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Cinema Documentário Brasileiro Evolução Histórica da Linguagem Thiago Altafini Índice 1 Histórico do documentário brasileiro até os anos 60 3 1.1 Início da Produção Nacional .. 3 1.2 O Cinema Documentário Man- tendo a Produção Nacional ... 5 1.3 Humberto Mauro ........ 6 1.4 A Câmera do Poder ....... 7 1.5 São Paulo - Sinfonia da Metrópole 8 1.6 Década de 50 .......... 9 2 Nova Linguagem 12 3 Cabra marcado para morrer 16 4 Décadas de 70 e 80 20 5 Anos 90 22 6 Conclusões 24 7 Bibliografia 26 Introdução O filme documentário 1 , no sentido literal do termo, nasceu juntamente com os primór- dios do cinema no final do século passado. 1 Dentro do gênero documentário pode-se separar diversas categorias entre elas reportagens, cine jor- nais, filmes de natureza, filmes institucionais, etc. Neste trabalho o termo documentário foi assumido para conceituar os filmes que utilizam-se de imagens e de personagens "reais"de acordo com sua relevância histórica na evolução da linguagem do gênero. Os primeiros filmes produzidos pelos pionei- ros da fotografia em movimento tratavam-se de registros documentais das atividades ur- banas da época, como o final do expediente numa indústria, o balanço das folhas das ár- vores pelo vento, funerais, ou a chegada de um trem na estação 2 . No Brasil, os próprios novos donos de salas de projeção começaram a produzir as "vistas 3 para serem exibidas. Durante toda a história do cinema neste século o filme de atualidades se fez pre- sente, em produções como os cine-jornais, filmes institucionais, registros de expedições e acontecimentos históricos e outras docu- mentações. Com o advento da televisão, os documen- taristas puderam encontrar um suporte mais adequado ao gênero que nunca gozou de muita popularidade nas salas de exibição. A partir da década de 80 sugiram na Europa e EUA canais de televisão, principalmente a cabo, especializados em documentários e também canais convencionais que começa- ram a se interessar pelo gênero. No Brasil, o documentário juntamente com o cinema ficcional de curta metragem sempre teve o papel de escola para cine- 2 Primeiras imagens cinematografadas na história pelos descobridores desta técnica, os Irmãos Lumiere. 3 Cartões postais eram chamados de "vistas". No caso são como cartões postais cinematografados.

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Cinema Documentário BrasileiroEvolução Histórica da Linguagem

Thiago Altafini

Índice

1 Histórico do documentário brasileiroaté os anos 60 3

1.1 Início da Produção Nacional. . 31.2 O Cinema Documentário Man-

tendo a Produção Nacional. . . 51.3 Humberto Mauro . . . . . . . . 61.4 A Câmera do Poder. . . . . . . 71.5 São Paulo - Sinfonia da Metrópole81.6 Década de 50. . . . . . . . . . 92 Nova Linguagem 123 Cabra marcado para morrer 164 Décadas de 70 e 80 205 Anos 90 226 Conclusões 247 Bibliografia 26

Introdução

O filme documentário1, no sentido literaldo termo, nasceu juntamente com os primór-dios do cinema no final do século passado.

1Dentro do gênero documentário pode-se separardiversas categorias entre elas reportagens, cine jor-nais, filmes de natureza, filmes institucionais, etc.Neste trabalho o termo documentário foi assumidopara conceituar os filmes que utilizam-se de imagense de personagens "reais"de acordo com sua relevânciahistórica na evolução da linguagem do gênero.

Os primeiros filmes produzidos pelos pionei-ros da fotografia em movimento tratavam-sede registros documentais das atividades ur-banas da época, como o final do expedientenuma indústria, o balanço das folhas das ár-vores pelo vento, funerais, ou a chegada deum trem na estação2. No Brasil, os própriosnovos donos de salas de projeção começarama produzir as "vistas3 para serem exibidas.

Durante toda a história do cinema nesteséculo o filme de atualidades se fez pre-sente, em produções como os cine-jornais,filmes institucionais, registros de expediçõese acontecimentos históricos e outras docu-mentações.

Com o advento da televisão, os documen-taristas puderam encontrar um suporte maisadequado ao gênero que nunca gozou demuita popularidade nas salas de exibição. Apartir da década de 80 sugiram na Europae EUA canais de televisão, principalmentea cabo, especializados em documentários etambém canais convencionais que começa-ram a se interessar pelo gênero.

No Brasil, o documentário juntamentecom o cinema ficcional de curta metragemsempre teve o papel de escola para cine-

2Primeiras imagens cinematografadas na históriapelos descobridores desta técnica, os Irmãos Lumiere.

3Cartões postais eram chamados de "vistas". Nocaso são como cartões postais cinematografados.

2 Thiago Altafini

astas iniciantes. Porém, podemos encon-trar grandes diretores brasileiros que se es-pecializaram no gênero ou que continuaramproduzindo-o mesmo depois de consagrados,como o pioneiro Humberto Mauro, nas dé-cadas de 30 e 40, e posteriormente, EduardoCoutinho, Geraldo Sarno, Vladimir de Car-valho, Leon Hirzman, João Batista de An-drade...(década de 60, 70 e 80) e atualmente,João Moreira Salles, Aurélio Michiles, Ri-cardo Dias...(década de 90).

A partir de meados da década de 90, com aintrodução do sistema de televisão a cabo noBrasil, os cineastas documentaristas brasilei-ros começaram a desfrutar do espaço da tele-visão como destino de suas produções com osurgimento também de canais especializadose a maior possibilidade de venda de produ-ções para canais estrangeiros.

Apesar deste crescimento de mercado eespaço para o documentário, muitos poucostrabalhos teóricos são realizados no sentidode conceituar as formas de linguagem destegênero, e muito menos sobre suas reais pos-sibilidades.

O moderno documentário4, geralmentetrabalha com fragmentos de uma realidade,buscando a reflexão e a compreensão apro-fundada da questão abordada, deixando parao espectador o papel de relaciona-la com seucontexto histórico, econômico, político, so-cial e cultural. O documentário coloca ospróprios vivenciadores de determinada rea-lidade narrando suas impressões e experiên-cias muitas vezes de forma contraditória aotema da produção, mas contribuindo comoexemplo da complexidade da realidade abor-dada, permitindo ao espectador suas própriasconclusões.

4Produções documentais pós anos 60.

Este trabalho se fixou mais profundamenteno período dos anos 60 e 70 por ser nessaépoca o início do moderno documentáriobrasileiro que passa a inovar na linguagemdo gênero através de experimentações influ-enciadas pelo cinema ficcional. Os novosdocumentaristas rompem de uma certa ma-neira com o documentário clássico, de cará-ter oficial, onde as imagens são meras ilus-trações de narrações construídas com fina-lidades na maioria das vezes institucionais.Uma nova postura é assumida pelo docu-mentarista tanto nos temas como no respeitopelo documentado e o espectador.

Surgem então as discussões em torno dapresença do "real"no documentário e até queponto o que é documentado pode ser consi-derado "verdade". Esses cineastas passama assumir que os filmes são olhares, pontosde vista sobre a realidade, que podem gerarmuitas outras interpretações. Uma frasedo documentarista Geraldo Sarno, diretordo histórico filme VIRAMUNDO de 1965,resume muito bem esta nova postura: "O queo documentário documenta com veracidadeé minha maneira de documentar"5.Tivemosa oportunidade também de entrevistar o ci-neasta Eduardo Coutinho, diretor de um dosmais importantes filmes da cinematografiabrasileira, o CABRA MARCADO PARAMORRER 6, lançado em 1984. Coutinhoé considerado por muitos como o maiordocumentarista brasileiro e está entre osgrandes do mundo. Em entrevista concedidapara este trabalho, ele resume muito bem aforma de abordar do documentário: "Paramim só interessa o seguinte: tem um en-

5SARNO Geraldo. Quatro notas (e um depoi-mento) sobre o documentário. Filme cultura, Rio deJaneiro, no 44, p. 61-64, abr.-ago., 1984.

6q. v., p. 40.

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contro, tem uma câmera, tem um lado, temoutro, e está acontecendo alguma coisa, istoé extraordinário, porque o resto é bobagem,o tema nem interessa."

1 Histórico do documentáriobrasileiro até os anos 60

1.1 Início da Produção Nacional

A primeira tomada feita no Brasil foi em 19de julho de 1898 por Afonso Segreto, irmãode Paschoal Segreto, dono de salas de ci-nema e teatro e um dos maiores promoto-res de entretenimento do Rio e São Paulo naépoca.

Afonso fez a tomada voltando da Itáliaa bordo do navio Brésil, onde teria ido amando do irmão comprar novos equipamen-tos e filmes cinematográficos e familiarizar-se com a nova tecnologia. O primeiro planocinematográfico realizado no Brasil flagra aentrada do navio na Baia de Guanabara, Riode janeiro.

Depois desta primeira experiência, os ir-mãos começaram a registrar regularmente osacontecimentos cívicos e a elite brasileira.

Cerimônias, festas públicas,aspectos da cidade, são filmadospelos irmãos num momento cru-cial de transformações, tornando-se praticamente os únicos pro-dutores de cinema no Brasil até1903.(...) ...as ligações da fa-mília com o movimento operá-rio e uma possível ligação deAfonso com anarquistas faz comque documente aspectos polêmi-

cos dos acontecimentos políticosda época"7.

Em outubro de 1906, um crime abalou acidade do Rio de Janeiro. O caso se trans-formou em tema de dois filmes de sucesso,criando-se um gênero já explorado pelos jor-nais populares, o sensacionalismo. Segundoconsta, dois homens - Carlino e Paulino Fu-oco - foram estrangulados misteriosamente.A polícia carioca fotografou a retina de umdos cadáveres para tentar encontrar nelas oretrato do assassino. Ao final são presosJerônimo Pegatto, Rocca, Carletto e JoséEpitácio, condenados depois de um longoprocesso. Junto com o folheto, peças e re-vistas que também trataram do caso, Pas-choal Segreto, já mencionado, apresenta emnovembro de 1906 o filme ROCCA, CAR-LETTO E PEGATTO NA CASA DE DE-TENÇÃO, também de 1906.

