comunidade quilombola “chifre do bode: identidade étnica

25
XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE e PRÉ-ALAS BRASIL. Teresina PI / 2012 Grupo de Trabalho: GT08 - Patrimônio cultural, comunidades tradicionais e sustentabilidade. Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica, memória e preservação”.

Upload: vuonglien

Post on 10-Jan-2017

246 views

Category:

Documents


2 download

TRANSCRIPT

Page 1: Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica

XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E

NORDESTE e PRÉ-ALAS BRASIL.

Teresina – PI / 2012

Grupo de Trabalho: GT08 - Patrimônio cultural, comunidades tradicionais e

sustentabilidade.

Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade

étnica, memória e preservação”.

Page 2: Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica

Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica, memória e

preservação”

Igor Luiz Rodrigues da Silva - UFS1 [email protected]

Com o processo de redemocratização do Estado brasileiro no final

dos anos 80, e com a formulação e aprovação da Constituição Federal de

1988, as comunidades quilombolas passam a ter mais visibilidade e a buscar

mecanismos que contribuam para assegurar os direitos garantidos no Art.68º

do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), como também a

garantia e preservação das manifestações culturais dos afro-brasileiros através

dos artigos 215º e 216°. Este trabalho buscou compreender quais os limites

étnicos são impostos pelo grupo, para o reavivamento, manutenção de sua

identidade e fronteiras étnicas. E como e em que contextos esses mecanismos

são usados e conduzidos no processo de constituição da comunidade

quilombola Chifre do Bode e sua preservação. Foi usada a observação

participante, história oral e imagens fílmicas.

Palavras - Chave: Identidade, memória e preservação.

1 Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL),

atualmente mestrando do curso de Antropologia Social da Universidade Federal de

Sergipe (UFS).

Page 3: Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica

Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica, memória e preservação” 2

1 - Introdução

O presente trabalho teve como prioridade, analisar a comunidade

quilombola “Chifre do Bode”, relevando três aspectos que consideramos

importante no cotidiano da comunidade, tais como a identidade étnica,

territorialidade, e juntos, memória e preservação.

As Comunidades Quilombolas são fontes de riqueza e valores

culturais muito significativos para a construção da sociedade brasileira, sua

organização social, política e econômica, são desafiadoras para a ordem social

moderna, sua conjuntura permite com clareza estabelecer o ressurgimento ou

até mesmo o aparecimento de um modelo diferenciado de sociedade.

A configuração do mundo atual, com todos os aparatos tecnológicos

proporcionados pela globalização e o uso cada vez mais frequente da internet,

estão fazendo com que haja uma certa homogeneização das culturas, de

tradições. Mais frente a tais processos se pode verificar certas reconfigurações

e até mesmo uma maior restruturação de valores e das identidades que

andavam meio esquecidas, entre elas, a identidade étnica e cultural das

comunidades tradicionais quilombolas.

A história brasileira conta como se deu a formação dos primeiros

núcleos habitacionais dos escravos fugidos das grandes fazendas, que na

segunda metade do século XVI adotavam como mão-de-obra, como força de

trabalho, os escravos capturados no continente africano, para serem utilizados

como forma de ganho e acumulo de riqueza dos grandes barões de açúcar do

no nordeste do país, de café no sudeste, e etc. Os primeiros escravos trazidos

para o Brasil foram encaminhados para as províncias de Pernambuco e Bahia,

se localizando nesses portos os principais mercados de trafico de material

humano.

Passando por todo um processo de atrocidades e descaracterização

das suas identidades culturais e étnicas, os escravos eram tratados como

seres inferiores pelos seus “donos”, que ao precisarem dos seus serviços,

tratavam os escravos como simples mercadorias e um produto de compra e

Page 4: Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica

Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica, memória e preservação” 3

venda, sem que eles tenham a menor possibilidade de defesa e de condições

humanas de sobrevivência.

É através desses processos de exclusão, de castigos, de viverem na

miséria absoluta e extrema, que se tem a obtenção da vontade pela liberdade e

a possibilidade de estratégia de fuga, e são essas fugas, que serão essenciais

para a formação dos primeiros quilombos. Muitos foram os núcleos quilombolas

existentes no país nesse período áureo da escravidão, o principal deles, o

Quilombo dos Palmares, dentro dessa ideia de quilombo como lugar de

resistência, caracterizando por certa configuração politica, econômica, social e

religiosa, aparece como maior símbolo, tanto pela sua grandiosidade territorial

e habitacional, como também pela sua longa duração.

Hoje as comunidades quilombolas são grupos sociais que detém

uma identidade étnica que os diferenciam dos outros grupos sociais:

As comunidades quilombolas se caracterizam pela pratica do sistema de uso comum de suas terras, concebidos por elas como um espaço coletivo e indivisível que é ocupado e explorado por meio de regras consensuais aos diversos grupos familiares que compõem as comunidades, cujas relações são orientadas pela solidariedade e ajuda mutua. (PBQ, 2008: 11)

A partir da década de 80, em meio ao processo de redemocratização

do Estado Brasileiro, houve intensos movimentos que lutavam pela liberdade

de expressão, pelo fim da censura, pelos direitos das mulheres e tantos outros,

até que em 1988, foi promulgada a Constituição Federal do Brasil, uma

constituição baseada em direitos e deveres individuais e coletivos.

Entre esse direitos coletivos, está posto os direitos das comunidade

quilombolas a partir do Artigo 68º do Ato Disposições Constitucionais

Transitórias (ADCT) que garante a posse definitiva da propriedade aos grupos

que estejam ocupando devidamente suas terras. Como também a preservação

e a conservação cultural dos afro-brasileiros, tanto bens materiais e imateriais,

regulamentados nos Artigos 215º e 216º da Constituição Federal de 1988.

O Artigo 68º prescreve que: “[...] remanescentes das comunidades

dos quilombos, os grupos, os grupos étnicos-raciais, segundo critérios de auto-

Page 5: Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica

Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica, memória e preservação” 4

atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais

especificas, com presunção de ancestralidade negra e relacionada com a

resistência à pressão sofrida”.

