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Cimarrón - memórias de um escravo fugitivo

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Memórias de um Cimarron, de Miguel Barnet 2

Memórias de um Cimarrónde Miguel Barnet

Page 3: Cimarrón - memórias de um escravo fugitivo

Memórias de um Cimarron, de Miguel Barnet 3

Copyright © 2010, Miguel Barnet

Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou

armazenada por quaisquer meios sem a autorização

prévia e por escrito da editora e do autor.

Título Original: Biografía de un Cimarrón

Editora Letras Cubas 1980, 1993, 2001

Direção Editorial:

Liana Trindade

Tradução para o português:

Esther Lobaima

Editoração:Terceira Margem Editora

Revisão Gramatical:

Jandira LoboNotas Etnográficas:

Edwin Pitre-Vásquez

Capa:Regina Kashihara

***

Barnet, Miguel

Memórias de um Cimarrón / Miguel Barnet

título original Biografia de un Cimarrón.

-- São Paulo : Terceira Margem, 2010. 202p.

ISBN 978-85-7921-032-7

I. Biografia II. Bantu III. Linguagem

CDD 869.95

***

TERCEIRA MARGEM EDITORA

www.terceiramargemeditora.com

[email protected]

Page 4: Cimarrón - memórias de um escravo fugitivo

Memórias de um Cimarron, de Miguel Barnet 4

SUMÁRIO

Nota da Edição Brasileira

Nota ao Leitor

Notas do Revisor Etnográfico

Cimarrón Revisitado

Introdução

A Escravidão

A Vida nos Barracões

A Vida no Mato

A Abolição da Escravatura

A Guerra da Independência

À Maneira de Epílogo

Glossário

Notas do Revisor

Sites consultados pelo revisor

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Memórias de um Cimarron, de Miguel Barnet 5

Nota da Edição Brasileira

Memórias de um cimarrón1

Esta edição difere da anterior, por acrescentar dados etnográficos sobre ritos, objetos, ervas

e cerimônias, semelhantes àquelas encontradas nas religiões afrobrasileiras.

1 . [NR] Cimarrón, ona adj. s. [Animal] doméstico que se faz selvagem: cachorro cimarrón. Amer. [Escravo]

fugitivo que se refugiava no mato em busca da liberdade. (ESPASA-CALPE, 2005). Poderia ser traduzido como o

escravo que morava no mato, escondendo-se em cavernas e diferente do Quilombola, que vivia em comunidades, no

Brasil. Quilombola: escravo fugido para o quilombo. (HOUAISS, 2001, pp. 2359).

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Memórias de um Cimarron, de Miguel Barnet 6

Nota ao Leitor

Entrega-se hoje ao público pelo aniversário quadragésimo da primeira edição, realizada

tomando-se como referência o texto publicado pela Editora Letras Cubanas em 2001, que

também escolheu como referente aquele texto divulgado pela Editora Academia em 1996.

Para sua elaboração foram aplicadas as normas tipográficas e de edição em vigor e

somente houve intervenção atendendo-se ao pedido do autor para atualização de datas e de

idades. Incluiu-se, aliás, um prólogo realizado pelo professor e pesquisador Rubén Zardoya

Loureda.

A Editora

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Memórias de um Cimarron, de Miguel Barnet 7

Notas do Revisor Etnográfico

O título do livro em português foi adaptado do original em espanhol; Biografía de un

Cimarrón, para Memórias de um Cimarrón desde a sua primeira edição em 1986.

Para esta segunda edição preferimos também manter o termo Cimarrón para preservar o

seu sentido em espanhol, como um escravo fugitivo que morava sozinho no mato.

A obra de Miguel Barnet além de nos oferecer um relato, na voz de um ex-escravo cubano

antes da República, nos mostra como as diferentes nações africanas se adaptavam a nova

realidade da escravidão. A obra traz valiosas informações sobre os diferentes grupos que

formavam o povo bantu na ilha de Cuba, bem como também foi relevante a sua presença na

própria formação da história do povo cubano. Além disso, descreve como os ‘novos cubanos’

foram se organizando para conseguir sua independência da Espanha.

Entendo que é possível efetuarmos uma aproximação desta com algumas obras escritas no

Brasil, na busca do ethos brasileiro, pois segundo Antônio Cândido entre os anos 1930 e 1940

foram escritas três obras fundamentais que estimularam a formação do pensamento brasileiro

daquela época, assim temos Casa-Grande e Senzala (1933) de Gilberto Freyre, Raízes do Brasil

(1936) de Sérgio Buarque de Holanda e Formação do Brasil Contemporâneo (1942) de Caio

Prado Júnior.