Documentário que surpreendeos próprios exibidores. O interessepopular seria confirmado com umanova versão, estrelada por atoresde teatro, sob o título ’Os Estran-guladores’..."8

Eduardo Hirtz, um alemão que se mudoupara Porto Alegre ainda garoto, é conside-rado o pai do cinema gaúcho, tendo produ-zido de 1907 a 1915 uma série de filmes do-cumentários. Ele também produziu filmesde outros realizadores como A TRAJÉDIADA RUA DAS ANDRADAS (1911) do fo-tógrafo italiano Guido Panelo. O filme trata

7MOURA, Roberto. A Bela Época. In: RAMOS,Fernão. In: História do Cinema Brasileiro. 2a ed.,São Paulo: Arte, 1990. p. 18.

8Ibid., p. 32.

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de um assalto realizado numa casa lotéricadas Rua das Andradas, que culminou como assassinato de seu proprietário. Guido fil-mou tudo, inclusive a perseguição e mortedos quatro assaltantes. O filme atraiu multi-dões durante semanas.

Hirtz queimou seus filmes em 1915, comexceção de "Recreio Juvenil". O motivo foisua irritação com a perda de uma concorrên-cia.

Também em 1907, no Paraná, AnnibalRocha Requião, realiza seu primeiro "natu-ral"filmando o desfile militar de 15 de no-vembro. Ele era proprietário da Sala Smartde Cinema, inaugurada em 1908.

O ano de 1909 foi o mais produtivo paraRequião, quando produziu dezoito filmes.Mas a partir de 1912 sua produção come-çou a decair sensivelmente. Documentou avida social de Curitiba - atos públicos, fes-tas oficiais, reuniões e divertimentos da "so-ciedade chique"e também o interior do es-tado. Suas qualidades técnicas eram res-saltadas pelos jornais com comparações asmais nítidas fitas estrangeiras da Pathé Frèrese seu grande reconhecimento foi o sucessodo filme DA SERRINHA AOS PRIMEIROSSALTOS DO IGUAÇU de 1910.

Houve também a contribuição da produ-ção bahiana ao nascente do cinema brasi-leiro. Rubens Pinheiro Guimarães é consi-derado o homem forte do cinema bahiano naépoca, sendo exibidor e distribuidor de fil-mes nacionais. Por volta do ano de 1911,ele se associa aos documentaristas DiomedesGramacho e José Dias da Costa, que vinhamse dedicando a documentar a Bahia, suas tra-dições e festas populares, assim como a ca-pital e suas transformações urbanísticas.

Eles são os realizadores de SEGUNDAFEIRA DO BONFIM, de 1909. Juntos, os

três passam a produzir o LINDERMANN-JORNAL, tendo realizado em 1912 os de nú-mero 1, 2, 2A e 3, sendo que o número 4, oúltimo da série, data de 1913.

Em Belém, o espanhol Ramón de Bañosse dedica, a partir de 1909, à produção dedocumentários através da Pará Filmes, pas-sando no ano de 1912 a realizar cine-jornaisfeitos quinzenalmente. A filha de Baños,Dona Nieves, é citada por Roberto Moura9

quando destaca um desses "naturais"rodadoem 1912 chamado OS SUCESSOS DE 29DE AGOSTO, sobre dias fatídicos na histó-ria da cidade, com a queda de seu prefeito o"velho"Antônio Lemos, responsável pela re-forma de Belém, a fim de transformá-la aospadrões de uma cidade moderna.

A Pará Filmes também produziu outrosfilmes que completaram a série O DOU-TOR LAURO SODRÉ E OS ACONTECI-MENTOS NO PARÁ, dividido em três par-tes: EMBARQUE DO DR. LAURO, CHE-GADA NO PARÁ e o já citado O SUCESSODE 29 DE AGOSTO. Juntos eram um longametragem.

Na Manaus do início do século, SilvinoSimões dos Santos e Silva(1886-1970), ouSilvino dos Santos, como era chamado, re-alizou entre 1913 e 1930, 9 filmes de longametragem, 57 de curta e média metragem efez duas mil fotos da Amazônia, deixandoum dos mais importantes acervos de ima-gens históricas da região. Aprendendo a pro-fissão de fotógrafo e tendo prestado servi-ços para os grandes proprietários de terrasda região, Silvino teve financiada uma via-gem para Paris, pelo fazendeiro Júlio CésarArana, onde aprendeu as técnicas cinemato-gráficas nos estúdios da Pathé-Frères e nos

9Ibid., p. 26.

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laboratórios dos irmãos Lumiere. De voltaao Brasil, de posse de uma câmera Pathé e2.000 metros de filme virgem, ele dá inicioem 1913 as filmagens de ÍNDIOS WITO-TOS DO RIO PUTAMAYO, finalizado trêsanos depois e seu primeiro longa metragem.As populações indígenas serão personagensconstantes da obra de Silvino.

Durante praticamente toda sua vida,Silvino documentou a região amazônicaa serviço de coronéis fazendeiros. Re-alizou diversos filmes encomendadoscomo NO RASTRO DO ELDORADO, de1924, AMAZONAS, O MAIOR RIO DOMUNDO, 1920, NO PAÍS DAS AMAZO-NAS, 1922, entre muitos outros.

Estes filmes foram utilizados como propa-ganda e promoção dos grandes comercian-tes amazônicos, principalmente da borracha.Mas, isso não tira o valor dos filmes de Sil-vino. Pelo contrário, são exemplos de sofisti-cação técnica para a época e de experimenta-ção lingüística. Ele foi pioneiro de algumasformas de trucagens como montar seqüên-cias de trás para frente ou decupar as toma-das em vários ângulos e enquadramentos di-ferentes. Além disso, os filmes de Silvinoforam exibidos pelo país e também muito noexterior, alguns chegando a ser sucesso depúblico.

Outro pioneiro documentarista que reali-zou sua obra por intermédio de registros deexpedições é o major Luís Tomás Reis, quea cargo do Serviço de Fotografia e Cinema-tografia da Comissão de Linhas Telegráficas,documenta durante a década de 10 e 20 pe-culiaridades do interior do Brasil voltando-setambém para o registro de populações indí-genas. Seu principal filme foi OS SERTÕESDE MATO GROSSO, de 1916, que ele pró-prio exibiu por salas em todo Brasil.

1.2 O Cinema DocumentárioMantendo a ProduçãoNacional

O cinema brasileiro ficcional conhecera al-guma vitalidade artística e comercial no pe-ríodo que abrange de 1908 à 1912, a cha-mada Bella Época. Com a Primeira GuerraMundial inicia-se a primeira crise do cinemabrasileiro onde o mercado exibidor se rendea produção internacional e quando a cinema-tografia norte americana inicia seu monopó-lio comercial sob os industrialmente subde-senvolvidos.

Nas estatísticas relativas aos filmes exibi-dos nas salas brasileiras no ano de 1922:

A porcentagem do produto nacional de tãoínfima, é negligenciada. São 365 filmes:

Estados Unidos – 80,0%Alemanha – 8,0%França – 6,0%Itália – 2,5%E das demais nacionalidades frações

pouco ponderáveis10 In: Humberto Mauro,Cataguases, Cinearte. São Paulo: Perspec-tiva, 1974. p. 299.

Neste momento da primeira grave crise daprodução nacional, os "naturais"foram res-ponsáveis pela continuidade das filmagensem território nacional, mas também eram du-ramente atacados pela crítica da época. Umdos palcos de discussão da nascente cine-matografia brasileira foi o semanário ilus-trado Para Todos..., revista cultural surgidaem 1919 e dirigida por Álvaro Moreira eMário Behring. Seis meses depois do lan-çamento do semanário, este já possuía umarubrica especial sobre cinema. Com o su-

10SALLES GOMES, P.E. O Cinema BrasileiroVisto de Cinearte.

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cesso durante alguns anos deste suplementosobre cinema, e sendo Mário Behring o reda-tor cinematográfico, em 1926 surge Cinearte.Behring torna-se então um defensor dos "na-turais"nacionais como uma forma de críticaa hegemonia do cinema estrangeiro no Brasilde então.

Dentre os filmes comentados e elogia-dos por Behring em Cinearte estão: NosSertões do AVANHANDAVA, de ArmandoPamplona, DÊEM ASAS PARA O BRASILe O BRASIL GRANDIOSO, de Alberto Bo-telho e O PAÍS DAS AMAZONAS ,de Sil-vino dos Santos, todos da década de 20.

1.3 Humberto Mauro"Não sou literato. Sou poeta do cinema.E o cinema nada mais é do que cachoeira.Deve ter dinamismo, beleza, continuidadeeterna.11

Humberto Duarte Mauro é, segundo a de-finição de Paulo Emílio Salles Gomes, a pri-meira personalidade de primeiro plano reve-lada pelo cinema brasileiro.

O cineasta, nascido em Volta Redonda,em Minas Gerais, se mudou aos treze anospara Cataguases e fez desta cidade um dosmaiores focos da nascente do cinema bra-sileiro. De caráter investigativo, Humberto,era ator amador desde 1914, estudava me-cânica e era pioneiro em radioamadorismo.Sua primeira câmera foi uma Pathé-Baby de9,5 mm de bitola, e com ela fez seu primeirofilme de curta metragem, VALADIÃO, OCRATERA (1925), associado a Pedro Co-mello, um italiano que com ele iniciou o Ci-

11LOBATO, Ana Lúcia. Os Ciclos Regionais deMinas Gerais Norte e Nordeste (1912-1930). In: RA-MOS, Fernão. História do Cinema Brasileiro. 2a ed.,São Paulo: Arte, 1990. p. 93.

clo de Cataguases12. Aperfeiçoa-se fazendopequenas filmagens e em 1926 parte para fil-mes de ficção assinando NA PRIMAVERADA VIDA, seguido de TESOURO PER-DIDO (1928), BRASA DORMIDA (1929),SANGUE GUERREIRO (1930) e LÁBIOSSEM BEIJOS, de 1931. Em 1933, Hum-berto Mauro realizou seu primeiro filme fa-lado para a Cinédia, o semi-documentário13

CARNAVAL CANTADO NO RIO, e dirigiuGANGA BRUTA, para muitos seu primeirogrande filme. Realizou também A VOZ DOCARNAVAL, outro semi-documentário delonga-metragem.

