cinema fim de século

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Lumina - Facom/UFJF - v.2, n.2, p.125-136, jul./dez. 1999 – www.facom.ufjf.br CINEMA FIM-DE-SÉCULO: O DOM DE ILUDIR Fernando Fábio Fiorese Furtado* > As duas gêneses da arte cinematográfica na cena finissecular. Os paradoxos estéticos do cinema primitivo: naturalismo ou artificialismo. A hibridação do cinema com as tecnologias eletrônicas e digitais: o caso Greenaway. Pensar o cinema nas duas cenas finisseculares que a sua história compreende significa contrapor as teorias e práticas que propugnam pela natureza essencialmente realista do filme e aquelas que o consideram um discurso feito de imagens, um fato de linguagem, algo construído, fabricado, manipulável e calculável, um artifício que transtorna os modos tradicionais de representação e percepção. O cinema prisioneiro do jogo realista-naturalista se submete ao modelo da técnica e da ciência, corroborando o projeto da Metafísica na medida em que se estabelece sob uma epoché na qual se realiza o agenciamento da realidade pela razão, pelo antropocentrismo e pelo logocentrismo. Inúmeras analogias podem ser estabelecidas entre as máquinas de visão (fotografia, cinema, videografia, holografia, infografia etc.) e o modelo positivista, segundo o qual toda atividade humana deve obediência à disciplina férrea da ciência, incluindo as criações artísticas e literárias. A própria gênese do aparato fotográfico no século XIX já revelava os vínculos de identidade e, ressalte-se, de servidão utilitária entre os mecanismos de reprodução mecânica da realidade e o projeto da razão na sua “mania pela Natureza”. À concepção do filme como suporte técnico para a fixação da realidade visível e tangível, condenando-o à “monografia das coisas” na sua vocação documental, vem somar-se outra: a do cinema de ficção como uma arte essencialmente realista, uma arte ilustrativa do mundo e da ciência. Portanto, ainda não estamos diante de uma arte que se poderia denominar “moderna”, embora engendrada no prefácio da modernidade. Para transformar o cinema em arte moderna seria necessário romper não apenas com os paradigmas da arte imitativa, mas principalmente com toda uma concepção de mundo baseada tanto

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CINEMA FIM-DE-SCULO: O DOM DE ILUDIR

Lumina - Facom/UFJF - v.2, n.2, p.125-136, jul./dez. 1999 www.facom.ufjf.br

Cinema Fim-de-Sculo: O Dom de Iludir

Fernando Fbio Fiorese Furtado*

> As duas gneses da arte cinematogrfica na cena finissecular. Os paradoxos estticos do cinema primitivo: naturalismo ou artificialismo. A hibridao do cinema com as tecnologias eletrnicas e digitais: o caso Greenaway.

Pensar o cinema nas duas cenas finisseculares que a sua histria compreende significa contrapor as teorias e prticas que propugnam pela natureza essencialmente realista do filme e aquelas que o consideram um discurso feito de imagens, um fato de linguagem, algo construdo, fabricado, manipulvel e calculvel, um artifcio que transtorna os modos tradicionais de representao e percepo.

O cinema prisioneiro do jogo realista-naturalista se submete ao modelo da tcnica e da cincia, corroborando o projeto da Metafsica na medida em que se estabelece sob uma epoch na qual se realiza o agenciamento da realidade pela razo, pelo antropocentrismo e pelo logocentrismo. Inmeras analogias podem ser estabelecidas entre as mquinas de viso (fotografia, cinema, videografia, holografia, infografia etc.) e o modelo positivista, segundo o qual toda atividade humana deve obedincia disciplina frrea da cincia, incluindo as criaes artsticas e literrias. A prpria gnese do aparato fotogrfico no sculo XIX j revelava os vnculos de identidade e, ressalte-se, de servido utilitria entre os mecanismos de reproduo mecnica da realidade e o projeto da razo na sua mania pela Natureza.

concepo do filme como suporte tcnico para a fixao da realidade visvel e tangvel, condenando-o monografia das coisas na sua vocao documental, vem somar-se outra: a do cinema de fico como uma arte essencialmente realista, uma arte ilustrativa do mundo e da cincia. Portanto, ainda no estamos diante de uma arte que se poderia denominar moderna, embora engendrada no prefcio da modernidade. Para transformar o cinema em arte moderna seria necessrio romper no apenas com os paradigmas da arte imitativa, mas principalmente com toda uma concepo de mundo baseada tanto na evidncia e na universalidade da ordem mecnica da Natureza e da sociedade quanto na naturalidade do cultural.

