cintia cardoso vigiani carvalho

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CÍNTIA CARDOSO VIGIANI CARVALHO O ALUNO DO CURSO TÉCNICO DE ENFERMAGEM E O ESTÁGIO HOSPITALAR: EXPERIÊNCIAS PSICANALÍTICAS DE UM GRUPO PUC-Campinas 2008

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enfermagem

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  • CNTIA CARDOSO VIGIANI CARVALHO

    O ALUNO DO CURSO TCNICO DE

    ENFERMAGEM E O ESTGIO HOSPITALAR:

    EXPERINCIAS PSICANALTICAS DE UM GRUPO

    PUC-Campinas

    2008

  • CNTIA CARDOSO VIGIANI CARVALHO

    O ALUNO DO CURSO TCNICO DE

    ENFERMAGEM E O ESTGIO HOSPITALAR:

    EXPERINCIAS PSICANALTICAS DE UM GRUPO

    Dissertao apresentada ao Programa

    de Ps-Graduao Stricto Sensu em

    Psicologia do Centro de Cincias da

    Vida PUC-Campinas, como requisito

    para obteno do ttulo de Mestre em

    Psicologia como Profisso e Cincia.

    Orientador: Prof. Dr. Antonios Trzis

    PUC-Campinas

    2008

  • Ficha Catalogrfica

    Elaborada pelo Sistema de Bibliotecas e Informao - SBI - PUC-Campinas

    t616.8915 Carvalho, Cntia Cardoso Vigiani.

    C331a O aluno do curso tcnico de enfermagem e o estgio hospitalar: experincias psicanalticas de um grupo / Cntia Cardoso Vigiani Carvalho. - Campinas: PUC- Campinas, 2008. 188p. Orientador: Antonios Trzis. Dissertao (mestrado) Pontifcia Universidade Catlica de Campinas, Centro de Cincias da Vida, Ps-Graduao em Psicologia. Inclui anexos e bibliografia. 1. Psicanlise de grupo. 2. Enfermagem - Aspectos psicolgicos. 3. Enfermagem - Estgios. 4. Enfermagem - Estudo e ensino. I. Trzis, Antonios. II. Pontifcia Universidade Catlica de Campinas. Centro de Cincias da Vida. Ps- Graduao em Psicologia. III. Ttulo. 22ed. CDD t616.8915

  • CNTIA CARDOSO VIGIANI CARVALHO

    O ALUNO DO CURSO TCNICO DE ENFERMAGEM E O ESTGIO

    HOSPITALAR: EXPERINCIAS PSICANALTICAS DE UM GRUPO

    BANCA EXAMINADORA

    ______________________________________

    Presidente Prof. Dr. Antonios Trzis

    ______________________________________

    Profa Dra. Maria Eugnia Scatena Radomile

    ______________________________________

    Profa Dra. Dayse Maria Motta Borges

    PUC-Campinas

    2008

  • Aos meus alunos, to queridos,

    com quem eu aprendo e me re-crio

    constantemente.

  • AGRADECIMENTOS

    Ao meu orientador, Antonios Trzis, por sua presena constante e

    serena, pacincia e carinho com que sempre me recebeu e por todas as

    orientaes e contribuies preciosas para a realizao deste trabalho;

    A Luiz Carlos Vigiani, por ter me ensinado que com determinao e

    dedicao eu poderia chegar aonde quisesse;

    Eliana Cardoso Vigiani, por ter me ensinado que sou capaz de realizar

    o que quer que eu deseje e com quem aprendo a levar a vida de uma forma

    mais leve e divertida;

    Andra Vigiani e Thais Vigiani, pela alegria e companheirismo que

    trazem minha vida, sem os quais minha caminhada seria muito mais rdua e

    sem cor;

    Tereza Iochico Hatae Mito, por ter sido a primeira incentivadora da

    realizao deste trabalho, quando ele ainda no existia nem mesmo nas

    minhas idias; por me apresentar a pesquisa cientfica como uma deliciosa

    forma de encontrar respostas s nossas inmeras dvidas;

    A Ben-Hesed dos Santos, Mrcia Capellato, Ana Paula Martins Nunes e

    Tnia Maria de Souza Silva, por terem aberto as portas de minha profisso de

    docente, confiando em meu trabalho e sempre me oferecendo total liberdade

    de pr em prtica minhas idias, o que em muito contribuiu para o surgimento

    das inquietaes que deram origem a este trabalho;

    Ana Carolina Trevisan, por me socorrer em momentos de sufoco,

    ajudando-me com as atividades de transcrio e traduo, aliadas a amizade e

    incentivo de longa data;

    Flvia Perin, pela paciente e dedicada reviso de todo o trabalho;

    Clia Marcondes Marques, por me auxiliar a entender os sentidos

    ocultos de minha experincia na realizao deste estudo e na vida tornando

    possvel e mais suave sua concluso;

    Carla Pontes Donnamaria, Cybele Carolina Moretto e Ftima Regina

    Mibach do Nascimento, pela companhia na jornada e especialmente por todas

    as orientaes, palpites, apoio e consolo que pudemos trocar umas com as

    outras;

  • Aos professores Leopoldo Fulgncio e Vera Trevisan, por todo o

    conhecimento partilhado, que pde contribuir com meu crescimento do ponto

    de vista profissional e pessoal;

    Aos professores Marly Aparecida Fernandes e Mauro Amatuzzi, pelos

    valiosos questionamentos e contribuies na ocasio do exame de

    qualificao;

    Capes, pelo apoio financeiro dado pesquisa;

    direo, coordenao e equipe de trabalho da Escola de Enfermagem

    na qual esta pesquisa foi realizada, que muito gentilmente colocou minha

    disposio tudo que foi necessrio para sua realizao;

    Aos alunos participantes deste estudo, por terem compartilhado comigo

    uma parcela da imensa riqueza de seu mundo interior, possibilitando-me

    ampliar os limites da minha viso e tornando este trabalho possvel;

    Priscila Marchioli e Eduardo Carvalho, por terem de muitas formas me

    sustentado durante estes dois anos, sobretudo nos momentos em que eu no

    pude fazer isso por mim mesma;

    Priscila, especialmente, por sua companhia e amizade, por todas as

    conversas e discusses, cientficas ou no, pelos sonhos acalentados juntas e

    planos de parcerias futuras; pelo nosso grupo de estudos de Freud, que tanto

    nos faz crescer profissional e pessoalmente;

    A Eduardo, especialmente, por seu amor que me d foras para superar

    qualquer obstculo; por sua presena que me ilumina; por toda pacincia,

    compreenso e incentivo durante estes dois anos de percurso;

    Os meus mais sinceros agradecimentos.

  • SUMRIO

    APRESENTAO...........................................................................................................1

    1. INTRODUO............................................................................................................7

    1.1 Consideraes iniciais sobre a prtica da enfermagem............................................8

    1.1.1 Algumas consideraes sobre o desenvolvimento histrico da

    enfermagem.............................................................................................................14

    1.1.2 Os profissionais da enfermagem....................................................................18

    1.2 Dificuldades na prtica da enfermagem e possibilidades de mudanas.................22

    1.2.1 Dificuldades encontradas pelo profissional da sade....................................22

    1.2.2 Deficincias na formao do profissional da sade.......................................30

    1.2.3 Psicologia e Enfermagem: possibilidades de trocas......................................36

    1.3 Fundamentao do trabalho com grupos................................................................40

    1.3.1 Algumas idias de Freud sobre o funcionamento dos grupos.......................41

    1.3.2 A escola inglesa..............................................................................................43

    1.3.3 A escola francesa...........................................................................................49

    1.3.4 A escola latino-americana..............................................................................53

    2. OBJETIVOS..............................................................................................................58

    2.1 Objetivo geral..........................................................................................................58

    2.2 Objetivos especficos...............................................................................................58

    3. MTODO...................................................................................................................60

    3.1 Sujeitos....................................................................................................................63

    3.2 Instrumentos............................................................................................................64

    3.3 Procedimentos.........................................................................................................66

    3.4 Anlise dos resultados............................................................................................69

    4. RESULTADOS E DISCUSSO.................................................................................73

    4.1 Anlise e discusso do primeiro encontro...............................................................73

    4.2 Anlise e discusso do segundo encontro..............................................................86

    4.3 Anlise e discusso do quinto encontro..................................................................98

    4.4 Anlise e discusso do oitavo encontro................................................................108

    4.5 Formulaes psquicas do grupo de estagirios...................................................119

  • 5. CONCLUSO..........................................................................................................125

    6. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS........................................................................129

    ANEXOS......................................................................................................................137

    Carta de informao instituio onde ser realizada a pesquisa.............................138

    Carta de informao ao sujeito sobre a pesquisa.......................................................139

    Transcrio do encontro 1...........................................................................................140

    Transcrio do encontro 2...........................................................................................153

    Transcrio do encontro 5...........................................................................................167

    Transcrio do encontro 8...........................................................................................177

  • Carvalho, C.C.V. (2008). O aluno do curso Tcnico de Enfermagem e o estgio

    hospitalar: experincias psicanalticas de um grupo. Dissertao de Mestrado,

    Pontifcia Universidade Catlica de Campinas.

    RESUMO

    Este estudo investigou um grupo de alunos do curso Tcnico de Enfermagem

    quando em perodo de estgio hospitalar. Teve como objetivo descrever e

    compreender os fenmenos manifestados no grupo e na prtica do estgio,

    oferecer condies para a descoberta de solues dos problemas vivenciados,

    favorecendo um processo transformador na relao do aluno com sua prtica.

    Utilizou o mtodo psicanaltico, tendo como instrumento a tcnica de Grupo de

    Formao, desenvolvida por Anzieu e Kas. Os participantes foram oito alunos

    em perodo de estgio em um curso Tcnico de Enfermagem. Foram

    realizados oito encontros, ocorridos duas vezes por semana com durao de

    uma hora e quinze minutos, nas dependncias da prpria escola. Para anlise

    dos resultados foi utilizada a Tcnica de Anlise de Contedo conforme

    descrita por Mathieu. Os resultados principais apontaram para vivncias

    regressivas no grupo, que funcionou conforme um arranjo dos pressupostos

    bsicos de dependncia e luta e fuga, constitudos de emoes intensas e

    primitivas desempenhando papel determinante na organizao do grupo. Foi

    observado grande sofrimento emocional, angstias persecutrias e depressivas

    e alto nmero de ausncias. As principais defesas utilizadas foram a negao,

    projeo e criao de iluso grupal. A tcnica mostrou-se adequada

    expresso e elaborao das angstias, favorecendo a evoluo do grupo a um

    funcionamento mais racional e em respeito aos princpios da realidade. A

    experincia de grupo sensibilizou aos alunos e eles prprios puderam descobrir

    meios apropriados para resolver alguns dos problemas surgidos na experincia

    de estgio. Conclumos que o grupo de formao se mostrou um mtodo eficaz

    de interveno preventiva em Psicologia.