No filme FAVELA DOS MEUS AMO-RES, de 1935, Mauro une imagens reais fil-madas na favela, com ficcionais e, segundoAndré Felippe Mauro14, este foi um dos pri-meiros filmes neo-realistas feitos no mundo.O ano de 1936 marcou uma guinada na car-reira de Humberto Mauro, a pedido do mi-nistro da Educação e Saúde, Gustavo Capa-nema, o professor Edgar Roquete Pinto criao Instituto Nacional de Cinema Educativo(INCE). Para levar adiante este projeto Ro-quete Pinto convida Humberto Mauro parafazer parte deste projeto. Com a estabili-dade trazida pelo instituto, Mauro deu iní-cio a uma de suas fazes mais produtivas coma produção de documentários educativos eculturais, além de estrear o longa metragemCIDADE MULHER e de fazer a fotografiado filme GRITO DA MOCIDADE. Realizapara o INCE um total de 28 documentários,entre os quais LIÇÃO PRÁTICA DE TAXI-

12Foco de produção cinematográfica na pequena ci-dade mineira.

13Filme de ficção realizado em locações reais.14VIEIRA, João Luiz. A Chanchada e o Cinema

Carioca. In: RAMOS, Fernão. História do CinemaBrasileiro. 2a ed., São Paulo: Arte, 1990. p. 181.

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DERMIA, UM PARAFUSO, DIA DA BAN-DEIRA DE 36.

Dois filmes documentários de curta-metragem, VITÓRIA RÉGIA e CÉU DOBRASIL, realizados em 1937, fizeram deHumberto Mauro o primeiro cineasta brasi-leiro a participar oficialmente de um festivalde cinema no exterior, sendo apresentados namostra oficial do Festival de Veneza. O filmeO DESCOBRIMENTO DO BRASIL, 1937,também foi exibido em uma mostra paralela.

Com técnica única trazida do cinema fic-cional, Humberto consegue tornar seus do-cumentários divertidos e interessantes e pro-duz mais 28 documentários por ano, em 38 e39. Após terminar o filme ARGILA (1940),Mauro passa um grande período sem reali-zar longas metragens, produzindo então umgrande número de filmes educativos curtos,com funções didáticas, entre os quais clássi-cos como, CARRO DE BOIS, MEUS OITOANOS, JOÃO DE BARRO, A VELHA AFIAR, HIGIENE DOMÉSTICA, além da sé-rie AS BRASILIANAS, sobre músicas fol-clóricas, talvez os primeiros "clips"musicaisproduzidos no Brasil. Realizou de 1940 até1964, aproximadamente 95 documentárioseducativos. Neste período realizou tambémapenas um longa-metragem, O CANTO DASAUDADE, de 1952.

1.4 A Câmera do PoderNa apresentação de sua Filmografia do Ci-nema Brasileiro: 1900-1935: jornal O Es-tado de São Paulo, Jean Claude Bernadet15

destaca que o estudo da história do cinema

15MENDES CATANI, Afrânio. A Aventura Indus-trial e o Cinema Paulista. In: RAMOS, Fernão. Histó-ria do Cinema Brasileiro.2aed.,São Paulo: Arte, 1990.p. 191.

brasileiro, em suas primeiras décadas, devepartir não do longa-metragem de ficção - que"é o sonho, a vontade, o ’verdadeiro’ cinema,mas exceção- e sim dos documentários decurta-metragem e dos jornais cinematográfi-cos, "pois é este tipo de cinema que durantedécadas foi o sustentáculo da produção e co-mercialização de filmes brasileiros".

O levantamento de Bernadet indica, igual-mente, que nada menos que 51 jornais cine-matográficos brasileiros apareceram nas te-las paulistas neste período. Essa tendênciadominada pela produção de documentários ecineatualidades, ainda prossegue durante asdécadas de 1930 e 1940. A exibição dos do-cumetários nacionais assegura a subsistênciade cinegrafistas e laboratórios, bem como ummínimo de continuidade cinematográfica emvários pontos do país.

Gilberto Rossi, dono da ROSSI REXFILME, realiza entre 1934 e 1936 pelo me-nos quinze números de A VOZ DO BRASIL.Além disso, entre os anos de 1937 e 1940, 30números de ATUALIDADES ROSSI REXsão projetadas nas melhores salas da capi-tal paulista. Muitos outros cinejornais sãoproduzidos em São Paulo. Destacamos ATI-VIDADES ESCOLARES, produção da Vi-tória Filmes, com quatro números em 1945;ATUALIDADES BRASILEIRAS, produçãoda Rossi Rex Filmes, com três números en-tre 1942 e 1946; ATUALIDADES CINEAC,produção da Campos Filme, com 35 núme-ros entre 1941 e 1942; REPORTAGEM CI-NEMATOGRÁFICA, produção de WilliamGerick e da Cia. Americana de Filmes S.A.,com cerca de 12 números entre 1940 e 1941.

No período do Estado Novo (1937-1945),o DIP (Departamento de Imprensa e Propa-ganda) e os DEIPs (Departamentos Estadu-ais de Imprensa e Propaganda) acabam por

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dominar a produção de jornais cinematográ-ficos, eliminando os concorrentes e levandoao desaparecimento a maioria das produtorasindependentes. A propaganda (governamen-tal ou privada) era a base de sustentação dosfilmes documentais.

Muitos cine-jornais foram produzidosatravés do DIP (Departamento de Imprensae Propaganda) e dos DEIPs (Departamen-tos Estaduais de Informações e Propaganda).São exemplos destes institucionais governa-mentais o DEIP DOCUMENTÁRIO, com 46números editados entre 1942 e 1946; o DEIPJORNAL, com aproximadamente 100 núme-ros entre 1941 e 1945; o DEIP JORNALSUPLEMENTO, com quatro cinejornais nosanos de 1944 e 1945; o DOCUMENTÁ-RIO DEI, com oito cinejornais no ano de1945; o JORNAL CINEMATOGRÁFICO,com 35 edições entre 1945 e 1946. Essescine-jornais não gozavam de muita simpatiada crítica e eram alvo constante das vaias dosespectadores.

Analisando os documentários e cinejor-nais produzidos desde o início do século,Bernadet não hesita em afirmar que paraos primeiros quinze ou vinte anos, "a câ-mera do documentarista era a câmera do po-der". A produção cinematográfica brasileiraassentava-se num documentário "exclusiva-mente ligado a uma elite mundana, de que oscineastas são dependentes"16. A situação nãose modifica quase nada na década de 1930e 1940, pois a elite continuava a financiaras produções diretamente, através de docu-mentários de empresas ou de empreendimen-tos comerciais ou indiretamente, através decine-jornais políticos. Paulo Emílio17, em

16Ibid., p. 19417Ibid.

comunicação apresentada ao I Simpósio doFilme Documental Brasileiro (Recife, 1974)já tinha chamado de "ritual do poder"um dosaspectos básicos desses naturais. Ele referia-se aos inúmeros filmes que relatam atos dospresidentes da República e da elite do poder.Entretanto, acrescenta Bernadet,

Esta qualificação pode ser es-tendida a filmes que não tratemapenas dessa personalidades e atéabordem assuntos populares, mas aaproximação se dá através dos atosda elite, a reboque dela18 ".

1.5 São Paulo - Sinfonia daMetrópole

São Paulo - Sinfonia da Metrópole. Este do-cumentário, realizado em 1929 é, do pontode vista da técnica cinematográfica, uma dasobras mais significativas deste período. Suasfilmagens se estenderam por um ano e mos-tram uma preocupação estética nos enqua-dramentos, movimentos de câmera e escolhada luz, rara na época. Seus realizadores, Ro-dolfo Rex Lustig e Adalberto Kemeny, eramhúngaros e já faziam cinema desde os 17anos de idade. Depois da primeira guerraforam para Berlim trabalhar em estúdios ci-nematográficos alemães. Em 1922, Rodolfoveio sozinho para o Brasil e em 1926, já dire-tor técnico da Independência Filmes em SãoPaulo, de Armando Pamplona, mandou bus-car Adalberto na Alemanha. Em 1928 com-praram o prédio e o acervo da produtora efundaram a Rex Filmes.

São Paulo, Sinfonia da Metró-pole, apesar de realizado por imi-

18Ibid.

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grantes, sofre de um incurável malbrasileiro. O não saber dizer semgritar. O jornalismo brasileiro fazisso desde o século passado. O ci-nema seguiu-o. Todo o documen-tário, particular ou governamentalé escancaradamente laudatório.19

É evidente o espírito oficial do filme,acompanhando cerimônias militares, fil-mando prédios de Secretarias de Estado, umtravelling da Av. Brigadeiro Luiz Antôniopara mostrar o prédio do Cine Paramount.Porém, a temática urbana foi documentadaneste filme com uma outra forma de olhara metrópole, registrada através de movimen-tos de câmera, enquadramentos e montageminspirados na vanguarda européia.

(...) A câmera pratica a cum-plicidade do jornalismo cinemato-gráfico, São Paulo vai ao sublime:jornaleiros disputando o estribo dobonde com o cobrador, ou saindoàs pressas das redações, trabalha-dores comendo na calçada, ope-rário consertando o toldo da loja,transeuntes eternamente apressa-dos em ruas e viaduto.20

Apesar de ter sido um marco da experi-mentação na linguagem cinematográfica bra-sileira em sua época e de sua grande reper-cussão, São Paulo - Sinfonia da Metrópolenão deixou sucessores. Demorará muito,mais de 40 anos, para o surgirmento de ou-tros filmes com a mesmo experimentalismo.

19BARRO, Máximo. São Paulo, Sinfonia da Me-trópole. www.faap.br/facom/revista/0404.htm

20Ibid.

1.6 Década de 50Final da década de 40, o Brasil vivia seu cha-mado período democrático, a época de aber-tura entre o Estado Novo e o Golpe de 64. Oclima político no Brasil representa como emtodo mundo, o antagonismo entre os ideaissocialistas e o capitalismo. Neste contexto,surge na São Paulo de 1949, A CompanhiaCinematográfica Vera Cruz, idealizada peloengenheiro italiano Franco Zampari e cujolema era "Produção Brasileira de Padrão In-ternacional". O objetivo da Vera Cruz era odesenvolvimento de uma produção cinema-tográfica brasileira em escala industrial e suaestrutura foi montada tendo como principalinfluência a indústria de Hollywood, cons-truindo estúdios gigantescos e caros e impor-tando os melhores equipamentos do mercadointernacional.