Compreende-se, pois, o paradoxo de uma arte que, mesmo se pretendendo realista, acaba por se configurar como uma alienao do real, conforme demonstraria, nos aspectos negativos do termo, o complexo ideolgico-industrial construdo em torno do whats your dream? hollywoodiano. A constituio do cinema como mquina semitica exigiria a superao dos limites do aparato tecnolgico para ser o transtorno do efeito de realidade, consoante as funes e finalidades inscritas no aparelho pela cincia positiva. Neste sentido, Walter Benjamin atribui fotografia e ao cinema a tarefa do desmascaramento ou da construo, recorrendo a uma assertiva de Bertolt Brecht:

... menos que nunca a simples reproduo da realidade consegue dizer algo sobre a realidade. (...) A verdadeira realidade transformou-se na realidade funcional. As relaes humanas, reificadas - numa fbrica, por exemplo -, no mais se manifestam. preciso, pois, construir alguma coisa, algo de artificial, de fabricado1.Os primrdios do cinema, seja como registro documentrio da realidade seja como construo da fantasia, j anunciam a problematizao do realismo e a crtica das antigas concepes de arte. Desde que seja possvel compreender o cinema primitivo a partir de sua insero na cena finissecular, caracterizada pela sangria das trs feridas narcsicas do homem ocidental e pela agudizao da questo da linguagem, torna-se evidente o seu papel no questionamento dos valores e conceitos da esttica tradicional mesmo considerando, conforme j salientamos, os dbitos dos primeiros realizadores em relao ao modelo realista-naturalista.

Nas scenes of the world e nas feries, quando o cinema ainda atraa menos como espetculo do que como inovao tcnica, como cinematgrafo, a utilizao que se confere nova tecnologia j prenuncia o transtorno da miragem naturalista. Os vnculos de identidade com a encenao da cincia e com a magia persistiro, principalmente na indstria cinematogrfica - embora progressivamente questionados ou abalados por cineastas e tericos.

Assim, se nos dispomos aventura do avessismo, mesmo nos filmes primitivos encontramos os fundamentos que permitem pensar o cinema para alm do logro realista. No se pretende, por exemplo, considerar o industrial e inventor Louis Lumire um artista moderno. Mas no se pode negar que os documentrios primitivos, no mais das vezes rodados por operadores annimos, encerram a busca da beleza passageira e fugaz da vida presente, o carter daquilo que Charles Baudelaire denominaria Modernidade2. Logo, o flneur cinematogrfico participa de um fenmeno que comporta tanto o aprofundamento da percepo, em conformidade com o ritmo, a velocidade e o movimento das metrpoles modernas, quanto a destruio do universo concentracionrio da sociedade urbano-industrial.

A ambigidade das relaes entre o homem moderno e o ambiente das grandes cidades produz angstia e ansiedade. Talvez por isso, os filmes primitivos elegeram como temas recorrentes a dinamizao de objetos e a heroicizao de todos os tipos de mquina - locomotivas, bondes, automveis etc. Nem mesmo o antropomorfismo que por vezes informa a metamorfose de objetos e mquinas em atores nos permite desconsiderar o cinema como partcipe da aventura do avessismo e do desvio que caracteriza as prticas contrrias ao projeto realista-naturalista.

Trata-se de alvejar de morte o carter antropocntrico do modelo positivista e de questionar o homem como medida do acontecimento do mundo, de alargar o universo das coisas percebidas e de abrir o inconsciente visual. Trata-se de convergir para o filme realidades e discursos proscritos pela tradio, de forma que o centro implode sob o fluxo incessante de imagens mais vivas do que a prpria vida, sempre instvel e fugidia3. Trata-se, enfim, de compreender os documentrios primitivos na perspectiva da vertigem que domina a percepo dos espectadores, do mundo que se constitui na espiral do artifcio das imagens, do jogo com as realidades que esto margem, da proliferao das sombras eltricas a engendrar a suspeita de toda referencialidade.