A primeira, uma narrativa da vida na colônia, a organização social nas fazendas, um relato

pessoal e descritivo do caráter de um povo em formação, recebeu críticas desde uma perspectiva

marxista. A segunda, um ensaio histórico e sociológico, sendo uma interpretação do processo de

formação do povo brasileiro e a terceira que desde uma visão marxista trata da relação entre

Portugal e a colônia.

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Memórias de um Cimarron, de Miguel Barnet 8

Em Memórias de um cimarrón é mais profundo. Encontramos duas narrativas uma que

mostra as negociações, contradições, traições, os linguagem mestiça utilizada, descrição e

utilização das plantas, os modos de sobrevivência tanto na mata, nos engenhos e na cidade, as

superstições referente às comidas e bebidas algumas vezes proibidas pelos amos ou a igreja, o

sincretismo religioso em formação, o universo dos chineses que participaram neste caldeirão

cultural e étnico, as doenças como o cólera, os filhos e as parteiras nos barracões, o racismo, a

anarquia, os enterros dos negros, a maçonaria, os jogos de dominó, baralho, rifas e boliche; como

Estebam Montejo formou parte do Partido Socialista Popular e a briga entre a igreja e os

comunistas, a guerra de independência, o surgimento dos lideres que depois se tornariam heróis.

E a outra que expõe uma etnografia cheia de complexidade e ao mesmo tempo dentro da

simplicidade do narrador, como também uma semiótica da cultura do povo cubano rica em

signos, sentidos e imagens. A partir da mídia primaria que é o corpo, chamada pelo Michel

Foucault ou Merlau Ponty de “corporeidade” podemos sentir sua voz, suor, cheiro, movimento,

gesto, sombra. Estamos falando de uma possibilidade sincrônica de vínculos e mediação em uma

sociedade em gestação.

Todo o aprendizado e seu lado cognitivo da personagem se realizam em uma relação entre

‘seu eu interior’ e seu mundo ou entorno. E uma obra que parte de um sujeito que comparte seu

universo simbólico generosamente sem censura.

O titulo Cimarrón também foi utilizado pela escritora norte-americana Edna Ferber em

uma novela com o título de Cimarron Chronicles que deu origem ao filme Cimarron (1930) de

Wesley Ruggles; o primeiro Western a ganhar um prêmio Oscar em 1931.

Em Memórias de um cimarrón é possível entender como foi constituído o perfil do povo

cubano a sua maneira de pensar e seu comportamento. A polifonia de povos que participaram da

formação étnica do povo cubano desde uma perspectiva africana, na voz de Esteban Montejo.

Dr. Edwin Pitre-Vásquez

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Memórias de um Cimarron, de Miguel Barnet 9

Cimarrón Revisitado

Desde que Graham Greene e Alejo Carpentier, deslumbrados pela originalidade e força

etnológica e poética de Memórias de um cimarrón, qualificaram esta obra como de fato único e

virtualmente irrepetível da literatura universal, esta idéia decorreu uma sorte de axioma e,

inclusive, de lugar comum nos sucessivos e, portanto, incessantes estudos realizados sobre ela.

Greene e Carpentier tinham sólidos argumentos para formular tão categórica afirmação. A

singularidade deste livro está asseverada, em primeiro lugar, pela universalidade de seu objeto:

Esteban Montejo não é o homem de carne e osso que Miguel Barnet achou, por feliz confluência

de circunstâncias, sentado sobre um tamborete num esquecido Lar do Veterano, e, sim o símbolo

da resistência cultural e, sobretudo, da resistência ética, contra toda forma de avassalamento

entre os homens.

Não há valores universais humanos tão potentes como aqueles que vivem encarnados em

homens singulares, particularmente em homens que ignoram encarnar tais valores ou que, ao

menos, não os encarnam para a história, para a literatura, para O que Vão Escrever ou Dizer,

enfim, para alimentar a própria vaidade. Esteban Montejo é um ideal vivo: não é o exemplo e o

modelo de virtudes que a imaginação costuma contrapor à realidade viciosa e, ainda menos, a

perfeição alcançada, quase divina, pronta para a imitação ou a veneração, senão uma forma

histórica concreta de solução real, no pensamento e na prática, das contradições da época que

gravam a história, que amarram as pernas e os sentimentos e que colocam os homens perante a

alternativa da claudicação, a treta adaptativa ou a pilhagem, por um lado, e a rebeldia, a ação

criadora e a dignidade, por outro.

