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WOLFGANG SMITH

CIÊNCIA

e MITOcom uma resposta a O Grande Projeto,de Stephen Hawking

Tradução de Pedro Cava

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 In Memoriam

WERNER PETER SCHMITZ-HILLE

† 24 de dezembro de 2008

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SUM RIOpalha de Rostodicatória

efácio por Raphael D. M. De Paola: A filosofia e a inteligibilidade da ciência modernaefácio à segunda ediçãorodução

1. Ciência e mito2. Ciência moderna e crítica guénoniana3. Ciência e fechamento epistêmico4. O enigma da percepção visual5. Os neurônios e a mente6. O chacra e o planeta: a descoberta de O. M. Hinze7. Da física à ficção científica: Uma resposta a Stephen Hawking8. Metafísica enquanto “visão”

Ciência e mito

III

Ciência moderna e crítica guénonianaCiência e fechamento epistêmicoO enigma da percepção visualOs neurônios e a menteO chacra e o planeta: a descoberta de O. M. HinzeDa física à ficção científica: Uma resposta a Stephen Hawking

IIIIII

Metafísica enquanto “visão”éditosbre o Autor br e a Obra

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PREF CIOA FILOSOFIA E A INTELIGIBILIDADE DA CIÊNCIA MODERNA

normal a situação em que os maiores expoentes de uma ciência admitam não saber de que estãando? Ainda mais quando se trata da ciência que é, supostamente, a base de todas as outras?bretudo em seu ramo que toca mais fundo na constituição íntima da matéria?

O prêmio Nobel Richard Feynman afirmava: “Ninguém entende a mecânica quântica”; e não são – ao menos para quem está preso dentro do que o professor Wolfgang Smith chama deitologia cientificista”. Durante todo o século passado, os mais eminentes físicos se confrontadebates quase impenetráveis a respeito do significado último deste que é o ramo mais exato

is confirmado experimentalmente de toda a ciência, mas nunca chegaram a desafiar abertamenças mais queridas da mentalidade moderna – no caso de alguns desses físicos, por pura falt

nhecimentos básicos, e até simples, em ramos que não é a Física. Mas como nada chega a estam que não possa piorar, nos últimos cinqüenta anos, a tentativa a todo custo de manter intactasmovisão só fez ganhar contornos dramáticos, quando não ridículos.

Como isso se tornou possível? Como foi possível atingir ao ponto no qual cientistas sérios empetentes chegam a propor interpretações da mecânica quântica em que a mente do observadermina o acontecer físico em equipamentos de laboratório, ou de que existam múltiplos univ

ndo criados cada vez que se roda um experimento no quintal de casa? Ou ainda: como entendeução de desespero do “cala a boca e calcula”, dando por pressuposto que não é tarefa do fís

ofissional fazer nem responder a essas perguntas? Ou, no caso de sê-lo, que a atitude maisentífica” consista em passar notas promissórias agora, em nome de uma ciência vindoura quegatará no futuro – o qual, até provem o contrário, continua meramente hipotético?

Aristóteles e a escolástica medieval não poderiam, é claro, ter previsto os descobrimentos da ica, mas estabeleceram as bases que possibilitaram seu surgimento e que possibilitam, hoje, endimento; mesmo – e principalmente – em sua mais recôndita e aguda questão, que é anificação da mecânica quântica. As noções de matéria e forma, de ato e potência e de substâ

cidentes, entre estes a quantidade e a qualidade, assim como a noção de causa física e suasatro principais variantes, dão a única inteligibilidade possível do mundo natural. Wolfgang Sguindo a tradição de René Guénon, Seyyed Hossein Nasr e Jean Borella (mas antecipado ao mrcialmente por Vincent E. Smith, William A. Wallace e o movimento da River Forest School ,mbém pelos esforços de tomistas anteriores como Bernard Mullahy, Filippo Selvaggi, Peter 

enen e Filippo Soccorsi), resgata o ferramental teorético escolástico com o qual fornece, emenigma quântico,[ 1 ] a chave interpretativa para o maior problema que a ciência moderna leuito a contragosto, à filosofia.Como se não bastasse estabelecer as bases para a solução deste problema, o qual resistiu aosiores físicos do século XX, os conceitos filosóficos empregados pelo professor Smith lhermitem também fazer uma crítica cultural devastadora da cosmovisão cientificista moderna. Atícia de que a Vide Editorial  traduzirá toda a sua obra para o português, portanto, não pode ses imbuir da responsabilidade de estudá-la a fundo. O professor Smith, e também boa parte da

dição tomista mais recente, mostra que a alteração do significado de alguns daqueles conceito

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colásticos, e o abandono de outros na entrada da modernidade, levaram à confusão que capturnte dos mais brilhantes cientistas do século XX. Esta confusão tem origem em teorias do

nhecimento pervertidas, e em teorias sobre a realidade completamente equivocadas, as quaisesar de propícias ao rápido desenvolvimento da matematização do mundo natural, e também drecerem, ao menos na superfície, servirem-lhe de única escora possível, acabaram apenas poar à perda cognitiva do objeto de estudo das ciências.

Contar o desenrolar deste progressivo distanciamento entre o discurso científico e a experiêncmana mais imediata torna-se, assim, tarefa urgente não apenas para recuperar o ponto de conts teorias modernas com a realidade, mas até mesmo para salvar a própria Ciência do assalto acionalismo desconstrucionista pós-moderno, que a transforma em nada mais que um apêndiclítica, em um discurso como qualquer outro. A tentativa desesperada dos físicos Alain Sokal an Bricmont, em Impostures Intellectuelles,[ 2 ] de denunciar tal assalto, por parte dospresentantes das ciências humanas que abusam do linguajar técnico-científico sem o menor nhecimento do assunto, com o intuito de justificar as mais queridas modas políticas do momenabou se provando totalmente impotente. Mesmo após os dois desmascararem a própria farsablicamente, o episódio culminou no ridículo de aqueles a quem pretendiam atingir manterem

mais deslavada e cínica atitude de sustentar que havia, sim, base “científica” e boa “ciência” nte original da dupla.Mas o resultado era mais que esperado: qual o sentido em desmoralizar em outrem o uso denceitos mal entendidos, no exato momento em que você mesmo está usando outros que tampoumina por completo? Abra qualquer livro dos grandes físicos ou matemáticos dos últimos sécuocure as definições de matéria, corpo, espaço  físico, movimento e tempo, ou de quantidade

ntínua e quantidade discreta – isso para não falar na noção de causa. Não tendo a menor idée por trás de cada um destes termos há uma história mais rica do que tudo o que veio a ser eracionalizado matematicamente depois, eles se contentam – e nos fazem engolir – com define são puramente operacionais, como as que servem bem, por outro lado, para outras classes dnceitos, tais como massa, energia, espaço métrico ou conjunto, por exemplo. A elevação de ro, ainda que potente, recorte metodológico a critério último da realidade e da existência atin

u ápice na filosofia convencionalista de Henri Poincaré e na filosofia operacionalista do prêmbel Percy Bridgman, as quais estão construídas em bases movediças demais para suportarem

meza o ataque mal intencionado das ciências humanas da segunda metade do século XX.mpouco o que se conhece como “filosofia analítica” está em contato estreito o suficiente comlidade que a permita resistir àquele assalto destrutivo. Por ser ela mesma a herdeira direta do

sitivismo, tanto faz que ela estipule, como único acesso à realidade, a leitura de instrumentosálise da linguagem.Toda essa tentativa de defesa por parte das ciências “duras” não faz mais que buraco n’água,rque esse debate, visto de uma escala maior, não passa de uma briga de família entre as alasreita” e “esquerda” do movimento iluminista. Passados apenas dez anos doaffair  Sokal, aseixas contra tal assalto irracionalista baixaram muito o tom e, ou não passam de esperneios mmorados, ainda que com méritos, como os de David Lindley (The End of Physics),[ 3 ] ou setringem a pouco mais que reclames de verbas de pesquisa, controladas, em última instância,

óprias motivações políticas contra as quais se insurgem. Um exemplo é o livroThe Trouble wysics,[ 4 ] de Lee Smolin, no qual se pede mais atenção a áreas da física teórica que não apen

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ria das cordas. O professor Smolin, ele mesmo um grande e ativo cientista que transitou por das as áreas da Física teórica nas últimas décadas, faz um balanço belíssimo da história maisente da Física, mas sua crítica ao assalto irracionalista tem asas de galinha porque, como qua

do mundo que freqüentou uma universidade hoje em dia, ele acredita piamente que o uso daeligência no homem começou com Galileu.

O professor Smith, em outra obra sua, The Wisdom of Ancient Cosmology,[ 5 ] afirma:

O universo tal como descrito pela ciência moderna é obviamente inaceitável como um habitat  humano. A cosmovisãocientificista só é suportável porque ninguém acredita realmente nela.

A solução provisória que torna a vida minimamente suportável na sociedade moderna foi dadas instituições que, apenas por motivos de propaganda, alguns insistem em chamar de “ensin

perior”, cuja grande realização consiste unicamente no milagre de nos fazer “compartimentalissas crenças”, acreditando, para fins puramente profissionais, no discurso acadêmico e em susmovisão absurda, mas tentando resguardar o devido espaço para viver como pessoas normado o mais. É claro que “normal” aí, passa a ter um sentido totalmente deformado, ou seja, o deadãozinhos bem-comportados da Nova Ordem Mundial.

É impossível que tamanho malabarismo intelectual não deixe marcas profundas, geração após

ração, em seus mais altos expoentes. Se a situação era crítica há cem, oitenta anos, nas últimacadas chegou a um estado de total devastação da inteligência superior. Isso pode ser atestadomparação entre os escritos daqueles que ainda se poderiam chamar de “herdeiros daodernidade”, como um Poincaré, um Eddington, um Einstein, um Bohr, um Max Born, umisenberg, um Planck, um Schrödinger, um de Broglie, um David Bohm, e as opiniões daquelepoderiam chamar de “herdeiros do desconstrucionismo pós-moderno”, tais como Steveneinberg, Richard Feynman, David Gross, Frank Wilczek, Leo Susskind, Freeman Dyson, Daviutsch, Alan Guth, Max Tegmark e o incalável Stephen Hawking. Não que estes professem

nscientemente qualquer moda saída dos departamentos de Ciências Humanas; muito ao contrámo mostra o professor Smith, eles são suas primeiras vítimas:

O reducionismo metodológico cientificista não obriga a – e nem carrega consigo – nenhuma ontologia em especial, sendo metafisicamente neutro. Mas, conquanto a ciência mesma não autorize de jure a um reducionismo de cunho ontológico, ela

 facto acaba por fazê-lo; no fim das contas, ninguém resiste à tendência de negar aquilo que a ciência moderna não consegualcançar.

Não obstante, nada disso pode ser entendido como uma crítica à progressiva e necessáriapecialização do conhecimento. Como ressalta o professor Olavo de Carvalho, o problema nãpecialização das ciências, mas é pensar nelas como espécies sem gênero. Na presente obra,

olfgang Smith usa o conceito de “fechamento epistêmico” de Jean Borella para explicar porquto que se proceda a um tal reducionismo na tentativa de aprofundar o alcance de uma dada ci

as mostra, junto com isso, que tal fechamento nunca é completo e nem mesmo possível – nem temáticas, como bem ilustram os teoremas de Gödel. Sempre se torna necessário um salto para do arcabouço conceitual, se quisermos voltar ao contato com o mundo real. Cada sistema fompre, assim, o papel de um signo, de um apontar para algo que o contém e abrange, nunca podbstituir o papel deste. É neste sentido que a solução dada pelo professor Smith ao enigma quâcontra seu embasamento: o “mundo físico”, tal como ele o define precisamente, não passa de no do mundo corpóreo. O mundo regido pelas equações matemáticas, em que pese não ser um

undo irreal povoado apenas por “ficções do espírito” ou “entes de razão”, como gostariam mu

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ticos irracionalistas da ciência, tampouco é um mundo fechado em si mesmo, pois ele passa aer sentido apenas em relação com o mundo concreto: “a função das partículas quânticas não énferir o ser, mas recebê-lo”.Agora, se tomamos o estrato físico da realidade como o único que existe (o “átomos e o vaziomócrito), reduzindo a meros agregados de partículas descritas quanticamente, os aparelhos ddida concretos, e também gatos, cientistas, e até pessoas (se aqueles, por que não estas?), “aica se torna”, afirma Smith, “não uma teoria de tudo, como gostam de pensar os físicos, e simria de coisa nenhuma”. Assim, “a história da Física, desde seus inícios galileanos, até as últrias do multiverso, exibe os vários estágios desse fechamento progressivo, que se manifesta

ma recessão concomitante dos objetos correspondentes da experiência humana real, culminandma concepção de entidades pertencentes a universos outros que o nosso”. Claro, uma vez que artículas são tidas o tempo todo como possuindo existências atuais (no sentido escolástico),demos prescindir da necessidade delas darem sinais em detectores concretos. Afinal de contaem precisa ir ao laboratório se já temos todas as equações? E, caso estas não sejam capazes dnta dos aconteceres atuais em nosso universo, quanto custa criar infinitos outros numa simplenetada? “Todo o possível acontece”, é o lema. Ainda que pareça cômico, a interpretação de

últiplos universos” ou “muitos mundos” é a que, nas últimas décadas, vem ganhando o maiormero de adeptos na comunidade da Física Teórica. Um pequeno banho de aristotelismo mostre pessoal a confusão primária entre potência e ato na qual incorrem – mas Aristóteles viveu Galileu, não é mesmo?

Neste livro, o professor Smith também destrói totalmente as pretensões filosóficas de Stephenwking em O Grande Projeto, de falar algo inteligente – as quais não eram mesmo grande coinal é o próprio Hawking quem afirma que “a filosofia está morta”. Em sua pessoa, totalmentemo encarar a tentativa, dele e de outros, de responder à pergunta “por que existe algo e não, anada?”, com teorias do tipo big bang , universo inflacionário ou universos pulsantes? Eles nãorcebem que estão buscando uma origem  física para o universo físico, uma causa material  parverso material? Não vai dar, pode começar tudo de novo, porque assim não vai dar. Mas, opeito aos dados da Ciência, hoje, virou isso: uma paródia, evidentemente.

Por último, nada disso seria possível se, na entrada da modernidade, não se tivesse descuradoproblema da percepção animal e da intelecção humana, ambos analisados pelo professor Smto nesta obra, quanto em outras. Em paralelo com elas, fundamentais também são a obra do

ofessor Carlos A. Casanova, Física e Realidade:  Reflexões metafísicas sobre a ciência natu

as obras dos dominicanos americanos, William A. Wallace (The Modeling of Nature e From

alist Point of View) e Benedict Ashley (The Way Toward Wisdom e Theologies of the Body)ande parte da obra de John Deely, a começar por Four Ages of Understanding . Aí se demonstande confusão que Hobbes, Descartes, Galileu, Locke, Newton, Hume e Kant fizeram ao trocaue conhecemos por aquilo pelo que conhecemos.

No caso da percepção, quando vemos um cavalo e “recebemos” a imagem “cavalo”, seja na rcérebro, ou no raio que o parta, o que percebemos não é a imagem, mas o próprio cavalo – aser por meio da imagem, sem dúvida. A imagem é um signo, um sinal de algo que não é ela,parando um movimento da alma em direção a algo que está fora. No caso da intelecção, a me

sa: o que inteligimos não é a espécie cavalo, mas o próprio cavalo – apesar de ser por meio pécie, claro. Daí, a partir deste ponto privilegiado, podemos apreciar o “espanto” com o qual

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istóteles diz começar todo o conhecimento, espanto esse que, segundo Smith, “prova ser, emência, um reconhecimento, conquanto obscuro, da imanência impenetrável de Deus nas coisa

ste mundo”.Toda a tragédia moderna e pós-moderna parte da premissa de que somente conhecemos aquilomente mesma fabrica, de que vivemos num universo caótico e sem sentido e que é a mente humem organiza o mundo, os dados do sentido. O incrível é que tal premissa é perfeitamentescartável para que a ciência matematizante moderna faça sentido – na verdade, somente serando deste lixo ela faz pleno sentido. Uma vez que se a adote, tanto faz que seja “o” homem,mem, a “humanidade”, ou ainda um movimento político, a decretarem o sentido da vida para outras pessoas, o que viveremos é o inferno na Terra – mas não sem boas risadas, admitamosrque se do ponto de vista moral a cena toda é uma grande perversão, do ponto de vista inteleé de um primarismo cômico. Como aponta Huston Smith, um autor muito citado pelo profess

olfgang Smith, “nenhuma vida pode ter sentido num mundo, ele mesmo, sem sentido”. Ou aindmo diz Saul Below: “A idéia da vida que vivemos hoje pode nos doer tanto mais tarde quantoora nos dói a idéia da morte”.

Raphael D. M. De  Rio de Janeiro, Brasil (antes que ac

março de

1 ] Wolfgang Smith, O enigma quântico, Campinas: Vide Editorial, 2012.2 ] França, Paris: LGF, 1999.3 ] The End of Physics: The Myth of a Unified Theory, Basic Books, 1994.4 ] The Trouble with Physics: The Rise of String Theory, The Fall of a Science and What Comes Next , Penguin Books, 25 ] The Wisdom of Ancient Cosmology: Contemporary Science in Light of Tradition, Foundation for Traditional Studies, 26 ] Publicado pela Vide Editorial em 2013.

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PREF CIO SEGUNDA EDIÇÃO

rca de dois anos atrás − em 2010, para ser exato −, O Grande Projeto, o tratado deslumbranto memorável de Stephen Hawking, chegou às livrarias da Europa e da América e imediatamengiu o status de best-seller . Dando continuidade à duradoura tradição de cientificismoterialista, Hawking eleva as alegações de uma física matemática a alturas até então inimagináo se contentando em afirmar, como fizeram outros materialistas, que tudo o que se passa no t

o espaço possa, em princípio, ser entendido do ponto de vista da física, o autor argumenta qustência mesma do universo − “que há algo, em vez de nada” − pode igualmente ser explicadaciência. Ora, perfeitamente convencido de que esse tratado prestigioso desse “Einstein” de n

mpos iria turvar ainda mais um populacho que já se encontra desinformado − em suma, certo das novas “revelações das alturas” estão fadadas a causar danos imensuráveis −, comecei a

crever, persuadido por um amigo, o que esperava ser a resposta definitiva. Dado que as baseefutação já haviam sido estabelecidas em publicações anteriores, a começar porO enigma

ântico,[ 7 ] e que, em verdade, muito desse material já fora resumido em Ciência e mito, meu

etivo podia ser realizado no formato conciso de um artigo. Parece-me adequado reimprimir,rtanto, agora que essa tarefa foi cumprida, aquela “Resposta a Stephen Hawking” − que, nesstremeio, publicou-se no periódico Sophia[ 8 ] − como um capítulo do último livro mencionadsim, o artigo foi adicionado a esta segunda edição, mais precisamente como o capítulo 7. O lderá observar por si próprio que cada um dos tópicos tratados nos capítulos precedentes seaciona intimamente ao argumento “contra-Hawking” que se segue e também que as conclusõecontradas, em particular, nos capítulos 2 a 5 atestam quanto à sua cogência. Até mesmo o matntido no capítulo 6 pesa de forma crucial sobre o problema Hawking: pois, ao fornecer, nonimo, um vislumbre das ciências tradicionais, ele torna visíveis as limitações categóricas da

ntemporânea como um todo, situando essa ciência dentro de um campo mais amplo.Resta agradecer ao professor Seyyed Hossein Nasr, o amigo supracitado, por chamar minhanção para o livro de Hawking e me persuadir da urgência de lhe refutar as alegações desastr

u-lhe profundamente grato por tal gentileza.

Camarillo, 22 de fevereiro de

7 ] Op. cit. – NT.8 ] Vol. 16, nº 2, 2011, p. 5-48.

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INTRODUÇÃO

ência, de acordo com a sabedoria vigente, constitui a exata antítese demito. Como disse Albenstein, em uma expressão que se tornou famosa, ela lida com “o que existe”; supostamente,rtanto, mito tem a ver com “o que não existe”. Acontece, no entanto, que a questão não é assim

mples. Em primeiro lugar, ocorre que a ciência não se refere pura e simplesmente ao “que exismo no caso da Física – seu ramo mais preciso e sua disciplina de base –, ela se refere, no fi

s contas, não à natureza como tal, mas à resposta, da parte da natureza, às estratégias dos físicperimentais, o que se trata totalmente de outra coisa. Obviamente, isso não era compreendidompos newtonianos − e até hoje raramente é admitido em nossas escolas e universidades; porémópria física, na forma da teoria quântica, quem desqualifica nossa visão costumeira do que é qica traz à luz. Gostemos ou não, a física não lida simplesmente com “o que existe”, mas, enfimm aquilo que John Wheeler chama de “universo participativo”. Existe uma brecha, por nseguinte, entre o que a própria ciência afirma e o que geralmente se acredita ser a cosmovisãntífica; em suma, a suposta cosmovisão científica se revela, no frigir dos ovos, ser ela mesm

to.Nossa tendência, todavia, é estarmos igualmente confusos a respeito da natureza e da função dto em si. Esquecemo-nos de que, longe de lidar simplesmente com “o que não existe”, o mitotêntico “corporifica uma aproximação mais estreita à verdade absoluta que se pode expressaavras”, como nota Ananda Coomaraswamy. Contudo, na prática, as duas concepções equívouperestimação da ciência e a subestimação do mito − caminham juntas e valem igualmente coais de esclarecimento entre os “bem-informados”. Para complicar as coisas, a ciência ela memo observamos, engendra os seus próprios mitos: de um tipo que gostaria de banir todos osmais e, assim fazendo, solapar não apenas a religião e a moralidade, mas com efeito toda a cu

suas modalidades superiores. Digo isso sem denegrir no mais mínimo as conquistas autênticncia: não nego nem a beleza e sublimidade de suas reais descobertas, nem o fato de que anologia resultante, usada com sabedoria, pode ser um benefício para a humanidade. Falo dancia em sua situação presente como determinante primário da cultura: o oráculo ante o qual tciedade ocidental veio a se curvar, em um tipo de adoração insensata. Como não poderia ser im, uma vez que, nos dias de hoje, poucos − um mero punhado, parece − distinguem com algu

au de clareza entre ciência e mito cientificista! A ciência, por conseqüência, transformou-se duma espécie de cavalo de Tróia: nós não sabemos o que trouxemos para dentro de nossa cid

duzidos pelos milagres da tecnologia, abrimo-nos para o que supomos ser um iluminismontífico, inscientes daquilo que absorvemos; é exatamente como Cristo predisse em seu discurocalíptico aos discípulos, quando falou de “grandes sinais e prestígios” que podem “enganarsmo os eleitos”.

Este tratado se ocupa, ao longo de toda a sua extensão, de “ciência e mito”. Sua função pretenentanto, longe de ser “meramente acadêmica”, é eminentemente prática: o objetivo central emário − de cada capítulo, bem como do conjunto − é quebrar o feitiço dos mitoscientificistas

rrote intelectual que estrangula as mentes educadas, e, com isso, possibilitar mais uma vez oesso aos mitos perenes da humanidade. Esses são do tipo queabrem portas em vez de vedá-lao que expressam um senso do sagrado, que afinal não é nada além de um senso do Real. Ao

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ntrário do que nos ensinaram a crer, o Real não é aquilo que apreendemos em nossas redes, mecisamente aquilo que não apreendemos, que sempre elude nossa apreensão mental. Trata-sequilo que enfim, de algum modo, “apreende” a nós. E é por isso que se deve buscá-lo, falandourativamente, “com as mãos entrelaçadas”, um gesto que evidencia não um domínio, mas o exosto: uma submissão, quer dizer, uma abertura incondicional, como a de um espelho límpido.o por ventura implica que não há nada a ser dito do Real − nenhuma doutrina? Então, como euvia dito, é que o mito autêntico entra em cena, aquele tipo de mito que “corporifica umaroximação mais estreita à verdade absoluta que se pode expressar em palavras”.

Resta-nos fazer mais uma coisa nesta introdução: uma vez que o livro não precisa ser lidoqüencialmente, será oportuno realizar uma prévia de seu conteúdo, capítulo por capítulo. Sereve.

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. CIÊNCIA E MITO

Esse ensaio visa a estabelecer um vínculo com as elucidações de Ananda Coomaraswamy acenatureza e função dos mitos autênticos. Começa com a observação de que também a ciência sseia em “mitos” (conhecidos como “paradigmas”) e procede à enumeração dos três mitos vigatualidade: o newtoniano, o darwiniano e o copernicano. O primeiro é simplesmente o parad“mecanismo”, o qual, a despeito de seu sucesso espetacular ao longo de vários séculos, torn

válido (enquanto fundamento) em função do advento da física quântica. O segundo ainda éminante em biologia, mas dificilmente corresponde aos fatos e, ademais, foi desqualificado p

scoberta do “design inteligente” por William Dembski. O terceiro − o chamado princípiopernicano, o qual estipula uma densidade média constante de matéria no espaço − ainda susterofísica contemporânea, mas está hoje à beira da falência (em parte, por causa de dificuldadearentemente insuperáveis em explicar a formação de estrelas e galáxias). Agora, o que desejofatizar não é simplesmente que esses paradigmas vigentes se erguem sobre solo incerto e devejure, ser substituídos, mas que constituem, na verdade, uma espécie de mito à qual chamo de

ntimito”. Meu argumento principal é que esses “mitos da ciência” − cada qual de sua maneiratintiva − fazem militância contra a sabedoria perene e efetivamente sagrada da humanidade.

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. CIÊNCIA MODERNA E CRÍTICA GUÉNONIANA

Nesse capítulo, refletimos sobre a crítica guénoniana da ciência moderna, tal qual se aplica, erticular, à física. De forma bastante surpreendente, muito do que o metafísico francês tem a die respeito se mostra claramente falso, pelo fato de que ele fundeciência verdadeira com cre

ntificista. Por outro lado, sua concepção de quantidade como “o ‘resíduo’ de uma existênciavaziada de tudo o que constituía sua essência” se revela ser um golpe de mestre: a chave, comito, para o entendimento metafísico da física moderna, a começar pela teoria quântica. À luz nsiderações delineadas previamente emO enigma quântico, apresento uma filosofia da física

baseia no supracitado conceito guénoniano de “quantidade”.

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. CIÊNCIA E FECHAMENTO EPISTÊMICO

Esse capítulo também lida com a filosofia da ciência − e da física, em especial −, dessa vez cse na noção de “fechamento epistêmico” criada por Jean Borella, a qual pode ser definida cominação (em um conceito) de tudo aquilo que é recalcitrante à expressão em termos lingüísticormais”. Como observa Borella, isso ocorre de ser a condição definidora do pensamentocien

quanto distinto do pensamento filosófico. Esse último, em verdade, é caracterizado pelo que oor chama de “l’ouverture à l’être”:[ 9 ] isto é, o oposto exato de fechamento epistêmico. Ap

ma breve introdução ao pensamento de Borella, mostro que essas noções irmanadas dão vigor

osofia da física que explica de modo rigoroso o nexo entre “ciência e mito”, o que, de certo mz à completude meus estudos anteriores nessa área.

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. O ENIGMA DA PERCEPÇÃO VISUAL

Nesse capítulo, apresento uma teoria da percepção visual que fora proposta pelo falecido Jambson, baseando-se em descobertas experimentais acumuladas ao longo de um período de váricadas, e narro como esse cientista obstinado foi levado,em função de fatos empíricos, asconstruir o dualismo cartesiano que subjaz à nossa cosmovisão cientificista. O que Gibsonscobriu é que a percepção não é de uma imagem visual  (seja relativa à retina, ao córtex ou ànte) − como quase todo mundo havia pensado, ao menos desde a época de Descartes −, mas qcontrário, percebemos na realidade o que ele chama de “o ambiente” (basicamente, no sentid

mum da palavra). Após delinear os passos principais do argumento de Gibson, interpreto suascobertas de um ponto de vista metafísico e mostro, em particular, como as suas alegações maovocativas se revelam ser, na verdade, o que chamo de “aspectos intelectivos da percepçãoual”: aspectos que, com efeito, são sinais do “intelecto” (buddhi),[ 10 ] enquanto distinto daente” (manas).[ 11 ]

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. OS NEURÔNIOS E A MENTE

Aqui começamos com a enunciação dos fatos básicos da neurofisiologia contemporânea, o quenduz a uma descrição do que se chama de sistema visual primário e a um relato de certosperimentos-chave. Isso leva a uma consideração do que com freqüência se chama o “problemação” − a questão de por quais meios “o computador é lido”, ou, em outras palavras, de comoados de um milhão de neurônios dão lugar a um único objeto de percepção ou pensamento − rticular, à alegação de Roger Penrose (o antigo mentor de Stephen Hawking) de que o probleação exige uma teoria da “gravidade quântica”. Mas, embora eu ache que muito do pensamen

sse grande cientista seja digno de enorme interesse (por exemplo, sua demonstração, fundada moso teorema de Gödel, de que os computadores não podem “praticar matemática”), argumene, na verdade, o que o problema da ligação verdadeiramente exige é, em essência, a antropoldica, com sua doutrina dos cinco kośas.[ 12 ] Após relembrar as concepções necessárias, momo os fatos relevantes da neurofisiologia podem ser integrados nessa doutrina.

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. O CHACRA E O PLANETA: A DESCOBERTA DE O. M. HINZE

Nesse capítulo, trato de uma descoberta feita pelo fenomenólogo alemão Oscar Marcel Hinze,al considero notável. O que entra em questão nessa descoberta é um isomorfismo entre macrocrocosmo até então insuspeito, baseado nos aspectos referentes àGestalt  da astronomia planeanatomia chacra do homem, como descrita no tantrismo caxemirense. Uma vez que cada um s chacras principais está associado a um padma ou “lótus” simbólico, bem como a letrasrrespondentes do alfabeto devanágari (cujo número equivale ao número de “pétalas de lótus”do que cada chacra é tradicionalmente associado a um planeta, Hinze buscou verificar se os

úmeros de pétalas” se manifestam de algum modo na fenomenologia das órbitas planetáriasrrespondentes. Ele descobriu que não apenas esse de fato é o caso, mas que mesmo as divisõras sânscritas correspondentes em vogais longas e breves, sibilantes, guturais, palatais e cereo reproduzidas fielmente na escala planetária.[ 13 ] Aqui temos um vislumbre da ciênciadicional  em sua imensidão insuspeita e do abismo que separa essas supostas “superstiçõesmitivas” da “ciência” como hoje a concebemos. No entanto, o que Hinze tem a dizer, longe ditológico”, mostra-se totalmente científico; e, como eu observo, ocorre de sua descoberta

validar de fato nosso entendimento contemporâneo de como o sistema planetário veio a existir

rém, isso não é tudo: o curto tratado que traz à luz o isomorfismo supracitado entre “ochacraaneta” culmina, de forma bastante surpreendente, em um ensaio inovador sobre a doutrina dermênides. É suficiente dizer que Hinze deve ser contando entre aquele grupo extremamente seautores − que inclui Jean Biès e Peter Kingsley − que começa a redescobrir a face real dos p

cráticos.

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. DA FÍSICA À FICÇÃO CIENTÍFICA: UMA RESPOSTA A STEPHEN HAWKING 

Esse capítulo (que foi acrescentado na segunda edição) apresenta um estudo pormenorizado diniões supostamente científicas de Stephen Hawking a respeito da natureza e origem do univenforme expostas em O Grande Projeto. Nossa análise traz à luz as premissas metafísicas estemológicas ocultas sobre as quais se baseiam as alegações supramencionadas, as quais se

velam, no final das contas, não apenas infundadas, mas insustentáveis. Ocorre, ademais, quetualmente todas as concepções e descobertas salientes apresentadas nos seis primeiros capítuste livro se encaixam naturalmente nessas considerações críticas e, com efeito, fornecem as b

to filosófica quanto cientificamente, para a refutação subseqüente. Por fim, argumentamos qurdade, toda a cosmovisão científica contemporânea, e não apenas a tese de Hawking, mostra-ndada em ideologia, o que significa que, em suas alegações cosmológicas, ela excede as evidbre as quais supostamente se baseia. Não importa se falamos do evolucionismo darwinista ouebre big bang , o que enfim está em questão e faz a balança pender é um comprometimentoa p

m o materialismo − ou, para ser mais preciso, uma negação incondicional do design inteligent

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. METAFÍSICA COMO “VISÃO”

O capítulo final centra-se na idéia de “fenômeno” no sentido original do termo grego, como “ae se mostra a si mesmo por si mesmo”. Noto que esse sentido não apenas se perdeu, mas que,nseqüência da bifurcação cartesiana, o real não é mais concebido como o fenômeno veraz, mmo algo que está por trás “daquilo que se mostra a si mesmo”, algo que, por conseguinte,não ostra a si mesmo por si mesmo”. Em seguida, tento exprimir o núcleo do que é chamado de anomenologia de Edmund Husserl (a qual vejo, talvez, como a contribuição mais notável à filoséculo XX). Isso me leva à consideração da abordagem de Goethe à ciência e sua crítica da

wtoniana e mostro que essa abordagem era, com efeito, uma fenomenologia: que, para Goetherdadeira ciência fundava-se em Anschauung , isto é, na “visão” daquilo que “se mostra a si mer si mesmo”. Observo que, ademais, a reprovação de Goethe quanto à Weltanschauung [ 14 ]wtoniana − a qual quase ninguém, à época, levava a sério − teve efetivamente sua vingança, m

m nível científico, por meio da descoberta da teoria quântica. Surge então a seguinte pergunta: mos discorrido sobre vários níveis de “visão”, desde o tipo habitual que, em verdade, “não vos modos superiores contemplados pelos fenomenólogos, somos levados a perguntar o que ddito da visão última ou “absoluta”, que não pode ser outra senão uma “visão com o Olho de

us”. É a resposta a essa pergunta que encerra o capítulo e, com efeito, o livro; e aqui me baseritamente nos ensinamentos de Meister Eckhart, que atingem o cerne mesmo da questão. O qukhart nos leva a entender se resume a isto: aquilo que se mostra a si mesmo por si mesmo −

nômeno veraz − revela-se, enfim, ser ninguém mais que o Lógos, o Verbo conhecido pela

standade como o Filho de Deus.

9 ] Em francês, “a abertura ao ser” – NT.10 ]  Buddhi é uma palavra do sânscrito que se refere à faculdade propriamente intelectiva da mente, superior à racionalidadeas palavras, trata-se de intelecção, se entendemos intelecção como a capacidade de compreender a verdade – NT.11 ]  Manas é outra palavra sânscrita. Apesar de, com freqüência, designar a mente de maneira genérica, é também usada

ecificamente para se referir à parte racional da alma – NT.12 ]  Kośa é também uma palavra sânscrita e significa “bainha” ou “invólucro”. Na filosofia védica, os kośas são aspectos ou

madas da experiência subjetiva da existência – NT.13 ] O autor refere-se à “filosofia perene” ( philosophia perennis), que está ligada a um movimento muito influenciado pelosamento esotérico – NE.14 ] Em alemão, “visão de mundo; cosmovisão” – NT.

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CI NCIA E MITO

Terceira conferência em honra à memória de Ananda  Coomaraswamy.

Instituto de Estudos Tradicionais do Sri Lanka, Colombo, Sri Lanka.

adequado refletir, em uma conferência em honra à memória de Ananda Coomaraswamy, acercnificância de “mito”, pois, com efeito, foi o sábio cingalês quem abriu nossos olhos para o qde ser chamado a primazia do mito. Em uma de suas diversas grandes obras − um livro curtoitulado Hinduísmo e Budismo −, Coomaraswamy começa pela narrativa do fundo mítico dasdições respectivas, antes de se voltar para suas formulações doutrinais. Ele nos dá a entender

mito extrapola a doutrina, assim como uma causa extrapola um efeito ou um original a suaprodução artística. Não é a função da doutrina nos levar para fora do mito fundador − ou explde forma que se torne obsoleto. Pelo contrário, sua função é nos trazer paradentro do mito; pfato, a pérola da verdade reside no mito, como se esse lhe fora um santuário. Toda doutrinatêntica pode nos guiar para a soleira desse santuário, mas, qual Moisés ante a Terra Prometid

de entrar lá.[ 15 ]Nem toda doutrina, porém, é sagrada, e ocorre que ateus e iconoclastas têm seus próprios mitoo apenas os sábios, mas também os tolos vivem, em última instância, por mitos; acontece apes mitos de uns e outros não serem os mesmos.

Meu primeiro objetivo será dar a conhecer a base mítica da ciência moderna. Em particular,cutirei três grandes mitos científicos (geralmente chamados de “paradigmas”): o newtonianorwiniano e o copernicano. Meu segundo objetivo será contrastar os mitos da Ciência com os mTradição. Darei voz à convicção de que esse discernimento é de suma importância; de que, n

rdade, ele afeta vitalmente o nosso destino, aqui e na eternidade.

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I

Houve uma época em que se pensava na ciência como uma simples descoberta de fatos. Émplesmente um fato, pensava-se, que a Terra gira em torno do Sol, que força é igual a massa veleração ou que um elétron e um pósitron interagem para produzir um fóton. Era como se os faessem em árvores” e precisassem apenas ser “colhidos” pelos cientistas. Ao longo do séculoretanto, descobriu-se que esse pressuposto habitual não era realmente sustentável. Revelou-sfatos e teorias não podem, enfim, ser separados; que “os fatos estão carregados de teorias”, cem os pós-modernistas. A velha idéia de que os cientistas primeiro acumulam fatos e então

nstroem teorias para explicá-los mostrou-se uma simplificação exagerada. Por trás de cadantista, há necessariamente um paradigma − um “mito”, pode-se dizer − que determina o que ée não é reconhecido como fato. Quando, em 1774, Joseph Priestley aqueceu o óxido vermelhorcúrio e coletou um gás que hoje é chamado de “oxigênio”, será que ele de fato descobriu oigênio? No entender do próprio Priestley, ele havia encontrado “ar deflogisticado”![ 16 ] Parascobrir o oxigênio, algo mais é necessário, além de um frasco de gás: uma teoria, a saber, emnção da qual esse gás possa ser interpretado ou identificado. Somente depois que Lavoisier, uucos anos mais tarde, construiu tal teoria é que o oxigênio (ou a existência de oxigênio, como

eira) se tornou um fato científico estabelecido.Assim como o pensamento nunca “escapa à linguagem”, nas palavras de Wittgenstein, tambémncia nunca “escapa” de seu próprio paradigma. É verdade que os paradigmas algumas vezes scartados e substituídos; isso acontece, de acordo com o historiador e filósofo Thomas Kuhn,ós uma crise, quando o paradigma vigente não pode mais acomodar todas as descobertas às qum certo sentido, conduziu. Mas, embora possa de fato superar algum paradigma em particu

ncia jamais supera sua necessidade de paradigmas: em uma palavr a, o “elemento mítico” dancia não pode ser exorcizado. E, com efeito, no instante em que nega seu fundamento “míticotorna ilusória e, por conseguinte, passa a ser “mítica” no sentido pejorativo da palavra.

O primeiro dos três “paradigmas vigentes” que selecionei foi o newtoniano, o qual define a noum mundo mecânico ou de um universo maquinal. O que existe, supostamente, é a “matéria cas partes interagem por meio de forças de atração ou repulsão, de forma que o movimento doá determinado pela disposição das partes. De certo, o conceito de “matéria crua” − a noçãortesiana de res extensa − é problemático filosoficamente e, ademais, apoia-se sobre o postulartesiano de “bifurcação”: isto é, a idéia de que todas as qualidades (como cor) são subjetivasr conseqüência, o objeto externo não é percebido de fato. Devemos nos lembrar de que o próscartes se sentiu compelido a provar − por meio de um argumento famoso, mas de cogência

estionável − que, muito embora ele haveria de ser imperceptível de acordo com isso, o mundterno, não obstante, existe. Podemos recordar, além disso, o fato de que a filosofia do século conjunto, distanciou-se da posição cartesiana e que a “matéria crua”, em particular, foi rebaiondição de abstração. Tomar a res extensa pelo real − como os cientistas tendem a fazer − émeter aquilo que Whitehead chamou de “falácia de concretude deslocada”:[ 17 ] é confundir unceito com uma realidade. O que nos preocupa agora, porém, não é a validade filosófica doradigma newtoniano, mas sua eficácia científica, o que é outra questão. Conquanto possa de fespúria − um “mito”, no sentido pejorativo desse termo equívoco −, a história confirma que,

speito disso, a cosmovisão newtoniana funcionou de maneira brilhante na capacidade deradigma científico. Parece que o erro também tem sua utilidade! Podemos ver, em retrospecto

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iência do tipo contemporâneo jamais poderia ter “decolado” sem o auxílio de uma cosmovise é drástica e exageradamente simplista, ao ponto de ser incuravelmente falaciosa.