A produção da Vera Cruz se caracterizoujustamente por esta proposta industrialsendo produzidos alguns documentários delinguagem clássica e de curta metragemcomo PAINEL (1950) e SANTUÁRIO(1951), dirigidos por Lima Barreto. Mas,o principal produto da Companhia e ogênero pelo qual foi consagrada comercial-mente no mercado nacional foi a Chanchada.

Cinema Novo

"Há momentos na história emque a conjunção de fatores an-tes dispersos cristaliza potencia-lidades. Surgem então manifes-tações artísticas especialmente vi-gorosas. Para o cinema brasi-leiro a década de 1960 parece tersido um destes momentos privile-giados(...) as manifestações artísti-

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cas mais vigorosas da cultura naci-onal, encontra nessa década condi-ções particulares para se expandirno campo cinematográfico"21.

O Cinema Novo começa a germinar nosdebates e Congressos de Cinema realizadosem 1952-53 como o I Congresso Paulista doCinema Brasileiro (1952), I Congresso Naci-onal do Cinema Brasileiro, no Rio de Janeiroe o II Congresso Nacional do Cinema Brasi-leiro, em São Paulo, 1953.

Quase nada do que se fez de-pois deixou de trazer a marca dasconquistas obtidas nos Congres-sos. A consciência da inferiori-dade econômica do cinema bra-sileiro em seu próprio território,sublinhada ao mesmo tempo peloconscientização cultural de um ci-nema de possibilidades revolucio-nárias, principiou nas discussõestravadas nesses congressos. Anosdepois, Paulo Emílio Salles Gomesteorizou sobre a ideologia do ocu-pado e do ocupante. Nos congres-sos, o ocupado reconhecia, pelaprimeira vez, a face do ocupante.22

Uma nova geração de cineastas, críticos aocinema que vinha sendo produzido no Bra-sil, estava surgindo. Essa geração vinha in-fluenciada por movimentos cinematográficos

21RAMOS, Fernão. Os Novos Rumos do CinemaBrasileiro. História do Cinema Brasileiro. 2a ed., SãoPaulo: Arte, 1990. p. 301.

22 MENDES CATANI, Afrânio. A Aventura Indus-trial e o Cinema Paulista. In: RAMOS, Fernão. His-tória do Cinema Brasileiro. 2a ed., São Paulo: Arte,1990. p. 278.

internacionais como o Neo-realismo23 itali-ano, o surgimento da Nouvelle Vague24 fran-cesa, estas também influenciadas pelas teo-rias russas da montagem de Eisenstein e ocine-olho, de Dziga Vertov25.Esse quadroavança para uma ruptura da nova geração decineastas com os padrões de produção adota-dos até então.

Dois documentários são considerados pre-cursores do Cinema Novo. O primeiro é AR-RAIAL DO CABO (1959), de Paulo CézarSaraceni em parceria com o fotógrafo MárioCarneiro. O filme foi rodado inteiramenteem locações externas, retratando a vida so-cial de uma comunidade de pescadores in-teiramente dissolvida pela instalação de umaindústria nas redondezas.

A volúpia diante da representa-ção do popular e a exaltação a par-tir de uma ótica particular, do uni-verso que não é dos cineastas, sur-gem nesse filme pela primeira vezno cinema brasileiro26.

Ao lado de ARRAIAL DO CABOdestaca-se como essencial nos primórdios do

23Movimento cinematográfico italiano surgido du-rante a II Guerra Mundial, que utilizava imagens do-cumentais e abordava temáticas realistas da fase pelaqual a Itália e toda Europa atravessavam. São repre-sentantes desta corrente realizadores como RobertoRosselini e Vittorio de Sicca.

24Movimento cinematográfico francês do final dadécada de 50 cujo os principais realizadores foramJean Luc Godard e François Truffaut. Os princípioseram próximos ao Cinema Novo de libertar as câme-ras de tripés e estúdios para documentar as ruas e ocotidiano.

25q.v., p. 30.26Os Novos Rumos do Cinema Brasileiro. História

do Cinema Brasileiro. 2a ed., São Paulo: Arte, 1990.p. 317.

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Cinema Documentário Brasileiro 11

Cinema Novo o documentário ARUANDA(1960), de Linduarte Noronha.

O roteiro original de Noronha chamadode TALHADO, A CIDADELA DE BARRO,ARUANDA, foi filmado em 40 dias na Serrado Talhado, no município de Santa Luzia doSabagi, Paraíba, e aborda a vida rural numacomunidade de antigos negros escravos per-dida no interior do estado.

Visto hoje, fora do contextohistórico que lhe deu relevo, ARU-ANDA pode parecer um sim-ples documentário feito por mãospouco hábeis. No segundo semes-tre de 1960, o filme vinha, no en-tanto, ao encontro de certa sede derealidade brasileira dos ambientescinematográficos do Rio de Janeiroe também de São Paulo. A pre-cariedade de meios aparece comouma de suas principais qualidades:realizado por mãos quase amado-ras, revelava a imagem autênticado Brasil: de um Brasil que vaiser especialmente caro à geraçãocinema novista, o do sertão nordes-tino.27

O cineasta Glauber Rocha, em 1960, sa-lientou em artigo escrito no Jornal do Bra-sil intitulado: DOCUMENTÁRIOS: AR-RAIAL DO CABO E ARUANDA que osdois filmes são os primeiros sinais de vida dodocumentário brasileiro. Palavras de Gláu-ber:

Os autores desconhecem asleis gramaticais da montagem(...)são dois primitivos, dois selvagens

27Ibid., p. 319

com uma câmera na mão (...) umaforça interna no entanto nasce da-quela técnica bruta e cria a todahora um estado fílmico que se im-põe28.

Foi no Cinema Novo que o documentáriobrasileiro alcançou suas maiores realizações.A maior parte dos cineastas cinemanovistascomeçaram com o documentário de curta-metragem.

CPC

O moderno documentário brasileiro tam-bém nasceu nas universidades sendo produ-zido pelo movimento estudantil através daUNE que vivia épocas de liderança nos mo-vimentos populares. O CPC (Centro Popularde Cultura), entidade vinculada a UNE, de-senvolvia projetos de difusão de cultura atra-vés de diversos meios de comunicação e ati-vidades artísticas estimulando a organizaçãode outros centros de cultura em outros esta-dos.

Um dos dois filmes de longa metragemque o CPC produziu foi o documentárioCINCO VEZES FAVELA (1962), filme decinco episódios, dirigido por cinco diretoresdiferentes, intitulados UM FAVELADO, deMarcos Farias, ZÉ DA CACHORRA de Mi-guel Borges, ESCOLA DE SAMBA ALE-GRIA DE VIVER de Carlos Diegues, PE-DREIRA DE SÃO DIOGO de Leon Hirsz-man e COURO DE GATO de Joaquim Pedrode Andrade. Os filmes retratam os contrastessociais através do cotidiano nas favelas.

O outro longa metragem produzido peloCPC foi CABRA MARCADO PARA

28Ibid., p. 320.

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MORRER 29 , iniciado em 1964 e dirigidopor Eduardo Coutinho. Este filme é um dosobjetos de análise desta pesquisa.

2 Nova Linguagem

O Cinema Novo trouxe uma nova geraçãode cineastas documentaristas brasileiros quecitavam como mestres Jean Rouch, JorisIvens, Chris Maker, François Reichenback,Richard Leacock ou Mario Ruspoli, realiza-dores contemporâneos do Néo-realismo ita-liano e, posteriormente, da Nouvelle Vaguefrancesa, movimentos influenciados pelas te-orias do cineastas russos Dziga Vertov e Ser-gei Eisenstein. O primeiro defendia o fim docinema ficcional e exaltava o cinema docu-mental como sendo o único cinema "puro",o "cine-olho"em que o realizador libera acâmera de estúdios e tripés e é empunhadapelo fotógrafo que parte para o mundo, filmao "real"e o exibe ao povo, conscientizando-o para sua situação de explorado e as con-tradições da sociedade. É exatamente issoque ele faz percorrendo Moscou no filmeO HOMEM COM A CÂMERA NA MÃO(1929). Já Eisenstein elaborou sua com-plexa teoria da montagem cinematográfica30. Desta forma, esses movimentos influ-enciaram um documentário de autor, ondecada tema documentado exige a sua forma detratamento, sua própria linguagem, sem pa-drões pré-estabelecidos, "cinema do própriosujeito". Um cinema de montagem mais ex-

29q.v.p. 4030Com os métodos métrico, rítmico, tonal, atonal

e intelectual, que utilizou em filmes como A GREVE(1924), O ENCOURAÇADO POTEMKIN (1925), eOUTUBRO (1928). In: EISENSTEIN, Sergei. AForma do Filme, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1990.

perimental para documentar temas até entãoinexplorados e que não era produzido comum caráter comercial, destinado a um mer-cado. Na verdade, esses filmes eram produ-zidos por pessoas que acreditavam na possi-bilidade de transformação social através docinema, da conscientização do povo brasi-leiro para seu subdesenvolvimento.

A proposta do documentário que surgiucom o Cinema Novo era assumir uma pos-tura crítica diante da realidade brasileiramas, acima de tudo estava a questão ética.A postura do cineasta diante de seu públicose transformava. Antes o documentário eraproduzido com a finalidade de registrar uma"ilusão"de realidade e difundir aquele mate-rial filmado como uma idéia fechada, sempossibilidade de interpretações, onde a pró-pria narrativa generalizante direciona o es-pectador para uma recepção passiva, simpli-ficando a complexidade do real. Agora, ocineasta fazia questão de deixar claro paraseu público que aquilo era um filme, aqueleregistro era um só olhar sobre determinadarealidade, que poderia deixar margem paraoutras interpretações dependendo do nívelde consciência e de conhecimento da pes-soa para com aquela realidade documentada.Para isso eram utilizadas várias técnicas en-tre elas mostrar o cineasta no quadro comointerlocutor dos depoimentos, como tambémmostrar a equipe de produção, a captação deimagem e de som. O cineasta adota uma pos-tura de respeito e sinceridade para com o es-pectador31.

A montagem também deixa de ser umamera colagem de imagens ilustrando a lo-

31Trata-se de impedir que o espectador seja "em-briagado"pela narrativa fílmica e que esteja sempreciente e avisado da manipulação.

