vemos. Uma das formas de exemplificar essa distinção é utilizada por

Zizek (1992) por intermédio da figura de Charles Dickens, que possui uma identificação

imaginária com os pobres, demonstrada por uma profunda admiração pela gente do povo,

um mundo pobre, mas feliz, livre de qualquer corrupção que possa advir das lutas pelo

poder ou pelo dinheiro. Todavia, o que confere certa falsidade a essa visão é o fato de que

este olhar para a pobreza só pode advir de outro lugar, este sim corrompido pelo dinheiro.

Ou seja, somente alguém identificado simbolicamente com uma posição determinada pela

riqueza e pela influência pode olhar para os necessitados com admiração.

O que não deve ser negligenciado nessa distinção é o fato de que a identificação

imaginária i(a) é sempre subordinada à identificação simbólica I(A), porque a imagem é

determinada pelo olhar que é direcionado a ela (Zizek, 1992), como no exemplo anterior,

no qual a inversão das identificações modifica completamente a percepção das classes

sociais. Uma pessoa identificada imaginariamente com a classe abastada, mas

simbolicamente com os mais pobres, veria o dinheiro e a luta por influência de forma

muito mais benéfica do que é descrito por Dickens, e assim por diante.

No caso do método APAC, era possível perceber três grandes grupos, cada um

contendo formas diferentes de identificação com a filosofia apaqueana e com seus

preceitos. O primeiro grupo era constituído por recuperandos que se esforçavam em

cumprir o que era proposto para eles cotidianamente, seja na forma de tarefas e

regulamentos, seja como filosofia de mudança de vida e de conversão religiosa. Você

poderia identificá-los mediante a repetição, em diferentes contextos, de que eles estavam

realmente mudados, que não voltariam a cometer crimes, porque, a partir da ajuda da

APAC, eles conheceram Jesus e finalmente tiveram a oportunidade de seguir uma vida

correta e digna. Isto é, eram sujeitos identificados imaginariamente com a APAC e com a

sua filosofia de modo que algo ali transmitido pôde se conectar a um traço semelhante,

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presente neles mesmos. Talvez, essa semelhança venha da vontade de mudar de vida ou

mesmo de matar o criminoso interior. Porém, essa é uma questão da individualidade de

cada um, muito difícil de ser generalizada. O que se faz importante destacar nesses sujeitos

é que o olhar que idealiza e demanda uma vida honesta só pode advir de uma posição

diferente desta. Nesse caso, temos sujeitos que se identificam simbolicamente com o crime

e com o lugar de criminoso e são capazes de enxergar uma vida de proletariado com

admiração.

Evidentemente, nem todos viam a perspectiva de se tornar um assalariado com bons

olhos. Havia os sujeitos que simplesmente não se identificavam em nível algum com a

proposta apaqueana. Eles eram criminosos e não se incomodavam com isso. Entendiam as

consequências de seus atos, mas acreditavam que ainda assim era a melhor opção para eles

continuarem no crime. Nesse sentido, estar na APAC significava ser obrigado a cumprir

com todos os seus deveres, mas a instituição ainda continuava benéfica, já que eles

poderiam desfrutar de maior conforto para eles mesmos e para suas famílias. Assim, eles

assumiam uma postura cínica, cumprindo com a filosofia apaqueana e até repetindo-a, mas

de maneira vazia. A intenção era passar por ali de forma incólume, sem causar grandes

problemas, mas sem se deixar afetar profundamente, por outro lado.

Por fim, havia aqueles que praticamente encarnavam a filosofia apaqueana. Estes se

identificavam tanto imaginária quanto simbolicamente com a proposta e demonstravam

como a objetificação dos sujeitos não estava tão distante do cotidiano institucional. Eram

recuperandos que não tinham necessidade de afirmar sua mudança de vida ou seu

comprometimento, pois isso era óbvio para todos e para eles mesmos. O que caracterizava

seus comportamentos era a rigidez de suas posturas e a luta constante para que tudo e todos

estivessem dentro do protocolo, chegando até a entrar em conflito com funcionários e com

a Direção quando estes não seguiam o que era definido pelo regulamento. Podemos dizer

que se tratava de um tipo de identificação mais rara e que se dava em recuperandos mais

isolados do grupo com laços sociais frágeis.

5.3 Grafo 3 – O simbólico

A articulação entre as duas formas de identificação, imaginária e simbólica,

constitui o mecanismo pelo qual ocorre a integração do sujeito num determinado campo

sociossimbólico. Dessa forma, não podemos deixar de notar, especialmente no Ideal do eu,

uma base política que reflete como o sujeito assume determinadas “missões”, estruturando-

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se a partir de uma função ideológica e social (Zizek, 1992, p. 109). Porém, o que torna esse

processo ainda mais complexo é o fato de que ele nunca se dá completamente. Cada

basteamento da cadeia significante, após fixar retroativamente seu sentido, deixa para trás

um certo resto ou hiato, uma abertura que pôde ser expressa na terceira composição do

grafo mediante a pergunta “Che vuoi?” (Zizek, 1992, p. 109).

Figura 3. Grafo 3

Fonte: Lacan (1966/1998, p. 829).

Freud, ao dizer do fenômeno do amor transferencial, o compara à operação de

invocar demônios das profundezas do inferno e adverte que, ao nos depararmos frente a

frente com tais seres, não devemos mandá-los embora sem ao menos fazer uma pergunta.

A partir dessa colocação e inspirado pela literatura, Lacan postula que tal indagação é a

mesma que um personagem famoso faz ao demônio numa caverna próxima de Nápoles:

Che vuoi? – que queres? (Elia, 2010). No grafo em questão, a estruturação interna dessa

pergunta que emana do Outro confronta o sujeito para além da significação simbólica

indicando o abismo existente entre o enunciado e sua enunciação: “No nível do enunciado,

você me diz isso, mas que está querendo me dizer com isso através disso?” (Zizek, 1992, p.

110)

É exatamente nesta posição, do mais além do enunciado, que devemos situar o

desejo, representado no grafo por d, em relação ao que o distancia da demanda: “Você está

me pedindo algo, mas o que quer realmente?” (Zizek, 1992, p. 110). Para explicarmos essa

distinção, devemos primeiramente retornar ao conceito de desejo como formulado por

Freud, a partir da oposição à necessidade, esta representando a experiência natural e

biológica da espécie. Nesse sentido, nós, como mamíferos, temos a necessidade do leite

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materno. Todavia, o que Freud pôde notar foi que, ao registrar e representar essa

experiência, o sujeito a perde como natural. A busca por reencontrar esse objeto, seguindo

as indicações das experiências de satisfação registradas, é o que ele denomina como desejo

(Elia, 2010). Posteriormente, Lacan introduziu, na passagem do objeto da necessidade ao

objeto do desejo, um terceiro elemento, como que intermediário, denominado por ele de

demanda.