Todavia, apesar de sua invalidade filosófica, o sucesso do paradigma newtoniano foi espetacsde a publicação do Principia de Newton, no ano de 1687, até o começo do século XX, ele ensiderado universalmente não apenas um paradigma bem-sucedido, mas, com efeito, a chave-stra para os segredos da Natureza, do funcionamento de suas partes mais mínimas até o movim

s estrelas e dos planetas. Não recontarei os triunfos da física newtoniana que aparentementetificaram essa enorme expectativa; a lista é longa e bem impressionante. Basta dizer que, ao cséculo XIX, o esquema newtoniano havia estendido seu domínio para além dos limites dacânica como ela era compreendida normalmente e passado a abarcar o eletromagnetismo − q

mo se descobriria mais tarde, não pode ser concebido de forma puramente mecânica. Porém,smo aí, nessa área “etérea”, a noção de um todo rigorosamente redutível às suas partesinitesimais se provou mais uma vez ser a chave de compreensão: as equações de campo deaxwell, merecidamente famosas, atestam esse fato. Além do mais, mesmo as propostasvolucionárias de Albert Einstein, que de fato romperam com algumas das concepções newtonsicas, deixaram intacto o paradigma fundamental: nessa física pós-newtoniana sofisticada, o q

s resta também é um universo físico que, em princípio, pode ser descrito com precisão perfeinção de um sistema de equações diferenciais. Embora em um sentido consideravelmente amplniverso einsteiniano ainda é mecânico, ou seja, adequa-se com exatidão ao que chamamos de

radigma newtoniano.O que finalmente destronou esse paradigma que, à primeira vista, parecia invencível foi o advmecânica quântica, a qual, em verdade, não é uma mecânica de modo algum: o todo, afinal, nsmo redutível a suas partes, sejam elas finitas ou infinitesimais. Ao mesmo tempo − e em

nseqüência dessa irredutibilidade −, a nova suposta mecânica se revela não ser completamenterminista. Não é mais possível, em geral, predizer o valor exato de um observável; em vez doção problemática de “probabilidade” entra em cena, de maneira fundamental e insubstituíveo foi o que Albert Einstein − o maior e mais altivo dos advogados do mecanicismo − nãonseguiu aceitar; a idéia de que “Deus joga nos dados”, como dizia, era, pra ele, simplesmenteiosa. Assim, até o fim de sua vida, recusou-se vigorosamente a aceitar a teoria quântica comois que uma aproximação. Porém, tudo o que sabemos hoje aponta para o fato de que, com efe

mecânica relativista que é “meramente aproximativa”, ao passo que a teoria quântica parece sndamental. Isso não quer dizer que o quadro não possa mudar; mas, independentemente do queuro venha a trazer, é seguro pensar que um retorno ao mecanicismo não está escrito.

* * *

Voltamos-nos agora ao paradigma darwiniano, o qual, em um certo sentido, é o oposto dowtoniano: pois ocorre que a idéia de Darwin foi um fracasso puro e simples desde o princípiirmo, em verdade, que o darwinismo não é realmente uma teoria científica, mas simplesmentestulado ideológico disfarçado em trajes científicos. Certamente, em função do prestígio impossa doutrina e os incontáveis encômios despejados sobre ela tanto pela mídia quanto pelaademia, essas afirmações são, sem sombra de dúvida, surpreendente; mas vejamos os fatosrtinentes ao caso.

Darwin alega que as espécies existentes são derivadas de um ou mais ancestrais primitivos, p

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io de cadeias de descendência que se prolongam por milhões de anos. Não nos preocupemosomento, com os meios pelos quais essa transformação estipulada de organismos primitivos emerenciados pode ter ocorrido; quaisquer que sejam esses meios, está claro que Darwin concea evolução como um processo gradual que envolveria inúmeras formas intermediárias, muitaais, se não todas, deveriam, com justiça, constar no registro fóssil. Porém, à parte um punhadpécimes duvidosos, não se encontram tipos intermediários em lugar algum. Esse fato é hojeralmente admitido, até mesmo por cientistas que acreditam em algum tipo de evolução. Stevenuld, por exemplo, uma das principais autoridades em evolucionismo, sentiu-se obrigado a

andonar o darwinismo ortodoxo por essa mesma razão. “A maioria das espécies não exibedanças direcionais durante sua existência na terra”, escreveu ele. “No registro fóssil, essas

pécies constam com a mesma aparência, praticamente, que tinham quando desapareceram; asudanças morfológicas, usualmente, são limitadas e não têm direção”.[ 18 ] É de se esperar quer si mesmo, bastaria para desqualificar a hipótese transformista; mas, para os discípulos douralista britânico, apenas implica que a evolução deve acontecer com tamanha rapidez, ou so

ndições, que as formas intermediárias desaparecem sem deixar vestígio. Como observou Philhnson, professor de direito em Berkeley e autor de Darwin on Trial : “O darwinismo,

arentemente, passou no teste dos fósseis, mas apenas porque não lhe permitiram ser reprovadA grande idéia de Darwin, vale lembrar, é que a Natureza produz pequenas mutações aleatóriaais são legadas à linha genética em concordância com a expressão “sobrevivência do mais apse notou que esses dizeres famosos, que supostamente constituem a chave para o enigma daolução, são, na verdade, uma tautologia, assim como seria uma tautologia dizer “os ricos têm nheiro”; isso, em todo caso, é o que o filósofo Karl Popper quis dizer quando declarou que a Darwin era “irrefutável” e, portanto, privada de conteúdo científico. Refutável ou não, porémutrina de Darwin faz uma firme alegação. Longe de ser verdade por definição, ela constitui, nlidade, uma das conjecturas mais astronomicamente improváveis que já foram concebidas pente humana. Tomemos o caso de um olho como exemplo: Darwin nos diz que essa estrutura dmplexidade quase inimaginável surgiu por meio de uma série de minúsculas mutações acidenixando de lado a circunstância de que um olho rudimentar que ainda não pode ver não tem a mlidade na luta pela sobrevivência, os cálculos empreendidos pelo matemático D. S. Ulam moe o número de mutações necessárias seria de uma magnitude tão imensa que, mesmo dentro deadro de tempo que compreendesse bilhões de anos, a probabilidade de que um olho eficaz vistir é tão pequena que quase não se pode vê-la. Mas isso também não representa um problem

ra o darwinista comprometido; como disse Ernest Mayr em resposta a Ulam: “De uma forma

tra, ajustando esses números, acharemos uma solução. Somos confortados pelo fato de que aolução ocorreu”.[ 19 ] E eis então o ponto crucial: para o darwinista ortodoxo, a evolução,nforme Darwin a concebeu, é ela mesma o fato mais indubitável.Alguns alegam que os avanços recentes em biologia molecular finalmente foram capazes denecer evidências sólidas em favor da evolução. Ora, é verdade que as descobertas em questãrmitem quantificar a “distância molecular”, por assim dizer, entre genomas e, logo, entre aspécies. Ademais, uma vez que as mutações ocorrem com uma freqüência mais ou menos constossível estimar o tempo necessário para produzir uma dada alteração genética, com base nadida da distância supracitada. Assim, se duas espécies tiverem descendido de um ancestralmum, pode-se estimar há quanto tempo a separação estipulada deve ter acontecido. Em função

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so, fala-se hoje de um suposto relógio molecular, o qual, alega-se, é capaz de mediar a velocm que ocorre a evolução. No entanto, em meio à euforia gerada por essa descoberta, as pessoquecem que nem mesmo um “relógio molecular” poderia medir a velocidade da evolução, a me a evolução houvesse de fato acontecido. Mas essa hipótese permanece hoje tão incerta quanno princípio. Além disso, acaba que as descobertas da biologia molecular, na verdade, não

opícias à causa evolucionista: a própria precisão com a qual as estruturas e os processosleculares podem agora ser compreendidos significa um problema para os darwinistas. Isso échael Behe, biólogo molecular famoso nos dias de hoje, demonstrou de forma contundente emrwin’s Black Box, um livro que afetou decisivamente o debate.

Para citar ao menos um exemplo dos fatos extraordinários aduzidos por Behe, mencionarei oamado flagelo bacteriano,[ 20 ] que é uma espécie de remo usado para impelir a bactéria atrasua ambiência líquida e cujo movimento é causado por um motor giratório celular que tem ácr combustível. Sua estrutura é extremamente complexa e envolve cerca de 240 tipos diferenteoteína, todas as quais precisam estar à disposição para que o motor funcione e o flagelo cumpa função. Temos aí um exemplo, na escala molecular, daquilo que Behe denomina complexidaedutível. “Com irredutivelmente complexo”, explica ele, “refiro-me a um sistema único, com

diversas partes combinadas adequadamente e que interagem entre si de modo a contribuir panção básica desse sistema, e no qual a remoção de qualquer uma dessas partes faz com que otema efetivamente pare de funcionar”.[ 21 ] Essa noção se revela crucial: com efeito, não éssível explicar a gênese de estruturas irredutivelmente complexas em termos darwinistas. Issode ser demonstrado agora por meio da teoria do design, uma disciplina matemática que nosrmite concluir que nenhum processo composto de “chance” e “necessidade” pode dar lugar àmplexidade irredutível ou a algo ainda mais geral denominado informação especificadamplexa.[ 22 ] Essa nova teoria matemática, em conjunção com os dados precisos da biologiaolecular, fornece, no mínimo, uma refutação rigorosa da hipótese de Darwin. É claro, se isso vnvencer até mesmo o darwinista radical é algo que ainda veremos. Nesse entremeio, após ma

ma década de debate e controvérsia acerca do “design inteligente”, parece que o establishmen

rwinista − auxiliado pela mídia − teve um êxito notável em confundir tanto a questão queeralmente já não mais se a reconhece: uma vitória por ofuscação, poder-se-ia dizer.

* * *

Nosso terceiro paradigma concerne à cosmologia contemporânea. Ocorre que equações de camis dados astronômicos não bastam para determinar a estrutura global do universo físico: restamero infinito de “mundos possíveis”. É necessária, portanto, uma hipótese adicional. Seguindssos de Einstein, os cientistas, de forma geral, optaram por uma condição de uniformidade esdistribuição da matéria: define-se uma densidade média de matéria e se presume que ela énstante ao longo de todo o espaço. Assim, em uma escala suficientemente ampla, acredita-se qsmo se assemelhe a um gás, no qual as moléculas individuais podem ser substituídas por umansidade de uns quantos gramas por metro cúbico. Foi Hermann Bondi quem primeiro se refera pressuposição como “o princípio copernicano”, e não se razão; pois, muito embora o próppérnico nada soubesse acerca de uma suposta densidade constante de matéria estelar, o princquestão constitui, de certo modo, o repúdio último ao geocentrismo e, por conseguinte, cons

uilo que se denominou “a revolução copernicana”. Logo, supõe-se que o espaço, como um to

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a isento de estrutura ou design e esteja sujeito apenas a flutuações locais, semelhantemente àtuação molecular em gases, as quais permanecem imperceptíveis em uma escala macroscópicstaria, no entanto, de enfatizar que isso não é uma descoberta positiva da astrofísica ou mesmoo provado, mas simplesmente uma pressuposição: para ser preciso, trata-se do postulado ou pótese que subjaz nossa cosmologia científica contemporânea.oi Einstein quem primeiro sugeriu um tal “universo” por meio da postulação de uma densidadia de matéria, que é constante não apenas no espaço, mas também no tempo. Ele descobriu,

ntudo, que sua equação de campo não admite essa solução, a menos que se acrescente um termcional que envolva a chamada constante cosmológica. Assim, para evitar que seu universoático ruísse sob a influência da gravidade, Einstein decidiu mesmo adicionar o termo em quentro em pouco, entretanto, um matemático russo, chamado Alexander Friedmann, foi bem-sucmostrar que as soluções para a equação de campo de Einstein podiam ser obtidas sem essa

nstante ad hoc, deixando simplesmente que a densidade estipulada de matéria variasse com ompo. O que Friedmann descobrira, matematicamente, fora um universo em expansão, um cosmriedade big bang . Não muito tempo depois, Edwin Hubble, um astrônomo americano, chegou

ma conclusão substantivamente idêntica com base em descobertas astronômicas;[ 23 ] e o próp

nstein, enfim, aceitou a noção de um universo que dependesse do tempo. Descartando a constasmológica − “o maior erro de minha vida”, como a chamou −, ele se juntou aos colegas naeitação da hipótese de um universo em expansão, que supostamente teria surgido de umagularidade inicial, cerca de 15 bilhões de anos atrás.

Antes que muito tempo se passasse, porém, a cosmologia baseada no big bang  encontrouiculdades, o que, desde então, ocasionou uma série de modificações em um esforço em progrra adequar a matemática aos dados empíricos da astronomia. Não obstante, nem tudo vai bemueles que alegam o contrário “negligenciam fatos observacionais que vêm se acumulando há 2os e agora se tornaram sobrepujantes”, como apontou Halton Arp, em 1991. Por exemplo, murônomos alegam ter notado galáxias separadas por algo em torno de um bilhão de anos-luz. Adas as baixas velocidades relativas observadas entre as galáxias, levaria cerca de 200 bilhõeos, de um estado inicialmente uniforme, para se chegar a tamanha separação: quase dez vezese a idade estimada do universo. Para citar outra dificuldade fundamental: não parece haver mastante no universo para gerar campos gravitacionais fortes o bastante para explicar a formaersistência das galáxias. Tais incongruências, contudo, os especialistas geralmente tiram de lnforme observa Thomas Kuhn, a preocupação primária da “ciência normal” é preservar oradigma, é protegê-lo, por assim dizer, contra os dados hostis. O que se faz, por exemplo, qua

o há matéria suficiente no universo para explicar o surgimento das galáxias? Uma estratégia éroduzir algo chamado de “matéria escura”, a qual, supostamente, não interage com os campostromagnéticos e, por conseqüência, é invisível. Sua única propriedade mensurável é a graviteu único efeito discernível é elevar o campo gravitacional até os níveis exigidos pela hipóte

g bang . Pouco importa que jamais se detectou a mais mínima partícula de matéria escura: parartidários da teoria do big bang , parece, a existência de galáxias é prova suficiente. De acordoumas estimativas propostas por membros respeitados da comunidade astrofísica, cerca de 99

da a matéria do universo é escura. Além disso, postulam-se dois tipos de matéria escura: asamadas “quente” e “fria”, que têm propriedades muito diferentes, com uma mescla de 1/3 que fria como a mistura exigida!

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Outros parâmetros de autenticidade questionável também foram igualmente cooptados para a dteoria do big bang . A constante cosmológica, por exemplo, revela-se útil, afinal: foi alegadoim, que a constante ressuscitada responde por cerca de 80% da densidade de energia estimadtranhamente, o parâmetro postulado para explicar por que o universo estático de Einstein nãosabava serve agora para explicar por que as galáxias não voam umas para longe das outras.Porém, a despeito da abundância de opções teóricas para lidar com os dados problemáticos,rece que a cosmologia do big bang  está se aproximando de um estado de crise. Um númeroscente de cientistas concorda com Halton Arp de que os fatos adversos vêm se amontoando echegou a um ponto além do qual a defesa do paradigma não mais será compatível com uma pntífica sadia.

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II

tenacidade e o fervor com os quais os paradigmas vigentes da ciência são defendidos, mesmonte de dados claramente hostis, sugerem que, também aí, um elemento ideológico pode estar

go. A ciência não é realmente a empreitada puramente racional e “desinteressada” que finge snão é, afinal, praticada por computadores, mas por homens. Não há razão para se crer que o

radigmas da ciência, com efeito, sejam mais do que conjeturas sóbrias e frias, meras hipóteseem descartadas em face de evidências contrárias. Mas parece que os paradigmas principais, nos, são mais imponentes do que isso. Nota-se que, além de sua conotação formal ou

peracional”, esses paradigmas carregam um sentido mais amplo, um significado “cultural”, pdizer; e é sobretudo essa conotação mais ampla − a qual, em verdade, escapa à definiçãontífica – que se comunica para o público em geral, o qual, em verdade, é incapaz de compree

u uso estritamente “científico”.Ora, essa circunstância é o que, de certo modo, justifica nossa alegação de que a ciência acarrm elemento de “mito”. Digo “de certo modo” porque ocorre que um mito tradicional ou autênti

o muito superior, algo que ultrapassa categoricamente a dimensão “mítica” dos paradigmasntíficos. Digamos, pois, que há tipos diferentes de mitos, que vão desde o sagrado até o prof

sde o sublime até o trivial ou absurdo. Precisamos, ademais, entender que o homem não vive se em “fatos”, ou não apenas com base em “fatos”, mas, acima de tudo, com base em “mitos”ito, esse é, culturalmente falando, o seu “pão” de cada dia. O que diferencia um homem de oues de mais nada − repito, de um ponto de vista “cultural” −, é o mito vigente que direciona, má forma à sua vida. Afirmo que a grandeza e a dignidade de uma pessoa dependem primeirammito adotado por ela; de certa forma, tornamo-nos aquilo em que cremos. E acrescentaria: rais reveladora jamais se propôs para que andemos cautelosamente nesse terreno!

Para compreender a natureza e a função do “mito”, necessitamos, em especial, superar a idéiae mito tem a ver com o imaginário ou irreal, noção que entrou em voga durante aquilo que ostoriadores chamam de iluminismo, época na qual os homens pensavam que a ciência havia ens libertado dos sonhos pueris de uma era primitiva. Nessa ótica, mito era percebido simplesmmo a antítese de fato − não passava, no máximo, de uma ficção agradável ou consoladora. Pochegar a admitir que essas ficções talvez fossem indispensáveis, que nossas vidas seriam

oleravelmente monótonas e isentas de esperança sem algum tipo de embelezamento mítico; poando desejávamos saber a verdade, era para a ciência que tínhamos de nos voltar.

Essa, então, era a visão dominante acerca dos mitos durante a era do modernismo; mas essa famo se sabe, está hoje chegando ao seu termo, tanto filosoficamente quanto culturalmente. A no

rspectiva, geralmente chamada de pós-modernismo, rompe com a anterior: o zelosconstrucionista, que em dias passados se dirigia principalmente contra as normas políticas,turais e religiosas estabelecidas − contra tudo, pode-se dizer, que cheirasse a tradição −, agolta também contra o iluminismo científico. Há lógica nisso, além de uma certa justiça; contudoecisamos entender que os efeitos do iluminismo ou da modernidade sobre nossoWeltanschau

, em particular, sobre nossa capacidade de perceber do que trata realmente a ciência − não fm isso, cancelados ou melhorados. Os leitores de Ananda Coomaraswamy compreenderão couita clareza o quanto foi que perdemos: a despeito das vantagens materiais da vida moderna,

namo-nos calamitosamente pobres. De fato, chegamos ao ponto de perder o que verdadeiramúnica coisa necessária». Separados − como nunca estivemos − da fonte de nossa existência,

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aticamente nos esquecemos de que a vida tem sentido: um objetivo e uma possibilidade quenã

o efêmeros; porém, não é preciso dizer, nem a ciência moderna e nem seus críticos pós-moderdem nos iluminar a esse respeito. Para tanto, precisa-se de mitos autênticos: o tipo de mito rtence inextricavelmente a uma tradição sagrada, na condição de expressão suprema da suardade. Um tal mito, diz Ananda Coomaraswamy, “corporifica uma aproximação mais estreita rdade absoluta que se pode expressar em palavras”:[ 24 ] que grande diferença da concepçãominante de mito como “fictício”!

Entretanto, o mito, por si mesmo − não importa o quão elevado seja −, não nos irá salvar, libeiluminar. Segundo as tradições, o mito iluminador deve ser recebido sob auspícios apropriade incluem condições às quais o recipiente ou discípulo deve se conformar. A principal delas addha, fé: não pode haver espiritualidade ou iluminação verdadeira sem fé.Ora, digo que é aí que a ciência moderna toca o domínio espiritual: ela entra em jogo, afirmo,mo um aliado da religião verdadeira, mas necessariamente como um obstáculo à fé e, portantomo um escamoteador, um antagonista. Trata-se de um caso de mitos opostos, de mitologias emmbate: ou, melhor dizendo, de mito e antimito.Tentemos entender isso claramente. Não nos devemos deixar confundir pela aparência simplis

to tradicional, por seu sentido literal tipicamente tosco; lembremo-nos que esses mitos não fara a mente analítica, mas para o intelecto intuitivo, às vezes chamado de “olho do coração”, uuldade que, infelizmente, a civilização moderna vem tentando arduamente sufocar. Afinal, é

ecisamente nesse nível de entendimento − no nível do Intelecto autêntico − que o mito constituo “uma aproximação mais estreita à verdade absoluta”. Aquilo a que chamamos os “mitos” dncia − isto é, os seus paradigmas, sejam verdadeiros ou falsos −, por outro lado, entregam tonteúdo que têm sobretudo para a mente racional; não há nisso qualquer mistério, qualquer erência a esferas superiores da verdade. Bem ao contrário: esses supostos mitos nos fornecem

bstituto, uma “quase verdade” cá embaixo, um tipo de ídolo da mente, que bloqueia nossa vispiritual. Como ferramentas da ciência − como paradigmas em sentido estrito −, eles têm, é clam uso legítimo: lembremos, por exemplo, do paradigma newtoniano, que agora está em descréproblema com os paradigmas, contudo, é que eles tendem a se tornar absolutizados, ou seja,sociados do processo científico; é então que começa a idolatria. Transita-se sub-repticiamentre o hipotético e o certo, entre o relativo e o absoluto e, logo, entre a ciência e a metafísica.rém, não se chega a uma metafísica autêntica! Fiel à sua origem, o “relativo tornado absoluto”rmanece infundado e ilegítimo − uma pseudometafísica, poder-se-ia dizer. É necessáriompreender que um paradigma da ciência, quando absolutizado, torna-se logo um antimito.

Estou ciente de que, ao tomar esta posição, faço ofensa contra o “politicamente correto” de nompo. Dizem-nos que o célebre conflito entre ciência e religião se baseia em idéias antiquadasafirmou que, nos tempos vindouros, as duas disciplinas serão vistas como aspectosmplementares de uma mesma empreitada, cada qual contribuindo para o bem da humanidade dsua esfera própria e adequada. Em última instância, toda verdade está em consonância,eguram-nos. Porém, nessa harmonia idílica, é sempre a religião, em seus modos tradicionaisem se vê obrigada pelas autoridades vigentes a se conformar, “desmitologizando” suas crençrdades putativas da ciência. Esquecemos que a ciência também tem sua mitologia, que as verd

tativas em questão não são, em sentido exato, científicas ou “operacionais”, mas dizem respeiu lado mítico. O exemplo mais óbvio disso é a explicação darwinista para a origem do homem

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al, com efeito, não tem qualquer conteúdo “operacional” e é, conseqüentemente, puramente mproblema, entretanto, é que esse “mito da ciência” se opõe categoricamente a qualquer mitosmogônico de proveniência sagrada, dos Vedas ao Gênesis. Parece que os “desmitologizadorreligião têm alguma razão! Minha reclamação é que eles estão desmitologizando a coisa erra

a intenção é alijar-se do sagrado em favor do profano. Em nome deste ou daquele pseudomitoes guias cegos descartaram “uma aproximação mais estreita à verdade absoluta que pode ser

pressa em palavras”. A nova abordagem irenista ao velho problema se mostra, portanto, engaeijo da ciência, afirmo, é a morte da religião.[ 25 ]

O conflito do qual falo traz à mente o antagonismo implacável entre Devas e Asuras (“deuses”emônios”, anjos bons e maus) retratado na sabedoria hindu; eu acrescentaria, ademais, que autrina darwinista, em particular, pode ser classificada como distintamenteasúrica em conteúdvez também em origem. O “mito” darwinista, com efeito, expressa o credo asúrico, conformemulado na Bhagavad Gita:[ 26 ]

Dizem: “O mundo está isento de verdade, desprovido de uma base moral e carente de um Deus. Sua origem é a união entmacho e fêmea e a luxúria é sua única causa: o que mais?”. [ 27 ]

eria muito dizer, de um ponto de vista cristão, que o darwinismo está ao lado do Anticristo,

Mentira e Oponente primevo à salvação do homem?[ 28 ] De qualquer forma, não estamos lidmplesmente com crenças ou especulações de mortais falíveis, mas com algo muito maior e

omparavelmente mais perigoso. Nas palavras de São Paulo: “porque nossa luta não é contra ngue e a carne, e sim contra os principados e potestades, contra os dominadores deste mundoebroso, contra as forças espirituais do mal, nas regiões celestes”.[ 29 ] Segue-se que um indie esteja fora dos confins das tradições sagradas tem pouca chance de sair ileso desse embateporta o quanto sejamos eruditos ou mesmo brilhantes, nossa situação será, então − na melhor

póteses −, precária: muito mais perigosa, em verdade, do que imaginaríamos normalmente. To

vítima do mito asúrico não é nenhuma brincadeira!* * *

O caso do darwinismo é certamente excepcional; como já pudemos observar, o paradigmarwiniano se destaca, mesmo de um ponto de vista científico, tanto por seu fracasso em acordafatos observáveis quanto pela astronômica improbabilidade de suas alegações. Mas e os outradigmas da ciência contemporânea: são eles igualmente opostos à cosmovisão tradicional? Hro, um grande número de paradigmas científicos em uso no presente momento; a estrutura dancia, em nossa época, é extremamente complexa e possui, literalmente, “paradigmas dentro d

radigmas”. No entanto, são os paradigmas superiores que importam mais, tanto de um ponto dta filosófico quanto de um cultural; são eles, em especial, que definem o que julgamos ser asmovisão científica. E esse Weltanschauung  é caracterizado, com efeito, pelos três paradigme indicamos: o newtoniano, o darwiniano e o copernicano. São esses, afirmo, que abarcam,pectivamente, nosso entendimento cientificista acerca dos mundos físico, biológico e estelarpreciso: é o paradigma darwiniano que nos permite prolongar o newtoniano até a bioesfera

forma legítima, é claro, mas de maneira mais ou menos imaginativa −, e é o copernicano que rmite fazer o mesmo com relação ao universo estelar. Assim, é por meio da conjunção dosradigmas darwiniano e copernicano que a física reclama seu domínio sobre tudo o que se pen

stir no espaço e no tempo.

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sso nos traz ao meu argumento final, a saber: que, em verdade, todos esses três paradigmasperiores se opõem à cosmovisão tradicional de forma irreconciliável. Uma vez que jántificamos o darwinismo como um mito inerentementeasúrico, resta-nos agora considerar asgações newtonianas e copernicanas. Por certo, devo ser breve; mas, em ambos os casos, tentngir o cerne da questão.

É fácil perceber que não poderia haver qualquer vida espiritual  em um universo mecânico, potal universo, não poderia haver vida alguma: nem mesmo uma ameba poderia existir em um

undo newtoniano. E por que não? Pela simples razão de que nenhum organismo vivo é redutívma de suas partes. Esse fato foi compreendido corretamente pelos filósofos ao menos desde ompo de Aristóteles e hoje vem sendo redescoberto e reenfatizado por alguns dos biólogos maiportantes. As cosmologias tradicionais, por outro lado, não dizem respeito a uma abstraçãoosófica ou a um “modelo” científico, e sim ao cosmo autêntico, ao mundo no qual nos encontre não apenas serve de habitat para animais e plantas, mas também abriga artistas e poetas, míantos. Ora, longe de constituir um sistema mecânico, o universo autêntico constitui, em verda

ma teofania: uma manifestação daquilo que os Vedas chamam denāma,[ 30 ] Platão de Idéias eulo de “os atributos invisíveis de Deus” − não esquecendo que, para os puros de coração, ele

pelha “o seu eterno poder, como também a sua própria divindade”.[ 31 ] Com efeito, não podver disparidade maior entre o cosmo, conforme percebido tradicionalmente, e um mundowtoniano: ocorre que os dois não são apenas incompatíveis, mas realmente antitéticos. Assimsso que aquele ultrapassa o que podemos apreender em função de sua inteireza inexaurível, ecapa à nossa compreensão em virtude de sua vacuidade, de uma indigência que literalmente dmaginação: afinal, não se deve esquecer que o mundo newtoniano é inevitavelmente desprovdas as qualidades, a começar pela cor, e que, por conseguinte, é imperceptível. Ele constitui uundo (se é que ainda o podemos chamar assim) que não pode ser visto nem imaginado e que, pnseqüência, não corresponde a uma “cosmovisão” de maneira alguma: não importa como o púutrinado cientificistamente imagine ser o universo, decerto ele diverge ipso facto do argumenntífico. Como de fato é o caso com toda doutrina de tipo asúrico, a cosmovisão mecanicista

nstitui, enfim, uma mentira.A insuficiência do paradigma copernicano é quiçá mais difícil de se discernir, já que diz respsas longínquas no espaço e no tempo e, portanto, afastadas do mundo que nos é familiar. É fo

mbrar, entretanto, que o sol, a lua e as estrelas têm um papel proeminente na cosmovisãodicional; como podemos ler em um famoso salmo de Davi: “Os céus declaram a glória de Deirmamento anuncia a obra de Suas mãos”.[ 32 ] De acordo com o princípio copernicano, toda

osmo, como um todo, não apresenta uma estrutura global, uma arquitetura hierárquica ou quastígio de exemplarismo[ 33 ] ou design, mas somente matéria distribuída aleatoriamente, comnhado de átomos em um gás. Logo, ao passo que o paradigma darwiniano nega Deus enquantoiador da vida, o copernicano O nega enquanto Arquiteto do universo. A hipótese da densidaddia constante de massa ao longo de todo o espaço pode ser um artifício útil para obter soluçõuações de campo, mas praticamente não é compatível com a sabedoria perene da humanidade

* * *

elizmente, porém, a ciência corrige a si mesma até certo ponto, o que significa que, no devid

mpo, os paradigmas defeituosos são normalmente substituídos. O newtoniano já foi suplantado

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to o darwiniano quanto o copernicano estão hoje recebendo ataques. Pode ser verdade, comostenta Thomas Kuhn, que os paradigmas fracassados invariavelmente se retêm até que um novha sido aprovado pela comunidade científica; mas, no fim das contas, isso aparentemente oco

ntanto, ao menos, que o establishment  científico retenha um mínimo de integridade. A ciênciamo sabemos, constitui um processo inacabado, e mesmo os seus paradigmas mais prestigiosoo sacrossantos.As únicas coisas sacrossantas, em verdade, são os elementos centrais da tradição sagrada. Umacterística distintiva da tradição sagrada é ter uma origem mais do que humana e mais do queramente histórica, o que implica que a tradição autêntica, em todas as suas manifestaçõesenciais − de doutrinas e rituais a códigos morais − participam de algum modo na eternidade.demos aceitar ou rejeitar a tradição sagrada: essa é nossa escolha inalienável; entretanto,bamos desde logo que fora do Sagrado não pode haver nenhuma certeza, nenhuma verdadermanente e absoluta.

15 ] Os teólogos podem contestar a primazia do mito no caso das religiões chamadas monoteístas, alegando que, nessas tradiçõhistórico suplantou o mito. Todavia, nada impede que um fato histórico seja também um mito. A “primazia do mito”, na realidança sua leitura superior no fato fundador do Cristianismo, quando “o Verbo se fez carne e viveu entre nós...” (Jo 1, 14).

16 ] Na química antiga, o flogisto, um elemento hoje considerado inexistente, era tido como um fluido que, quando liberado, prombustão – NT.

17 ] Em português, o nome comum para designar esse ilogismo é “falácia de reificação” – NT.18 ] Citado por Phillip Johnson, Darwin On Trial, Intervarsity Press, Illinois, Downers Grove, 1993, p. 50.19 ]  Ibid ., p. 38.20 ] Michael Behe, Darwin’s Black Box, The Free Press, Nova York, 1996, p. 70-73.21 ]  Ibid ., p. 39.22 ] A matemática da teoria do design foi exposta no livro de William A. Dembski, The Design Inference, Cambridge Univess, 1998. Com relação a suas conseqüências para o darwinismo, ver também de Dembski,  Intelligent Design , Intervarsity Prewners Grove, Illinois, 1999.23 ] A conclusão de Hubble se baseia no fenômeno de “desvio para o vermelho” no espectro estelar, o qual ele interpreta com

to Doppler. Essa suposição, no entanto, não apenas é infundada, mas, em verdade, passou a ser atacada nos anos recentes, emção de uma abundância de evidências empíricas adversas. Ver Halton Arp, O Universo Vermelho, São Paulo: Perspectiva, 20m relação à base científica da cosmologia do big bang , remeto o leitor, ademais, a meu tratado The Wisdom of Ancient Cosm

ndation for Traditional Studies, Oakton, VA, 2003, cap. 7.24 ] Ananda Coomaraswamy, Hinduism and Buddhism, Greenwood Press, Westport, CT, 1971, p. 33.25 ] Da religião autêntica, quero dizer. Descartando essa qualificação, minha afirmação se torna de uma falsidade patente.ontramo-nos agora na chamada Nova Era, a era das pseudorreligiões, muitas das quais (se não todas) são de fato a prole da unaminosa supracitada. Para um estudo de caso relativo ao cristianismo, remeto o leitor ao meu tratado acerca dos ensinamentoshard de Chardin. Ver Wolfgang Smith, Teilhardism and the New Religion, TAN Books, Rockford, IL, 1988; edição revista,istic Evolution: The Teilhardian Heresy, Angelico Press, 2012.26 ]  Bhagavad Gita é o nome de um épico religioso hindu, originalmente escrito em sânscrito. Há diversas traduções no Bras

27 ] Capítulo 16, verso 8. Depois de formular o credo asúrico desse modo, a Gita então descreve os homens que fizeram desdo o seu próprio: “Com tal ótica, essas almas perdidas, de pouco entendimento e feitos bravios, surgem como inimigos do mundcando sua destruição”. Não se pode deixar de pensar nos tecnocratas que estarão “dirigindo o mundo” sob a Nova Ordem Mu28 ] Essa visão foi proposta de forma veemente pelo falecido hieromonge ortodoxo Seraphim Rose. Ver seu tratado magistralaphim Rose, Genesis, Creation and Early Man, St. Herman of Alaska Brotherhood, Platina, CA, 2000.29 ] Ef 6,12.30 ] Palavra sânscrita que significa “nome” – NT.31 ] Rm 1, 20.32 ] Sl 19, 1.33 ] “Equivalente a modelar ou arquetípico. Em virtude disso, cabe chamar de ‘exemplarismo’ toda doutrina segundo a qual asealidades – e especificamente coisas e realidades ‘sensíveis’ – são traslados, cópias, manifestações, imitações etc., de realidad

mplares ou arquétipos. Então essas realidades servem de exemplo e podem ser consideradas […] como o mais ilustre ‘exemplé Ferrater Mora, Dicionário de Filosof ia, t. II, Loyola, SP, 2005, p. 905.

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2CIÊNCIA MODERNA E CRÍTICA GUÉNONIANA

 Rejeitar modos parciais de conhecimento simplesmente porque são o que são é uma falácia tão grave quanto

confundir o parcial com algo total e abrangente.

Gai Eaton

ler o discurso de René Guénon sobre a ciência moderna, mais de uma década depois que foicrito, não é apenas a profundidade de sua perspicácia que impressiona o leitor, mas também, nor grau, as suas deficiências patentes. Minha intenção neste capítulo é examinar a críticaénoniana em função da física contemporânea, especialmente da teoria quântica, sua disciplinase e seu ramo mais preciso.Começo relembrando o diagnóstico, feito por René Guénon, da presente época como “o reinoantidade”. Nessa identificação básica, ele não somente definiu a mentalidade científica domins, ao mesmo tempo, interpretou o seu “reino” à luz do entendimentometafísico tradicional da

tória. “A redução ao quantitativo”, sustenta Guénon, “está precisamente de acordo com asndições da fase cíclica à qual a humanidade chegou agora”.[ 34 ] Em concordância com a doundu, ele contempla um declínio “que procede de f orma contínua e com uma velocidade semprescente, desde o começo do Manvantara”,[ 35 ] e que, falando metafisicamente, não constitui

enão um afastamento gradual do princípio que é necessariamente inerente a qualquer processonifestação”. Em termos cristãos, isso corresponde à Queda, agora concebida como um procecabado. “Em nosso mundo”, Guénon explica em seguida, “por causa das condições especiaisstência às quais está sujeito, o ponto mais baixo toma o aspecto da quantidade pura, desprov

da distinção qualitativa”. O surgimento da ciência moderna e sua dominação progressiva de ntura vêm portanto a ser percebidos de forma metafísica e, logo, do ponto de vista mais profunlusivo.

Com uma espécie de exatidão matemática, Guenón delineia as múltiplas manifestações desseeclive que leva até o ponto mais baixo” e as etapas sucessivas pelas quais a humanidade estádada a passar. Ele se refere à cegueira completa que constitui tanto uma precondição quanto umnifestação do declínio contínuo. “Se nossos contemporâneos, como um todo, pudessem ver oestá guiando e para onde realmente estão indo”, assevera Guénon, “o mundo moderno, comosaria imediatamente de existir”. Não é nenhuma surpresa que esse mundo, a despeito de suasgações de tolerância para com as visões divergentes de cada denominação, esteja, na verdad

aticamente fechado às vozes da tradição. “É impossível”, conta-nos Guénon, “que essas coisaam compreendidas pelos homens em geral, mas apenas por um pequeno número daqueles queão destinados a preparar, de um modo ou de outro, os germes do ciclo futuro”. De acordo coa visão, a ascensão das ciências físicas à posição dominante ao mesmo tempo manifesta e imreino da quantidade”.

Entretanto, acompanhando tais reconhecimentos importantes − que acredito não terem precedeem realmente definitivos −, há aspectos da doutrina guénoniana que me parecem menos felize

irmo que esses princípios questionáveis não apenas são gratuitos − isto é, desnecessários, em

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nção dos argumentos centrais de Guénon −, mas também falsos, o que é demonstrável. O que, meiro lugar, invalida a crítica guénoniana, no que diz respeito particularmente à física, é sua

missão em reconhecer que, em meio àquilo que certamente é uma “mitologia científica”, há, nãstante, uma “ciência exata”, capaz de conhecimento real, ainda que esse conhecimento sejaarcial”. Como já argumentei repetidas vezes, a coisa mais necessária para uma avaliação justncia moderna é a distinção entre “conhecimento científico” e “crença cientificista”, ou seja, encia propriamente dita e cientificismo. Todavia, parece que em nenhuma parte Guénon faz estinção crucial, pela simples razão, aparentemente, de que ele não atribui à ciência contempor

nhum conhecimento legítimo. De fato, a ciência e o cientificismo, na prática, estão invariavelmidos e se revelam verdadeiramente inseparáveis; quem quer que tenha andado em círculosntíficos não terá dúvida alguma quanto a isso. Pode-se mesmo argumentar que a crençantificista desempenha um papel importante no processo da descoberta científica e que, com enstitui um elemento essencial da empreitada científica. Porém, ainda assim, sustento que as dues dessa moeda são tão diferentes quanto a noite é do dia e devem ser distinguidas claramente concerne à física, em particular, afirmo que existe um corpus de descobertas positivas que égicamente independente da crença cientificista e que se qualifica como “um modo parcial de

nhecimento”, nas palavras de Gai Eaton. É esse conhecimento legítimo, obviamente, que alimvolução tecnológica em progresso e, com isso, confere à ciência, aos olhos do público, seu imestígio e autoridade. O fato de que o público em geral − e, em grande medida, a própriamunidade científica − confunda esse conhecimento com a crença cientificista é um outro proberca do qual teremos mais a dizer no que se segue. Por hora, desejo apenas enfatizar que há, nundo moderno, uma ciência “exata”, uma disciplina capaz de fazer descobertas positivas, repinda que “parciais”.No entanto, como eu disse, isso é algo que Guénon jamais parece ter admitido. Ele distingue, o se pode deixar de fazer, entre “o domínio da mera observação dos fatos” e a formação depóteses, mas parece considerar a última como isenta de valor cognitivo, isto é, isenta de verd

velocidade crescente”, escreve ele, “com a qual tais hipóteses são abandonadas, hoje em diabstituídas por outras é notória, e essas mudanças contínuas são o bastante para tornar mpletamente óbvias a falta de solidez das hipóteses e a impossibilidade de reconhecer nelasalquer valor, no que tange ao conhecimento verdadeiro”.[ 36 ] A conclusão de Guénon, porémá longe de ser óbvia e, com efeito, revela-se insustentável. Tomemos o exemplo da física: é ce a história dessa ciência, dos tempos de Galileu aos dias de hoje, apresenta uma sucessão depóteses; contudo, perceber essas alterações como espécies de tiros no escuro, como um proce

e não alcança resultados duradouros e não possui nenhum valor “no que tange ao conhecimenrdadeiro”, decerto é não compreender o processo. O que Guénon ignora é o fato de que a físiolui e que as hipóteses não são simplesmente “alijadas”, e sim generalizadas e complementad

virtude de novas descobertas. A física newtoniana, em especial, não foi simplesmenteandonada como uma teoria errônea, mas permanece em uso constante até hoje e, com efeito,contra-se rigorosamente implicada no limite, tanto na relatividade einsteiniana quanto na mecântica, uma vez que c tende ao infinito e h tende a zero, respectivamente.[ 37 ] Não há nisso uoblema de «tirar conclusões» aleatoriamente, ao contrário do que Guénon parece sugerir; trat

vez disso, da física se tornar progressivamente mais refinada, mais precisa e mais eficaz em icações. É evidente, ademais, que essa evolução da teoria física se reflete fielmente no

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senvolvimento concomitante da tecnologia; basta apenas comparar motores a vapor a aviões spaçonaves para contemplar, como em um ícone, a ocorrência de aprimoramento no conhecimico. Francamente, espanta a superficialidade da análise de Guénon no tocante ao lado positivo

ncia contemporânea e, portanto, à ciência contemporânea enquanto distinta do cientificismo qompanha; só podemos presumir que o metafísico francês não tinha o menor interesse naslizações verdadeiras da empreitada “empiriométrica” e ansiava por colocar de lado o assuntis rápido possível. Para ele, era conveniente rejeitar prontamente a ciência moderna como um

avoir ignorant ”, uma busca desencaminhada que nada tem de positivo e de valor real para

erecer como contribuição: “O mínimo que pode ser dito”, ele nos conta, “é que todo esse negóo tem o menor sentido”. Como nota Jean Borella: “Para ele, trata-se apenas de mais um produntre outros, de um mundo que ele condena em bloco”.Além do mais, Guénon nega até mesmo a originalidade dessa ciência desdenhada: “As ciênciaofanas”, escreve ele, “das quais o mundo moderno tem tanto orgulho, são, real e verdadeiramenas ‘resíduos’ degenerados das antigas ciências tradicionais”.[ 38 ] Contudo, ainda que essarmação pareça (ou se mostre ser, com efeito) artificial, Guénon tem em vista uma verdadetafísica preeminente; afinal, ele continua, dizendo: “assim como a própria quantidade [...] não

ssa de ‘resíduo’ de uma existência esvaziada de tudo o que constituía sua essência”. Conformemos ocasião de observar, ali − nesse mesmo reconhecimento −, de fato, reside a chave dampreensão metafísica acerca do objeto da física contemporânea. Entretanto, deve ser percebie a natureza “residual” da quantidade não acarreta, de forma alguma, que as ciências que seupam dos aspectos quantitativos da realidade sejam elas mesmas, de algum modo, “residuais”ra sustentar, em especial, que a física moderna constitui um “resíduo degenerado” de algumancia tradicional, seria necessário estabelecer que o seu modus operandi provém de uma fontiga. Decerto, existe uma certa continuidade histórica entre a ciência moderna e a antiga; Galilwton, por exemplo, estavam mergulhados na tradição aristotélica, circunstância que,dentemente, desempenhou um papel importante no desenvolvimento do seu pensamento. Masda assim, o fato decisivo é que romperam com a física de Aristóteles e a substituíram por algerente, algo novo. O modus operandi da física newtoniana, em particular, certamente não advtradição aristotélica e menos ainda provém de qualquer ciência autenticamente tradicional. Ee me parece mais irônico: se tivesse essa proveniência, Guénon, por esse mesmo fato, não terpudiado essa física como uma ciência profana, desprovida de todo valor cognitivo!É estranho também que Guénon tenha negado a originalidade da empreitada científicantemporânea, dada sua crença de que a efetivação de possibilidades genéricas está ligada às

cessivas de um ciclo principal ou Manvantara. Em concordância com essa doutrina, tudo inde a ciência moderna constitui precisamente aquela possibilidade cognitiva que está “estritameconformidade com as condições da fase cíclica à qual a humanidade chegou agora”, nas palapróprio Guénon; e isso não significa apenas que ela constitui, basicamente, o único tipo de cvel  na era atual, mas também − e pela mesma razão − que ela se trata de uma “forma de conh

e não poderia ser efetivamente praticada em tempos idos. Isso explica, ademais, por que a cioderna e sua tecnologia constituem, em verdade, o único domínio em que nossa civilizaçãoramente ultrapassa todas as outras e apresenta um tipo de mestria que não se encontra no munigo. O objeto intencional da física contemporânea pode bem ser um “resíduo”, metafisicamenando; porém, a ciência em si mesma está longe de ser isso.

