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Cinemas afrodiaspóricos contemporâneos: modos de ser e viver em crítica a ethos coloniais norte- hemisféricos LILIANE PEREIRA BRAGA * * Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP, doutoranda em História Social, bolsista CNPq.

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Cinemas afrodiaspóricos

contemporâneos: modos de ser e viver

em crítica a ethos coloniais norte-

hemisféricos

LILIANE PEREIRA BRAGA*

* Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP, doutoranda em História Social, bolsista CNPq.

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Este artigo apresenta expressões culturais negras de origens afro-brasileiro-

caribenhas como formas de comunicação e formas de representação que se contrapõem

a ethos norte-hemisféricos e a narrativas de perspectivas euro-ocidentais presentes nos

filmes “Como conquistar a América em uma noite” (Canadá-Haiti, 2004), de Dany

Laferrière, “Teorema” (Cuba, 2012), de Alberto Yoel Garcia e “O tempo dos orixás1”

(Bahia, 2014), de Eliciana Nascimento. Expressões do ser e estar no mundo

afrodiaspóricos compõem de forma privilegiada essas produções audiovisuais afro-

contemporâneas. Tradição oral, música, dança e gestualidade estão em evidência nas

narrativas em questão e se interligam às suas cosmovisões de modo a desconstruir a

temporalidade linear de produções biblio e videográficas de perspectiva euro-ocidental-

norte-hemisféricas, abrindo importantes sendas para usos de produções audiovisuais

como fonte de pesquisa histórica em caminhos decoloniais.

Fundamentada no grego, no latim e nas seis línguas europeias e imperiais da

modernidade (Mignolo, 2008, p. 301), a modernidade/colonialidade, que parte de

Europa2 e se estaduniza posteriormente, constitui forma de pensar, de ser, de viver, de

narrar e de representar em que a implementação de tempo linear-evolutivo figura como

imposição de narrativa única em detrimento de narrativas plurais.

Partindo de leitura à contrapelo da história do Caribe, perspectiva apresentada

por Reyna (2014) propõe subjetividade ali aflorada e observada em narrativas

audiovisuais de Caribe e Brasil via Bahia. Primeira construção colonial que a Europa

realiza fora do Ocidente (Reyna, 2014, p. 123), o Caribe representa a imbricação entre

modernidad temprana e modernidad tardía, por meio de escravismo, capitalismo e

colonialismo. Com sua aparição, uma luta entre potências capitalistas europeias se

instaura.

Noção de subjetividade gerada em sistemas de plantation se faz de forma

paralela à noção de resistência: a existência e persistência da escravidão e a busca de

sua extinção tem como resultado imediato à criação do que o autor chama de “pequenas

unidades e comunidades de autossubsistência”. Reyna se refere diretamente à

Revolução Haitiana, à “ousadia negra” a partir de subjetividade baseada em ideias de

1 Apesar do título do filme fazer referência às divindades iorubás (nação ketu), o panteão congo-angola está presente na narrativa, confluindo encontros interétnicos e de povos tradicionais (incluindo povos indígenas) próprios de afrodiásporas afro-brasileiro-caribenhas. 2 Artigos definidos que denotam a binariedade de gêneros são suprimidos neste artigo sempre que não comprometerem a inteligibilidade do texto (Cf. CERVERA & FRANCO, 2006).

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luta por igualdade, liberdade, autonomia e às revoltas que se seguiram em outras

colônias europeias em Caribe e América Latina. Tais “comunidades de

autossubsistência”, no entanto, tem se ressignificado e se atualizado no decorrer dos

séculos desde a 1ª etapa da modernidade, configurando sistemas culturais e sociais

complexos e, por meio de seus corpos-comunitários,

Deixaram marcas de seus regimes de energia e simbologia em ritmos,

literatura oral, instrumentos sonoros, contos, provérbios, festas e danças;

que emitiram subjetividades críticas em persistentes procedimentos de

rebeldia e que, sustentando a diferença colonial, hoje reconhecida,

respaldam viragem geopolítica e corpo-política da razão, potencializando

pensar em mundos pluriversais (ANTONACCI, 2015, p. 28).

Diuturnamente, cidadãos e cidadãs afro-brasileiro-caribenhos(as) confrontam a

modernidade/colonialidade e seu ethos pautado em perspectiva racional-iluminista a

partir de epistemologia excludente, racista e de concepção de história universal,

racional, linear, progressiva (Ibid., p. 29).