Os indcios de um transtorno do realismo pela vis cinematogrfica, que podemos desvelar nas vues de Lumire, se tornam ainda mais agudos nos filmes fantsticos de Georges Mlis. Neste caso, pensar no avesso do modelo realista-naturalista significa apreender no cinema os paradoxos da arte na cena finissecular. O paradoxo o reino de ao e a matria das feries de Mlis. Objetos imaginrios e metamorfoses fsicas so forjados pela justaposio e simultaneidade do no-simultneo e do incompatvel. Viagens impossveis resultam da fuso entre cincia e magia. A apresentao disjuntiva do tempo e do espao engendra a espacializao do tempo e a dinamizao do espao. A incorporao da matriz teatral desconcerta o comprometimento do cinema com a imitao do real, na medida em que introduz no filme a ostentao, o simulacro e o artifcio da representao dramtica.

Seja no registro documentrio do fugidio e do transitrio, seja atravs da mostragem das ferramentas e das estratgias da iluso cnica, o filme primitivo transtorna o projeto naturalista pela exposio pblica dos paradoxos da representao. Quando a fantasmagoria foi extrada da natureza4, definha o gosto pelo Verdadeiro e podemos habitar os parasos artificiais. Quando o clculo do artifcio e das monstruosidades enseja a negao do efeito de realidade, podemos exercitar a rainha das faculdades - a imaginao - contra o credo realista-naturalista. Quando o cinema se afirma como arte, no o faz sem incorporar os paradoxos da modernidade.

No fim do sculo XX, ao dom de iludir do cinema acrescentam-se os recursos das novas tecnologias eletrnicas e digitais (chromakey, pintura eletrnica etc.). Tornou-se impossvel falar de cinema sem referir-se aos recursos, processos e suportes videogrficos e infogrficos. Mais do que um simples canal de difuso do cinema, o vdeo coloca em questo o prprio carter mimtico-figurativo da imagem tcnica. Atravs das mltiplas possibilidades de manipulao das imagens eletrnicas entram em colapso a iluso especular, o efeito de duplicao do real, o modo de representao fotogrfica tradicional. Tanto as imagens granulosas e saturadas do vdeo quanto o aspecto hbrido, embricado e metamrfico das figuras numricas desafiam a linearidade e a natureza essencialmente realista que se atribuiu ao cinema.

acoplagem do cinema com o vdeo, cujas primeiras experincias remontam aos anos 60, acrescente-se a tecnologia digital e numrica. E assim j no falamos apenas de trucagens e efeitos especiais, nem da proliferao de recursos eletrnicos de ps-produo, nem do cinema em stricto sensu, mas da formao de uma verdadeira enciclopdia audiovisual da cultura contempornea, enciclopdia digital5. Tomando por objeto as imagens analgicas (fotografia, cinema, vdeo), as mquinas de tratamento digital radicalizam o transtorno do estatuto realista-naturalista do registro fotoqumico e eletrnico, na medida em que afirmam a imagem sem matria e anunciam a possibilidade do fim da cmera e do objeto de referncia.

O emprego das caixas pretas digitais (ADO, Ampex Digital Optics) nas ilhas de edio para realizar numerosos efeitos visuais, bem como dos programas de computao grfica (CAD, Computer Aided Design) na criao e visualizao de objetos ou modelos, para alm de disseminar e popularizar um novo vocabulrio - pixel, frame, imagem digital, imagem de sntese, virtual ou numrica, light pen (caneta tica), telecinagem, cinevdeo, wire frame (estrutura de arame), modelagem etc. -, implica em oferecer tecnologia analgica do cinema recursos, processos e suportes outros, capazes de materializar todos (ou quase todos) os produtos da imaginao. A produo de imagens, afirma Ivana Bentes, deixa de ser um efeito de duplicao e representao6 para se transformar na digitalizao e processamento em memrias de mquinas numricas de toda imagerie analgica tradicional - e, por fim, na produo de imagens libertas da referncia ao real preexistente.