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O evento decisivo na evolução do pensamento moderno, por certo, foi a exclusão das essênciaomovida por Galileu e Descartes e a adoção concomitante de uma epistemologia bifurcada, qega as qualidades perceptíveis ao domínio subjetivo. Essas infrações metafísicas estemológicas, no entanto, não invalidam em si mesmas omodus operandi de uma ciência que

upa exclusivamente dos aspectos quantitativos da realidade. De um ponto de vista metodológclusão de essências constitui simplesmente uma delimitação que define e, assim, constitui omínio da ciência física; não é paradoxal, de modo algum, que a ciência em questão deva suarícia exatamente àquela redução de seu escopo. Como Goethe observou, sabiamente: “ In der 

schränkung zeigt sich der Meister ”.[ 39 ] Notemos, ao mesmo tempo, que, dado que a lógicaica contemporânea é positivista ou operacional, conforme atestam as filosofias da ciênciagentes, essa ciência nada tem a ver − em um plano técnico! − com as premissas cartesianas; e,orre que os físicos contemporâneos, em suas crenças cientificistas, continuam sendo afetados

m cartesianismo residual, isso nada faz para invalidar as descobertas positivas da física enquaO conhecimento em questão pode ser minúsculo em comparação a modos superiores de

nhecimento e pode de fato conduzir à dissolução, segundo afirma Guénon, mas também constida assim, um modo autêntico de conhecimento, embora parcial.

Por outro lado, a omissão de Guénon em distinguir entre a ciência e aquilo que ele denominaitologia científica” não invalida sua percepção da empreitada científica como o fator dominae conduz a humanidade contemporânea “para baixo”, na direção do ponto final de seu ciclo. Eorda a questão observando que o público em geral tende a aceitar “essas teorias ilusórias”gamente, como dogmas verazes, “em virtude do fato de que chamam a si mesmos de ‘científicem seguida, aponta que o termo “dogma” de fato é apropriado, “pois se trata de algo que, emncordância com o espírito moderno antitradicional, deve se opor aos dogmas religiosos ebstituí-los”.[ 40 ] O que se segue, em The Reign of Quantity, é uma análise elaborada do munoderno − e, com efeito, pós-moderno −, à qual possivelmente nenhuma outra análise jamais seualou, seja em profundidade, seja em amplitude.[ 41 ]É de suma importância lembrar que Guénon distingue duas fases principais no declínio em curais ele designa pelos termos “solidificação” e “dissolução”; ademais, é interessante notar queunciou essa distinção na época exata em que a física estava entrando na segunda fase supracitfunção da descoberta da mecânica quântica. Conquanto Guénon não tenha demonstrado um

eresse maior pela nova física (que veio à luz entre 1925 e 1927) do que por sua predecessorawtoniana e pareça nem ter notado a revolução quântica, está claro que o advento da teoria quârca de fato a dissolução do universo físico. Entretanto, esse desenvolvimento − que foi uma

mpleta surpresa e um grande choque para a comunidade científica − não apenas está de acordm os princípios da análise guénoniana, mas, conforme mostrarei na seqüência, essa análise, cito, fornece a chave para a compreensão metafísica da teoria quântica e, logo, da física

ntemporânea como um todo: isto é, daquela mesma ciência da qual Guénon jamais reconheceustência!

O que nos propomos a fazer é complementar a crítica guénoniana, ponderando sobre a teoriaântica, em particular, de um ponto de vista metafísico tradicional, em consonância com ossinamentos do próprio Guénon.

* * *

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Eras antes do advento da ciência moderna, o conhecimento humano iniciou o declínio a que esdado. Toda a história registrada já corresponde a um estágio avançado da queda a que São Parefere como um “escurecimento do coração”: trata-se, em outras palavras, de um escurecimenelecto. É necessário entender, todavia, que, nesse declínio em curso, o advento da ciência físrca uma descontinuidade, o começo de uma nova fase. Anteriormente a isso, todo o conhecim

mano ainda se voltava na direção das essências − do polo essencial da existência, enquantotinto do polo material. Assim − notemos isso ou não − mesmo o menor dos atos de percepção

nsível cognitiva envolve uma apreensão intelectual de essência. Sim, essa apreensão se torno

scura em graus variados; mesmo assim, o fulcro da percepção, tanto antes quanto agora, consum discernimento de essências: é precisamente isso que tornacognitivo o ato perceptual. No

anto, com o advento da física moderna, a coisa mudou de figura: pela primeira vez na históriahar do homem pôde se dirigir para baixo, afastando-se do polo da Essência em direção à mat

cunda que sustenta nosso mundo em seu lado ínfero. Uma nova metodologia − um modo denhecer completamente novo − era necessária para realizar tal façanha e, com efeito, ela veio augurada pelos pioneiros da empreitadaempiriométrica. Os primeiros passos decisivos nessentido foram dados, em rápida sucessão, por Galileu, Descartes e Newton; então, seguiram-se

culos de atividade intensa − séculos que testemunharam, dentre outras coisas, a descoberta dompos eletromagnéticos e da relatividade einsteiniana − e, após isso, por volta de 1925, finalmergiu a nova física, com a descoberta da teoria quântica: enfim as essências foram totalmente

orcizadas do que se chama de universo físico. Para o espanto e, com efeito, a mortificação damunidade científica, esse universo se tornou, assim, “desolidificado”; como Arthur Eddingtonservou com presteza: “O conceito de substância desapareceu da física fundamental”.[ 42 ] Apis de dois séculos de esforço coordenado, a ciência empiriométrica havia finalmente setringido ao “‘resíduo’ de uma existência esvaziada de tudo o que constituía sua essência”, naavras de René Guénon.

O que nos confronta, aqui, é evidentemente um modo de conhecer sem precedentes e, em verdranho. Conhecemos a massa de um elétron, além de sua carga e de seu momento magnético;

bemos, com perfeita precisão, como ele reage a um campo eletromagnético; podemos utilizar xes de elétrons para transmitir textos ou figuras para uma tela fluorescente; e, contudo, quandorguntamos “que é um elétron?”, não temos a menor idéia. Não poderia ser de outro modo: poifato, o objeto em questão está “esvaziado de essência”, então ele simplesmente não temnenh

ididade, nenhum “quê” ou Sosein. Ora, ocorre que esse curioso estado de coisa foi reconhecimuito, pelos fundadores da teoria quântica. Werner Heisenberg, por exemplo, observou que a

amadas partículas quânticas constituem aquilo que ele denominou “uma entidade nova e estranermediária entre a possibilidade e a realidade” e que, de certo modo, representa o que ele ch“uma versão quantitativa do velho conceito de ‘ potentia’  da filosofia aristotélica”.[ 43 ] Erwhrödinger, por sua vez, aponta que “fomos conduzidos a rejeitar a idéia de que tal partícula é tidade individual que, em princípio, retém para sempre a sua identidade. Ao contrário, somosrigados a afirmar, agora, que os constituintes últimos da matéria não têm qualquer identidadeossegue, enfatizando que:

Devo enfatizar o seguinte e vos imploro a crerdes nisto: não se trata de uma questão de sermos capazes de atestar identidem alguns casos e de não sermos capazes de fazê-lo em outros. Está realmente além de qualquer dúvida que a questão de

identidade, real e verdadeiramente, não tem nenhum sentido.[ 44 ]

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Ela não pode ter nenhum sentido, permitam-nos acrescentar, precisamente porque essas partíctativas são isentas de essência: é a essência, afinal, que confere unidade, igualdade ou identidausência de “unidade, igualdade ou identidade”, entretanto, não se pode falar em ser : nada qece de uma essência, portanto, pode existir como uma entidade, um ser ou uma “coisa”. Oiverso físico, concebido como um agregado das chamadas partículas quânticas, constitui, assi

m domínio “subexistencial” que necessita ser distinguido categoricamente do domínio corpóremo venho afirmando repetidamente.Decerto, alguém há de levantar a objeção de que os objetos corpóreos, uma vez que são compátomos, de fato constituem agregados de partículas quânticas; deve-se observar, porém, quesmo Heisenberg e Schrödinger, não obstante a sua intuição penetrante sobre a natureza dessa

rtículas, também acreditavam nisso. Embora se admita que as partículas individuais sejamubexistenciais”, alega-se que os agregados suficientemente grandes não o são; de alguma formro número de partículas constituintes ou o tamanho do agregado são capazes, supostamente, d

nferir o ser . A distinção ontológica entre os domínios físico e corpóreo, com isso, é negada, onifica que o corpóreo se reduz ao físico, como quase todos hoje creem.

Ora, como já mostrei em outra parte, a própria possibilidade de uma física matemática se base

o de que todo objeto corpóreo X está associado a um objeto físico correspondente SX, o quaduz, no fim das contas, a um agregado de partículas físicas.[ 45 ] O ponto crucial, todavia, é qX não são idênticos, que, em verdade, pertencem a planos ontológicos diferentes, a diferente

mínios de fenômeno. O que diferencia um do outro, por certo, é a intrusão da essência − ou fobstancial − no plano corporal: é esse componente adicional que confere unidade, igualdade ontidade a entidades corpóreas, qualidades que, em si mesmo, SX não possui. Por conseguinte

eciso traçar uma distinção entre os átomos presentes em X e aqueles presentes em SX, dado quma entidade corporal, os próprios átomos e as próprias moléculas participam, de algum moessência: da forma substancial, a saber, que constitui o ser mesmo daquela entidade. Assim,nam-se algo mais do que os átomos e moléculas segundo um físico os concebe: enquantomponentes de X, constituem partes autênticas de um todo. Concebidos assim, átomos e moléco mais pertencem à ordem quantitativa: como partícipes da essência − mesmo na condição dertes − não são mais meras quantidades ou entidades físicas no sentido contemporâneo precisogo, ao se conceber a constituição molecular de um objeto corpóreo X como um mero agregadpartículas quânticas, perde-se − literalmente! − algo essencial: resta apenas, com efeito, um míduo de uma existência “esvaziada de tudo o que constituía sua essência”, precisamente comorma Guénon.

Assim, SX determina as propriedades quantitativas de X; e essa, obviamente, é a razão pela qde haver uma física matemática. As propriedades físicas e químicas do sal, por exemplo, poddeduzidas acuradamente da física das moléculas de NaCl. Contudo, existe a possibilidade d

svios, a qual, sem dúvidas, é efetivada em diferentes graus à medida que ascendemos na scala

turae; o fato de que, em um ser corpóreo, os próprios átomos que constituem sua base materiaarticipam, de algum modo, na essência” não é isento de conseqüências, mesmo em um sentidoantitativo ou mensurável. A premissa reducionista pode ter sido útil como hipótese heurísticado ou tarde, torna-se contraproducente; há razão para crer que, em áreas como medicina e

macologia, por exemplo, uma perspectiva não reducionista abriria as portas para níveis maisofundos de pesquisa. O que falta, certamente, é a distinção categórica entre X e SX, cujo

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onhecimento já deveria ter ocorrido há tempos.sso nos traz a uma segunda questão importante que os físicos negligenciaram. É necessário noe a “receptividade” das partículas quânticas com relação às essências − em outras palavras, spacidade de se tornar partes autênticas de um todo − deve-se exatamente à “indeterminação”racterística do domínio quântico. Se de fato possuíssem individualidade ou auto-identidade, ertículas, por conseguinte, não poderiam ser condensadas em uma entidade corpórea. Para queorra, as partículas têm de participar da potência, no sentido aristotélico − uma qualificação qostra aos olhos do físico precisamente como indeterminação quântica. Aquilo que a comunidaica tem visto como uma anomalia que beira o paradoxo − e que Albert Einstein censurou compensável − revela-se uma necessidade metafísica.

Ninguém, em ambos os lados do debate de Copenhagen, parece ter notado que a função dasrtículas quânticas não é conferir o ser, mas recebê-lo. Por certo, Heisenberg chegou mesmo aerir a essas partículas como potentiae; entretanto, ao fazê-lo, ele estava pensando na mensuramo o único processo pelo qual essas potentiae seriam efetivadas. Aparentemente, não lhe ocoe a existência corpórea como tal, longe de se reduzir a um agregado de partículas quânticas,nstitui uma atualização − uma passagem da potência ao ato −, o que significa que SX se atuali

Deve-se notar, ademais, que, mesmo de um ponto de vista científico, esse fato não é trivial; pm efeito, ele explica, por exemplo, por que as bolas de bilhar podem estar em dois lugares

multaneamente e por que os gatos não podem estar, ao mesmo tempo, vivos e mortos, conformontei em outra parte.[ 46 ] Pode-se acrescentar que, de uma perspectiva tradicional, a passage

X para X constitui de fato um ato de mensuração, embora se trate, obviamente, de um tipo densuração que os físicos ignoram − e esse é um ponto ao qual retornarei adiante.

Essas observações devem bastar para evidenciar um fato importante: ocorre que a significâncrdadeira da física contemporânea só pode ser discernida de um ponto de vista autenticamente

tafísico. Somente assim a nova física se torna filosoficamente compreensível: somente assimsa de ser aquilo que Whitehead caracterizou como “um tipo de cântico místico em louvor a uverso ininteligível”.

* * *

Dado que a física contemporânea, em última instância, lida com entidades que pertencem a umano subexistencial, será proveitoso que consideremos, ao menos de forma rápida, como se poter conhecimento desse tipo. Embora a humanidade sempre tenha possuído meios pelos quaisalidades superiores podiam ser conhecidas, a incumbência de descobrir um modo de conhece

sas que não existem verdadeiramente, parece, recaiu sobre o século XX. A questão é: como liza tal prodígio?Para entender a lógica da física contemporânea, precisamos, antes de mais nada, distinguir entas leis e aquilo que chamarei provisoriamente de entidades físicas. Muito pode ser dito em devisão − que foi primeiro enunciada por Eddington − de que as leis fundamentais da físicacluindo suas constantes universais e não dimensionais) podem ser deduzidas domodus opera

ciência física, o que significa que essas leis pertencem às estruturas matemáticas impostas peóprios físicos por meio da mensuração. Acrescentarei apenas que essa alegação, recentementnfirmada de maneira notável pelo físico americano Roy Frieden, o qual, com efeito, deduziu a

questão por intermédio de uma análise teórico-informacional dos instrumentos corresponden

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mensuração.[ 47 ] O que chamei de entidades físicas, por outro lado, é o que de fato detectamdimos por meio desses instrumentos. Sim, uma entidade física, em um certo sentido, compõe

rtículas quânticas; porém, o que nossos instrumentos detectam, estritamente falando, não é umrtícula ou um conjunto delas, mas uma distribuição de probabilidades associadas. Queonhecimento estranho: o que o físico observa e mede é, no fim das contas, nada mais que uma

obabilidade!Olhando mais de perto, todavia, o conceito de probabilidade se revela especialmente aproprimo aponta Heisenberg, a probabilidade constitui, de certa maneira, “uma versão quantitativa ho conceito de ‘ potentia’ na filosofia aristotélica”. Afinal, uma probabilidade não é, em sisma, uma “coisa”, e sim algo que indica uma coisa externa a si: uma “coisa ou ocorrência” dé a probabilidade. Seria errôneo, portanto, atribuir “existência” a uma probabilidade, mas

mpouco se pode dizer que uma probabilidade nada é. Assim, a probabilidade está, de fato, “essibilidade e a realidade”, exatamente como sustenta Heisenberg.

A noção de probabilidade, obviamente, não se originou em um contexto quântico. Muito antesquântica, os matemáticos já calculavam probabilidades associadas com fenômenos mundano

mo jogar cara ou coroa ou dar uma mão de cartas a partir de um baralho. A novidade é a idéi

obabilidade como um tipo de entidade física e, com efeito, fundamentalmente, como o único tentidade física. Contudo, a concepção matemática subjacente permanece a mesma: logo, uma

obabilidade é simplesmente uma possibilidade medida. É aqui, nessa qualificação, que aantidade entra em cena, não (como na física clássica) como um atributo de algo corpóreo exisgamos, a massa ou o diâmetro de uma esfera sólida), e sim como a mensuração de probabilide tais “mensurações de probabilidade” subsistam, de algum modo, no universo físico e se

opaguem qual ondas − que, em verdade, são precisamente aquilo que de fatoexiste naqueleiverso! −: isso, certamente, é uma surpresa. É algo que, além disso, o físico, enquanto tal, éegoricamente incapaz de interpretar ou compreender. O que falta, está claro, é umametafísica

orre, de forma bastante inesperada, que o físico está vislumbrando amateria, a hyle aristotélo em si mesma − não como uma “potência pura” ou uma mera possibilidade −, mas como umssibilidade mensurada: como uma probabilidade, para ser exato. Quer perceba isso ou não, ico quântico está espiando − como por uma fechadura − o mistério da cosmogênese: não no suto da teoria do big bang , mas ontologicamente, no aqui e agora. Por meio da teoria quânticaicos entraram no domínio ontológico “anterior” à união entre matéria e forma: um plano

bexistencial que, segundo podemos presumir, jamais fora acessado pelo homem.Como, então, o físico adquire conhecimento acerca das distribuições de probabilidade que

abitam” e, em um certo sentido, constituem esse domínio fantástico? Basicamente, ele as conha forma como as probabilidades sempre foram conhecidas: por cálculos, isto é, ou por ostragem. Considere, por exemplo, a probabilidade de tirar uma “trinca” quando se escolhematoriamente cinco cartas de um baralho: pode-se calcular a probabilidade de isso acontecer or as cartas de mil mãos de pôquer, contar o número de vezes que o acontecimento em questãoorre e dividir esse número por mil. No caso da física, efetuam-se os cálculos, obviamente, poio de leis fundamentais e constantes universais, ao passo que se realizam as amostragens por nsuração. O que precisa ser enfatizado é que uma distribuição quântica de probabilidade pod

tida por “amostragem” e, logo, ser “observada”, precisamente porque as probabilidades em jreferem a coisas ou eventos que pertencem ao plano corpóreo. Ademais, o fato de que essas

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obabilidades podem ser abordadas a partir de duas direções − a partir da teoria ou a partir dansuração − é precisamente o que abre as portas para um tipo de conhecimento positivista oueracional: a saber, o tipo baconiano, que propele nossa tecnologia.

* * *

Entretanto, o homem não nasceu para conhecer quantidades, mas essências. Em verdade, ele éapaz de pensar na quantidade em si mesma, sem referência a uma substância; e, se o próprio

nceito de substância foi de fato exorcizado da física contemporânea, o homem tenderá, de um

de outro, a reintroduzi-lo ali pela porta dos fundos, por assim dizer. Pensarin abstracto, semficar de alguma maneira as “coisas” que concebemos, é humanamente impossível. Agora, em ano técnico, tal reificação é permissível enquanto artifício ou meio que nos permite “pensar opensável”, digamos assim; e, com efeito, é desse modo que um matemático, por exemplo, pensas como espaços n-dimensionais e outras estruturas abstratas e inimagináveis. O que o resguerro − de um tipo de idolatria intelectual − é o reconhecimento de que as imagens que fabric

a mente − o que os escolásticos denominam phantasmata − nada mais são que alpondras[ 48 ]uilo que os alemães chamam de “eine Eselsbrücke” (uma “ponte para asnos”). No respeitanteica teórica, por outro lado, dificilmente se pode defender uma tal atitude; afinal, conceber seu

etos intencionais como reais ou existentes pertence à própria definição de física. Sim, o físicde apreender a idéia de uma probabilidade, por exemplo, sem reificação ilícita − mas apenasrque as probabilidades se referem a coisas ou acontecimentos reais. No momento em que se nlidade substantiva dessas “coisas e acontecimentos”, por outro lado, cria-se um vácuo intelee não pode ser sustentado; é tão impossível suportar esse vácuo quanto viver sem respirar. Ée o vácuo seja preenchido por uma atribuição de realidade, por alguma estipulação de existêno existe Weltanschauung  sem imputação de substância. E isso deixa o físico contemporâneo cenas duas opções: ele pode atribuir substância a coisas substantivas e, assim, redescobrir o m

rpóreo, ou ele pode postular substâncias no domínio físico, ao qual essa noção não se aplica.sas, basicamente, são suas únicas escolhas, e nenhuma acrobacia mental pode alterar esse fatCuriosamente, os físicos são invariavelmente relutantes em admitir a realidade do mundo corpr alguma razão, não conseguem se fazer aceitar coisas como a cor: o fato, por exemplo, de quçãs vermelhas são vermelhas − o que, com efeito, bastaria para afirmar a ordem corpórea. E,im, condenam-se a um estado de esquizofrenia crônica, pois não é necessário dizer que todo

undo, em sua vida cotidiana, acredita piamente em coisas como as maçãs vermelhas. Ademaistude da alternativa supracitada, os físicos são obrigados, de algum modo, a introduzir ndestinamente a noção de substância em um domínio subexistencial, no qual, segundo os próp

nones dos físicos, não há lugar para substâncias. Agora, por mais de setenta anos, algumas dantes científicas mais brilhantes empenharam a sua engenhosidade nessa tarefa infrutífera e, no

ocesso, criaram o que pode muito bem ser a literatura mais fantástica que o mundo já viu. Hojde-se escolher dentre diferentes variedades de teorias de “múltiplos universos” ou, conformeefira, pode-se encontrar conforto na idéia de que “os observadores são necessários para trazeiverso até a existência”, como afirma o chamado Princípio Antrópico Participativo.[ 49 ] Oservador imparcial não deixará de perguntar o que pode ser que impulsiona um homem inteligomar parte nessa empreitada curiosa, nessa... − ousaremos dizê-lo? − nessa loucura. Essa qu

laro, não tem uma resposta fácil. O que nos confronta, aqui, não é um fenômeno marginal − nã

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nduta de amadores ou de lunáticos −, e sim o desenrolar de tendências e idéias que são nativamunidade da física. Como argumentei em outra parte, a física contemporânea, em suas formulricas mais elevadas, busca atualmente se transformar em uma hiperfísica: uma espécie detafísica ou teologia matemática, quase podemos dizer.[ 50 ]

O fenômeno, creio, só pode ser compreendido do ponto de vista guénoniano, basicamente. Pare estamos testemunhando, ao menos em sua fase inicial, a autodestruição da física matemáticavitável reductio ad absurdum de uma ciência que tende à “quantidade em si mesma”. Parecefrigir dos ovos, o físico − quero dizer, o físico teórico, em oposição ao físico prático − é lev

rticipar da construção de mundos formais, em um esforço prometeico de alcançar umampreensão total  do universo. A própria tendência que, em um estágio anterior, conduziu à criuma física autêntica, enfim o instiga a extenuar essa antiga ciência e, assim, a dissolvê-la em

perfísica, uma pseudociência que perdeu o contato com a realidade física. Em um certo sentidénon talvez esteja certo em sua avaliação pessimista da física; o ponto crucial, no entanto, é q

nstrução de uma hiperfísica constitui uma nova fase na evolução da ciência física: a saber, a fdeclínio, de término decisivo. No final das contas, nada que não esteja centrado na essência

go, em última instância, em Deus − pode escapar à dissolução, à dispersão no nada. Aqui tam

rece-me, as palavras de Cristo se aplicam: “quem comigo não ajunta, espalha”. A fuga da Esso leva senão, afinal, à “escuridão exterior”.

* * *

A análise precedente trouxe à luz a causa subjacente à ilusão cientificista. Por que a penumbrança cientificista acompanha, na prática, até mesmo os mais altos voos da intuição científica? forma equivalente: por que o físico é inevitavelmente impelido a transgredir, de um modo outro, os cânones da própria física? Exatamente pela mesma razão, enfim, por que ele não conselevar a admitir que as maçãs vermelhas são vermelhas: a causa desse estranho fenômeno é a

eição da essência e, por conseguinte, a “desessencialização” do mundo. Refiro-me, é claro, aundo corpóreo, aquele no qual nos encontramos: o único que, em nosso estado presente, podemperienciar ou conhecer “existencialmente”. No final das contas, é essa “desessencialização” drpóreo que força o físico a estipular uma substância onde não há lugar para substâncias e, como, obriga-o a sucumbir diante da ilusão científica. Uma vez que se comete o ato deesessencialização” − uma vez que “Deus está morto”, para expressar a coisa em termostzschianos −, o passo seguinte se torna inevitável: algo esvaziado de essência deve,lutavelmente, ser “essencializado”: um falso deus, por assim dizer, deve se estabelecer em luverdadeiro. O cientificismo se revela, no fim, ser a idolatria de uma civilização pós-cristã.

A Ciência, por outro lado, é algo completamente diferente: tanto quanto metodologia é diferentafísica. Ao passo que, metafisicamente, a “desessencialização” constitui o erro fundamental

oduz o cientificismo, metodologicamente ela compõe (como já notamos antes) a delimitação qna possível um novo modo de conhecer: uma ciência em que os símbolos matemáticos substitessências e pela qual nosso olhar se desvia do mundo externo para um domínio de cifras, cujnificado se define em termos operacionais. Como Francis Bacon previu astutamente, trata-seito, de um conhecimento adquirido por meio de umnovum organum − um tipo de máquina pante −, conhecimento esse em que verdade e utilidade se tornam efetivamente idênticas.

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Todavia, além de sua função como fornecedor de verdades positivistas, a física modernassibilita uma hermenêutica que escapa ao alcance baconiano. A verdade, não importa o quantsitivista ou operacional, ainda é algo que ultrapassa a utilidade: mesmo que possa ser medidaim dizer, em função de controle e predição, ela não pode ser definida por isso. Se “as palavrebem o seu significado da Palavra”, conforme declara Meister Eckhart, as verdades não dev

ualmente, receber sua veracidade da Verdade? A redução baconiana da verdade à utilidaderresponde, epistemologicamente, à “desessencialização” do mundo: também aí, no terreno donhecimento, descartou-se o essencial. E, contudo, o essencial não pode ser descartado de fato

e restaria disso seria apenas o nada.Por conseqüência, deve haver um outro lado mesmo para a física contemporânea, um lado quemente o metafísico pode perceber. Se sua tarefa for invectivar contra uma mitologia espúria qomulgou em nome de uma ciência positivista, cabe-lhe ainda mais o descobrir a significânciatafísica de seus achados efetivos; como Sayyed Hossein Nasr deixou muito claro em suasestras intituladas Gifford Lectures, a omissão em integrar a ciência a ordens superiores de

nhecimento, com efeito, está prenhe de resultados trágicos para a humanidade.[ 51 ] Como, endemos perguntar −, pode-se realizar essa integração?

É claramente necessário começar com a ciência fundamental, que é exatamente a teoria quânticui, já efetuamos o essencial. O primeiro passo crucial consiste inevitavelmente na discriminatológica entre os domínios físico e corpóreo. É esse discernimento metafísico que situa o univico, propriamente dito, como um plano subcorpóreo e, com isso, integra o objeto intencional ica contemporânea à hierarquia ontológica tradicional. Esse mesmo reconhecimento, ademaisrmite-nos entender do que se trata realmente a teoria quântica − e, logo, a física contemporânmo um todo. Como já vimos, ele nos possibilita interpretar ontologicamente o fenômeno dadeterminação quântica e, assim, compreender a natureza e função das partículas quânticas de unto de vista metafísico. Richard Feynman observou certa vez que “ninguém entende a teoriaântica” e isso, de certo modo, está correto: ninguém pode entender filosoficamente a teoriaântica sem distinguir entre os planos físico e corpóreo.

Consideremos o fenômeno de colapso de vetor de estado, que vem iludido os físicos desde anferência Solvay, em 1927. Contanto que o corpóreo se reduza ao físico e os dois domínios im, confundidos, esse fenômeno quântico permanece verdadeiramente inexplicável. O que esestão, aí, é o fato de que a interação de um sistema físico com um instrumento de mensuraçãoulta em uma determinação, uma redução da indeterminação, para a qual não há explicação fístretanto, no momento em que se percebe que o instrumento de mensuração é necessariamente

rpóreo, torna-se claro que essa determinação constitui um ato de essência e, logo, de forma. Nlidade, impor limites é a natureza mesma da essência − da forma, no sentido aristotélico: é po que a manifestação, a união de matéria e forma, foi concebida tradicionalmente como um atnsuração. Como explica Ananda Coomaraswamy:

Os conceitos platônico e neoplatônico de medida estão de acordo com o conceito indiano: o “não mensurado” é aquilo quenão foi definido; o “mensurado” é o conteúdo finito ou definido do universo, isto é, do universo “ordenado”; o “não mensurávInfinito, que é a fonte tanto do indefinido quanto do finito, e permanece não afetado pela definição do que quer que seja defin52 ]

Ora, aquilo que mede não é o não mensurado, mas sim a forma, que é precisamente um ato. Oico, portanto, tem todo o direito de estar perplexo: o ato de determinação que constitui o col

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vetor de estado não pode ser explicado em função do plano físico, o qual é isento de essênc

ambém isento de forma substancial . Esse colapso, por conseguinte, é indicativo de uma causica, de um princípio que entra em jogo no plano corpóreo.[ 53 ] Na verdade, quer ele saiba dnão, o físico, por meio do colapso de vetor de estado, detectou o ato cosmogônico. Tendo

netrado por sob a terra firma de nosso mundo e chegado ao nível das “águas” inferiores, quebsistem mesmo depois que o Espírito de Deus “soprou sobre sua superfície”, e tendo apreend

modo probabilístico algo do caos primordial, a tohu-va-bohu[ 54 ] daquele campobexistencial, o físico entra novamente no plano corporal por intermédio do ato de mensuração

im fazendo, testemunha o casamento alquímico de matéria e forma. Agora, esse reconhecimentéria real da física quântica constitui um passo naquela integração da ciência moderna às ord

periores de conhecimento a que o professor Nasr se refere como um importante desiderato.Mencionarei que, em adição ao colapso de vetor de estado, a física quântica nos apresentou ugunda absurdidade aparente: a saber, o fenômeno danão localidade. Parece que o mundo quâcostura de forma mais justa do que permitem os cânones do contínuo espaço-tempo einsteiniae implica que o cosmo, em sua integralidade, não se enquadra realmente nos limites dessentínuo. Conforme observei em um artigo sobre o teorema de Bell,[ 55 ] essa descoberta equiv

m reconhecimento do domínio intermediário − obhuvar  do tribhuvana védico −, que os ocultiamam de astral, o qual não apenas foi excluído do campo de visão, por assim dizer, dantalidade científica, mas também desapareceu há muito do horizonte da cosmologia ocidentariosamente, a mecânica quântica não somente nos leva para baixo, por sob aterra firma do mrpóreo, mas aparentemente, ademais, na direção contrária: “para cima”, para além da ordempaço-temporal e para dentro do plano astral. O físico quântico Henry Stapp talvez esteja certoreferir à não localidade como “a descoberta mais profunda da ciência”: de um ponto de vistatológico, trata-se de fato da descoberta mais profunda, em suas implicações. Pode-se presumemplo, que Sto. Tomás de Aquino, por sua vez, teria se fascinado com a descoberta e quiçámposto, no mínimo, um opúsculo para explicar a sua significância ontológica.

* * *

É interessante relembrar que, a despeito de sua avaliação radicalmente negativa da ciênciaoderna, o próprio René Guénon não se opunha à idéia de um exemplarismo matemático − à noque uma estrutura matemática pode apontar para uma realidade metafísica externa a si. Assim

u tratado sobre o cálculo infinitesimal, após refletir detidamente sobre a formação de uma intetemática, ele conclui:

Essas indicações mostram que as coisas em questão são capazes de receber, por meio de uma transposição analógicaapropriada, um significado incomparavelmente maior do que parecem possuir em si mesmos, dado que, em virtude de uma tatransposição, a integração e as outras operações de mesmo tipo se configuram verdadeiramente como um símbolo da própri“realização” metafísica.[ 56 ]

Por certo, dificilmente se pode conceber exemplo mais esplêndido de exemplarismo matemátinseqüentemente, é uma surpresa ainda maior que Guénon tenha exibido tão pouco interesse nica matemática e se contentado, nesse domínio, com uma análise evidentemente superficial − plicação que não distingue entre a física propriamente dita e aquela “mitologia científica” comal ela se confunde na imaginação popular. Por outro lado, foi somente por meio da teoria quâ

e a lógica fundamental da física enfim veio à luz, um desenvolvimento acerca do qual Guénonarenta não ter estado suficientemente informado. O modo probabilístico de conhecimento, ao

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nos, era claramente estranho ao grande metafísico, cuja concepção da física moderna parece rmanecido “clássica” até o final. Em uma palavra, Guénon carecia de meios para compreendedus operandi do conhecimento físico − de como os físicos podem conhecer coisas que nãostem realmente − e, portanto, estava predisposto a concluir que os físicos nada conhecem.

34 ] René Guénon, The Reign of Quantity and the Signs of the Times, Sophia Perennis, San Rafael, CA, 2004, p. 3.35 ]  Manvantara é, na doutrina hindu, um ciclo de existência da criação, o qual se divide em quatro subciclos – NT.36 ]  Ibid ., p. 120-121.37 ] As equações da física newtoniana podem ser obtidas a partir tanto das equações da relatividade, quanto das equações da

ânica quântica – como casos particulares, podemos dizer-, nos seguintes limites: no caso da primeira, sempre que as velocidadpos em questão forem baixas em comparação com a velocidade da luz, e no caso da segunda, sempre que as trocas de energiaerem em muitas ordens de grandeza a constante de Planck – NC.38 ]  Ibid ., p. 5.39 ] Traduzida literalmente: “Na delimitação o mestre se mostra a si mesmo”.40 ]  Ibid ., p. 121.41 ] Em retrospecto, somente se pode lamentar que as autoridades católicas não tenham dado atenção a essa crítica quando G

da escrevia e lecionava em meio a elas e que, em vez de se impressionar com  A Crise do Mundo Moderno (que foi publicadomeira vez em 1927), elas tenham se encantado com o Humanismo Integral  de Jacques Maritain. Como a história subseqüente

ja poderia ter sido diferente se os seus líderes intelectuais tivessem escutado René Guénon! Porém, não o fizeram; assim, em uma crítica do cientificismo com base na metafísica, eles nos legaram, é triste dizer, coisas como a constituição pastoral Gaudi

s.42 ] Arthur Eddington, The Philosophy of Physical Science, Cambridge University Press, 1939, p. 110.43 ] Werner Heisenberg, Physics and Philosophy, Harper & Row, New York, 1962, p. 41.44 ] Erwin Schrödinger, Science and Humanism, Cambridge University Press, 1957, p. 18.45 ] Wolfgang Smith, O enigma quântico, Vide Editorial, Campinas, 2012, cap. 2.46 ] Wolfgang Smith, “From Schrödinger’s Cat to Thomistic Ontology”, The Thomist, 63, 1999, p. 49-63.47 ] Roy Frieden, Physics from Fisher Information, Cambridge University Press, 1998.48 ] “Pedras que atravessam um rio ou um ribeiro de uma para outra margem; passadeira”,  Dicionário Aurélio.

49 ] Discuto essas questões com mais vagar em: Wolfgang Smith, The Wisdom of Ancient Cosmology, Foundation for Traditdies, Oakton, VA, 2003, cap. 11.50 ] Nesse entremeio, tal objetivo foi realizado por Stephen Hawking em O Grande Projeto.51 ] Sayyed Hossein Nasr, Knowledge and the Sacred, Crossroad, Nova York, 1981, p. 207.52 ] Citado por René Guénon, op. cit ., p. 37.53 ] A respeito do assunto de colapso de vetores de estado, remeto o leitor a O enigma quântico, op. cit ., cap. 3.54 ] Expressão hebraica de tradução exata controversa que aparece em Gn 1, 2. Uma de suas traduções possíveis, em portug

m forma e vazia” – NT.55 ] Reimpresso, com algumas melhorias, como o capítulo 4 de The Wisdom of Ancient Cosmology, op. cit .56 ] René Guénon, The Metaphysical Principles of the Infinitesimal Calculus, Sophia Perennis, San Rafael, CA, 2004, p. 1

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3CIÊNCIA E FECHAMENTO EPISTÊMICO

capítulo anterior, ocupamo-nos da “desessencialização” do mundo trazida pela empreitadapiriométrica e descobrimos um nexo oculto entre uma ciência autêntica e o que se pode denomnça cientificista. Propomos agora uma consideração desta “desessencialização” e da emergê

ncomitante da crença cientificista à luz do magistral estudo sobre simbolismo feito pelo filósoncês Jean Borella.[ 57 ] Centrada especialmente na linguagem e no pensamento em si, a obra rella encarna um ponto de vista filosófico que nos possibilita examinar os fenômenos supracfunção de uma única concepção − a que ele chama de “ fechamento epistêmico” − e, de um s

lpe, desnuda o imperativo da “desessencialização” e aquele “nexo entre ciência e mito” que rcentro de nossa pesquisa. Na primeira parte deste capítulo, disporei a concepção mencionad

ante do leitor e, seguindo-se a isso, proponho-me a ponderar algumas de suas implicaçõesportantes para a filosofia da ciência, com especial referência à física moderna.