Em direção a temporalidades espirais-afro-brasileiro-caribenhas

As formas expressivas negras têm vínculo com o sistema religioso em culturas

tradicionais africanas e, nesse, verifica-se com a música negra um “processo

comunicacional onde o sentido é produzido em interação dinâmica com outros sistemas

semióticos – gestos, cores, passos, palavras, objetos, crenças, mitos” (Sodré, 1988,

pp.22-23) Em culturas negras, o ritmo está em primeiro plano e, por meio dele, atesta-se

uma espécie de posse do homem sobre o tempo: o tempo capturado é duração, meio de

afirmação da vida e de elaboração simbólica da morte, que não se define apenas a partir

da passagem irrecorrível do tempo. Cantar/dançar, entrar no ritmo é, segundo Sodré,

como ouvir os batimentos cardíacos.

Por meio de canto e dança, seres humanos se reintegram ao cosmos, do qual

nunca se dissociaram, na perspectiva filosófica da circularidade, do tempo cíclico, no

qual passado e presente estão unidos pelo tempo dos mitos (ontem) ao tempo presente

(hoje) (Ibid., pp. 22-23). A partir desse modus vivendi, culturas negras se opõem a

modos de ser de perspectivas cartesianas, que separam homem-natureza, vida-morte,

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bem-mal, razão-emoção, como é possível verificar nas produções de Dany Laferrière,

Yoel Garcia e Eliciana Nascimento, conforme se seguirá.

Uma relação integrativa do corpo com o território, com outros seres humanos e

também com a terra, os animais, os minerais, os vegetais permeia a cosmovisão

afrodiaspórico-caribenha-brasileira, recompõe a unidade natureza e cultura (Sodré,

2015, p. 207; Figueiredo & Araújo, 2013, p. 40). Corpo humano é santuário: no

conjunto de procedimentos cosmogônicos do grupo, no rito, o corpo encontra a sua

totalidade tornando-se ao mesmo tempo sujeito e objeto. A força (o axé, o moyo, o

gunzo) torna possível a atividade e o corpo, como a palavra, é um “objeto ativo”. Assim

se definem os objetos compostos de um amálgama de elementos heteróclitos (animais,

vegetais, minerais). O transe ou a incorporação seria uma ponte entre o individual e o

coletivo, entre o mito e o aqui e agora histórico (Sodré, 2015, p. 210). Desta análise é

possível depreender os princípios de comunitarismo, de “sou porque somos” de que fala

o provérbio bantu, em referência a povos extra-iorubás3 que protagonizam

manifestações culturais e religiosas afro-brasileiras e afro-caribenhas.

“O tempo dos orixás”, de Eliciana Nascimento, trata da história de Lili, criança

que vai visitar a ilha em que mora sua avó, na Bahia, e se depara com uma cobrança de

Iemanjá relacionada a uma tradição que está se extinguindo e que Lili é a responsável

por dar continuidade para que a vida da comunidade local possa se reequilibrar. Lili,

com a ajuda de Exu, reconhece o chamado e a matriarca da família a inicia na tradição.

No curta metragem, cenas da relação circular entre seres humanos/comunidade-

natureza-mundo invisível convidam telespectadores(as) a adentrar o pluriverso

(Mignolo, 2003) do candomblé. O patrimônio cultural que é transmitido por meio da

vivência iniciática é exemplificado na história da menina Lili que, guiada por ancestrais

e por “seus mais velhos”, como se usa dizer na linguagem do candomblé, tem uma

responsabilidade que assume junto da comunidade: o desenvolvimento humano, nessa

cosmovisão, passa pelos saberes coletivos, que só podem ser aprendidos pela vivência

(e não pela razão téorico-abstrata, tal qual saberes ocidentais). Fazendo uso da

definição de Sodré,

a comunidade de terreiro é esse repositório e núcleo reinterpretativo de um

patrimônio simbólico explicitado em mitos, ritos, valores, crenças, formas de

3 Caminhos decoloniais demandam críticas à postura nagocêntrica que partiu de parcela d intelectualidade acadêmico-euro-iluminista nas Américas.

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poder, culinária, técnicas corporais, saberes, cânticos, ludismos, língua

litúrgica e outras práticas sempre suscetíveis de recriação histórica, capazes

de implementar um laço atrativo de natureza intercultural (negros de etnias

diferentes) e transcultural (negros com brancos) (Ibidem, pp. 195-196).