A demanda se constitui como um princípio importante, pois demonstra o

desdobramento do processo indicado por Freud no campo do Outro, da alteridade diante da

qual a criança se situa. Assim, se a criança como um animal mamífero demanda o leite, ela

o recebe de alguém que se encontra inserido na linguagem e que só pode atendê-la a partir

desse lugar – inserindo-a, consequentemente, nesse mesmo campo. Nesse processo, a

criança passa a não só demandar o leite, objeto de sua necessidade, mas também aquele

capaz de lhe trazer esse objeto. Para Lacan, esta distinção entre a coisa trazida e aquele que

a trouxe representa uma divisão no campo do Outro: o outro como objeto, grafado como a

minúsculo, e o Outro como campo propriamente dito, lugar onde alguém entrega o objeto.

A partir disso, podemos dizer que a essência da demanda é “visar a presença do Outro

como tal, como capaz de atender à necessidade” (Elia, 2010, p. 46).

Já a necessidade, conforme Lacan, é essencialmente mítica, uma vez que a

experiência pura da natureza é impossível: até a realidade infantil mais primitiva concretiza

sua existência dentro do campo da linguagem. E, mesmo que esta fosse experimentada,

ainda assim não poderia ser expressa pela demanda, pois não se trata aqui de uma tradução,

a transformação de uma língua em outra, mas sim da entrada de uma língua como tal, onde

antes não havia nenhuma. Como expresso por Elia (2010, p. 47), o “que quer que seja a

necessidade, ela só pode ser experimentada pelo sujeito sob a forma fragmentada,

parcializada, mastigada, ‘moída’ pelo significante”. Assim, o que resta da necessidade em

nossa experiência é seu caráter imperativo, irrefreável e inevitável que se dirige a um

objeto, uma parte determinada do Outro. Esse objeto da necessidade, mencionado

anteriormente como o leite para o bebê humano, sofre o efeito que a linguagem opera no

plano biológico e perde sua identidade, suas características que apenas a natureza era capaz

de conferir (Elia, 2010).

Podemos dizer, portanto, que no plano da demanda o sujeito se volta para o Outro,

requer sua presença e, concomitantemente, é impelido por uma força irrefreável em direção

a um objeto que “é sem-rosto, é perdido como tal, é faltoso, e já se apresenta, de saída,

como tal, ou seja, jamais foi conhecido pelo sujeito” (Elia, 2010, p. 48). Nesse sentido, não

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é possível entender a demanda sem considerar que esta é habitada por este objeto faltoso,

descaracterizado pela ação do significante, que Lacan denomina de objeto a, o objeto causa

do desejo: “aquele que, por incidir como faltoso na experiência, causa o desejo do sujeito”

(Elia, 2010, p. 49). Isto é, o desejo é o que move a demanda, no nível da causa, e o que, ao

mesmo tempo, impede a sua plena satisfação e impossibilita que a resposta do Outro seja

perfeitamente adequada ao apelo do sujeito.

À medida que a demanda articula as necessidades do sujeito, ela se dirige a objetos

que, apenas aparentemente, seriam os necessários para a satisfação, já que a marca do

desejo a impossibilita desde sempre. Esta relação da demanda com o objeto a resulta numa

característica que Elia (2010, p. 50) denomina de sua “mentira estrutural”, que consiste em

“fazer crer que ela é formulada para ser satisfeita”. Um exemplo disso é o fato de que

nunca se deixa de demandar mesmo que o objeto anterior tenha sido alcançado. Porém, é

importante salientar que não se trata aqui de uma escolha pela insatisfação, mas uma

condição estrutural do desejo, que impede a sua articulação significante. “O desejo, diz

Lacan, é articulado no inconsciente, mas não é articulável” (Elia, 2010, p. 51).

O que define a posição do sujeito histérico, segundo a clássica fórmula lacaniana, é

justamente a distância entre a demanda e o desejo, que se pode demonstrar através da

lógica da demanda histérica: “Eu lhe peço isso, mas, na verdade, peço-lhe que recuse meu

pedido, porque não é isso!” (Zizek, 1992, p. 110) Esse posicionamento foi o campo fértil

no qual a psicanálise pôde surgir e se desenvolver, analisando os efeitos e os testemunhos

do que podemos chamar, a exemplo de Zizek (1992, p. 111), de uma “interpelação

malograda”: a incapacidade do sujeito de alçar à posição de sua identificação simbólica, de

assumir plenamente e sem constrangimento a sua missão. Em outras palavras, podemos

formular a questão histérica como um “Por que sou o que você me diz que sou? Ou qual é

esse objeto excedente em mim que faz o Outro me interpelar, me ‘saudar’ como ‘...’ (rei,

mestre, esposa etc.)?” (Zizek, 1992, p. 111)

A fantasia, representada no grafo como ($ ◊ a) se apresenta como uma tentativa

imaginária de responder à questão do que o Outro quer de mim, possibilitando uma saída a

essa situação insuportável na qual somos incapazes de traduzir o desejo do Outro em uma

interpelação positiva, em uma missão com a qual nos identifiquemos. Assim, a fantasia

pode ser entendida enquanto construção que busca ocupar o vazio deixado pelo desejo do

Outro, pelo Che vuoi? advindo da interpelação malograda (Zizek, 1992). Um exemplo

claro dessa dinâmica, na visão de Zizek (1992, p. 112), é o antissemitismo que vê no judeu

uma pessoa para a qual a questão “O que ele realmente quer?” nunca é clara, recaindo uma

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suspeita de que suas ações são sempre motivadas por razões ocultas. A resposta fantasística

para este Che vuoi? incide sobre a “conspiração judaica” (Zizek, 1992, p. 112): um tipo de

poder encoberto que permite manipular as situações a seu favor, mas de maneira

dissimulada.

Para Zizek (1992), os judeus foram escolhidos como alvo privilegiado de racismo

ao longo dos anos devido ao fato de que o Deus judaico seria uma das encarnações mais

puras do Che vuoi? descrito por Lacan. A proibição de se construir uma imagem desse

Deus seria, dessa maneira, a proibição de se preencher o vazio do desejo do Outro por

meio de um cenário fantasístico positivo, resultando numa posição do devoto judeu de

incompreensão, perplexidade e horror diante da questão do que Deus quer ao infringir

tantas calamidades. Até mesmo o pacto inicial, realizado entre Deus e o povo judaico, que

resultou na percepção de que ele era o povo eleito, não se baseou em característica inata

alguma: os judeus não se diferenciavam previamente dos demais povos. Então, “por que

eles foram escolhidos, por que se viram repentinamente na posição de devedores diante de

Deus? Que Deus queria deles realmente?” (Zizek, 1992, p. 113)

Os judeus permanecem, assim, nesta posição traumática do enigma do desejo do

Outro, que provoca angústia, já que não é passível de ser simbolizado ou amenizado

através da fantasia. Já o cristianismo efetua sua ruptura exatamente nesse ponto,

constituindo-se como uma religião do amor, como no sentido dado por Lacan a esse termo:

a tentativa de preencher o vazio do desejo do Outro ao nos oferecer como seu objeto de

desejo. Como nos lembra Zizek (1992, p. 114), a operação do amor se baseia numa

interpretação do desejo do Outro que dá origem à resposta: “Sou o que te falta; com minha

dedicação a ti, com meu sacrifício por ti, eu te preencherei, te completarei”. Nessa

dinâmica, a operação é dupla, pois, ao se oferecer como objeto que supre a falta do Outro,

por meio de atos de amor e de sacrifício, o sujeito preenche sua própria falta, apaziguando

ainda mais a angústia.