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Cinema Documentário Brasileiro 13

cução do narrador e passa a ser experimen-tal, fragmentada, não linear, instigando o es-pectador, despertando nele uma atitude ativadiante da obra, permitindo que ele própriotrace conexões da informação do filme comsua experiência própria, sua vivência, que eleinternalize o caos da fragmentação e da nãolinearidade e monte por si próprio sua inter-pretação da obra e da realidade que ela docu-menta.

A chegada ao Brasil de novas tecnologiasde captação de imagem e som também influ-enciaram as novas linguagens. Os cineastaspassaram a utilizar câmeras de 35mm maisleves e compactas e também chegam as câ-meras de 16mm. Essa característica de li-berar as câmeras de suas antigas limitaçõesfoi uma das grandes características do Ci-nema Novo sintetizada na frase cunhada porGlauber Rocha "Uma Câmera na Mão e umaIdéia na Cabeça"que se tornou slogan do mo-vimento.

Uma nova estética passa a surgir com anova forma de utilizar as câmeras. A ima-gem não é mais limpa, estática, devidamenteiluminada e sim a câmera na mão provocaoscilações, tremores, ela se locomove com ocaminhar do fotógrafo, não são utilizados fil-tros, a luz é natural, estourada, portanto, namaioria das vezes, deficiente. Muitas vezessão utilizados negativos vencidos que ori-ginam imagens super-contrastadas mas quesão incorporadas a concepção estética dofilme.

Na área da sonorização, acontecia uma re-volução com a possibilidade da utilização dosom direto, através de gravadores portáteiscomo o Nagra. Até então, tudo era filmadosem som, sendo que a sonorização era re-alizada posteriormente a captação das ima-gens, em estúdio e, como na maioria das

vezes era impossível levar as pessoas do-cumentadas para o estúdio para gravar seudepoimento, este era substituído pela narra-ção, pela voz oficial, a "voz do saber". Osom direto vinha permitir a gravação da "vozda experiência"no momento original de seudepoimento possibilitando a escuta da ver-dade, sem interpretações formais, com a en-tonação do próprio entrevistado, seu racio-cínio, sua compreensão da realidade que ocerca e oprime. A tomada de depoimentosao vivo na rua sobre qualquer assunto quedepois a televisão banalizou aparece nesteperíodo como uma das inovações de lin-guagem do cinema brasileiro desta época.São representantes desta estética documentá-rios como OPINIÃO PÚBLICA, 1967, dire-ção de Arnaldo Jabor, GARRINCHA, ALE-GRIA DO POVO, 1962, de Joaquim Pedrode Andrade, MAIORIA ABSOLUTA, 1964de Leon Hirszman ou mesmo em ficçõescomo A GRANDE CIDADE de Cacá Die-gues, 1966.

Não podemos deixar de citar como umadaas peersonalidades mais atuantes do ci-nema documentário neste período o produ-tor, fotógrafo e realizador Thomaz Farkas,participante de alguma forma em grandeparte dos documentários produzidos no pe-ríodo. Foi o produtor de cinco dos mais im-portântes documentários representantes doCinema Novo. São eles: VIRAMUNDO,de Geraldo Sarno, NOSSA ESCOLA DESAMBA, de Manuel Horácio Gimenez,OS SUBTERRÂNEOS DO FUTEBOL, deMaurice Capovilla, MEMÓRIA DO CAN-GAÇO, Paulo Gil Soares, todos filmes pro-duzidos entre 1964 e 1965 e lançados reuni-dos num longa metragem chamado BRASILVERDADE, de1968.

A geração do Cinema Novo também fez

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da falta de condições e de estrutura um ele-mento de sua estética. As barreiras técnicasencontradas pela falta de recursos financei-ros gerados pela própria situação subdesen-volvida do cinema brasileiro foram incorpo-radas como um elemento de linguagem quecaracterizou e consagrou internacionalmentea estética do Cinema Novo, a "Estética daFome"32.

"A carência deixa de ser obstáculo e passaa ser assumida como fator constituinte daobra, elemento que informa a sua estrutura edo 0qual se extrai a força da expressão, numestratagema capaz de evitar a simples cons-tatação passiva (’somos subdesenvolvidos’)ou o mascaramento promovido pela imitaçãodo modelo imposto (que, ao avesso, diz denovo ’somos subdesenvolvidos’). A ’esté-tica da fome’ faz da fraqueza a sua força,transforma em lance de linguagem o que atéentão é dado técnico. Coloca em suspenso aescala de valores dada, interroga, questionaa realidade do subdesenvolvimento a partirde sua própria prática."33

VIRAMUNDO:

Resumo:

O trem de migrante chega; eles são revis-tados pela polícia; entram na cidade. Apósa chegada, o trabalho. O trabalho na agri-cultura é mencionado pela locução, em ter-mos estatístico, mas é excluído do filme,que trata da questão urbana. Inicialmente,o trabalho menos qualificado: a constru-ção civil. A seguir, o trabalho mais qualifi-

32Expressão cunhada por Glauber Rocha.33XAVIER, Ismail. Sertão Mar. São Paulo: Brasi-

liense, 1983. p. 9.

cado: a indústria, seqüência que combina umoperário "qualificado"e "bem-sucedido"e um"não qualificado"e desempregado; a seqüên-cia encerra-se com uma cena do desem-pregado afastando-se de sua casa. Depois,as conseqüência do desemprego: operáriosaguardando trabalho numa espécie de pátiode fábrica, mendigos, o Exército da Salva-ção, um sacerdote faz um sermão em tornoda caridade, sopa popular, a BeneficênciaSocial. A seqüência das religiões: o deses-pero e o transe. Voltamos à estação: um de-sempregado desistindo de encontrar trabalhoem São Paulo, volta para o Norte. Um planodemorado durante o qual o trem se afasta atédesaparecer assinala o fim do filme. Mas:um novo trem está na estação, dele descemnovos migrantes.34

Se pudéssemos definir uma palavra que re-sume o tema de VIRAMUNDO, 1965, dire-ção de Geraldo Sarno, essa palavra é espe-rança. Esperança histórica do migrante donordeste brasileiro buscando o sonho do pro-gresso na cidade grande, na São Paulo me-trópole.

Geraldo Sarno filma a trajetória deste mi-grante desde sua chegada na estação ferro-viária de São Paulo até o retorno para a terrade origem através da mesma estação.

A música inicial do filme composta porJosé Capinam e Caetano Veloso e interpre-tada por Gilberto Gil e os quadros da série"Os Retirantes"(1944) de Cândido Portinari,introduzem o espectador as necessidades eo sofrimento deste migrante para deixar suaterra e se deslocar para um lugar estranho.Também o papel da narração é fundamental

34BERNADET, Jean Claude. Cineastas e Imagensdo Povo. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 23.

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Cinema Documentário Brasileiro 15

como iniciação do espectador em relação asagruras do camponês nordestino.

"A locução, a canção, os qua-dros apreendem e cercam a expe-riência vivida dos migrantes peloviés da ciência e da arte - ciên-cia e arte (pelo menos no caso dosquadros) que não pertencem ao seuuniverso cultural, mais interpretamem termos cultos a sua vivência.Quanto a eles, nada mais se lhespede, senão que a vivam"35

O discurso do locutor (ciência), a letra damúsica e as telas de Portinari (arte) são ele-mentos dentro do filme que apresentam odiscurso do intelectual, "a voz do saber"36 ocientista que analisa o tema como um dado,um objeto de estudo que também o artista es-tetiza.

Por outro lado, os depoimentos dos mi-grantes, "voz da experiência"37 são utiliza-dos, no início, de forma fragmentada e en-trecortada, representando como que compro-vações do discurso do intelectual, narrandosuas experiências, suas vivências, nunca ti-rando conclusões, apenas seu ponto de vista.

(...) A relação que acaba se estabelecendoentre o locutor e os entrevistados é que es-tes funcionam como uma amostragem queexemplifica a fala do locutor e que atesta queseu discurso é baseado no real (...). Os entre-vistados são usados para chancelar a autenti-cidade da fala do locutor.38

Na segunda fase do filme o documenta-rista vai se aprofundando na experiência do

35Ibid., p. 17.36Ibid., p. 13.37Ibid38Ibid

migrante e vai passando do geral para oindividual, um fragmento do real que pas-sará a representar o todo se tornando tam-bém generalizável. Geraldo Sarno dividea abordagem selecionando um operário de-sempregado vivendo de bicos e prestes aser despejado, "operário não qualificado",um outro operário "qualificado"que conse-guiu comprar "duas casinhas"e é chefe de se-tor, e também a presença do patrão chamadopor Sarno de "senhor empresário"que funci-ona como um segundo locutor informandoas características e a realidade da indústriapaulista. Nenhum personagem é identifi-cado por seu nome, apenas por suas carac-terísticas e seu discurso, reforçando a gene-ralização da abordagem. As falas de cadapersonagem são montadas em seqüência deacordo com sub-temas questionados pelo re-alizador. O empresário pontua esporadica-mente esta contraposição de falas para apro-fundar cientificamente alguns aspectos rela-cionados aos discursos dos operários. Es-sas falas parecem ensaiadas ou preparadas,transmitindo sistematicidade. A fala do ope-rário "qualificado"aproxima-o do empresá-rio demonstrando uma individualidade ca-racterística do miserável brasileiro que con-seguindo uma "migalha"de progresso social,se exclui de sua classe com a ilusão de pro-ximidade com o patrão.

As características com que são construí-dos os planos dos diferentes personagens sãodistintas. A composição dos quadros do ope-rário "não qualificado"são mais abertas, commais movimento e o olhar do entrevistadonão se dirige a objetiva da câmera e sim, auma pessoa próxima. Já o outro operário eo patrão se dirigem diretamente a câmera emplanos na maioria das vezes estáticos, sem

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profundidade de campo, transmitindo umasensação de frieza e "prepotência".

(...) A dureza do tratamentodo primeiro operário, suas declara-ções tidas como uma fala pequeno-burguesa, nos tornam o homem an-tipático, e até objeto de risos porparte de certas platéias, visto quese atinge quase o plano da carica-tura. Enquanto que o outro, suainfelicidade, seu sorriso, sua sol-tura, a soltura maior da filmagemexpressam a simpatia do diretor dofilme e canalizam o do espectador.É o personagem dramático que ca-naliza a nossa simpatia,...39

A terceira parte do filme registra o limiteda tolerância e o apelo para o delírio da fé.Trata do fim das esperanças de mudanças noplano material e o direcionamento dessa es-perança para o plano do divino, da crença, dareligião.