Mas se os ensinamentos que a menina Lili obtém por meio da iniciação não

podem ser acessados pelos livros, como lidar com os desafios pelos quais passa o

candomblé nas últimas décadas, com tantas trocas simbólicas travadas entre a tradição

oral e os conhecimentos livrescos? Da perspectiva de Reginaldo Prandi, estaria em

curso um processo de transformação do candomblé de religião étnica de transmissão

oral em religião universal em razão da perda de sentido de mecanismos de aprendizado

oral e de transmissão da memória coletiva uma vez que a importância da palavra escrita

na sociedade extra-terreiro se impõe (Prandi, 2005, p. 34).

Assim como as reflexões realizadas por Prandi, entende-se aqui que não se

podem perder de vista dinâmicas e lutas de terreiros que contestam a perda de espaço da

vivência e da tradição oral para a imposição da cultura letrada – caso do Inzo Tumbansi,

em Itapacerica da Serra, que em 02 de abril realizou a 5ª edição de suas Conversas de

Terreiro com o tema “Redes sociais e tradições africanas: contribuição ou destruição?”.

A Conversa de Terreiro em questão reuniu pesquisadoras(es) e candomblecistas que

discutiram o uso de diferentes mídias (incluindo publicações impressas e novas mídias)

e concluiu que, desde o surgimento do candomblé no século XIX, o uso da escrita fez

parte da religião. O sentido da tradição oral no candomblé aqui abordado está para além

da questão da manutenção do segredo de que fala Prandi. Está relacionado

principalmente ao fortalecimento, manutenção e transmissão de força vital, o que

implica em presença física, não podendo ser feito à distância ou virtualmente

(lembrando que o som – que contém vibração – é condutor de axé que possibilita o

dinamismo da existência, cujo tempo se ordena no ritmo, como em sistemas gêge-nagô,

citados por Sodré, ou congo-angola).

Nesse sentido, a despeito da intensificação de uma mentalidade letrada por parte

de candomblecistas contemporâneos, tal mentalidade acaba por ser “equilibrada” com a

prática do candomblé, permitindo pensar em uma ação oposta a tratada nessa obra do

sociólogo: a ação do candomblé na temporalidade moderna-ocidental por ele referida.

Haveria, portanto, um movimento que poderia ser representado em uma forma espiral,

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porque contínuo e porque com pontos de conexão entre escrita-oralidade4 e, em alguns

momentos, essas duas formas de transmissão de conhecimento se separam, seguindo

caminhos paralelos. Os dois trajetos, de escrita e oralidade, nunca formariam o desenho

de uma linha única, mantendo o desenho em forma espiral.

A pesquisa desenvolvida por Prandi é pertinente a processos por que tem

passado o candomblé. Mas tão ou mais relevantes do que tais processos – abordados de

perspectiva sociológica – são os estudos desenvolvidos pelo autor em diálogo com

autores de outras disciplinas a respeito da cosmovisão africana que constitui religiões

afro-brasileiras e que não são ameaçados por temporalidades cartesianas do ocidente.

No 1º capítulo de seu livro “Segredos guardados – Orixás na Alma Brasileira”,

Reginaldo Prandi desenvolve um estudo sobre tempo, origem e autoridade no

candomblé. Ali, o autor adentra noções fundamentais da cosmovisão africana, a partir

da temporalidade circular da perspectiva do candomblé – que contém o princípio da

repetição, a crença na reencarnação, pensamento mítico, noções de aprendizado, saber,

poder e organização hierárquica que se vincula à experiência de vida e ao aprendizado

por meio do qual a autoridade religiosa e a hierarquia sacerdotal são fundamentais

(2005, p. 19).

Na lógica dessa temporalidade, cada atividade se cumpre no tempo que for

necessário: a atividade define o tempo e não o contrário (2005, pp. 22-23). Ou como

descreve John Mbiti, “o homem africano não é escravo do tempo; faz tanto tempo

quanto queira” (Mbiti apud Prandi, 2005, pp. 26-27). Por essa noção, entre os iorubás, o

ano se constituía pela repetição das estações (não havia meses). O nascer do sol iniciava

o dia e o momento de dormir o encerrava. Cada um dos dias da semana (ossé) era

dedicado a uma divindade: Ojô Awô, Ojô Ogum, Ojô Xangô, Ojô Obatalá – Ifá, Ogum.