As perspectivas anunciadas por esse hibridismo da indstria do audiovisual so mltiplas e encontram-se em aberto. Contudo, no se trata de decretar a morte do cinema, mas de acrescentar aos muitos cinemas um outro (talvez alguns outros): um cinema eletrnico, um cinema hbrido, de snteses (cinema + vdeo, cinema + informtica), um expanded cinema (cinema expandido), na feliz expresso de Gene Youngblood citada por Arlindo Machado7. Seja qual for o adjetivo que se lhe possa atribuir, experimentamos um cinema empenhado no questionamento da sua histria, da sua linguagem e do seu estatuto tcnico e esttico. Os modos cinematogrficos tradicionais de produo, representao e narrao h muito entraram em crise, seja pela elevao dos custos de produo, pela dispora do pblico ou pela desconstruo crtica da iluso especular e indicial da imagem flmica8.

Mas tambm no devemos minimizar o papel das tecnologias eletrnicas e infogrficas na agudizao da crise do cinema, na medida em que trouxeram para o mbito da produo audiovisual novos paradigmas perceptivos, estticos, plsticos e tcnicos, os quais esto a exigir do cinema o vigor e a potncia de reinventar-se para enfrentar os desafios do novo milnio. Nesta fase experimental, o cinema eletrnico no est livre dos excessos, dos maneirismos, dos retrocessos, do virtuosismo e do virtualismo vazios. Mas como ocorreu na passagem do cinema mudo ao sonoro, no poucos realizadores (Akira Kurosawa, Francis Ford Coppola, Wim Wenders, Peter Greenaway, dentre outros) j demonstram os caminhos plurais do acolhimento das novas tecnologias, produzindo filmes que respondem s novas configuraes da percepo e da sensibilidade na era do virtual. Sem jamais esquecerem que o cinema no pode ser apenas virtual, mas tambm (ou sobretudo) virtuoso9. Nas palavras de Arlindo Machado em Pr-cinemas & ps-cinemas:

Devemos, portanto, considerar o cinema no como um modo de expresso fossilizado, paralisado na configurao que lhe deram Lumire, Griffith e seus contemporneos, mas como um sistema dinmico, que reage s contingncias de sua histria e se transforma em conformidade com os novos desafios que lhe lana a sociedade. Como tal, ele vive hoje um dos momentos de maior vitalidade de sua histria, momento esse que podemos caracterizar como o de sua radical reinveno. A transformao por que passa hoje o cinema afeta todos os aspectos de sua manifestao, da elaborao da imagem aos modos de produo e distribuio, da semiose economia10.

As fraturas e tores operadas no cinema pela acoplagem com o vdeo e a infografia talvez nos permitam retomar caminhos que foram obliterados pela precoce hegemonia de determinados modos de narrativa, de representao do tempo e do espao, de produo, de montagem, de interpretao, de sintaxe e de semntica flmicas. Tais tecnologias abalam os paradigmas tranquilizadores da ordem cinematogrfica, radicalizando o desmonte do cran platonique: no mais a seduo especular do espectador, mas a afirmao da conscincia de linguagem, do filme como artifcio, como discurso produzido e controlado. Mais do que o remake, o cybercinema aponta para o refake, trocadilho criado por Srgio Augusto para definir um filme falsificado ou adulterado por uma, digamos, prtese visual11.

Aos que criticam o estatuto fake do cinema digital, podemos apenas dizer que - ao menos nas obras em que tal caracterstica se realiza em sentido amplo, no que ela significa em termos de interatividade, potencialidade e complexidade - este vem exacerbar em muito o enfrentamento dos paradoxos engendrados no mbito do cinema moderno. esttica realista-naturalista, ao perspectivismo do olho-cmera e impresso de realidade, o ps-cinema contrape o paroxismo do artifcio, as metamorfoses das imagens numricas, o avesso da cena da representao. E este novo mundo das imagens eletrnicas e digitais est a exigir outros modos de percepo, outras sensibilidades, outros imaginrios, outras estticas - decerto um outro artigo, capaz de pensar o filme como falsificao, como adulterao. Para alm da iluso naturalista, o cinema como artifcio.