    Palavras-chave: grupo, psicanlise, enfermagem, estgio.

  • Carvalho, C.C.V. (2008). The Nursing Technician course student and the hospital

    internship: psychoanalytical experiences of a group. Masters Thesis, Pontifcia

    Universidade Catlica de Campinas.

    ABSTRACT

    The present paper investigated a group of students of the Nursing Technician

    course when serving their hospital internship term. Its purpose was to describe

    and understand the phenomena manifested in the group and in the internship

    practice, to offer conditions for the discovery of solutions for the issues

    experienced, favoring a transforming process in the students relation with the

    practice. The psychoanalytical method was applied, using Anzieu and Kas

    Formation Group technique as an instrument. The participants were eight

    students in internship terms in a Nursing Technician course. Eight meetings

    lasting one hour and a quarter were held, twice a week, in the facilities of the

    school itself. For analysis of the results, the Content Analysis Technique, as

    described by Mathieu, was used. The main results pointed out regressive

    experiences in the group, which worked according to an arrangement of the

    basic assumptions of dependence and fight or flight, composed of intense and

    primal emotions and playing a determining role in the group organization. Great

    emotional suffering was noticed, as well as persecutory and depressive

    anguishes, and a high number of absences. The main defenses used were

    denial, projection and creation of group illusion. The technique proved to be

    adequate to the expression and elaboration of anguishes, favoring the evolution

    of the group towards a more rational working pattern and respecting the

    principles of reality. The group experience sensitized the students and they

    were able to discover, by themselves, adequate means to solve some of the

    issues that came up during the internship experience. We conclude that the

    formation group has proven to be an efficient means for preventive intervention

    in Psychology.

    Keywords: group, psychoanalysis, nursing, internship.

  • 1

    APRESENTAO

    A idia deste trabalho surgiu da experincia como docente num curso de

    formao de tcnicos e auxiliares em enfermagem, oferecido por uma

    tradicional escola de enfermagem da cidade de So Paulo. Nossa experincia

    nesta instituio conta com trs anos ministrando aulas nas disciplinas de

    Psicologia Aplicada Sade e tica e Cidadania, para grupos de nmero,

    idade e conhecimento prvio do assunto bastante variados.

    Estas disciplinas eram oferecidas na maioria das vezes no incio do

    curso, como parte do primeiro mdulo, destinado a disciplinas tericas voltadas

    ao auto-cuidado. Tinham como objetivo geral oferecer oportunidade para que

    os alunos refletissem sobre seu papel como futuros profissionais de

    enfermagem e como cidados. Possuam, como se nota, objetivos bastante

    amplos, especialmente em virtude da reduzida carga horria, e no tinham a

    pretenso de esgotar o assunto ou oferecer frmulas prontas sobre como ser

    um bom profissional e cidado. Ainda que as aulas fossem muitas vezes

    introduzidas e sempre pontuadas pelos conhecimentos tericos e cientficos do

    assunto em questo, a metodologia utilizada era essencialmente constituda

    por discusso, reflexo e dilogo. Isso possibilitou uma relao de abertura

    entre professora e alunos, que fez com que pudssemos adentrar um pouco

    mais no mundo interno dos futuros auxiliares ou tcnicos e conhecssemos

    algumas de suas expectativas, iluses e sentimentos, tanto em relao sua

    futura profisso como escola, ao pas e vida de maneira geral.

    Os grupos que conduzimos eram de dois tipos principais. O primeiro tipo

    era composto por alunos que estavam entrando naquele momento em contato

  • 2

    com a enfermagem, a maioria sem nenhuma experincia anterior na rea. O

    segundo tipo eram grupos de profissionais j formados como auxiliares, mas

    que, em virtude da exigncia legal1, vinham dar continuidade formao,

    buscando o ttulo de tcnicos. Estes, na maioria, j possuam experincia,

    muitas vezes de longos anos ou mesmo dcadas. Algumas vezes, ministramos

    tambm cursos para grupos mistos, o que foi importante na motivao para

    esta pesquisa, como ser descrito a seguir.

    O contato com profissionais em diferentes estgios de sua formao

    permitiu o reconhecimento de diferenas bastante significativas nas suas

    posturas em relao profisso. Os grupos de alunos que estavam iniciando

    na rea da enfermagem manifestavam certa idealizao da profisso e do

    alcance de sua atuao. Percebamos nos alunos desejos de salvar, de curar,

    inteno de doarem-se de forma integral. Achavam que esta dedicao intensa

    no seria difcil e mesmo que bastaria gostar da profisso ou fazer por amor

    e no pelo dinheiro para que atingissem aquele ideal de profissional que

    apresentavam.

    Em contraste, dos profissionais que estavam em contato com a prtica

    h mais tempo, muitos manifestavam posturas opostas. Eram cticos quanto

    s possibilidades reais de ajuda, possuam uma viso desiludida, algo distante

    e desesperanosa. Eram comuns as reaes de irritao e ironia quando o

    assunto era o atendimento humanizado, como mostram os comentrios de um

    aluno: Quem fica cheio de sorrisos porque no sabe o que fazer. Quem sabe

    1 Em 2003, a Resoluo Cofen n 276 resolve conceder apenas Inscrio Provisria aos

    auxiliares de enfermagem. Este profissional teria o prazo de cinco anos para comprovar a continuidade dos estudos no curso tcnico ou na graduao, sem a qual no poderia continuar a exercer sua prtica profissional. Esta Resoluo foi revogada quatro anos depois pela Resoluo 314/2007.

  • 3

    o que fazer, no sorri, faz e O paciente quer que voc realize uma tcnica

    correta, e no que voc sorria para ele.

    No caso dos grupos mistos a diferena entre as posturas, crenas e

    formas de abordar o problema da humanizao era ainda mais evidente. O

    grupo dos iniciantes acusava os mais veteranos de no atenderem bem porque

    no tinham vontade, por j estarem acostumados com o sofrimento e no se

    importarem mais com o outro. Os que j trabalhavam ficavam bastante

    incomodados com estas acusaes e, com irritao ou desesperana,

    atribuam aos iniciantes uma viso idealizada e impossvel de ser posta em

    prtica. Em certo sentido, ambos os grupos tinham razo, mas nem todas as

    vezes foram capazes de perceber isso e ampliar sua viso. Algumas vezes os

    grupos chegavam a verdadeiros confrontos, fazendo-nos questionar quais

    motivaes e sentimentos estavam por trs daquelas discusses.

    Outro dado que favoreceu a realizao deste trabalho foi o fato de que,

    quando os alunos chegavam ao segundo mdulo e iniciavam as prticas de

    estgio, voltavam a nos procurar, agora informalmente pelos corredores da

    escola; eles pediam ajuda e diziam que a Psicologia era ainda mais necessria

    naquela ocasio diante das dificuldades que enfrentavam no estgio. Isso nos

    fez supor que o momento do contato real com os pacientes fazia surgir

    sofrimentos para os quais no estavam preparados e com os quais no sabiam

    lidar.

    A partir destas observaes percebemos que a prtica profissional

    estava acarretando sofrimento aos alunos, manifestado tanto atravs da

    desiluso, do ceticismo e da desesperana dos que j trabalhavam

    profissionalmente quanto da angstia dos que estavam iniciando o estgio.

  • 4

    Infelizmente, no foi possvel a realizao de uma investigao na poca para

    buscar as razes deste sofrimento. No entanto, ficou evidenciada para ns a

    necessidade de um melhor preparo dos profissionais da enfermagem, no s

    no que diz respeito ao conhecimento tcnico-cientfico, mas tambm em

    relao ao seu auto-conhecimento e amadurecimento emocional.

    Uma reviso da literatura recente indicou a existncia de diversos

    trabalhos sobre o sofrimento psquico do profissional da enfermagem, e da

    rea da sade de maneira geral, mas poucos deles tinham como foco os

    estudantes e ainda menos trabalhos foram encontrados sobre o nvel tcnico

    da enfermagem. Por outro lado, um grande nmero de pesquisas mais

    recentes foi desenvolvido pelos prprios profissionais da enfermagem, o que

    nos chamou a ateno para a necessidade da contribuio de um ponto de

    vista especificamente psicolgico e psicanaltico, que pudesse contribuir com

    uma atuao de nvel preventivo, importante tanto Enfermagem quanto

    Psicologia.

    Levar conhecimentos de Psicologia no apenas com informaes

    tcnicas teis diretamente somente aos psiclogos, mas como ferramentas de

    reflexo e tomada de conscincia sociedade em geral a forma mais

    precoce de interveno em preveno e constituiu uma importante motivao

    para a realizao desta pesquisa. Um dos objetivos deste trabalho foi que, ao

    oferecer espao para o estudante refletir, questionar, entrar em contato com

    seus sentimentos advindos da prtica, pudssemos realizar uma atuao

    preventiva na rea da enfermagem, agindo antes ou imediatamente aps o

    surgimento de dificuldades.

  • 5

    Para possibilitar uma atuao preventiva em Psicologia foi fundamental

    aproveitarmos e utilizarmos os conhecimentos acerca da grupalidade. No s

    pela possibilidade de levar a ateno psicolgica a um maior nmero de

    pessoas, mas em funo de um aspecto ainda mais interessante: o grupo, de

    acordo com Osrio (2007) o espao da reflexo por excelncia.

    Especialmente em uma era que demanda a aprendizagem da convivncia e o

    desenvolvimento de competncias interpessoais como vias para a superao

    da intolerncia e intransigncia em relao diversidade, sem o que a prpria

    sobrevivncia da humanidade est ameaada (p. 169).

    O grupo o espao onde os esquemas referenciais so facilmente

    trazidos tona, reconhecidos, questionados e possivelmente retificados. um

    espao de reflexo e transformao. (Trzis, 2005a). Por outro lado, o contexto

    grupal, usado como tcnica de observao, apresenta uma riqueza no

    observada em outros mtodos de coleta de dados, j que possibilita, alm de

    discursos sobre o material pesquisado, uma observao direta dos fenmenos

    em questo, que so reproduzidos no aqui-agora do grupo. (Trzis, 2005b).

