cinema, gÊnero e escola: uma reflexÃo sobre o … · a insatisfação diante da discriminação...
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
CINEMA, GÊNERO E ESCOLA: UMA REFLEXÃO SOBRE O TRABALHO
FEMININO COM ESTUDANTES
Maria Grazia Cribari Cardoso 1
Fernanda de Carvalho Azevedo Mello 2
Resumo: Este trabalho é fruto do Projeto de Extensão intitulado “Cine Debate: Igualdade de
Gênero e Raça na Escola. O objetivo do projeto é discutir questão de gênero na sociedade brasileira
a partir debate sobre diversidade e desigualdade de gênero entre os estudantes do Ensino Médio
através do cinema. O cinema foi utilizado para criar oportunidade de reflexão pessoal e coletiva de
um problema social através da dimensão artística e emocional. A ação previu a exibição de filmes
sobre gênero entre estudantes do ensino médio numa escola pública estadual de referência.
Logo após a projeção do vídeo era incentivado um debate entre os estudantes e solicitado uma
avaliação do mesmo a partir de um questionário com perguntas abertas e fechadas sobre a obra
cinematográfica, a relação desta com a vida cotidiana além de perguntas de identificação do
respondente. A análise inicial dos questionários mostra que houve um recebimento bastante positivo
do projeto entre os estudantes e a vontade para o debate e exposição de suas ideias. Contudo,
embora em menor número, encontramos posições mais conservadoras. Concluímos, que os
estudantes que participaram do projeto usaram a mensagem do cinema para refletir sobre a condição
de gênero e trabalho entre homens e mulheres na sociedade e na sua família. Embora quando se
trate da situação da mulher no mundo do trabalho haja uma reflexão crítica ainda não criticaram a
concepção do trabalho doméstico realizado na família pelas as mulheres.
Palavras-chave: Cinema; Gênero; Escola
Introdução.
Este trabalho é fruto do Projeto de Extensão intitulado “Cine Debate: Igualdade de Gênero e
Raça na Escola”. O objetivo do projeto é estimular o debate entre os estudantes do Ensino Médio a
partir do debate sobre diversidade e desigualdade de gênero e raça através do cinema. Considerando
que gênero é uma construção cultural e social que busca dar significado às diferenças biológicas
entre os sexos, procuramos questionar alguns sentidos culturais e simbólicos concordantes e
comuns a respeito das diferenças de gênero de acordo com as diferentes maneiras na qual ele está
inserido na sociedade brasileira. Abordou-se temas como a divisão sexual do trabalho, o
preconceito, intolerância e a violência contra a mulher e pessoas lésbicas, gays, bissexuais,
transexuais e travestis (LGBT). No que diz respeito às questões raciais, procuramos discutir a
contradição em relação a população negra no Brasil: se, por um lado, tem sua cultura valorizada
(sua comida, dança, música) e sua forma de expressão é usada como símbolo nacional, por outro,
1 Orientadora. Dra. em Antropologia. Profª da UFRPE, campus Recife/PE, Brasil. O trabalho recebeu auxílio da
PROEXT/UFRPE. 2 Bolsista Voluntária. Estudante do curso de Bacharelado de Ciências Sociais da UFRPE, campus Recife/PE, Brasil.
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ela situa-se em piores condições no que diz respeito à moradia, trabalho, educação, saúde, etc, em
relação ao branco no país
O cinema foi escolhido como um meio para criar oportunidade de reflexão, pessoal e
coletiva, de transgressão de ideias, de um problema social através da dimensão artística e
emocional. Para além de um método ou atividade educativa complementar a sala de aula, o cinema
é uma forma de “desaprender” ou repensar noções correntes sobre problemas sociais que
aprendemos cotidianamente. Nas palavras de Fresquet (2016):
“Desaprender não é se esquecer do aprendizado, mas sim relembrar os ensinamentos e
reavaliar tudo aquilo que aprendemos; reavaliar o que pode ser preconceituoso e
desvalorizado, mas que continua a reger nossas vidas. Em alguns casos, precisamos rever
ensinamentos que aprendemos até com pessoas pelas quais temos muito afeto. Um exemplo
é o machismo: você tem dois anos de idade, se machuca e chora, e seu pai te diz “homem
não chora”. Em seguida a professora lhe diz a mesma coisa, confirmando o conceito. Você
endurece sua posição, mas é preciso desaprender essa conduta porque os homens também
choram. Na tela do cinema você identifica preconceitos que não identificaria na vida real, e
por isso os filmes podem ser uma via para essa “desaprendizagem”.