Certamente Esteban – como nós – vislumbrou na sua própria universalidade o labor

paciente e inteligente do duende que guiou Barnet durante aqueles três anos de andanças, à

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Memórias de um Cimarron, de Miguel Barnet 10

medida que foi despojando de cautelas e desconfianças perante a técnica depurada do jovem

pesquisador que o entrevistava e que se apoderava, como um ladrão refinado, de sua intimidade,

de suas vivências e lembranças, de seus relatos, fantasias, esquemas de pensamento, prismas

cosmovisivos, tabus e pudores. Em algum momento, Barnet compreendeu que o roubado não iria

para o bolso do ladrão, mas para a memória coletiva da nação que ele havia contribuído em

forjar com dignidade igual à dos chefes e caudilhos, que agora podia ver petrificados nos seus

cavalos em parques e avenidas. Sendo assim, deve ter-se produzido aquela difícil empatia, pela

qual, informante e pesquisador transformam-se em co-protagonistas de uma aventura na qual

costu-mam intercambiar funções e viram co-autores de uma mesma obra. Somente aqueles que

têm dedicado muitas, muitas horas da vida – provavelmente as mais agradáveis – à composição e

recomposição conjuntamente com seu informante, com ajuda de papel, caneta e gravador, de

uma vida e um pensamento no que têm de universal, e em sua peculiaridade humana podem

aquilatar na justa medida o valor dessa fusão espiritual. Porém eles não perdem sua identidade e,

mais além do nexo circunstancial imposto pelas entrevistas, e estabelecem nexos de autêntica

solidariedade humana e, inclusive, de amizade.

Se bem é certo que a Antropologia constitui, em grande medida, um esforço para

compreender o outro e sua cultura, também é certo que essa compreensão representa, ao mesmo

tempo, um processo de entendimento de si e da própria cultura; um processo em que cada uma

das culturas se projeta na outra como num espelho mais ou menos terso ou convexo, e nesta

projeção adquire uma imagem inusitada, mais parecida com seu correlato empírico, com sua

essência e suas determinações específicas, do que a imagem anterior à projeção, encerrada em si

mesma e geralmente autocomprazente. Tenho certeza de que Esteban Montejo e Miguel Barnet

conheceram-se melhor, eles mesmos, e suas respectivas culturas, como resultado do trabalho em

parceria desenvolvido. Talvez, só em virtude deste trabalho tenham se conhecido

definitivamente como momentos inseparáveis de uma mesma cultura: a cultura cubana, cultura

de resistência e criação. Não em vão Miguel anda dizendo por aí que ele também é um cimarrón.

Neste ponto se radica, a meu ver, a autêntica singularidade de Esteban Montejo. A

universalidade de que falamos não seria mais do que um arquétipo frio ou um desses modelos

abstratos e infecundos que de uns anos até a data de hoje tem sido usual construir por cima da

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história concreta dos homens, como se em Esteban somente vivesse o ideal da resistência

cultural e dos valores éticos em geral. Memórias de um cimarrón não versa sobre resistência,

ética e criação em geral, senão sobre resistência, ética e criação como atributos da cultura

cubana, em particular; do processo inusualmente intenso de sua formação histórica, visto – e isto

é o definitivo – através de um de seus legítimos e mais importantes protagonistas: o homem

negro, crioulo, cimarrón, mambí2, operário e patriota. Continuarão ignorando-o algumas histórias

míopes e preconceituosas, ou transformando-o em um boneco folclórico, outras histórias e

etnografias de farândola e exotismo. Porém, aí estará Esteban para desmentir umas e outras, para

validar a inserção edificante de sua extirpe na cubanidade, para confirmar com sua vida e seu

pensamento o colossal processo de transculturação – cabe dizer, deculturação, aculturação e

neoculturação – que produziu esta peculiar comunidade de homens que chamamos de nação

cubana. Esteban Montejo: um homem para o qual a África não era senão uma referência

mitológica, encostada atrás de uma velha muralha “feita de folhas de palmeiras e bichos bruxos

que mordiam como o diabo”, e cuja única realidade era a escravidão, o cimarronaje3, o engenho,

a guerra e o trabalho duro por trinta pesos. Um homem cubano das raízes até a cabeça, e ao

mesmo tempo singular pelas vicissitudes específicas, quase legendárias de sua vida, que

percorreu sob seus pés e construiu com suas mãos o trajeto histórico da formação de sua própria

identidade nacional.