    Assim, este trabalho pretendeu colaborar com o desenvolvimento dos

    conhecimentos sobre a grupalidade, com a compreenso especfica das

    dificuldades enfrentadas pelo estudante do curso tcnico de enfermagem, e

    com a conscientizao da necessidade de intervenes em nveis mais

    precoces na Psicologia.

  • 6

    INTRODUO

  • 7

    1. INTRODUO

    A seguir apresentaremos as principais consideraes tericas que

    deram origem e servem de fundamento a este trabalho. Faremos isso atravs

    de trs captulos. O primeiro captulo destinado a uma apresentao geral do

    tema enfermagem, com o objetivo de familiarizar o leitor com as conceituaes

    mais aceitas na rea e especificar melhor nosso objeto de estudo.

    Apresentaremos um breve resumo do percurso da prtica da enfermagem no

    decorrer da histria e explicitaremos as atuais categorias profissionais

    existentes com suas respectivas atribuies.

    Com o segundo captulo temos o objetivo de apresentar as principais

    dificuldades observadas atualmente na prtica da enfermagem, especialmente

    atravs de artigos recentemente publicados sobre o tema. Buscamos tambm

    apresentar algumas das possibilidades que vislumbramos para contribuir com a

    alterao deste quadro.

    No terceiro e ltimo captulo apresentaremos as teorias utilizadas neste

    estudo para a fundamentao do trabalho com grupos, o que fornecer uma

    viso mais sistematizada e organizada de nossas perspectivas tericas dentro

    da psicanlise de grupos e orientar a compreenso dos resultados

    encontrados.

  • 8

    1.1 Consideraes iniciais sobre a prtica da enfermagem

    Falar da prtica da enfermagem contar uma histria que se confunde

    com a prpria histria do homem. Iniciando pelo significado etimolgico da

    palavra, de acordo com Figueiredo (1922), a palavra enfermagem um termo

    latino composto pelos elementos En, Firm e Agem. No dicionrio Houaiss

    (2001) encontramos que o elemento En sugere aproximao, introduo e

    transformao; Firm, est ligado idia de firmeza, solidez, persistncia,

    fora; e Agem, significa ao ou resultado de ao. Assim, desde a etimologia

    do termo, a enfermagem parece ligada a aes slidas e persistentes de

    aproximao, contato e transformao de uma dada situao. Sua definio,

    entretanto, no simples com poderia parecer primeira vista. Ao longo do

    tempo numerosas teorias em filosofia da enfermagem foram desenvolvidas,

    com definies e nfases diferentes entre si. O Grande Tratado de

    Enfermagem Prtica, de Potter e Perry (2002), uma obra utilizada por

    profissionais em formao que rene as principais destas teorias. Algumas

    delas sero brevemente apresentadas a seguir, com o intuito de buscar uma

    caracterizao mais precisa do que vem a ser enfermagem.

    Em 1955, a Associao Americana de Enfermagem (AAE) definiu

    oficialmente a profisso da seguinte forma:

    A prtica da enfermagem significa qualquer ato de observao, cuidado e

    aconselhamento do paciente, traumatizado ou enfermo, para recuperao ou

    manuteno da sade ou preveno da doena em outros indivduos,

    superviso e ensino, administrao de medicamentos e tratamentos. (...) No

    supe a incluso de procedimentos de diagnstico ou prescrio de medidas

    teraputicas ou corretivas. (conforme citado em Potter & Perry, 2002, p. 9).

  • 9

    Vemos aqui elementos comuns aos citados na etimologia da palavra,

    como a referncia ao, aproximao, observao, introduo de

    medicamentos e transformao ou recuperao da sade.

    J Abdellah, em 1960, enfatiza que a assistncia de enfermagem deve

    incluir o indivduo como um todo, ou seja, suas necessidades fsicas,

    emocionais, intelectuais, sociais e espirituais, tanto do paciente quanto de sua

    famlia. A autora e seus colaboradores desenvolveram os chamados 21

    problemas de enfermagem de Abdellah, buscando identificar as principais

    necessidades do paciente e a conseqente atividade do enfermeiro. Os onze

    primeiros problemas identificados por ela tratam de funes ligadas atividade

    somtica do paciente, como: manter boa higiene, facilitar a manuteno da

    nutrio e oxignio a todas as clulas do corpo, a manuteno e eliminao de

    dejetos, etc. A partir do problema de nmero 12, a preocupao se volta a

    necessidades de cunho emocional, social e espiritual, como: identificar e

    aceitar as expresses, sentimentos e reaes positivas e negativas, facilitar a

    comunicao verbal e no-verbal, entender o papel dos problemas sociais

    como fatores que influenciam a causa das doenas, etc. Verifica-se nesta

    concepo de enfermagem uma preocupao mais ampla com o indivduo, que

    inclui claramente nas funes profissionais, no apenas um cuidado com o

    corpo doente, mas uma ateno pessoa como um todo, doente ou saudvel,

    em suas vrias dimenses de vida.

    Em 1964, Henderson define a enfermagem como:

    Ajudar o indivduo a desempenhar suas atividades, contribuindo para sua

    recuperao (ou para uma morte tranqila), da forma que ele realizaria se

    tivesse a fora, o nimo ou o conhecimento necessrios. Proceder de forma

  • 10

    que o paciente reconquiste sua independncia o mais rpido possvel.

    (conforme citado em Potter & Perry, 2002, p. 7).

    A autora estabelece as 14 necessidades bsicas de Henderson que

    apresenta objetivos tambm voltados para o cuidado com o indivduo total. O

    interessante de sua definio a incluso do tema da morte, ainda que

    aparecendo de uma forma quase acidental, entre parnteses. O fato de a

    autora incluir numa definio de enfermagem a possibilidade de aceitao da

    morte nos parece til por indicar que o objetivo final dos cuidados no a

    preservao da vida a qualquer custo, mas autonomia e tranqilidade enquanto

    houver vida. Parece-nos til tambm estar includa num livro destinado

    formao de novos profissionais pois, de certa forma, os desincumbe da tarefa

    de salvar todas as vidas e pode ajud-los a aceitar melhor a limitao humana

    natural diante da morte.

    Em 1965, a Associao Americana de Enfermagem (AAE) publicou uma

    nova e longa definio de enfermagem, mais completa que a de 1955, que diz

    em seu primeiro pargrafo:

    A enfermagem uma profisso de assistncia e, como tal, fornece servios

    que contribuem para a sade e bem-estar das pessoas. Ela uma

    conseqncia vital para os indivduos que recebem assistncia; preenchendo

    as necessidades que no podem ser atendidas pela pessoa, por sua famlia ou

    por demais pessoas da comunidade. Os componentes essenciais da profisso

    so a assistncia, a cura e a coordenao. O aspecto da assistncia mais do

    que tomar conta de algum, mas tambm significa preocupar-se com algum,

    cuidar de algum. Ela lida com os seres humanos sob estresse (...), fornece

    conforto e apoio em momentos de ansiedade, solido e desamparo. Significa

  • 11

    ouvir, avaliar e intervir de maneira apropriada. (conforme citado em Potter &

    Perry, 2002, p. 9).

    Nesta definio digna de nota a afirmao de que assistir em

    enfermagem significa preocupar-se com algum. Concordamos que a

    assistncia vai alm de tomar conta e que implica cuidado e ateno. Achamos

    interessante, porm, incluir a preocupao como atividade central do

    profissional enfermeiro. A palavra preocupao remete tanto noo de

    cuidado e ateno como idia de aflio, inquietao (Bueno, 1981). A partir

    desta definio no s o envolvimento emocional do enfermeiro se torna

    inevitvel em seu trabalho, como tambm seu sofrimento. Para quem tem

    como funo preocupar-se, torna-se difcil fugir do sofrimento. Por outro lado,

    esta definio parece relevante por trazer de forma mais objetiva o que

    esperado do profissional, pois esclarece que a profisso busca a assistncia e

    a cura atravs de aes definidas e realistas como: fornecer conforto, ouvir,

    avaliar, intervir.

    A definio de enfermagem de Rogers, de 1970, tambm tem aspectos

    importantes a acrescentar e outros teis a esta discusso. Diz a autora:

    A enfermagem est relacionada s pessoas todas as pessoas saudveis e

    doentes, ricas e pobres, jovens e idosas. O seu campo de atuao estende-se

    por todas as reas onde houver pessoas: em casa, na escola, no trabalho, nos

    locais de diverso, nos hospitais, nos asilos e clnicas neste planeta e, agora,

    pelo espao exterior. (conforme citado em Potter & Perry, 2002, p. 8).

    Esta definio parece-nos ter a vantagem de ampliar a atuao da

    enfermagem a contextos no hospitalares, mostrando uma preocupao com o

    ser humano em seus vrios papis e afirmando uma prtica possivelmente

    preventiva, quando inclui o cuidado com a pessoa saudvel. Note-se,

  • 12

    entretanto, que Rogers escreveu esta definio em 1970, quando o homem

    havia recentemente chegado Lua, e terminou por incluir sob os cuidados da

    enfermagem o que quer que fosse encontrado alm dos limites do nosso

    planeta. Uma definio de profisso como esta pode sugerir a crena numa

    atuao profissional idealizada, indicando uma inteno de ao onipotente

    que abarque o mundo inteiro e ainda o que houver alm. Estando contida num

    livro utilizado na formao de novos profissionais, esta uma definio que

    pode distorcer ao aluno sua real capacidade de ao fazendo surgir uma

    expectativa pessoal e profissional que ser facilmente frustrada. Ainda sobre a

    obra de Potter e Perry (2002), importante ressaltar que todas estas teorias

    sobre a enfermagem so apresentadas mas no so discutidas ou criticadas, o

    que pode contribuir para formar ou reforar no leitor a idia da enfermagem

    como uma prtica de cuidado ilimitado e onipotente.

    Atkinson e Murray (1989), a partir de diversas definies de enfermagem

    que receberam ampla aceitao, buscaram criar um conceito que englobasse

    os principais aspectos de cada definio anterior. Identificaram quatro reas na

    atuao do profissional enfermeiro, que elas chamaram de: manuteno da

    sade, promoo da sade, recuperao da sade e cuidados com o

    moribundo.