Nesta parte, Geraldo Sarno documenta ri-tuais umbamdistas e cultos de cristãos pen-tecostais novamente contrapondo um e outrocom finalidade de exemplificar o processoidêntico de "desespero e transe".

A diferença destas duas for-mas religiosas fica submergidapela significação que elas assu-mem no filme: os operários, de-sempregados, sem organização so-cial que lhes permita lutar e de-fender seus direitos, ou afunda-dos numa ideologia consideradapequeno-burguesa, mergulham na

39 Ibid., p. 29.

religião, no transe catártico, na ali-enação, no ópio do povo.40

Esse momento culmina com o clímax dofilme em que a câmera entra também emtranse junto ao delírio coletivo e uma mon-tagem velozmente fragmentada e intensa de-monstrando um exercício das idéias estéticasdo Cinema Novo.

Concluindo a temática do ciclo migrató-rio, o filme se direciona novamente para aestação ferroviária onde documenta agora otrabalhador desiludido com a cidade grandeque esta partindo devolta para sua terra.Mais uma vez são depoimentos pessoais quegeneralizam um fenômeno. E o trem partelevando os migrantes, mas outro já está che-gando trazendo outros esperançosos com osonho do "sul maravilha".

VIRAMUNDO é exemplo do cinema do-cumentário brasileiro que conseguiu ser umadas únicas formas de expressão que em al-guns momentos resistiu a ditadura militarabordando de forma crítica a realidade mise-rável da grande maioria do povo brasileiro.

3 Cabra marcado para morrer

O filme CABRA MARCADO PARA MOR-RER, iniciado em 1964 e dirigido por Edu-ardo Coutinho foi, em seu primeiro mo-mento, o outro projeto de longa metragemproduzido pelo CPC da UNE41. O filme nãofoi finalizado no período pois foi paralisadoem função do golpe militar e só retomado de-zessete anos depois já num outro projeto deCoutinho com o mesmo nome e lançado em1984.

40Ibid., p. 23.41q.v.p. 28

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Cinema Documentário Brasileiro 17

O projeto inicial de CABRA MARCADOPARA MORRER era de produzir um "docu-drama"42 retratando o assassinato, em 1962,de João Pedro Teixeira, líder camponês nomovimento das ligas camponesas de Sapé,na Paraíba. Tratava-se de um filme em que ospersonagens seriam representados pelas pró-prias pessoas que vivenciaram o fato, inclu-sive a própria mulher de João Pedro, Eliza-beth Teixeira e seus filhos.

O filme tinha uma parte ficci-onada, uma espécie de laborató-rio com os próprios camponeses demaneira que colocava-os nos pró-prios papéis, um fazia o coronel,outro fazia o camponês explorado,outro um papel secundário, etc. Ofilme foi interrompido justamenteem 1964 por causa do golpe mi-litar. Fomos todos, eu era assis-tente do Coutinho, perseguidos, eo filme parou. Dezessete anos de-pois o filme foi retomado, mas comum corte absolutamente documen-tal. 43

Em 1982 o diretor Eduardo Coutinho saiem busca de Elisabeth Teixeira e acabalocalizando-a no Rio Grande do Norte vi-vendo clandestinamente com o nome deMarta e afastada da maioria de seus filhos.

São dois filmes num filme só, é extra-ordinário, é talvez um dos maiores filmes

42Determinação utilizada por Fernão Ramos ementrevista concedida para este trabalho que significafilme ficcional que reconstitui o mais fielmente possí-vel fatos reais.

43 CARVALHO, Vladimir de. Documentarista, re-alizador de Pedra da Riqueza (1976), assistente de di-reção de Eduardo Coutinho na primeira fase do filmeCabra Marcado para Morrer. Comunicação Pessoal.

da cinematografia mundial. É um tipo defilme que não acontece duas vezes na mesmacinematografia(...) Na verdade é uma de-monstração dessa passagem no Brasil da di-tadura para a redemocratização. Isto está es-pelhado, registrado no CABRA MARCADOPARA MORRER44.

O filme persegue a história através da ver-são do oprimido e a contrapõe com a ver-são oficial do fato. Para isso o diretor usaos depoimentos daqueles que viveram os fa-tos e recortes de notícias "plantadas"pelosórgãos oficiais do governo na ocasião. O rea-lizador trata as informações oficiais com umdesprezo diferente do que um historiador ouum jornalista faria, o desprezo de uma pes-soa que vivenciou aquele passado e mostra,até com certa ironia, as inverdades que eramtransmitidas pelos impressos.

Na busca da "verdade"e respeito com oespectador, Eduardo Coutinho afirma a todoinstante que aquilo é um filme, um olhar quemesmo sendo crítico é pessoal. Para isso,nos depoimentos do filme o cineasta apareceno quadro como interlocutor e a pessoa con-versa com ele e não com a câmera. Estalinguagem reflete a própria ética do cine-asta Eduardo Coutinho reconhecida por to-dos que o conhecem e que ele veio desenvol-vendo durante os anos em que dirigiu váriosprogramas "Globo Repórter"(1975-1983) naRede Globo de Televisão.

Quando eu fui fazer o CABRAele já começa a ser novo por umarazão muito simples, e que o di-ferencia dos outros filmes, não ésó porque demorou vinte anos etem uma história dramática e tal,

44Ibid.

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é porque o diretor esta presente nofilme, que é uma coisa que desdeque eu fiz o Cabra, estará sempre,eu não consigo fazer um documen-tário que não apareça o processode produção, que apareça um caraque não tem ponto de vista na câ-mera, a câmera é uma máquina, eutenho um ponto de vista e uma re-lação com o outro, que é impor-tante para mim, o tema nem im-porta muito. É o seguinte, eu tenhouma relação extraordinária de duasculturas, duas classes, dois grupossociais. Uma é o diretor, com suaequipe, outra é o cara que está dooutro lado, que é a outra classe,pode ser índio, proletário, campo-nês... Este encontro que é extra-ordinário que é mediado pela câ-mera e que no cinema documentá-rio americano, ou mesmo no do-cumentário clássico brasileiro nãoexistia. Eu tive o caráter de meassumir, até porque descobri isto,porque no CABRA, se eu não apa-recesse o filme não existia, porqueé uma tentativa minha de resgatarum filme, uma memória.45

O locutor apenas fornece dados objetivos,não direciona a narração nem interpreta osfatos para o espectador. Citamos tambémcomo exemplo da postura de Eduardo Cou-tinho o fato dele ter se negado a nos conce-der uma entrevista por telefone justificandoque não consegue conversar com uma pessoaser estar olhando-a nos olhos, sem que hajaa proximidade característica de um diálogo.

45COUTINHO, Eduardo. Comunicação Pessoal.

(...) o único interesse do docu-mentário que trabalha com som di-reto, com pessoas vivas, não comnatureza morta, é um diálogo eesse diálogo tem que estar presenteno filme. Não que ele tenha que tera todo momento as perguntas. Asperguntas são essenciais como de-monstrativos de uma voz que vemde fora, é algo que provoca e geraum confronto. Tal confronto é umcoisa complicada porque vai gerarum diálogo produtivo, em que há,de alguma forma, uma troca... Odocumentário americano é típicono sentido de que jamais existe apergunta, jamais existe o interlo-cutor atrás da câmera. Na ver-dade, no documentário americano,mesmo em seus melhores exem-plos, passa-se como se aquilo queestivesse acontecendo fosse abso-lutamente real. Mas o documen-tário, ao contrário do que os ingê-nuos pensam, e grande parte do pú-blico pensa, não é a filmagem daverdade. Admitindo-se que possaexistir uma verdade, o que o docu-mentário pode pressupor, nos seusmelhores casos - e isso já foi ditopor muita gente - é a verdade dafilmagem."46

Outro artifício para firmar seu compro-misso de respeito pelo real e pelo seu es-pectador é mostrar a equipe de filmagem, câ-meras, microfones, legitimando aquilo como

46COUTINHO, Eduardo. O documentário e a Es-cuta Sensível da Alteridade. Revista do Programade Estudos Pós Graduados em História e do Depar-tamento de História da PUC/SP. São Paulo, 1981.

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um filme. Muitas são as sequências em queuma câmera filma a outra captando imagensdos depoimentos ou o sonorizador captandoo som direto. Coutinho, em alguns momen-tos, chega na casa das pessoas já com a câ-mera ligada, desprezando a tentativa de fazercom que as pessoas pareçam naturais dianteda câmera e da equipe e sim, busca exata-mente documentar o desconforto das pessoasdiante daquela intervenção na sua realidade.

Não se pode dizer que os personagensprincipais do filme são Elisabeth Teixeira esua família pois a própria estrutura do filmeimpede que a narrativa se prenda a um sópersonagem. Com essa finalidade Coutinhoorganiza a linguagem do CABRA de formafragmentada e cronológica somente na evo-lução das relações com os personagens e nãolinear na estrutura da narrativa.

Simplificadamente, o filme CABRAMARCADO PARA MORRER se estruturana busca do cineasta Eduardo Coutinhopelos camponeses que participaram dasfilmagens da primeira versão do filme em1964, e também a reação destas pessoasquando relembradas de um passado que foiarrancado de suas vidas. As tomadas reali-zadas em 1964 são exibidas aos camponesese o diretor filma a reação destes ao vê-las.

Elizabeth olha fotografias da época ondeapareciam seus filhos que foram todos, comexceção de um, separados, e em 1981 seencontravam em lugares diferentes vivendocom parentes, amigos da família, e até umdeles, Isaac Teixeira, estudando medicina emCuba, em bolsa de estudos dada pelo partidosocialista. O diretor reencontra cada um dosfilhos de João Pedro e Elizabeth e apresenta aeles imagens da mãe afastada que provocamreações de comoção. Uma equipe de cinema

de Cuba realiza uma entrevista com o filhoestudante de medicina a pedido de Coutinho.

Conforme o filme prossegue, o realiza-dor vai conseguindo uma proximidade maiorcom as pessoas documentadas, uma certacumplicidade vai se estabelecendo. O com-portamento da personagem Elisabeth exem-plifica isto. Durante o início do filme, Elisa-beth, condicionada a tanto tempo de repres-são não demonstra nunca sua consciência delíder revolucionária e permanece passiva di-ante das questões que Coutinho coloca. Elademonstra grande receio ao falar do governoe da ditadura militar chegando até a elogia-los.