Tal operação, na qual o sujeito se oferece como objeto do Outro, pôde ser

observada no grupo de conversação a partir da lógica dos recuperandos de que a aquisição

de objetos de consumo valorizados socialmente os elevaria a um patamar de

reconhecimento, apaziguando a angústia advinda da exclusão social. Lógica que eles

relataram também no mundo do crime a partir de um episódio ímpar no qual o traficante

retira o tênis de grife do próprio pé e o esfrega no rosto daquele sob seu comando durante a

estadia em um camarote de boate. Esse ato emblemático condensa muito bem a noção de

que os objetos representavam um status e um poder advindos da tentativa de ser/ter o que o

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Outro, enquanto pacto cultural, necessitava. Até mesmo nos corredores da instituição

apaqueana, era possível perceber que a maioria dos detentos se vestia de maneira muito

elegante, com sapatos, relógios, pulseiras e colares sempre novos e brilhantes.

O próprio sacrifício de Cristo, para Lacan, encontra seu precursor na figura de

Antígona, personagem de Sófocles que não cede em seu desejo ao persistir na pulsão de

morte para além dos sentimentos, das paixões e dos temores do cotidiano. Esta seria uma

posição ética, que Lacan aponta também nos santos do cristianismo: alguém que ocupa o

lugar do puro dejeto, o lugar do pequeno a, ao sofrer uma destituição subjetiva radical. O

santo, ao contrário do sacerdote, “não desempenha nenhum ritual, não conjura nada, só faz

persistir em sua presença inerte” (Zizek, 1992, p. 114). Posição que impossibilita aos reles

mortais qualquer tipo de identificação imaginária ou simbólica com esses sujeitos na

medida em que eles próprios, na posição de dejeto, suscitam o Que vuoi? e nos levam a

questionar o que eles querem realmente.

A fantasia se configura, dessa maneira, como uma resposta ao enigma do desejo do

Outro, mas não podemos deixar de destacar que ela também estrutura nosso próprio desejo,

ou seja, “constrói o contexto que nos permite desejar algo” (Zizek, 1992, p. 115). Nessa

perspectiva, a definição usual de que a fantasia é uma realização de desejos se configura

como pouco precisa, porque, na cena fantasística, o desejo não é satisfeito, mas

constituído. Em outras palavras, é o que nos ensina como desejar. E é este o paradoxo da

fantasia, ser, ao mesmo tempo, o contexto que coordena nosso desejo e o anteparo que nos

protege do abismo do desejo do Outro. Por esse motivo, a posição ética dos santos de não

ceder em seu desejo é tão emblemática, pois ela implica, precisamente, uma renúncia

radical a toda a gama desses desejos provenientes de cenários fantasísticos (Zizek, 1992).

A partir dessa definição, já se faz mais claro para nós entendermos como um objeto

passa a ser digno de ser desejado: entrando nas coordenadas de uma cena fantasística que

dê consistência ao desejo do sujeito. Um exemplo disso, proposto por Zizek (1992), seria a

operação que se desenrola no filme de Hitchcock, “Janela Indiscreta”, no qual a

personagem de Grace Kelly só passa a ser digna do desejo do protagonista ao se inserir em

sua cena fantasística, neste caso, ao adentrar no apartamento do assassino. Para Zizek

(1992, p. 117), esta seria a lição principal de Lacan quanto ao “chauvinismo masculino: o

homem só pode se relacionar com uma mulher na medida em que ela entre no contexto de

sua fantasia”. Nesse sentido, ele não nega que se trata de uma concepção que já era de

conhecimento dos pós-freudianos, a máxima de que um homem se relaciona com mulheres

que lhe remetem à sua própria mãe. Porém, o que é ineditamente introduzido por Lacan é a

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face negativa desta proposição: a presença de um objeto próximo demais da mãe no

cenário fantasístico sufoca o desejo por meio do horror ao incesto.

Aqui, deparamo-nos novamente com o caráter paradoxal da fantasia: como

construção que nos possibilita a procura por substitutos maternos e como “anteparo que

nos protege de chegarmos perto demais da Coisa materna, que nos mantém a distância”

(Zizek, 1992, p. 117). Por isso, nem todo objeto pode se configurar como objeto de desejo,

sendo alguns deles permanentemente excluídos. Esses últimos, se por algum motivo, se

inserem no cenário da fantasia, o resultado “é extremamente perturbador e repugnante, e a

fantasia perde seu poder de fascinação e se toma um objeto de nojo” (Zizek, 1992, p. 17).

Assim como em outro filme de Hitchcock, “Um corpo que cai”, no qual a amante de todos

os dias do protagonista pinta um quadro que representa a mulher que o tem fascinado, mas

com seu próprio rosto corriqueiro, adornado por óculos. O resultado é o horror diante da

cena, o que o faz abandonar a amante, deprimido e enojado.

No grupo de conversação conduzido durante a pesquisa, foi possível perceber três

cenários fantasísticos diferentes, que se desdobravam em uma tipologia feminina,

construída ao longo dos encontros. O primeiro, a exemplo do que foi exposto, dizia

respeito à figura materna e à procura de uma companheira que seguisse os mesmos moldes

admirados por eles nas progenitoras. A mãe, por si só, era muito idealizada, já que

costumava representar uma das poucas pessoas, se não a única, a lhe auxiliar e visitar

durante o cumprimento de pena. Frases como “amor só de mãe” eram repetidas e gravadas

na pele, gerando depoimentos como este: “Falaram pra minha mãe parar de me visitar,

mas ela falou que não. Falou que nunca vai me abandonar”. Paralelamente, a vontade de

se relacionar com uma mulher “certinha” surgia como elemento da fantasia de se ter uma

vida digna, longe do crime, pois “a vida de solteiro é muito boa, mas chega um tempo que

você sente falta de ter alguém mais fixo, alguém pra acordar junto e confiar”.