O quadro atual dos remanescentes quilombolas é uma resposta as

situações de conflito que ainda persistem contra grupos sociais e econômicos

que tentam impor novas formas de controle politico. Várias são as

comunidades quilombolas existentes nos estados de Alagoas e Sergipe,

entretanto para ilustrar como exemplo de resistência, de quilombos como

comunidades baseadas nos laços familiares, construídos a partir de um padrão

de vida determinado pelo espaço geográfico e pelo momento histórico, há a

comunidade quilombola “Chifre do Bode”.

A comunidade quilombola “Chifre do Bode”, está localizada no

município de Pão de Açúcar, situada na zona rural do município, distante do

centro da cidade aproximadamente uns 22km, fazendo divisa com o município

de Palestina, por onde é possível chegar até lá, como também pelo povoado

Machado, pertencente ao município de Pão de Açúcar. A população estimada é

de mais de 300 habitantes, distribuídos em 66 famílias. Esta comunidade é

uma das mais antigas do estado de Alagoas, sendo que seu reconhecimento

só foi possível pelos órgãos governamentais em 2006 através da Fundação

Palmares.

O nome da comunidade tem haver com a forte influência da criação

de bodes, desenvolvida durante o período de formação do lugar e que

perdurou por gerações. A presença de bodes era muito forte na comunidade, o

que permitia que esses animais fossem criados livremente pela população na

comunidade, todos os finais de semana havia uma reunião e ai comiam carne

de bode e os chifres eram juntados e em grande quantidade depois eram

queimados. A população sobrevive hoje da agricultura familiar, que não é bem

desenvolvida, e também através da criação de animais, de pequenos animais,

como galinha, umas poucas cabeças de gado, porco, peru, e etc. Ao longo do

tempo de formação e do crescimento da comunidade, os modos de conduzira a

vida, com gestos simples, em harmonia com a terra, de certo são

Page 6: Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica

Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica, memória e preservação” 5

características que os deixam mais ligados com as histórias vividas e contadas

pelos antepassados.

O interesse na pesquisa seu deu primeiramente por tentar contribuir

e aumentar o campo bibliográfico sobre comunidades quilombolas em, especial

em Alagoas e em Sergipe, tendo em vista do que foi produzido sobre

quilombos ficou basicamente restrito a comunidades que se localizam no

entorno da Serra da Barriga, em União dos Palmares, não se sabendo nada ou

quase nada sobre as comunidades espalhadas pelo sertão, zona da mata e

agreste do estado. Então se tornou viável a construção teórica sobre o

cotidiano, sobre a realidade, trazendo a tona novos aspectos situacionais

produzidos a partir das novas configurações impostas com o advento da

globalização e democratização do Brasil.

É nesse contexto complexo, habitualmente sem fronteiras, que hoje

vivem milhares de pessoas, que possuem uma certa identidade étnica, mas

que continuam passando por um processo de exclusão, de submissão, de

esquecimento. Por ficarem um longo período as margens da sociedade,

acreditamos que este trabalho possa contribuir de forma direta para que os

quilombolas possam contar de forma simples, mas ao mesmo tempo rica, os

relevantes traços e aspectos indenitários, culturais, políticos e econômicos, que

fazem deles um projeto singular de comunidade e de valorização do seu

passado histórico.

É deste modo que o trabalho visa abarcar os principais pontos que

denotam para as particularidades decorrentes e especificas da comunidade

tradicional “chifre do Bode”, e como essa sociedade vem enfrentando o

cotidiano e as lutas travadas perante os fatores do reconhecimento e

principalmente pelo reconhecimento da posse definitiva da terra e que em

outros tempos pertenceram aos seus antepassados, como também a

preservação da memória coletiva, concebida como patrimônio imaterial e fonte

de riqueza histórica.

No campo teórico, alguns autores serviram de base para a

construção deste artigo, bem como servem de aparato para outros trabalhos

Page 7: Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica

Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica, memória e preservação” 6

que seguem sendo elaborados nessa temática. A construção teórica se utiliza

de autores como Alfredo Wagner Berno de Almeida- 2002; José Mauricio

Andion Arruti- 1997; Eliane Cantarino O’Dwyer- 2002; Dirceu Lindoso-2007;

Maria Albenize Farias Malcher-2006; Ana Márcia de Farias-2007 e tantos

outros. Estes dão subsídios importantes para o entendimento do que hoje se

pode chamar de Comunidades Quilombolas e suas reorganizações social,

política e cultural, são literaturas atuais e que caminham sempre no sentindo da

nova ordem étnica dessas populações tradicionais.

Já como marco teórico para a discussão de identidade e identidade

étnica são utilizados: Stuart Hall-2005; Manuel Castells-2000; Fredrik Barth-

1998.

Além do mais utilizamos outros autores que fornecem contribuições

importantes tanto para a metodologia da pesquisa e também de dados

fornecidos pelo PBQ 2005 e 2010, pelo Programa de Patrimônio Imaterial

Brasileiro: Legislação e políticas estaduais de 2008.

Sendo assim, o presente artigo foi construído de forma a demonstrar

que, embora possuam um passado histórico amplamente rico, e não seja mais

um fator decisivo para serem “classificados” e identificados enquanto

detentores de uma identidade diferente, em algum momento esse passado

histórico volta e assume um caráter de “sinais ou signos manifestos”,

segundo a definição de Barth:“ Sinais ou signos manifestos- os traços

diacríticos que as pessoas procuram e exibem para demonstrar sua identidade,

tais como o vestuário, a moradia, ou o estilo geral de vida”. (BARTH; 1998,

p.194 ), agora na forma de narrativa coletiva, de um passado comum, da

recriação e reinvenção de tradições, e de uma memória histórica¹, assumindo

no entendimento cultural e antropológico, a forma de um patrimônio imaterial

do Brasil, e que no entanto não vem recebendo a devida atenção de órgãos

reesposáveis por emitir os títulos cabíveis.