E o mercado era o que regulava uma atividade essencial.

Mercados ou feiras eram realizados em cada aldeia ou cidade em um dos dias da

semana, todas as semanas ou a cada duas, três ou quatro semanas. O mercado era a

atividade fundamental para a sociabilidade iorubá, regulando o cotidiano e praticado

principalmente por mulheres (Ibidem, p. 28). Tais noções seguem presentes no

candomblé, com dias da semana dedicados a distintas divindades e com o lugar de

4 Distinguindo tradição oral de oralidade: a segunda como integrante da primeira, que inclui gestualidade, corporalidade e linguagens extra-oralidades racionalizadas.

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lideranças femininas preservado em diferentes aspectos, o que inclui a manutenção

cotidiana de recursos para aquisição e realização de rituais envolvendo grande

quantidade de matéria-prima e recursos humanos intra e extra-terreiro que contam com

as mulheres para o seu gerenciamento/administração.

Nesse ciclo em que a contagem do tempo se dava pelos diferentes períodos do

dia, a noite era demarcada pelo cantar do galo, demonstrando profunda ligação com os

ciclos da natureza e de seres humanos interligados a ela, a contagem dos dias se dava

em função de cada evento. Para o autor, a constatação é que há reminiscências da

concepção afro-iorubana de tempo no cotidiano dos candomblés (Ibidem, p. 29). A

vivência desta pesquisadora como praticante de religiões afro-brasileiras por cerca de 15

anos permite afirmar que sim. E que no cotidiano do povo-de-santo, nem sempre é feita

a distinção do que é iorubá, do que é bantu, do que é gêge. A troca das águas dos altares

dos orixás, que era feita na África iorubana uma vez por semana e que acabou por

nomear esse período temporal como “ossé” é assim chamada – “ossé” – em diferentes

casas de nação ketu e angola já frequentadas por esta pesquisadora.

Enquanto que para ocidentais o tempo é uma variação contínua, dimensão que

tem realidade própria, independente dos fatos, de tal modo que são os fatos que se

justapõem à escala do tempo - o tempo é o da precisão, que objetiva o cálculo, viabiliza

a projeção e fundamenta a racionalidade, tempo da ciência histórica e da modernidade,

para africanos tradicionais, tempo é uma composição dos eventos que já aconteceram ou

que estão para acontecer imediatamente (Ibidem, pp. 31-32). Citando Wole Soyinka, o

sociólogo aprofunda a noção de tempo cíclico africano, expandindo da compreensão

religiosa (quando se pensa em candomblé) para a cosmovisão: “o pensamento

tradicional opera não uma sucessão linear de tempo, mas uma realidade cíclica”

(Soyinka apud Prandi, 2005, p. 30). O tempo cíclico seria então o tempo da natureza,

tempo da memória, que não se perde, mas se repõe. O tempo da história, em

contrapartida, é o tempo irreversível, um tempo que não se liga nem à eternidade, nem

ao eterno retorno. O tempo do mito e o tempo da memória descrevem um mesmo

movimento de reposição: sai do presente, vai para o passado e volta para o presente -

não há futuro.

A religião é a ritualização dessa memória, desse tempo cíclico, ou seja, a

representação no presente, através de símbolos e encenações ritualizadas, desse passado

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que garante a identidade do grupo. No tempo da tradição, da não-mudança, da religião,

portanto, é o tempo que atua como fonte de identidade, reiterando no cotidiano a

memória ancestral (Ibidem, pp. 32-33). Tal memória ancestral está presente no

cotidiano de filhas e filhos de santo, a despeito de estarem dentro ou fora do espaço do

terreiro, permeando a vida dos bairros, cidades, estados onde candomblecistas habitam.

Na noção de tempo cíclico, nada é novidade. É sempre o passado que lança luz

sobre o presente e o futuro imediato. Conhecer o passado é deter as fórmulas de controle

dos acontecimentos da vida dos viventes, como analisado no filme O Tempo dos

Orixás, de Eliciana Nascimento. O passado mítico é narrado por odus do oráculo de ifá.

Cada odu corresponde a um conjunto de mitos e o babalaô5 cumpre com o papel de

guardião do passado e decifrador do presente (Ibidem, p. 41).