    Os cuidados para a manuteno da sade so aqueles voltados para os

    programas educativos, especialmente como parte de servio de sade para o

    estudante. Apresentam vantagens econmicas j que o custo de manter a

    sade menor do que o de tratar a doena. Por promoo de sade, as

    autoras entendem a possibilidade de elevar o nvel do continuum existente

    entre a sade e a doena, ou seja, onde o indivduo encontra-se num estado

  • 13

    de sade aceitvel, mas, por meio da ajuda do enfermeiro, pode melhorar suas

    condies fsicas e/ou psicolgicas. A recuperao da sade a rea que

    recebe maior ateno e maiores expectativas por parte da sociedade e do

    prprio meio mdico, buscando tratar a doena e restaurar a sade perdida. As

    autoras complementam que como no possvel sempre recuperar a sade e

    curar, uma ltima atribuio cabe ao profissional da enfermagem: o cuidado

    com a pessoa moribunda. Afirmam a importncia de uma assistncia aos

    pacientes e suas famlias que possibilite viver de forma to plena e confortvel

    quanto possvel os momentos finais da vida (Atkinson & Murray, 1989).

    J em 2005, Lima escreve que a enfermagem uma cincia humana, de

    prtica de cuidado a seres humanos, que engloba desde os estados de sade

    at os estados de doena e na qual esto envolvidos aspectos pessoais,

    profissionais, cientficos, ticos, estticos e polticos. Ela afirma que o

    profissional da rea deve ter como meta a preocupao em evitar ou reduzir as

    tenses biofsicas e psicossociais das pessoas que apresentam alteraes do

    estado de sade. Para cumprir esta meta, o profissional deve estar apto a

    perceber e reconhecer as tenses biofsicas tais como dor, sono, sede,

    nusea, insnia, calor, frio, prurido, etc. e as tenses psicossociais como

    medo, depresso, raiva, desamparo, constrangimento, frustrao, solido,

    vazio, etc. Afirma a autora:

    O entendimento da experincia de enfermagem humanstica transcende a

    abordagem da cincia cuja marca a impessoalidade e a distncia. Essa

    experincia s pode ser compreendida com um toque de sensibilidade da

    imaginao criativa, conduzindo o sujeito profissional a se sentir responsvel

    pelo seu desejo de cuidar e por seus atos sem se alienar do desejo e dos atos da

  • 14

    pessoa que recebe os cuidados, procurando interpretar seus gestos, seus

    signos, seu comportamento e at os seus silncios. (Lima, 2005, p. 72).

    Lima (2005) faz uma reflexo sobre a arte e esttica da enfermagem e

    percebe que em nossa sociedade a doena da categoria do feio, do que

    no deve existir ou no se deve ver. Afirma a importncia de questionarmos

    nossa necessidade de beleza e averso feira, uma vez que aceitar a feira

    nos ajuda a conviver com a diferena, a desarmonia, a incompletude e

    incorreo. Lima amplia a noo de enfermagem, compreendendo-a em nveis

    ainda no discutidos pelos autores j citados.

    Assim, possvel perceber que a enfermagem no se deixa definir

    facilmente. A anlise de suas diversas definies revela como pontos em

    comum uma prtica de assistncia aos seres humanos que visa promoo,

    manuteno e recuperao da sade, alm de cuidados pr-morte, envolvendo

    tanto os procedimentos tcnico-cientficos quanto um cuidado mais subjetivo e

    voltado s necessidades da pessoa total.

    1.1.1 Algumas consideraes sobre o desenvolvimento histrico da

    enfermagem:

    A enfermagem, sendo a prtica do cuidado com os seres humanos,

    existe desde que o homem existe e manifestou-se de formas variadas durante

    o desenvolvimento da humanidade. No perodo pr-cristo as doenas eram

    vistas como castigo de Deus ou manifestaes dos maus espritos, sendo

    tratadas de forma intuitiva e ritualstica por mdicos-sacerdotes. O tratamento

    nesta poca consistia em aplacar as divindades, afastando os maus espritos

    por meio de sacrifcios. Era comum o uso de massagens, banhos de gua fria

  • 15

    ou quente, purgativos e substncias provocadoras de nuseas (Conselho

    Regional de Enfermagem de So Paulo [Coren], Histria da Enfermagem).

    Aps o surgimento de Hipcrates na Grcia (460 a.C.) teve incio a

    transformao desta viso e a prtica da sade passou a ser baseada na

    experincia, no conhecimento da natureza e no raciocnio lgico. Para

    Hipcrates, o princpio fundamental da teraputica consistia em no contrariar

    a natureza, mas auxili-la a reagir. O mtodo de Hipcrates contava com

    observao do doente, elaborao de diagnstico, prognstico e teraputica,

    que consistia em massagens, banhos, ginsticas, dietas, sangrias, ventosas,

    vomitrios, purgativos, calmantes, ervas medicinais e medicamentos minerais

    (Coren, Histria da Enfermagem).

    O perodo cristo foi marcado por um cuidado especial com os pobres e

    enfermos, o que contribuiu para o desenvolvimento das prticas de

    enfermagem. A Igreja recolhia os enfermos s diaconias (casas particulares) e

    oferecia assistncia a todos os tipos de necessitados. A prtica da enfermagem

    teve seu desenvolvimento intensificado durante perodos de guerra,

    especialmente com o trabalho de Florence Nightingale em 1854, na Inglaterra,

    e com Ana Nri no Brasil, entre 1864 e 1870. Em todos estes perodos a

    abnegao, o esprito de servio e a obedincia eram considerados atributos

    desejveis do cuidador, dando desde o incio uma conotao enfermagem

    no de prtica profissional, mas de sacerdcio (Coren, Histria da

    Enfermagem).

    A regulamentao da prtica da profisso, entretanto, foi construda

    lentamente. Em 1955, a Lei Federal n 2604 a primeira com o objetivo de

    regular o exerccio da enfermagem profissional no Brasil, definindo as

  • 16

    categorias autorizadas a realizar atividades de enfermagem no pas. Nesta

    poca ainda no era admitida a profisso de tcnico de enfermagem, existindo

    outras categorias como: auxiliar de enfermagem, obstetriz, parteira, parteira

    prtica, enfermeiros prticos ou prticos de enfermagem (Brasil, Lei n 2604 de

    17 de setembro de 1955).

    Havia neste perodo uma expectativa de que as categorias profissionais

    de enfermagem fossem organizadas e regulamentadas; entretanto, a histria

    nos mostra que a lei no foi suficiente para evitar o crescimento desordenado

    dos profissionais. Em 1983, 70% dos atendentes de enfermagem no

    possuam formao adequada. Estes atendentes eram leigos, formados por

    cursos-relmpago em igrejas, centros comunitrios ou mesmo hospitais, muitas

    vezes sendo recrutados entre os trabalhadores da rea da limpeza e cozinha.

    Trs anos depois, a Lei n 7498/86 novamente buscou regulamentar o

    exerccio da profisso, reconhecendo apenas as categorias de enfermeiros,

    tcnicos e auxiliares de enfermagem. Foi estipulado um prazo de 10 anos para

    a qualificao dos atendentes, perodo em que estes deveriam se transformar

    em auxiliares ou tcnicos de enfermagem, sem o que no seriam reconhecidos

    como profissionais (Brasil, Pequena Cronologia da Formao Profissional da

    Equipe de Enfermagem).

    importante ressaltar ainda que, em 1999, o governo brasileiro admitia

    a existncia de 225 mil trabalhadores da rea trabalhando em servios de

    sade como atendentes de enfermagem sem a devida qualificao. Com o

    objetivo de humanizar o atendimento, prover assistncia sade sem riscos

    para os usurios e modernizar as instituies formadoras de recursos humanos

    em sade, o governo cria o Profae (Projeto de Profissionalizao dos

  • 17

    Trabalhadores da rea de Enfermagem). Este projeto, feito a partir de contrato

    de emprstimo com o Banco Interamericano de Desenvolvimento, teve como

    objetivo habilitar 225 mil trabalhadores como auxiliares de enfermagem,

    oferecer a complementao de estudos a 90 mil auxiliares de enfermagem para

    habilit-los como tcnicos e ainda promover a escolarizao de 95 mil

    trabalhadores que no haviam concludo o ensino fundamental (Brasil, Profae:

    Ao, Metas e Resultados).

    Em 2003, o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), atravs da

    Resoluo n 276, resolve conceder apenas Inscrio Provisria aos auxiliares

    de enfermagem. Estes profissionais teriam o prazo de cinco anos para

    comprovar a continuidade dos estudos no curso tcnico ou na graduao, sem

    a qual no poderiam continuar a exercer sua prtica profissional. Esta

    Resoluo foi revogada quatro anos depois, mas levou, na poca, um grande

    nmero de auxiliares a buscar os cursos de complementao profissional, com

    o objetivo de habilitar-se como Tcnicos em Enfermagem.

    Neste perodo entre 2004 e 2007 trabalhamos como professores no

    curso de Tcnico em Enfermagem e recebamos muitos alunos que buscavam

    a complementao da qualificao profissional, seja atravs dos recursos do

    Profae, seja por recursos prprios. Isto nos possibilitou o contato com alunos

    de diferentes faixas etrias, com formao acadmica e experincia

    profissional bastante diversas. Tornou evidente o contraste entre a postura dos

    alunos que iniciavam na rea de enfermagem e dos alunos que vinham buscar

    a complementao da qualificao, que muitas vezes haviam se formado

    dcadas antes e atuavam desde ento. Assim, podemos dizer que este

    momento especfico na histria da enfermagem no Brasil, em que profissionais

  • 18

    h muito tempo no mercado voltavam formao acadmica, favoreceu a

    identificao das diferenas de posturas entre os que pretendiam atuar como

    profissionais da enfermagem e os que j o faziam h tempos. Este contraste

    salientou a necessidade de aprofundar os estudos sobre como se d o incio do

    contato com a prtica e que sentimentos e transformaes este contato

    promove no mundo interno dos estudantes.

    O presente trabalho tem como objetivo compreender aspectos

    emocionais de estudantes do curso Tcnico de Enfermagem ao entrarem

    contato com a prtica e, para isso, importante explicitar as diferenas nas

    atividades que cada uma das trs categorias profissionais desenvolve. Esta

    no uma tarefa simples, j que, tanto na legislao quanto na prtica, os

    traos que marcam estas diferenas no esto bem claros.

    1.1.2 Os profissionais da enfermagem:

    Em 1986, a lei n 7.498 regulamenta o exerccio da enfermagem e

    declara que as atividades realizadas pelos enfermeiros seriam, resumidamente:

    direo dos rgos e chefia das unidades de enfermagem;

    superviso dos servios tcnicos e auxiliares;

    planejamento, execuo e avaliao dos servios de assistncia de

    enfermagem;

    cuidados diretos a pacientes graves com risco de vida;

    participao no planejamento, execuo e avaliao dos programas de

    sade pblica.