A metodologia emprega no presente trabalho se dá através da

revisão bibliográfica de autores já citados anteriormente, como também através

da pesquisa de campo, que tem sua importância porque permite ao

Page 8: Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica

Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica, memória e preservação” 7

pesquisador a descoberta de ricos detalhes que não seriam possíveis fora do

contexto empírico. Para tanto, é necessário viver a experiência de esta lá e

identificar como objetivos primordial como os indivíduos se posicionam e se

definem em oposição ao outro, que esta fora do grupo. É através da pesquisa

de campo que o pesquisador coloca em pratica toda preparação feita na etapa

inicial da pesquisa, como a construção teórica, através de uma boa analise

bibliográfica. Ir a campo é está preparado para se deparar com as novas

possibilidades e fatos que serão oferecidos pelo próprio campo.

Outro método de pesquisa empregado é a observação participante,

que nada mais é do que, a participação do pesquisador na realidade do objeto

a ser investigado. Esse método permite observar fisicamente o conglomerado

de situações e símbolos que circundam o cotidiano do grupo, permitindo assim

a compreensão da vida particular, através do processo de se colocar no lugar

do outro. Para tanto o pesquisador deve neste espaço social aparentemente

desconhecido, ficar livre de qualquer forma de prejulgamentos, pois da mesma

maneira que inferimos na vida social dos pesquisadores, há também certa

modificação pessoal.

Também foram utilizados recursos audiovisuais, tais como imagens

fílmicas e fotográficas, que corresponde a uma contribuição importante à

pesquisa em ciências sociais, pois ela permite e obriga a uma percepção

diferente do que se costuma presenciar em outros métodos de pesquisa.

2. A Constituição de 1988 e as Comunidades Quilombolas

A partir da década de 80, em meio ao processo de redemocratização

do Estado brasileiro, houveram intensos movimentos que lutavam pela

liberdade de expressão, pelo fim da censura, pelos direitos iguais de negros,

mulheres, de culto. Com ênfase no direitos garantidos as Comunidades

Quilombolas, a Constituição Brasileira reservou o Artigo 68º do Ato Disposições

Constitucionais Transitórias (ADCT) que garante a posse definitiva da

propriedade aos remanescentes que estejam ocupando devidamente suas

terras.

Page 9: Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica

Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica, memória e preservação” 8

Como também a preservação cultural dos afro-brasileiros, tanto de

bens materiais e imateriais, regulamentados nos Artigos 215º e 216º da CF.

Como também na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho

(OIT), no Decreto nº 4.887/2003, na Instrução Normativa n°49 do Instituto

Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA/ Ministério do

Desenvolvimento Agrário), nas Portarias nº 127 e nº 342 de 2008, e na Portaria

da Fundação Cultural Palmares nº98 de 2007.

O conceito de remanescentes das comunidades de quilombo, à luz do Art. 68º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, da Constituição Federal, refere-se “aos indivíduos, agrupados em maior ou menor número, que pertençam ou pertenciam a comunidades, que portanto, viveram, vivam ou pretendam ter vivido na condição de integrantes delas como repositório das suas tradições, cultura, língua e valores, historicamente relacionados ou culturamente ligados ao fenômeno sócio-cultural quilombola. (PBQ, 2010; p.1)

Neste processo de reconhecimento garantido pela Constituição de

1988, dois órgãos governamentais são responsáveis por certificar e atestar

quem são as populações que podem ser inseridas no quadro conceitual

quilombola, um é o INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma

Agrária e a Fundação Palmares. O primeiro responsável por dar a titularidade

da terra através de uma intervenção e um mapeamento territorial. O segundo,

responsável por certificar as comunidades como de descendentes quilombolas.

A certificação das comunidades remanescentes de quilombos está diretamente ligada ao resgate territorial das comunidades tradicionais quilombolas, como também o seu reconhecimento pela ordem jurídico-institucional vigente, permitindo sua inserção nos planos públicos de ordenação e fomento para o desenvolvimento regional. [...] (FARIAS, 2007; p.86)

Como forma de garantir o efetivo cumprimento das leis postuladas

em 1988, recentemente o Governo Federal sancionou o Decreto 4.887 de 20

de novembro de 2003, que regulamenta o Artigo 68º da C.F., onde o Artigo 2º

da resolução considera: “remanescentes das comunidades dos quilombos, os

grupos étnicos raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória

histórica própria, dotados de relações territoriais especificas, com presunção de

Page 10: Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica

Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica, memória e preservação” 9

ancestralidade negra e relacionada com a resistência à opressão histórica

sofrida”. (C.F; 1988)

O Decreto concebe as comunidades quilombolas como núcleos de resistência cultural dos quais são remanescentes os grupos étnicos raciais que assim se identificam. Com trajetória própria, dotados de relações territoriais especificas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a luta contra a opressão histórica sofrida, esses grupos se auto-determinam comunidades de quilombos, dados os costumes, as tradições e as condições sociais, culturais e econômicas especificas que os distinguem os outros setores da coletividade nacional. O Decreto apresenta, portanto, uma dimensão de existência atual dessas comunidades. (PBQ,2010; p. 17)

Com essas regulamentações fica a cargo do poder público seguir

quatro pontos para agir em conjunto com as comunidades quilombolas. O

primeiro, através da regularização fundiária por competência do INCRA; o

segundo ponto está relacionado à infra-estrutura, com a construção de obras

que atendam as demandas dos remanescentes; o terceiro tem como ponto

central o desenvolvimento social e econômico, através do modelo sustentável

de produção de acordo com a especificidade de cada comunidade; e o quarto

ponto é mais de caráter politico e pontua o controle e participação social dos

quilombolas nos processos deliberativos e de tomadas de decisão.

O quadro atual dos remanescentes quilombolas é uma resposta as

situações de conflito que ainda persiste contra grupos sociais e econômicos

que tentam impor novas formas de dominação e controle politico, acreditando

assim que, hoje as comunidades devem ser também entendidas mais como um

lugar de posicionamento político determinado, e não tanto como um lugar

exótico.