Um segundo elemento reafirma, do meu ponto de vista, a percepção de Graham Greene e

Alejo Carpentier sobre a unicidade de Memórias de um cimarrón: a forma da escrita, realmente

inclassificável, pelo menos a partir dos padrões aristotélicos de nossa ciência ocidental. “Relato

etnográfico” e “novela-testemunho” têm sido os rótulos desacostumados sugeridos pelo autor.

2 . [NR] Cimarrón, ona adj. s. [Animal] doméstico que se faz selvagem: cachorro cimarrón. Amer. [Escravo]

fugitivo que se refugiava no mato em busca da liberdade. (ESPASA-CALPE, 2005). Poderia ser traduzido como o

escravo que morava no mato, escondendo-se em cavernas e diferente do Quilombola, que vivia em comunidades, no

Brasil. Quilombola: escravo fugido para o quilombo. (HOUAISS, 2001, pp. 2359).

3 [NR] Cimarronaje: entendido como a atividade praticada pelo Cimarrón, para sua sobrevivência e defesa o

que difere de quilombolismo que segundo Houaiss é a resistência exercida pelo movimento dos quilombos contra o

sistema escravista branco; ação dos quilombolas. (HOUAISS, 2001, pp. 2359).

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Memórias de um Cimarron, de Miguel Barnet 12

Ele é que sabe, certamente, obrigado a dar um nome de alguma maneira ao que não tem nome,

para não permanecer mudo como aquele discípulo de Heráclito que, desanimado pela

imobilidade dos termos é posto ante a dialética implacável das coisas – em lugar de dar-lhes

nomes, preferia indicá-las com o dedo. Mesmo dando um nome ou indicando com o dedo, o

certo é que esta obra faria morrer de inveja a um ou a outro escritor pós-moderno, desses que

procuram com artifícios e graves dores de parto o que a Miguel Barnet se lhe oferece com

naturalidade: a superação das fronteiras existentes entre gêneros, mas que não é a destruição dos

próprios gêneros, a mistura teimosa, a confusão, senão sua integração harmônica, espontânea,

plana, e também profunda-mente pensada e austera.

Queria insistir nisto: não é o arbítrio subjetivista nem a busca vã de originalidade o que

liga em Memórias de um cimarrón etnografia com poesia, testemunho com novela, narração com

estudo de caso, história de vida com fabulário, porém o apego mais estrito à necessidade interna

do desenvolvimento de seu objeto ou, se quiser, de sua trama. Não há método de investigação

mais rigoroso que aquele que consegue se fazer imanente ao automovimento de seu objeto, nem

pensamento mais livre que aquele que consegue se identificar com a necessidade de seu

conteúdo. O rigor e a liberdade do modo de pensamento realizado por Miguel Barnet radicam-se

precisamente nessa larga e difícil modéstia do espírito criador, que consiste em calar e deixar

que seja o objeto quem conte sua própria história, transforme-se em sujeito, que desenvolva em

si suas próprias distinções, faça de si um livro e se coloque por si mesmo à disposição dos

leitores. Muito mais por ser esse objeto um homem, e mais do que um homem é história viva e

fecunda!

A leitura do livro faz ostensível a sólida cultura antropológica e histórica do autor. De

alguma forma, terão sido necessárias também muitas horas de estudo em arquivos e bibliotecas e

inúmeras consultas de ordem metodológica. No entanto, somente a intuição artística, que retém

na imaginação o todo e o faz valer no trabalho em cada parte, é capaz de fundir em uma única

peça: história, mito, lenda, ficção e realidade, soldados de tal forma que não sejam visíveis as

soldaduras ou, mais exatamente, soldados sem soldador e, por conseguinte, sem soldaduras. É a

intuição do artista que supre largamente, transborda e supera em sua capacidade cognoscitiva a

técnica fria e sem alma do cientificismo.

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Memórias de um Cimarron, de Miguel Barnet 13

Memórias de um cimarrón é uma obra de arte. Mas não só, não tanto, não já, não per se.

Com igual dignidade – e não simplesmente também ou do lado de – constitui uma obra

científica, especialmente etnográfica. E este momento é que desejo fazer ênfase. Note-se que

digo momento, e não elemento. Elemento é aquilo que consegue viver por si mesmo, embora

faça parte de um todo, como vivem por si mesmas as peças de um relógio e podem ir-se morar

em outro relógio, e funcionar ali sem a afetar sua relojoaria. Momento é isso que tem sua

realidade em um todo orgânico que o engloba, e é indissolúvel dele, e não pode existir nem ser

pensado sem ele, senão com uma profunda diminuição da organicidade. A ciência etnográfica,