Como Dioniso, duas vezes nascido, no final do sculo XX o cinema reencena os paradoxos de sua primeira gnese. No se trata de uma simples repetio, pois no eterno retorno no o mesmo que retorna, mas as diferenas. Em questo, ainda o embate entre a miragem naturalista e a esttica artificialista. Embora pretendssemos que, mobilizadas pela arte moderna, as foras centrfugas do devenir fou do real tivessem ferido de morte a lgica positivista da representao, ela retorna, revigorada pelo agenciamento das tecnologias eletrnicas e digitais em benefcio da constituio de um modelo capaz de dar conta da complexidade e heterogeneidade do real. Sob a rubrica do simulacro e do virtual, do virtuosismo tcnico e da hiper-realidade, ocultam-se os epgonos da arte imitativa, empenhados no clculo e no exorcismo dos acontecimentos do mundo atravs de uma imagerie que, mais do que a simples reproduo da realidade, acaba por engendrar, com base na alta resoluo e na excessiva exatido da forma-imagem, o domnio do atual pelo virtual, da coisa pelo signo, da representao pela apresentao instantnea.

Ao contrrio daqueles que, recorrendo a mquinas digitais e numricas, se dedicam a co-produzir simplesmente um sucedneo sensvel do real, a duplicar as aparncias do mundo em imagens homogeneizadas, diretores e videastas como Peter Greenaway e Zbigniew Rybczynski investem na produo de imagens que transtornam os paradigmas da arte mimtica. Em A ltima tempestade (Prosperos books, 1991), de Greenaway12, por exemplo, temos um filme-palimpsesto que contrape ao efeito de realidade uma potica do vago e do indecidvel.

Urdido a partir da acoplagem entre os registros fotoqumicos do cinema e as imagens videogrficas e sintticas, A ltima tempestade opera sobre o contnuo deslocamento das funes e finalidades de personagens e sons, de cores e sinais grficos, de figuras e palavras, comprometendo o carter representativo convencional dos signos. Nos termos da Semitica peirceana, os procedimentos adotados por Greenaway corresponderiam ao questionamento do carter indicial-analgico da imagem cinematogrfica, na medida em que privilegiam os quase-signos (cones e qualissignos13), saturando o cdigo flmico com elementos das linguagens plstica e musical, literria e teatral. Trata-se de investir no abalo da indicialidade, na iconizao do simblico, de modo a abolir a regra que determina o signo interpretante e, por conseqncia, restringe a semiose. Assim, o filme ele mesmo se torna um cone do cinema por vir, anunciando outras possibilidades de percepo e conhecimento do objeto, como explica Charles Sanders Peirce:

... uma importante propriedade peculiar ao cone a de que, atravs de sua observao direta, outras verdades relativas a seu objeto podem ser descobertas alm das que bastam para determinar sua construo. (...) Dado um signo convencional ou um outro signo de um objeto, para deduzir-se qualquer outra verdade alm da que ele explicitamente significa, necessrio, em todos os casos, substituir esse signo por um cone14.

Neste sentido, Greenaway concebe A ltima tempestade como um artifcio que coloca em questo os smbolos convencionados da linguagem cinematogrfica. Os diretores do cinema moderno j haviam abalado os pilares da narrativa clssica, dos modos de produo, da sintaxe e semntica flmicas, do estatuto do espectador. Em Greenaway o que est em questo a montagem visual consecutiva, o cinema como arte seqencial, sendo que a ruptura se d em grande parte graas aos recursos e processos da imagem eletrnica e digital. No apenas o redimensionamento da montagem no interior do plano, conforme elaborada por Sergei Eisenstein (com os tributos devidos s artes plsticas), mas principalmente a incrustao de uma imagem dentro de outra, de forma a romper com a centralidade ou a ordem do discurso flmico.