Assim, o cinema contribui na escola, não só para passar conteúdos complementares as
matérias da matriz curricular, mas para a formação de estudantes como agentes de mudanças
políticas e sociais através do pensamento crítico e consequentemente da transformação da
sociedade. E o cinema opera no sentido da transformação social quando ele nos faz refletir sobre
nós mesmos e sobre a sociedade desestabilizando conceitos e preconceitos estabelecidos.
A ação previu a exibição de filmes sobre gênero e raça entre estudantes do ensino médio na
escola pública estadual de referência Profº Cândido Duarte. As películas foram selecionadas
baseadas em dois critérios: serem filmes brasileiros de curta metragem a fim de construir público
para este cinema e versarem sobre os temas do projeto quais sejam diferenças de gênero (em suas
várias linhas) e raça (a questão da desigualdade e racismo).
Logo após a projeção do vídeo era incentivado um debate entre os estudantes e solicitado
uma avaliação do mesmo a partir de um questionário com perguntas abertas e fechadas
(RICHARDSON, 1999) sobre a obra cinematográfica, a relação desta com a vida cotidiana além de
perguntas de identificação do respondente (nome, idade, sexo, cor, religião, série escolar).
Para este relatório, foram analisadas as avaliações sobre os filmes Mulheres Invisíveis e
Xadrez das Cores. Participaram da projeção do vídeo, debate e preenchimento de questionário um
total de 24 e 20 estudantes respectivamente. As perguntas abertas foram analisadas a partir de
abordagem qualitativa visando uma apreensão na fala dos entrevistados, interligada ao contexto em
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que eles se inserem e delimitada pela abordagem conceitual e teórica e detendo-se no conteúdo
exposto, fazendo relações, interpretações e identificando pontos críticos e seus significados.
Mulheres Invisíveis é um documentário produzido pela Sempreviva Organização Feminista
(SOF), com apoio da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) abordando o tema das
mulheres e o mercado de trabalho. O documentário traz uma análise crítica acerca da divisão por
gênero do trabalho na sociedade. Apontados, dentro da sociedade capitalista, os dois tipos de
trabalho – Produtivo e Reprodutivo – a obra logo identifica qual é atribuído a que gênero.
De caráter feminista, o filme visa à conscientização do espectador para a constante dupla
jornada de mulheres, que, agora inseridas dentro do mercado de trabalho produtivo (ao qual há uma
remuneração financeira), também são responsáveis pelo trabalho reprodutivo, isto é, o trabalho
doméstico, para o qual não há remuneração ou reconhecimento. O documentário se faz importante
ao mostrar a ainda atual condição do trabalho das mulheres, defendendo que masculino e o
feminino são noções criadas pela sociedade, Mulheres Invisíveis dá leveza e clareza ao tema
abordado. Apenas do entender que os papéis de gênero são um construto social é que se pode
começar a debater a desigualdade de gênero, ou ainda a noção de gênero, na sociedade
Xadrez das cores é um curta-metragem onde conhecemos Cida, uma mulher negra de
quarenta anos, que vai trabalhar para Estela, uma senhora de oitenta anos, viúva, sem filhos e
extremamente racista. Somos apresentados à uma relação bastante tumultuada entre as duas, onde
vemos Estela perseguir Cida por ela ser negra. Mas, precisando do dinheiro, Cida atura tudo em
silêncio, até que decide se vingar através de um jogo de xadrez.