com sua peculiar historicidade, é precisamente um momento de Biografia de um cimarrón. Um

momento relevante. Basta rever suas páginas, digamos aquelas do mato, o mato do cimarrón, e

não somente o da geografia; seus pássaros cochichando, porcos desgarrados, cobras, vampiros,

ranchadores e cães amestrados espreitando; ladeiras, subidas e descidas, cavernas atravessadas

por morcegos, alimentos roubados do jeito do gato, picadas de bichos, ervas medicinais, água

fresca, sombras de árvores que não é conveniente pisarem de noite, arremedos de tabaco e café;

música e bailes de camponeses distantes, caça de cutias, abstinência do verbo e do sexo, e o

sentimento profundo de que a liberdade se pendura no fio da prudência. Ou a indagação

sistemática no engenho e suas concomitâncias: barracões sem fechaduras, canaviais, feitores,

hospedarias, festas, suores sexuais no ervaçal, badalos do silêncio, arados, máquinas de vapor,

islenhos, galegos, asturianos, chineses, filipinos, congos, lucumís4, mandingas, ciganos, circos,

trens, cachimbos de barro, ñánigos5, santeros, católicos, maçons, namoros com pedras e grãos de

milho, cabildos6, heranças, tertúlias, advogados, médicos, curandeiros, parteiras, governa-dores,

4 [NR] Lucumí: geralmente utilizado para denominar os povos de origem Ioruba. (ESPINOSA, 1997: 90).

5 [NR] Ñañigo: adj.e s.m. Cub.Membro de certa irmandade de homens negros. (SANTIESTEBAN, 1997:

292).

6 [NR] Cabildo: em Cuba eram agremiações de negros da mesma nação e seus descendentes, com uma

estrutura hierárquica, que se existiu até o início da República, com a finalidade de manter viva a memória de sua

pátria ausente.(CABRERA, 1993: 70). Pode ser entendido como Cabido, segundo Houaiss, “um conjunto de

clérigos de uma catedral, igreja ou colegiada”. (HOUAISS, 2001: 544).

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Memórias de um Cimarron, de Miguel Barnet 14

condes e marqueses, cédulas e cartilhas de identidade, comidas e bebidas rituais, padres e

igrejas, vendedores de tudo o que for possível comprar, licores, competências de cavalos, brigas

de galos, moedas mexicanas e espanholas, modas e usos no vestir, carnes postiças trás-

camisolas, saias, saiotes, corpetes e vestidos, brincadeiras infantis, trapiches, filhos mulatos,

couro para as crianças, ilhas de jacarés e tubarões nas que ficam confinados ladrões, gigolôs,

quatreiros e rebeldes, casas habitadas por espíritos, andanças funerárias, ressurreições, técnicos

ingleses e norte-americanos, bandoleiros, seqüestros, güije7, sereias dengosas que levam os

homens para o fundo do mar e os devolvem vivos, bruxas que penduram a pele atrás da porta,

ginetes sem cabeça, vozes do campo, pardais que nascem de ovos cozidos e diabinhos paridos

por galinhas e pelo engenho humano, cazuelas8 feiticeiras de mayombe9 judeu, terças e meia-

noite do Diabo, amuletos, luz elétrica, dominó e baralhos, festas de San Juan, Semana Santa,

Sábados de Aleluia, titeriteiros, sitieros, armazeneiros, provérbios, histórias de sapos, cágados,

tigres e macacos...

Análogo tesouro etnográfico está contido nas páginas do barracão e da guerra. Barracão de

integração interétnica e distância social; guerra de paradoxos viventes, de pequenas brigas pelo

mando e épica cotidiana, de cepos de campanha e fardos de libertador, de desconfiança funda e

entrega idealista, de patifes e titãs, de traição e heroísmo. A guerra do mambí, filho de áurea e

macaco transformado em leão. E, faço questão de enfatizar que nestas páginas não se encontra

simplesmente o material estabelecido para o estudo de algum sábio conceituoso, senão o próprio

estudo deste material, em que o conceito e o “aparelho categorial, as coordenadas da

classificação, a indução e a dedução se submergiram livremente na lógica interna da cultura”.

Etnologia tem aqui e, mais além. Antropologia histórica, estudo científico do homem enraizado

em sua cultura e sua história.

7 [NR] Güije ou jüige: Personagem mitológico de Cuba. “Luis Câmara Cascudo afirma, no seu dicionário de

folclore brasileiro, que perto do Rio Paraíba, espalha o terror o cabeça-de-cuia, tenebroso personagem que igual ao

nosso jüige, é responsável pelos afogamentos”. (SANSEBATIAN, 1997: 210-211).