Instabilidade, incompletude, desmesura, polidimensionalidade, metamorfose, complexidade, descentramento, distoro e irregularidade so apenas alguns dos termos que devemos considerar diante de uma obra que j no adere ordem do cinema linear, nem se entrega ao caos da imagerie desenfreada e redundante. O quase-filme, o quase-signo do cinema em que se converte A ltima tempestade talvez explique a sua indecidibilidade entre a Renascena e o Barroco, entre a traduo literal e a transcriao da obra shakespereana, entre o pico e o dramtico, entre ser cinema e ser lugar de passagem de todas as linguagens. De qualquer forma, no mais o filme-documento, mas definitivamente o filme-simulacro.

A esttica artificialista do diretor ingls, alm de trabalhar sobre os diversos modos de ser da imagem no mbito da noosfera audiovisual contempornea, acolhe a queda dos valores da ordem, da simetria e da totalidade e investe contra as noes de duplicao e representao. A recorrncia retrica metamrfica do vdeo e ao efeito de obscuridade das imagens sintticas, bem como s poticas do fragmento e do detalhe, afirma o filme como o locus privilegiado da convergncia de linguagens, de modo que ali temos um possvel de formas, o processo no qual vislumbramos a linguagem de um outro cinema nascendo.

Notas

( Palestra proferida em 05 out. 1999 na V Semana de Artes, promovida pelo Departamento de Artes do Instituto de Cincias Exatas da UFJF.* Poeta e escritor. Professor do Depto. de Comunicao e Artes da FACOM/UFJF. Mestre em Comunicao pela ECO/UFRJ. Doutorando em Semiologia na Faculdade de Letras da UFRJ. Membro do Grupo de Pesquisa em Estticas de Fim-de-Sculo da Faculdade de Letras da UFRJ. 1. Apud BENJAMIN, 1985 : 106.

2. BAUDELAIRE, 1995 : 881.

3. Ibidem, 857.

4. Ibidem, 859.

5. BENTES, 1993-94 : 112.

6. Ibidem, 113.

7. MACHADO, 1997 : 212.

8. Acerca das trs crises do cinema, ver MACHADO, 1997 : 207-210.

9. AUGUSTO, 1996.

10. MACHADO, 1997: 213.

11. AUGUSTO, 1996.12. Caberia aqui uma polmica domstica com o Prof. Dr. Francisco Paoliello Pimenta, consoante as suas afirmaes no artigo Duas tendncias em Semitica, publicado no primeiro nmero desta revista: ... a obra The tempest, de William Shakespeare, foi praticamente reescrita [por Peter Greenaway em A ltima tempestade] com nfase total no cdigo verbal e nos elementos formais significantes da narrativa. Os personagens no parecem estar vivos, mas apenas representando um signo a mais, criado para ser mudo (PIMENTA, 1998 : 108).

13. Ver, por exemplo, o uso da cor em O cozinheiro, o ladro, sua mulher e o amante (The cook, the thief, his wife and her lover, 1989).

14. PEIRCE, 1990: 65.

Bibliografia

AUGUSTO, Srgio. O cinema entra na era do refake. O Globo, Rio de Janeiro, 13 abr. 1996, Segundo Caderno, p. 12.

BAUDELAIRE, Charles. Poesia e prosa. Trad. Ivan Junqueira et al. Rio de Janeiro : Nova Aguilar, 1995.

BENJAMIN, Walter. Magia e tcnica, arte e poltica: ensaios sobre literatura e histria da cultura. Trad. Sergio Paulo Rouanet. So Paulo : Brasiliense, 1985.

BENTES, Ivana. A enciclopdia digital. Cinema, Rio de Janeiro : Jorge Zahar, v. 1, n. 1, p. 112-9, 1993-94.

MACHADO, Arlindo. Pr-cinemas & ps-cinemas. Campinas : Papirus, 1997.

PIMENTA, Francisco Paoliello. Duas tendncias em Semitica. Lumina: Revista da Facom, Juiz de Fora : Editora da UFJF, n. 1, p. 85-110, jul./dez. 1998.

peirce, Charles Sanders. Semitica. Trad.: Jos Teixeira Coelho Neto. So Paulo: Perspectiva, 1990.