  • 19

    O tcnico de enfermagem, segundo a referida lei, teria como atividades

    principais:

    participar da programao da assistncia de enfermagem;

    participar da superviso do trabalho de enfermagem em grau auxiliar;

    executar as atividades de assistncia de enfermagem (exceto as

    privativas do enfermeiro).

    Ressaltamos que o texto da lei menciona mas no esclarece quais

    atividades de assistncia seriam estas. Ainda de acordo com a mesma lei, o

    auxiliar de enfermagem seria responsvel por exercer atividades de nvel

    mdio, de natureza repetitiva, como:

    observar, reconhecer e descrever sinais e sintomas;

    executar aes de tratamento simples;

    prestar cuidados de higiene e conforto ao paciente.

    No ano seguinte, o decreto n 94.406/87 traz uma modificao nas

    funes do tcnico de enfermagem, que passam a ser: assistir ao enfermeiro

    em suas atividades e executar as atividades de assistncia de enfermagem;

    mais uma vez, sem esclarecer a quais atividades se refere. A funo do

    auxiliar, no mesmo decreto, seria tambm executar as atividades de

    assistncia de enfermagem, o que denota uma sobreposio de funes do

    tcnico e do auxiliar. As atividades deste ltimo so apresentadas como:

    preparar o paciente para consultas, exames e tratamentos;

    observar e descrever sinais e sintomas;

    fazer curativos;

    colher material para exames;

    ministrar medicamentos por via oral e parenteral;

  • 20

    fazer controle hdrico;

    aplicar oxigenoterapia, nebulizao, enteroclisma2, enema3 e calor ou

    frio;

    executar tarefas referentes conservao e aplicao de vacinas;

    efetuar o controle de pacientes e de comunicantes em doenas

    transmissveis;

    circular em sala de cirurgia e, se necessrio, instrumentar;

    executar atividades de desinfeco e esterilizao;

    prestar cuidados de higiene e conforto ao paciente e zelar por sua

    segurana;

    alimentao ou auxlio alimentao;

    zelar pela limpeza e ordem do material, de equipamentos e de

    dependncias de unidades de sade;

    orientar os pacientes na ps-consulta, quanto ao cumprimento das

    prescries de enfermagem e mdicas;

    participar dos procedimentos ps-morte;

    Costa (2003), a partir de depoimentos de tcnicos de enfermagem da

    Baixada Santista, identificou que o fazer que executado pelo tcnico de

    enfermagem o mesmo fazer aplicado pelo auxiliar de enfermagem e, devido a

    este fato, as atividades desenvolvidas por ambos tornam-se as mesmas

    (Costa, 2003, p. 53). Peduzzi e Anselmi (2004) efetuaram um estudo com o

    objetivo de identificar e analisar as diferenas no trabalho desenvolvido por

    auxiliares e tcnicos e concluram que no h diferenas prticas nas

    2,3

    Procedimentos nos quais se introduz soluo no reto e clon para que a atividade intestinal seja estimulada e para que seja provocado o esvaziamento da parte inferior do intestino.

  • 21

    atividades e, portanto, ambas categorias profissionais desenvolvem o mesmo

    trabalho.

    A partir da anlise das atividades realizadas pelas diferentes categorias

    profissionais possvel perceber que a natureza da relao entre enfermeiro e

    paciente difere da relao deste com o tcnico ou auxiliar. O enfermeiro est

    ciente do que ocorre com cada paciente, supervisiona tcnicos e auxiliares, nos

    casos mais graves d atendimento direto ao paciente, mas, na maior parte do

    tempo, permanece em contato apenas indireto com este. Os tcnicos e

    auxiliares de enfermagem esto presentes de forma mais direta e intensa, pois

    ministram os cuidados bsicos e passam mais tempo prximos aos pacientes,

    conhecendo seus nomes, algumas vezes sua histria e seus sentimentos.

    Portanto, neste trabalho, sempre que mencionarmos as funes dos

    tcnicos de enfermagem estaremos nos referindo s atividades descritas acima

    como sendo prprias do auxiliar. Primeiramente porque as funes de ambos

    parecem sobreporem-se e, em segundo lugar, por ser em texto legal a

    descrio mais detalhada e prxima do que faz um tcnico de enfermagem em

    sua prtica cotidiana.

  • 22

    1.2 Dificuldades na prtica da enfermagem e possibilidades de

    mudanas

    1.2.1 Dificuldades encontradas pelo profissional da sade:

    Muitos estudos vm sendo dedicados s condies de sade fsica e

    mental dos trabalhadores da rea da sade e s dificuldades enfrentadas por

    eles em suas prticas profissionais. Repetidamente encontram-se os mesmos

    resultados: os profissionais da sade esto em sofrimento. Um dos objetivos

    deste trabalho compreender melhor qual este sofrimento, como se

    configura, em torno do que se organiza, para que no futuro possam ser

    tomadas medidas de preveno, possivelmente ainda na formao do

    estudante. Dentre os diversos trabalhos presentes na literatura com objetivo de

    descrever e compreender o sofrimento do profissional da sade, citamos

    alguns que podem contribuir mais diretamente com a proposta deste estudo.

    Nogueira-Martins (2003) escreve um interessante artigo sobre a sade

    mental dos mdicos e afirma que, embora cada profisso conserve suas

    prprias caractersticas, alguns aspectos das profisses da rea da sade so

    semelhantes, por exemplo entre mdicos e enfermeiros. Seu trabalho pode,

    portanto, enriquecer a compreenso do sofrimento dos demais profissionais da

    sade. O autor faz referncia a inmeras gratificaes psicolgicas inerentes

    profisso mdica, que a tornam muito atraente e gratificante, como: poder de

    aliviar a dor e o sofrimento, curar e prevenir doenas, salvar vidas, ensinar,

    aconselhar, educar, receber reconhecimento e gratido, etc. Comenta que, no

    entanto, h um grau de idealizao que pode gerar altas expectativas e estas,

  • 23

    no correspondidas, tendem a produzir decepes e frustraes significativas.

    Estes aspectos so facilmente identificados tambm nos tcnicos de

    enfermagem.

    O autor afirma que uma das caractersticas inerentes tarefa mdica

    um ambiente profissional formado por intensos estmulos emocionais

    relacionados ao adoecer. Dentre estes estmulos, ele cita: o contato freqente

    com a dor e o sofrimento; o contato com a intimidade fsica e emocional; a

    necessidade de lidar com pacientes difceis, queixosos, rebeldes, hostis,

    reivindicadores, deprimidos, autodestrutivos, no aderentes ao tratamento, etc.;

    ter de lidar com as incertezas e limitaes do conhecimento mdico e do

    sistema de sade quando as expectativas dos pacientes e familiares desejam

    certezas e garantias.

    Em estudo anterior (Nogueira-Martins, 1994), realizado com mdicos

    durante o curso de residncia, o autor apontou que as principais fontes de

    dificuldades encontradas pelos residentes foram:

    a quantidade de pacientes;

    a comunicao com pacientes de baixo nvel socioeconmico e cultural;

    pacientes hostis e/ou reivindicadores;

    pacientes que vm a falecer;

    pacientes com alterao no comportamento;

    comunicaes difceis como as de situaes graves ou morte;

    medo de contrair infeces durante o exerccio da funo;

    medo de cometer erros;

    exigncias internas de ser um mdico que no falha.

  • 24

    Estes fatores chamam-nos a ateno por todos estarem relacionados,

    direta ou indiretamente, com o tema da impotncia, do limite, do que no se

    pode fazer ou impedir. Os mdicos residentes em questo pareceram

    encontrar dificuldades em aceitar que no eram capazes de atender a todos os

    pacientes; que tinham dificuldades de comunicar-se com eles; que no podiam

    salvar a todos ou compreender a todos; que poderiam errar, que cometem

    falhas e, inclusive, que so vulnerveis s mesmas doenas que tanto tentam

    curar. Todas estas situaes remetem quilo que no podem fazer, sua

    limitao pessoal, profissional e, em ltima instncia, prpria finitude.

    possvel imaginar que preocupaes como estas esto presentes no s nos

    mdicos residentes, mas tambm nos enfermeiros, tcnicos e auxiliares de

    enfermagem e, possivelmente, em outras profisses ligadas sade. Estes

    resultados parecem indicar uma relao entre a constatao da limitao

    pessoal e profissional e o surgimento de dificuldades, angstia e estresse,

    tema que merece estudos mais aprofundados.

    Nogueira-Martins (2003) tambm afirma que o processo de adaptao a

    estas dificuldades pode tomar diferentes caminhos dependendo dos

    mecanismos e recursos defensivos utilizados pelo indivduo. Uma das

    possibilidades a construo de uma couraa impermevel s emoes e

    sentimentos (p. 63), que pode ser traduzida como aparente frieza no contato

    com os pacientes e pessoas de modo geral. Essa situao bastante

    freqente atualmente na relao mdico-paciente e podemos nos perguntar

    como um profissional que escolheu e se preparou para trabalhar com o cuidado

    do outro pode chegar a ter atitudes at mesmo contrrias ou no mnimo,

    bastante distantes ao seu objetivo inicial.

  • 25

    Para o autor, ao evitar o contato e reflexo sobre as limitaes do

    exerccio profissional, criam-se expectativas irrealsticas sobre si, com o

    desenvolvimento de atitudes arrogantes e aparentemente insensveis. A ironia

    e o humor sarcstico tambm so apontados como dificuldades em lidar com

    os sentimentos oriundos da profisso:

    O desenvolvimento crescente de um humor negro atravs de uma linguagem

    irnica, amarga e do uso de um jargo onde predominam rtulos depreciativos,

    revela, em realidade, uma incapacidade de lidar com as frustraes, tristezas e

    vicissitudes da tarefa profissional. Traduz, basicamente, a ausncia de um

    repertrio de recursos mais amadurecidos para lidar com os sentimentos de

    vulnerabilidade e impotncia diante da vida. (Nogueira-Martins, 2003, p. 64).

    Estes resultados parecem-nos relevantes pois so muito semelhantes

    aos comportamentos observados em nossos alunos: idealizao e expectativas

    irrealsticas nos alunos iniciantes e ironia, amargura, irritao nos alunos que j

    possuem experincia profissional. Resultados como estes realam a

    importncia de aprofundarem-se os estudos sobre a relao existente entre a

    idealizao e a imagem onipotente do profissional da sade e o

    comportamento irnico, ctico, amargo e distante adotado por muitos

    profissionais. O autor defende ainda que as medidas preventivas devem estar

    voltadas formao do profissional, incluindo disciplinas de dimenso

    psicolgica nos currculos da formao mdica. Este assunto ser melhor

    discutido mais adiante.