Por outro lado, a ideologia do consumo, veiculada amplamente pela mídia, dava

origem às tentativas de obter reconhecimento por meio da compra de produtos caros e de

grife. Tal cenário se desdobrava numa fantasia em volta da patricinha, mulher de classe

média alta, bem cuidada e bem vestida, que, por meio de sua postura esbanjadora e

despreocupada, dava o tom do status por ela representado. Como exposto anteriormente, a

condutora do grupo foi transferencialmente alçada a essa posição, sendo questionada sobre

hábitos de consumo e de identificação com grifes por meio de questionamentos como

esses: “Você é patricinha? Dá pra ver que gosta de gastar”. Ou: “Por que está de tênis da

Nike, e não de chinelo havaianas?”. Questionamentos esses importantes, pois

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demonstravam que, mais do que o interesse em se relacionar com esse tipo de mulher,

havia a curiosidade em saber como funcionava esse ambiente abastado do qual eles

mesmos não faziam parte.

Por fim, o mundo do crime e sua fantasia constituinte possuíam como representante

feminina a última figura de nossa tipologia, denominada por eles como “periguete”. Esse

tipo de mulher seria o mais perigoso de todos, já que se tratava de pessoas interesseiras,

dissimuladas e devassas. No quesito financeiro, elas não se preocupavam em trabalhar,

mas em tirar proveito do que alguém envolvido com o tráfico poderia oferecer, como

expresso nas falas de que “Mulher gosta mesmo é de carro ou moto, arma e dinheiro” ou

de que “Numa festa, se colocar um trabalhador honesto do lado de um traficante, o

traficante fica com todas as mulheres”. Entretanto, é preciso cautela, pois “esse tipo de

mulher pode quebrar um cara”, levá-lo à falência. Já no quesito sexual, elas eram descritas

como pessoas que só se interessavam por sexo, chegando a gerar até indignação: “Fico

indignado com essas mulheres que só pensam em sexo na vida. Elas não têm ambição, não

querem estudar, não querem trabalhar, não querem ser ninguém na vida, só pensam em

sexo”. Colocação relevante e que se repetia em relação a algumas mulheres que escolhiam

permanecer no presídio a irem para a APAC feminina, o que os levava a questionar qual

seria realmente o desejo delas:

As mulheres daqui podem cumprir a pena na APAC, mas têm umas que preferem ir

para o presídio. Lá no meio de muitos homens, sendo bulinadas (sic), ouvindo

coisas que não tinha necessidade. Geralmente, até arrumam namoradinhos lá

dentro. Às vezes, até pior, ficam mostrando as partes íntimas para os homens.

5.4 Grafo 4 – O Real

Neste ponto, deparamo-nos com a quarta e última forma do grafo, no qual é

acrescentado um novo vetor, o do gozo, que atravessa o vetor do desejo estruturado pelo

significante. A partir dessa forma final, Zizek (1992) propõe uma leitura que se baseia

numa divisão em dois níveis: o nível inferior como sendo o da significação e o superior

como o do gozo. Para ele, o primeiro colocaria a questão de como a interseção entre uma

intenção mítica e a cadeia significante produziria a significação, incluindo todas as

articulações presentes nesse processo. Já o segundo nível se referiria ao momento em que o

campo da significação, ou seja, o campo do Outro, é perfurado por um fluxo pré-simbólico

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de gozo. Em outras palavras, o que acontece quando “o corpo como gozo materializado e

encarnado faz-se apreender na rede do significante” (Zizek, 1992, p. 119).

Figura 4. Grafo do desejo completo

Fonte: Lacan (1966/1998, p. 831).

O conceito de gozo foi elaborado por Lacan, mas podemos dizer que Freud

detectou aspectos clínicos que se aproximam das indicações lacanianas. No contexto

clínico, ao comunicarem suas fantasias ao analista, os sujeitos expressam como gostariam

de estar situados em relação ao desejo do Outro. Esta expressão do desejo do Outro no

papel mais emocionante de si mesmos pode se transformar em nojo e até em horror, não

havendo tipo algum de garantia de que o mais tocante para o sujeito seja algo do nível

prazeroso. Foi o que Freud detectou na afeição do Homem dos Ratos, interpretando como

um horror ao prazer do qual este não estava ciente além de declarar que os pacientes

derivavam satisfações de seus sofrimentos. Trata-se de uma emoção, relacionada a

sentimentos de prazer ou de dor, que recebeu a denominação dos franceses de jouissance, o

gozo. Nas palavras de Fink (1998):

Esse prazer – essa emoção relacionada ao sexo, à visão e/ou à violência quer seja

vista pela consciência de forma positiva ou negativa, ou considerada inocentemente

prazerosa ou repugnante – é o chamado gozo e é o que o sujeito constrói para si

mesmo na fantasia. (p. 83)

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Esse tipo de gozo se constitui, na verdade, como um reencontro na fantasia com

uma porção ou quantidade reduzida de uma ligação real, sem mediadores, entre a mãe e a

criança, anterior ao estabelecimento do significante. Podemos dizer, de fato, de uma

diferenciação entre um tipo de gozo antes da letra, precedente à constituição do sujeito

propriamente dita, e um gozo depois da letra, determinado a partir da relação deste com o

resto da simbolização, o objeto a (Fink, 1998). Diferenciação importante, já que o próprio

Freud, em O mal-estar da civilização, não hesita em articular que “não há medida comum

entre a satisfação que um gozo em seu primeiro estado fornece e aquela que ele fornece em

suas formas desviadas, e até mesmo sublimadas, nas quais a civilização se envereda”

(Lacan, 1959-1960/2008, p. 259).

Esse processo encontra no grafo do desejo sua correspondência no vetor do gozo,

enquanto corpo do infante, que é capturado pela rede significante e passa pelo processo de

castração. Nesse decurso, o corpo sobrevive, mas com seu gozo subtraído, tornando-se,

assim, desmembrado, mortificado (Zizek, 1992). Em outras palavras, podemos dizer que a

castração se relaciona ao fato de que, em algum momento, seremos obrigados a abrir mão

de um gozo. Noção que se aplica a ambos os sexos, porque não estamos falando aqui do

órgão genital masculino, mas de um determinado gozo que é separado de nosso corpo para

ser reencontrado na fala. “O Outro como linguagem desfruta em nosso lugar” (Fink, 1998,

p. 125), o que significa que precisamos ceder um determinado gozo, a fim de deixá-lo

circular fora de nós, ao mesmo tempo em que nos oferecemos como suporte do discurso do

Outro para que possamos compartilhar parte de seu gozo circundante.

Assim, “a castração significa que é preciso que o gozo seja recusado, para que

possa ser atingido na escala invertida da Lei do desejo” (Lacan, 1966/1998, p. 841).