Talvez seja uma boa idéia começar com algumas palavras a respeito do notável estudioso fran

a doutrina inspirou o presente capítulo. Filósofo nato, ele mesmo caracterizou sua tendência stintivamente platônica”. Quando tomou conhecimento dos escritos de René Guénon, durante

oca de faculdade, ele enxergou a doutrina guénoniana como uma exposição da metafísica plategundo a descobri em mim mesmo”. Quiçá por causa da influência de Guénon, o jovem filósoquiriu um conhecimento íntimo das doutrinas metafísicas orientais, mas sem se tornar alienadas raízes ocidentais: também essas descobriu e acatou, como relata ele próprio:

Eu me voltei às doutrinas antigas como uma criança alegre que vai de descoberta em descoberta, de tesouro em tesouro, dmaravilha a maravilha. Reconheci e amei esse passado cristão, cuja beleza não é indigna do Deus a que ele honrara com sualiturgia, suas catedrais e suas teologias. Ele estava em mim qual carne da minha carne, alma da minha alma, coração do meu

coração, mas eu não o sabia. Uma vez que o descobri, fixando o olhar de meu espírito nos santos Padres e Doutores, nosClementes, nos Dionísios, nos Gregórios, nos Agostinhos e nos Tomáses, eu disse: também eu sou de sua raça. Decerto, nãosantidade ou por gênio, mas por sangue. Sorvendo do frescor das eras, senti minha alma cristã reavivar-se [...]. [ 58 ]

Evidencia-se, em virtude dessa declaração, que a filosofia e a teologia tinham de estar eparavelmente ligadas no pensamento e nos escritos desse platônico cristão. Logo, em parte, ntrovérsia resultante da proclamação da Assunção Corpórea de Maria, a Mãe de Deus,omulgada pelo Papa Pio XII em 1950, o que motivou a dissertação de doutorado em filosofiarella. Como ele mesmo explica, a descrença e incompreensão quase universais com que seebeu esse dogma, mesmo em círculos intelectuais católicos, foi que

extraiu de mim o que parecia ser uma resposta auto-evidente: para além das divisões e oposições da razão analítica, reside averdade do real, única em si mesma, ao mesmo tempo − e inseparavelmente − histórica e simbólica, visível e invisível, física semântica. Essa resposta auto-evidente repousava sobre um tipo de intuição direta e repentina em que se revelara, de formaobscura, mas sem margem para dúvidas, a natureza ontologicamente espiritual da matéria dos corpos, sem que, com isso, dúfossem lançadas sobre a realidade de sua corporeidade.[ 59 ]

Acho essas palavras excepcionalmente profundas, e são indicativas de uma filosofia que é, a umpo, racional − no sentido mais elevado − e, não obstante, autenticamente “mística”. Quanto mndo se sonda a doutrina filosófica de Borella, mais se pressente que seu conteúdo essencial segina de um único discernimento dominante, o qual só poderia lhe ter sido dado por “uma intueta e repentina” ou, por assim dizer, por um tipo de gnose. Desde o princípio, Borella situou

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ara além das divisões e oposições da razão analítica”, no terreno firme da visão intelectiva. Em consciência aguda do fato de que, em um plano mental , a visão é necessariamente mediada nceitos, assim como, em um nível sensorial, ela é mediada por signos e símbolos, sejam naturinstituídos culturalmente. Com patente clareza, ele reconhece que enxergamosatravés do signrtanto, contemplamos de fato o seu referente, e não o signo mesmo. E, desde o princípio de suvestigações filosóficas, Borella parece compreender que o enigma da “semanticidade”, com evém do mistério central do cristianismo: o mistério do Logos − a Palavra que é Deus.

* * *Em um discurso notável[ 60 ] acerca de “linguagem e pensamento”, Borella toma, como pontortida, os dizeres provocativos de Condillac: “A ciência é apenas uma língua bem disposta”.rtamente, Borella não aceita a tese de que a ciência nada mais é que uma língua “bien faite”;tretanto, ele sustenta que “se pode considerar essa propriedade como o critério de cientificidientificité)”. Isso significa que a ciência − ao menos no sentido contemporâneo − caracterizar seu uso da linguagem: pela lógica, digamos, de sua expressão formal. Que é, então, queerencia o uso científico da linguagem do pré-científico?

Borella inicia sua análise distinguindo categoricamente entre “pensamento” e linguagem. Que ensamento”? Trata-se de um movimento mental na busca por um objeto, responde ele. Assim, nsamento se orienta inerentemente, por meio de um conceito, na direção de um referente objetqual este conceito Borella define, em termos escolásticos, como “a forma de um ato pelo qualendimento visa um objeto”. Logo, o conteúdo de nosso pensamento é sempre um objeto, muitbora pensemos esse objeto por meio de um conceito. Que é, então, a linguagem? Pode-seacterizá-la por sua função, que é auxiliar, expressar e comunicar o pensamento. Portanto, onsamento é que tem a primazia. Tendo distinguido, dessa maneira, entre pensamento e linguagrella procede à observação de que a questão de veracidade − de coerência e não contradição

ica-se a ambos, mas que os critérios de verdade apropriados a um e outro são enormementeerentes. No plano do pensamento, o importante é aquilo que Borella denomina “l’ouverture à

tre”, isto é, “a abertura ao ser”. O termo do pensamento − o cumprimento de sua tarefa − resique é seu referente objetivo; para o pensamento, o que contade jure é o próprio objeto

nscendente. E esse fato fundamental acarreta que os critérios correspondentes de veracidade erência são ontológicos e interiores: “Verum index sui”,[ 61 ] diz Espinoza. O caso da linguar outro lado, é o oposto exato: aí os critérios são inelutavelmente formais e exteriores. Queonhecimento medular! Afinal, como Borella observa em seguida: “Resulta daí um tipo de rel

versa entre a coerência da linguagem e a do pensamento. Com efeito, quanto mais o pensamenre para o ser, menos seguro da pertinência de seu discurso ele se sente e mais esse se lhe afigmo inadequado”. Essa intuição decisiva relembra a última proclamação didática de Sto. Tomihi ut palea videtur ” (“parece-me palha”), que aponta para além dos limites de sua doutrinaficial”.[ 62 ]

O que nos interessa aqui, entretanto, é algo mais específico: é conseqüência do princípiopracitado que aquilo que estamos habituados a chamar de “exatidão científica” tem de ser obt

m certo preço. E qual é esse preço? Trata-se precisamente daquilo que Borella denominachamento epistêmico do conceito”, o qual consiste na eliminação, em um conceito, de tudo a

e se revela recalcitrante à expressão lingüística ou formal − e que é “epistêmico” na medida e

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e caracteriza a natureza do pensamento científico. O que está em questão, aí, não é realmente udução do conceito à sua expressão linguística (a qual é impossível), e sim uma renúncia, da pcientista, a qualquer conhecimento que diga respeito à essência das coisas. Aquilo de que ontista abdica, por conta do fechamento epistêmico, é exatamente do tipo de conhecimento prófilósofo enquanto tal; pois, em verdade, o que o filósofo busca é uma revelação da essência

m encontro iluminador com o próprio ser do objeto”, nas palavras de Borella. Por outro ladouilo a que o filósofo renuncia, por sua vez − em função de uma espécie de “humildadepeculativa” −, é a todos os fechamentos imagináveis do conceito diante de seu objeto; parece

hitehead falava pela filosofia em si quando declarou que a “exatidão” era “uma farsa”. Guiadsde o começo por uma intuição suprarracional, a qual poderia bem ser chamada de senso despanto”, o filósofo usa os conceitos como meios para alcançar uma verdade supraconceitual c

m ato não discursivo de visão contemplativa. Como exprimiu Borella, magistralmente: “A filoamor à divina Sophia, isto é, à auto-revelação do próprio Princípio; ela é o desejo de

nhecimento pelo qual o Absoluto se conhece a si mesmo”. Essa é a concepção tradicional,têntica, de filosofia: algo muito distante, evidentemente, do que veio a ser hoje em dia a filosadêmica![ 63 ]

Voltando à ciência, podemos ver, à luz da análise de Borella, que há uma oposição inicial entncia no sentido contemporâneo e a filosofia propriamente dita. Não somente ambas as discipdem a fins distintos, como também o ato constitutivo da ciência − a saber, o fechamentostêmico do conceito − é antagônico à busca filosófica.[ 64 ] Agora temos de perguntar a nóssmos: qual exatamente é o fim da ciência, o objetivo que,de jure, conclui a sua busca? Emposta a essa questão, Borella defende que a ciência alcança seu termo precisamente no domí

agmático, ou seja, na forma de uma tecnologia: “Para cada ser vivo, há unicamente dois modorar de pensar: contemplar ou agir”.Ora, esses reconhecimentos incisivos principais, ainda que sucintos, bastam para caracterizar preitada científica em linhas mais gerais. O efeito genérico do fechamento epistêmico, percebeixar de fora a essência e, logo, o ser. E isso significa que a ciência é compelida a reduzir os

nômenos a “puras relações”, isto é, relações que são independentes dos seres que nelas particexemplo primário de Borella para essa redução advém da física de Galileu, na qual os corpois são substituídos pela ficção dos “pontos de massa”, entre os quais são dispostas as relaçõ

ntempladas pelo físico. Conforme explica Borella:

Há, portanto, uma identidade de natureza entre o conceito e seu objeto, uma vez que esse também é um conceito, ao passno conhecimento filosófico, o conceito é apenas um meio pelo qual se conhece o objeto: essencialmente transitivo, ele perma

assim ontologicamente aberto. O universo galileano é, portanto, um universo de conceitos-objeto que se movem em um espatempo imaginado. A geometrização do espaço acarreta o desaparecimento de toda distinção qualitativa.

A que propósito serve então essa concepção galileana − esse universo putativo? Seu fechamenstêmico torna filosoficamente inútil essa noção: o conceito galileano não se presta a um

nhecimento de essências, a um conhecimento do ser. Seu único uso possível − sua única funçãtível e legítima − diz respeito, por conseqüência, à esfera da ação, isto é, àquilo que, no jargntífico, denomina-se “predição e controle”. Logo, a física de Galileu se adéqua à concepçãoconiana de uma ciência, um modo de conhecer, se podemos chamá-lo assim, em que a verdadlidade “são, aqui, a mesma coisa”, segundo diz o próprio Bacon.

Deve-se notar que Borella não alega apresentar uma filosofia da ciência. Ele deixa claro que,

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obter uma doutrina filosófica desse porte, é necessário algo mais do que a simples noção dehamento epistêmico, a qual, conforme ele aponta, é descritiva e não explicativa: “Não bastahar um conceito para produzir ciência”. Deve-se notar também que Borella seria o último a nngenhosidade dos grandes fundadores − de Galileu a Einstein −, os quais, cada qual à sua prneira e por meio de um lance de criatividade, construíram um universo de conceitos-objeto d

orme valor científico. Eu poderia mencionar que Albert Einstein, por exemplo, tinha consciênfato de que essas concepções primárias constituem o que ele denominou “uma livre criação

pírito humano”,[ 65 ] conquanto não tenha reconhecido de todo as implicações filosóficas des

cursões” fundamentais no processo científico. A esse respeito, Borella fala de um “viés legíte um “ponto de vista” que determina o universo de conceitos-objeto em questão; porém, ele nra em uma discussão detalhada acerca desses assuntos. Mas ele não o precisa fazer: de um povista estritamente filosófico, ele exprimiu o que de fato era essencial.

Parece que o interesse primeiro de Borella não era a ciência em si, e sim a ciência em sua relam a filosofia. Ele se preocupa, sobretudo, em refutar um erro fatal: “Hoje supõe-se que a ciêna a única forma de conhecimento autêntico e que o papel da filosofia deva se limitar àterminação e descrição, tão precisas quanto possível, dos diferentes procedimentos que a ciê

oca em prática”. Assim, sua tarefa primeira é restaurar a própria idéia de filosofia e demonse há realmente uma “connaissance philosophique”. Feito isso, seu próximo passo é apontar −basamento autenticamente filosófico − que a ciência, em princípio, é incapaz de compreender

tureza de suas próprias descobertas, pela simples razão de que, do seu ponto de vista, ohamento epistêmico sobre o qual se baseia permanece invisível: “É somente de um ponto de

osófico que esse círculo se mostra um círculo, que o fechamento epistêmico se mostra umhamento”. É verdade, certamente, que todo conhecimento conceitual acarreta um certo fecham

peculativo; a questão, todavia, é que o filósofo tem muita consciência desse fato: “O filósofo e apenas se pode traçar um círculo epistêmico dentro de um campo especulativo mais amplo:de-se limitar apenas com referência a algo que seja ilimitado”. Conclui-se que o posto mais ahierarquia do conhecimento pertence necessariamente à metafísica, “dado que ela define o ca

peculativo mais geral possível”. O que interessa a Borella, em primeiro lugar, são as implicassa verdade decisiva principal. Segue-se disso, antes de mais nada, que a autonomia alardeadncias contemporâneas só pode ser espúria. Ensinaram-nos a crer que as ciências individuaisrso de suas evoluções, separaram-se progressivamente da filosofia e obtiveram autonomia; e rcialmente verdadeiro: uma emancipação com relação à filosofia − um rompimento de antigoos − de fato ocorreu. O problema, contudo, é que houve uma perda concomitante de conteúdo

gnitivo e uma confusão subseqüente. Como um modo de conhecer, em sentido estrito, a ciêncide ser autônoma; conforme observa Borella, a única autonomia que ela pode alcançar concernmínio pragmático. Conquanto isso possa parecer estranho, são as ciênciastradicionais − as qmos ensinados a enxergar como “superstições primitivas” − que realmente têm acesso aonhecimento autêntico, em virtude de sua ligação com a filosofia. “A diferença entre a ciência ileana e pós-galileana”, explica Borella, “é que, sob o antigo regime, as fronteiras dos diferemínios científicos, dentro do campo especulativo geral, não estavam inteiramente fechadas: ancias particulares permanecem abertas àquela ciência geral chamada filosofia, a qual é normque tange a elas”.

* * *

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Embora o próprio Borella não formule “une theorie de la science”, sua doutrina de fechamentstêmico fornece a base ideal para tal teoria. Proponho seguirmos agora esse curso, ao menosnto de tocarmos em questões pertinentes aos fundamentos da teoria quântica. Começarei pelaguinte observação: no que diz respeito às ciências naturais, o fechamento epistêmico,

cessariamente, sempre permanece incompleto, o que significa que uma discrepância entre onceito e sua expressão técnica está fadada a persistir. É somente no caso da matemática pura[ e a formalização do conceito − ou seja, seu fechamento epistêmico − pode realmente ser efetuão pela qual, no caso dessa ciência, “nunca sabemos do que estamos falando, nem se o que

amos é verdadeiro”, nas famosas palavras de Bertrand Russell. Já com relação a uma ciênciamo a física, precisamos evidentemente de saber “do que estamos falando”, ao menos em algumau, o que acarreta a incompletude do fechamento epistêmico. Talvez seja assim no que tange aóprios universos de conceitos-objeto; porém, em si mesmo, tal modelo não constitui ainda umncia física. Obviamente, requer-se um corpo teórico auxiliar para conectar o modelo matemácampo empírico no qual a empreitada científica recebe sua validação e na direção do qual eenta; e nesse domínio técnico auxiliar certamente não pode haver um fechamento epistêmicompleto. A física de Galileu, por exemplo, tomada em seu conjunto, estava longe de ser fecha

stemicamente; em verdade, a ligação entre o universo galileano de conceitos-objeto e omoduerandi empírico correspondente foi mal compreendida por longo tempo. Hoje está claro, à luatividade einsteiniana, que a célebre afirmação “ Eppur si muove”[ 67 ] não pode realmente sidada com razões estritamente científicas, ao contrário do que Galileu havia imaginado,oneamente.[ 68 ] Como aponta Eddington: “A teoria da relatividade fez a primeira tentativa sinsistir em lidar com os próprios fatos. Anteriormente, os cientistas professavam um profundpeito pelos ‘fatos exatos da observação’; entretanto, não lhes havia ocorrido verificar quais es fatos”.[ 69 ] Por certo, devemos depreender daí que esses ‘fatos exatos da observação’ nã

dependentes, mas se concebem em relação à teoria física; além do mais, o que é verdadeirame

xato” ou “rigoroso”, cientificamente falando, não são os próprios “fatos da observação”, masdus operandi pelo qual se conectam esses fatos ao universo de conceitos-objeto. Meu argum

davia, é que essa “exatidão” ou esse rigor jamais são absolutos, o que significa (novamente) qsse domínio técnico auxiliar, o fechamento epistêmico não pode ser completo. No tocante à fíquanto teoria total , o que percebemos são graus de fechamento epistêmico; e parece que a hisciência, de Galileu a Einstein e além, é marcada por etapas sucessivas que correspondem a n

ogressivamente mais altos de fechamento. Em sentido estrito, não existe uma “física matemátie existe, em vez disso, é uma física que está sempre em vias de se tornar cada vez mais

tematizada.Para onde isso leva? Como sugeri em outra parte, parece que agora essa evolução está entrandma nova fase, que é caracterizada por um grau excessivo de formalização e uma perda correlatnteúdo empírico.[ 70 ] Uma amostragem da literatura contemporânea presente nos periódicosica teórica revela uma abundância de “construções de universos”, em uma escala até então nuançada. Já argumentei que a física, um dia, talvez deixe de ser uma ciência natural e se torne nominei de “hiperfísica”, uma ciência (ou pseudociência, pode-se dizer) que terá perdido ontato com a realidade empírica. Ao dizer isso, tenho em mente sobretudo as diversas teorias dúltiplos universos” que hoje em dia parecem estar brotando qual cogumelos, ou coisas como ria das supercordas, com seu universo de “conceitos-objeto” de dez ou mais dimensões (que

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em se dobrar, de algum modo, no espaço-tempo quadridimensional da ciência empírica). Issoda é ciência, ou ela se tornou, inadvertidamente, em ficção científica? Um observador imparicilmente evitará a impressão de que, em um certo momento, o limite entre uma coisa e outra tivamente ultrapassado, como supôs Richard Feynman, por exemplo. Parece que, à medida qs aproximamos do limite de um fechamento epistêmico completo, a física se torna, não uma “tudo” − como gostam de pensar os físicos −, e sim uma “teoria de coisa nenhuma”.

O fechamento epistêmico, como Borella deixa claro, acarreta a eliminação das essências e,rtanto, das substâncias para fora do universo resultante. Entretanto, só em um estágiomparativamente tardio na evolução da ciência moderna é que os físicos começaram a reconheo de que as substâncias haviam desparecido misteriosamente do mundo. Eddington foi, quiçámeiro a notar essa “desessencialização”, quando declarou (em seuTarner Lectures, de 1938ue “o conceito de substância desapareceu da física fundamental” − uma alegação que nem Gam Newton e nem qualquer outro físico anterior a 1925 fizeram ou poderiam ter feito. Paradington, a ruína da substância está implicada em uma noção singular, a qual, aparentemente, erimeiro a conceber, ao defender que, em verdade, o universo físico não sedescobre, mas, emso, constrói-se pelo modus operandi da física: “A matemática”, ele nos diz, “não está lá até

nós a coloquemos”. Assim, o que distingue o universo de conceitos-objeto de Eddington dosversos galileano e newtoniano é que ele abole, em princípio, a separação categórica entre oodelo matemático e sua interpretação operacional: quando pensa na matemática, Eddington tamnsa, de maneira formal, os procedimentos que “lá a colocaram”. O universo de “conceitos-obginal, portanto, passa a ser visto não como um modelo ou uma descrição do universo real, ma

mplesmente como uma estrutura matemática definida em termos operacionais. Observemos tame, em um universo físico assim concebido, a idéia de “substância” de fato desaparece: essa fío resulta em um conhecimento putativo de objetos − de coisas ou substâncias −, mas em atosntrolados de mensuração e, logo, por meio de sua aplicação, em uma tecnologia. Eddington, pnseguinte, afirma ter levado a formalização da física ao limite; em outras palavras, ele afirmavolvido todo o corpo teórico em um círculo epistêmico pelo qual se define a física em si.Contudo, talvez Eddington tenha exagerado: nem tudo está bem. De acordo com sua análisepistemológica”, a construção em si − os procedimentos mesmos pelos quais a matemática éolocada lá” − não determina apenas as leis fundamentais da física, mas também as suas constao dimensionais. Por exemplo, Eddington − sem referência a dados empíricos − alega provar qnstante de estrutura fina é precisamente 1/137; mas, conforme as medições mais recentes, essanstante se revela ser aproximadamente 0.0072973531, número que difere do valor previsto p

dington em cerca de três centésimos de um por cento. Embora pequena, essa discrepância − sucionada −, não obstante, é fatal para a teoria de Eddington: parece que, em sua formalizaçãoica, algo deve ter sido deixado de fora. É força concluir que, após mais de quatro séculos deforços científicos, o fechamento epistêmico completo da física ainda não foi realizado.[ 72 ]sso nos traz a um importante reconhecimento: a ciência, em sua realidade concreta, não é − e de ser − estritamente “científica”. Se o fechamento epistêmico é de fato o critério decientificité” e se, com efeito, esse fechamento não pode ser consumado sem que se emascule apreitada científica, então segue-se disso que não pode haver, na prática, uma cientificidade t

absoluta. E, por conseqüência, se a face externa da ciência − por definição, digamos assim −lmente se conforma aos critérios de rigor científico, também deve haver uma face oculta, que

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az. A ciência também tem o seu “subconsciente”, o que significa que, efetivamente, ela não senfina de forma alguma ao “círculo epistêmico” dentro do qual se enquadra a teoria. E é assimveria ser; a empreitada científica também tem de compreender um componente “sombrio”, se demos chamar assim, o qual − como o ponto negro na parte branca do yin-yang  − desempenhapel legítimo e, com efeito, necessário na economia do pensamento científico: não poderia havatividade ou “lampejos de intuição” sem um acesso a um campo especulativo mais abrangental permanece incógnito de um ponto de vista científico, precisamente porque se localiza fora u círculo epistêmico. Porém, ainda que não se o reconheça, esse domínio “sombrio” constitui

reno fértil − repleto de suas formas imaginativas, seus phantasmata −, a partir do qual essasvres criações do espírito humano” são extraídas pelos cientistas de primeiro escalão.

Deve-se notar que, de certa maneira, isso é verdadeiro mesmo no caso da matemática pura: aímbém “a metade sombria do yin-yang ” tem um papel a desempenhar. Para ser mais preciso: ae, no caso da matemática, de fato um “perfeito rigor” se possa alcançar “no fim” (isto é, na prmpleta de um certo teorema), ele não pode ser constantemente sustentado durante o processo

ma descoberta matemática, seja de teoremas ou de provas. Refiro-me, é claro, ao trabalho notáKurt Gödel, conhecido especialmente por seu célebre Teorema da Incompletude, publicado e

31. O que os teoremas “metamatemáticos” de Gödel revelaram foi o fato de que, geralmente, possível provar as implicações de um dado sistema formal sem sair  desse sistema. Para apreeonteúdo do sistema A, digamos, necessita-se de um sistema formal B que seja mais abrangenim por diante. Em poucas palavras: a ciência matemática, tomada como um todo, não pode

eiramente formalizada. Mencionarei, de passagem, que esse reconhecimento absolutamentendamental tem implicações decisivas quanto à natureza da “mente” e sua relação com a funçãoural, assunto a que retornaremos no capítulo 5. O que nos interessa agora, contudo, é o fato deeorema de Gödel confirma o que havíamos dito anteriormente acerca dos limites da cientificinem mesmo a matemática pura pode ser “formalizada sem resíduos”, o que diremos da física

* * *

Há duas maneiras, em princípio, de conceber o universo de “conceitos-objeto” da física: podxergá-lo, evidentemente, como um universo de conceitos-objeto oureificá-lo e concebê-lo coal”. Por certo, o que diferencia esse segundo “universo” do primeiro é precisamente a atribusubstância − uma estipulação que, como já vimos, é ilegítima: a idéia de substância − um

nceito que não pode ser definido em termos científicos e não tem lugar no discurso científico o introduzida de forma espúria, “clandestinamente”, por assim dizer. Logo, sejamos claros apeito disso: a Weltanschauung  que se segue a essa atribuição − o que Whitehead denominalácia de concretude deslocada”[ 74 ] − não é verdadeiramente científica; com efeito, ela conrincípio mesmo de cientificidade. Como explica Borella, a idéia de essência − de ser ou de

bstância − não tem lugar dentro do círculo epistêmico ao qual se confina, por sua própria lógncia pós-galileana: assim como não pode haver substâncias, digamos, no plano euclidiano,

mbém não se as pode ter no universo de “conceitos-objeto” da física moderna. O universo físificado − noção que, nos dias de hoje, quase todos parecem aceitar como verdade científicaabelecida − revela-se, enfim, uma autocontradição, do mesmo nível que a noção de círculo

adrado.

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Ora, venho argumentando há muito tempo que os efeitos dessa concepção errônea fundamentalmanifestam apenas na psique individual do cientista, mas, igualmente, no que se pode chamarque coletiva da sociedade ocidental contemporânea. Como membros dessa sociedade,contramo-nos em um estranho impasse: por um lado, fomos condicionados a reificar o univerico e, por outro, continuamos a crer, como críamos anteriormente, no mundo “habitual”, esseverso familiar que acessamos por meio das percepções sensíveis. E, conquanto esses doisiversos ou mundos sejam, evidentemente, tão diferentes quanto o dia e a noite, somos impelidcilar entre os dois e, estranhamente, fazemos isso sem o menor escrúpulo ou senso de contrad

mo já afirmei mais de uma vez, a hegemonia da ciência nos precipitou em um estado dequizofrenia coletiva, do qual praticamente ninguém consegue se livrar: em um momento, a grarde e, no momento seguinte, não mais é; em uma hora, os corpos são sólidos e, na seguinte −ando mudamos nossos cérebros para o “modo científico” −, são “agregados de átomos”.arentamos estar comprometidos com duas cosmovisões contraditórias: com a primeira, em funossa adesão cultural ao ocidente contemporâneo e, com a outra, em virtude do fato de que so

manos. É seguro supor que quase todo mundo está afetado por isso em algum grau, geralmenteoporção direta à quantidade de educação que recebeu.

Que é, então, o “cientificismo”? − será que ele se reduz, simplesmente, à “falácia de concretudslocada” de Whitehead? Pode-se, é claro, definir “cientificismo” em função desse critério; denotar, contudo, que o termo tem também outras conotações legítimas. Por exemplo, ele podesignar, com razoabilidade, uma cosmovisão que se baseie na bifurcação cartesiana, a qual nãarreta necessariamente a reificação do universo físico. O próprio Eddington, com efeito, tinhaeltanschauung  bifurcada.[ 75 ] Eu diria, ademais, que a cosmovisão darwinista ou evolucion

si é cientificista, não importando se um evolucionista reifica o universo físico ou adota umastemologia bifurcada. Refiro-me especialmente a Whitehead, filósofo que invectivou contra ácia de concretude deslocada” e foi um pioneiro na crítica da bifurcação, mas cujo ensinameo obstante, era evolucionista até a medula, chegando mesmo a fornecer a inspiração que animologia do processo”, doutrina que estende o conceito de “evolução” ao próprio Deus! Há tamnaturalismo” − uma forma etiológica de cientificismo − e sua versão epistemológica, cuja epostentação de Bertrand Russell: “O que a ciência não pode nos dizer, a humanidade não pod

nhecer”. Sim, todas essas doutrinas cientificistas estão intimamente relacionadas e constituemrte da Weltanschauung  contemporânea; ainda assim, são logicamente distintas e precisam sertinguidas: é isso o que desejo enfatizar.

Voltando ao primeiro sentido de “cientificismo” − a saber, a reificação do universo físico −,

rguntemo-nos agora como essa cosmovisão autocontraditória pode se impor sobre uma grandrção da humanidade. Pode-se imaginar que a validade operacional da física − o fato de que “nciona” e dá lugar a uma tecnologia milagrosa − não nos deixa margem de escolha; porém, emo possa ser parcialmente verdadeiro para os desinformados, a coisa dificilmente é assim parntistas de primeiro escalão. A fim de reconhecer o que está em questão, em última instância,

mos de nos lembrar de que o homem não foi feito para brincar de jogos positivistas, mas paranhecer a verdade, para conhecer o ser . Para ele, é tão impossível renunciar o ser das coisas qrar de respirar; sua ânsia por ser  − e, com efeito, pelo próprio Ser, que é Deus! − é implacáveo pode ser definitivamente aplacada por nada que seja inferior. Assim, ocorre que, quando o cluído de sua mentalidade por um ato de fechamento epistêmico, o próprio cientista se sente

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mpelido a trazê-lo de volta, a reinstalá-lo, de algum modo, em seu universo. claro que é poviar a reificação do físico, segundo já observamos: mas somente ao preço de localizar o ser euma outra área. É seguro dizer que, para todos, exceto os mais sábios ou ultrassofisticados, aficação se dará no universo físico de “conceitos-objeto” e que os poucos que conseguirem esssa armadilha provavelmente tombarão diante de algum modo alternativo de cientificismo. Hm efeito, apenas um meio de remediar a ilusão cientificista: a filosofia autêntica. É necessárioxergar toda a cena − o círculo epistêmico mais o campo especulativo ilimitado dentro do quaculo se traça − a fim de não ser enganado. Portanto, no momento em que uma ciência perde c

m “a ciência geral chamada filosofia”, como a denomina Borella, nesse mesmo instante oscimento de uma ilusão está fadado a acontecer. Algo estranho e, com efeito, contraditório ància é introduzido inadvertida e clandestinamente e, daí em diante, oculta-se sob vestesntíficas: é assim que as ciências de tipo pós-galileano produzem o cientificismo. A sorte estáçada, com um ato radical de fechamento epistêmico que isola o indivíduo humano do ser 

rdadeiro ou, subjetivamente falando, do seu solo próprio e verdadeiro e do seu subconscienteuperior”.[ 76 ]Ora, afirmo que é esse cisma profundo e não constatado que subjaz à esquizofrenia coletiva à

s referimos previamente e que, de certo modo, “manifesta” o cisma supracitado. Separado deo autêntico, o homem contemporâneo se tornou profundamente desorientado, alienado das norenes. Assim, ele se tornou vulnerável ao encanto das pseudonormas e dos valores enganososais − como por compensação − a sociedade contemporânea dispõe em abundância. Seria um al supor que a ciência é neutra com relação a “valores” ou que seja isenta de ideologia, comoclara a sabedoria dos livros-texto: nada poderia estar mais longe da verdade. O fato é queo

óprio cientificismo constitui a ideologia da ciência, o seu lado cultural, que é, em algumadida, uma religião − ou, mais precisamente, uma contra-religião. Mas essas questões estão fo

copo de nossas preocupações imediatas e, ademais, já tratei delas em outra parte.[ 77 ]

* * *

Após essas reflexões bastante gerais, convém examinar mais de perto o universo de “conceitoeto” da física contemporânea. Sabemos que esse universo − o universo físico, propriamente

postamente se compõe de partículas quânticas; o que, então, pode-se dizer acerca da naturezassas partículas? Será que de fato não passam de “conceitos-objeto”? Ou será talvez possívelncebê-las como entidades reais de alguma espécie?Deve-se notar, em primeiro lugar, que essas partículas quânticas e seus agregados se represen

função de um formalismo matemático: por exemplo, por um vetor de estado em um espaço dlbert. Bem, a interpretação costumeira ou oficial dessas representações formais é operacionae significa que a matemática é interpretada, em última instância, com base em um procedimenpírico. O significado de uma fórmula matemática, portanto, reduz-se enfim a uma afirmaçãoeracional, ou seja, a uma afirmação da forma: “Se fizeres A, B será o resultado”, onde B ésicamente o resultado de uma mensuração. Essa é a tarefa que o físico experimental estácarregado de cumprir: sua função é traduzir as “afirmações” matemáticas do teórico em termoeracionais e colocá-las à prova.

Mas ainda resta a dúvida: a definição operacional dá conta de todo o assunto? Pressentimos q

ma partícula quântica, em verdade, deve ser mais do que um merco conceito ou ens rationis ou

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bjeto mental” − em outras palavras, que deve possuir certa realidade objetiva: não fosse assimo, então, poderia afetar nossos instrumentos de detecção e mensuração? Ora, é verdade queestão não é significativa cientificamente: não é o que um cientista, qua cientista, perguntaria −

mpouco daria resposta a essa questão. Para sermos precisos, a condição de fechamento epistêe é o princípio mesmo da cientificidade, proíbe o cientista de levantar essa pergunta. Conformonta Eddington:

Veio a ser prática aceita, na introdução de novas quantidades físicas, que elas sejam vistas como definidas pela série deoperações e cálculos de mensuração dos quais são o resultado. Aqueles que associam a esse resultado uma imagem mental

alguma entidade que se entretém em um domínio metafísico da existência o fazem por seu próprio risco; a física não pode aresponsabilidade por esses embelezamentos.[ 78 ]

Gostemos ou não, a idéia de substância, de ser substantivo, foi de fato excluída pelos critériosntificidade. Mas, conquanto os cientistas aceitem em teoria a noção de cientificidade, poucoses são capazes de arcar, na prática, com essa condição. Parece que, mesmo entre os

openhagenistas” mais dedicados, talvez não haja um só que aceite, inteira e coerentemente, oseres de Niels Bohr, quando ele declarou que: “Não há um mundo quântico; há somente uma

scrição quântica”. E com justiça. A intuição de que uma simples “descrição quântica” não poplicar a presença de rastros em uma câmara de bolhas, ou a posição do ponteiro em uma balaquestionavelmente sã. Por outro lado, o que não está tão claro é se é possível fazer melhor, isber mais do que revela uma compreensão meramente operacional da teoria quântica. Por queios, em particular, adquire-se conhecimento de uma partícula quântica enquanto “uma entidadentretém em um domínio metafísico da existência”? E, após fazer isso, como se pode validar erpretação, visto que a própria física “não pode aceitar a responsabilidade por essesbelezamentos”? Afirmo que se podem fazer as duas coisas de um só golpe, lançando mão daqe Borella denomina “a ciência geral chamada filosofia”. Por certo, não pode haver dúvidas cação ao “rigor” no que tange a essa interpretação, o que significa que “a ciência geral chama

osofia” não está condicionada à cientificidade. E é precisamente isto o que desejo enfatizar: ooblema em questão não pode ser solucionado “dentro do círculo epistêmico” em que a ciêncinfinada. O que pode e deve substituir o “rigor”, no sentido científico, é um ato contemplativo ão, quer dizer, um ato autenticamente intelectivo, em oposição a um ato meramente discursivntal.[ 79 ]

Necessitamos de nos perguntar que tipo de “entidade” uma partícula quântica poderia ser. Aestão pode ser expressa da seguinte maneira: que coisa é que realmente medimos ou constatamr meio de nossos instrumentos? Ora, a própria teoria quântica afirma que, em verdade, observ

obabilidades.[ 80 ] Não se tratam de coisas coisas, portanto − como ondas, por exemplo, ourtículas −, mas de algo que se representa matematicamente por distribuição de probabilidadero, as probabilidades se definem em termos estatísticos. Essa idéia é simples. A probabilida

ar “cara” ao lançar uma moeda é de 1/2, o que significa que, se lançarmos a moedan vezes pompo n suficientemente longo, tiraremos “cara” em quase 50% do tempo; ou, para falar com maecisão: o desvio desse valor tenderá à zero na medida em quen tenda ao infinito. A questão ce nos deparamos, então, é: como uma probabilidade assim definida pode ser concebida comoidade em um domínio metafísico da existência”? − e, como aponta Eddington, esse é um probe a própria física não é capaz de resolver. Contudo, seja respondível ou não, essa pergunta se

põe inelutavelmente, uma vez que, no cômputo final, aquilo com que a física lida − aquilo que

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cula matematicamente e mede por meio de seu modus operandi empírico − são, com efeito,obabilidades.Como, então, podem-se conceber as probabilidades de forma realista? Parece que Heisenbergocou na trilha certa quando observou que a função de ondas de Schrödinger, interpretada, à lrn, como ondas de probabilidade, constitui “uma versão quantitativa do velho conceito de

otentia’ da filosofia aristotélica”.[ 81 ] Filosoficamente falando, uma probabilidade é, portanma potentia: uma “potência”, em oposição a um “ato”. Com efeito, trata-se de uma potentia emntidos da palavra latina: em primeiro lugar, algo que é “potencial”, que está à espera, digamoim, de ser atualizado e que, por conseguinte, poderia ser caracterizado como uma merassibilidade; mas, em segundo lugar, uma potentia no sentido de uma certa capacidade ou podançar a efetivação à qual esse algo está destinado. A probabilidade de tirar “cara”, por exemfetivada quando se lança a moeda cem ou mil vezes, a qual é indicativa do que podemos chamtendência: a tendência que uma moeda normal tem de dar “cara” em 50% do tempo. Percebe-

m isso que, enquanto potentiae, as probabilidades são reais de fato − ou, melhor dizendo, pod

r reais. Elas existem, se podemos usar essa palavra, em relação com o mundo corpóreo,[ 82 ]im como existem distâncias ou durações temporais. É crucial observar que estamos falando,

termos ontológicos e não operacionais, o que significa que a concepção das probabilidades tentiae não se reduz à sua definição operacional, exatamente como o conceito geral de distânr exemplo, não se reduz a um procedimento pelo qual as distâncias podem ser medidas. De umnto de vista filosófico, o conceito de uma quantidade real precede logicamente omodus opera

sua mensuração.Nota-se que, além de seu significado operacional, o formalismo matemático da física tambémma significância ontológica. Em verdade, se o simbolismo matemático, na sua totalidade, não

plicasse um referente objetivo de alguma espécie, ele não poderia ter também um significadoagmático; no final das contas, a verdade e a utilidade não são “aqui, a mesma coisa”, como Bvia declarado. O que desejo enfatizar é que a verdade vem em primeiro lugar: ela tem primazação à utilidade, assim como a causa tem primazia em relação ao efeito. A descrição quânticve, portanto, ter um referente objetivo, muito embora esse referente se encontre necessariamena do universo de “conceitos-objeto” da física, ou seja, conquanto transcenda o próprio univeico.

* * *

Entretanto, não são somente as partículas quânticas putativas − isto é, suas distribuições de

obabilidade − que se revelam ontologicamente significativas, mas também outras facetas domalismo quântico. O exemplo mais esclarecedor a esse respeito é certamente o que a físicanomina “colapso de vetor de estado”, que é algo que ocorre no momento da mensuração. Eis ontece. Um sistema que seja composto, digamos, de uma partícula quântica mais um instrumennsuração evolui − o que é normal − de acordo com a equação de Schrödinger, até que a partílando novamente em modo figurativo) entre no espaço de mensuração e sua presença seja ateo estado resultante do instrumento. Ora, nesse momento − sem nenhuma razão física − a trajetSchrödinger é violada, ou, como os físicos gostam de dizer, reinicializada.[ 83 ] Qual é a cau

ssa descontinuidade? Ela se origina, afirmo, do fato de que o instrumento, por razão de ser 

rceptível, é necessariamente corpóreo.[ 84 ] Pense nisto: no ato de mensuração, uma partícula

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ica é incorporada em um instrumento corpóreo! O que isso acarreta? Isso implica, digo eu, qurtícula não é mais física: incorporada assim, ela deixa de ser uma mera partícula quântica e sna um componente real de uma entidade corpórea. Como tal, ademais, a partícula putativa nãstência separadamente do instrumento, o que significa, em termos escolásticos, que ela particsua forma substancial.[ 85 ] Agora, tudo isso transcende, certamente, a mentalidade do físicoal continua − após a incorporação supracitada − a ver a partícula quântica em questão

mplesmente como uma partícula quântica e o instrumento apenas como um sistema físico. Conda assim, a “transformação” da qual falamos aparece em seus gráficos: ela se manifesta

ecisamente na descontinuidade supramencionada, à qual se chama de “colapso de vetor de esr conseguinte, o sentido, a significância do colapso de vetor de estado se revela serontológic

to de forma simples, essa “descontinuidade inexplicável” indica uma transição do domínio fíra o corpóreo. Precisamos compreender, todavia, que o que “corporifica” assim a partícula éito alheio às nossas noções costumeiras; para exprimi-lo em termos escolásticos: trata-se

ecisamente do ato de uma forma substancial .[ 86 ]Com isso, tornou-se aparente que a física, à sua própria maneira, fala acerca do mundo real −ntanto que sejamos capazes de ouvir, de compreender. Seria absurdo sugerir, é claro, que a te

ântica acarreta uma ontologia completa; apesar disso, a teoria aponta para além do domínio fra o domínio corporal, que entra em cena em virtude do fato de que os instrumentos de detecçnsuração são necessariamente perceptíveis. Mas, ao fazer isso − no ato mesmo de “apontar pm do físico” −, a teoria quântica nos fornece a chave da compreensão ontológica do própriomínio físico. O fato crucial é que o universo físico se mostra inerentemente transitivo: como aobabilidades às quais, no frigir dos ovos, parece se reduzir, ele aponta para algo além de si, ra algo que não é físico. Inerentemente privado de substância, o físico deve se referir, com efm plano em que existam substâncias. Pode-se dizer que o domínio físico, em si, tem a naturez

m signo − que, em verdade, ele é uma entidade semântica, que se dirige, em virtude de suaemanticidade”, na direção do domínio corpóreo. A física de fato é a ciência da mensuração, crd Kelvin reconheceu há muito tempo, e conseqüentemente é no ato de mensuração que essancia revela sua natureza. Para ser preciso: o físico, enquanto tal, revela sua natureza no ato

nsuração. Assim como uma probabilidade habitual se mostra no lançamento de uma moeda oar de um dado − e, portanto, em um ato que não é uma probabilidade −, também o físico se reum ato não físico.

Um fato curioso emerge dessas reflexões: tendo excluído o conceito de mundo corpóreo de sento de vista, em nome do fechamento epistêmico, o físico, nesse mesmo instante, fecha a porta

m entendimento do universo físico em si. Já dissemos que a física fala do mundo real: contudogédia é que o físico, dentre todas as pessoas, é incapaz de ouvir, incapaz de escutar o que aópria física tem a dizer! Reduzida a seu sentido técnico ou “científico”, a física se tornavariavelmente “incompreensível ontologicamente”; e essa é a razão, afinal, por que se fala emtranheza quântica” ou em um “paradoxo quântico”. É por essa razão que Richard Feynman

servou que “ninguém entende a mecânica quântica” e Whitehead se lamentava de que a física tornado em “um tipo de cântico místico em louvor a um universo ininteligível”. O que buscofatizar é que o critério mesmo de cientificidade que impulsiona o físico contemporâneo a prata arte o previne de compreender sua verdadeira significância. Essa, certamente, é uma condiçificial: algo deu terrivelmente errado. Nenhum impasse similar, ademais, ocorre no caso do

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ntista tradicional, o qual se mantém aberto ao ser, aberto ao mistério cósmico da existência, nifica que qualquer fechamento que aconteça, no plano conceitual, na formação de uma ciêncdicional é meramente instrumental, nunca absoluto. Com o advento da ciência moderna, por o

do, a coisa mudou radicalmente de figura: o próprio conceito se tornou o objeto, o que quer de uma inversão cognitiva − uma verdadeira “metanoia” em reverso − teve lugar, a qual, comito, aniquilou a possibilidade mesma do conhecimento autêntico. Somente um estranho tipo d

miconhecimento é alcançável sob tais auspícios: um conhecimento inelutavelmente perturbadosões, um falso conhecimento que aliena o conhecedor da realidade.