8 Panela ou caçarola.

9 Palo Mayombe, Palo Monte, las Reglas de Congo ou Kimbisa: culto centro-africano aos espíritos e

ancestrais, de origem banta e praticado em Cuba. (Palo Mayombe in Cuba, 2009).

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Memórias de um Cimarron, de Miguel Barnet 15

Alguém dirá que tal dado resulta anacrônico ou que tal batalha teve lugar dez quilômetros

mais para o sul. Tanto pior para sua percepção dos valores do livro e da ciência antropológica. A

meu ver, não é a chamada “história real” o mais importante neste caso – embora importe bastante

–, aquela que costuma ser copiada servilmente e com caráter exclusivo, como se as outras, as da

mentalidade e do imaginário individual e coletivo não fossem reais. Primeiro, importa a visão

que oferecem Esteban e Miguel da natureza sensorial e supra-sensorial, das relações entre o

homem e estas naturezas e dos homens entre si, da sociedade e a divisão social do trabalho, da

produção, da distribuição, da mudança e consumo da riqueza material e espiritual, da cultura, da

ideologia, da propriedade e do poder. Visão incontestável contra a qual vai se estrelar toda

crítica arqueológica do detalhe.

Está encerrado o caminho aberto por Miguel Barnet? Foi quebrada, depois de ser usada, a

moldura em que foi fundida Memórias de um Cimarrón? Não acredito. É certo que já não haverá

cimarrones, no mínimo, cimarrones venham a se tornar membros do Partido Socialista Popular.

De Esteban somente seguirá vagando o espírito, em sentido figurado e em sentido literal. Mas

não falo do metal, e sim da moldura, não do conteúdo, e sim da forma aberta para o estudo da

cultura cubana. De que a forma, transfigurada, tem continuado viva, assinala a própria obra

ulterior de Miguel Barnet, sobretudo Gallego e Canción de Rachel, e a ainda inominada que está

por chegar. Mas eu acredito que esta forma, naquilo que tem de científica, pode continuar

fazendo saber de si por múltiplas vias, e não somente na obra de Barnet.

A unicidade é uma virtude da arte, não da ciência, e não existem mérito e responsabilidade

maiores para o científico que os de abrir um caminho pelo qual possam transitar outros, os de

colocar à disposição do grêmio da ciência um método de valor mais ou menos universal no que

tem de índice. E não no que teria de camisa de força. Eu próprio – e peço desculpas por esta

referência pessoal – acumulei centos de cartilhas em apertada letra com transcrições em bruto de

entrevistas realizadas com dois religiosos cubanos de singular vida. Para Barnet não será difícil

imaginar os embaraços e angústias em que me coloca o propósito de outorgar a vida nessa massa

informe de dados empíricos. Algum anjo, porém, anda sussurrando ao meu ouvido que

Memórias de um cimarrón constitui não um modelo, ao menos uma referência obrigatória e

fecundante. De uma ou outra forma, vários colegas escutaram esse mesmo anjo. Talvez o enigma

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Memórias de um Cimarron, de Miguel Barnet 16

esteja em não se deixar encandear pelo modo artístico tão peculiar de Barnet. O importante é

assumir o risco da criação com modéstia e com a esperança de que Miguel nos conceda a graça

de um piscado cúmplice pela ousadia. Neste sentido, Greene e Carpentier tinham muita razão,

embora não a tivessem totalmente.

Rubén Zardoya Loureda

Reitor da Universidade de Havana

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Memórias de um Cimarron, de Miguel Barnet 17

Introdução

Em meados de 1963 apareceu na imprensa cubana uma página dedicada a vários anciãos,

mulheres e homens, que ultrapassavam os cem anos. Página que continha uma série de

entrevistas orientadas para temas insubstanciais, anedóticos. Dois dos entrevistados chamaram

nossa atenção. Um deles era uma mulher de cem anos; o outro, um homem de cento e quatro. A

mulher tinha sido escrava. Era também santera e espírita. O homem, embora não se referisse

especificamente a temas religiosos, refletia em suas palavras uma tendência às superstições e às

crenças populares. Sua vida era interessante. Contava elementos da escravidão e da Guerra da

Independência. No entanto, o mais impres-sionante para nós foi ele ter declarado que havia sido

escravo fugitivo ou cimarrón nos matos da província de Las Villas.

Esquecemos a anciã e poucos dias depois fomos para o Lar do Veterano, onde morava

Esteban Montejo. Encontramos um homem bem sério, saudável e de cabelos completamente

brancos. Conversamos bastante naquela primeira ocasião.