Porém, enfatizamos, assim como Chaves (2005), que não se trata de um gozo qualquer,

mas d’Aquele que seria capaz de satisfazer completamente o sujeito, que o ataria ao Outro,

preenchendo-o de maneira a retirá-lo da condição de barrado. Condição impossível para

aquele que fala, já que a introdução da Lei simbólica se funda justamente nessa proibição,

restando ao gozo a condição de ser dito apenas nas entrelinhas. Mas não é a Lei em si que

impede o alcance desse sujeito ao gozo. Para Lacan (1966/1998, p. 836), “ela apenas faz de

uma barreira quase natural um sujeito barrado”. O que introduz esse limite é o prazer

enquanto ligação de vida, regulação descoberta por Freud como o processo primário, lei do

prazer, da qual se eleva a proibição, esta, sim, incontestável.

“Lacan enfatiza, assim, o quanto o Gozo, enquanto proibido, é de natureza

estrutural, tal como o é o mito do pecado original” (Chaves, 2005, p. 119). A própria

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indicação desse Gozo, enquanto infinitude, já contém a marca de sua proibição. Marca que

acarreta um sacrifício, o que é demonstrado pela escolha de seu símbolo, o falo, que

ascende a essa simbolização não como órgão erétil em si, nem mesmo como imagem, mas

como o que falta à imagem desejada (Lacan, 1966/1998). O falo constitui-se, dessa

maneira, como um operador simbólico que permite ao sujeito situar-se com relação ao

próprio desejo ao possibilitar o acesso a um ponto para o qual não há significante, cerne

daquilo que Freud instituiu como a castração e que corresponde ao ponto no qual o próprio

falo, enquanto significante, incide como faltoso (Elia, 2010).

O complexo de castração, desconhecido até a sua elaboração por Freud que o

incorpora à formação do desejo, na visão de Lacan (1966/1998), não pode ser

desconsiderado em qualquer elaboração sobre o sujeito, pois nele reside a mola mestra da

subversão efetuada em seus escritos. Isso é atestado pela prática analítica, que demonstra

que, de fato, o que rege o desejo é a castração. Em outras palavras, o que a psicanálise

demonstra em relação ao desejo, incluindo aí a sua função mais natural de manutenção da

espécie, é que ele está submetido não só aos acidentes da história do sujeito, como também

a elementos estruturais que se efetuam independentemente destes e de uma maneira

desarmônica, inesperada, difícil de reduzir. Conjuntura que teria levado Freud a declarar

que “a sexualidade devia trazer a marca de alguma fissura pouco natural” (Lacan,

1966/1998, p. 827).

Por outro lado, o processo de castração também nos remete à heterogeneidade entre

a ordem do significante, representada pelo Outro, e a do gozo, a Coisa enquanto sua

encarnação, ao demonstrar a impossibilidade estrutural de qualquer forma de consonância

entre elas, já que a primeira é responsável pela evacuação da segunda. Por esse motivo, o

primeiro ponto de interseção entre o gozo e o significante é marcado pela insígnia S(Ⱥ), o

significante da falta no Outro, porque, a partir do momento em que o campo do

significante é perfurado pelo gozo, ele se torna furado, poroso, inconsistente: “O gozo é

aquilo que não pode ser simbolizado, sua presença no campo do significante só pode ser

detectada pelos furos e faltas de consistência desse campo” (Zizek, 1992, p. 102). Dessa

forma, temos a noção de que o significante do gozo não pode ser outro senão o significante

da falta no Outro, da sua inconsistência.

Entretanto, a operação de evacuação do gozo pelo significante nunca é

completamente efetuada. Restam no corpo oásis de gozo, dispersos pelo poder do Outro

simbólico, denominados de zonas erógenas. Tais fragmentos, ainda imersos em gozo,

representam os pontos em torno dos quais está ligada a pulsão freudiana por meio de

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movimentos circulares, vibracionais. Por não possuírem nada de biológico, as zonas

erógenas são simbolizadas pela letra D, que corresponde à demanda simbólica, e se

apresentam no grafo a partir da fórmula da pulsão $ ◊ D, localizada no segundo ponto de

interseção entre o vetor do gozo e o do campo significante. Como nos lembra Zizek

(1992), as partes do corpo que serão depositárias de gozo e se constituirão como zonas

erógenas não são determinadas pela fisiologia, mas pela maneira como o corpo foi

atravessado pelo significante.

Para Freud, a libido da criança é canalizada progressivamente em prol da

construção de zonas erógenas específicas, que ele denominou como oral, anal e genital.

Isso acontece através da socialização, por meio das demandas expressas verbalmente à

criança por seus pais ou pessoas que cumpram esse papel, que colocam em andamento a

subordinação do corpo a tais demandas, dando sentido determinado às suas partes e

subjugando-o por meio da linguagem (Fink, 1998). Por esse motivo, Lacan (1966/1998)

enfatiza que a pulsão não pode ser reduzida à sua complexidade energética, pois esta

comporta ainda uma dimensão histórica, marcada pela insistência à que ela se apresenta,

demonstrando que se trata de algo memorável, porque memorizável. Em suas palavras: “A

rememoração, a historização, é coextensiva ao funcionamento da pulsão no que se chama

psiquismo humano” (Lacan, 1959-1960/2008, p. 251).

Podemos dizer que é por levar em conta essas características que Lacan sempre

defendeu a tradução do termo trieb, utilizado por Freud, como pulsão, e não instinto, já que

não se trata aqui de algum traço animalesco insondável que nos moveria, mas do conjunto

de efeitos que a linguagem provoca no corpo biológico. Como destaca Elia (2010, pp. 41-

42), “Não há, assim, experiência instintiva no ser humano, no sujeito, mas a experiência do

instinto fragmentado e remodelado pelo significante, que é a pulsão”. É importante deixar

claro que a psicanálise não desconsidera que somos organismos vivos, submetidos a leis

naturais e biológicas, nem mesmo afirma que as oscilações desse organismo não afetam o

sujeito do inconsciente, mas evidenciam que tais experiências orgânicas só são acessíveis a

nós pelo campo da significação, da linguagem. “Por sermos falantes, somos marcados pela

linguagem, pelo significante, mesmo no mais extremo nível de intimidade que possamos

estabelecer com nossos órgãos e com nosso corpo” (Elia, 2010, p. 41).

Na APAC, a relação com o próprio corpo mediada pela linguagem, assim como as

manifestações de gozo, não eram passíveis de serem acolhidas pela metodologia a não ser

pela via da repressão e do silenciamento. Por isso, destacamos a importância de um espaço

como o grupo de conversação, que permita a expressão daquilo que é constituinte do ser

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humano. Nesse sentido, gostaríamos de elencar as falas relacionadas ao uso e abuso de

substâncias entorpecentes, que condensam de maneira única esta interligação do somático

com o psíquico, incluindo os sentimentos de prazer, dor e horror que se presentificam nas

manifestações de gozo. Evidentemente que se trata de relatos dessas experiências,

tentativas de transformar o que é do corpo em significantes, mas, ainda assim, são

manifestações capazes de aliviar, mesmo que minimamente, isso que é da ordem

impossível.