Percebe-se, em conclusão, que a noção de “fechamento epistêmico” do Professor Borella se mfato decisiva − que, em verdade, ela fornece a chave para a compreensão filosófica da ciêncderna: a compreensão de sua natureza, de seu escopo e de suas implicações para o indivíduomano e para a sociedade.

57 ] Grande parte desse estudo foi publicada nos seguintes livros: Jean Borella, Histoire et théorie du symbole, L’Age d’Hom4; La crise du symbolisme religieux, L’Age d’Homme, 1990 e Penser l’analogie, Ad Solem, 2000.58 ] Jean Borella, La charité profanée, Editions du Cèdre, 1979, p. 32.59 ] Jean Borella, Symbolisme et réalité, Ad Solem, 1997, citado a partir de uma tradução não publicada de G. John Champou

60 ] Jean Borella, Histoire et théorie du symbole, op. cit ., cap. IV, art. I.61 ] “O verdadeiro é indicativo de si mesmo”, em latim – NT.62 ] Pode-se acrescentar que essa “proclamação didática”, infelizmente, parece ter sido completamente ignorada, no mais dass discípulos mais recentes do Santo.63 ] Retornaremos a essa questão no capítulo 8.64 ] Deve-se acrescentar que o filósofo, à sua própria maneira, é capaz de cometer um ato de fechamento epistêmico sem deium filósofo: “O superior é capaz do inferior”, como Borella gosta de dizer. Se não fosse assim, não poderia haver nenhumndimento filosófico genuíno acerca da ciência enquanto tal.65 ] Albert Einstein, The Evolution of Physics, Simon and Schuster, NY, 1954, p. 33.66 ] Inclusive da lógica formal, a começar pela teoria metamatemática de Russell e de Whitehead.67 ] Réplica famosa de Galileu ao afirmar o movimento da Terra ao redor do Sol [“Contudo, ela se move”, em italiano – NT].68 ] Encarei essa questão detidamente em Wolfgang Smith, The Wisdom of Ancient Cosmology, Oakton, VA: Foundation foditional Studies, Oakton, VA, 2003, cap. 8.69 ] Arthur Stanley Eddington, The Philosophy of Physical Science, Cambridge University Press, 1949, p. 32.70 ] Wolfgang Smith, The Wisdom of Ancient Cosmology, op. cit ., p. 211-215.71 ] Tarner Lectures é nome de uma série de preleções sobre filosofia da ciência realizada, desde 1916, no Trinity College, em

mbridge.72 ] Isso certamente não implica que a teoria de Eddington deve ser abandonada in toto; significa, em vez disso, que a teoria dmodificada ou apurada de algum modo. A esse respeito, devo apontar que um físico americano chamado Roy Frieden foi bem-edido, aparentemente, em deduzir as leis fundamentais da física a partir de uma análise teórico-informacional do processo densuração ( Physics from Fisher Information, Cambridge University Press, 1995). Ele faz isso, no entanto, com o auxílio de umcípio variacional que, em si mesmo, não se funda em razões epistemológicas, à la Eddington.73 ] Pode parecer que a analogia não se explica desta forma, pois a matemática lida com números abstratos, já a física, com

idades que não conseguimos ver por trás dos fenômenos. Como é preciso conceitualizar essas realidades invisíveis, a matemáta-se útil para tal cálculo, mas Gödel parece estar falando de sistemas formais que só se referem aos números, não às realidadsíveis do mundo. Portanto, o paralelo com a incompletude talvez faria mais sentido citando-se Heisenberg ou Bohr – NC.74 ] A. N. Whitehead, Science and the Modern World , Macmillan, New York, 1967, p. 51-55.75 ] Wolfgang Smith, The Wisdom of Ancient Cosmology, op. cit ., cap. 3.76 ] Isso não significa que o cientista não utilize esse “subconsciente” no exercício de suas funções científicas; como notamosriormente, ele decerto faz uso desse subconsciente. Desejo enfatizar, no entanto, que, em nome do fechamento epistêmico, nemplicitamente a existência e a função legítima dessa faculdade.77 ] Ver especialmente: Wolfgang Smith, Cosmos and Transcendence, Angelico Press/Sophia Perennis, Tacoma: WA, 2012-166.78 ] Op. cit., p. 71.

79 ] Devemos observar que, se o homem fosse mesmo aquele tipo de criatura que os darwinistas o imaginam ser, não poderiaato: sob tais auspícios, não poderia haver intelecto propriamente dito. A bem da verdade, também não poderiam existir mente

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m, incidentemente, nem darwinistas.80 ] Ver: Wolfgang Smith, The Wisdom of Ancient Cosmology, op. cit . p. 63-67.81 ] Werner Heisenberg, Physics and Philosphy, op. cit. p. 41.82 ] Devemos lembrar que, por “objeto corpóreo”, entendo uma coisa que pode ser conhecida por meio de percepção sensorianitiva, ao passo que uma “entidade física” é algo que pode ser conhecido pelo modus operandi da física. Como pode ter ciêncitor, a distinção entre o mundo corpóreo e o universo físico tem sido fundamental para a minha cosmovisão há muito tempo e sela crucial para a interpretação da teoria quântica, conforme argumentei em O enigma quântico, op cit.

83 ] O processo de mensuração pode ser descrito na linguagem das probabilidades, caso em que se concebe o evento decisivocorporação, não de uma partícula, mas de “informação”, no sentido técnico. Ver Roy Frieden,  Physics from Fisher Informati

p. 63-111.84 ] Cf. Wolfgang Smith, Cosmos and Transcendence, op. cit., p. 141-166.85 ] Para fins de simplicidade, suprimo aqui a distinção metafísica entre “substâncias” e “misturas”, a qual não muda a situaçã86 ] Tratei detidamente dessa questão em O enigma quântico, op. cit .

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4O ENIGMA DA PERCEPÇÃO VISUAL

por um lado a percepção visual se mostra excepcionalmente recalcitrante ao escrutínio cientíucos assuntos se revelam tão esclarecedores, não obstante, quando pesquisados com suficienofundidade e sem o obstáculo de premissas falaciosas. Uma vez que a visão é o sentido superrimeiro meio de acesso ao mundo externo, todo o conhecimento humano − mesmo o maisntífico − tem por fulcro esse ato cognitivo; logo, não espanta que ele não ceda prontamente a

crutínio! Por certo, a investigação científica acerca da percepção visual já estava bemcaminhada quando Hermann von Helmholtz publicou os muitos volumes de seu famoso Handb

r physiologischen Optik , entre 1855 e 1866; e é desnecessário acrescentar que, durante os 15os seguintes, a literatura científica concernente a esse domínio cresceu exponencialmente.emais, algumas disciplinas novas e formidáveis entraram em cena, especialmente a

urofisiologia, a ciência da computação e a teoria da inteligência artificial; há, no entanto, razãra perguntar se mesmo a aplicação desses meios sofisticados nos aproximou um pouco seque

ma compreensão do ato perceptivo: de como de fato “enxergamos”.Não é minha intenção, no presente capítulo, mergulhar na história das ciências cognitivas que m a percepção visual; meu objetivo, em vez disso, é relatar e comentar a mudança radical deradigma que se propôs durante a última metade do século XX. O que despertou meu interessea nova abordagem à percepção não foi apenas a solidez de sua base empírica, mas também oque a teoria resultante se revela incuravelmente contrária à bifurcação e, conseqüentemente,osta à cosmovisão cartesiana. Como alguns leitores podem imaginar, refiro-me à teoriacológica” da percepção visual proposta pelo falecido James J. Gibson, um psicólogo da Corn

iversity que dedicou meio século ao estudo desse assunto. Contudo, seria equivocado caractea teoria como uma “descoberta revolucionária na psicologia da percepção”; ela deve ser visvez disso, como um novo começo, o qual rejeita de início, por considerá-la quimérica, a pre

ntral sobre a qual várias abordagens “não ecológicas” se baseiam.Pode ser bom recordar, para fins de introdução, que Gibson começou a formular sua teoria duécada de 1940, quando estava envolvido em uma pesquisa relativa à criação de testes quederiam verificar a habilidade de um candidato a piloto em pilotar um avião e, em particular, usá-lo visualmente, sem colisões. Assim, fez-se necessário compreender o modo como sercebem certos parâmetros, tais como o “ponto focal” de uma tentativa de aterrissagem. Na me

que, segundo a sabedoria convencional, a percepção visual advinha da imagem retiniana, erural definir o ponto focal em função do movimento retiniano e dos gradientes da velocidadeínica; ocorre, todavia, que não se pode fazer isso: “Tal relato”, Gibson nos informa, “não ponado exato e leva à contradição” (182).[ 87 ] São descobertas como essa que enfim levarambson a abandonar o postulado de que a percepção visual se baseia em imagens; e assim comea procura pela base real, qualquer que ela fosse. Com o tempo, Gibson concluiu que a perceporigina de uma estrutura, até então desconhecida, inerente à luz ambiente: e essa é a descobere inaugura a chamada abordagem “ecológica” da percepção visual. Em função dessa nova ba

bson foi capaz de resolver numerosos problemas que, até o momento, haviam se mostradoalcitrantes, a começar pela charada do ponto focal: “Acaba que o ponto focal de qualquer 

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omoção é o centro do fluxo centrífugo do arranjo ótico ambiente. O objeto ou a marca no chãiverem especificados naquele ponto nulo será o objeto ou a marca dos quais se está aproximse é um relato preciso” (182). Ocorre que a informação que nos possibilita perceber objetos,ontecimentos e movimentos não é dada por uma imagem visual estipulada − seja ela retinianaebral ou mental −, e sim, objetivamente, pelo que Gibson chama de “arranjo ótico ambiente”encontra, assim, dentro da mente, mas fora dela, no mundo externo. Essa, em suma, é a descoídica à qual Gibson foi conduzido, no começo de sua carreira, pela tarefa mundana de seleciouros pilotos; pode-se dizer, em retrospecto, que uma compreensão radicalmente nova da

rcepção visual estava oculta nesse começo despretensioso.nevitavelmente, junto com a noção de “imagem visual”, muitos outros ensinamentos básicos dcologia cognitiva se revelam ser igualmente insustentáveis; por exemplo, a teoria convencionrcepção de profundidade. Havia se suposto que a percepção de profundidade resultasse daposição de uma terceira dimensão sobre um campo visual plano, tarefa que supostamente eramprida pela utilização de “recursos”. Agora sabemos, porém, que o próprio arranjo ótico ampecifica as superfícies, as texturas e a disposição do ambiente, o que significa que a terceiramensão, com efeito, não é construída ou, de algum modo, deduzida de uma imagem plana, e si

rcebida diretamente: a percepção de profundidade, descobrimos, não é realmente um processas etapas, como a psicologia da imagem visual fora forçada a supor. Mas esse reconhecimentarreta um outro, que é o mais surpreendente de todos: uma vez que a imagem retiniana podeoduzir no máximo uma visão bidimensional, somos levados a concluir que a percepção visuabaseia verdadeiramente em estímulos retinianos. O fato é que uma teoria da percepção de

ofundidade com um só estágio nega as próprias bases da abordagem científica convencional àrcepção visual! O que a estimulação das superfícies receptoras produz são sensações

opriamente ditas; ocorre, contudo, que a percepção não é baseada em sensações. Essas têm, éro, um papel a desempenhar no processo integral de percepção; entretanto, elas não são aquiercebido diretamente.

Essa descoberta revolucionária livra os cientistas cognitivos, de uma só tacada, daquele mesmoblema que eles haviam trabalhado arduamente para resolver, que é compreender como seoduzem os perceptos a partir das sensações. Até agora, essa tarefa intimidadora se havia impolutavelmente, o que significa que as teorias da percepção baseadas nas sensações são

cessariamente construtivistas: exige-se evidentemente um processo de algum tipo para suprir,percepto, tudo aquilo que falta na imagem visual, começando pela dimensão de profundidade.mo explica Gibson: “Eles postulam atividades para complementar sensações, para corrigi-la

ra interpretá-las, para organizá-las, para fundi-las a memórias, para combiná-las a conceitos,por-lhes uma lógica ou para construir, a partir delas, um modelo do mundo (essa lista poderiaosseguir indefinidamente)”.[ 88 ] Os periódicos de ciência cognitiva estão transbordando comtos desses trabalhos prodigiosos; no entanto, do ponto de vista de Gibson, esses trabalhos sãtativas de resolver um problema que, na realidade, não existe. O que se percebe, conforme eria, não são construtos ou representações sobrepostos a uma imagem visual, mas simplesmenetos e acontecimentos externos que estão especificados no arranjo ótico ambiente. Convém a

aminar essa afirmação mais de perto.

* * *

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É em The Ecological Approach to Visual Perception, publicado pela primeira vez em 1978, qbson expõe sua doutrina em forma definitiva. Ele começa com a observação decisiva de que ica, a ótica, a anatomia e a fisiologia descrevem fatos, mas não no nível apropriado para o espercepção” (xiii). Rejeitando as formas vigentes de reducionismo, Gibson chega a umonhecimento de “níveis”, uma idéia consonante com a concepção tradicional de hierarquiatológica. Parece, entretanto, que Gibson não obteve uma visão hierárquica da realidade com metafísica; empirista obstinado, ele foi levado a reconhecer que, há muito, certas premissasundadas estavam desvirtuando as ciências cognitivas. Como Einstein, Heisenberg e outros

oneiros da ciência do século XX, ele sentia que sua disciplina tinha de ser purgada das hipóteotivadas e contraproducentes, e foi em um espírito de “retorno aos fatos” que Gibson finalmeançou suas conclusões surpreendentes.

A primeira coisa que precisava ser feita era criar concepções adequadas acerca do mundorcebido, “no nível apropriado para o estudo da percepção”. A nova futura ciência exigia um jnico próprio, uma terminologia despida das conotações reducionistas vigentes. Para sua noçmária, Gibson escolheu o termo “ambiente”, referindo-se ao mundo perceptível ; e, desde oncípio, reconheceu que “esse não é o mundo da física” (2). Surge a questão, é claro, de como

undo da física” está relacionado ao ambiente, ao “mundo que percebemos”; como se poderiaperar, esse é um problema que Gibson não examina em detalhes. Mas ele passa ocasionalmene mundo − por exemplo, quando faz o seguinte comentário:

Diversos tipos de instrumentos foram criados para mediar a apreensão. Alguns instrumentos óticos simplesmente ressaltainformações que a visão está pronta para colher; outros − por exemplo, o espectroscópio − demandam alguma inferência; e aoutros, como a câmara de nuvens de Wilson, requerem uma cadeia complexa de inferências. [...] O conhecimento indireto ddimensões métricas do mundo está no extremo oposto da percepção direta das dimensões de affordance[ 89 ] do ambienteobstante, ambos são feitos do mesmo tecido (260).

A despeito do que “são feitos do mesmo tecido” venha a significar nesse contexto, ao distingu

tre as “dimensões métricas” que interessam à física e a “dimensão de affordance” pertinente ària ecológica, Gibson deseja afirmar uma visão não reducionista do ambiente. Está claro queeita, de início, o postulado cartesiano da bifurcação: o que percebemos − o que de fatoreendemos pela percepção visual − não está dentro da mente, mas fora dela, noção que, por snco realismo, chocou praticamente a todos e escandalizou a maior parte de seus pares. Todave poderia ser mais empírico, mais verdadeiramente científico? Notarei, de passagem, que ancepção de Gibson relativa ao ambiente equivale ao que me refiro como mundo corpóreo, o qnifica que nossas respectivas doutrinas são, em verdade, compatíveis.

Uma vez estabelecida sua definição de “ambiente”, Gibson passa a uma especificação das divmárias desse domínio nos termos “ecológicos” adequados; e acho significativo que, ao fazê-retoma os “elementos” da cosmologia tradicional: “Comecemos”, escreve ele, “pela observ

que nosso planeta se compõe sobretudo de terra, água e ar − um sólido, um líquido e um gás”m base nessas distinções primárias, procede à definição das principais noções de sua teoria;

perfície, por exemplo, é uma interface entre dois elementos, começando com a interface entreópria Terra e o ar, que Gibson chama de “chão”. E podemos acrescentar que, conquanto ele nncione o quarto elemento tradicional (a saber, o “fogo”) pelo nome, esse elemento também encena de maneira muito essencial: pois supomos que esse último se refira à radiação e,

nseqüentemente, à luz, que decerto é o elemento exato que possibilita a ocorrência de percep

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ual.Após a definição de “superfície” e “chão”, Gibson define o conceito ecológico de “ substância

al ele especifica como “matéria em estado sólido ou semi-sólido”. Como se poderia esperar,bstâncias se caracterizam ecologicamente por propriedades como dureza, viscosidade, coesãonsidade, plasticidade e similares, todas as quais dizem respeito às superfícies: “Na superfície Gibson, “é onde a maior parte das ações ocorrem”. Além das substâncias e superfícies, há

mbém os meios, que são relativamente insubstanciais e se caracterizam pelo fato de quessibilitam a locomoção. Para o homem e os animais terrestres, o ar constitui seu único meio, nifica que a água se classifica como substância. Pode-se notar que, na teoria ecológica de Gi

meio ocupa o lugar do espaço e é dotado de um eixo vertical, definido pela atração gravitaciois um eixo leste-oeste,[ 90 ] especificado pelo nascer e pelo ocaso do sol: “Esse fato”, apontbson, “revela outra diferença entre meio e espaço, pois, no espaço, os três eixos de referêncibitrários e podem ser escolhidos conforme se deseje” (8). Conjuntamente a um quadro deerência absoluto, a teoria ecológica considera igualmente que o movimento e o repouso sãosolutos: “O ambiente é simplesmente aquilo com relação a que ocorrem a locomoção ou o estrepouso, e o problema da relatividade não se coloca” (75). Começamos a ver que, em muito

pectos, o universo ecológico se mostra verdadeiramentearistotélico.As informações nas quais se baseiam as percepções visuais, segundo afirma Gibson, são dada

a luz ambiente; para reconhecer e investigar as estruturas relevantes, contudo, é necessária uca ecológica, que difere significativamente da ótica física. A diferença advém, em primeiro lfato de que a ótica ecológica se ocupa da luz “ambiente”, enquanto distinta da luz radiante: “

diante diverge a partir de uma fonte de energia; a luz ambiente converge para um ponto deservação. [...] Luz radiante é energia; luz ambiente pode ser informação [...]” (51). Ela pode sormação exatamente porque é condicionada pelo ambiente: “Somente porque a luz ambiente éruturada pelo ambiente substantivo é que ela pode contar informação acerca desse” (86). O qcessário para a percepção visual são estruturas relativas à luz ambiente que especifiquem poraspectos do ambiente substantivo; e é disso que trata a ótica ecológica. O que está em questã

ma seqüência embutida de ângulos sólidos cujo vértice reside no ponto de observação; e, combson nos informa, essa idéia pode ser rastreada até os “cones visuais” de Euclides e asrâmides” de Ptolomeu, nos quais se baseava, aparentemente, a ciência da percepção visual q

egos por ventura possuíram. Com o tempo, a ótica dos ângulos sólidos visuais foi substituída ma ótica geométrica baseada em raios, a qual de fato pode explicar coisas como a operação demera, mas, a despeito disso, revela-se inadequada para o estudo de como percebemos. Ocorr

ma ótica baseada em correspondências ponto a ponto não se encontra “no nível apropriado parudo da percepção”, mas constitui aquilo que Gibson denomina uma ótica física, em oposição

ma ótica ecológica. Com a ascensão da primeira nos tempos modernos, conseqüentemente asruturas da luz ambiente que possibilitam a percepção visual caíram no esquecimento ermaneceram insuspeitas até a segunda metade do século XX, quando a descoberta da “óticaológica” por Gibson as colocou novamente em cena.Precisamos compreender claramente que o paradigma da câmera não nos leva muito adiante nudo da percepção; como explica Gibson:

As informações necessárias para a percepção de um objeto não estão em sua imagem. As informações presentes na luz, especificação de algo, não têm de se assemelhar ao objeto, nem copiá-lo e nem ser um simulacro ou mesmo uma projeção e

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mesmo. Nada do que está na luz é copiado no olho do observador − nem a forma da coisa, nem sua superfície, nem sua subnem sua cor e, decerto, nem seu movimento.[ 91 ] Porém, todas essas coisas estão especificadas na luz (304).

Toda a gama de informações requeridas para a percepção visual do ambiente está dada em umrarquia de ângulos sólidos embutidos, localizada no ponto de observação ou, mais precisamárea que corresponde aos possíveis pontos de observação. A luz ambiente carrega uma estrusse tipo que é rica o bastante para especificar as porções relevantes do ambiente substantivo.os excepcionais, é claro, em que isso não ocorre, como em uma névoa densa, por exemplo, o

m espaço no qual toda a luz que entra é filtrada por alguma substância translúcida, como o “vi

toso”, cujo efeito é precisamente eliminar as estruturas em questão tornando aleatória a difusã. Em condições normais, no entanto, a luz ambiente é estruturada pelo ambiente substantivo ddo a especificar os próprios aspectos daquele ambiente que a forma.

* * *

As teorias da percepção visual estão sujeitas à verificação empírica por meio de experimentocofísicos. Tipicamente, um sujeito do experimento é exposto a estímulos visuais destinados a

mular os fatores que se acredita serem responsáveis pela percepção de certos parâmetros; comonta Gibson: “A fim de estudar um tipo de percepção, o experimentador deve desenvolver um

arato que exiba as informações relativas àquele tipo de percepção” (170). Contudo, as difererias da percepção visual estipulam tipos diferentes de informação pertinente, fato que, emncípio, torna essas teorias testáveis. Como se percebe, por exemplo, o tamanho de um objetotante? De acordo com a teoria baseada nas sensações, o tamanho do objeto deve ser deduziduma maneira, a partir dos dados primários que estão presentes na imagem retiniana − um

essuposto que, naturalmente, leva à conclusão de que as percepções de tamanho e distância seseiam nas leis da perspectiva linear, que são familiares aos artistas desde a Renascença. O queressa a Gibson, por outro lado, não são as formas e tamanhos de fragmentos dados em uma

agem retiniana, e sim as relações dos objetos externos uns com os outros e com seu terrenomum. Eis, então, um dos primeiros experimentos realizados por ele com o propósito de testarria: Em um vasto campo arado e com sulcos que recuava quase até o horizonte, ele fincava umaca em uma distância de até 0.8 quilômetros e pedia aos observadores que julgassem seu tampreciso notar que a perspectiva linear foi essencialmente descartada pelas condições desseperimento; porém, o tamanho percebido da estaca não decrescia com a distância, mesmo quanestava a meio quilômetro de distância e percebê-la começava a se mostrar difícil: “Os

gamentos não se tornaram menores com a distância, apenas mais variáveis. A constância domanho não foi interrompida: o tamanho do objeto somente se tornou menos definido, e não me

60).Mas, conquanto esses resultados estejam em desacordo com a teoria baseada nas sensações, pe Gibson não os considerava definitivos: não era de sua natureza tirar conclusões com base emico experimento. Posteriormente, todavia, à luz de evidências experimentais “acumuladas nosimos vinte e cinco anos”, ele retornou ao experimento supracitado, ao que observou:

Hoje acredito que a implicação desse resultado é que certas proporções invariantes foram apreendidas de forma insuspeitobservadores e que não se deu atenção ao tamanho da imagem retiniana. Não importa o quão longe o objeto estivesse, eleinterceptava ou obstruía o mesmo número de elementos de textura no chão. Isso é uma proporção invariante.

Aparentemente, a percepção de tamanho, nesse exemplo, era feita por meio de uma constante a

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ão desconhecida que estava dada diretamente no arranjo ótico ambiente.sso nos traz ao cerne da teoria de Gibson: nomeadamente, a idéia de que a percepção resulta reensão de invariantes dadas na luz ambiente. Até então se havia presumido que a percepçãoseada em formas esquemas (que os psicólogos cognitivos chamam de “formas”) dadas primeagem retiniana, pressuposição essa que, conforme notamos anteriormente, leva a uma visão drcepção em dois estágios. Por décadas a fio os pesquisadores haviam investigado o que seamava “discriminação de formas” por meio de experimentos psicofísicos. “Minha objeção a squisas”, escreve Gibson, “é que elas nada nos dizem acerca da percepção do ambiente” (15e ele efetivamente quer dizer é que as pesquisas em questão dizem respeito à interpretação vifiguras, de mostradores pictóricos bidimensionais; e, com certeza, esses estudos realmentenecem informações corretas e potencialmente úteis. O ambiente, porém, é algo bem diferente

m mostrador pictórico; e, portanto, se de fato percebemos o ambiente (como alega Gibson), asormações óticas nas quais se baseia essa percepção deve diferir fundamentalmente dos “recucos” estudados pelos psicólogos que se ocupam de imagens visuais. Esses últimos considera

u sucesso na investigação concernente à “discriminação de formas” como uma justificação deria, mas se esquecem de que “isso nada nos diz acerca da percepção do ambiente”.

É evidente que a psicologia da imagem visual faz uso da ótica física, baseada em raios. Comobson aponta em seguida:

Essa teoria acerca da correspondência ponto a ponto entre um objeto e sua imagem se presta a análises matemáticas. Podabstrair dela os conceitos de geometria projetiva e aplicá-los de maneira muito eficaz à confecção de câmeras e projetores, ona confecção de retratos a partir da luz. A teoria permite que sejam feitas lentes com “aberrações” menores, isto é, com ponmais detalhados na correspondência ponto a ponto. Em suma, ela funciona maravilhosamente para imagens que se projetam telas ou superfícies e são destinadas a ser olhadas. Mas esse sucesso nos tenta a crer que as imagens retinianas se projetamum tipo de tela e sejam, elas mesmas, destinadas a ser olhadas: em outras palavras, que sejam retratos. Isso leva a uma dasfalácias mais sedutoras na história da psicologia − que a imagem retiniana é algo para ser visto (59-60).

e tomássemos o paradigma imagético literalmente, precisaríamos postular, com efeito, a presum “homenzinho” em nossas cabeças que olha para a imagem estipulada, noção que, em prina a uma regressão infinita, ou seja, a uma seqüência indefinida de “homenzinhos”, cada um dmente do anterior. Por outro lado, se adotamos uma abordagem mais sofisticada, baseada na

urofisiologia, chegamos a uma correspondência entre os pontos de estímulo retinianos e o quebson denomina “pontos de sensação cerebrais”, pontos esses que são caracterizados unicamer brilho e cor. “Se é assim”, diz Gibson, “o cérebro está diante da tremenda tarefa de construbiente fenomênico a partir de pontos que diferem em brilho e cor. Se esses são o que vemosetamente, são o que é dado à percepção − se esses são os dados do sentido, então o fato da

rcepção é quase miraculoso” (61). Em contraste, Gibson prossegue enunciando sua própriasição:

 Não é necessário supor que coisa alguma seja transmitida ao longo do nervo ótico no ato de percepção. Não precisamosacreditar nem que uma imagem invertida e nem um conjunto de mensagens são entregues ao cérebro. Podemos pensar a viscomo um sistema perceptual, do qual o cérebro é apenas uma parte. Os olhos também são parte desse sistema, uma vez queinformações que chegam à retina levam a ajustes oculares e, com isso, a informações retinianas alteradas, e assim por diante

 processo é circular, e não uma transmissão unilateral. O sistema olhos-cabeça-cérebro-corpo registra as invariantes na estruluz ambiente. O olho não é uma câmera que forma e envia uma imagem, nem a retina é meramente um teclado que pode setocado pelos dedos da luz.

Deve-se notar que a passagem de receptores retinianos e feixes de nervos aferidores para omplexo “olhos-cabeça-cérebro-corpo”, concebido como um único sistema perceptual,

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rresponde, ao lado do organismo perceptivo, à transição do mundo físico para o ambiente: envo conceito de um sistema perceptual efetivamente se encontra em um nível “apropriado paraudo da percepção”. O que está em questão, mais uma vez, é o repúdio de um reducionismoseado em fracionar um todo e seu subseqüente rebaixamento à mera soma das partes resultantmo sempre, o que se perde na troca é precisamente a forma substancial  desse todo, assunto aal retornaremos a seguir. Por hora, basta observar que a passagem de receptores e feixes de nridores para um sistema perceptual recém-concebido elimina a necessidade de “homenzinhos exime da obrigação de explicar como se constrói “um ambiente fenomênico a partir de pont

e diferem em brilho e cor”: o ponto crucial é queagora, não nos deparamos com um aglomerneurônios, cada qual em seu próprio estado, mas com um sistema perceptual que, com efei

o se reduz à soma de suas partes.

* * *

O sistema perceptual é projetado para a captação de informações dadas na luz ambiente e,pecialmente, para a apreensão de invariantes, isto é, de elementos estruturais do arranjo óticobiente que subsistem no tempo e permanecem inalterados por mudanças na perspectiva visua

as isso implica que o tempo ou, melhor dizendo, que omovimento entra em cena de modo

encial; com efeito, nada pode ser percebido “em um instante”. Como aponta Gibson:Os olhos nunca estão literalmente fixos. Eles passam por uma série de movimentos minúsculos ou de micro-sacadas. [...]

é sempre explorar, mesmo no caso da fixação [...]. O sistema visual busca a compreensão e a clareza e não para até que asinvariantes sejam extraídas (212, 220).

De fato, é o movimento que revela as invariantes, as coisas que realmente percebemos. Mesmrdadeiras cores [true colors], afirma Gibson, constituem invariantes que emergem conforme aminação muda, assim como a verdadeira forma de uma superfície aparece quando a perspect

uda (89).

Além de objetos e suas respectivas qualidades, também percebemos acontecimentos. Esses nãpecificados por invariantes, e sim por perturbações na estrutura de invariantes, para ser precinda assim, os acontecimentos também são especificados no arranjo ótico ambiente e percebidetamente. Não é uma questão de unificar uma seqüência de percepções instantâneas, como asrias baseadas nas sensações haviam suposto, mas, novamente, de apreensão de informações.erceber”, Gibson escreve, “é registrar certas dimensões determinadas de constância no fluxoímulos, em conjunto com parâmetros definidos de perturbação. As invariantes especificam aabilidade do ambiente e do próprio sujeito. As perturbações especificam as mudanças no amo próprio sujeito” (249). Notarei, de passagem, que as palavras “e do próprio sujeito” sãoremamente significativas, na medida em que implicam que exterocepção e propriocepção[ 92

o funções complementares e, logo, inseparáveis. Em especial, desejo chamar atenção, contudora o fato de que, segundo a teoria de Gibson, existe uma percepção direta da constância, o quo totalmente diferente da constância de uma percepção. Dada a significância muito abrangent

sse fato, será proveitoso descrever um experimento fundamental na defesa dessa afirmação.Esse experimento, realizado pela primeira vez em 1969 por G.A. Kaplan,[ 93 ] envolve umabição cinematográfica em que uma fotografia de uma superfície texturizada foi alterada quadadro, de modo a produzir uma textura dissimilar em um dos lados de uma linha invisível em

ovimento. A exibição tinha o propósito de simular a informação ótica que especifica a oclusão

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ogressiva de uma superfície por outra. Todos os observadores viram uma superfície que entrar trás da outra ou, quando o processo era revertido, que vinha de trás da outra. “Em suma, umperfície era vista, em um sentido legítimo, por trás da outra, passando por uma borda oclusiva90). Quando se parava o filme, a percepção da borda cessava e era substituída pela percepçã

ma superfície contínua, embora dividida. Ora, a despeito do que quer que esse resultado possagerido para outros investigadores, Gibson reconheceu nele uma refutação da teoria clássica:final, não temos permissão para dizer que uma superfície oculta é percebida; podemos dizer enas que ela é recordada. [...] Se uma superfície oclusa pode ser percebida, então essa doutri

apada” (189). Gibson insiste que uma superfície oclusa pode ser percebida, que podem mesmver percepções sem sensações correspondentes.[ 94 ] É sobre essa alegação notável que temoletir agora. A chave do problema, conforme veremos, está no reconhecimento de que o quercebemos não são imagens, e sim invariantes. As seguintes explanações − que merecemplamente ser citadas de forma extensiva − talvez ajudem a deixar isso claro:

A velha abordagem da percepção acreditava que o problema era como se poderia enxergar à distância e nunca perguntavcomo se poderia enxergar algo no passado e no futuro. Esses não eram problemas para a percepção. O passado era lembrafuturo era imaginado. A percepção dizia respeito ao presente. Mas essa teoria nunca funcionou. [...] O ambiente visto nestemomento não constitui o ambiente que é visto. Nem o ambiente visto desta perspectiva constitui o ambiente que é visto. [...]

óbvio que um observador imóvel pode ver o mundo de um único ponto fixo de observação e, assim, notar a perspectiva das cPorém, não é tão óbvio, embora seja verdade, que um observador em movimento não vê o mundo de um nenhum ponto deobservação e, assim, estritamente falando, não pode notar a perspectiva das coisas. As implicações disso são radicais. [...] mundo não é visto em perspectiva. A estrutura invariante subjacente emergiu da estrutura mutável de perspectiva. [...] Dizese pode perceber um objeto ou um habitat inteiro a partir de nenhum ponto fixo de observação soa muito estranho, pois contrteoria pictórica da percepção e a doutrina da imagem retiniana na qual ela se baseia. [...] Mas a noção de visão ambulantecertamente não é mais problemática que a noção de fotografias sucessivas do arranjo ótico fluente, tiradas pelo olho e exibidsala escura de projeção chamada cérebro (195, 197).

A partir dessas observações notáveis, podemos perceber que, na teoria de Gibson, as invarianbstituem as imagens visuais como concepção fundamental.

Devemos apontar que o que se pode chamar de uma concepção ecológica do tempo está implíteoria gibsoniana, fato do qual o próprio Gibson tinha consciência aguda. O que constitui o te

ologicamente falando, são acontecimentos: “Os acontecimentos são percebidos, o tempo não 01). Em outra parte, Gibson afirma que “O fluxo da experiência não se compõe de um presenttantâneo e de um passado linear que recua para longe [...] não há linha divisória entre presenssado, entre perceber e relembrar” (253). E notemos: somente com base nisso é que poderia h

ma percepção direta da continuidade e dos acontecimentos, segundo alega Gibson. Parece quembém o tempo necessita ser concebido “no nível apropriado para o estudo da percepção”. As

mo as substâncias não podem ser reduzidas a átomos, outrossim o fluxo do tempo, parece, nãove ser “atomizado” à maneira da física, isto é, reduzido a “instantes”, como uma reta se reduzntos.[ 95 ]

* * *

Diremos agora algumas palavras acerca da noção gibsoniana de “affordances”. Superficialmeia é ordinária: uma affordance é simplesmente algo pertinente ao ambiente que é propiciadoferecido» a um percebedor. O meio, por exemplo, propicia locomoção; um recinto propiciarigo; e uma fruta propicia alimento. Entretanto, o que com efeito torna difícil e profunda essa

arentemente inócua é o fato de que as affordances desafiam a dicotomia “sujeito-objeto” habis não são exclusivamente objetivas, porque estão intrinsecamente relacionadas a um sujeito,

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mpouco são meramente subjetivas, porquanto advém do objeto. Foi em virtude dessa naturezae Rom Harré aplicou tal conceito na interpretação da teoria quântica: “O que um sistemaopicia”, aponta ele, “é relativo à natureza do ser que interage com ele − em especial, aos estae ele é capaz de assumir. Affordances são disposições de coisas físicas relativizadas em funçquilo com que interagem”.[ 96 ] Parece que, no cômputo final, a física quântica lida precisamm affordances: “Enquanto teoria física fundamental ou quase fundamental”, Harré diz em segteoria quântica de campos deve trabalhar comaffordances”. E ocorre − como de fato se pod

perar − que esse reconhecimento fundamental lança luz sobre os enigmas da mecânica quântic

meçar pelo princípio de complementaridade de Bohr e a idéia de “partículas virtuais”, que agtorna compreensível filosoficamente.

É interessante observar que Gibson encontrou seu conceito, agora famoso, por meio da psicolgestalt : “Os psicólogos da gestalt ”, ele nos conta, “reconheceram que o significado ou valor

ma coisa parece ser percebido quase tão imediatamente quanto sua cor” (138). Como disse oóprio Koffka: “Cada coisa diz aquilo que é [...] uma fruta diz: ‘coma-me’; a água diz: ‘beba-mvão diz: ‘tema-me’; e uma mulher diz ‘ama-me’”.[ 97 ] Os psicólogos forjaram vários termosscrever esse “algo” presente nos objetos que emite tais convites − assim como o inimitável

nceito de Kurt Levin, “ Aufforderungscharakter ” −, sem jamais conseguir romper a dicotomiaujeito-objeto”, entretanto; como Gibson explica em seguida:

As teorias da percepção aceitas então, às quais a teoria da  gestalt  fez objeção, insinuavam que nenhuma experiência era exceto a das sensações e que as sensações mediavam todos os outros tipos de experiência. As sensações nuas tinham de serevestidas de significado. A aparente imediatez das percepções significativas, conseqüentemente, era uma vergonha para asortodoxas, e os psicólogos da gestalt  fizeram a coisa certa ao enfatizá-la. Eles começaram a solapar as teorias baseadas nassensações. Contudo, as suas próprias explicações acerca de por que a fruta diz “coma-me” e a mulher diz “ama-me” são foOs psicólogos da gestalt  fizeram objeção às teorias da percepção que eram aceitas, mas jamais conseguiram superá-las (14

O ponto que desejo enfatizar é que o próprio Gibson conseguiu “ir além” das teorias aceitas d

rcepção e fez isso precisamente por meio do lúcido reconhecimento de que “o objeto oferecee oferece porque é o que é” (139). A affordance, portanto, diz respeito tanto ao objeto quantoeito: ela não é apenas “fenomênica” − no sentido contemporâneo − como fora para os psicólogestalt . Como aponta Gibson: “Para Koffka, era a caixa de correio fenomênica que atraía o ecartas, não a caixa de correio física. Mas essa dualidade é perniciosa”. Em verdade, há apena caixa de correio, e “Todos que tenham mais de seis anos de idade sabem para que servem de se encontra a mais próxima”.

Após a solução desse problema, Gibson pode dizer, simplesmente, que “ Affordances sãoopriedades percebidas com referência ao observador. Elas não são nem físicas e nem

nomênicas” (143). Elas são, com efeito, ecológicas e por isso podem ser percebidas:A percepção de uma affordance não é um processo de percepção de um objeto físico isento de valores ao qual, de algum

maneira, acrescenta-se um significado a respeito do qual ninguém foi capaz de concordar; é um processo de percepção de uobjeto ecológico repleto de valor. [...] A questão central para a teoria das affordances não é se elas existem, mas se háinformação disponível na luz ambiente para que sejam percebidas (140).

Como o leitor decerto já estará esperando por agora, essa informação necessáriarealmente exo pode haver dúvida, ademais, de que Gibson está totalmente justificado ao se referir a essascoberta com “a culminação da ótica ecológica”.

* * *

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Assim como na física do século XX, também na teoria gibsoniana a idéia de “informação” surmo um conceito central. Mas aí descobrimos, mais uma vez, que o conceito “ecológico” diferndamentalmente do físico: uma vez que a informação ecológica no arranjo ótico veicula todasalidades e affordances do mundo visualmente perceptível, o ecológico deve diferir do físico ão do fato de que, evidentemente, ele não se reduz à ordem quantitativa.

De acordo com a teoria de Gibson, o que percebemos é, na verdade, o ambiente. As teoriasseadas nas sensações, por outro lado, não podem ser objetivas: aquilo que uma sensaçãopecifica, afinal, não é uma realidade externa, mas o estado de um receptor, o que é muito difecomo aponta Gibson, é precisamente porque as sensações não veiculam conhecimento do munterno que as teorias baseadas nas sensações são necessariamente construtivistas. Mas o resultal do “processamento”, na melhor das hipóteses, pode ser algum tipo de representação. Se omo da percepção visual de fato é externo, como insiste Gibson, então segue-se disso que as tseadas nas sensações, ipso facto, são falsas: pois, é desnecessário dizer, nenhuma construçãoocessamento pode dar lugar a um objeto ou acontecimento pertinente ao ambiente. Descobrime, ao rejeitar o velho axioma de que a percepção se baseia nas sensações e substituí-lo por esção revolucionária de “apreensão de informação”, Gibson finalmente abre caminho para uma

ria realista da percepção visual.É claro que ele admite que as sensações existem e são causadas pela estimulação de receptoree ele nega é simplesmente que a percepção se baseie nas sensações, para repetir. Assim, écessário reconhecer que há diferentes modos de consciência visual. Em primeiro lugar, há o meto ou imediato; e, dentro dessa categoria, há modos objetivos e subjetivos. Conforme ele ex

Pode haver consciência direta ou imediata de objetos e eventos quando os sistemas perceptuais ressoam de modo a apreeinformação, e pode haver um tipo de consciência direta ou imediata dos estados fisiológicos de nossos órgãos sensíveis quannervos sensoriais são estimulados. Mas esses dois tipos de experiência não devem ser confundidos, pois se encontram em poopostos: objetivo e subjetivo. Pode haver uma consciência de outros órgãos do corpo além dos órgãos sensíveis, pela fome ou

dor, por exemplo, as quais também se chamam propriamente de sensações.[ 98 ]Em adição aos modos diretos de percepção visual, ademais, há também modos indiretos oudiados, e, com referência a eles, Gibson não exclui a possível relevância de uma abordagemnstrutivista; que ele rejeita categoricamente são apenas as teorias construtivistas da percepçãácia”, ele nos conta, “é supor que, porque não veiculam nenhum conhecimento, os insumosnsoriais podem ser levados a produzir conhecimento se os “processamos” (253). Não há dúvque os modos mediados de consciência visual − como a reminiscência, a expectativa, aaginação, a fantasia e os sonhos − de fato ocorrem; o que Gibson nega é que sejam exemplos rcepção: “São tipos de consciência visual diferentes do perceptual” (254).