Nosso interesse fundamental voltava-se a aspectos gerais das religiões de origem africana

que se conservam em Cuba, e assim, tentamos no começo, indagar sobre certas particularidades.

Não foi difícil desenvolver um diálogo vivo, usando logicamente os procedimentos habituais da

pesquisa etnológica. No começo falou-nos de seus problemas pessoais: aposentadoria, mulheres,

saúde. Tentamos ajudar em alguns deles. Oferecemos-lhe presentes simples: charutos, galardões,

fotografias, etc. Contava-nos de forma desconexa e sem ordem cronológica, momentos

importantes de sua vida. O tema religioso não aflorava com facilidade. Deste tópico

posteriormente reunimos dados sobre ritos, deuses, adivinhação e outros detalhes. Depois de

termos conversado com ele por cerca de seis vezes – nossas entrevistas se prolon-gavam até

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Memórias de um Cimarron, de Miguel Barnet 18

cinco horas – fomos ampliando a temática com perguntas sobre a escravidão, a vida nos

barracões e a vida no mato, vida de escravo fugitivo – cimarrón.

Após ter uma visão panorâmica de sua vida, decidimos considerar os aspectos mais

importantes, cuja riqueza nos levou a pensar na possibilidade de produzir um livro onde os

acontecimentos aparecessem em ordem cronológica, conforme ocorreram na vida do informante.

Preferimos que o livro fosse um relato em primeira pessoa, de modo que não perdesse a sua

espontaneidade, podendo então ser inseridos vocábulos e giros idiomáticos próprios da fala de

Esteban.

Com esse objetivo traçamos um esquema que nos permitisse dividir as etapas que seriam

incluídas no trabalho. Uma vez montado esse esquema, começamos a desenvolver as perguntas.

Como os temas surgiam das próprias perguntas, não foi difícil manter a seqüência dos diálogos.

De início Esteban Montejo mostrou-se um pouco esquivo. Mais tarde, ao se identificar conosco,

percebeu a importância do trabalho, e com sua contribuição pessoal conseguimos um ritmo de

conversa normal sem as anteriores interrupções banais.

Frequentemente, uma palavra ou uma idéia despertavam em Esteban lembranças que

faziam com que, às vezes, fugisse do tema. Estas digressões resultaram valiosas porque traziam à

conversa elementos que talvez não tivéssemos descoberto.

Podemos dizer que apesar de termos elaborado as principais perguntas na base de alguns

livros e questionários etnológicos, foi na prática que surgiram aquelas mais diretamente

relacionadas com a vida do informante.

Preocupavam-nos problemas específicos, como o ambiente social dos barracões e a vida

celibatária de um cimarrón.

Em Cuba são escassos os documentos que reconstruam esses aspectos da vida durante a

escravidão. Daí que, mais do que uma descrição detalhada da arquitetura dos barracões, chamou

nossa atenção a vida social dentro daquelas vivendas-cárceres. Também quisemos descrever os

recursos empregados pelo informante para a subsistência no meio da mais absoluta solidão do

mato, as técnicas para a obtenção do fogo, para caçar, etc. e também sua relação anímica com os

elementos da natureza, plantas e animais, especialmente com as aves.

Page 19: Cimarrón - memórias de um escravo fugitivo

Memórias de um Cimarron, de Miguel Barnet 19

Poucas semanas depois de sustenidos encontros, Esteban começou a demonstrar uma

afabilidade pouco usual em pessoas de sua idade. Falava com fluência e era ele próprio, muitas

vezes, quem escolhia o tema, considerado por ele da maior importância. Em várias ocasiões

coincidimos. Certa vez indicou, surpreendido, nossa omissão, por não lhe termos perguntado

sobre os chineses em Sagua la Grande10.

Olhava insistentemente para nosso caderno de anotações e quase nos obrigava a registrar

tudo quanto dizia. Numa entrevista com o capitão Antonio Núñez Jiménez, surgiu um tema que

não tínhamos abordado: a vida nas cavernas. Esteban informou a seu interlocutor, experiente

espeleólogo, todos os meios empregados para a subsistência em uma caverna.

Muitas das nossas sessões foram gravadas em fitas cassete. Isto permitiu que nos

familiarizássemos ainda mais com as formas de linguagem, giros, sintaxes, arcaísmos e

modismos de sua fala. A necessidade da verificação de dados, datas, ou outros pormenores, tudo

nos levou a manter conversas com veteranos mais ou menos seus contemporâneos. Todavia

nenhum deles era de tão avançada idade como para haver vivido etapas ou fatos dos relatados

por Esteban.