No curta-metragem cubano “Teorema”, que aborda o cotidiano de uma

comunidade de adolescentes secundaristas na Cuba da atualidade, o tempo da narrativa

perfaz o percurso de uma espiral, do corte de uma câmera para outra e na relação

estabelecida com enigmas/metáforas que aparecem e reaparecem, como é o caso do

teorema da aula de geometria que “suleia” o filme e da metáfora estabelecida com a

personagem relacionada ao ditado que diz (em Cuba, em Brasil, em diásporas) “o peixe

morre pela boca”: o aprendizado, a lição, se dá pela vivência e não pela abstração. O

tempo cíclico (tempo do mito/tempo presente) se apresenta sutilmente: girassóis junto à

porta de entrada da casa de Fará, (e)namorada do protagonista Cokie; a sopeira amarela

para Oxum (a divindade iorubá-nagô-lucumi6 do amor) presente na sala de sua casa, que

aparece em outro momento do filme, a cadeira de balanço de madeira que aponta para o

tempo/a hora/ o momento de embalar-se.

No candomblé e em religiões de origem negro-africana em geral, o tempo é o

tempo cósmico e não o tempo do relógio. Está associado à paciência, aos ciclos da

natureza, à sintonia com temporalidades para além de ponteiros ou dígitos, à ideia de

aprendizado, saber e competência. O conhecimento humano é entendido como o

resultado do transcorrer inexorável da vida, do fruir do tempo, do construir sua

biografia. Sabe-se porque se é velho, porque se viveu o tempo para aprender, algo que

5 O autor discorre sobre o desaparecimento da figura do babalaô no candomblé e do papel de pais e mães-de-santo incluírem o que, antes, seria função de tal sacerdote de origem iorubá. 6 Este último refere-se ao gentílico que, em Cuba, designa negros iorubás ou nagôs (LOPES, 2004, p. 398).

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não se isola da vida, mas processo que se realiza a partir de dentro, participativamente.

A importância dos ritos de passagem está preservada nas religiões afrodiaspóricas: cada

etapa corresponde ao compromisso com novas obrigações e ao alcance de novos

privilégios. Tudo está condicionado àquilo que o iniciado realmente é capaz de fazer.

Nunca se aprende tudo. Em sociedades afeitas aos ritos, atribuições profissionais que

passam de pai e mãe para filho(a), reafirmam que vida é repetição e respeito ao

conhecimento dos que chegaram antes, contrapondo-se à noção de aprendizado escolar,

pela qual a efetivação de aquisição do conhecimento tem que se dar de forma rápida,

racional e impessoal: o saber é premido pelo tempo do calendário. Na escola de

perspectiva euro-ocidental, há a tendência de que a figura de mestres e mestras –

depositários(as) da cultura viva – se esvaia (Ibidem, p. 42-43).

Nos filmes analisados - “Como conquistar a América em uma Noite”,

“Teorema” e “Tempo dos Orixás” -, em paralelo a análises resultantes da vivência do

cotidiano do candomblé por esta pesquisadora que é maganza7 em terreiro congo-

angola, iniciada para a nkisse Matamba8, verifica-se que conflitos apontados pelo autor

não são suficientes para diminuir o significado concreto e simbólico de processos

pautados em subjetividades iniciáticas. No candomblé, ciclos de aprendizados não se

encerram no recolhimento de raspagem de iyaôs/muzenzas e a permissão para a

adequação de tais processos é negociada junto das divindades, que mantêm conexão

com a continuidade da iniciação de filhas(os) de santo permanentemente, uma vez que

se mantêm a força vital contida na simbologia de assentamentos presentes na casa e a

divindade “nascida” na cabeça dessas(es) filhas(os). Pessoas mais velhas da

comunidade não têm seus saberes desprezados, não são tratadas como descartáveis,

conformando mesmo um contraponto ao que ocorre na sociedade mais ampla, para além

da comunidade de autossubsistência a partir de organização afro-religiosa. O professor

secundarista de “Teorema” respeita as palavras do avô com quem mora, avô que lhe

cura ferimentos utilizando-se de planta medicinal; Gegê aprende como navegar no país

do hemisfério norte guiado por aprendizados passados pelo tio; a criança Lili é educada

igualmente pela mãe e pela avó, que lhe guiam na vivência da espiritualidade/filosofia

da unidade cósmica.

7 Estágio subsequente ao de “noviça” (iniciada) na hierarquia de filhas(os)-de-santo rodantes, como é chamado quem “vira no santo” no candomblé. 8 Força energética relacionada à passagem entre o mundo dos vivos e dos mortos, aos ventos e tempestades.