Em retrospectiva, todos concordaram que se envolver com o mundo das drogas era

“uma ilusão” e que chegaram a perder muitas coisas pelo envolvimento nesse universo.

Segundo eles, ficavam a noite inteira “cheirando”, que geralmente nem dormiam, mas

quando começava a manhã “dava aquela depressão, aquele arrependimento: ver as

pessoas acordando, indo trabalhar e você chegando em casa da farra”. Douglas, um dos

recuperandos, ainda completou: “Dá uma depressão horrível, mas aí no outro dia você faz

tudo de novo”. Segundo ele, nunca se interessou muito por crack, mas usou muita cocaína

e maconha. Disse que chegou a perder uma namorada, pois ela não concordava com seu

vício, e ele preferiu perdê-la a deixar de utilizar a droga. Em certo momento, decidiu sair

da casa irmã, com quem morava, porque esta também “pegava no pé” dele o tempo todo,

insistindo para que ele ficasse “mais quieto”. Ao morar sozinho, relata que acabou ficando

pior, porque não havia mais regra alguma, nenhuma rotina. Pensa que, se tivesse

continuado a morar com a irmã, talvez não estivesse preso agora.

Antônio, por sua vez, era um homem mais velho, que já possui mais anos

separando-o de sua trajetória nas drogas. Ele se lembra de que quando era viciado em crack

também trabalhava, era casado e tinha dois filhos. Seus rendimentos eram revertidos

inteiramente no sustento do vício, incluindo um episódio no qual chegou a gastar todo o

seu salário em uma noite com o crack. Na manhã do dia seguinte, quando a esposa pediu

dinheiro para comprar pão e leite para os filhos, ele “não tinha um centavo”. Nesse

momento, disse que se sentia muito mal ao lembrar-se dessa época e chegou até a se

emocionar. Posteriormente, relatou que conseguiu se internar em uma clínica de

reabilitação e se livrar do vício, aproveitando para se dedicar mais aos filhos e à esposa.

Disse que não dá para fugir da droga, porque ela está em quase todos os lugares, mas é

preciso ter convicção e não se abater.

Por fim, Fabrício contou a sua história de envolvimento, que chegou a quase levá-lo

à morte. Disse que quando era adolescente fumava o “mesclado”, crack com maconha, mas

quando se mudou para Minas Gerais conheceu o crack no cachimbo e na lata, entrando de

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vez para o vício. Ficou um tempo fumando crack no interior e acabou fazendo coisas que o

comprometeram, tendo que se deslocar para a capital. Lá, morava na rua, convivendo com

outras pessoas na mesma situação. Em um determinado dia, no qual havia conseguido

algum dinheiro, chamou vários moradores de rua para a boca e deu uma pedra de crack

para cada. Depois, foi para um bar e notou que algumas pessoas o seguiram, estando

naquele momento conversando e olhando para ele. Resolveu se aproximar dessas pessoas e

foi atacado com uma pancada na cabeça. Devido a esse incidente, passou três meses

hospitalizado, tempo no qual ele relata que “voltou a ser criança”, precisava usar fralda e

perdeu grande parte dos movimentos do lado esquerdo do corpo. Disse que a maior tristeza

de sua vida foi ter permitido que a mãe o visse “todo destruído” e concluiu com a

afirmação de que “era tudo por causa do crack, as coisas que eu fiz e que fizeram

comigo”.

Percebemos, assim, por meio desses relatos, como a experiência de gozo vivida

através do uso de drogas recebeu um atravessamento e uma ressignificação advinda dos

significantes que circulavam cotidianamente na instituição. A noção de que se envolver

com as drogas era ilusória, a conexão entre esse tipo de comportamento e o afastamento da

família e dos bons costumes, e a delegação às substâncias dos acontecimentos danosos

durante o percurso criminal são todos exemplos de significantes que, a partir de sua

interligação com a religião cristã, vão sendo incorporados às formas como a pulsão e o

gozo são estruturados nesses sujeitos, modificando-os. Evidentemente, não podemos dizer

se essa mudança será permanente ou não, mas o que esses relatos deixam claro é que a

oferta de significantes específicos em uma instituição prisional não é sem consequências

para o sujeito.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Todo o percurso realizado neste trabalho teve como horizonte a perspectiva

psicanalítica com a intenção de mapear os impasses e os pontos de tensão que se colocam a

partir da tentativa de recuperar criminosos por meio do método APAC. Consideramos que

a situação degradante em que se encontra o Sistema Penitenciário Nacional suscita opções

mais viáveis ao cumprimento de pena no País, sendo a metodologia apaqueana apontada,

até mesmo por relatórios oficiais do governo, como a melhor alternativa a esse cenário.

Diante disso, julgamos importante a realização de um estudo que se volte para tal método,

refletindo acerca de seus aspectos discursivos, institucionais e metodológicos a partir do

olhar psicanalítico.

Para construir este estudo, utilizamo-nos da metodologia da psicanálise aplicada,

que se volta para o sujeito enredado em contextos políticos e sociais, não estritamente

relacionados à situação clínica. Valemo-nos dos registros obtidos a partir de um grupo de

conversação, realizado numa instituição apaqueana do interior de Minas Gerais, com a

intenção de mobilizar os discursos envolvidos na recuperação dos criminosos e o impacto

deles nos indivíduos ali presentes. Tal grupo foi implantado com a intenção de produzir um

espaço de livre circulação da palavra, no qual o discurso institucional fosse relativizado e o

sujeito, por intermédio de um discurso próprio, tivesse possibilidades de advir.

Para pensarmos o método APAC, iniciamos nosso percurso no primeiro capítulo

com a caracterização deste a partir de suas diferentes dimensões e de uma perspectiva que

demonstrasse as raízes históricas e filosóficas do projeto teórico-institucional.

Privilegiamos as obras de Mário Ottoboni, precursor e principal idealizador do método, a

fim de retomar as prescrições e motivações oficiais, que repercutem do livro mais antigo

ao mais fino trato com o recuperando recém-chegado. Diante disso, o que pudemos

perceber foi um início como Pastoral Carcerária, muito marcado pela religião católica e

pela filosofia de renascimento, que culmina na ideia do surgimento de um novo homem,

incapaz de errar. Percebemos também um desenvolvimento como instituição a partir da

administração da cadeia pública de São José dos Campos e se expandindo para outras

localidades com o auxílio de pessoas comuns e de pessoas políticas influentes, que

abraçaram a causa e a replicaram.