* * *

A impressionante alegação de Gibson é que nossa crença normal está incorreta: o que realmenrcebemos não são imagens, não são representações de algum tipo, não são coisas que existemebro ou na mente do percebedor, e sim, com efeito, objetos externos ou acontecimentos. Oraertamente uma alegação filosófica; contudo, Gibson a formula de forma científica. Eis um de

gumentos: “Um objeto pode ser escrutinizado. [...] Nenhuma imagem pode ser escrutinizada −ma imagem fantasma, nem uma imagem eidética, nem uma imagem de um sonho e nem mesmo u

cinação” (257). O que Gibson tem em mente quando fala em “escrutínio” com referência a umeto é, sobretudo, o fato de que, por meio da percepção, podemos “acessar” o depósito ilimit

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informações dadas no arranjo ótico ambiente. Podemos, obviamente, ser enganados, como noexibição cinematográfica; porém, a ilusão desaparece no instante em que começamos a exploanjo ótico em uma região do espaço ambiente. Já que é matematicamente impossível simularestruturas perceptualmente relevantes dadas na luz ambiente, segue-se disso que a ilusãoovocada por exibições pictóricas de qualquer tipo não pode arcar com o escrutínio que, comito, ocorre em percepções normais. Observações similares se podem aplicar a outros tipos d

periência ilusória. Pense no homem que confundiu uma corda com uma cobra: decerto, é a coe pode ser escrutinizada, e não a cobra. A cobra, nesse exemplo, não está “dada” no arranjo ó

biente, mas é evidentemente superposta: ela não é percebida de fato, mas imaginada, podemoer, e, de qualquer modo, diz respeito a um tipo fundamentalmente diferente de consciência viEu sugiro”, escreve Gibson, “que testes de realidade perfeitamente confiáveis e automáticos volvidos no funcionamento do sistema perceptual” (256). Deve-se notar que o termo “automám peso: não é uma questão de raciocínio ou de uma interrogação consciente. Por certo, a apreinformações constitui um ato inteligente, mas não é raciocinativa: criancinhas e animais tamb

o capazes de percepção. Contanto que esteja intacto e desobstruído, um sistema perceptual esdado, em condições normais de iluminação, a alcançar percepções objetivamente válidas. O q

gido para a apreensão de informações é uma busca, uma certa exploração do arranjo ótico, qecisamente o que um sistema perceptual foi projetado para fazer; e notemos, mais uma vez, qunceito de “movimento” entra em cena de uma maneira essencial. Não é função de um sistemarceptual visual produzir fotografias como fosse uma câmera; seu propósito, em vez disso, é mbuscar, explorar: somente assim ele pode detectar invariantes, que é precisamente o que, de

ordo com a teoria de Gibson, a percepção faz. A conclusão, como ele aponta, é que “um critércepção do real  versus o imaginário é o que surge quando nos viramos e nos movemos” (257Vemos que a teoria gibsoniana se apresenta como uma redescoberta do realismo e, com efeitom “realismo ingênuo”, pode-se dizer.[ 99 ] E isso levanta uma questão intrigante: se uma teoria

ntificamente segura acerca da percepção visual se revela defensora do realismo, talvez não sna do realismo na filosofia ocidental, que começou com Descartes, o resultado de um conceitntificamente espúrio da percepção visual: uma teoria, nomeadamente, baseada no paradigma

mera? Se a percepção visual de fato constitui nosso meio básico de acesso ao mundo externompreensível que um paradigma que coloca os perceptos “dentro da cabeça” evidentementevorece modos não realistas de filosofia, sejam cartesianos, idealistas ou céticos.

* * *

O realismo de Gibson aparenta ser baseado empiricamente. O que o distingue é sua paixão poar diretamente com os fatos e sua disposição para alijar os pressupostos vigentes quando elecassam em passar na inspeção empírica. Sua abordagem à psicologia cognitiva,nseqüentemente, é de algum modo comparável à revolução quântica na física, que igualmenteginou de um “retorno aos fatos da observação”. O jovem Heisenberg, presumivelmente, foi omeiro a reconhecer que o mundo newtoniano e pós-newtoniano de partículas e campos não éo aquele que observamos, não é realmente aquele com que nos deparamos em um planoperimental; assim, ele começou a cunhar conceitos que realmente estão de acordo com os fatoperimentais. O mesmo é verdade, afirmo, no caso da teoria “ecológica” de Gibson acerca da

rcepção visual: também ela se baseia em concepções “cunhadas no cadinho dos fatos empíric

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ias essas que se mostram, talvez, até mais opostas ao status quo científico. Logo, foi por meisquisas relacionadas a problemas concretos como a percepção de pontos focais que ele veio onhecer a natureza quimérica das teorias baseadas nas sensações e chegou à compreensãopreendente de que nós não percebemos imagens planas “processadas”, e sim um ambiente

dimensional. Assim como Heisenberg havia descoberto que não existem as partículas clássicabson também percebeu que, com efeito, não há imagens visuais na percepção. Os cientistasgnitivos tinham aceitado essa noção de maneira acrítica e vêm trabalhando desde então para rar do embaraço resultante. Por certo, a psicologia da imagem visual tivera seus triunfos, sua

sucesso, que diz respeito a coisas como a percepção de exibições pictóricas e a criação de lembora esses feitos dificilmente se possam comprar às enormes realizações da física pré-quânato é que tinham servido, igualmente, para conferir uma aura de legitimidade científica às teoquestão. Assim como o jovem Heisenberg, Gibson também foi obrigado a confrontar um stat

o amparado por evidências aparentemente acachapantes. Acho notável, ademais, que ambos frigados, no fim − cada qual à sua própria maneira −, a abandonar a norma da explicação cause é um ato incrível para um cientista! A teoria quântica, como sabemos, torna-se “acausal” quta de coisas como a deflexão de um elétron que passa por uma fenda; em verdade, ela insiste

o pode haver um mecanismo que explique os fenômenos em questão. O que torna a teoriabsoniana “acausal”, por outro lado, é o fato de que a apreensão de informações − à qual se refim, a percepção visual − não pode ser explicada no nível da neurofisiologia (que evidentemenstitui a única base na qual se pode conceber uma causalidade física, nesse caso).Contudo, talvez o paralelo mais impressionante entre as contribuições de Heisenberg e Gibsovenha do fato de que a indeterminação quântica, vista à luz da abordagem de David Bohm,ocia-se igualmente à apreensão de informações: isto é, a apreensão do que Bohm denominaformação ativa”, a qual é realizada por uma misteriosa “onda piloto”. É verdade que, por me

ssa concepção, Bohm foi capaz de restaurar uma causalidade estrita, mas somente no nível foque, propriamente falando, não é empírico. Logo, pode-se dizer que tanto a mecânica quânticaanto a teoria gibsoniana da percepção acarretam uma apreensão de informações que escapa àplanação em termos causais. As duas “revoluções”, com efeito, podem ser vistas como aspecmplementários de um único evento decisivo: a intrusão, a saber, dainformação como elementencial e efetivamente irredutível de nossa compreensão científica da realidade.sso nos traz a um fato curioso que pode ser digno de menção: como a maioria dos cientistas dculo XX, Gibson era um darwinista convicto. O que acho surpreendente, por outro lado, é queas convicções darwinistas aparentemente se revelaram benéficas em sua busca pela verdade:

rece que sua distinção fundamental entre o ambiente e o mundo físico não foi motivada por eocupações ontológicas, mas por pressupostos darwinistas. Como explica o próprio Gibson:

Quando se estuda a evolução dos “sentidos” nos animais, surge um enigma, na medida em que eles não parecem ter evolu para produzir sensações, e sim percepções. Por exemplo, não há valor de sobrevivência em ser capaz de distinguir umcomprimento de onda de outro (cor pura), mas há enorme valor em ser capaz de distinguir uma superfície pigmentada de outiluminação variável. Em suma, encontramos o valor de sobrevivência dos “sentidos” na capacidade dos animais de notar objlugares, acontecimentos e outros animais: isto é, de perceber.[ 100 ]

A força da observação de Gibson certamente não se apoia em premissas darwinistas: “apacidade dos animais de notar objetos, lugares, acontecimentos e outros animais” obviamente

encial a despeito da evolução, o que significa que não poderia haver vida animal baseada em

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ras sensações, ou em um mundo privado de suas “dimensões ecológicas”. Porém, mesmo se orwinismo o tenha colocado na rota da descoberta, ele é, no fim das contas, incompatível comria de Gibson; pois, ao passo que essa, como já vimos, escora-se em um entendimento teóricormacional da percepção, deve-se notar que o conceito de “informação”, em última instânciastra-se fatal para o darwinismo.[ 101 ] O que é mais importante, no entanto, é o fato de que, c

a aderência ao postulado darwinista, Gibson inadvertidamente fechou as portas para umampreensão metafísica de sua própria teoria − como a que tentaremos delinear agora.

* * *Analisada de um ponto de vista tradicional, a noção de “informação” que surgiu como conceitsico em vários ramos da ciência contemporânea pode ser reconhecida como uma redescobertquilo que os escolásticos chamavam de “ formas”. Isso não significa que, agora, a ciência modegou a uma compreensão de morphe no sentido aristotélico ou mesmo que ela possa fazê-lo; oero dizer, na verdade, é que “informação”, no sentido científico, refere-se às formas em últimtância, quer os cientistas tenham consciência do fato ou não. Uma maneira de discernir essaação é notar que a idéia de informação acarreta o conceito de uma transmissão não física: algo é veiculado, mas sem qualquer movimento no espaço. Isso é verdade, ademais, mesmo quan

ncebe a informação em questão como algo que se transmite por meio de um canal de comunicmo no caso da teoria de Shannon: pois mesmo nesse caso uma outra transmissão ocorre, que nm a ver com qualquer canal de comunicação.[ 102 ] Tomemos o exemplo de uma mensagem vpalavras escritas ou faladas podem bem ser transmitidas por meio de um canal; porém, o queporta, no final, é aquilo que a mensagem afirma, aquilo que ela significa. A essência da

formação reside em sua capacidade de significar ; é aí que as “formas” (no sentido escolásticram em cena.A coisa mais incompreensível acerca do universo”, observou Albert Einstein certa vez, “é qu

ompreensível”. Sim, o grande físico teve motivos para se espantar; afinal, se o universo fosslmente feito simplesmente de partículas e campos − segundo ele tinha imaginado, aparentemeele não poderia ser percebido de fato e nem seria compreensível para um cientista ou paraalquer pessoa: o que torna o mundo perceptível para os seres sencientes e inteligível para omem é precisamente a presença de formas. Além disso, deve-se entender que essas formas nãão sujeitas às amarras do espaço e do tempo e, conseqüentemente, não devem ser distinguidaegoricamente apenas das partículas e dos campos do físico, mas também das entidades corpóuma palavra, elas não são “coisas”. Entretanto, são as formas que constituem as coisas e

nferem a elas aquela realidade que possuem.sso nos traz de volta ao conceito gibsoniano de “especificação”: a noção de que as informaçõntidas no arranjo ótico ambiente “especificam” objetos e acontecimentos no ambiente. Aqui, z, deparamo-nos com um ato de significação, um ato inerentemente semântico que pode ser vimo uma “presentificação” imediata, um ato que não se escora sobre a transferência de matériaenergia pelo espaço. Mas como isso é possível? Esse é um enigma que nem nossa ciência e nssa filosofia atual são capazes de resolver. Evidentemente, algo − algum elemento essencial −levado em consideração: qual pode ser esse elemento? Afirmo se tratar exatamente daquilo q

atão denomina eidos, Aristóteles chama de morphe e os escolásticos nomeiam de forma. Som

“formas” podem realizar o prodígio em questão: por certo, nada do tipo se pode encontrar no

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vel das realidades espaço-temporais. O fato é que, para conceber a percepção autêntica, a noçmorphe ou eidos é necessária: somente uma forma está apta para unir um sujeito a um objeto

odo que, em “alguma medida”, os dois se tornem “uma só coisa”, como declara Aristóteles.A questão crucial, agora, é como as formas necessárias estão dadas no arranjo ótico ambienteposta é clara: estão dadas, precisamente, naquilo que Gibson denominainvariantes. Devemotar que, pela concepção mesma de “invariância”, essas “entidades” estão aliadas às formas: pbora uma invariante possa se apresentar com um número indefinido de exemplificações espa

mporais, ela, na realidade, transcende o espaço e o tempo e, por conseguinte, não está contidanhuma coisa ou representação espaço-temporais. Ora, são essas invariantes − essas formas! −ssibilitam a percepção. De acordo com a teoria de Gibson, elas é que são “registradas” ouraídas a partir do arranjo ótico ambiente no ato de percepção e são também o que objetivamepercebe. Em uma palavra, o que faz a ponte entre a “mente” e o ambiente é nada mais, nada me essas invariantes: em verdade, elas são as formas que fornecem acesso ao mundo externo.

* * *

Para prosseguirmos, temos de refletir sobre a noção elusiva de “consciência”. Levantemos aguinte questão: o cérebro “produz” consciência ou nos “tornamos conscientes” do que o cérebá fazendo? Se o cérebro é mesmo um computador, ele gera a consciência ou alguém “lê” essepositivo? Ambas as opções têm seus protagonistas; no entanto, quem pode negar que tanto umanto outra exalam absurdidade? A idéia de um “homenzinho” que lê o cérebro, decerto, não ével do que a alegação de que um computador − mesmo um “feito de carne” − pode gerar nsciência! Tendemos a aceitar, todavia, que não há escapatória a esse dilema, que não há umtium quid  para acabar com o impasse. Não conseguimos perceber que a chave do problema −onhecimento decisivo que de fato acaba com o impasse − pode ser encontrada em um ensinamtafísico perene: a saber, a familiar doutrina de que “a alma é a forma do corpo”, para expres

termos aristotélicos. É isso que agora precisa ser explicado.Necessitamos refletir sobre o fato grande e decisivo de que é aalma (no sentido tradicional dyche ou anima) que transforma o substrato material em um corpo vivo e senciente. E isso signe o corpo vivente é mais do que o biólogo molecular ou o neurofisiologista imaginam que é. J

gumentei repetidas vezes que um objeto corpóreo X, em virtude de sua forma substancial, devtinguido ontologicamente do objeto físico associado SX e que, com efeito, os próprios átomo

oléculas que constituem X devem ser distinguidos, enquanto partes de X, dos átomos e molécuncebidos pelo físico; pois, enquanto partes de X, eles participam em algum grau de sua forma

bstancial. E essa é a razão pela qual, afirmo, as partículas elementares e seus agregadosresentam indeterminação quântica: afinal, é por razão dessa indeterminação que essas partícuus agregados são capazes de receber uma determinação adicional, que os eleva ao status de ptênticas de uma entidade corpórea. O que desejo enfatizar, agora, é que essas considerações sicam, mutatis mutandi, ao caso dos organismos vivos e sencientes; apenas, nesse caso, a for

bstancial − tradicionalmente chamada de “alma” − pertence a uma ordem ontológica superior nseqüentemente, a discrepância ontológica entre os componentes físicos e as partes reais se toporcionalmente magnificada. Assim, há um mundo de distância entre um neurônio conformencebido pelo neurofisiologista e um neurônio real presente em um cérebro vivo; é claro que s

ve compreender, ademais, que, na ausência de uma alma, não podem haver sensações, nem

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rcepções, nem pensamento e, com efeito, nem consciência: sem uma alma, pode haver somentléculas de proteína e íons de potássio, estruturados habilidosamente, de maneiras que os ciencérebro ainda começam a entender. Mas conquanto a consciência não advenha das molécula

s íons que compõem o cérebro físico, ela certamente não é alheia ao organismo vivo: não exinhum homunculus para “ler o cérebro”! E não precisa existir. A consciência em questão nãortence nem ao corpo material e nem à alma enquanto tal, mas ao organismo vivo que resulta dião: trata-se de um modo psicossomático de consciência, podemos dizer (mas decerto há outros).

* * *

É fácil entender que as sensações dizem respeito ao nível de consciência psicossomático; o quícil notar é que a percepção não o faz. Alego que o ato perceptual não ocorre − e, com efeitoderia ocorrer − no plano psicossomático. E por que não? Uma maneira de defender essa afirmpontar que ele está implicado em um aspecto singular da percepção visual que Gibson foi,

ovavelmente, o primeiro a discernir: a saber, o fato de que a percepção não ocorre em um premporal, como se havia suposto, mas abarca uma certa duração, um punhado de tempo. O fator ovimento, em particular, entra em cena aí, não em posição secundária, mas como um elemento

encial, um sine qua non da percepção. Portanto, temos de refletir sobre a significância metafsse fato.Para começar, deixe-me lembrar que a metafísica tradicional rejeita a idéia de um momentomporal, a noção de um presente temporal instantâneo. Entretanto, após banir o presente do fluxmpo, a doutrina tradicional restaura essa concepção em um plano ontológico superior. Sim,ex

m “presente”; mas esse presente não é um instante temporal ou um presente que “flui”, mas umns, como dizem os escolásticos: um “agora que subsiste”. O que precisa ser compreendido éde percepção − e, em verdade, todo ato cognitivo em si − ocorre em umnunc stans, pela sim

ão de que a dispersão temporal é contrária à própria essência do conhecimento. Conhecer écessariamente conhecer uma coisa, e isso implica que não se pode conhecer “em sucessão”,daço por pedaço, por assim dizer. Logo, estamos certos ao assentir à crença comum de que arcepção tem lugar em um presente, um “agora” indecomponível; o errôneo, por outro lado, énceber esse presente em termos temporais, como um “agora” que se move. Nãohá realmente uesente temporal: como reconheciam os escolásticos, o presente não é parte do tempo.[ 103 ]Ora, o fato de que o presente real não está em fluxo − não é de fato o presente temporal dacologia da imagem visual − é precisamente o que torna possível a percepção da estase e da

udança, de invariantes e acontecimentos. Gibson estava certo: realmente percebemos tanto antinuidade quanto a alteração e fazemos isso sem a intervenção da memória. Esse fato, contudrega uma implicação profunda que o cientista tende a negligenciar. A mente empirista decerto

paz de imaginar um domínio psicossomático; e Gibson, pelo menos, defendia que a percepçãonstitui nem um ato físico e nem um mental, mas, com efeito, diz respeito ao organismo psicofíecisamos entender, no entanto, que o plano psicossomático, em virtude de sua base somática ertanto, material, está sujeito à condição temporal; nesse plano, “tudo flui”, como notou Herácas isso implica que o nunc stans − e, assim, o ato de percepção − não se encontra em tal plano importa o quão “supratemporal” a alma desencarnada possa ser, persiste o fato de que, em

m o corpo, a alma se torna sujeita ao tempo. E isso nos traz, finalmente, ao ponto essencial de

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nsiderações metafísicas: o fato de que a percepção ocorre em umnunc stans e, por conseguincima do tempo”, acarreta que perceber não é, estritamente falando, um ato psicossomático: auldade pela qual nós percebemos se revela não ser psicossomática, masespiritual , e essauldade espiritual é o que a tradição chama de intelecto.

Acrescentarei, de passagem, que sem dúvidas o que impediu esse reconhecimento no ocidentedieval foi a confusão do intelecto com a faculdade da razão: pois, na medida em que o ato da

rcepção não acarreta raciocínio − em outras palavras, a percepção não é inferencial, e sim diimediata −, ele obviamente não pode ser atribuído à faculdade racional. No tocante à perceps animais, é necessário entender que, embora certamente isentos de racionalidade, os animais

mbém partilham do intelecto em algum grau ou de algum modo. Assim como todos os seres, nãporta o quanto aparentem humildade, também participam do ser primário, outrossim se pode e todo conhecimento participa do intelecto primário: temos de compreender que nada no univndependente do Centro e nem tem realidade sem Deus.Agora que a percepção foi identificada como um ato intelectivo, reitero que, por outro lado, ansações são realmente psicossomáticas: porque decerto elas constituem respostas diretas ouediatas a estímulos sensoriais, que, segundo aponta Gibson, podem ser externos, como no cas

nsação da luz, ou internos, como no caso da fome ou da dor. Assim, percepção e sensação nãoenas se revelam diferentes, mas, com efeito, correspondem a diferentes níveis ou planostafísicos; e esse reconhecimento lança nova luz sobre as descobertas de Gibson. Em primeiro

gar, a alegação de que a percepção não se baseia nas sensações agora pode ser amparada emões metafísicas: uma função superior jamais pode se basear em uma inferior; isso seria uma

versão à ordem natural. São as funções inferiores, em verdade, que invariavelmente dependemuldades superiores, assim como o raciocínio é dependente do intelecto, ao passo que o inverpossível metafisicamente.

* * *Quanto mais uma ciência alcança profundidade, tanto mais ela tem necessidade de umaerpretação metafísica. Parece que, com a profundidade crescente, as incongruências que beiraradoxo dão as caras − para a consternação da comunidade científica, que se descobre impotera lidar com esses enigmas. Já testemunhamos esse fenômeno no caso da teoria quântica, quenguém entende” sem recorrer ao discernimento metafísico, começando pela distinção ontológ

tre os domínios físico e corpóreo.[ 104 ] E agora encontramos o mesmo fenômeno − desta vezado à teoria gibsoniana da percepção visual: aqui também, afirmo, deparamo-nos com

ongruências que só podem ser resolvidas de um ponto de vista metafísico. Tomemos a afirmGibson de que “o mundo não é visto em perspectiva” e que “pode-se perceber um objeto oubitat inteiro sem nenhum ponto fixo de observação”: o que torna essa asserção quase paradoxo de que é inexplicável em um plano psicossomático. Ou tomemos a doutrina de que a mudan

ovimento são percebidos diretamente, isto é, sem a intervenção da memória. O que faz com ques reconhecimentos não sejam incompreensíveis apenas para o leigo, mas também para o próntista, é o fato de que são indicativas de uma verdade metafísica: a saber, o fato de quea

rcepção ocorre no intelecto, que não é limitado nem pelo espaço e nem pelo tempo. Parece qdoutrinas como essas, Gibson isolou o que se pode chamar de aspectos “intelectivos” da

rcepção − características que constituem efeitos de ação intelectual que escapam a uma

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erpretação psicossomática (assim como o colapso de vetor de estado, por exemplo, escapa aplicação física).[ 105 ] Não negligenciemos, ademais, o fato de que um ato psicossomático, etude de sua natureza somática, é incapaz, em princípio, de transcender o organismo: logo, se mo da percepção visual for realmente ecológico, conforme defende Gibson, isso implica, emsmo, que o ato perceptual não é psicossomático. Trocando em miúdos: se as percepções foss

máticas, os perceptos não poderiam ser mais externos ao organismo que a sensação da fome or; e, por certo, nenhum «processamento» pode alterar esse fato. Vemos que Gibson estavatificado em adotar postura que equivale ao silêncio total acerca da questão:como se “registra

variantes”? − afinal, não existem meios psicossomáticos para realizar esse feito, ao passo queios intelectivos são excluídos a priori do discurso científico. Aquilo que, para muitos de seuegas, aparentava ser uma deficiência radical e uma marca de incompletude na teoria gibsonia

vela, assim, ser o seu maior mérito: pois essa deficiência aparente expressa o que, com efeitonstitui a essência mesma do ato perceptual.O discernimento, com base em razões empíricas, do que chamei de características intelectivas

rcepção se apresenta, a meu ver, como uma das principais realizações da ciência do século Xsas são as surpreendentes descobertas gibsonianas que abalaram a disciplina da psicologia

gnitiva, as absurdidades aparentes que espantaram a todos e escandalizaram a muitos. É umtemunho à integridade científica de Gibson o fato de que ele se recusou a fazer concessões noge a essas questões − e uma marca de gênio que ele tenha sido capaz de formular uma teoriaorosa acerca da percepção visual, incorporando essas doutrinas aparentemente incongruentessumo interesse, ademais, que, ao fazer isso, ele retificou aquele equívoco básico, endêmico àssa Weltanschauung  contemporânea: a noção espúria de Galileu e Descartes de que o termo rcepção se localiza na mente ou no cérebro do de quem percebe. O que Gibson nos deixou coado foi uma ciência segura e de base empírica que pode, com efeito, ser integrada a ordens

periores de conhecimento, como vimos neste capítulo.

87 ] As referências de páginas entre parênteses dizem respeito à principal obra de James J. Gibson, The Ecological Theory o

ual Perception, Lawrence Erlbaum Publishers, Hillsdale, NJ, 1986.88 ] James J. Gibson, “The Myth of Passive Reception: A Reply to Richards”, in:  Philosophy and Phenomenological Resea

1976, p. 234.89 ]  Affordance é um termo técnico da psicologia da percepção e de outros campos que designa a qualidade de um objeto − oambiente − que permite que um indivíduo realize uma determinada ação. Trata-se do potencial que um objeto tem de ser usadolidade para a qual foi concebido; a forma de uma torneira, por exemplo, convida seu usuário a abri-la – NT.90 ] Talvez seja interessante notar que a noção ecológica de Gibson acerca do “meio” corresponde à concepção de “espaçolificado” de Guénon: “É a noção de direção, sem dúvida, que representa o elemento qualitativo real inerente na natureza mesmaço, assim como a noção de tamanho representa o elemento quantitativo; assim, todo espaço que não seja homogêneo, mas qurminado e diferenciado por suas direções, pode ser chamado de espaço ‘qualificado’”. Ver René Guénon, The Reign of Qua

the Signs of the Times, Sophia Perennis, San Rafael, CA, 2004, p. 34-35.91 ] O ponto principal da observação de Gibson é que o “movimento” ótico e o mecânico são inteiramente diferentes: “Esses ds de “movimento”, o físico e o ótico, nada têm em comum e provavelmente nem deveriam se chamar pelo mesmo nome”. (10392 ] “Exterocepção” designa a percepção que um sujeito tem do mundo externo; “propriocepção”, em contraste, refere-se àcepção que um sujeito tem de si mesmo – NT.93 ] G.A.Kaplan, “Kinetic Disruption of Optical Texture: The Perception of Depth at na Edge”, in:  Perception and Psychoph

193-198.94 ] Descobertas feitas no campo da neurofisiologia (e.g.: “contornos subjetivos”) desde então confirmaram a conclusão de Gicapítulo 5, p. 112-114.95 ] É interessante notar que também aqui, na concepção dominante de tempo, encontramos a marca de René Descartes, pois

o de sua “geometria analítica” que o contínuo veio a ser concebido como um conjunto infinito de pontos, o que significa que, emcas anteriores, ele não se encontrava desmembrado dessa forma.

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96 ] Rom Harré, Philosophical Foundations of Quantum Field Theory, Clarendon Press, Oxford, 1990, p. 67.97 ] Kurt Koffka, Principles of Gestalt Psychology, Harcourt Brace, NY, 1935, p. 7.98 ] James J. Gibson, Reasons for Realism: Selected Essays of James J. Gibson , ed. R. Reed e R. Jones, Lawrence Erlbaulishers, Hillsdale, NJ, 1982, p. 380.99 ] Gibson tratou explicitamente dessa questão em diversos artigos; ver Reasons for Realism: Selected Essays of James J.

son, op. cit .100 ] James J. Gibson, “The Survival Value of Sensory Systems”, in: Biological Prototypes and Synthetic Systems 1, 1962,

101 ] Como provou William Dembski de forma rigorosa (e, até agora, o establishment  darwinista tem se recusado ferrenhamtar), a presença de “informações especificadas complexas” até mesmo no genoma do organismo mais simples não pode ser licada em função do mecanismo darwinista.102 ] Na versão da teoria quântica de David Bohm, essa transmissão “não física” é supostamente realizada pela onda pilotopulada; o problema, todavia, é que essa suposta onda (postulada precisamente para o propósito mencionado) escapa à detecçãisso, ademais, não porque até hoje ninguém foi esperto o bastante para detectá-la, mas porque, em princípio, ela é indetectável

detectabilidade inicial” equivale a um reconhecimento científico de que a transmissão em questão de fato é “não física”. Em vehá qualquer movimento no espaço envolvido.103 ] O tempo não se compõe de momentos, mas de durações, assim como uma linha não se compõe de pontos, mas de interv

mo observei anteriormente, foi Descartes quem nos desencaminhou a esse respeito.104 ] Ver capítulos 2 e 3.105 ] Wolfgang Smith, O enigma quântico, op. cit., cap. 6.

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5OS NEURÔNIOS E A MENTE

Hipótese Espantosa”, escreve Sir Francis Crick em um livro que leva esse título, “é que ‘vosuas alegrias e tristezas, as suas memórias e ambições, o seu senso de identidade pessoal e li

bítrio −, com efeito, não é nada mais que o comportamento de uma vasta reunião de célulasrvosas e suas moléculas associadas”.[ 106 ] Certamente, noções desse tipo têm sido expressanovo e de novo desde os dias de Demócrito; a novidade, porém, no caso da neurociênciantemporânea, são as bases que amparam a afirmação reducionista. Ao longo do século passado à luz um vasto corpo de conhecimento, inteiramente sem precedentes, acerca da estrutura e

ncionamento do cérebro humano, o qual aparenta justificar a hipótese em questão. Por exemplam desenvolvidas tecnologias que permitem aos cientistas discernir o disparo de neurônios n

rebro vivo, possibilitando assim que rastreiem a correlação dos padrões neurais de ativação da mental consciente do sujeito de um experimento. Ou tomemos a farmacologia: essa ciênciaalmente, avançou a tal ponto que hoje somos capazes de produzir drogas “psicotrópicas” pel

aptação de moléculas a fim de que interajam com substâncias neuroquímicas de maneiraspecíficas. Não precisamos insistir nesse ponto: o que Crick denomina “a busca científica pelama” já teve início fervoroso, em uma escala estupenda.Proponho refletir, no presente capítulo, acerca dessa busca científica à luz da tradição sagradae está em questão não é simplesmente a verdade ou falsidade da “hipótese espantosa” de Crics sobretudo uma compreensão de como a “mente” está relacionada à função neural. O que é

cessário, mais uma vez, é uma separação dos fatos científicos e dos equívocos cientificistas, uma certa integração daqueles a ordens metafísicas de conhecimento; mas, dessa vez, está em

o muito mais valioso do que jamais esteve: a disputa, agora, é pelaalma.* * *

Não foi até o século XX que a célula nervosa ou neurônio foi identificada, pelo anatomistapanhol Ramón y Cajal, como um componente fundamental do sistema nervoso. Sabe-se hoje q

ma única camada do córtex cerebral contém aproximadamente cem mil dessas células por milímadrado e que cerca de cem bilhões de neurônios são necessários para compor um cérebro humm, o fato de que o cérebro é “feito de neurônios” não significa que sua operação possa, mesmncípio, ser compreendida por meio da neurofisiologia; porém, implica quenão se pode enten

ebro sem que primeiro se entenda a anatomia e fisiologia dos neurônios.Um neurônio pode ser decomposto em três componentes: corpo celular, dendritos e axônio. Orpo celular é o corpo central da célula, que contém o núcleo e seus cem mil genes,roximadamente. Os dendritos constituem uma rede arboriforme de fibras que crescem a partirperfície do corpo, cuja função é receber os sinais externos que lhes chegam. O axônio, por fimnstitui o “cabo de saída” do neurônio, consiste em uma fibra nervosa central, a qual, em algunos, pode ter muitos decímetros de comprimento e tipicamente se ramifica até sua extremidadeerna. Todas essas fibras nervosas axonais ou eferentes (e, ocasionalmente, também algumas dras dendríticas) culminam em uma estrutura bulbosa conhecida como vesícula sináptica, a qu

ntrola a transmissão de sinais elétricos para células vizinhas. É importante compreender que

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nsmissão é realizada e regulada, por meios químicos, pela secreção de substâncias, conhecidr neurotransmissores, na fenda sináptica. As vesículas sinápticas e os seus neurotransmissoredem ser excitatórias ou inibitórias, e um neurônio recipiente reage a uma espécie de somaébrica de sinais eletroquímicos excitatórios e inibitórios gerados pelas células nervosas

óximas. Esse processo é extremamente complicado e constitui um dos muitos prodígios dodes

olecular que vieram à luz nas décadas recentes. Basta dizer que uma compreensão doncionamento cerebral se escora em um conhecimento detalhado desse mecanismo molecular, umínio da neurociência que hoje vem encontrando aplicações em farmacologia e medicina.

Tendo observado que uma célula nervosa responde a “uma espécie de soma algébrica” dos sie lhe chegam, direi agora algumas palavras a respeito da geração e transmissão dessa resposttrica no interior de um dado neurônio. Podemos conceber uma fibra nervosa como um tuboíndrico que contém uma solução ionizada de sódio e cloreto de potássio, separada por umambrana de um fluido ambiente constituído similarmente. Um estímulo excitatório produz umtencial positivo de ação próximo à base do axônio; quando alcança um certo limiar, esse potesitivo ativa um mecanismo molecular na membrana que consiste de canais: há canais de potáse fazem com que os íons de potássio se movam − a partir de dentro do axônio − para o fluido

biente, o que reduz a zero o potencial de ação (lembre-se, os íons de potássio têm carga posiá canais de sódio, os quais bombeiam os íons de sódio na direção inversa e tem um efeito op íons de sódio têm, igualmente, uma carga positiva). Essas ações respectivas são coordenada

odo a mover o potencial de ação para fora, junto com o axônio, e podem fazer isso com umaocidade de até 90 metros por segundo. É digno de nota que não há movimento de cargas elétrdireção da transmissão e nem há diferença de potencial motriz entre os terminais, como haver

so dos dispositivos elétricos feitos por homens. Parece que essa maravilha da nanotecnologiaencontrada em neurônios ao longo de boa parte do reino animal, até mesmo nos invertebrado

vo apontar que, dado que os potenciais de ação produzidos por um neurônio têm todos o mesnal algébrico” e a mesma amplitude, o único parâmetro que é variável e, portanto, carregaormações é sua freqüência ou distribuição temporal. Na ausência de estímulos consideráveisurônio tende a disparar esporadicamente em uma baixa freqüência de base, que varia em tornHz; por outro lado, quando estimulado ao nível limite, sua freqüência aumenta agudamente (

qüências típicas de disparo em neurônios excitados variam entre 50 e 100 Hz e, às vezes, poegar quase a 500 Hz). Por fim, devemos mencionar que há muitos tipos diferentes de neurôniorebro, e cada qual exibe suas próprias características especiais, em conformidade com suasnções.

Em seqüência a essa declaração introdutória acerca da natureza dos neurônios, proponhonsiderarmos agora a divisão do cérebro humano em regiões associadas às várias funçõesonhecíveis. Não nos preocupemos, por hora, com o modo pelo qual essas funções podem ser

plicadas no tocante às interações neuronais; o que nos ocupará, na próxima seção, serámplesmente a geografia funcional do cérebro humano.

* * *

As principais divisões anatômicas do cérebro podem se discernir pela dissecação e já sãonhecidas há muito tempo. Sua porção superior e maior, como todos sabem, é o telencéfalo, qu

vidido, no meio, em hemisférios cerebrais esquerdo e direito e, transversalmente, em quatro

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bulos: frontal, parietal, temporal e occipital. Divide-se ademais em uma camada externa e umerna, conhecidas como os córtices cerebral e cerebelar, que correspondem, respectivamente,ssas cinzenta e branca.[ 107 ] Enfiado embaixo dos lóbulos occipitais, próximo à parte trasei

beça, reside o cerebelo ou “pequeno cérebro”, que os darwinistas tendem a ver comopresentando o cérebro de nossos ancestrais mamíferos distantes. Além do telencéfalo e dorebelo, há, parcialmente escondido dentro da cavidade central que fica abaixo do telencéfaloande grupo de componentes cerebrais, conhecido como sistema límbico, que abarca o hipocamálamo, o hipotálamo e a amídala. Embaixo dessas formações, repousa o tronco cerebral, o qu

emelha em alguma medida ao cérebro dos répteis e geralmente se crê ter evoluído “mais de 5lhões de anos atrás”. Há ainda outros componentes − até a retina, hoje em dia, é considerada rte do cérebro −, mas, para os nossos propósitos, isso basta.Parece que, além de suas divisões anatômicas, o cérebro admite também divisões funcionais.

mais preciso: existem módulos funcionais que podem ser localizados anatomicamente, ao meforma aproximativa. Isso equivale a dizer, basicamente, que as diferentes partes do cérebro fsas diferentes. Os neurocientistas, compreensivelmente, têm trabalhado duro para determinar

nde se faz o que”, empreitada que, às vezes, é nomeada mapeamento do cérebro.

Correndo o risco de uma leve digressão, começarei este breve exame com uma referência a Frsef Gall, o fundador da frenologia, o qual, duzentos anos atrás, tentou mapear o cérebro, comgenuidade extraordinária, pelo mapeamento do crânio; o resultado foi um tipo de atlas cranialssificado segundo termos funcionais. Como se poderia esperar, havia uma região querrespondia à Amabilidade e outra associada à Combatividade, zona essa que Gall identificarse em sua pequenez na “maioria dos hindus e cingaleses”! Parece que, ocasionalmente, o bomutor teve sorte; por exemplo, quando estipulou a localização da região referente à alegria den

mpora esquerda. Dois séculos depois, cirurgiões do Centro Médico da UCLA, sondando o córebral de uma paciente por meio de estímulos elétricos localizados, foram surpreendidos quavem mulher (que estava inteiramente consciente), de súbito, irrompeu em acessos de riso: pare, de fato, os cirurgiões tinham acertado uma “região da alegria” no lóbulo frontal esquerdo!dagada acerca da causa de sua alegria, a mulher respondeu: “Vocês são tão engraçados − assi”. Esse é exatamente o tipo de resposta que os cientistas do mapeamento do cérebro desejavavir.

Antes do advento da tecnologia médica moderna, o principal meio científico de mapear o cérecorrelacionar perdas de funções com lesões cerebrais, cuja localização podia ser determina

stumamente, por intermédio de autópsias. Há o famoso caso de Phineas Gage, um jovem

balhador de Vermont que, no ano 1848, teve uma barra de ferro de 91 centímetros de comprimavessada em seu cérebro por conta de uma explosão. Fantasticamente, Gage sobreviveu e, coito, podia viver uma vida biologicamente normal; o que lhe falta, porém, era a habilidade de

ntrolar seus impulsos e direcionar suas ações no sentido de objetivos normais. Parece que osntros associados a essas funções “superiores” se localizavam nas porções de seus lóbulos froe haviam sido permanentemente destruídas. Outro exemplo precoce de localização funcional scoberta feita por Pierre Broca e Carl Wernicke acerca das áreas de linguagem, que até hoje us nomes. Ambas normalmente se localizam no hemisfério cerebral esquerdo; a área de Broca

er com a formação da fala e se situa no lóbulo formal; a área de Wernicke tem a ver com ampreensão da fala e se situa no lóbulo temporal.

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Por várias razões, o interesse no problema do mapeamento decaiu durante as primeiras décadculo XX, e foi parcialmente por causa das notáveis pesquisas de Wilder Penfield, o neurocirunadense, que a área se tornou ativa novamente, nas décadas de 40 e 50. Penfield estudou o cépacientes conscientes, desnudado pela remoção cirúrgica do crânio superior, e, com isso, fo

paz de obter uma profusão de informações precisas. Nesse entremeio, entraram em cena ocaneamento e a tomografia, e agora podemos ver não apenas a estrutura do cérebro, mas tamba atividade. Para mencionar ao menos uma dessas tecnologias: o que se conhece comoageamento por Ressonância Magnética funcional (IRMf) pode produzir até quatro imagens po

gundo, o que é veloz o bastante para “filmar” efeitos de larga escala de nossas ações neurológociadas à atividade consciente. Dessa maneira, pode-se “espiar” o cérebro vivo e conduzir servações psicofísicas com relativa facilidade.