Acontece, porém, que o texto constitucional não evoca apenas uma “identidade histórica” que pode ser assumida e acionada na forma da lei. Segundo o texto, é preciso, sobretudo, que esses sujeitos históricos presumíveis existam no presente e tenham como condição básica o fato de ocupar uma terra, que, por direito, deverá ser em seu nome titulada (como reza o artigo 68º do ADCT). Assim, qualquer invocação do passado, deve corresponder a uma forma atual de existência, que

Page 11: Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica

Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica, memória e preservação” 10

pode realizar-se a partir de outros sistemas de relações que marcam seu lugar em um universo social determinado. (O’DWYER, 2002; p. 14)

3. A Terra como Fonte de Reconhecimento Quilombola

Os Quilombos devem ser entendidos como uma comunidade

baseada nos laços familiares, construídas a partir de um padrão de vida

determinados pelo espaço geográfico e pelo momento histórico. Quando se

fala em espaço geográfico e momento histórico para caracterizar a nova

realidade quilombola, estamos postulando que diferente do que ocorria nos

tempos da escravidão, hoje a população afro-brasileira existente no país vive

em liberdade, os descendentes ainda sofrem com as injustiças, através do

sistema de dominação, marginalizando e mantendo o poder.

É através dessas praticas que embora se tenham um contexto

histórico diferenciado, com o processo capitalista e a globalização, não há uma

mobilidade social grande para os remanescentes de quilombos no mercado de

trabalho. Para uma definição de comunidade quilombola no atual contexto

social, adotaremos uma explicação usada pela Associação Brasileira de

Antropologia (ABA), para de delimitar tais comunidades.

Para a Associação Brasileira de Antropologia a categoria quilombo deve compreender todos os grupos que desenvolveram praticas de resistência na manutenção e reprodução dos deus modos de vida característicos num determinado lugar cuja identidade se define por uma referencia histórica comum, construída a partir de vivências e valores partilhados. Nesse sentido, eles se constituem em “grupos étnicos”, isto é configuram um tipo organizacional que confere pertencimento através de normas e meios empregados para indicar aflições ou exclusão, cuja territorialidade é caracterizada pelo “uso comum”, pela “sazonalidade das atividades agrícolas, extrativistas e outras e por ocupação do espaço que teria por base os laços de parentesco e vizinhança acentuados em relação de solidariedade e reciprocidade. (ASSUNÇÃO, 2009; p. 15)

Essa definição se assenta sob uma realidade em que não se pode

aplicar uma denominação histórica. O que de certa forma é justificável

compreender, é a relação que se tem entre identidade e as reminiscências do

Page 12: Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica

Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica, memória e preservação” 11

passado para explicar as relações sociais construídas, que determinam um

posicionamento situacional dos remanescentes quilombolas em uma esfera

permanente de conflito com o outro. Neste processo de demarcação de

fronteira, a terra e sua devida ocupação tem sua contribuição para também

afirmar a identidade da comunidade. O uso da terra pelas comunidades

quilombolas não se faz de modo individual, mas de uso comum de todo o

grupo.

O território é o elemento de construção da identidade étnica, que é o ponto mais importante da estrutura social. A permanência na terra não se faz regulado por categorias formais de propriedade e sim, pelo próprio grupo que determina, através do “direito Costumeiro”, as regras que orientam todos os planos da vida social. As formas de acesso a terra, incluem as dimensões simbólicas e as relações sociais. A estreita relação do grupo com a terra representa uma relação do grupo com a terra representa uma relação social bastante complexa e aponta para a existência da terra como território. (MALCHER, 2006; p. 08)

Esse uso comum da terra é o que dá uma primeira diferenciação em

relação a outros agentes sociais, posto que fornece uma construção do sujeito

coletivo e prioriza a recriação histórica de lutas para o reconhecimento pela sua

auto- identificação.

A terra é o elemento fundamental e que singulariza o modo de viver

e produzir das comunidades quilombolas. “Ancestralidade, resistência,

memória, presente e futuro sintetizam o significado das terras para essa

comunidade, fortemente marcadas pela tradição e respeito aos bens naturais

como fonte garantidora de sua reprodução física, social e econômica.” (PBQ,

2010; p.06).

A terra em si para os remanescentes quilombolas demarca um lugar

sagrado e de auto- afirmação como coloca Malcher:

Assim o território quilombola é entendido como resultante de elementos étnicos que se externalizam nas relações construída com e no território. Trata-se da reinvenção de elementos étnicos-culturais que conduzem a vida e dão sentido de pertencimento do lugar. Dessa forma, a terra na condição de território étnico, tem assegurando, ao longo do tempo, o sentimento de pertença, de identidade, a um lugar e a um grupo,

Page 13: Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica

Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica, memória e preservação” 12

a posse coletiva da terra e o desenvolvimento coletivo. (MALCHER, 2006; p. 09)

Assim a luta pela terra é fundamental para a manutenção e

valorização da identidade étnica quilombola atuando diretamente na esfera

politica e organizacional que define estratégias para o resgate histórico da

cidadania. “No processo de construção da identidade no território, as

identidades são construções de caráter simbólico e domínio de luta politica,

buscando afirmar a diferença do grupo, a fim de garantir a continuidade dos

seus valores e modos de vida”. (MALCHER, 2006; p.10).

Para tanto a terra se torna um elemento essencial, dotada de

sentido, de significados, com um espaço comum e não meramente um local

físico e demarcado, mais antes de tudo é a partir dela que se vivem as relações

de vida, das memórias do passado e do presente, do cotidiano.

Portanto, terra e quilombo são troncos entrelaçados de uma mesma árvore cujas raízes encontram-se no âmago da contraditória e complexa formação histórica e social do Brasil. A concentração fundiária alimenta todas as barreiras levantadas contra a promoção da cidadania para as comunidades quilombolas. Barreiras ideológicas, políticas, jurídicas e administrativas cujos os resultados são conflitos de interesse fomentados a fim de procrastinar toda e qualquer ação com vistas à regularização fundiárias dos quilombos. (PBQ, 2010; p.07)

É importante destacar que a questão de conflitos relacionados a

terra no país, vai além de encontrar soluções para o reconhecimento e

regularização dos limites das áreas das terras de preto. É uma situação ainda

maior, em decorrência dos vários problemas sociais instalados no Brasil nos

períodos remotos, não ficando assim restritos aos elementos étnicos e culturais

apenas e sim, pensar a questão agraria propiciando uma analise em que esteja

relacionados esses dois fatores.