    Outro estudo interessante o realizado por Beck (2001), que em sua

    tese de doutorado buscou compreender melhor o sofrimento psquico

    vivenciado pelo profissional da rea de enfermagem. Ela empreendeu este

    estudo atravs de uma extensa coleta de dados que incluiu: observao no

  • 26

    participante, entrevistas semi-estruturadas e formulrio de anlise de sinais

    vitais dos profissionais antes e depois do perodo de trabalho. Teve como

    sujeitos 46 profissionais entre enfermeiros, tcnicos e auxiliares de

    enfermagem de dois hospitais do interior do Rio Grande do Sul.

    A autora constata que os profissionais esto vivenciando sofrimento.

    Observa tentativas de lidar com este sofrimento atravs de mecanismos de

    defesa como a negao e a sublimao. Os profissionais pareciam negar seu

    sofrimento, dando-lhe um ar de naturalidade, como se tudo fizesse parte da

    rotina de trabalho. Isso pde ser percebido atravs de expresses como: isso

    natural na unidade, faz parte da rotina e um morre e o outro vem. Alm

    disso, a autora acrescenta que o fato de os trabalhadores usarem o pronome

    tu em vez de eu para referirem-se aos prprios sentimentos sinaliza

    aspectos desta negao e distanciamento. Beck (2001) chama a ateno para

    a banalizao do sofrimento observada e que parece estar sendo utilizada

    como um recurso de defesa.

    Costa e Lima (2005), em seu estudo sobre como o profissional da

    enfermagem vivencia o luto frente morte de seus pacientes (crianas e

    adolescentes), perceberam que o estabelecimento de vnculo entre profissional

    e paciente inevitvel. Ainda que alguns profissionais tentassem envolver-se

    emocionalmente o mnimo possvel, sob o imperativo de serem profissionais,

    muitos sentiam a morte do paciente como se fosse de algum de sua prpria

    famlia. Os resultados mostraram que acompanhar o processo de morte e

    morrer dos pacientes provocou sentimentos de frustrao, desapontamento,

    derrota, tristeza, pesar, cobrana, pena e d. Atravs da pesquisa foi possvel

    identificar tambm que alguns profissionais no estavam vivenciando o

  • 27

    processo natural de luto, pois acreditavam que agindo com uma postura mais

    tcnica evitavam que suas tarefas fossem prejudicadas pela emoo. Para

    estes, procurar ajuda seria uma demonstrao de fraqueza, e acreditavam que

    vivenciarem sozinhos o sofrimento fazia parte da profisso.

    As autoras observam que os profissionais receberam pouco preparo

    para trabalhar as situaes de perda e acabavam por realizar suas tarefas e

    buscar ajuda de forma solitria. Notam que os profissionais de enfermagem

    entrevistados esto vivenciando sofrimento e precisando de ajuda. A concluso

    a que chegam que mudanas devem ocorrer a partir das instituies de

    formao.

    As mudanas precisam ocorrer simultaneamente nas escolas e nas instituies

    hospitalares, ou seja, as escolas deveriam preparar seus alunos para atuarem

    com a vida e a morte nos hospitais, enquanto que as instituies hospitalares

    poderiam, com o auxlio da educao permanente, ajudar os profissionais a

    realizarem reflexes sobre o luto. (Costa & Lima, 2005, p. 157).

    Em diversos trabalhos foi possvel constatar que no discurso de

    profissionais da enfermagem ser profissional muitas vezes aparecia como

    sinnimo de no se envolver emocionalmente. Isso pde ser percebido no

    estudo empreendido por Filizola e Ferreira (1997) com o objetivo de verificar o

    que os profissionais de enfermagem (enfermeiros, auxiliares e atendentes)

    pensam sobre o envolvimento emocional do profissional com o paciente. As

    autoras esperavam encontrar nos profissionais enfermeiros, em virtude de um

    tempo maior dedicado educao formal, uma postura mais amadurecida, que

    inclusse um envolvimento genuno com o paciente ainda que com limites que

    garantissem seu bem-estar emocional. Surpreenderam-se ao constatar um

    discurso que defende claramente o no-envolvimento, com a justificativa de

  • 28

    que envolver-se doloroso, traz mais um problema a resolver e atrapalha o

    servio. Entre os auxiliares de enfermagem, o resultado observado foi

    semelhante. Eles tambm pareciam adotar uma poltica de no-envolvimento,

    alegando, alm dos motivos j expostos pelos enfermeiros, que isso poderia

    atrapalhar sua vida extra-hospitalar.

    Entre os atendentes de enfermagem houve algumas diferenas. Por um

    lado, metade dos atendentes manifestou opinies que confirmavam a poltica

    do no-envolvimento j observada entre enfermeiros e auxiliares. Entretanto, a

    outra metade dos atendentes afirmou ser o envolvimento essencial, inevitvel e

    mesmo benfico relao de cuidado. Alguns relatos de atendentes incluam

    ainda uma preocupao com os limites deste envolvimento, mostrando-se

    capazes de um vnculo mais maduro, no qual havia aproximao e afastamento

    em uma medida satisfatria, como mostram as falas: o paciente precisa de um

    carinho profissional porque ele carente, mas sem deixar ele confundir e

    misturar as coisas; se eu no me emocionar no vou conseguir atender bem

    e se no usarmos o lado emocional fica como se no lidssemos com pessoas

    e sim com mquinas (Filizola & Ferreira, 1997, p. 13).

    As autoras, buscando compreender os motivos que justificam estas

    posturas, levantam duas possibilidades. A primeira seria que o fato de os

    atendentes estarem mais prximos dos pacientes pode justificar seu maior

    envolvimento com eles, uma vez que durante procedimentos dirios de cuidado

    o paciente tem oportunidades de conversar e se vincular com o profissional. O

    segundo fator a possibilidade de, por terem recebido uma menor carga

    horria de estudo formal de enfermagem, os atendentes no teriam aprendido

    a controlar suas emoes. Neste caso, parece-nos que os profissionais

  • 29

    estariam utilizando-se mais de seu prprio bom senso e de recursos internos

    para lidar com o outro e estariam menos influenciados pela poltica do no-

    envolvimento notada nos outros nveis profissionais. Esta possibilidade torna-

    se importante porque nos faz questionar o papel que a educao formal em

    enfermagem tem desempenhado e que valores ou conceitos tem transmitido a

    seus alunos.

    A enfermagem executa um trabalho cansativo e desgastante devido

    convivncia constante com a dor e sofrimento dos pacientes. Quando uma

    pessoa decide ingressar nesta rea, entretanto, a conscincia destas

    dificuldades bastante restrita, como mostra um estudo sobre as concepes

    de acadmicos sobre o que ser enfermeiro (Rosa & Lima, 2005). As autoras

    constataram que os alunos do primeiro semestre da graduao em

    enfermagem possuem uma viso vaga e idealizada do trabalho deste

    profissional, referindo-se apenas dimenso humanitria, acompanhada de

    idias de doao, cuidado e abnegao, como possvel verificar em

    definies como: ser enfermeiro ser cuidador vinte e quatro horas por dia e

    preocupar-se em viver plenamente como cuidador; uma profisso que

    necessita disponibilidade, amor e disciplina (p.127). As autoras citam tambm

    a comparao do enfermeiro com anjos e super-heris.

    Diante de tal idealizao possvel imaginar que estes alunos tendem a

    se decepcionar, aps conviverem com a realidade do cotidiano onde nem

    sempre podem curar e salvar. Esta situao aponta para a necessidade de se

    preparar melhor os alunos, tanto no sentido de esclarecer melhor seu papel

    quanto, principalmente, ajud-los a entrar em contato, compreender e lidar

  • 30

    mais adequadamente com seus sentimentos oriundos da prtica. Isso,

    entretanto, no parece ser o que acontece.

    1.2.2 Deficincias na formao dos profissionais da sade:

    Quando o assunto a formao do profissional da rea da sade, vem-

    nos mente uma conversa informal com um amigo, na poca finalizando o

    curso de residncia mdica numa das maiores e mais conceituadas escolas de

    medicina da cidade de So Paulo. Falvamos a respeito das aulas que

    ministrvamos no curso Tcnico em Enfermagem, especificamente as

    reflexes sobre a morte e as tentativas de preparao dos alunos, ajudando-os

    a refletir sobre o significado de acompanharem processos de morte e morrer.

    Para nossa surpresa, disse ele: Depois de seis anos cursando Medicina e

    quase trs anos cursando a residncia, sabe quantas aulas tive sobre a morte?

    Nenhuma. Esta no parece ser uma experincia isolada, mas ao contrrio,

    vem sendo corroborada pelas pesquisas sobre a formao do profissional da

    sade.

    Num estudo sobre o preparo dos acadmicos de enfermagem para

    vivenciarem o processo morte-morrer (Bernieri & Hirdes, 2007), ficou

    demonstrado que os alunos no esto preparados para vivenciar a morte de

    seus futuros clientes em funo da ausncia de oportunidades de discutir tal

    tema na graduao. Os alunos relatam que durante o curso maior nfase

    dada s tcnicas de enfermagem e aos cuidados com o corpo fsico, ficando

    uma lacuna quanto ao cuidado psicolgico que deveria ser oferecido aos

    pacientes e seus familiares. O estudo mostrou que os graduandos desejam

  • 31

    prestar atendimento mais humanizado e integral, mas sentem dificuldades em

    lidar com a situao, no sabendo como abordar os familiares e menos ainda

    como lidar com os prprios sentimentos (Bernieri & Hirdes, 2007).

    Kovcs (2003), h vinte anos estudando o tema da morte,

    especialmente no que tange ao profissional em contato com ela, chega a

    concluses parecidas. A autora afirma que o contexto hospitalar convencional

    no incentiva uma discusso sobre como lidar com o sofrimento fsico e

    psquico dos pacientes gravemente enfermos. O contato com a dor e a morte

    traz aos profissionais a vivncia de suas prprias fragilidades, medos e

    incertezas, os quais, na maior parte das vezes, no encontram uma

    oportunidade de compartilhar. Dessa forma, os sentimentos precisam ser

    abafados, negados, j que sua presena sentida como capaz de prejudicar a

    eficcia dos cuidados. A autora chama a ateno para a prevalncia da

    depresso nos profissionais da sade e relaciona-a com os lutos mal-

    elaborados. Acredita que grande nmero de profissionais adoecem em funo

    de uma excessiva carga de sofrimento sem possibilidade de elaborao.