Diferentemente do documentário Mulheres Invisíveis, Xadrez das Cores não enfatiza a
divisão sexual do trabalho, mas sim uma perspectiva interessante de combate e superação do
racismo. Produzido em 2004, por Marco Schiavon, o curta desperta em sua audiência o incômodo e
a insatisfação diante da discriminação étnica, possibilitando o debate sobre o preconceito dentro da
relação patroa/empregada doméstica. O filme traz ainda uma rápida reflexão sobre discriminação de
gênero através do desabafo de Estela, onde
1. Da Divisão Sexual do Trabalho.
O conceito de divisão sexual do trabalho traz a discussão sobre gênero para dentro das
questões do trabalho. É o debate sobre gênero circunscrito ao âmbito do trabalho. Nesse sentido a
divisão sexual do trabalho é apenas um aspecto das relações de gênero uma vez em que estas
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correspondem à totalidade das práticas sociais (esporte, literatura, arte, medicina, etc.) e organizam
um espaço diferente de acordo com o gênero (CARDOSO, 2006).
Este debate remonta à década de 70 quando feministas francesas de esquerda estenderam a
perspectiva marxista de relações de produção para a produção doméstica. Até então na Europa,
EUA e América Latina, os estudos sobre trabalho tratavam à classe trabalhadora como homogênea
e não atentavam para as diferenças entre homens e mulheres, tornando invisível o trabalho da
mulher (ARAÚJO, 2001).
Foi intensa a contribuição do feminismo às teorias marxistas. Muitas estudiosas feministas
apoiaram-se nas categorias marxistas para a análise da situação do trabalho remunerado e do
trabalho doméstico dentro do sistema capitalista discutindo os limites das teorias econômicas e, em
especial, as teorias de valor, as relações entre produção e reprodução, o trabalho doméstico e a
articulação entre divisão social do e sexual do trabalho (CASTRO, 2003).
Todo esforço do feminismo marxista foi analisar o trabalho doméstico como um conjunto de
relações de produção no interior do sistema econômico. A discussão girou sobre as possibilidades
de avaliar se as categorias analíticas usadas para o entendimento do trabalho assalariado serviriam
também para o trabalho doméstico. Discutiu-se se era uma forma ou não de produção de
mercadorias e qual o papel que desempenhava nas relações de produção capitalista. Conjugaram a
análise marxista de classe social às análises das relações entre os sexos e inseriram a questão do
poder e sua significação, por meio do conceito do patriarcado em sua conexão com o capitalismo.
Esta abordagem foi usada para se entender situações de discriminação e subordinação das mulheres.
Não existe unanimidade entre as feministas marxistas quanto às relações entre patriarcado e
capitalismo. Para algumas, o patriarcado e o capitalismo formam um único sistema de dominação
(social, econômico, político, cultural) que se reflete no mercado de trabalho pelo uso diferenciado
da força de trabalho feminina (SAFFIOTTI, 1992). Outras, ao contrário, consideram o patriarcado
autônomo embora subordinado as estruturas de classe (COMBES E HAICAULT, 1986).
Em face desses questionamentos feministas ao moderno conceito de trabalho podemos
dividir atualmente as teorias da divisão sexual do trabalho em duas grandes correntes de
pensamento: a teoria da divisão sexual do trabalho do liame social ou elo social; e as teorias da
divisão sexual do trabalho das relações sociais antagônicas entre os sexos. (HIRATA, 2000, 2002,
2004).
A primeira tem uma visão mais tradicional deste conceito e refere-se à diferenciação de
tarefas entre homens e mulheres. Nessa perspectiva, a família e, especificamente, a mulher, são
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peças chaves para o estabelecimento de vínculo social. Este modelo define o papel feminino restrito
às tarefas domésticas e o papel masculino ancorado no mundo do trabalho externo e remunerado.
Faz-se um paralelo entre as atividades e as principais obrigações vinculadas aos papéis de pai e mãe
dentro da família. Essa condição invisibiliza o trabalho doméstico, desvalorizando-o. Em sua
perspectiva mais tradicional, a divisão sexual do trabalho não problematizou a relação de gênero.
Naturalizou a posição de homens e mulheres como decorrência da condição biológica, sem atentar
para a construção cultural dos gêneros. Assim, a divisão sexual do trabalho seria mais especializada
quanto mais complexa a sociedade: se nas sociedades simples os trabalhos de homens e mulheres
seriam igualmente produtivos, nas sociedades complexas a produção para troca suplantaria a
produção para o consumo. De maneira que as mulheres tenderiam a se especializar nos papéis de
esposas e mães, subordinadas ao homem.