Como resultado, temos atualmente uma instituição sólida, que coordena unidades

no Brasil e no mundo, por meio de voluntários e de convênios ou parcerias com o Estado,

que vem apoiando cada vez mais a sua expansão. O cotidiano institucional é marcado pela

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disciplina, pelo controle e pela repetição com a intenção de remodelar os indivíduos e de

transmitir a eles outra dinâmica de vida. Para isso, a filosofia institucional é de suma

importância e, apesar de ter passado por modificações com o tempo, permanece a religião

cristã como suporte e fim último, fazendo-se presente seja de maneira velada ou explícita

em seus produtos discursivos e institucionais. O movimento pela canonização de Franz de

Castro Holzwart e a Jornada de Libertação com Cristo, elemento importante e obrigatório

do método, são exemplos de como a religião não pode ser desconsiderada em qualquer

estudo relacionado à metodologia apaqueana.

A religião foi um dos assuntos sobre o qual Freud se debruçou durante a maior

parte de sua vida, tendo sido retomado por Lacan, a partir de outros pressupostos

epistemológicos, incluindo a questão da ciência e sua referência à verdade, assim como a

questão do sujeito e sua referência ao real. Com base nisso, temos nosso segundo capítulo,

no qual a crítica da psicanálise à religião foi retomada e discutida, considerando-se o uso

que se faz da religião cristã na metodologia apaqueana com a intenção de recuperar

criminosos. Do início com Totem e Tabu, temos a construção de um mito fundante da

morte do Pai e da consequente interdição do desejo, dando origem a um sujeito do

inconsciente, inserido na linguagem e dividido internamente.

A partir da divisão do psiquismo, temos a noção de um embate de forças entre o

poder da repressão e o poder do conteúdo recalcado. A religião estaria ao lado da

repressão, constituindo-se como um oponente ao mundo das pulsões e do desejo do

indivíduo ou, pensando a partir das instâncias promulgadas por Lacan, como uma forma de

defesa contra o Real. Além disso, a religião contaria com um forte poder ilusório,

construindo a imagem de um Deus todo-poderoso, que realizaria os maiores desejos da

humanidade e que dispensaria um amor igual a todos, agrupando seus fiéis em torno de

seus mandamentos. Entretanto, se esses poderes garantirão um futuro para a religião, é algo

que Freud e Lacan não convergem em suas colocações, mas não há dúvidas de que se trata

de uma das construções mais significativas da humanidade.

Além da religião em si, consideramos fundamental a realização de uma análise

desta a partir de uma concepção ideológica que desvelasse não somente a forma como o

discurso apaqueano foi estruturado, mas sua posição política no contexto social no qual

está inserido. Para tanto, começamos pela caracterização do que seria um discurso

ideológico enquanto doutrina, conjunto de ideias que se forma a partir da junção de

proposições empíricas e de uma visão de mundo. A forma crítica correspondente a essa

caracterização é a análise sintomal na medida em que permite discernir a tendenciosidade

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contida nas rupturas, lapsos e lacunas. Essa dimensão textual passa, então, por um processo

de materialização, no qual a ação concreta de indivíduos, inseridos em Aparelhos

Ideológicos de Estado, dá origem à sua própria base ideológica. Mas a ideologia também

se presentifica em sua forma espontânea, extrainstitucional, a partir da noção de que a

realidade apenas se torna completa pela inserção de um elemento espectral, uma fantasia

política que vem ocultar o real do furo irrepresentável, o qual se encontra no cerne da

sociedade. Assim, a crítica ideológica direcionada à APAC inclui desde a configuração de

seu discurso, passando pelas formas como esse discurso é materializado em suas práticas e

nas práticas dos recuperandos, até a identificação do criminoso como o elemento que se faz

necessário para sua completude, mas que, ao mesmo tempo, representa sua impossibilidade

imanente.

Por fim, voltamo-nos para a análise do possível impacto do método APAC nos

sujeitos inseridos em suas instituições a partir de fragmentos do cotidiano e do que se fez

presente durante os encontros de conversação. Como partimos da perspectiva psicanalítica,

o conceito de sujeito e suas formas de manifestação são fundamentais para refletirmos

sobre a circulação do discurso em suas instituições. Nesse sentido, o grafo do desejo foi o

caminho encontrado por nós para uma sistematização acerca do sujeito, começando pelo

primeiro nível, no qual encontramos o ponto de basta enquanto corte da cadeia significante

por uma intenção mítica, que fixa o sentido retroativamente. Essa operação é aquela que dá

origem ao sujeito, mas seu eu propriamente dito será formado apenas no segundo nível do

grafo a partir das relações de identificação com o semelhante e com o Outro. Essas

identificações são cruciais para a economia psíquica, mas nunca são completas, sempre

fica um resto, um hiato que se expressa na indagação relativa ao desejo: que queres? A

fantasia é o que vem tentar tamponar essa questão insuportável, já que é impossível de ser

respondida em palavras, construindo um contexto ilusório no qual o desejo do Outro é

satisfeito e nosso próprio será constituído. Já o último nível do grafo corresponde à

dimensão do real e traz a questão do gozo como o que resta após o corpo do infante ter

sido capturado pelo significante, passando pelo processo de castração. Para Freud, a libido

infantil era canalizada para as zonas erógenas, definidas pela socialização recebida pela

criança, e, para Lacan, se trata de oásis de gozo que não possuem nada de biológico, pois

demonstram o efeito do significante no corpo.

O que pudemos perceber, ao longo dessas reflexões, foi que o projeto apaqueano de

matar o criminoso e salvar o homem se utiliza de uma religião católica mesclada à

elementos de uma ideologia comumente abraçada pela classe média, que se baseia no que a

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sociedade capitalista acredita que seja uma pessoa recuperada, a fim de moldar os

indivíduos por meio de técnicas materiais e discursivas. Nesse sentido, não

desconsideramos aqui que a APAC pode se constituir realmente como uma alternativa

viável às formas de encarceramento praticadas atualmente no Brasil, mas acreditamos,

assim como posto pela Lei de Execução Penal (1984), que a religião não pode ter caráter

obrigatório em um contexto de cumprimento de pena, principalmente quando estamos

falando de apenas uma vertente religiosa, carregada de uma ideologia que relega ao

criminoso a posição de mal social que deve ser extirpado. Como frei Betto (1984), somos a

favor de uma Pastoral Carcerária que envolva o preso, como livre em sua opção de fé, a

transmitir aos outros presos sua crença, a ser sujeito de evangelização entre seus iguais.

A opção pela saída do crime acontece no nível individual a partir das motivações,

dos desejos, das fantasias e das formas de gozo de cada sujeito. Com base nisso, podemos

dizer que a APAC pode contribuir mais ao oferecer possibilidades aos sujeitos, nas quais

estes podem escolher se agarrar ou não e, a partir daí, construir seus próprios caminhos.