Conforme poderíamos esperar, inúmeras regiões do cérebro já foram “identificadas” e muitastras estão sob escrutínio. Dentro do córtex cerebral, por exemplo, os neurocientistas localizato regiões motoras quanto sensoriais, as quais foram subdivididas, ademais, em domíniosmários, secundários e terciários − e até em subseções mais detalhadas. Fala-se em “caminhoonhecimento” e em unidades de reconhecimento (URs) que podem ser enormemente específi

ma única lesão cerebral, por exemplo, pode destruir a habilidade de reconhecer um rosto humm obstaculizar a capacidade de reconhecer outras coisas, incluindo os animais, condição chamosopagnosia. Um caso extraordinário a esse respeito foi o de um fazendeiro que se tornou increconhecer seus amigos como resultado de uma lesão, mas que conseguia reconhecer cada um

as 36 ovelhas e chamá-las pelo nome. Outros tipos de unidades funcionais associadas a níveida mais altos de atividade mental parecem exibir correspondentes graus de especificidade. P

emplo, cientistas da University of Califórnia chegaram a identificar uma UF que, supostamentpecífica para experiências místicas ou religiosas e que, quando estimulada, dizem produzir entimentos intensos de transcendência espiritual, combinados com o pressentimento de algumaesença mística”.[ 108 ] Mencionarei, a esse respeito, que alguns experimentos envolvendoaticantes de ioga mostraram que formas de meditação iogue podem “desligar” certas áreas dortices parietal e pré-motor que normalmente estão ativas.Muito se sabe também acerca da função de regiões não cerebrais dentro do cérebro, a começa

o sistema límbico. Falando em termos muito gerais, sabemos que o hipocampo está envolvidmação de memórias de longo prazo e que o hipotálamo controla várias emoções e impulsos, ome. A amídala já foi descrita, algumas vezes, como o sistema de alarme do corpo e também pel importantíssimo na vida emocional; por exemplo, ela está implicada na formação de fobia

nsação de puro terror que muitas pessoas experimentam ao ver uma serpente enrolada outejando, por exemplo, parece se originar nessa porção particular do cérebro.

Há muitas evidências para amparar a noção atualmente popular de que o lado esquerdo do céracional e analítico, ao passo que o direito é intuitivo e opera de forma mais holística. Os doimisférios cerebrais normalmente estão conectados por uma ponte neural chamada de corpo caavés do qual se transmitem mensagens, em ambas as direções, ao longo de aproximadamente lhões de axônios. Na década de 40, tornou-se moda em medicina, em casos graves de epilepsmpimento cirúrgico dessa ligação neural, procedimento conhecido como lobotomia, e estima-

e mais de 22 mil lobotomias foram executadas apenas nos Estados Unidos. Esse procedimentosbravado por um neurologista português chamado Egas Moniz, o qual descobriu que se podia

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aziguar chipanzés agressivos por meio do corte das fibras nervosas de seus lóbulos frontais. ncionar que, no fim, ele foi morto a tiros por um de seus pacientes lobotomizados. Parece queimas desafortunadas desse procedimento monstruoso são, com efeito, personalidades partidaeparavelmente mutiladas. Roger Sperry, um psicobiólogo que trabalhou extensivamente comcientes lobotomizados (trabalho pelo qual recebeu um prêmio Nobel), conta-nos que “Tudo ovimos indica que a cirurgia deixou essas pessoas com duas mentes separadas”. Concluirei esção com histórico de caso que parece amparar essa conclusão.O paciente, identificado como P. S., foi sujeitado a experimentos por dois neurocientistas, JosDoux e Michael Gazzaniga. Embora a maioria das pessoas não possua habilidades linguísticamisfério cerebral direito, ocorre que P. S. desenvolvera, nessa região de seu cérebro, umapacidade rudimentar de entender frases simples e de se comunicar por meio de palavras. LeDzzaniga desejavam utilizar essa capacidade rara para interrogar cada hemisfério de forma

dependente. Suas perguntas não podiam ser expressadas oralmente, porque, diferentemente doontece com as imagens visuais, não se podem comunicar sons para um hemisfério sem que o oscute às escondidas”: o modo como os nervos auditivos se conectam ao cérebro torna issopossível, mesmo em sujeitos lobotomizados. Deixarei Rita Carter, uma jornalista científica,

ntinuar a história:LeDoux e Gazzaniga contornaram esse problema apresentando a P.S. frases faladas e questões, amputadas de palavras-c

que as tornariam respondíveis. Essa informação essencial, então, era enviada para o hemisfério direito somente pela exibiçãdas palavras-chave. Assim, eles podiam dizer “Por favor, podes soletrar...” e então mostrar a palavra “passatempo” em seuvisual esquerdo (que conduz ao hemisfério direito). Esse exercício complicado assegurava que o hemisfério direito era a únicmetade com todas as informações requeridas para formular uma resposta. O hemisfério direito de P. S. não podia produzir fmas era capaz de escrever. Logo, ele soletrou suas respostas usando a mão esquerda de P. S. (que é a mão sob controle do direito do cérebro) para organizar em palavras as letras de um jogo de palavras cruzadas . [ 109 ]

Os resultados foram surpreendentes. Em resposta à questão “O que desejas fazer quando temares?”, o hemisfério esquerdo afirmou que desejava se tornar um escriturário, ao passo quemisfério direito revelou (por meio das letras do jogo) que desejava ser um piloto de corrida dros! Roger Sperry estava certo: parece mesmo que P.S. tinha “duas mentes distintas”.

* * *

Até agora, viemos ocupando-nos das unidades funcionais e de sua localização dentro do cérebm referência à sua estrutura interna ou operação racional. Em contraste a essa abordagem “caeta”, propomos considerar agora o que o cérebro realmente faz: o que se passadentro da caixeta. Neurologicamente falando, a resposta genérica está dada de antemão: os neurônios interaes recebem estímulos e, por sua vez, estimulam com disparos; isso é tudo o que ocorre − tudoe pode ocorrer − em um sistema composto de neurônios. O que está em questão aí são enormedrões de disparo que envolvem um grande número de células nervosas; um punhado de neurôo significada nada no que concerne à experiência consciente ou ao controle motor. O neurônioruturado para interagir, projetado para ser membro em uma comunidade de unidades semelha

A analogia com os transistores é óbvia: esses dispositivos artificiais também têm ramais de in

tput  e são projetados para interagir uns com os outros dentro de uma rede. Conseqüentementetrossim uma analogia entre o cérebro ou suas UFs e os computadores feitos pelo homem, e é ppreendente que essa analogia tenha servido como grande fonte de inspiração nas comunidade

urociência e de IA.[ 110 ] Muitos foram tentados − começando pelo próprio Alan Turing[ 111

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por que os computadores não apenas podem simular processos mentais, mas também consegueprincípio, gerar esses mesmos processos, doutrina que porta o rótulo de “IA forte”. Devemo

tar que a IA forte, na verdade, é mais forte do que a hipótese espantosa de Crick, a qualmplesmente reduz a mente ao “comportamento de uma vasta reunião de células nervosas e suaoléculas associadas”, sem o preconceito de que o cérebro funcione meramente como ummputador ou máquina de Turing. Nas primeiras épocas da euforia gerada pela IA, não era incoesumir que o cérebro funcionava, com efeito, igual a um computador de von Neumann: um tippecial de dispositivo de Turing, baseado em processamento serial, em vez de paralelo. Hoje

bemos que tal organização seria biologicamente infactível por diversas razões, a começar pelque a ação neural é muito lenta para permitir uma operação serial eficiente: os neurôniosparam com uma taxa máxima que é da ordem de 500 potenciais de ação por segundo, cerca dlhão de vezes mais lenta que a “taxa de disparo” de um computador digno de respeito.

Dentre as diferenças salientes entre cérebro e computador, pode-se mencionar, em primeiro luato de que os neurônios têm, geralmente, um vasto número de ligações deinput  e output , emntraste com o mero punhado de ligações presente nos transistores (alguns neurônios tem até 80ações sinápticas). Ademais, como já foi apontado várias vezes, parece haver aleatoriedade e

dundância consideráveis nas ligações neurais; para constatar que lhes falta a regularidaderutural de um componente computacional, basta examinar uma amostra de tecido cerebral em croscópio. Há também alguma aleatoriedade na resposta neural a estímulos, além do fato de qebro, obviamente, não opera com base em um sistema binário. Ademais, sabe-se que as sinap

m características diferentes e, com efeito, variáveis, um seu aspecto que, no entanto, possui umpel vital. Em adição a isso, o cérebro pode produzir novas sinapses por meio de protrusõesamadas espinhas dendríticas, fenômeno esse que se denominou de plasticidade. Se de fato elemputador, então se trata de um computador que sabe “trocar os próprios cabos”.A despeito dessas diferenças fundamentais, todavia, subsiste o fato de que há uma analogia enrebro e o computador que pode ser aplicada com grande proveito pelo neurocientista. Uma cempreensão da ciência da computação, com efeito, aparenta ser necessária até para se obter umendimento rudimentar acerca do funcionamento do cérebro; não é coincidência que, com o adtecnologia computacional, a neurociência tenha experimentado um segundo nascimento. Sim,

peranças e expectativas que prevaleciam nos dias de von Neumann não foram cumpridas, e, nremeio, a comunidade neurocientífica se tornou mais cautelosa em suas alegações “algorítmi

ntudo, ainda assim, ocorreu um progresso muito significativo na aplicação de conceitos e técnmputacionais à compreensão científica do cérebro. Para citar ao menos um exemplo: os progr

computador conhecidos como redes neurais foram aplicados, com sucesso considerável, comio de simular vários tipos de processos neurológicos e conduziram a algumas intuiçõespressionantes no tocante à maneira com que o cérebro executa certas tarefas.

Um dos primeiros enigmas a ceder diz respeito à formação da memória. A noção principal foioporcionada há tempos por um psicólogo canadense chamado Donald Hebb; a idéia, conformxpressou, é a seguinte: “Quando o axônio de uma célula A está perto o bastante para excitar uula B e participa repetida e persistentemente de seu disparo, um processo de crescimento ou

udança metabólica ocorre, em uma ou em ambas as células, de modo que a eficiência de A

quanto célula que dispara B é aumentada”. Esse princípio, que veio a ser conhecido como regbb, parece fornecer a base para certos tipos de memória e aprendizado. Conquanto os fatores

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gulam a habilidade de um neurônio em estimular outro ainda não sejam completamentempreendidos, sabe-se que eles incluem processos de crescimento (como no caso das espinhandríticas), bem como mudanças químicas que afetam a vizinhança de uma vesícula sináptica.ponhamos que um grande grupo de neurônios tenham se ligado de maneira hebbiana; talvez sessível, então, ativar um extensivo padrão de disparos, que representa o conteúdo de uma memr meio de um padrão de disparos muito menor, que representa o que se chama de pista. Essanjectura, em verdade, foi verificada com o auxílio de uma rede neural proposta em 1982 por ntista cerebral chamado John Hopfield.[ 112 ] Essa rede consiste de unidades que representa

urônios e ligações que representam sinapses, unidades essas que são dotadas de “pesos” quepresentam as forças relativas dessas ligações sinápticas. Cada unidade tem um canal deoutpu

versos canais de input , e a rede está ligada de modo a se retroalimentar, de modo que ooutpu

m ciclo se torna o input  do ciclo seguinte. Recebendo um input  inicial arbitrário, o sistema iránfluir, ultimamente, para um output  estável. Ademais, se mesmo uma pequena parte do padrãoultante (que corresponde a uma pista) for proporcionada de começo, o sistema confluirá paradrão fornecido em apenas alguns ciclos. “Como resultado”, observa Crick, “o sistema terátivamente produzido ‘memória’ a partir de algo que resvalou sobre sua memória”. Segundo C

plica em seguida: Note que a “memória” não precisa ser armazenada em estado ativo, mas pode ser inteiramente passiva, já que está embu

 padrão de pesos. [...] A rede pode estar completamente inativa (com todos os outputs em zero); porém, quando se lhe oferesinal, a rede irá voltar à ativa e, em um espaço muito curto de tempo, acomodar-se-á em um estado de atividade constante qcorresponda ao padrão que tinha de ser relembrado. Presume-se, com boas razões, que a revocação da memória humana de

 prazo tem esse caráter geral.[ 113 ]

Para completar: uma rede de Hopfield pode “recordar” muitos padrões diferentes, não apenascada, do qual pode ser “relembrado” por meio de uma pista correspondente, como no caso dmória humana de longo prazo. Em suma, a memória se distribui ao longo de muitas ligações,

mórias são superpostas (porque uma única ligação pode participar de muitas memórias) e − omais importante − de um ponto de vista biológico, a memória é forte, uma vez que é realizada ermédio de uma ação em larga escala que não é sensível ao comportamento de um númeroativamente pequeno de neurônios (podemos perder centenas de neurônios por dia sem qualquito notável sobre nossa memória).

Ninguém alega − nem deve alegar − que levamos uma rede de Hopfield em nossos cérebros. Oinvestigações de Hopfield mostram é que uma memória de longo prazo e de “conteúdo acessde ser explicada com base em razões hebbianas, seja por meio de uma rede neural de tipopfield ou em função de alguma outra rede que apresente as mesmas características gerais.alquer que seja o caso, parece que a neurociência começou a desvendar o enigma da memóri

ngo prazo.

* * *

Nenhum sistema funcional do cérebro foi objeto de escrutínio maior do que o sistema visual. Mssa pesquisa foi feita em animais, especialmente em símios do gênero Macaca, cujo sistema varenta ser muito similar ao dos humanos. A necessidade de cobaias animais surge primariamefato de que as ligações neurais longas se estudam injetando químicos no cérebro e rastreandojeto; é necessário, portanto, dentro em horas ou dias da injeção, que a cobaia seja sacrificada

odo que se possa examinar o tecido cerebral microscopicamente, antes que os químicos se

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persem muito. Desafortunadamente, milhares de animas foram sacrificados, dessa forma, noeresse da neurociência. Voltando ao sistema visual: sua complexidade − nesses símios, por emplo − mal pode ser imaginada; o diagrama de fiação mais complicado que qualquer equipegenheiros já projetou é minúsculo em comparação. Desejo falar, agora, do sistema visual hum

termos adequadamente aproximados e irei supor (como fazem comumente os neurocientistasque aprendemos dos símios pode ser transferido, em algum grau, para o cérebro humano.Em primeiro lugar, o sistema se divide em inúmeros subsistemas, todos os quais recebem inpu

s neurônios retinianos. Cada subsistema, obviamente, tem sua função específica; o que se chatema secundário, por exemplo, parece dizer respeito, principalmente, ao controle de movimeulares. Deixando de lado todos os subsistemas “auxiliares”, restringiremos nossa atenção aotema visual primário, o mais diretamente responsável pela percepção visual. Essa históriameça na retina, que abriga quatro tipos de fotoceptores: os bastonetes (mais de cem milhões eda olho), cuja função primária é reagir à meia-luz, e três tipos de cones, cada um dos quais re

m espectro diferente de comprimentos de onda. O leitor notará que é em virtude dessaspecificidades que possuímos visão noturna e visão colorida. O sistema visual primário transputput  retiniano resultante para um órgão do tálamo chamado de Núcleo Geniculado Lateral

GL), por meio de neurônios conhecidos como gânglios nervosos. Podemos considerar o NGLmo um portão ou uma estação de abastecimento para os impulsos nervosos que se dirigem às uais superiores do córtex cerebral, a começar pela área denominada V1. Cerca de vinte árearticais visuais já foram identificadas. Todas essas regiões (incluindo o NGL) são estratificadralmente se dividem em seis camadas. As ligações neurológicas entre as diferentes camadas d

ma mesma região e também entre regiões distintas apresentam certas regras, as mais intrigantesais parecem ser aquelas que concernem à camada quatro. Para simplificar bastante a coisa: pdistinguir entre transportes “progressivos” ou “regressivos” para áreas visuais distintas comalimentação ou não alimentação da camada 4 por essas ligações. A retina, em particular,nsporta para o NGL, e o NGL transporta para o V1, por meio de transportes progressivos.minhando por meio de transportes progressivos, obtém-se um ordenamento hierárquico dosntros visuais, no qual V1 é seguido de V2 e assim por diante, seqüência essa que termina nopocampo. Há complicações, em função das quais os especialistas falam em uma ordem “semi-rárquica”; contudo, a imagem simplificada que traçamos bastará para os propósitos deste exa

Dado que cada neurônio do sistema visual está ligado à retina por trajetos neurais, pode-se fau “campo receptivo” como aquela porção da superfície retiniana na qual os neurônios podemgir a estímulos. Consideremos agora uma camada particular dentro de uma dada área visual;

ntanto que os campos receptivos dos neurônios envolvidos sejam suficientemente pequenos, aações neurais definirão uma espécie de mapa ou de correspondência ponto a ponto entre umarção da superfície retiniana e uma região correspondente daquela camada específica, fato esss permite falar em mapas retinotópicos. Entretanto, para que não se pense que um mapainotópico é algo para ser “olhado” − como por um “homenzinho” dentro do cérebro −, apontaediatamente que a noção de mapa retinotópico deixa de se aplicar conforme ascendemos paraas visuais superiores, por razão do fato de que os campos receptivos tendem a se tornar gran

m efeito, podem cobrir todo o campo visual de um único olho.

Chegamos agora a um ponto importantíssimo, um reconhecimento que se mostra essencial, o qo à luz mediante uma série de experimentos conduzidos por David Hubel e Torsten Wiesel, p

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ais eles receberam um prêmio Nobel em 1981. No final da década de 50, eles começaram agistrar os impulsos elétricos de células únicas presentes na área visual V1 de gatos, por intermmicroeletrodos; para surpresa geral, eles descobriram que os neurônios não reagiam apenas

esença de “claro ou escuro” dentro de seus campos receptivos, mas de forma específica comação a certos aspectos. Uma classe de células, por exemplo, reage mais fortemente a linhas ordas e a uma orientação preferida desses elementos visuais. Algumas células parecem se inter linhas curtas, outras por linhas longas; algumas reagem à posição de um padrão, outras ao sovimento. Há células que disparam melhor em uma direção específica de movimento, e nos ní

periores do sistema visual há células que procuram pelo movimento de um objeto em função dano de fundo. Quanto mais se sobe no sistema visual, mais seletivos e sofisticados os neurônidem a ser. Por exemplo, V2 já continham neurônios que disparam diante de contornos subjetiaber, diante de certas linhas que são percebidas mas que não estão dadas na imagem retinian

ma das áreas visuais mais fascinantes já desveladas é V4, que concerne à percepção da cor. Jábe, há algum tempo, que a cor que percebemos não é meramente uma função do comprimento da, mas depende, de maneira complexa, também de outros fatores; por exemplo, a cor de um tpecífico do campo visual é afetada pelas cores dos trechos vizinhos, fato conhecido como efe

nd. Ora, em um experimento que utilizava esse efeito, mostrou-se que as células de região V4mio macaca, que normalmente disparam diante da cor vermelha, continuaram a fazê-lo mesmoando o comprimento de onda real foi alterado: descobriu-se que a célula disparava sempre qóprio experimentador percebia o trecho em questão como vermelho.Parece que Hubel e Wiesel desvelaram uma importante característica do sistema visual: a

rarquia visual é projetada para o reconhecimento de aspectos latentes noinput  inicial cada vis complexos. Até agora, a “lógica” desse sistema não foi bem compreendida. Por exemplo, a

bemos pouco acerca da função das ligações regressivas, acerca das quais houve uma vasta gapeculações. A estrutura geral do sistema, no entanto, não é mais duvidosa; como aponta Crick

O padrão geral, então, é que cada área recebe diversos inputs das áreas inferiores. [...] Após isso, elas operam sobre esscombinação de inputs a fim de produzir aspectos ainda mais complexos, os quais, em seguida, passam para níveis ainda maina hierarquia.[ 114 ]

Claramente, esse processo é analítico; em cada nível, o input  é subdividido em componentes dum tipo. Pode-se até comparar uma área visual a um filtro que permite ou bloqueia a passage

puts de acordo com seus próprios critérios. Assim, a informação que está dada sinteticamenteput  retiniano vem a se espalhar ao longo de vários campos, cada qual reagindo aos seus própnjuntos de parâmetros. Talvez pensemos que haja um “campo final” que corresponda àquilo q

o se percebe e que, supostamente, deve-se encontrar no topo da hierarquia visual; mas acontee se podem perder todas as áreas visuais acima de um certo nível e ainda enxergar muito bemma”, observa Crick, “ podemos ver como o cérebro decompõe a imagem, mas não vemos com

ecompõe”.[ 115 ] Porém, o fato, como aprenderemos no final, é que o cérebro,em verdade, n

ecompõe” nada.[ 116 ]

* * *

Decerto, a questão levantada por Crick não é específica à percepção visual. “Enquanto osurocientistas continuam subdividindo o cérebro”, escreve o jornalista científico John Horgan,

estão ainda maior se assoma. Como o cérebro coordena e integra os funcionamentos de suas p

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amente especializadas a fim de criar aquela aparente unidade de percepção e pensamento quenstitui a mente?”.[ 117 ] Esse é o enigma que veio a ser conhecido como o problema da ligaçnorado ou posto de lado por muitos, ele colocou em ação algumas das melhores mentes cientínossos tempos. Uma delas é Roger Penrose, o professor de matemática de Oxford que provo70, o famoso teorema de singularidade relativo aos buracos negros, em colaboração com seuno, Stephen Hawking. Desde então, ele voltou sua atenção do macrocosmo para o microcosmtornou profundamente envolvido com o estudo do cérebro humano. Como se poderia esperarnrose começou suas pesquisas pela investigação das implicações do paradigma computacion

m efeito, ele estava testando a hipótese da IA forte para verificar se a premissa, em princípiodia explicar o fenômeno do pensamento humano. Desde o início, ele adotou o nível mais altoneralidade, isto é, o nível das máquinas de Turing, evitando assim a necessidade de distinguirpositivos de processamento serial e paralelo. Mediante uma aplicação engenhosa do que se cmumente de teorema de Gödel, Penrose foi capaz de mostrar que a mente matemática tem apacidade de solucionar problemas que, em princípio, não podem ser resolvidos por meiosmputacionais. O que os computadores fazem, obviamente, é computar; ocorre, no entanto, queerações mais características da mente humana não são de fato computacionais oualgorítmica

ra usar o termo técnico. Tomemos a habilidade de distinguir entre verdade e erro: “Em verdaPenrose, “os algoritmos, em si mesmos, nunca determinam a verdade!”. Mesmo no caso deoblemas que, supostamente, são “solucionados” por computadores, o matemático se mostradispensável; é ele, afinal, quem programa o computador e também quem interpreta o seuoutpu

Não obstante, as operações inerentemente algorítmicas realizadas no cérebro evidentementesempenham papel essencial no pensamento humano: a própria estrutura do sistema nervoso noorma desse fato. Logo cedo, contudo, Penrose chegou à conclusão de que o paradigmamputacional se aplica, sobretudo, ao domínio inconsciente: “O selo da consciência”, ele defeuma formação não algorítmica de juízos”. Mais uma vez, foi na esfera da matemática que Penegou a essa inferência:

Precisam-se de intuições externas para decidir a validade ou invalidade de um algoritmo. [...] Estou avançando o argumenque é essa habilidade de adivinhar (ou “intuir”) a verdade, separando-a da falsidade (e a beleza da feiura!), nas circunstânciaapropriadas é o selo da consciência.[ 118 ]

Penrose enfatiza repetidas vezes este ponto cardinal e inerentemente platônico: “Precisamosnxergar’ a verdade de um argumento matemático para sermos convencidos de sua validade. Esão’ é a essência mesma da consciência”.[ 119 ]

Penrose estava ciente do fato de que a concepção de juízo matemático à qual ele havia chegad

contra em oposição à versão livresca costumeira do que significa ser racional: “Com freqüêngumenta”, escreve ele, “que é a mente consciente que se comporta de um modo ‘racional’ quedemos entender, ao passo que o inconsciente é um mistério”. Eu acrescentaria apenas que, aoonhecer que o matemático − entre todas as pessoas! − não “se comporta de um modo ‘racione podemos entender”, Penrose redescobriu o que, no linguajar tradicional, denomina-setelecto”. Suas investigações refutaram a noção de que podemos, de algum modo, chegar ao

nhecimento e ao entendimento por meio de cálculos, como se havia ensinado o homem moderr. Reconhecendo que a racionalidade − a própria coisa que, supostamente, poderia desfazer mistérios − é, em si, profundamente misteriosa, Penrose reabriu as portas para uma descobertafísica autêntica. Devo enfatizar que o que é “misterioso” na esfera da matemática, com efeit

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o é o conteúdo formal de um teorema ou a sua prova formal, mas avisão desse conteúdo e a v

ssa prova.Em oposição aparente, todavia, ao que o próprio Penrose nos disse acerca do selo da consciênrece que a melhor matemática, às vezes, é realizada fora dos confins de nossa consciênciadinária ou “individual”. A esse respeito, Penrose relata uma experiência da vida do matemátinri Poincaré: após interromper suas investigações matemáticas acerca das funções fuchsianas

m de embarcar em uma excursão geológica, Poincaré estava subindo no ônibus quando, de repm qualquer ligação com o que estava passando por sua mente no momento, sobreveio-lhe a id“que as transformações que eu usara para definir as funções fuchsianas eram idênticas às da

ometria não euclidiana”. Esse reconhecimento, que se revelou correto, mostrou-se crucial. Oóprio Penrose, ademais, tem uma história similar para contar: a idéia essencial que subjaz aorema de singularidade supracitado lhe ocorreu quando ele interrompeu uma conversa acerca tras coisas, com um colega visitante, para cruzar uma agitada rua de Londres. É muito significe Penrose se refira a uma “enlevação” intensa à qual esse acontecimento momentâneo deu luge, de fato, possibilitou que ele, depois que seu colega partira, vasculhasse sua memória euperasse a idéia em questão; teremos ocasião, no que se segue, de comentar a respeito desse

idente notável.É pouco surpreendente que Penrose tenha se tornado profundamente interessado no problema ação. John Horgan, o jornalista científico, teve a chance de falar com ele sobre o assunto, em94, quando os representantes de várias disciplinas se reuniram em Tucson para comparecer anferência acerca da natureza da consciência: Por uma base científica da consciência foi o títssa conferência. Eu poderia mencionar, de passagem, que não havia falta de personalidadesebres na conferência. Danah Zohar, por exemplo, “que recebeu um diploma em física pelo Mpois estudou filosofia e religião, em Harvard, com o psicanalista Erik Erikson”, estava presenra expor opiniões expressadas anteriormente em seu livroThe Quantum Self , de 1990. Davidalmers, filósofo australiano, estava lá para expor sua própria versão da IA forte: “Segundo eria, qualquer objeto que processe informação deve ter alguma experiência consciente”. Atésmo um termostato, parece! Quem também estava presente era Christof Koch, figuraportantíssima no mundo da neurociência, o qual falou sobre sincronia no disparo neural e sobnificância, para a pesquisa concernente à consciência, da freqüência de 40 Hz; e Walter FreeBerkeley, que promoveu a noção de que a consciência tem algo a ver com a teoria do caos.tornemos, porém, ao distinto matemático de Oxford e ao problema da ligação: “Penrose conc

creve Horgan, “que nenhum sistema mecânico e baseado em regras − ou seja, nem a física clá

m a ciência da computação e nem a neurociência, conforme interpretada atualmente − podeplicar a capacidade criativa da mente”.[ 120 ] Como disse o próprio Penrose, na conferênciae os computadores não podem fazer é compreender ”. Parece, entretanto, que mais uma veznrose estava no rastro de uma idéia: “Ele então sugeriu”, prossegue Horgan, “que a não localântica talvez fosse a solução para o problema da ligação”. O que falta, segundo crê Penrose, e ele chama de uma teoria “gravitacional quântica adequada”, um tipo de física que ainda nãoste. Ora, de minha parte, duvido muito que uma nova física venha um dia a desvelar o mistér

nsciência. Acredito, todavia, que Penrose estava certo em sugerir que a solução do problemaação depende de uma “não localidade quântica”; falta que sejam reconhecidas as implicaçõetafísicas e, com efeito, ontológicas dessa não localidade. O ponto crucial, como argumentei e

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tra parte,[ 121 ] é que a não localidade se refere, em verdade, ao domínio intermediário ou “shuvar  da cosmologia védica, o qual não está sujeito ao domínio espacial. Assim, é no “corpil” − no sūkshma-śarīra vêdico, e não no cérebro − que essa “ligação” elusiva tem lugar. Isse tentarei explicar agora.

* * *

Logo, proponho abordar o problema “mente-corpo” em função da antropologia védica.viamente, não será possível expor essa doutrina, mesmo de forma resumida, dentro dos limit

ste capítulos;[ 122 ] o que farei será introduzir os principais conceitos em razão dos quais sedem formular respostas às nossas indagações. Em primeiro lugar, precisamos entender que,gundo o Vedanta, o homem não possui um só corpo, mas, em verdade, três “corpos”,rrespondentes aos três graus principais de manifestação:[ 123 ] o sthūla-śarīra ou corporosseiro”, o sūkshma-śarīra ou corpo “sutil” e o kārana-śarīra ou corpo “causal”. Contudo, mbém uma outra divisão triádica que deve ser relembrada: a saber, uma divisão do própriokshma-śarīra, que dizem se compor de kośas − as chamadas bainhas ou invólucros de Purushinterior. De acordo com essa doutrina, o sūkshma-śarīra se subdivide em prāṇamaya-kośa,nomaya-kośa e vijñānamaya-kośa, isto é, em um invólucro “feito de prāṇa”, outro “feito denas” e outro “feito de vijñāna”. É impossível, certamente, encontrar equivalentes exatos desmos védicos em nas línguas ocidentais; de modo geral, porém, prāṇa corresponde à força vitaélan vital, manas à mente e vijñāna à faculdade cognitiva superior que corresponde ao concedicional de intelecto (o termo sânscrito jñāna é cognato do grego gnosis). É interessante nota

ma divisão correlata da alma ou anima se pode encontrar a tradição ocidental e que Sto. Tomáuino, em especial, distingue entre alma vegetativa, sensitiva e intelectiva, com base em umatinção de poderes, a qual, por sua vez, advém de uma distinção dos objetos correspondentesmo explica Sto. Tomás:

Mas o objeto da operação da alma se pode considerar em uma ordem tripla. Pois, na alma, há um poder cujo objeto é somcorpo que está unido àquela alma; os poderes desse gênero são chamados vegetativos. [...] Há um outro gênero de poderes alma, os quais concernem a um objeto mais universal, a saber, todos os corpos sensíveis, e não apenas o corpo ao qual a almunido. E há ainda um outro gênero de poderes na alma, que concerne a um objeto ainda mais universal, a saber, não apenas ocorpos sensíveis, mas o ser universal em si.[ 124 ]

Embora as doutrinas védica e tomista representem evidentemente pontos de vista diferentes −rśanas diferentes, como diriam os hindus −, percebe-se que os critérios tomistas também seicam aos kośas do corpo sutil. Consideremos, em primeiro lugar, o prāṇamaya-kośa, que de

rresponde à alma vegetativa. Sua função, pode-se dizer, é unir-se com o corpo grosseiro ou

rpóreo e, assim, agir como intermediário entre esse e a mente ou manas. Todavia, é necessáritar que o corpo grosseiro só existe como corpo real ou śarīra em virtude de sua fusão com ovólucro prânico. Conseqüentemente, é imperativo distinguir categoricamente entre o corponcebido como uma entidade corpórea X e o corpo vivente LX que constitui o invólucro maiserno do ser humano integral. Deve-se observar que uma transição de LX a X ocorre no momemorte, quando o prāṇamaya-kośa se retira, deixando para trás o corpo “meramente corpóreolando em termos tomistas, o corpo resultante não tem mais uma forma substantiva e, com issoduz-se a um mero composto ou uma mistura de substâncias corpóreas, as quais estão sujeitas àcomposição. Ademais, é digno de nota que oVedanta se refere ao corpo grosseiro comonamaya-kośa, ou invólucro “feito de comida”: quer dizer, um composto orgânico instável ou

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recível. Em verdade, é a força vital ou prāṇa que, literalmente, “faz” ou constrói o corpo a pasubstâncias materiais, como afirma o termo “annamaya-kośa”.

Em seguida, precisamos de relembrar uma outra distinção fundamental, a qual se mostra decisra a interpretação ontológica da física: a distinção categórica, a saber, entre um objetocorpór

eu objeto físico associado SX.[ 125 ] Isso nos deixa três corpos intimamente associados, masndamentalmente diferentes, a respeito dos quais pensar: LX, X e SX, em outras palavras. Devrceber, em primeiro lugar, que o neurocientista se ocupa sobretudo de SX; é no nível físico,quanto distinto do corpóreo, que as vesículas sinápticas disparam, que os canais e sódio e pombeiam íons a fim de propagar potenciais de ação ao longo dos axônios e que se explica amória de longo prazo em termos hebbianos. Tudo isso pode bem ser verdade; contudo, é crutar que o invólucro prânico não se une ao corpo físico, e sim ao corpóreo: não a um corpo fmoléculas, e sim a um corpo composto, segundo a doutrina védica, de cincobhūtas ouementos” que não figuram de modo algum em nossos mapas científicos, visto que pertencem

dem essencial , em oposição à ordem quantitativa. Esse é um ponto de suma importância;petindo: não se pode atrelar um corpo sutil a um corpo molecular . E por que não? Por duasões: em primeiro lugar, porque as moléculas e seus agregados, estritamente falando, constitu

ma realidade “segunda” ou derivada, como já argumentei algumas vezes,[ 126 ] o que equivaleer que, de um ponto de vista védico, simplesmente não existem; e, em segundo, porque a ligaqual falamos se baseia em uma afinidade de essências, a qual, obviamente, não se alcança ummínio do qual as essências foram excluídas por definição. O que está em jogo nessa “ligaçãom efeito, uma afinidade entre os cinco tanmātras ou “elementos sutis” que compõem o sūkshm

rīra e suas contrapartes grosseiras, os bhūtas supramencionados. É claro que há correspondêtre essas concepções “alquímicas” ou tradicionais e as noções químicas contemporâneas,rrespondências essas que, por exemplo, permitem-nos falar de certas substâncias químicas coneas ou “tejásicas”,[ 127 ] e assim por diante; o que devemos ter em mente, contudo, é que asções respectivas pertencem, não obstante, a domínios distintos, que não devem ser confundid

A linguagem dos invólucros oukośas sugere que cada invólucro superior está “dentro” dovólucro que o procede na ordem hierárquica que corresponde à nossa enumeração: o invólucrânico, assim, está dentro do grosseiro ou corpóreo, o manásico ou mental está dentro do prânvijnânico ou intelectivo está dentro do manásico. Mas, embora esse simbolismo geométrico seito adequado e virtualmente indispensável, precisamos nos lembrar que a relação entre oskoś

cessivos, estritamente falando, não pode ser concebida em termos espaciais, na medida em quvólucros superiores, a começar pelo prânico, não estão sujeitos à condição espacial, limitaçã

e, de certo modo, define o domínio corpóreo. Assim, a “interioridade” dos invólucros superio é espacial, mas ontológica, se podemos dizer assim. Ademais, devemos notar que há um out

mbolismo espacial, complementar ao anterior, que concebe a hierarquia ontológica em funçãoerticalidade”. Os kośas superiores, portanto, como o regnum Dei bíblico, estão, de certo modto “acima” quanto “dentro”. Além do mais, é preciso apontar também que, até agora, venhoxando de lado o invólucro mais elevado, a saber, o ānandamaya-kośa, que dizem constituir oraṇa-śarīra ou corpo causal a que já aludimos. Esse último diz respeito ao plano celeste oupiritual, que René Guénon denomina o domínio da manifestação amorfa, a qual transcende, poo, o alcance da individualidade humana. O que precisa ser enfatizado, em especial, é que cad

vólucro depende, em sua operação, do mais elevado que se segue a ele, ao passo que o invers

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erdadeiro. As operações do corpo grosseiro, portanto, dependem do invólucro prânico ou vie, por sua vez, opera em conjunção com o manásico ou mental. Esse − que pode ser chamadonar” ou reflexivo, em relação ao invólucro intelectual −, por sua vez, depende da “luz doelecto” para realizar suas funções. Essa “luz”, ademais, advém de uma fonte superior: do Inteiversal ou primário, denominado Mahat ou Buddhi, que participa no indivíduo humano por mandamaya-kośa. Trata-se, com efeito, da “verdadeira luz, que, vinda ao mundo, ilumina a todomem”.[ 128 ] Remova-se essa Luz e instantaneamente todas as funções do indivíduo humano −getativa, sensitiva e intelectiva − cessarão. Por conseguinte, os kośas sucessivos, em sua

ncatenação, constituem uma espécie de “cadeia áurea” por meio da qual os dons da vida e daeligência são transportados até os domínios inferiores, chegando mesmo ao invólucro corpórorpo feito de comida”, onde a transmissão termina.

* * *

Até agora, viemos considerando o corpo sutil ou sūkshma-śarīra em função de sua divisão triinvólucros, sem reconhecer o fato de que ele apresenta uma unidade organísmica e um tipo d

atomia sutil próprias. Por certo, essa questão não pode ser abordada em termos de concepçõepaciais, as quais, estritamente falando, não se aplicam ao plano sutil; contudo, podemos pensa

ar nessa anatomia com base em analogias com estruturas corpóreas que, de algum modo,eriorizam ou exemplificam o corpo sutil. Ora, um aspecto principal dessa “anatomia sutil” no

do pelo sistema de nādīs − que Guénon traduz por “artérias luminosas”, as quais se podemnceber como “canais” pelos quais a força prânica pode fluir −, uma rede em que onādī  princcentral, chamado suṣhumnā, desempenha um papel definitivo. Esse último representa, segunddemos imaginar, o tronco da “imperecível Árvore Ashvattha, com sua raiz no topo e seus galicando para baixo”, referida na Bhagavad-Gita,[ 129 ] cuja exemplificação mais externa são una vertebral mais o cérebro.[ 130 ] O fato é que, ao passo que os kośas correspondem,

mbolicamente falando, a regiões anulares concêntricas, os nādīs representam elementos radiaianam de um centro e tendem na direção da circunferência. Devemos compreender, no entantoentro em questão não é o Centro transcendente ou verdadeiro do organismo humano, mas con

m ponto de origem secundário, algumas vezes chamado de “coração”, que representa, conformdemos considerar, o Centro no nível do sūkshma-śarīra. Como se poderia esperar, a rede dedīs é de fato relacionada ao sistema circulatório corpóreo e, outrossim, ao respiratório, amboais, de certa maneira, “exteriorizam” esse sistema nádico. Contudo, sua ligação mais íntima,certo, é com o sistema nervoso, em virtude da natureza “ígnea” da transmissão neural. Lembres de que o prāṇa é inerentemente ígneo ou tejásico; afinal, o prāṇamaya-kośa constitui, de cer

ma, a mítica “carruagem de fogo” que se diz carregar ou veicular a alma. Conseqüentemente,ação do prāṇamaya-kośa e de seus nādīs com o sistema nervoso é extremamente íntima.irmamos, em verdade, que há um tipo especial de transmissão entre um e outro e que aconsci

mana, em todos os seus modos, advém precisamente de um intercâmbio entre os sistemas ná

ervoso.O prāṇamaya-kośa perpassa todo o corpo corpóreo e lhe dá a vida. Enquanto alma vegetativamenta, desde dentro, todas as funções metabólicas e fisiológicas: cada célula viva do corpo oa vida desse invólucro prânico. Devemos ter em mente que o corpo corpóreo, em si, não é viv

o está vivo: é sua ligação com o prāṇamaya-kośa que lhe garante a vida. Mas e a “consciênci

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rtamente, ela também deriva do prāṇamaya-kośa: não poderia ser de outro modo. Mas o faz pma transmissão diferente: esse é meu ponto. Uma transmissão de onde para onde? Evidentemenve se tratar de uma transmissão entre os sistemas nádico e nervoso. Há, em primeiro lugar, umvel rudimentar de consciência associado ao sistema nervoso autônomo, à qual se pode chamarsicossomática”. Essa consciência, porém, que se manifesta em sensações como a fome ou a drmalmente ofuscada pelos modos superiores associados ao sistema nervoso central, e podemracterizá-la como “mental”. Quiçá dirão que os dois modos de consciência correspondem a ntológicos diferentes: o psicossomático ao prânico e o mental ao manásico. Assim, se o prime

arreta uma transmissão entre os invólucros corpóreo e prânico, o segundo acarreta umansmissão adicional entre o prânico e o manásico. Ora, o que torna possível essa “segundansmissão”, de acordo com a doutrina védica, são os dez “poderes” ou faculdades chamados

driyas e derivados de manas, a faculdade mental por excelência. Há cinco indriyas “sensoriamo se poderia esperar, e cinco indriyas relativos a funções “motoras”. Mas, conquanto sejamencialmente mentais, esses dez poderes são relegados ao prāṇamaya-kośa em função de sua

nção conectiva. O que, então, é manas, a faculdade da qual descendem, como de um centro, osdriyas? Basta dizer que ela corresponde, em alguma medida, à nossa concepção de “mente” e

subdividida em três poderes concernentes às noções de intelecto, de consciência do eu ouankarā e de sentido central ou sensorium commune.É importante relembrar que manas não interage nem com o corpo molecular e nem com o corps apenas com o corpo vivo, que não é separado do prāṇamaya-kośa: tudo se escora sobre essação, essa “fusão” entre os dois kośas mais externos. Em razão dessa ligação, há uma associatre os canais nervosos e os nādīs correspondentes, e é essa “ligação nádica” que constitui o eal na transmissão de informações sensoriais do cérebro paramanas e de comandos motores dnas para o cérebro. Aqui, com efeito, há uma “apreensão de informações” entre neurônio[ 13dī , bem como entre nādīs e neurônio: mas essas transmissões são efetuadas pela ligação mesme define o annamaya-kośa. Gibson estava certo: não existe um “homenzinho” dentro da cabee “lê” o computador.[ 132 ]  E não precisa haver ; pois o annamaya-kośa e o prāṇamaya-kośa

am unidos de modo a constituir uma única entidade psicossomática. E não deixemos de notarerência ao chamado “problema da ligação”, que, nesse nível, uma primeira “ligação” já ocordavia, deve haver também uma transmissão superior − do plano psicossomático para onomaya-kośa −, e é aqui que os dez indriyas entram em cena: podemos pensá-los como

rojeções de manas” para o prāṇamaya-kośa e, logo, para organismo psicossomático.Agora, consideremos o cérebro humano à luz desses fatos. Neurologicamente falando, o céreb

m inputs sensoriais e outputs motores e opera como “mediador”, como uma espécie de disposprocessamento de informações. Em adição aos seus canais neurológicos de input  e output ,ntudo, o cérebro também tem canais “verticais” de input  e output , por assim dizer, através doais se conecta a manas ou “mente”. Ora, é precisamente por meio dessas ligações verticais qulizam as funções que caracterizamos anteriormente como não algorítmicas, porque, com efeitnas que as executa, em conjunto com o cérebro. Sozinho, o cérebro vivo consegue efetuar ap

nções algorítmicas e processuais: sua própria composição − o fato de que é “feito de neurônioplica isso. Ademais, essas operações neurais estão associadas, no máximo, à consciênciacossomática, em contraste com as funções não algorítmicas superiores, que se escoram em umsão” que ultrapassa categoricamente o domínio psicossomático.