O conceito de patriarcado aparece como uma noção importante para entender as diferenças
na posição social entre os sexos. Se trata de um sistema universal expresso através do exercício da
dominação centralizado no poder masculino. (DELPHY, 2002).
Esse quadro teórico permitiu a migração das explicações sobre a diferença social entre os
sexos da esfera da produção para a reprodução, nossa segunda corrente de pensamento.
Constituindo mais de uma esfera de submissão feminina como, por exemplo, a sexualidade e a
reprodução biológica. Para os autores que adotam essa abordagem, o patriarcado perpassou o
desenvolvimento do capitalismo. Essa abordagem permitiu pensar nas possibilidades de mudanças
na posição social da mulher em consequência da transformação das relações econômicas e da
propriedade privada (HEILBORN, 1999).
Essas análises percebem a divisão sexual do trabalho e a dominação masculina originando-
se basicamente na família, sendo o resultado de relações sociais de controle masculino sobre a
reprodução e força de trabalho das mulheres. Enquanto o conceito de produção capitalista é
estritamente definido na relação entre o capital e trabalho, o de reprodução possui diferentes
concepções que remetem a níveis diferentes da realidade.
No feminismo marxista ortodoxo as relações entre os sexos são submetidas às relações de
classe. A opressão de classe é estruturante das relações sociais. Ao contrário do que ocorre, na
perspectiva da produção-reprodução, as relações de classe e as relações entre os sexos são pensadas
de maneira integrada. Não há subordinação de uma esfera por outra (KERGOAT, 1986). Tanto as
relações de classe atuam na reprodução, quanto às relações entre os sexos.
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A perspectiva produção/reprodução recusa-se a considerar que a esfera da produção, na sua
expressão de capitalismo patriarcal, seja determinante das práticas sociais. As relações sociais de
sexo e as de classe são simultâneas e funcionam por antagonismos e oposições atualizadas no tempo
e no espaço por configurações próprias. No entanto, a divisão sexual do trabalho é criada muitas
vezes fora do domínio exclusivo da produção A desigualdade social entre os sexos na esfera da
reprodução migra para a produção constituindo uma esfera de diferença entre sexos construindo
uma dupla submissão: de sexo e de classe.
A divisão sexual do trabalho é uma forma de divisão do trabalho que segue os princípios da
separação e de hierarquização. Atualmente o reconhecimento da heterogeneidade das mulheres e a
necessidade de articular a categoria de divisão sexual do trabalho a outros marcadores de
desigualdades sociais como raça revela a condição precária da mulher negra (KERGOAT, 2010).
Dessa forma, utilizaremos esse referencial para analisar, inicialmente, Mulheres Invisíveis,
documentário que explicita as desigualdades de gênero no mercado de trabalho, assim como a falta
de reconhecimento do trabalho doméstico, um trabalho muitas vezes não reconhecido ou
remunerado. A partir dos pontos aqui já tratados vamos analisar a compreensão por parte dos alunos
sobre a condição da mulher no trabalho, assim como a reflexão suscitada pelo filme.
2. Divisão Sexual do Trabalho na reflexão dos estudantes:
Como foi dito acima vinte e quatro estudantes participaram do evento e responderam ao
questionário. Abaixo sintetizamos algumas informações sobre eles. Do total dos participantes onde
(11) eram do sexo feminino e treze (13) do sexo masculino. A maioria dos (as) entrevistados (as) se
auto reconheceram como pardos nove (9), seis (6) se reconheceram como brancos, quatro (4) como
negros, um (1) indígena, dois (2) da cor amarela e dois (2) não responderam. A maioria está na
faixa etária de 14 a 15 anos (15). Entre 16 e 17 anos seis entrevistados, 18 ou mais apenas um (1) e
dois (2) não responderam. Todos são estudantes do primeiro ano do ensino médio.
De uma forma geral, na discussão em sala de aula houve uma maior participação das
meninas, que contribuíram mais com o debate. No questionário, em relação à ligação que fizeram
entre o fenômeno exposto na obra e suas vidas cotidianas houve uma correlação entre os e as jovens
com suas famílias. Entre eles apenas cinco não fizeram relação com sua família, mas associaram o
tema a condição do trabalho doméstico e a desigualdade entre homens e mulheres na sociedade. Os
jovens foram os que mais aproximaram a situação exposta com as suas mães e irmãs. “Sim, porque
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minha mãe, ela faz tudo dentro de casa, cozinha, arruma e ainda trabalha de manicure”. Ou não
associaram com suas vidas, mas a condição da mulher na sociedade brasileira em geral.