Oportunidades de escolarização, de profissionalização, de empregos e até mesmo de

acompanhamento médico ou psicológico são exemplos de ações que podem ser mais bem-

sucedidas se pensarmos a partir do sujeito. Nesse contexto, o papel do psicanalista é

proporcionar um espaço onde o sujeito possa ir ao encontro às suas próprias questões,

visando à construção de um saber acerca do ato e do assentimento subjetivo, o qual permite

a responsabilização.

Dessa forma, encontramos, como um desdobramento deste estudo e como uma

proposta para sua continuação, a realização de uma análise que tenha como foco principal

o sujeito inserido em uma instituição apaqueana, a partir de uma perspectiva

individualizada, que considere os aspectos históricos e subjetivos de cada um. Acreditamos

que a visão do que a instituição e seu método representam pode servir de base para ir à

fundo na questão do sujeito, não somente criminoso, mas às voltas com a obrigatoriedade

da religião em prol de um cumprimento de pena mais humano.

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8 ANEXOS

TERMO DE ESCLARECIMENTO

Você está sendo convidado a participar da pesquisa: Circulação do discurso em

uma instituição apaqueana: um estudo crítico na perspectiva psicanalítica feita por Bianca

Ferreira Rodrigues, aluna de mestrado em Psicologia na Universidade Federal de São João

del-Rei.

Esta pesquisa quer saber como são as pessoas presas na APAC e como o método

APAC muda ou não essas pessoas. Para tentar descobrir isso, será feito um grupo de

conversa, uma vez por semana, com mais ou menos uma hora de duração. Esse grupo vai

ser organizado por Bianca, que irá juntar cinco pessoas para conversar uns com os outros

sobre qualquer assunto que escolherem. Ela vai levar filmes, músicas, reportagens e outras

coisas que vão ajudar as pessoas a conversarem entre si e com ela. Os assuntos vão ser

escolhidos pelos próprios presos e eles vão poder falar o que quiserem, mas não vão poder

faltar com o respeito a ninguém. Bianca não vai falar muito, nem perguntar nada sobre a

APAC, para que as pessoas do grupo não tenham problema algum por estarem ali

conversando. Depois de cada encontro, ela vai anotar o que foi falado de mais importante e

depois analisar para tentar responder ao que a pesquisa quer saber.

Se você aceitar participar do grupo de conversa, você vai estar autorizando Bianca

a utilizar as anotações dela sobre os encontros do grupo para os estudos dela no mestrado e

para divulgar em outros lugares, como revistas científicas e eventos de psicologia. Pela sua

participação no estudo, você não vai receber qualquer valor em dinheiro, mas vai ter a

garantia de que não vai precisar pagar nada por isso. Todas as despesas serão pagas por

Bianca, incluindo tudo o que você precisar para participar e as consequências da sua

participação.

Por participar do grupo, pode ser que você tenha sentimentos de angústia,

ansiedade ou outros sentimentos ruins. Se isso acontecer, Bianca vai lhe oferecer uma

ajuda terapêutica, conversando com você e fazendo de tudo para que você se sinta melhor.

Bianca é psicóloga e já atendeu a outras pessoas antes. Então, ela vai estar preparada para

isso. Mas, se quiser, você ainda vai poder ir conversar com algum estagiário de psicologia

na UFSJ, que atende às pessoas com a ajuda dos professores, lembrando que você não vai

pagar nada. É tudo responsabilidade da Bianca.

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O lado bom é que você vai ter um espaço para falar o que quiser, para desabafar,

para pensar na vida, para pensar no futuro etc. Você vai poder conversar com alguns

colegas da APAC sobre os assuntos que vocês escolherem e dar sua opinião sem medo de

receber algum castigo por isso. Bianca não vai falar muito, mas ela é psicóloga e pode lhe

ajudar a olhar para as coisas de um jeito diferente. Desabafar sobre as coisas ruins da vida

ou até falar sobre coisas sem importância pode lhe fazer bem.

Você não é obrigado a participar. Você pode dizer não ou até desistir em qualquer

momento da pesquisa sem problema ou castigo algum. Mesmo se você disser sim e assinar

este documento, você não é obrigado a dizer o que não quer e não precisa fazer o que não

tiver vontade. Você não será obrigado a nada. Pode escolher sempre. É importante também

deixar claro que as informações da pesquisa não serão e não poderão ser utilizadas em

qualquer documento oficial sobre o seu processo na Justiça.

Em momento algum vai aparecer seu nome ou qualquer informação que as pessoas

possam adivinhar que é você. Também, não vai ter nada sobre a sua cidade, a APAC onde

você cumpre pena, seu telefone, sua família etc. Até mesmo nas anotações de Bianca, não

vai ter nada diretamente sobre você. Ela vai usar nomes falsos e não vai anotar coisas

muitos pessoais. Assim como nas divulgações da pesquisa, em revistas científicas ou em

eventos de psicologia, jamais haverá nada que possa lhe identificar. Isso é importante para

que você possa falar livremente e não seja punido por isso.

Durante todo o tempo da realização do grupo e até depois dele, Bianca vai estar

totalmente disponível para conversar com você, responder a perguntas sobre a pesquisa e

ajudar caso você não se sinta muito bem. A saúde e o bem-estar de você durante a pesquisa

é de inteira responsabilidade dela. Mas se você quiser, também pode conversar com o

pessoal da Universidade que acompanha a pesquisa dela para garantir que está tudo certo e

que os participantes estão bem.

Você pode encontrar a Bianca no endereço: Rua Aureliano Pimentel, número 295,

bairro Fábricas, em São João del-Rei. CEP: 36301-188. O e-mail dela é

[email protected] e o telefone é (31)9 9408-2710.

Para conversar com as pessoas responsáveis na Universidade, o endereço é: Praça

Dom Helvécio, número 74, Bairro Fábricas, São João del-Rei. CEP: 36301-160. O e-mail é

[email protected] e o telefone é (32) 3373-5479.

Depois dessas informações, se for da sua vontade participar deste estudo, por favor,

preencha o consentimento abaixo.

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TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE, APÓS ESCLARECIMENTO

Eu, ____________________________________________________________, li e/ou

ouvi o esclarecimento acima e aceito participar da pesquisa de mestrado intitulada

Circulação do discurso em uma instituição apaqueana: um estudo crítico na perspectiva

psicanalítica. A explicação que recebi esclarece os riscos e benefícios do estudo. Eu

entendi que sou livre para interromper minha participação a qualquer momento, sem

justificar minha decisão, e que isso não afetará meu tratamento. Sei que meu nome não

será divulgado, não terei despesas e não receberei dinheiro por participar do estudo. Eu

concordo em participar do estudo.

São João del-Rei............./ ................../................

_______________________________________ _____________________

Assinatura do voluntário ou seu responsável legal Documento de identidade

_______________________________

Bianca Ferreira Rodrigues

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