Esse procedimento de pensar a estrutura agrária relacionalmente revela que ela não pode ser mais dissociada de fatores étnicos [...]. Um território quilombola não corresponde necessariamente a extensão de um ou vários imóveis rurais ou a um numero estimado de estabelecimentos, mesmo que as situações a ele referidas aparentemente assim sugiram. (ALMEIDA, 2002; p. 71)

Page 14: Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica

Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica, memória e preservação” 13

Por mais que se tenha avançado em direção ao reconhecimento das

terras de quilombos, e embora já existam aparatos jurídicos, antropológicos,

através de laudos, há uma predominância muito forte da defesa da propriedade

privada, deixando de lado uma visão mais social e cooperativa da terra, do seu

uso comum e em grupo.

4. Aspectos Identitários: de Stuart Hall a Fredrik Barth

Em seu livro: “A Identidade Cultural na Pós-modernidade” (2005),

Hall coloca abertamente que as discussões acerca do conceito de identidade

na comunidade cientifica de ciências sociais, em especial a sociedade

sociológica, não chegou a um consenso. Para Hall o argumento principal a ser

defendido, é de que no mundo globalizado as identidades estão passando por

um processo de deslocamento e fragmentação e isto tem, segundo ele, levado

alguns teóricos a afirmarem que as identidades estão em um estado de

esgotamento, de crise.

Um tipo de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final do século XX. Isto esta fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a ideia que temos de nós próprios como sujeitos integrados [...]. Esse duplo deslocamento -descentração dos indivíduos tanto do seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos - constitui uma “crise de identidade” para o individuo. (HALL, 2005; p. 09)

O que se procura argumentar é a ideia de que se está vivenciando

uma mudança comportamental e social dos indivíduos nas chamadas

“sociedades modernas”, uma mudança que se observa rearranjos dentro dos

sistemas econômicos, culturais e políticos, proporcionados pela globalização,

acarretando também um arranjo sobre as identidades. Assim nos dias atuais,

temos um complexo jogo de transformações, sobre as quais recai

principalmente ao poder da autonomia do individuo sobre si mesmo e sobre

suas praticas no cotidiano.

Page 15: Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica

Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica, memória e preservação” 14

Outro ponto fundamental dessa analise proporcionada por Stuart

Hall, é de que, segundo ele, nas sociedades modernas embora haja uma

tendência para que as identidades nacionais passem por cima das identidades

culturais mais particulares nesse processo intenso da globalização, ao

contrario, as identidades mais particulares sempre tem encontrado

mecanismos de defesa na sua própria história. Hall assinala para uma

dualidade entre o poder da estrutura global e uma forte tendência para os

rearranjos locais, em que segundo o próprio autor, se pode encontrar uma

maior valorização e uma maior aproximação em relação aos aspectos

peculiares do campo “local”, como um dos aspectos, alicerces para a

formulação de novos produtos de mercado.

Ou seja, ao mesmo tempo em que se tenta avançar para um

complexo jogo de homogeneização de identidades étnicas e seus campos de

significados, é possível também usar sua rica produção cultural, como mais um

elemento para o enriquecimento de produtos de mercado. “A globalização (na

forma da especialização flexível e da estratégia de criação de “nichos” de

mercado), na verdade, explora a diferenciação local. Assim ao invés de pensar

no global como “substituindo” o local, seria mais acurado pensar numa nova

articulação entre “o global” e “o local””. (HALL, 2005; p. 77)

Já Castells, em seu livro: “ O Poder da Identidade”, (2000), o autor

focaliza suas argumentação centrando-se em fatores que delimitam o

processo construtor do pertencimento do individuo a certa identidade. Esses

fatores são, como bem coloca Castells, desde fatores históricos, biológicos e

geográficos a fatores de cunho religioso e de memória coletiva.

A construção de identidade vale-se de matéria-prima fornecida pela história, geografia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas, pela memória coletiva e por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e revelações de cunho religioso. Porém, todos esses materiais são processados pelos indivíduos, grupos sociais e sociedades, que reorganizam seus significados em função de tendências sociais e projetos culturais enraizados em sua estrutura social, bem como em sua visão de tempo e espaço. (CASTELLS, 2000; p. 23)

Page 16: Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica

Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica, memória e preservação” 15

É importante ressaltar que para afirmar a validade da identidade não

é necessária a combinação de todos os elementos citados, mais antes de tudo,

o domínio que se terá sobre alguns deles, de como eles serviriam para passar

a ser um mecanismo eficaz na defesa dos ideais de pertença, a certa

particularidade que vá de encontro a posturas mais universalistas de agir e

pensar. “Neste caso, a construção da identidade consiste em um projeto de

vida diferente, talvez com base em uma identidade oprimida, porém

expandindo-se no sentido de transformação da sociedade como prolongamento

desse projeto de identidade”. (CASTELLS, 2000; p. 26)

O que na verdade está em jogo em todo esse processo, tem haver

com a forma pela qual as estruturas sociais convencionais dominantes, agem

em relação aos setores ditos e classificados como “marginalizados”, ou as

chamadas “minorias”. Sendo assim esses setores reagem em oposição,

através da construção e reinvenção de significados que em outro momento

foram eficazes para a manutenção de identidade própria, de sua autonomia

social e cultural, estabelecendo os limites de suas fronteiras com os outros.

Castells nos oferece um tipo de identidade, que seria uma identidade típica da

sociedade atual, a “Identidade de resistência” e a “Identidade de projeto”.