Perguntados se estivesse no lugar dos personagens qual seria sua atitude, a maior parte dos
jovens (8), não responderam à questão ou disseram não saber. Registramos também respostas que
denotam ideias participativas de contribuição ao trabalho doméstico e ao sustento do lar. Por outro
lado, apenas entre eles houve um retorno mais conservador no sentido de minimizar a situação da
mulher no trabalho. “Pararia de vitimismo”, “ A mulher pode sustentar a casa”. Enquanto que as
jovens, ao responderem a mesma questão, houve um retorno que expressa uma forte vontade de
mudança seja nas relações mais individuais, exemplo: “se fosse o homem ajudaria a mulher” ou
aquelas que exprimem a transformação coletiva: “eu conscientizaria as pessoas da igualdade entre
homens e mulheres”, “eu acharia um meio das mulheres terem os mesmos direitos dos homens”,
porém ambas com a perspectiva da divisão sexual do trabalho enquanto uma complementaridade
entre homens e mulheres.
Quanto aos pontos relevantes sobre o trabalho feminino percebidos na obra apresentada os
estudantes relataram a desigualdade, a discriminação e a diferença entre homens e mulheres na
sociedade. Dois deles se referiram a questão da execução do trabalho doméstico pelas mulheres e a
quantidade excessiva do trabalho da mulher e também a luta feminista pelos direitos da mulher.
Chama a atenção entre os jovens o fato de cinco não responderem e um afirmar uma repulsa
pelo tema e pelo debate apresentado: “favor lembrar que uma mentora do feminismo Simone
(sobrenome francês) era uma pedófila. Vocês são repugnantes”.
Entre as jovens, por outro lado, o filme suscitou resposta onde foram enfatizadas as
diferenças salariais entre homens e mulheres, a dupla jornada das mulheres e também a
predominância do trabalho doméstico remunerado entre as trabalhadoras brasileiras.
Entre as meninas que afirmaram gostar do documentário, o fator em comum com sua
realidade é o trabalho doméstico. Por se verem representadas no curta, afirmaram que o filme
retratou a realidade e expectativa de vida para elas. Quando perguntadas sobre as novidades que a
exibição lhes trouxe, elas são enfáticas: nenhuma. Entre os alunos era desconhecida a maior carga
horária realizada pelas mulheres.
As diferenças sutis entre as respostas podem indicar um caminho longo em busca da
igualdade, ainda que uma significante mudança já esteja em curso. Entre as diversas frases
impactantes encontradas nas respostas que poderiam sintetizar essa análise, destaca-se a de um
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jovem que afirmou: “minha mãe trabalha em diversas casas, mas ela, infelizmente, não recebe o
salário digno de seu esforço”.
3. Sobre a intersecionalidade.
A ideia de articular relações sociais surgiu inicialmente nos anos 1970. A
consubstancialidade de Danièle Kergoat chamava atenção à discriminação de sexo e classe social.
Era intenção da autora compreender as práticas de homens e mulheres em relação a suas classes
sociais, de forma não mecânica (HIRATA, 2014). No entanto, conceito similar foi desenvolvido por
Kimberly Crenshaw na década de 1990. Ele intendia responder à questão: o que acontece quando
uma mulher sofre, além da habitual discriminação de gênero, uma discriminação racial? A
solidariedade que as feministas (brancas) apresentam umas para com as outras não reconhece as
particularidades da discriminação étnica sofridas por mulheres negras. Ao mesmo tempo em que o
movimento negro (liderados por homens) não reconhece o preconceito de gênero.