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Afroepistemologia musicosmodançante

Corporalidade e gestualidade de corpos negros afrodiaspóricos, carregadas de

sentido provenientes do continente, mas reelaborados em diásporas, são parte

importante da cosmovisão apreendida das produções audiovisuais em questão. Quando

a iniciação de Lili passa por ritual representado por toque de atabaques realizados por

homens, que utilizam o aguidavi (vareta) para percutir o couro do tambor, e não as

mãos, e por dança realizada em formato circular, predominantemente por mulheres

dançando, na narrativa, há uma es(te)ti(li)zação do momento de sacralização do ritual de

Lili junto de sua ancestralidade, a dona do mar para os iorubás (representada por

Iemanjá no filme). Essa união corpo-matéria/energia-cosmos dá-se com e através da

música, por meio do ritmo transmitido pela percussão humana nos instrumentos

musicais elaborados a partir da transmutação de elementos dos reinos mineral e vegetal.

Essa cosmovisão (relação integrada entre seres humanos-natureza-cosmos) que marca

os modos de ser, viver e estar de povos afrodiaspóricos, é aludida por Kubik (1981) de

forma a elucidar distinções com modos de ser, viver e estar da cosmovisão cristã-

ocidental. Segundo o autor,

Uma diferença básica entre as culturas africanas e europeias no que diz

respeito à dança é a de nestas o corpo tender a ser usado como um único

bloco, enquanto na África negra os movimentos de dança parecem sair de

várias partes do corpo independentes entre si. Helmut Günter propôs o termo

“policêntrico” para caracterizar as danças africanas e afro-americanas e

realçou uma atitude corporal muito comum que designou por “colapso”

(Kubik, 1981).

Aspectos cinéticos intrinsicamente ligados aos sonoros e indissociáveis da vida

cotidiana compõem expressões afro-americanas como extensão de expressões africanas.

E, a partir de diferentes regiões estilísticas africanas tem sido possível localizar regiões

estilístico-culturais em diásporas afro-brasileiro-caribenhas. A ênfase no movimento da

pélvis, considerada um traço característico do estilo de dança do sul do Zaire e de

Angola, está mais presente na Bahia e no Rio de Janeiro do que em outras regiões do

Brasil, conforme atestam práticas culturais como vertentes do samba, a axé music e o

funk carioca. No Caribe, o tradicional son, o contemporâneo reggaton presente em

Cuba demandam policentralidades das ancas para baixo. Nas Américas, o nome dado à

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cultura Hip Hop tem origem na noção de “mexer os quadris”. Em “Teorema”, é

exatamente a expressão musical dessa cultura afro-caribenha-americana, o rap, que

compõe a trilha sonora.

Marcada por musicalidade, oralidade (que se apresenta em memórias expressas

em palavras, em corporalidades, gestualidades, expressões fisionômicas) e uma rica

atenção à fala, a cultura popular negra tem feito emergir trans-historicamente – em

história linear e em história espiral – elementos de um discurso diferente do

eurocentrado, formas de vida e tradições de representação outras (Hall, 2003, p. 342).

Os closes que evidenciam expressões faciais nas cenas finais de “Teorema” permitem

notar movimentos de nariz, movimentos de olhos e sobrancelhas, que,

afrodiasporicamente, permeiam a comunicação da população cubana em geral. O “dar

de ombros” de Lili quando quer dizer “eu nem ligo” marca um código decifrável para

quem vive e habita AfroBrasis, não importando a pertença racial. O carregar da

quitanda na cabeça por parte da mulher haitiana está em Afro-Américas; a dança de Fan

Fan ao ritmo do konpas está na sociabilidade de afro e de franco-haitianos(as).

Abordagens sobre som e tempo permitem aprofundar relações dessa parte

caribenho-brasileira da afrodiáspora com civilizações da África Ocidental, Equatorial e

Oriental, presentes nos filmes aqui apresentados. Entendendo ritmo como organização

do tempo do som, uma forma temporal sintética, que resulta de combinar as durações (o

tempo capturado) segundo convenções determinadas, o ritmo musical implica uma

forma de inteligibilidade do mundo, capaz de levar o indivíduo a sentir, constituindo o

tempo, como se constitui a consciência. O ritmo africano contém a medida de um tempo

homogêneo (a temporalidade cósmica ou mítica), capaz de voltar continuamente sobre

si mesmo, onde todo fim é o recomeço cíclico de uma situação (Sodré, 1998, p. 19).