Identidade de resistência: criada por atores que se encontram em posições ou condições desvalorizadas e ou estigmatizadas pela lógica da dominação, construindo assim, trincheiras de resistência e sobrevivência com base em principio diferentes dos que permeiam as instituições da sociedade, ou mesmo opostas a estes últimos [...]. Identidade de projeto: quando os atores sociais, utilizando-se de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade e, ao fazê-lo, de buscar a transformação de toda a estrutura social. (CASTELLS, 2000; p. 24)

Essas duas categorias identitárias podem ser atreladas as

comunidades quilombolas, pois são comunidades que são excluídas pela

sociedade dominante e vivem uma vida diferente do modelo tradicional de

sociedade capitalista, um modelo baseado na competição de mercado, a

concorrência de produtos e entre pessoas e indivíduos, altamente centrada nos

processos de exclusão e compra e venda de produtos, como também, são

Page 17: Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica

Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica, memória e preservação” 16

comunidades que possuem certo aparato cultural enraizado nos hábitos

costumeiros e que ao longo do tempo vêm se transformando para acompanhar

o ciclo atual de desenvolvimento da nação.

De certo, as fronteiras parecem hoje serem difíceis de identificação,

ocasionadas pelo vários processos globais, mesmo assim, se aponta para o

alargamento da participação política em virtude de estarem reivindicando certo

tipo de identidade, antes marginalizada e tomada no esquecimento.

Para autores sociais excluídos ou que tenham oferecido resistência à individualização da identidade relacionada à vida nas redes globais de riqueza e poder, as comunas culturais de cunho religioso, nacional ou territorial parecem ser a principal alternativa para a construção de significados em nossa sociedade. Aparecem como reação a tendências sociais predominantes, às quais opõem resistência em defesa de fontes autônomas de significado. Desde o principio, constituem identidades defensivas que servem de refúgio e são fontes de solidariedade, como forma de proteção contra um mundo externo hostil. São construídas culturalmente, isto é, organizadas em torno de um conjunto especifico de valores cujo significado e usos compartilhados são marcados por códigos específicos e auto-identificação. (CASTELLS, 2000; p. 28)

5. A Identidade Étnica

No Brasil, quando se pretendia discutir o processo de

reconhecimento tanto dos remanescentes das comunidades indígenas, quanto

das comunidades remanescentes de quilombo, era recorrente a necessidade

de caracteriza-las por fatores biológicos ou histórico-culturais. Assim

acarretando um processo não condizente com a realidade investigada, pois se

tais características forem tomadas como as únicas possíveis para o

reconhecimento, é apontar para o desaparecimento de tais comunidades

tradicionais, especialmente no nordeste, onde os índios e os descendentes dos

povos quilombolas não possuem mais traços físicos e biológicos, que eram

fortemente encontradas nos seus antepassados, como cor do cabelo, formato

do rosto, tipo de cabelo e cor de pele.

O processo de reconhecimento das identidades quilombolas no

contexto atual vai além da identificação de certos traços culturais quem em

outro momento histórico foram mais acentuados e perceptíveis. O conceito

Page 18: Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica

Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica, memória e preservação” 17

estabelecido para classificar uma comunidade como quilombola nos tempos da

escravidão, não podem mais ser utilizados, pois se apresenta equivocado e

parado no tempo e frigorificado como diz, Alfredo Wagner Berno de Almeida:

O recurso de método mais essencial, que suponho deva ser o fundamento da ruptura com a antiga definição de quilombo, refere-se às representações e praticas dos próprios agentes sociais que vieram e constituíram tais situações em meio a antagonismos e violências extremas. A meu ver, o ponto de partida da analise critica é a indagação de como os próprios agentes sociais se definem e representam suas relações e praticas em face dos grupos sociais e agências com que integram. (ALMEIDA, 1999; p. 67)

Assim Alfredo Wagner propõe uma ruptura com tais definições

“frigorificadas”, para que se possa assegurar uma perspectiva jurídica e

antropológica, uma validação que condiz com as narrativas dos agentes sociais

quilombolas, e não validando apenas os escritos de fontes secundarias de

pesquisa. Atualmente é necessário entender não apenas os significados

culturais existentes e que permanecem com o passar do tempo, mas também,

é tentar compreender como são colocados os mecanismos que proporcione e

permanência e a sobrevivência dos remanescentes em suas comunidades,

numa relação constante entre identidade e memória, entre o “eu” e o “outro”.

Grande parte dos estudiosos que pretenderam analisar a questão da

identidade étnica, tiveram como uma de suas referencias teóricas a obra de

Barth. Este artigo também se utiliza das contribuições deste autor, afim de se

mapear a realidade investigada priorizando uma concepção de identidade que

se diferencie do modelo estático que se tinha ate os anos de 1969, ano da

publicação de sua obra. Barth prioriza uma concepção de identidade tendo

como foco motriz, o caráter mobilizatório dos indivíduos em decorrência das

mudanças ocorridas nos sistemas sociais.

Assim, o contato cultural e as mudanças ocorridas dentro dos grupos

étnicos como células identificadoras se dão pela defesa do seu campo de

atuação, ou fronteira étnica, o que vai diferenciar de outro grupo social, cultural

ou ate mesmo étnico. Para Barth, não se pode mais tomar como teor

classificatório da diversidade cultural, o isolamento geográfico e social de

Page 19: Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica

Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica, memória e preservação” 18

comunidades especificas, o que hoje em dia se torna evidente. É importante

afirmar que, com raras exceções, não existem sociedade que estejam em

completo isolamento.

É através da auto-definição e da auto-atribuição, que se tem a

constatação da identidade quilombola. Importante destacar que em outro

contexto, a identidade étnica de uma comunidade, seja ela quilombola, ou

indígena, era definida pelo outro, através de sinais externos como a

pigmentação da pele, e manifestações culturais produzidos pelos próprios

atores sociais. Assim para Barth, a auto- definição é a mola motriz que vai

orientar e organizar as interações dentro e fora do grupo. Segundo o autor, o

fator cultural deve ser levado em consideração não como um fator

determinante e classificatório da identidade étnica, mas sim como um resultado

da organização enquanto tal.