Em síntese podemos usar esse conceito de Sirma Bilge sobre intersecionalidade:
A intersecionalidade remete a uma teoria transdisciplinar que visa apreender a
complexidade das identidades e das desigualdades sociais por intermédio de um enfoque
integrado. Ela refuta o enclausuramento e a hierarquização dos grandes eixos da
diferenciação social que são as categorias sexo/gênero, classe, raça, etnicidade, idade,
deficiência e orientação sexual. O enfoque intersecional vai além do simples
reconhecimento da multiplicidade dos sistemas de opressão que opera a partir dessas
categorias e postula sua interação na produção e na reprodução das desigualdades sociais
(BILGE, 2009, p.70)
Para Crenshaw, o reconhecimento de que as experiências das mulheres negras não deveriam
ser enquadradas separadamente nas categorias de discriminação de gênero ou raça é de prima
importância em seu artigo. Em associação direta aos direitos humanos, Crenshaw mostrará as
lacunas que acabam por deixar as mulheres negras desamparadas em suas particularidades. Partindo
da premissa de que direitos humanos são direitos da mulher e vice-versa, é possível deduzir que
quando as mulheres vivenciam situações de violação dos direitos humanos, semelhantes às sofridas
por um homem, ela estará protegida. No entanto, se a violação ocorre longe da gama de violências
sofridas por homens (estupro, por exemplo), as instituições de defesa dos direitos humanos não têm
um protocolo de como lidar com a situação. O mesmo raciocínio se aplica a discriminação racial,
isto é, se o racismo se apresenta, por exemplo, no impedimento de direitos políticos (sofrido
também por homens negros), fica caracterizada a violação dos direitos humanos. No entanto, se a
discriminação ocorrer fora dessa esfera, as mulheres se verão sem o suporte necessário para o
combate ao preconceito. O verdadeiro desafio da intersecionalidade, segundo a autora, é
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“incorporar a questão de gênero à prática dos direitos humanos e a questão racial ao gênero ”, sendo
preciso entender, portanto que homens e mulheres experimentam diferentes situações de racismo
(CRENSHAW, 2014).
No entanto, em artigo publicado em 2009 e traduzido ao português em 2010, Kergoat tece
críticas ao conceito desenvolvido por Crenshaw. Para ela, a multiplicidade de categorias traz o
perigo de fragmentar práticas sociais, levando os teóricos da intersecionalidade à privilegiar
algumas categorias em detrimento de outras, criando uma acidentalmente uma hierarquia de
identidades sociais (HIRATA, 2014).
Apresentaremos o resultado da análise dos questionários respondidos pelos alunos sobre o
filme Xadrez das Cores sob a perspectiva da intersecionalidade, uma vez que Cida, a personagem
principal, negra e empregada doméstica é inferiorizada em sua função de cuidadora e em sua etnia
por Estela, patroa idosa e branca. Não perderemos de vista a divisão sexual do trabalho, apresentado
no início deste artigo.
4. Intersecionalidade de discriminação na reflexão dos estudantes.
Vinte estudantes participaram da exibição do curta metragem e responderam ao
questionário. Em rápida síntese seguem informações das(os) alunas(os), temos oito (8) participantes
do sexo masculino e doze (12) do sexo feminino. A maioria das(os) entrevistadas(os), seis (6) se
auto reconheceram como pardos, cinco (5) se reconheceram como brancos, três (3) como negros,
dois (2) indígena, dois (2) da cor amarela e dois (2) não responderam. Assim como os participantes
da exibição de Mulheres Invisíveis, todos são estudantes do primeiro ano do ensino médio. A
aprovação do curta foi unânime.
Por se tratar de um filme que exalta a etnicidade, consideraremos as respostas das(os)
estudantes de acordo com gênero e etnia, dessa forma, ao responderem o que mais chamou atenção
conseguimos os seguintes resultados: entre os meninos que não declararam etnia (1) e o um (1)
aluno amarelo, o racismo chamou mais atenção que qualquer outro aspecto; entre os alunos negro
(2) e pardo (2) novamente encontramos similaridades nas respostas: racismo e a desigualdade
social, enquanto que um (1) aluno pardo notou o desrespeito à religião de Cida; para o um (1) aluno
branco o que se destacou no curta foi a relação xadrez/racismo apresentada. Entre as meninas,
temos respostas semelhantes: entre as alunas brancas, duas (2) destacaram a reação de Cida ao
racismo da patroa, e duas (2) responderam a retratação da realidade racista; as duas (2) alunas
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indígenas gostaram da relação xadrez/racismo; todas as alunas pardas, três (3) destacaram a reação
de Cida ao racismo da patroa, mostrando que a mudança é possível; a uma (1) aluna amarela
respondeu a reação de Cida e o racismo de sua patroa; a uma (1) aluna que não declarou etnia
também apontou o racismo; e a única aluna negra disse que o que mais chamou sua atenção foi o
racismo da idosa, “porque eu nunca vi pessoalmente”.