    Segundo ela, assim como nos hospitais, os cursos de Medicina e Enfermagem

    tm priorizado os procedimentos tcnicos em detrimento de uma formao

    mais humanista.

    Os cursos de formao dos profissionais da rea da sade s recentemente

    tm aberto espao para discusso do tema da morte e dos cuidados no fim da

    vida. Em muitos casos, durante os estgios e os primeiros anos da prtica

    hospitalar, os jovens profissionais so ensinados a controlarem seus

    sentimentos e a no se envolverem com seus pacientes. (Kovcs, 2003, p. 32).

    As observaes de Kovcs (2003) coincidem com os resultados

    encontrados no estudo j citado de Filizola e Ferreira (1997) quanto ao

  • 32

    ensinamento do no-envolvimento pelos cursos de formao. Acreditamos que

    exigir de um aluno o controle de seus sentimentos sem dar oportunidade para

    que ele os reconhea, aceite e encontre formas de lidar com eles parece ser

    um meio fcil de propiciar defesas inapropriadas como a negao, o que

    condena o estudante a um sofrimento solitrio e sem perspectivas de

    elaborao. Quando falamos de deficincias na formao do profissional da

    sade no queremos dizer apenas ausncia de discusso sobre o tema da

    morte. Este sem dvida importante, porque rene em si mesmo as angstias

    ligadas limitao, impotncia, impossibilidades. Acreditamos, porm, que falta

    aos cursos de formao atuais uma preocupao em geral com a dimenso

    humana do aluno.

    Milharci (2004) desenvolve um estudo buscando refletir sobre a

    dimenso humana na formao do tcnico de enfermagem, entendendo

    dimenso humana como uma preocupao e valorizao das relaes

    humanas em oposio a uma formao prioritariamente tcnica. A autora faz

    uma minuciosa anlise sobre a trajetria histrica dos cursos de Auxiliar e

    Tcnico de Enfermagem no Brasil e identifica que, desde o incio da educao

    formal de nvel mdio em enfermagem, os contedos ministrados estavam

    voltados formao tcnica em detrimento da humana:

    Com a apresentao do histrico da legislao do Curso Auxiliar e Tcnico de

    Enfermagem, observamos o predomnio das disciplinas tcnicas em detrimento

    das humanas. (...) Diz o texto que tica e relaes humanas imprescindvel,

    porm no h tempo, com a carga horria reduzida, para manter a disciplina de

    Psicologia, a nica que oficialmente representa uma possibilidade de abertura

    da dimenso humana na formao do profissional de nvel mdio de

    Enfermagem. (Milharci, 2004, p. 20).

  • 33

    A autora credita essa nfase na formao tecnicista aos interesses

    governamentais que, por sua vez, recebem restries das agncias

    financiadoras de nossos projetos educacionais. Para ela, ao atender s

    exigncias de formao em massa do Banco Mundial, a capacitao em

    servio sobressai-se formao inicial e os currculos escolares passam a ter

    como ponto central os contedos, dificultando a formao crtico-reflexiva. A

    autora acrescenta que, quando a dimenso humana encontrada nos cursos,

    enfatiza a relao do aluno com o paciente, no levando em conta a relao do

    aluno consigo mesmo ou com a equipe de trabalho. Limitar a humanizao

    humanizao do cuidado com o paciente, para ela, gera angstia no aluno e

    necessidade de mudana neste quadro. Em suas consideraes finais, Milharci

    declara que as dimenses humanas so importantes, mas esto ficando mais

    no plano discursivo e no ocorrendo na prtica, o que vem corroborar os

    achados apresentados acima.

    Esperidio e Munari (2004), em seu estudo sobre as percepes do

    aluno de graduao em Enfermagem em relao sua formao como pessoa

    e profissional, ressaltam que os educadores e profissionais com que os alunos

    tm contato durante o curso pouco os estimulam a considerar o que pensam e

    o que sentem quando se deparam com a vulnerabilidade humana. Citam um

    aspecto interessante da relao professor-aluno-paciente, frisando que, se o

    enfermeiro no pode considerar seu aluno como um ser humano total, este

    dificilmente poder fazer isso com seu paciente. Afirmam que s podemos dar

    o que recebemos e que no se pode exigir que o aluno ou enfermeiro seja

    afetivo se ele no recebeu e no aprendeu a valorizar isso.

  • 34

    A partir de entrevistas com 21 estudantes do segundo ao quinto ano do

    curso de graduao, as autoras chegam a concluses interessantes. Em

    primeiro lugar, constatam como os demais autores que a formao do

    aluno est mais voltada para o que ela chama de questes profissionais, ou

    seja, conhecimentos tericos e prticos de tcnicas de enfermagem, muitas

    vezes atravs de aulas exaustivas, desarticuladas entre si e sem a relevncia

    de seu significado real. Encontram indcios de que a formao ocorre de forma

    desintegrada, como demonstra o comentrio de um aluno:

    como se algumas disciplinas preparassem para o desempenho de tarefas

    prticas e outras se preocupassem com a pessoa do aluno (...) s que na

    prtica que aparecem os medos e l a pessoa no trabalhada (...) no

    conseguimos integrar os conhecimentos. (Esperidio & Munari, 2004, p. 336).

    Outro resultado encontrado diz respeito ao que as autoras chamaram de

    holismo s na teoria, ou seja, uma percepo por parte dos alunos de que

    apesar dos ensinamentos dos professores e cobranas para que os alunos

    vissem seus pacientes de forma total, isto no acontecia dentro dos limites da

    escola:

    Acho que h muita preocupao na questo do paciente... voc trabalha o

    fsico do paciente, o psicolgico do paciente, mas o psicolgico do estudante,

    ele no trabalhado... cobrado da gente que cuidemos desses pacientes de

    maneira holstica, voc v-lo como um todo. S que aqui dentro (...) a maioria

    dos professores no vem a gente como um todo. (Esperidio & Munari, 2004,

    p. 336).

    Uma ltima fala, que revela certa fragilidade na formao emocional do

    curso de graduao, digna de ser citada:

  • 35

    O professor ensina bem, mas toda vez que vou para o campo, fico ansiosa (...)

    vrios blocos de estgio e cada um um terror pra mim (...) s vezes eu chego

    a passar mal (...) o curso no trabalha isso. (Esperidio & Munari, 2004, p.

    336).

    Evidentemente precisamos levar em conta o aspecto pessoal de tal

    declarao e no consider-lo como unicamente decorrente de falhas na

    formao profissional, nem como manifestao da maioria dos alunos.

    Entretanto, isso no invalida o fato de que, neste caso especfico, a aluna sente

    que no recebeu a ateno emocional que precisava. Certamente o curso no

    responsvel por eliminar seu medo ou suas ansiedades, mas acreditamos

    fazer parte das responsabilidades de um curso de formao um espao para

    que estes sentimentos sejam observados e compartilhados; onde se possa

    discutir e refletir sobre seus significados e, se for o caso, receber orientao e

    encaminhamento para outros atendimentos mais adequados. Acreditamos que

    espaos como este, onde a preocupao com a dimenso humana do

    profissional em formao central, possam ajudar os alunos a adquirirem

    conscincia de suas angstias, encontrarem por si mesmos e com a ajuda

    uns dos outros orientaes para suas incertezas e significados para suas

    vivncias.

    A necessidade deste tipo de preparo emocional apontada inmeras

    vezes nos estudos sobre o tema. Para Costa e Lima (2005) as propostas de

    melhora devem estar centradas nas instituies de formao, tanto nas escolas

    como nos hospitais. As escolas deveriam preparar os alunos para lidar com a

    vida e a morte nos hospitais e estes tambm poderiam contribuir por meio de

    programas de educao permanente.

  • 36

    Nogueira-Martins (2003) acredita que as medidas profilticas devem

    comear pela incluso da dimenso psicolgica na formao do estudante,

    sensibilizando-o quanto aos seus aspectos psicolgicos e suas reaes

    vivenciais durante o curso de graduao. Ele sugere a incluso da disciplina

    Psicologia Mdica nos cursos de Medicina, que propiciasse ao estudante

    espao para entrar em contato com os sentimentos surgidos diante dos outros

    seres humanos que comea a atender. Aponta que as estratgias principais

    deveriam ser a reflexo e troca de experincias, usando a vivncia como

    instrumento de aprendizado.

    Bernieri e Hirdes (2007) tambm fazem sugestes para modificar este

    quadro: a incluso da temtica da morte na grade curricular, a troca de

    experincias entre professores e alunos, a realizao de grupos para debater o

    assunto, um olhar mais atento dos professores e supervisores aos acadmicos

    que experienciam a morte em seus campos de estgio, etc. Concordamos com

    estes apontamentos e temos a proposta de, com este trabalho, contribuir para

    a compreenso das dificuldades vivenciadas no momento da formao, bem

    como oferecer um espao de reflexo e acolhimento das angstias destes

    estudantes, com o intuito de j ampliar a ateno dimenso humana em sua

    formao.

    1.2.3 Psicologia e Enfermagem: possibilidades de trocas:

    Diante do exposto at aqui parecem ficar claras a importncia de

    reavaliao das prticas de formao em Enfermagem e a necessidade de sua

    ampliao, de modo a incluir uma ateno maior ao auto-conhecimento,

    reflexo e cuidado com o emocional dos estudantes. A Psicologia a cincia

  • 37

    por excelncia que se presta a desenvolver conhecimentos sobre as emoes,

    bem como promover o auto-conhecimento e amadurecimento emocional.

    Assim, a Psicologia parece bem equipada a ajudar na preparao emocional

    dos estudantes da rea da enfermagem para sua prtica.

    Voltando nossa ateno agora Psicologia, as ltimas pesquisas

    nacionais realizadas pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) vm

    demonstrando que o exerccio profissional do psiclogo no pas ainda no

    explora suficiente ou adequadamente todo o potencial de conhecimentos que a

    Psicologia j tornou disponvel sociedade (Achcar, 2006). A atividade clnica

    ainda a principal ocupao do psiclogo e ocorre, em sua maioria, no

    contexto dos consultrios particulares, desenvolvendo atividade de psicoterapia

    a uma clientela adulta e de classe mdia. Dentro deste contexto, numa

    populao de mais de 180 milhes de habitantes, no nos parece possvel que

    todas as pessoas possam ser atendidas e auxiliadas quando precisarem ou

    desejarem ajuda teraputica.