Pondo a ênfase no aspecto de “suporte cultural”, a classificação de pessoas e grupos locais como membros de grupos étnicos deve depender do modo como demonstram os traços particulares da cultura. Isto é algo que pode ser julgado objetivamente pelo observador etnográfico, na tradição cultural das áreas, indiferente a categorias e preconceitos dos autores. As diferenças entre grupos tornam-se diferenças nos inventários dos traços; a atenção é dirigida a analise das culturas, não a organização étnica. (BARTH, 1998; p. 191)

Barth coloca que não é o antropólogo ou o pesquisador que deve

estabelecer critérios, os traços culturais que devem ser utilizados para definir o

grupo étnico, é antes, o próprio grupo que definem quais serão os sinais

diacríticos que iram ser dados como atributivos e significativos na afirmação e

positivação da identidade.

“Nenhum desses tipos de “conteúdos” culturais deriva de uma lista

descritiva de traços ou de diferenças culturais; não podemos prever a partir de

princípios evidentes quais traços serão realçados e tornados

organizacionalmente relevantes pelos atores”. (BARTH, 1998; p. 194).

Esse sinal de identificação criado pelos grupos permite sua

existência e cria mecanismo de interação com outros setores, acarretando

assim em uma identidade relacional ou situacional.

Page 20: Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica

Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica, memória e preservação” 19

As características que são levadas em consideração não são a soma das diferenças “objetivas”, mas somente aquelas que os próprios atores consideram significantes [...]. O conteúdo cultural das dicotomias étnicas parecem ser analiticamente de duas ordens: 1. Sinais ou signos os --- os traços diacríticos que as pessoas procuram e exibem para demonstrar sua identidade, tais como vestuário, a língua, a moradia, ou o estilo de vida; 2. Orientações de valores fundamentais --- os padrões de moralidade e excelência pelos quais as ações são julgadas. Desde que pertencer a uma categoria étnica implica ser um certo tipo de pessoa que possui aquela identidade básica, isso implica igualmente que se reconheça o direito de ser julgado e de julgar-se pelos padrões que são relevantes para aquela identidade. (BARTH, 1998; p. 194)

Esses talvez tenham sido os principais pontos encontrados para

afirmar a contribuição da obra de Barth no que tange a questão da identidade

étnica, além é claro, do que ele define como fronteira étnica, que ele atribui

como o ponto central de sua pesquisa, como definidor do grupo étnico, e

devem ser entendidas como fronteiras sociais, e não fronteiras territoriais,

embora ele também não descarte esse recorte. “Além disso, a fronteira étnica

canaliza a vida social --- ela acarreta de um modo frequente uma organização

muito complexa das relações sociais e comportamentais”. (BARTH, 1998; p.

196).

As relações de reconhecimento tem por base o fortalecimento de

aspectos atributivos proporcionados pelos próprios agentes em um jogo de

exclusão e inclusão, que definem o dentro e fora, sem necessariamente atestar

para um isolamento de tempo e espaço, permitindo assim, esse contato com

outros grupos, e pessoas, a manutenção das fronteiras étnicas.

6- Memória e Preservação “Chifre do Bode”

Como já amplamente discutido, o que pode definir uma comunidade

como pertencente ou não a uma categoria étnica, não são mais, e apenas tão

somente, os seus traços culturais e sim as questões de auto-atribuição e auto-

identificação dos próprios atores frente a outros grupos.

Page 21: Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica

Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica, memória e preservação” 20

Mais os fatores culturais constituem um fator importante para

salvaguardar todo um simbolismo e reminiscências africanas do passado,

neste sentido, é importante dar visibilidade a tais aspectos, mesmo que eles se

exprimam tão somente na memória da comunidade “Chifre do Bode”.

Hoje esses costumes e tradições encontram-se na memória coletiva

e particular do lugar. E ainda de forma mais tímida no jeito de comemorar,

rezar. É através da oralidade do grupo, principalmente da população mais

idosa, é que se tem a perpetuação dos saberes, dos causos e das danças,

danças tais como: o coco de roda, reisado, pastoril, samba de coco, também

através da produção artesanal.

Uma manifestação cultural muito importante dentro da comunidade,

era o samba de coco, dança praticada durante o levantamento das casas de

taipa da comunidade.

A dança servia para pisar, untar e amassar o barro que depois seria

jogado para a formação da paredes e acontecia sempre em regime de mutirão.

Ao longo do tempo essa manifestação deixou de acontecer, pois as

construções passaram a ser de alvenaria. Como relembra Marizeti, a líder da

comunidade em depoimento dado no ano de 2010:

[...] e o pior que tinha tudo isso, eu sou nova, mais todo mundo dizia, os mais velhos sempre dizia que existia, que me lembro, eu menina lembro que na casa do meu pai, quando foram construir a casa lá de taipa, uma parte lá da casa, eles combinavam, todo mundo da comunidade e fazia um pagode, um reisado, era essa valsa. Eu nunca cheguei a dançar, mais eles contavam tudo que existia [...] (MARIZETI, 2010) .

As manifestações culturais folclóricas não são os únicos traços da

comunidade em relação aos seus antepassados, aos seus ancestrais, pois não

são as danças são lembradas, como também há ainda a confecção de

artesanato em palha e bordado, que denotam um aspecto singular do lugar,

assim como o uso das plantas medicinais. Como fornece em seu relato Dona

Soledade em 2010:

Eu fazia, hoje não trabalho mais não, muito cansada, já fiz muito bordado, fazia roupa, balaio, fazia tudo [...] ponto cheio, ponto de marca, ponto

Page 22: Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica

Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica, memória e preservação” 21

corrente que existia, só nunca fiz labirinto, ponto de fabrica [...], o balaio era feito de cipó, só faço agora quando aparece cipó bom, eu faço, semanada passada fiz dois balaios. [...] Eu aprendi com minha mãe, minha mãe fazia, nós somos três filhas “mulé”, e todas três faz essas coisas [...] (D. SOLEDADE, 2010).

É através da simplicidade demonstrada no modo de falar, de agir,

que se codifica o pertencimento ao grupo. Os membros do “Chifre do Bode”,

diferente do que se imaginava, não possuem uma característica particular

rudimentar, embora as vezes foi possível observar o uso de instrumentos

característicos do tempo em que a produção agrícola era baseada e

sustentada pelos moldes artesanais, como o uso de carros-de-boi, a confecção

de cestos de palha, do cultivo de hortaliças em canteiros, a criação de animais

soltos pelos quintais e cercas da comunidade.