Em resposta às similaridades entre o filme e a realidade teremos as seguintes respostas: entre
os alunos, dois (2) pardos disseram não observar semelhanças; enquanto os dois (2) alunos negros,
o um (1) que não declarou etnia e um (1) pardo responderam sim, mas sem entrar em detalhes; tanto
o um (1) aluno amarelo e o um (1) aluno branco, responderam que o racismo é visto em todos os
lugares. Entre as meninas tivemos as seguintes respostas: a uma (1) aluna amarela, as duas (2)
indígenas, uma (1) branca e uma (1) parda afirmaram o racismo ser uma coisa diária na sociedade; a
uma (1) aluna negra afirmou que há semelhanças, mas que nunca prestou atenção; uma (1) aluna
branca respondeu que muitas vezes eram cometidos atos preconceituosos sem intenção; somente
duas (2) alunas brancas levantaram questões de gênero além do racismo; uma (1) aluna parda trouxe
a questão da alta taxa de mortalidade entre pessoas negras; uma (1) aluna parda apontou o racismo
como sua realidade, trazendo o exemplo de sua mãe, empregada doméstica, acusada frequentemente
de roubo pelos patrões; apenas uma (1) aluna branca respondeu não encontrar similaridades entre o
curta e a realidade.
Todas as alunas e alunos consideraram úteis o filme e debate por ele suscitado.
Conclusões.
A análise inicial dos questionários mostra que houve um recebimento bastante positivo do
projeto entre os estudantes e vontade para o debate e exposição de suas ideias. O cinema é apontado
como meio força a reflexão ou, em alguns casos, não, como é possível observar em alguns
posicionamentos conservadores. Podemos concluir, através dos questionários referentes ao
documentário Mulheres Invisíveis, que os estudantes que participaram do projeto usaram, de modo
geral, a mensagem do cinema para refletir sobre a condição de gênero e trabalho entre homens e
mulheres na sociedade e na sua família. Embora quando se trate da situação da mulher no mundo do
trabalho haja uma reflexão crítica ainda não criticaram a concepção do trabalho doméstico realizado
na família pelas as mulheres.
Sobre os questionários respondidos após a exibição de Xadrez das Cores, notamos que o
racismo ainda é invisível ou não existente para parte dos estudantes, embora essa não seja a posição
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da maioria. A intensão de trazer para sala de aula o debate sobre a intersecionalidade de
discriminação não atendeu as expectativas, nos levando à conclusão de que, ao menos para essa
turma, o racismo chama mais atenção, independente da etnia, do que a discriminação de gênero,
apontada apenas por duas estudantes do sexo feminino.
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Andrée; et. al. O Sexo do Trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
_____________. Dinâmica e Consusbstacialidade das Relações Sociais. Novos Estudos, março,
2010.
Cinema, gender and school: a reflection on female work with students
Astract: This work is the result of the Extension Project titled "Cine Debate: Gender Equality and
Race in School. The objective of the project is to discuss gender issues in Brazilian society from the
debate on diversity and gender inequality among high school students through the cinema. The
cinema was used to create the opportunity of personal and collective reflection of a social problem
through the artistic and emotional dimension. The action provided for the screening of films about
gender among high school students at a state public school of reference.
Soon after the projection of the video, a debate was encouraged among the students and asked for
an evaluation of the film from a questionnaire with open and closed questions about the
cinematographic work, and its relation to the daily life, besides questions of identification of the
respondent. The initial analysis of the questionnaires shows that there was a very positive reception
of the project among the students and the willingness to debate and expose their ideas. However,
although in a smaller number, we find more conservative positions. We conclude that the students
who participated in the project used the cinema message to reflect on the gender and work status of
men and women in society and in their families. Although when it comes to the situation of women
in the working world as a critical reflection, there have not yet been criticized the conception of
domestic work performed in the family by women.
Keywords: Cinema; Gender; School