Para além de um princípio filosófico, o ritmo imprime características presentes em

modos de falar, movimentar, gestualizar que irmanam cidadãs(ãos) negras(os)

brasileiras(os) ao Norte e Nordeste e pessoas negras caribenhas.

No filme “Como conquistar a América em uma noite” (Dany Laferrière),

Fanfan, o (velho) tio do (jovem) protagonista Gegê, convida as vizinhas para um jantar.

Ele é apresentado logo no início da narrativa como o homem que, no inverno da fria

(em noção de tempo para a ciência meteorológica ocidental e em noção sentimento-

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sensorial para a psique humana extra-ocidente9) Montreal, aquece as vidas de

canadenses com seu modo de ser e estar no mundo de episteme musicosmodançante.

Como metáforas do calor, a chama acesa do fogão e a sua forma cantante-dançante

durante o ato de cozinhar. Um dançar com meneios de pernas e quadris, de um corpo

policêntrico de que fala Kubik (1981), de uma atitude rítmica de que fala Sénghor

(2012), apresentando sua “dimensão visual da forma musical”, como aponta Sodré:

O ritmo da dança acrescenta o espaço ao tempo, buscando em

consequências simetrias às quais não se sente obrigada a forma musical no

Ocidente. Na cultura negra, entretanto, a interdependência da música com a

dança afeta as estruturas formais de uma e de outra, de tal maneira que a

forma musical pode ser elaborada em função de determinados movimentos

de dança, assim como a dança pode ser concebida como uma dimensão

visual da forma musical (Ibidem, p. 22).

Como na culinária-celebrativa de Fanfan e na cena já descrita do ritual por que

passa Lili em “O tempo dos Orixás”, a resposta dançada de um indivíduo a um estímulo

musical não se esgota numa relação técnica ou estética, uma vez que pode ser também

um meio de comunicação com o grupo, uma afirmação de identidade social ou um ato

de dramatização religiosa (Ibidem, p. 22).

Gegê, o haitiano recém-imigrado no Canadá, recorre às charadas, comunicando-

se de forma enigmática, causando estranhamento e deslumbre por parte de sua

interlocutora canadense em “Como conquistar a América em uma noite”. Em cena de

desfecho, Cokie apresenta a metáfora que perpassa o filme “Teorema” quando a

experiência vivida na história do filme lhe permite compreender o aprendizado que

compõe um enigma matemático. Dona Rosa, a avó de Lili que a inicia nos segredos do

candomblé, e Exu, o “menino travesso” do filme de Eliciana Nascimento, falam por

enigmas, fazem referência aos mitos dos orixás. As formas proverbiais de comunicação

presentes em sociedades afrodiaspóricas são centrais nas obras analisadas na pesquisa

em andamento, porque centrais em Brasis e Caribes. Nas culturas africanas, provérbios

são recursos pedagógicos, forma de acesso à sabedoria dos ancestrais, importantes para

a sociabilidade do grupo. É um saber que se vivencia, forjado na experiência, “provado

9 Kitembo/Ndembwa/Tempo é o nkisse (divindade bantu) que rege a atmosfera, as estações e o tempo cronológico entre os povos bantu.

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na vida real”, que tem como objeto de conhecimento “a própria relação social – o

relacionamento do homem com seus pares e com a natureza” (Sodré, 1998, p. 44).

Em modos de ser e viver afro-brasileiro-caribenhos, o cotidiano proverbial e

performa-ritualizado conforma modos outros de produzir e transmitir conhecimentos – a

partir de vivência tridimensional-corpóreo-sensorial de tempos (re)vividos pluralmente

e não de tempo lido na letra bidimensional do papel ou de abstração teórica

singularizada. São modos de ser insurgentes a racismos coloniais, modos de ser

embondeiros10, que impingem a historiadores(as) a tarefa de apreender temporalidades

cósmico-espirais em epistemologias decoloniais e em afroepistemologias que não estão

em livros (García, 2010, p. 5), mas expressas em formas representacionais

performativas.

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10 Em referência à árvore que em África subsaariana representa ancestralidade e que foi utilizada com fins coloniais de apagar as origens de povos africanos. Segundo Lopes (2003, p. 94), o termo é oriundo do aportuguesamento do quimbundo mbondo, baobá.

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