Consultamos livros, biografias dos municípios de Cienfuegos e de Remédios, e revisamos

toda a época com o intuito de não cairmos em imprecisões históricas ao fazer nossas perguntas.

Porém, com certeza, nosso trabalho não é histórico. A história aparece porque se trata da vida de

um homem que passa por ela.

Durante todo o relato será evidente a necessidade que tivemos de parafrasear muito do que

foi contado por ele. Se tivéssemos copiado fielmente os giros de sua linguagem, o livro teria

resultado difícil para a compreensão e em excesso reiterativo. No entanto, fomos extremamente

cuidadosos ao conservar a sintaxe, quando ela não se repetia em cada página. Sabemos que fazer

falar um informante é, em certa medida, produzir literatura. Mas nós não tentamos criar um

documento literário, uma novela.

Inserimos nosso relato em uma época fixa. De esta época não objetivamos reconstruir seus

detalhes mínimos com fidelidade no referido ao tempo ou espaço. Preferimos conhecer técnicas

10 [NR] Município da Província de Villa Clara em Cuba.

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Memórias de um Cimarron, de Miguel Barnet 20

de cultivo, cerimônias, festas, comidas, bebidas; embora nosso informante não pudesse

esclarecer exatamente os anos em que esteve relacionado com elas. Alguns temas, os que

considerávamos os mais importantes: os fatos da Guerra da Independência, a Batalha de

Cienfuegos contra os norte-americanos, foram verificados e acompanhamos notas ilustrativas. A

vida no mato ficou na lembrança de Esteban como uma época muito remota e confusa.

Certamente muitos de seus argumentos não são estritamente fidedignos aos fatos. De cada

situação ele nos oferece sua versão pessoal. Como ele viu as coisas. Fornece-nos uma imagem da

vida nos barracões, da vida no mato, a sua imagem da Guerra da Independência. Nesta, por

exemplo, narra a batalha de Mal Tiempo, contando anedoticamente o vivido dela. Sua visão é

subjetiva na apreciação de figuras importantes como Máximo Gómez, que analisa de um ponto

de vista bem pessoal. Uma análise interessante para nós porque mais do que a vida de Máximo

Gómez, de quem todos sabemos algo, reflete a maneira de nosso informante aproximar-se das

coisas, tratar os homens, sua atitude de grupo restrita à sua raça.

Alguns rasgos característicos de sua personalidade básica se refletem em diversas

situações do relato. Os mais relevantes são: um firme sentimento individualista que o

encaminhou a viver isolado, ou melhor, separado de seus semelhantes, mas não constituiu um

obstáculo para sua integração aos fatos coletivos como, por exemplo, a Guerra da Indepen-

dência. Sentimento que contribuiu para a confirmação de uma perso-nalidade voluntariosa e

rebelde que fez de Esteban um homem descon-fiado, muito reservado, mas não insolente nem

intratável. Pelo contrário, é alegre e brincalhão. Certamente os anos de vida celibatária nos

matos, fugindo de todos os seres que o cercavam, reforçaram esse sentimento.

Um critério parcial, favorável aos homens negros, no julgamento de alguns fatos como a

guerra. Esse critério parcial justifica-se perfeitamente nele e em todos os negros velhos que

viveram a abominável história da escravatura e do jugo de que participou nosso informante.

Esteban é quase incondicional na estima pelos negros que lutaram pela liberdade de Cuba. Exalta

muitas figuras e situa outras adequadamente, por exemplo, Antonio Maceo e Quintín Banderas.

Não deixa de criticar duramente os negros guerrilheiros, e os caracteriza como desprezíveis.

Um nível de honestidade e espírito revolucionário admiráveis. A atuação honesta na vida

se expressa em vários momentos do relato, na Guerra da Independência, sobretudo. O espírito

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revolucionário ilustra-se não só no próprio relato, mas em sua atitude atual. Esteban Montejo,

aos cento e cinco anos de idade, constitui um bom exemplo de conduta e qualidade

revolucionárias. Sua tradição de revolucionário, cimarrón primeiro, depois libertador, membro

do Partido Socialista Popular posteriormente, vivifica-se em nossos dias em sua afinidade com a

Revolução cubana.

Este livro narra vivências comuns a muitos homens da mesma nacionalidade. A etnologia

as reúne para os estudiosos do meio social, historiadores e folcloristas.

Nossa maior satisfação é refleti-las através de um legítimo ator do processo histórico

cubano.

Miguel Barnet