O presidente Figueiredo,... égraças a ele que eu estou aqui hojecom a presença de vocês, que estãoaqui, porque foi o único governoque,... ele merece toda nossa dig-nidade de ter dado esse amplo di-reito de ter todos os presos polí-ticos que se encontravam fora doBrasil, voltarem a encontrar seusfamiliares.47

Conforme a aproximação da personageme a equipe vai se estabelecendo, Elizabeth vaidemonstrando cada vez mais sua consciên-cia revolucionária como se o resgate de me-mória que Coutinho lhe estimulava trouxessegradualmente de volta a líder camponesaElisabeth Teixeira. Este processo culminana seqüência final do filme quando, com aequipe já toda dentro da Kombi que os trans-portavam e com o motor ligado, Elizabethcomo que se transforma diante da câmera do

47TEIXEIRA, Elisabeth. In: COUTINHO, Edu-ardo. Cabra Marcado para Morrer, 1984 - filme.

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fotógrafo Edgar Moura que, numa inspira-ção brilhante de membro pensante e atuantena concepção do filme, registra tudo, conse-guindo um final maravilhoso. Até mesmo avoz da personagem se transforma nesta falarevolucionária:

A luta que não para. A mesmanecessidade de 64 está plantada,ela não fugiu um milímetro, amesma necessidade do operário,do homem do campo, a luta quenão pode parar. Enquanto existirfome e salário de miséria o povotem que lutar. Quem é que nãoluta?... É preciso mudar o re-gime,... enquanto tiver este re-gime, esta democracia,... demo-cracia sem liberdade? Democraciacom salário de miséria e de fome?Democracia com o filho do operá-rio sem direito de estudar, sem tercondição de estudar?..48.

Esse despertar inesperado da Elizabethrevolucionária desconserta Coutinho e essemomento é dirigido pelo fotógrafo EdgarMoura que lhe orienta a se despedir da mu-lher e também indica ao motorista para afas-tar em marcha ré para que ele possa realizarum travelling para trás que resulta num finalfantástico para o filme.

"A fala final foi um valora mais dado por Elisabeth, queeu não esperava que surgisse,por isso fiquei absolutamente sur-preso! Não tinha certeza de que

48TEIXEIRA, Elisabeth. In: COUTINHO, Edu-ardo. Cabra Marcado para Morrer, 1984 - filme.

aquilo estava sendo filmado, o fo-tógrafo ligou a câmera do banco detrás porque eu dizia para sempre fi-car ligado... e foi tão... absurda-mente real que o microfone... tive-mos que mandar desligar o motor,e depois ligou o motor e fazia ba-rulho... e no final o fotógrafo, queestava vendo que aquilo era umasituação de cinema e que via queaquilo fechava o filme, pediu parao motorista recuar. E eu até fi-quei perdido, porque aí ele me pe-diu para me despedir dela no meioda fala e a câmera se afastou parafazer um plano de cinema."49

Todos estes elementos tornam CABRAMARCADO PARA MORRER o filme maisimportante na história do cinema documen-tário brasileiro.

4 Décadas de 70 e 80

Durante a década de setenta e início da dé-cada de 80, a realização de documentários noBrasil se desenvolve na direção de relatar orenascimento dos movimentos populares emseus vários aspectos, refletindo assim a aber-tura política pela qual o país estava atraves-sando.

Dentro desta linha, um grande número derealizadores, estão em processo constante deprodução, dentre os quais se destacam JoãoBatista de Andrade, Renato Tapajós, Aloí-sio Raulino, Roberto Gervitz, Sérgio Segall,

49COUTINHO, Eduardo. O documentário e a Es-cuta Sensível da Alteridade. Revista do Programade Estudos Pós Graduados em História e do Depar-tamento de História da PUC/SP. São Paulo, 1981.

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Suzana Amaral, Leon Hirzman, Silvio Ten-dler Arlindo Machado, Eliane Bandeira, en-tre outros.

Os filmes sobre movimentos populares ti-nham um grande leque de temas, abrangendoda restruturação das organizações estudantis,movimento sindicais operários e movimen-tos comunitários, à temas ligados habitaçãoe saúde. Porém grande destaque se dá aotema "greve", pois o movimento dos traba-lhadores metalúrgicos despontava como o demaior força e influência, principalmente osda região do ABCD paulista.

O filme GREVE! (1979), de João Batistade Andrade, documentava a paralisação dosmetalúrgicos do ABC em março de 1979 eTRABALHADORES: PRESENTE! (1979),registra as comemorações do dia 1o de Maio.Apesar de produzidos pelo sindicato dos me-talúrgicos, o diretor busca deixar claro o fatodos filmes não serem panfletários.

"Um filme é um filme. Não éfeito para a classe social que o pro-duziu, não é feito para a classe queo sustenta. Um filme é feito paraa sociedade como um todo. O fatode fazer um filme sobre o operário,ou para a luta dele, ou produzidopor ele, não quer dizer que o filmeseja só para ele. Eu acho que não.Eu acho que um filme é para a so-ciedade como um todo. Acho queos meios de comunicação, a inteli-gência, a descoberta, são coisas detoda a sociedade."50

Por outro lado o documentarista RenatoTapajós, também atuante no período, destaca

50ANDRADE, João Batista de. O Importante eraFazer o Filme. Filme Cultura, Rio de Janeiro, no. 46,p. 40, nov-dez, 1984.

o caráter de seu filme GREVE DE MARÇO,também de 1979:

"GREVE DE MARÇO foi umfilme feito quase que exclusiva-mente para uma intervenção ime-diata. Ele foi realizado em 15 dias.Filmamos em São Bernardo de 22a 27 de março de 1979 e no dia 10de abril o filme já estava pronto. Osindicato parou a greve durante 45dias para discutir com os patrões.Após 45 dias haveria uma nova as-sembléia (em 13 de maio) que po-deria decretar o reinicio da greve.Queríamos que o filme fosse utili-zado nesse prazo de 45 dias comoinstrumento de mobilização para agreve51.

Tratando de cinema brasileiro e principal-mente de Cinema Novo não podemos deixarde citar a experiência documental mais sig-nificativa de um dos mais importantes cine-astas brasileiros, Glauber Rocha. Os filmesde Glauber apresentam conteúdos documen-tais que era a estética da época, sintonizadocomo ninguém com os outros movimentoscinematográficos pelo mundo. Mas a temá-tica e a abordagem do filme que ficou conhe-cido como DI-GLAUBER é um tanto quantooriginal. Neste filme Glauber filma o velóriode seu amigo Di Cavalcanti52, pintor cari-oca morto em 1976. Neste filme o diretorteria chegado ao ápice de sua ousada perso-nalidade criativa passando a dirigir o enterro

51TAPAJÓS, Renato. A Hora da Reflexão. FilmeCultura, Rio de Janeiro, no. 46, p. 74, nov-dez, 1984.

52Cartunista, pintor, desenhista, gravador, mura-lista, escritor. Organizador e realizador da Semana deArte Moderna de 1922. Um dos fundadores do Clubedos Artistas Modernos em São Paulo.

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do pintor como se fosse um set cinematográ-fico. Glauber chega ao extremo de desco-brir o rosto do corpo de Di para que o fotó-grafo Mário Carneiro captasse a fisionomiado morto.

Esse filme foi processado pela família deDi Cavalcanti e proibido pela justiça. A exi-bição de DI-GLAUBER foi impossível atépouco tempo atrás quando uma cópia dofilme foi veiculada via Internet. Durante a re-cém encerrada Jornada de Cinema da Bahia,foi divulgada uma carta endereçada ao pre-sidente Fernando Henrique Cardoso, solici-tando que o filme seja tombado, como pa-trimônio cultural brasileiro.

Durante a década de 80, o documenta-rismo brasileiro vivia ainda o fervor de cau-sas inflado nos anos 60 e 70. A temáticados filmes ainda mantinha muito da influên-cia do período anterior, mas agora o docu-mentarista se afasta do discurso panfletárioe passa a ser mais analítico e delimitado.Por um lado, ainda filmam histórias indivi-duais que, com a interferência do cineastae sua interpretação, passam a representar ogeral e, por outro, aprofundam-se na histó-ria política do país remontando imagens deépoca para construir novos olhares sobre opassado. Neste momento inicia-se uma ver-dadeira busca pela memória fílmica do país.

Elegemos para citar neste trabalho setedocumentários que consideramos represen-tantes deste período. CABRA MARCADOPARA MORRER (1984) de Eduardo Cou-tinho, já analisado nesta pesquisa. Alémde, EVANGELHO SEGUNDO TEOTÔNIO(1985) de Vladimir de Carvalho, que traçaum perfil do então Senador Teotônio Vilela;JANGO (1984) de Silvio Tendler, que nestefilme busca através da figura de João Gou-lart passar a necessidade de justiça social e

de um projeto político, econômico e socialpara o país. Outros representantes do pe-ríodo foram: GUERRA DO BRASIL (1987)de Sylvio Back, que busca retomar, a par-tir de diversas interpretações, a Guerra doParaguai; LINHA DE MONTAGEM (1982)de Renato Tapajós, que retoma o tema so-bre as greves dos metalúrgicos de São Ber-nardo do Campo; O PRÍNCIPE DO FOGO(1984), de Sílvio Da-Rin, que documentadaa história Febrônio Índio do Brasil, um as-sassino e estuprador do início do século; eIMAGENS DO INCONSCIENTE (1986) deLeon Hirszman, que retrata três casos de ar-tistas do Centro Psiquiátrico Pedro II, emSão Paulo.

5 Anos 90

A década de 90 foi marcada como o pontofinal entre a dualidade mundial capitalismoX socialismo. Os ideais de transformaçãoda sociedade são substituídos pelo neolibe-ralismo globalizado onde mais do que nuncao fluxo de informações externas compõe oimaginário do povo e as referências são com-binadas resultando um hibridismo que in-fluencia a linguagem cinematográfica docu-mental nos dias de hoje.