No campo da preservação das tradições da realidade do “Chifre do

Bode”, há uma certa dependência de esperar a formação de grupos que

priorizem uma certa atividade e manifestação cultural, como bem focaliza

Marizeti, em sua colocação:

Até porque nunca foi formado um grupo, porquê essas coisas de repassar, é quando tem algum apoio de uma entidade, de alguém que diz: não, vamos formar um, ai nunca foi formado, nem pra essas coisas ai dos cestos que elas sabem fazer, nem pra cultura, quase nada, nunca foi formado um grupo [...] (MARIZETI, 2010)

As tradições estão hoje apenas presentes nas lembranças dos

remanescentes mais antigos. Embora exista a penetração de outros aparelhos

culturais na comunidade, há de forma mais positiva a reinvenção e restauração

dos valores ancestrais, que aparecem em cada momento de forma sentimental

e constituem a memória histórica do grupo para fortalecer sua identidade

quilombola.

No entanto, para uma defesa ampla dos seus valores culturais e

históricos, é necessária uma comunicação e uma articulação entre os

componentes do grupo afim de que a identidade que sempre foi oprimida possa

expandir, como também a busca de mecanismos que garantam e assegurem,

que possam ainda sustentar ao menos a memória coletiva do grupo. Neste

sentido, O Artigo 215º da Constituição Federal, garante a través do Estado

Page 23: Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica

Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica, memória e preservação” 22

Brasileiro, a preservação das manifestações das culturas populares, dos

indígenas e dos afro-brasileiros e de outros povos tradicionais que fizeram

parte da constituição e da formação da civilização brasileira. Já o Artigo 216º

se configura como:

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e cientifico. Parágrafo 1. O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro por meio de registros, vigilâncias, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação. (CASTRO, 2008; p.14)

Como a Constituição Federal prevê, e a UNESCO define que é

assegurando a defesa e a guarda de toda e qualquer manifestação, seja ela

através de objetos e construções históricas, objetos e utensílios que são

produzidos como meio de representação do cotidiano dos diversos grupos

sociais.

O artigo 2° da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (UNESCO, 2003) entende por patrimônio cultural imaterial: [As] práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados – que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. (CASTRO, 2008; p. 11-12)

Page 24: Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica

Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica, memória e preservação” 23

Salvaguardar o patrimônio imaterial é importante porque estes

constituem, constituem e são caracterizados por serem mecanismos, saberes e

tradições orais, modos de fazer e ritos, que estão presentes tão fortemente na

“Comunidade Chifre do Bode”. Seguindo a ordem de vigências instaladas pelo

artigo acima citado, é importante então que o poder público possa vislumbrar

para a importância de preservar tais bem com não só um instrumento simbólico

importante para as comunidades, como também para a memória do passado

histórico do Brasil.

O ponto importante a ser considerado é de que, hoje as

comunidades quilombolas, devem ter seus materiais históricos, tanto materiais,

como imateriais preservados e garantidos na forma constitucional. Vimos que

eles são detentores de uma identidade que teve suas primeiras formas ainda

no período escravocrata e atravessaram todo o desenvolvimento e formação

do Brasil sustentando características culturais, históricas e coletivas de modo a

cultuar as origens africanas dos seus antepassados.

Neste sentido cabe ao poder público, aplicar o que diz a Carta

Magna do Brasil, desenvolver projetos que viabilizem meios seguros da

promoção e desenvolvimento das comunidades em todos os seus aspectos.

Identificamos uma falta de tais regulamentações e procedimentos técnicos e de

implementação na Comunidade “Chifre do Bode”, o que demonstra que ainda

falta muito para que, o que garante a UNESCO, o IPHAN, e CF seja algo

concreto. Como todos outros projetos voltados para as comunidades

tradicionais, esse é mais um que não entra verdadeiramente em sua

aplicabilidade.

Page 25: Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica

Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica, memória e preservação” 24

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno. Os Quilombos e as Novas Etnias. In. Quilombos: identidade étnica e territorialidade. Eliane Cantarino O’Dwyer, organizadora. - Rio de Janeiro: FGV, 2002.

ARRUTI, José Mauricio Adion. A Emergência dos “Remanescentes”: notas para o dialogo entre indígenas e quilombolas - Salvador: ABA, 1997.

ASSUNÇÃO, Luiz. Jatobá: ancestralidade negra e identidade. - Natal, RN: EDUFRN, 2009.

BARTH, FREDRIK. Grupos Étnicos e suas Fronteiras. In. Teorias da Etnicidade. Philipe Poutignat, Jocely Streiff- Ferrat, trad. Elcio Fernandes. - São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998.

CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade. Trad. Gerhadt Klauss Brandini. 5ª ed. - São Paulo: Editora Paz e Terra, 2000.

CASTRO, Maria Laura Viveiros de. Patrimônio imaterial no Brasil / Maria Laura Viveiros de Castro e Maria Cecília Londres Fonseca. Brasília: UNESCO, Educarte, 2008.

CONSTITUIÇÃO FEDERAL DO BRASIL, - BRASILIA, 1998.

FARIAS, Ana Marcia de. Quilombos alagoanos contemporâneos: uma releitura da história. Ana Marcia de Farias... [et al]. - Recife: Bagaço, 2007.

HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade; Trad. Tomaz Tadeu da Silva, Guacira Lopes Louro. - 10.ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

MALCHER, Maria Albenize Farias. Identidade Quilombola e território. Artigo, Belém, 2006.

O’DWYER. Eliane Cantarino. Quilombos: identidade étnica e territorialidade - Eliane Cantarino O’ Dwyer, organizadora. - Rio de Janeiro: FVG, 2002.

PROGRAMA BRASIL QUILOMBOLA - Brasília: Versões 2005 e 2010.

SILVA, Igor Luiz Rodrigues da Silva. Comunidade Quilombola “Chifre do Bode”: identidade étnica, memória e territorialidade. Monografia, - Maceió: 2010.