    As pesquisas realizadas apontam a existncia de prticas inovadoras,

    mais adequadas realidade brasileira tanto em relao dimenso

    quantitativa da demanda quanto s caractersticas especficas das dificuldades

    encontradas em nosso pas. Entretanto essas transformaes incipientes ainda

    no parecem transformar a realidade da Psicologia no Brasil. Afirma Achcar

    (2006):

    A busca de alternativas ao fazer clssico (...) ainda no consolidou um novo

    padro de atuao que seja largamente dominante. Assim, nas pesquisas de

    tipo surveys realizadas, o peso estatstico dos que esto realizando trabalhos

    inovadores insignificante. (p. 304).

  • 38

    Uma vez que as necessidades so muitas, a populao imensa e os

    recursos financeiros poucos, faz-se necessrio criar novas maneiras de

    fazer com que a Psicologia chegue s pessoas e cumpra melhor seu papel

    social. Na busca de solues para tal situao, uma alternativa fundamental

    o investimento em trabalhos de preveno. Atualmente, a grande nfase

    no atendimento psicolgico est voltada para trabalhos em nvel de

    preveno terciria, quando as dificuldades j esto instaladas e requerem

    medidas de reabilitao, ficando em segundo plano os trabalhos no nvel de

    preveno secundria diagnstico e intervenes precoces e em

    preveno primria, ou seja, interveno anterior ao surgimento de

    dificuldades, que buscam evitar seu aparecimento.

    Esta disposio da situao acarreta um grande gasto com

    atendimentos de nvel tercirio, que so geralmente caros. Entretanto, mais do

    que uma medida econmica, o investimento em preveno deveria configurar-

    se como prioridade de qualquer profissional de sade, j que seu objetivo

    principal a preservao da sade e no apenas a cura de doenas. De

    acordo com Bleger (1984):

    A funo social do psiclogo clnico no deve ser basicamente a terapia e sim

    a sade pblica (...) O psiclogo deve intervir intensamente em todos os

    aspectos e problemas que concernem a psico-higiene e no esperar que a

    pessoa adoea para recm poder intervir. (p. 20).

    A possibilidade de levar uma ateno psicolgica a estudantes de

    enfermagem, que ainda no manifestaram ou que comeam a manifestar

    dificuldades, uma excelente oportunidade para que a Psicologia ponha em

    prtica outras modalidades de atendimento que no o clnico remediativo; para

    que desenvolva e investigue o alcance e as limitaes deste novo mtodo e

  • 39

    para que sua eficcia seja avaliada e desenvolvida. Alm dos objetivos de

    compreenso da experincia emocional do aluno ao entrar em contato com a

    prtica, este trabalho prope-se a criar um espao de reflexo dentro dos

    limites da formao profissional e, como tal, pode ser considerado uma

    interveno que agrega um carter preventivo. Entretanto, no se prope a

    empreender uma avaliao especfica do alcance e das limitaes desta

    prtica inovadora, o que certamente merece estudos mais sistematizados e

    aprofundados.

  • 40

    1.3 Fundamentao do trabalho com grupos

    A Psicologia uma cincia que teve seu desenvolvimento inicial pautado

    nas pesquisas e descobertas sobre o funcionamento psquico individual e,

    ainda hoje, tem grande parte de seus estudos orientados nesta direo. O ser

    humano, porm, um ser gregrio; suas vivncias se do dentro de ambientes

    sociais, so decorrentes destes ambientes e, ao mesmo tempo, as

    transformam e determinam. Dentro da Psicologia, o trabalho com grupos est

    em franca expanso, seja por solicitaes da sociedade de um tipo de

    atendimento mais adequado s suas necessidades, seja pelas vantagens

    repetidamente encontradas por aqueles que optam em trabalhar com esta

    tcnica.

    A palavra grupo, segundo Anzieu (1993), um termo que surgiu

    lentamente. Antes dele havia apenas a oposio entre indivduo e cidade. De

    acordo com Anzieu, o termo grupo surgiu nos idiomas francs, ingls e

    alemo apenas no final do sculo XVII, como um termo tcnico italiano das

    belas-artes, significando um conjunto de pessoas pintado ou esculpido. A

    palavra grupo est relacionada com um antigo vocbulo group, que significa

    lao ou n, e deriva do germano ocidental kruppa, que significa massa

    circular. Portanto, na etimologia da palavra grupo esto presentes as duas

    idias principais do conceito de grupo: a ligao que demonstra a coeso e

    o crculo, que representa o espao fechado (Anzieu, 1993).

    Ao longo da histria da Psicologia muitos trabalhos grupais foram

    empreendidos e diversas teorias foram desenvolvidas com o intuito de

    compreender os fenmenos manifestados no contexto grupal. Este trabalho

  • 41

    ter a teoria psicanaltica como referencial terico e, portanto, nos centraremos

    nas contribuies desenvolvidas pelas escolas inglesa, francesa e latino-

    americana de psicanlise de grupo. Antes disso, porm, apresentaremos

    algumas consideraes de Freud sobre o funcionamento e os dinamismos

    grupais.

    1.3.1 Algumas idias de Freud sobre o funcionamento dos grupos:

    O interesse da psicanlise pela psicologia dos grupos surge j em Freud

    em obras como Totem em Tabu (1913) e Psicologia de Grupo e Anlise do Ego

    (1921). Freud interessou-se pela influncia que um grande nmero de pessoas

    reunidas exerce num indivduo e, ainda que nunca tenha trabalhado

    diretamente com grupos, afirmou que as diferenas entre a psicologia individual

    e de grupo no so to marcantes quanto poderia parecer primeira vista.

    Em 1921, Freud afirma que sempre existe algo mais na vida mental de

    um sujeito, seja um objeto, um modelo, um oponente, que faz com que a

    psicologia individual seja desde o incio uma psicologia grupal. Na mesma obra,

    Freud faz referncia aos estudos de Le Bon sobre a mente coletiva e parece

    concordar com o fato de que quando uma reunio de pessoas se torna um

    grupo, este se configura como um novo ser, uma unidade diferente da soma

    de cada um dos indivduos que o compem. Esta unidade caracteriza o

    aparecimento de uma mente coletiva, que faz com que um indivduo aja no

    grupo de forma muito diferente da habitual. Freud assinala que, no grupo, o

    que dessemelhante em cada indivduo particular desaparece e as

    funes inconscientes, que so semelhantes em todos, ficam evidenciadas. Ele

  • 42

    deixa claro que o grupo possui condies que fazem diminuir a represso aos

    impulsos inconscientes.

    Citando os estudos de Le Bon, Freud descreve o grupo como mutvel e

    impulsivo; como portador de desejos imperiosos e urgentes e com grande

    sensao da onipotncia. Afirma ser o grupo crdulo, influencivel e sem

    capacidade crtica, o que confere a ele uma tendncia natural a obedecer e

    buscar o estabelecimento de um lder. Por outro lado, declara que a mente

    coletiva possui um outro aspecto, bem mais elevado; capaz de gnio criativo

    e produz grandes criaes, como a linguagem, o folclore, etc. Ressalta a

    caracterstica de sugestionabilidade do grupo, sua capacidade de fazer com

    que seus membros ajam sempre da mesma forma. Afirma que o grupo

    representa para o indivduo um poder ilimitado e perigo insupervel. a

    representao de toda a sociedade humana, detentora da autoridade e cujos

    castigos cada indivduo teme. Portanto, parece perigoso opor-se ao grupo e,

    por segurana, os indivduos preferem seguir o exemplo daqueles que os

    cercam (Freud, 1921).

    Em Totem e Tabu (1913) Freud acrescenta algumas idias

    interessantes, que colocam os dinamismos grupais como centrais na fundao

    da civilizao humana. Ele chama estas idias de mito cientfico, no qual cria

    algumas suposies que possam ser teis sua compreenso da organizao

    psquica humana. A partir das hipteses de Darwin sobre o incio da

    humanidade ter se organizado em torno de hordas pequenas, onde o homem

    mais velho era casado com tantas esposas quanto pudesse sustentar e as

    guardava de relaes sexuais com quaisquer outros homens, Freud sups que

    certo dia os irmos se reuniram e, pela fora do grupo, mataram e devoraram o

  • 43

    pai. Com o sentimento de culpa decorrente, criaram dois tabus principais: a

    proibio de matar o totem do grupo identificado com o pai e que mais tarde

    veio se transformar na proibio do assassinato de maneira geral e a

    proibio de possuir qualquer das mulheres do cl que com o tempo se

    converteu no tabu do incesto. Segundo Freud (1913), estas proibies arcaicas

    deram origem a todas as outras normas de convivncia e teriam fundado a

    possibilidade de vida civilizada. Estas idias iniciais sobre os dinamismos

    grupais de alguma forma ainda esto presentes nas teorias atuais que buscam

    compreender o funcionamento dos grupos e foram os fundamentos para

    grande quantidade de desenvolvimentos posteriores.

    1.3.2 A escola inglesa:

    Dentro da escola inglesa, destacamos o pensamento de dois autores

    principais: Foulkes e Bion, que desenvolveram seus trabalhos a partir de

    experincias com grupos teraputicos analiticamente orientados. Ainda que o

    foco deste estudo no seja uma experincia de grupo teraputico, os

    desenvolvimentos efetuados pelos autores contribuem significativamente com a

    compreenso dos fenmenos manifestados em todos os tipos de grupo e

    colaboram com um adequado entendimento do processo grupal descrito neste

    trabalho.

    Foulkes e Anthony (1965) afirmam que embora haja inmeras

    divergncias entre os analistas de grupo, existem alguns pontos de consenso

    sobre o que caracteriza uma psicoterapia grupal de orientao analtica. Para

    os autores, h trs caractersticas fundamentais a serem destacadas: a

  • 44

    primeira a fala livre, como um equivalente da livre associao na psicanlise.

    No grupo, a diferena que haver uma associao de grupo ou livre

    discusso circulante, que indica que as associaes ocorrero de forma livre

    entre os participantes, onde o pensamento de um influenciar e dar

    continuidade associao dos demais participantes. A segunda caracterstica

    que o material produzido pelo grupo ser analisado, ou seja, no apenas os

    processos do grupo sero parte integrante da atividade teraputica, mas

    tambm sua anlise. A diferena, no grupo, que os prprios participantes

    tambm formulam, estudam e interpretam o material, deixando a interpretao

    de ser prerrogativa do terapeuta. A ltima caracterstica fundamental, para

    Foulkes e Anthony (1965), que os temas abordados no so tratados apenas

    em seu contedo manifesto, mas em seu sentido latente, ou seja, a ateno

    est voltada ao contedo inconsciente revelado, o que caracteriza efetivamente

    a atividade de anlise.

    Os autores relacionam tambm alguns fatores que so especficos da