Todo cinema brasileiro foi atingido pe-las medidas do governo Fernando Collor deMello, no começo da década, que extinguiu aEmbrafilme53 e destruiu qualquer possibili-dade de sobrevivência para a produção naci-onal. A produção documental brasileira per-maneceu graças a possibilidade da gravaçãoem vídeo e exibição em alguns restritos ca-nais de TV educativos.

A chegada da TV a cabo no Brasil coin-

53Dados sobre a embrafilme.

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cide com a regulamentação de algumas leisde incentivo a cultura e a produção audiovi-sual por parte do governo, como a Lei Rou-anet (No 8.313) e a Lei do Audiovisual (No

8.685).As novas tecnologias para montagem e fi-

nalização como as ilhas de edição digitais,kinescopia54, as próprias câmeras digitais dealta definição, também influenciam a lingua-gem e temática dos documentários atuais.

Os canais de televisão a cabo tambémpassaram a investir na produção documentalmas na maior parte dos casos o canal garantea exibição e são as produtoras independentesque predominam na viabilização dos filmesatravés das leis.

A TV Cultura de São Paulo é um exemplode TV pública e aberta que investe periodica-mente na produção de documentários. O ca-nal via cabo da Globosat, o GNT, mesmo nãoinvestindo significativamente na produção ecomprando muitos filmes estrangeiros, aindaé o canal que tem garantido a exibição danova safra do documentário brasileiro. Te-mos que citar também a experiência já de umano do Canal Brasil que vêem garantindo oresgate e a divulgação no cinema nacional detodas os gêneros e épocas.

O experiente cineasta Nelson Pereira dosSantos posicionou o documentário ao co-mentar sobre a situação atual do cinema bra-sileiro em relação a TV.

"O filme de ficção, por si só,não supre as necessidades de pro-gramação da TV. Nesse sentido, odocumentário tem um grande es-

54Copiar a imagem digitalizada em película cine-matográfica.

paço para ocupar e parece interes-sar mais as emissoras"55

Como referência da produção na décadade 90 e que podem determinar uma amos-tra do que caracteriza a pluralidade de te-mas e o hibridismo das linguagens que deuma certa forma retomam temas relaciona-dos com o povo brasileiro, nossos costumes,contradições e cultura, podemos citar FU-TEBOL (1998), de João Moreira Salles, sé-rie de três programas para o canal GNT quese transformou em um filme de uma hora emeia registrando o mundo do futebol atravésda trajetória de jogadores desde as "penei-ras"até o estrelato e depois a aposentadoria.

Outra série representativa e que se trata deum caso raro de co-produção da GNT sãoos cinco capítulos intitulados OS NOMESDO ROSA (1998), dirigidos por Pedro Biale Claufe Rodrigues tratando da obra e vidado escritor Guimarães Rosa. Outros exem-plos de filmagens em série, destinadas paraa televisão são TRÊS CHAPADAS E UMBALÃO (1998), de Maurício Dias, exibidopela TV Cultura, que mostra três chapadasbrasileiras (Diamantina, dos Veadeiros e dosGuimarães) a partir de imagens captadas deum balão além de depoimentos e históriasdos moradores destas regiões; O VELHO - AHISTÓRIA DE LUÍS CARLOS PRESTES(1997), de Toni Venturi, que retoma a his-tória de Luís Carlos Prestes, teve seus epi-sódios finalizados com recursos da TV Cul-tura e GNT e também se transformou emum longa metragem de uma hora e meia. Otrês episódios da série MAPAS URBANOS(1997), de Daniel Sampaio Augusto realiza-

55PEREIRA DOS SANTOS, Nelson. A Vi-abilização do Documentário. Tela Viva Digital.www.telaviva.com.br/revista

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dos também para TV Cultura, busca fazeruma retrospectiva sobre São Paulo, Rio deJaneiro e Salvador a partir de depoimento depoetas.

Não só filmes feitos para a TV estão en-contrando seus espaços, documentários rea-lizados com objetivo de serem exibidos noscinemas também estão conseguindo ser bemassistidos, como é o caso do filme O CINE-ASTA DA SELVA (1997), de Aurélio Mi-chilis que conseguiu levar uma boa platéiaas salas de exibição. O filme conta a histó-ria de Silvino dos Santos56, pioneiro docu-mentarista da Amazônia. Também o filmede Ricardo Dias, O RIO DAS AMAZÔNAS(1995), retrata a cultura e o conhecimentopopular da Amazônia através do cientista,poeta e músico Paulo Vanzolini.

O primeiro longa metragem do cineastaMarcelo Masagão, NÓS QUE AQUI ESTA-MOS POR VÓS ESPERAMOS (1999), ape-sar de só existirem duas cópias, teve umaótima recepção de público e crítica. O filmefaz um recorte histórico a partir de fragmen-tos de imagens que compõem o imaginá-rio do século XX. Com uma montagem queutiliza a hibridização57 através de técnicasdigitais, Masagão fez o filme em sua pró-pria casa comprando as imagens via Inter-net e montando numa ilha de edição digital(Avid) para depois ser kinescopado58 parapelícula. O filme foi realizado com baixocusto o que se tornou uma espécie de ma-nifesto de Masagão que, inspirado pelo mo-vimento dinamarquês Dogma 9559 passou a

56q.v., p. 15.57Neste caso é sobrepor uma imagem a outra numa

espécie de fusão parcial, criando um terceiro signifi-cado imagético.

58Resultado da técnica da Kinescopia.59Movimento cinematográfico dinamarquês para

proclamar que o futuro do cinema brasileiroestá nas produções de baixo orçamento queprima mais pela capacidade do realizador doque por recursos técnicos, o que no fundonada mais é do que uma releitura do CinemaNovo e todos os movimentos em que ele foiinspirado.

O público dos festivais e mostras de do-cumentários está em constante crescimentocomo é o caso do sucesso do Festival Inter-nacional de Documentários de São Paulo, o"É Tudo Verdade". Também os documentá-rios estão cada vez mais presentes nos festi-vais tradicionais de cinema como é o caso doFestival de Gramado, 1999, onde dois docu-mentários disputaram a categoria principal, ojá citado NÓS QUE AQUI ESTAMOS PORVÓS ESPERAMOS, e o novo filme do dire-tor Eduardo Coutinho, SANTO FORTE, quebusca a partir da favela Vila Parque da Ci-dade, fazer uma análise das experiências re-ligiosas dos moradores do local.

Os documentaristas brasileiros tambémestão viabilizando a carreira de seus filmesnos festivais internacionais de cinema, comoé o caso do documentário Fé, de RicardoDias, que venceu o último festival francês deBiarritz

6 Conclusões

Através deste mapeamento histórico do filmedocumentário brasileiro podemos concluirque nos anos 60 houve uma reformulação

produção de filmes de baixo orçamento que estabe-lece algumas normas entre elas a utilização somentede luz natural, cenários reais, nenhum efeito espe-cial e outros. Até o momento foraam produzidos trêsfilmes: FESTA DE FAMÍLIA (1998), OS IDIOTAS(1998), MIFUNE (1999).

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do "fazer"cinematográfico não só no Brasil,mas em vários lugares no mundo.

Aqui, as mudanças além de relacionadasao aspecto estético e de linguagem, estavamtambém ligadas a questão financeira, quandoos realizadores passam a assumir a precarie-dade da produção, dimensionando-se na con-tramão do cinema industrial plasticamenteperfeito e estruturalmente padronizado den-tro de uma narrativa clássica.

A temática destes filmes volta-se paraquestões profundamente relacionadas aosproblemas sociais brasileiros com um olhardesinstitucionalizado, uma postura que bus-cava a realidade brasileira pela voz do opri-mido, do povo, conhecendo aspectos destacultura popular, fragmentos do "real"quecompõem na montagem cinematográfica,uma análise sociológica.

Tanto o cinema documentário como o fic-cional se direcionaram nesta vertente. Atémesmo o termo - documentário - a partirdeste momento passa a relacionar-se a umoutro significado que seria ainda de filmesque se utilizam da "realidade", mas agoracom um caráter autoral, com uma estética,um pensamento cinematográfico. Outras for-mas de registros documentais passam a rece-ber outras denominações como reportagens,filmes institucionais, etc.

Apesar da escassez de recursos devido afalta de interesse dos financiadores brasilei-ros em filmes que documentavam as contra-dições sociais, a nova linguagem que liber-tava as câmeras dos tripés e dos estúdios parasair ao mundo só foi possível devido as no-vas tecnologias que chegavam ao Brasil.

Hoje, o documentário nacional e os rea-lizadores fortemente influenciados pelo do-cumentário da década de 60, de uma certaforma voltam-se novamente para temáticas

relacionadas ao povo brasileiro, a cultura po-pular.

Percebe-se também a tendência do docu-mentarista de hoje de também realizar seufilme com os recursos possíveis o que temlevado muita gente a captar em vídeo e fina-lizar em película para a exibição nas salas decinema. Os próprios canais de tv estão maisabertos em relação a padrões de suporte paraa imagem e começam a experimentar outrosformatos. Como o Cinema Novo não estavadesligado de outros movimentos cinemato-gráficos que ocorriam no mundo, podemosvisualizar tendências estrangeiras atuais quetambém buscam o desenvolvimento de umalinguagem própria através de uma estética debaixo recursos e de produções baratas. Pode-mos citar exemplos desta tendências como omovimento dinamarquês Dogma 95, mesmofilmes americanos como A Bruxa de Blair,realizado em vídeo, também o grupo de do-cumentaristas franceses Les Enfantes de Lu-miere e as produções para canal americano.Esse documentário da década de 60 que JeanClaude Bernadet chamou de "modelo socio-lógico"60 permanece praticamente desconhe-cido do público e dos próprios estudiosos decomunicação brasileiros. Esses filmes foramproduzidos por uma geração impulsionadapor ideologias revolucionárias e na ânsia dedocumentar a realidade brasileira acabou porquase inexistir um projeto de exibição paraesses filmes. A maioria destes, foram exibi-dos para platéias mínimas e hoje se encon-tram nas prateleiras de cinematecas a dispo-sição do restrito público que as freqüenta.A televisão, seja a pública ou via a cabopode resgatar esses filmes que documentam

60BERNADET, Jean Claude. Cineastas e Imagensdo Povo. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 07.

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um período histórico do Brasil, deveriam sermais constantemente objetos de estudos nasescolas e universidades, que sirvam de ins-trumentos para a compreensão da realidadebrasileira no seu processo histórico.

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