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Agora, há de fato dois níveis onde essa “visão” pode ocorrer: isto é, no manásico e no vijnâncessário notar, porém, que o manásico em si é, de certa forma, intelectivo, como evidenciadovisão triádica de manas à qual nos referimos previamente. A noção de “intelecto” acarreta,rtanto, uma certa ambiguidade, mesmo na esfera do indivíduo humano; e, ao passo que o ato drcepção visual, por exemplo, é inequivocamente manásico − a despeito de sua natureza intele3 ] −, parece que a “atividade intelectual” pode ter lugar tanto no plano vijnânico quanto nonásico. Pode-se falar, no primeiro caso, em “intelecto” e, no segundo, em “razão”; entretantoo é que também a racionalidade é inerentemente intelectiva. O fato é que a verdade só pode s

reendida por um ato de “visão” que é inerentemente intelectivo, não importa o nível em quorra.

* * *

Essas considerações estão de acordo com a tese central de Roger Penrose − a afirmação de quscoberta e a prova matemáticas não se reduzem a operações algorítmicas e, portanto, a uma furebral − e, de certo modo, confirmam sua suposição de que a “não localidade” é a chave paraolver o problema da ligação. Igualmente, estão de acordo com a tese de William Debski, segual o “design inteligente” não pode ser efetuado por meios algorítmicos:[ 134 ] na esfera davidade humana criativa, assim como na do pensamento racional, um ato intelectivo se mostrandamental.[ 135 ] Em uma palavra, todas as ações propriamente humanas são inteligentes. Logo somente existem funções não algorítmicas superiores como elas se revelam verdadeiramentfinidoras da condição humana. Em consonância com essas observações, pode-se dizer que o rmal  de consciência humana é de fato manásico: o homem é mesmo um “animal racional”, ist

ma criatura mental .[ 136 ] Por certo, em nosso ser integral, abarcamos dois componentes ouvólucros superiores a manomaya-kośa; todavia, persiste o fato de que “normalmente” não temnsciência desses planos superiores. Além do nível manásico, também tendemos a estarmos

nscientes do psicossomático, mas sobretudo de maneira periférica; e, como todos sabem, nadida em que nos concentramos em atividades autenticamentehumanas, as sensaçõescossomáticas desaparecem por completo. Podemos supor que, normalmente, até os matemátieram no nível monásico; contudo, o que eles fazem por esses meios também pode ser feito − lhor! − no plano vijnânico: isso segue do fato de que cadakośa (inferior) opera em conjunçãouperior, do qual ele recebe seu princípio de operação. Desejo salientar agora que isso explicperiência de Henri Poincaré ao subir no ônibus e a de Penrose ao cruzar a rua londrinha: em acasos, uma janela se abriu, por um ou dois segundos, para o plano vijnânico. É significativo qnhum dos acontecimentos foi ocasionado por algo que estivesse acontecendo no momento e dujeito tinha consciência; a “porta” não pode ser forçada desde baixo. Nem se a pode manter erta; o máximo que se pode fazer “mentalmente” é relembrar o acontecimento e apreender alga importância.No estado de vigília, manas opera em relação estreita com o cérebro: há, com efeito, uma div

trabalho, por assim dizer, entre manas e o cérebro. Tomemos o caso da percepção visual: covimos, “decompor a imagem” é função do cérebro: fazer passar o input  retiniano através de vros, digamos, cada um específico para um certo parâmetro, seja esse a orientação das linhas,o de movimento, uma cor, e assim por diante. Entretanto, não é função do cérebro perceber : e

mplesmente não foi feito para “compor” e é inerentemente incapaz de tal operação. O cérebro

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para, a mente une: esse é o plano. Devemos observar, porém, que, no caso da percepção visua “ligação, que ocorre no manomaya-kośa, não consiste em ver uma imagem − de “compor uagem”, como diz Crick −, mas em perceber o ambiente, o que é inteiramente distinto. Sim, emto sentido, trata-se de “apreensão de informações”; mas o que é “apreendido” não é um mosaimpressões sensoriais ou disparos neurais, e sim, precisamente, o que Gibson chama de

variantes: isto é, “formas”, no sentido escolástico.[ 137 ] Devemos compreender que a percepnstitui de fato um ato de conhecer, no qual, “de certa maneira”, o sujeito se une ao seu objeto,mo diz Aristóteles. Ora, quase não é necessário apontar que tal ato autenticamente intelectivo

lutavelmente não algorítmico e, em princípio, ultrapassa a capacidade tanto dos cérebros quas máquinas de Turing. Manas interage, é claro, não apenas com o sistema visual, mas comúmeras outras unidades funcionais que se distribuem ao longo de várias regiões do cérebro; eda caso, a UF processa as informações das quais manas se vale.sso não significa, todavia, que manas seja responsável por padrões de disparo que envolvemlhões de neurônios; pois, como já notamos,manas não interage com o cérebro corpóreo − e mnos com o físico −, mas com o organismo psicossomático, no qual uma primeira ligação já

orreu. O que manas examina, se podemos dizê-lo, está a mundos de distância dos padrões de

paro que visam os neurocientistas; com efeito, a “informação” da qualmanas se serve não poconcebida em termos puramente quantitativos, mas abarca necessariamente um conteúdoalitativo e, em verdade, essencial , na ausência do qual ela não seria “visível” para manas dedo algum − e nem mesmo existiria. Não surpreende que os neurocientistas tenham achado dif

plicar como uma miríade de potenciais de ação se podiam transformar em percepções ensamentos, pois, com efeito, tal conversão não ocorre e nem pode ocorrer!Há também um outro ponto importante que deve ser ressaltado, o qual diz respeito aos cincormendriyas − faculdades que nos permitem realizar ações “voluntárias”. É crucial notar que eões também são necessariamente não algorítmicas e, com efeito, não se reduzem a uma funçãorebral: o que está em questão, afinal, é o que se chama “liberdade de arbítrio”. Está claro queurociência − ou melhor, o neurocientificismo − nega essa liberdade: “As gerações futuras”,creve Rita Carter, “darão por suposto que somos máquinas programáveis, assim como damos posto o fato de que a terra é redonda”.[ 138 ] Basta dizer que chegamos a uma conclusão muiterente: segue-se, do que veio antes, que as ações que emanam demanas envolvem um modo dusalidade que é irreparavelmente “vertical” − e, conseqüentemente, não se reduz às categoriadança, necessidade ou processo estocástico.[ 139 ]

Convém comentar, enfim, no que tange à “mente dividida” de pacientes lobotomizados: o caso

S., por exemplo, o qual, segundo seu lado esquerdo do cérebro, desejava se tornar um escrituconforme o direito, um piloto de corridas. Deve-se compreender que o que se torna “divididomente propriamente dita, mas simplesmente o telencéfalo. Manos, por certo, podem interagirbos os hemisférios cerebrais; e, quando os dois hemisférios têm sua ligação interrompida pe

ptura do corpo caloso, essas interações respectivas podem, sem dúvida, dar lugar a uma reaçãerente. Em contraste, nem a mente e nem a consciência propriamente ditas podem jamais ser vididas”.

* * *

Para concluir, direi apenas algumas palavras acerca da antropologia védica à qual recorremos

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al é a base − perguntemo-nos − sobre a qual repousa essa doutrina? Obviamente não é a “ciênnosso sentido do termo. O que, então, poderia ser? Trata-se de filosofia, de um tipo de

orização religiosa”, talvez? Creio, fundamentalmente, que se trata de “visão”: isto é, umcernimento que advém dos “modos superiores de percepção”. Assim como os “puros de corarão a Deus”, também deverão chegar a “ver” os mistérios de Deus, inclusive aqueles que subque os teólogos chamam de Criação. Ora, a precondição essencial para toda “visão” desse ti

m dúvida, uma metanoia radical: uma mudança de nosso olhar intelectivo, que passa do mundterno ou percebido pelos sentidos para o interior, do qual a maioria de nós tem apenas um tip

ção conceptualizada ou de “segunda mão”. O que está em questão, com efeito, é umtoconhecimento, em concordância com a injunção délfica; e também aqui se precisam abrir aortas”, as quais não podem ser forçadas “desde baixo”. Os meios requeridos, portanto, sãolutavelmente iniciáticos. Essa tarefa, em verdade, ultrapassa categoricamente o que o indivídmano − que, afinal, é uma criatura do conhecimento de superfície − é capaz de realizar por sismo. Da mesma forma, ademais, vemos que, nessa busca “transcendente”, os métodos da ciêndental não são absolutamente de nenhuma utilidade; a própria concepção desse “caminho intnsgride o horizonte do pensamento científico contemporâneo. Nossos cientistas já sondaram

iverso externo − das partículas subatômicas às galáxias que supostamente a bilhões de anos-lutância − e começam agora a procurar até mesmo por aquilo que Crick chama de “alma”; conttodas essas buscas, eles olham “para fora”, na direção de arredores que, no cômputo final, n

stem. Como argumentei em outra parte,[ 140 ] esse conhecimento está sempre mesclado com gano: é um conhecimento que espalha e, de certa maneira, perpetua a Queda. Sim, trata-se de o de “conhecimento”, mas não de um jñāna ou gnosis: por certo, não do tipo de conhecimentode nos esclarecer acerca de Deus e da alma.

106 ] Francis Crick, The Astonishing Hypothesis, Simon & Schuster, Nova York, 1995, p. 3.

107 ] O “branco” da massa branca se deve a uma substância chamada mielina, que se encontra no revestimento dos axônios mgos e aumenta a velocidade da transmissão neural. O córtex cerebelar parece branco porque é majoritariamente composto denios.108 ] Rita Carter, Mapping the Mind, University of California Press, Berkeley, CA, 1999, p. 13.109 ] Rita Carter, Mapping the Mind , op. cit ., p. 50-51.110 ] IA significa “inteligência artificial”; trata-se da disciplina que lida com dispositivos para estimular ou manifestar açãoligente.111 ] Alan Turing foi, quiçá, o mais influente teórico da computação; era um homem de inteligência matemática e lógica singutrabalhou para os Aliados, na Segunda Guerra Mundial, como seu principal decodificador. Ele concebeu o que se chama dequina de Turing”, um dispositivo formal que constitui o protótipo de todo computador real ou possível. Alan Turing também éhecido por sua convicção de que a própria mente humana é uma máquina de Turing. Tragicamente, sua vida terminou em suicí

112 ] Como Sir Francis Crick, Hopfield é um físico que se tornou cientista cerebral por meio da biologia molecular. Parece queo do último século, o “núcleo de interesse científico” mudou da física para a biologia molecular e a neurociência.113 ] Francis Crick, The Astonishing Hypothesis, op. cit ., p. 184.114 ] Francis Crick, The Astonishing Hypothesis, op. cit., p. 158.115 ] Op. cit., p. 159. Itálico de Crick.116 ] Deve-se notar que isso fornece amparo à afirmação de James Gibson (ver capítulo 4) de que a percepção visual não policada com base em razões neurológicas. Talvez eu deva apontar que, quando Gibson estava formulando suas idéias, nas décae 60, a neurociência estava apenas começando a desvendar os fatos neurológicos básicos relativos à estrutura e ao funcionameema visual. Parece que Gibson, psicólogo que era − por treinamento e interesse profissional −, não tinha condições, à época, demilar essas descobertas ao ponto de reconhecer sua relevância para a sua própria pesquisa. Hoje, com o benefício da reflexãoventos passados, podemos entender prontamente que a neurociência corroborou muitas das doutrinas gibsonianas, a começar ação revolucionária de que não  percebemos uma imagem visual, seja retininana ou retinotópica. Afinal, não somente há muito

rentes de mapas retinotópicos, nenhum dos quais corresponde ao que de fato vemos, como também esses mapas se tornam cas distorcidos conforme passamos a áreas visuais superiores, as quais, enfim, deixam de ser retinotópicas, deixam de ser “mapa

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po visual. Outra afirmação gibsoniana que foi confirmada com base na neurologia é que aquilo que percebemos não precisa eso diretamente na forma de estímulos retinianos: o fato de que os neurônios de algumas das áreas visuais superiores podem dispte de contornos subjetivos corrobora essa conclusão.117 ] John Horgan, The Undiscovered Mind, Simon & Schuster, NY, 1999, p. 22.118 ] Roger Penrose, The Emperor’s New Mind, Oxford University Press, 1990, p. 412.119 ]  Ibid., p. 418.120 ] John Horgan, op. cit ., p. 240.121 ] Wolfgang Smith, “Bell’s Theorem and the Perennial Ontology”, in: The Wisdom of Ancient Cosmology, The Foundationditional Studies, Oakton, VA, 2004).122 ] O tratado definitivo sobre o assunto, em língua europeia, é sem dúvida o livro  Man and His Becoming According to th

anta, de René Guénon, ao qual remeto o leitor interessado.123 ] Notemos que isso corresponde à divisão triádica corpus-anima-spiritus da tradição ocidental.124 ] Summa Theologiae, quest. 78, art. 1.125 ] O objeto corpóreo é aquilo que se conhece por meio da percepção sensível cognitiva, ao passo que o objeto físico oulecular” se conhece mediante o modus operandi da física. Ver: Wolfgang Smith, O enigma quântico, op. cit .126 ] Ver especialmente: Wolfgang Smith, “Eddington and the Primacy of the Corporeal” in: The Wisdom of Ancient Cosmol

cit.

127 ] O termo “tejas” refere-se ao terceiro dos cinco elementos sutis conhecidos como mahābhūtas, que é o “fogo”.128 ] Jo 1, 9.129 ] Capítulo 15, verso 1.130 ] O fato de que o cérebro se situa “acima” mostra que a exemplificação ou “imagem” está invertida, fato de grandeificância que, todavia, teremos de deixar de lado.

131 ] Estritamente falando, o “neurônio vivo” que pertence a LX, distinto tanto do X “meramente corpóreo” quanto do SX mol132 ] Sobre a teoria gibsoniana, remeto o leitor ao capítulo 4.133 ] Ver capítulo 4, especialmente as duas últimas seções.134 ] Ver William Debski, The Design Inference, Cambridge University Press, 1998. Para um resumo da teoria de Dembskieto o leitor ao capítulo “Intelligent Design and Vertical Causality”, em: Wolfgang Smith, The Wisdom of Ancient Cosmology,

135 ] A base intelectiva de toda “arte” verdadeira foi bem compreendida na época medieval. Como diz a máxima escolástica:scientia nihil ” [A arte sem conhecimento não é nada].

136 ] A ligação entre a palavra inglesa “man” ou a alemã “ Mensch” e a palavra latina “mens” pode ser ou não etimológica, mo caso, é significativa.137 ] Ver capítulo 4.

138 ] Rita Carter, op. cit ., p. 207.139 ] A respeito, remeto o leitor ao capítulo “Intelligent Design and Vertical Causation” do livro The Wisdom of Ancient 

mology, op. cit . Ocorre, ademais, que a causalidade vertical desempenha um papel decisivo na teoria quântica; acerca dessastão, remeto o leitor ao capítulo 6 de meu tratado O enigma quântico, op. cit .140 ] Wolfgang Smith, Cosmos and Transcendence, Angelico Press/Sophia Perennis, Tacoma, WA, 2012, pp. 161-66.

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6O CHACRA E O PLANETA:

A DESCOBERTA DE O. M. HINZE

m um pequeno livro intitulado Tantra Vidyā: Archaic Astronomy and Tantra Yoga,[ 141 ] Oscarcel Hinze relata uma descoberta científica cujas implicações são notáveis. Esse trabalho sempõe de três ensaios, publicados anteriormente em território germânico, que tratam,pectivamente, de astronomia arcaica, de ioga tântrico e, surpreendentemente, dos ensinamentrmênides. Alegando que esses tópicos aparentemente díspares são intimamente relacionados,nze procede a uma demonstração dessa ligação, apresentando concordâncias tão impressionaecisas que dissipam toda duvida razoável. Ocorre, em primeiro lugar, que os aspectos de gest

astronomia planetária são, com relação à anatomia tântrica do chacra, como manifestaçõescrocósmicas e microcósmicas, respectivamente, da mesma estrutura paradigmática. Assim, vum isomorfismo, até então insuspeito, entre o sistema planetário e a anatomia sutil do homem

e significa que a identidade estrutural entre macro e microcosmo, conforme concebida

dicionalmente, agora vem a ser corroborada com base em razões científicas e sóbrias. Tal é arga dos dois primeiros ensaios; e o terceiro não se mostra menos significativo. Publicada pelmeira vez em 1971, ela consolida Oscar Marcel Hinze como um dos primeiros autores a

descobrir a “verdadeira face” de Parmênides, a qual permaneceu oculta por mais de dois mil lugar de um “lógico” lendário que supostamente propusera um monismo que negava o mundo

s revela um adepto da ioga kundaliní  que nos fala do plano de ājñā-chacra. E, mais uma vez, o conduz seu argumento por meio de especulações vagas, mas com base na força de concordâecisas, por demais cogentes para que sejam desconsideradas como mera “coincidência”. Em

avra, o tratado revolucionário de Hinze constitui uma contribuição fundamental para adescoberta progressiva da autêntica cosmologia perennis.

* * *

A Parte I  do livro de Hinze, como dissemos, trata da astronomia arcaica, uma ciência baseadaservação visual direta do céu noturno. Contudo, precisamos compreender que há graus e moderentes de observação e que os poderes de percepção ou faculdades humanas eramomparavelmente maiores nos tempos arcaicos do que são hoje. No espírito da psicologia da

stalt , Hinze defende que aquilo que se percebe primeiramente é o todo, enquanto distinto de s

rtes; todavia, ele alega que, ao longo do tempo, seja no desenvolvimento do indivíduo ou da redominância passa gradualmente do todo para as partes. Baseando-se em dados psicológicoropológicos, Hinze afirma que a criança, igualmente ao homem arcaico, percebe antes de mai

da a gestalt , ao passo que nós, adultos dos dias de hoje, percebemos sobretudo um agregado rtes. Em uma palavra, a percepção humana tende a se desintegrar . É fácil entender, ademaisscendência da ciência moderna exacerbou significativamente essa tendência universal; no enquilo que os historiadores denominam Iluminismo, parece que nossa capacidade de discernirstalt  dos fenômenos naturais foi drasticamente reduzida. Nossa filosofia reducionista, por suanfere a primazia ontológica às partes e, em última instância, aos resíduos quantitativos que re

ando cada todo e, assim, cada essência ou ser, é retirado do mundo.[ 142 ]

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Claramente, essas observações abrem novas perspectivas para nossa compreensão da astronoaica; como observa o autor: “Os planetas, nos tempos antigos, não eram pedaços independentéria localizados em alguma parte de um espaço vazio, e sim partes orgânicas do céu arcaicoais retêm suas qualidades e importância em virtude de suas posições respectivas dentro do to.[ 143 ] O ponto crucial a ser notado é que essas “qualidades” não existem de um ponto de v

ducionista: elas não dizem respeito aos planetas quando concebidos como “pedaços independmatéria localizados em alguma parte de um espaço vazio”. Todavia, os cientistas de hoje est

dondamente enganados ao concluir que essas qualidades, por conseguinte, são imaginárias ou

eais. O desaparecimento das qualidades, alega Hinze, longe de ser autorizado pelo iluminismntífico, é causado sobretudo pelo supracitado declínio de nossa habilidade em perceber a ges

rescente-se a essa diminuição o fato de que a astronomia moderna se baseia em meios artificobservação, projetados para detectar e medir parâmetros quantitativos, e se verá por que o

óprio conteúdo da astronomia arcaica desapareceu do panorama científico.O que se revela crucial para a astronomia arcaica é o que Hinze chama de “ gestalt  sucessiva”a gestalt  dada pelas sucessivas posições de um corpo ao longo de certo tempo. Devemos salie esse tipo de gestalt  ainda nos é percebível, contanto que o período de tempo correspondent

ficientemente curto. O exemplo mais óbvio concerne ao domínio auditivo: nossa habilidade, pemplo, de “ouvir” melodias e palavras. Entretanto, também podemos perceber visualmente astalt  sucessiva, como no caso de uma dança. Hinze conclui que “Há, portanto, percepções qum perder sua unidade ou clareza, preenchem um certo período de tempo e podem ter um contemporal desse período por objeto” (12).[ 144 ] A esse respeito, ele fala em um “tempo de

esença” e enuncia uma lei de declínio, a um só tempo ontogenética e filogenética, com referêne parâmetro. Parece − ainda que isso seja surpreendente − que o homem arcaico dispunha de

mpos de presença suficientemente longos para trazer a gestalt  sucessiva dos movimentosanetários diante do alcance de sua percepção visual. Com efeito, há razão para crer que a distutável entre memória e percepção que estamos acostumados a traçar fora basicamente transces tempos arcaicos:

Devemos pensar que os observadores arcaicos do céu provavelmente eram dotados de memória perceptiva extraordinariavital, com a capacidade de ver conjuntamente, em uma unidade presente, fenômenos que, hoje, para nós, estão separados detemporalmente para que sejam percebidos como partes de um mesmo todo (21).

Então, também há razão para crer que a separação categórica entre o visual, o auditivo e outromínios sensoriais foi igualmente transcendida. Devemos mencionar que há umcorpus dedências considerável para amparar essa afirmação; em um experimento que envolveu pessoa

nfluência de mescalina, por exemplo, os sujeitos disseram isso: “Eu senti, vi, saboreei e cheim. Eu era o próprio som”.[ 145 ] Em suma, com base em diversos tipos de evidência, Hinzemula outra lei genérica: “Quanto mais se recua no desenvolvimento, mais as áreas individuai

ntidos − que, no homem formado culturalmente (“ Kulturmensch”) de hoje, são claramenteerenciadas umas das outras − ainda se encontram unidas”.

Tornou-se evidente que o homem arcaico tinha acesso a planos de experiência sensorial que ps estão fechados. Contudo, não é uma questão de domínios sensoriais, mas, enfim, de significa

acesso a arquétipos. Trata-se de ler o Livro da Natureza, de perceber “as coisas invisíveis dus nas coisas que são criadas”. No caso da astronomia, é claro, o que deve ser “lido” é sobreéu noturno: as “luzes no firmamento do céu”, que nos foram dadas não apenas “por estações,

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s e por anos”, e sim, antes de mais nada, “por sinais”. Quando Hinze fala em “astronomia dastalt ”, devemos recordar que gestalt  significa muito mais que uma mera forma, figura ou padrual: o que, em última instância, está em jogo é o milagre da semanticidade, de signos que

esentificam um referente transcendente. Como explica Hinze: “Os sacerdotes arcaicos quentemplava os céus compreendiam, no estágio mais elevado de sua interpretação grafológica du, os astros e seus movimentos como símbolos cósmicos que, quando assim decifrados, forneplicações acerca das questões mais essenciais da vida humana” (23). Não se pode senãoncordar que essa antiga ciência era de fato uma “astronomia simbólica de gestalt ”.[ 146 ]

* * *

Na segunda parte de seu tratado, o autor nos introduz às concepções fundamentais dotantra vi

meçando pelos sete principais “centros” do homem, simbolicamente chamados dechacras

odas” ou “círculos”) ou padmas (“flores de lótus”). Como se sabe, esses centros se situam aongo de um eixo que corresponde à coluna vertebral e vão desde omūlādhāra-chacra, próximose, até o sahasrāra, no topo da cabeça. Cada centro se caracteriza por um número inteiro, quedemos conceber como o número de “pétalas” (ou “raios”, segundo o simbolismo dechacra) ddma correspondente. A seqüência resultante, em ordem ascendente (do mūlādhāra ao sahasrā

, 6, 10, 12, 16, 2, 1000. Seguindo Hinze, às vezes nos será conveniente designar um centro pmero de pétalas associado; dessa forma, (4) irá designar omūlādhāra, e assim por diante. Denotar que a suma dos primeiros seis números da seqüência é 50, que é também o número de lalfabeto devanágari (cultual). Devemos ressaltar que essa ligação entre os chacras e o som oa se revela ser básica: a tradição tântrica concebe a criação, tanto em seu aspecto macrocósmanto microcósmico, como um efeito de śabda-brahman, que literalmente significa “Brahmannoro”, isto é, o Deus que se manifesta como som ou fala, noção essa que relembra o que ostianismo conhece como o Verbo de Deus.[ 147 ] Aqui também se pode dizer que “ No começ

Verbo”, conquanto, por certo, a tradição tântrica entenda isso à sua própria maneira. Desse śaahman ou Verbo, de qualquer modo, surgiram, por um lado, os mundos oulokas e, por outro, ocrocosmo humano, a começar pela hierarquia dos chacras. Deixando de lado o sahasrāra, qu

presenta simbolicamente como lótus de mil pétalas (e nunca é chamado de chacra), cada chacá associado, com efeito, a um bījmantra ou “som seminal”, que Hinze denomina seu Som Censse Som Central, originam-se vários sons diferenciados, que são precisamente os sons

presentados pelas letras do alfabeto devanágari e que correspondem às “pétalas” do padma ous associado. Percebe-se que essa ligação entre padmas e letras do alfabeto, estipulada no ta

dyā, não é de modo algum adventícia, para dizer o mínimo. Mencionemos, em seguida, que há

ação entre os cinco primeiros chacras e os cinco elementos clássicos; para ser preciso, (4)rresponde à terra, (6) à água, (10) ao fogo, (12) ao ar e (16) ao éter. Conforme a doutrina tânda elemento advém do bījmantra correspondente, como sua manifestação elemental. Agora, snsiderarmos a distribuição dos chacras dentro do corpo humano, veremos que os quatro primsituam no tronco, o quinto na garganta e os dois restantes na cabeça. Novamente, deixando deahasrāra (tendo em vista sua natureza “transcendente”), recuperamos assim a divisão tradicitribhuvana ou mundo triplo, que se compõe do plano “terrestre”, feito dos quatro elementosferenciados” e representado micro cosmicamente pelo torso humano, do plano “intermediári

ociado ao quinto elemento ou quinta essentia (que contém, sinteticamente, os quatro elementeriores) e representado no corpo humano pela garganta ou pelo pescoço, e do plano “celeste”

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ceiro, correspondente ao sexto centro, o ājñā-chacra, representado no corpo pela cabeça edicionalmente retratado como um “terceiro olho”, localizado no centro da testa. Em contrasteco primeiros chacras, o ājñā-chacra não está associado a nenhum elemento, mas corresponde se pode chamar de natureza espiritual do homem (antaḥkaraṇa ou “instrumento interior”, qunsiste de manas, buddhi e ahaṁkāra). Obviamente, não podemos entrar aqui em uma discusstalhada acerca desses assuntos; basta reiterar que os seis chacras inferiores, agrupados de acom suas respectivas posições dentro do torso, do pescoço e da cabeça, correspondem visivelmdivisões do tribhuvana védico. Com a exceção dos yantras ou figuras geométricas, os eleme

mbólicos remanescentes que entram na descrição tradicional dos chacras, como as váriasvindades” ou “encarnações de Ṥakti”[ 148 ] reveladas nesses locais, ou os animais simbólico

e constituem seus vāhana ou “veículos” são de interesse secundário, dado o foco de nosso trapróprio Hinze só toca ligeiramente nesses assuntos, em consonância com o fato de que suaeocupação primária é o descobrimento de uma concordância entre o simbolismo tântrico e aronomia arcaica; e, decerto, o que melhor se presta a esse fim são os aspectos geométricos eméricos da descrição tântrica.O autor aborda o problema por meio de textos que estão fora do terreno tântrico, a começar p

undaryalahari, um poema sânscrito atribuído a Shakarāchārya. Aí, nesse texto pouco conhecsete “centros” principais são claramente mencionados, mas apenas com relação às suasnifestações macrocósmicas enquanto “círculos ou esferas do universo”. Como explica Hinzeiverso é compreendido como o corpo da divina mãe do mundo, Mahā-Devi; ele se desenvolvertir de um estado pré-mundano ( sahasrāra), em seis etapas, a primeira das quais correspondeñā-chacra” (39). Isso nos lembra, é claro, dos nossos “seis Dias de criação”. Ora, consideraneresse extraordinário das “luzes do firmamento” e, em especial, dos seis corpos planetáriosdenciados pelo homem arcaico, não podemos deixar de nos perguntar se as sete regiões cósmSaundaryalahari não correspondem de fato aos sete planetas clássicos. “Essa questão”, con

nze, “não pode ser respondida seguramente com base apenas noSaundaryalahari” (40). Em bevidências adicionais, ele se volta ao mitraísmo; como observa Franz Cumon em The Myster

Mithra: “Os sete passos da Iniciação pela qual o místico tem de passar a fim de alcançar bedoria e pureza perfeitas correspondem, nesse culto, às esferas dos sete planetas”. Porém, ais falta a chave, a pedra de Roseta, por assim dizer; e foi isso o que Hinze descobriu, enfim −preendentemente −, em uma obra de Johan Georg Gichtel, um discípulo de Jakob Boehme. El

da em uma ilustração encontrada em seu livro Theosophia Practica, publicado pela primeira 1696, que retrata os sete centros dentro do corpo humano, rotulados de acordo com os signo

anetários correspondentes. A ordem dos planetas é a de Ptolomeu: Lua, Mercúrio, Venus, Solarte, Júpiter e Saturno. Como foi, então, que Gichtel chegou a essa correspondência? Na páginto de seu livro, o próprio teósofo alemão fornece a pista essencial: “Uma breve explanação ds princípios dos três mundos presentes no homem, representados em uma ilustração clara que

ostra como e onde têm seus respectivos centros, de acordo com o que o autor, em suas

ntemplações divinas, descobriu em si mesmo e sentiu, experimentou e percebeu”.Estabelecida essa correspondência entre chacras e planetas, Hinze se volta para a realização a tarefa principal, que é explicar os números de pétalas com base na astronomia.[ 149 ] Aí

meça o trabalho real. A primeira coisa que se precisa fazer é distinguir entre «números deríodos», os quais dependem de unidades particulares de tempo (como ano, mês ou dia) e «nú

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gestalt ”, que descrevem figuras geométricas traçadas por corpos planetários, e, feito isso,onhecer que o que importa, micro cosmicamente falando, são, com efeito, os primeiros. Ago

oblema de Hinze está em mostrar que a Lua tem o número- gestalt  4, Mercúrio o número- gesta

ssim por diante; o caso de Saturno (que corresponde ao lótus de mil pétalas, chamado sahasr

nico, por certo, e requer considerações especiais, apropriadas à natureza transcendente dessentro supremo. Visto que as investigações resultantes são necessariamente técnicas, não forne

ma explicação completa, mas simplesmente tentarei comunicar a idéia do que está envolvido.[ ra começar, observarei que os número- gestalt  da Lua de fato é 4, em função da configuração

angular definida por suas quatro fases reconhecidas. Dado que uma delas é invisível, o númeatro se decompõe em 1 + 4, o que constitui aquilo que Hinze chamou de correspondênciacundária relativa às letras do alfabeto devanágari associadas ao lótus em questão: afinal, ocoe as quatro letras que correspondem ao mūlādhāra-chacra se compõem de 1 semivogal e 3ilantes. Retornando à Lua, é interessante notar que esse planeta também forma uma segunda fual também era conhecida nos tempos antigos: a saber, um triângulo. Assim, vemos nas

presentações iconográficas tradicionais do mūlādhāra um triângulo inscrito em um quadrado.Voltando-nos agora ao planeta Mercúrio, que, segundo Gichtel, corresponde ao segundochacr

mero de pétalas 6), pode-se mostrar que suas conjunturas com o Sol dão lugar a um hexagramal, com efeito, constitui-se de dois triângulos superpostos. Isso não apenas resulta nomero- gestalt  6, como também define uma correspondência secundária com as letras associadais se compõem de 3 labiais e 3 semivogais. Em seguida temos Venus, planeta que, em associZodíaco, produz uma figura composta de dois pentagramas; e aí também temos uma

rrespondência primária com o chacra associado (cujo número de pétalas é 10), mais aquilo qnze chama de correspondência secundária “parcial” com as letras em questão, que se compõedentais, 3 cerebrais e 2 labiais. Aqui, segundo a visão de Hinze, uma correspondência de tercdem entra em cena, envolvendo uma divisão subseqüente de 5 em 3 + 2. Com esse entendimende-se dizer que “com efeito, todas as flores de lótus exibem uma correspondência de segundadem com os planetas que lhes pertencem”. Voltando agora nossa atenção para o Sol, observame ele tem um número- gestalt  advindo de suas conjunturas e oposições com a lua. A chave énsiderar os dois eclipses solares especiais, um no modo ascendente da Lua (conhecido comoÍndia védica) e o outro em seu modo descendente (conhecido comoketu). Como Hinze ressal

guida: “A posição desses eclipses solares no Zodíaco é tal que se encontram opostos um ao oem ambos os lados, ocorrem 5 conjunturas. A estrutura astronômica dos encontros Sol-Lua, aganiza-se realmente em 5 + 5 + 2 = 12. A distribuição das letras no lótus de 12 pétalas [em 5

urais, 5 palatais e 2 cerebrais] constitui a expressão exata dessa estrutura astronômica” (64).sso nos traz ao planeta Marte, o qual apresenta, como de costume, interesse e dificuldadepeciais. Podemos lembrar que foi o comportamento arredio desse planeta que finalmente levopler a romper com os pressupostos costumeiros e inaugurar a era da moderna astronomia

anetária, com o tratado Sobre o Movimento de Marte, publicado em 1609; e agora, outra vez,ssa busca pelo número- gestalt  de Marte começa com um enigma. É bem sabido que Ptolomeuocia Marte ao número de período 15; mas o que é, precisamente, que supostamente ocorre desse período? Uma nota de rodapé à edição bilíngue grego-inglês de Ptolomeu, publicada em orma-nos de que isso é “um mistério”! Ora, parece que Hinze solucionou esse enigma duradodiante um exame cuidadoso dos chamados “círculos” de Marte, dos quais há oito, em um per

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al de, sim, 15 anos. Esses círculos se conectam aos movimentos retrógrados de Marte e ocorrnto aos pontos em que o planeta alcança maior proximidade com a Terra. Por conseguinte, essculos são claramente visíveis e marcados por brilho excepcional. Começam com a redução docidade do movimento ao leste que culmina em um ponto de reversão (o que Hinze chama deFase 1), seguido de um segundo ponto de reversão (que marca o fim da Fase 2), após o qual

aneta retoma seu curso normal em sentido leste. É essa bipartição de cada um dos oito círculorcianos que produzem o número- gestalt  16, que, com efeito, é o número de pétalas dochacra

rrespondente: a saber, o quinto, chamado viśuddha, que é associado ao elemento ākāśa e se

aliza na garganta. Resta salientar que as 16 letras associadas a esse chacra se compõemecisamente das 16 vogais sânscritas, que se separam em oito pares que consistem de suas formngas e breves. Acho completamente fascinante que a divisão fonética em formas longas e br

s oito vogais primárias seja refletida macro cosmicamente na bipartição dos oito círculos

rcianos, um drama que se executa nos céus a cada 15 anos!

Mencionarei, de passagem, que existe uma segunda abordagem ao número- gestalt  de Marte (qvolve “dois pares de oito encontros Vênus-Lua), a qual, de um ponto de vista astrológico, poscrever como complementária à primeira. Essa complementaridade corresponde, ademais, a u

mplementaridade entre o primeiro e o quinto chacras, reconhecida na tradição tântrica, e quemais, está de acordo com o fato de que esses centros respectivos têm o mesmo animal simbósaber, o elefante) como seu vāha. Novamente, acompanhar Hinze em sua elucidação acerca drias conexões nos desviaria muito de nossa rota; basta citar esses comentários conclusivos:uando, portanto, Gichtel localiza Marte na laringe, embora a tradição astrológica costumeiraoque Touro aqui (e, logo, os planetas Vênus e Lua), e quando, além disso, a tradição indianaoca nesse local uma flor de 16 pétalas, estamos lidando, em todos esses casos, com uma

presentação exata da astronomia da gestalt ”. Para fins de corroboração adicional, nosso autorlímato apresenta a figura de uma cabeça de touro talhada em metal, encontrada em Micenas, c

ma roseta de 16 pétalas em sua testa; e exibe o frontispício de um livro holandês acerca dos ín-americanos do Suriname, que retrata um guerreiro chamado “Kainema” (que significa “batal

ngue”), marcado com uma figura na forma de estrela de 16 raios centrada na garganta. Após nm o Kainema histórico foi incumbido do dever de vingar a morte violenta de seu pai, Hinzenclui:

Ora, Gichtel localiza o planeta Marte no mesmo lugar do corpo em que  Kainema, notavelmente, é marcado. Mas, como bsabe, Marte também indica agressão, poder e violência. Por fim, quando se lê o texto sobre o lótus de 16 pétalas no Sat-cha

nirūpana [o texto primário acerca da ioga kundaliní ], em que se relata que o iogue que dominar esse centro será capaz de todos os três mundos “em sua ira”, percebe-se como aqui também se ressalta o caráter de violência e poder desse centro (72

Acima do centro marciano na garganta, reside o ājñā-chacra, tradicionalmente representado esobrancelhas, cujo lótus tem apenas duas pétalas, as quais correspondem ao Sol e à Lua. Comservado anteriormente, esse centro diz respeito ao plano espiritual, o “mundo” terceiro e suptribhuvana. É aí, em ligação com esse loka supremo propriamente dito, que Hinze desenvolv

as elucidações mais belas e penetrantes, as quais, todavia, não tentaremos expor aqui. Bastaientar que o ājñā-chacra não representa nem o Sol e nem a Lua, mas o seu local de encontro, nstitui uma espécie de “Coração celestial”. Para ser preciso, o ājñā-chacra é o centro onde scontram os nādīs chamados pingalā e idā (correspondentes ao Sol e à Lua, respectivamente),

njuntura essa, acrescentemos, retratada na figura familiar do caduceu hermético. Como se

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peraria, a combinação dos simbolismos astrológico e alquímico relativos aochacra em questgido pelo “planeta real”, Júpiter! − é rica o bastante para preencher um tratado para si. Deve-ncionar que a pesquisa do autor no que tange a essechacra o leva a considerar o chacra

cundário chamado dvādaśār ṇa, cujo número de pétalas é 12, situado entre o ājñā-chacra e ohasrāra. O fato de que o dvādaśār ṇa está associado a duas letras, cada qual ocorrendo seis vela-o estruturalmente ao ājñā-chacra, e é por meio dessa ligação, precisamente, que arrespondência entre o sexto chacra primário e o planeta Júpiter vem à luz. Gostaria de acresce os centros secundários são interessantes também por outros motivos; necessitamos compree

e, a despeito da primazia ou dominância dos sete centros “clássicos”, dizem que o número deacras é “ananta”, isto é, “ilimitado” ou, também podemos dizer, “infinito”. Faz sentido, portae uma astrologia baseada em sete planetas não seja completamente abrangente e que, em princ“planetas” secundários também têm de ser levados em conta. Assim, vemos que a descobertarpos planetários adicionais, começando por Urano e Plutão, não entra em conflito, de modo am os princípios da astrologia autêntica.Até agora, deixamos fora de nossas considerações o centro mais elevado, o sahasrāra,mbolizado por um lótus de mil pétalas. Falando em termos matemáticos, pode-se dizer que ele

presenta o último termo de uma série, e sim o seu limite; como observa Hinze: “A flor de lótul pétalas já é o que há de sobre-humano no homem”. O “loka” correspondente − o qual,ritamente falando, não é de modo algum um loka ou “mundo” − não tem relação com nada alée só podemos falar dele em termos apofáticos. Ele pode ser conhecido no estado denirvikalp

mādhi, o qual, com efeito, dizem resultar de um “despertar” de sahasrāra. O próprio número talas nos informa do fato de que todas as coisas encontradas nos seis lokas do tribhuvana estãeeminentemente contidas nesse estado transcendente: tal é a leitura simbólica do número mil. mbolismo adjunto das letras, ademais, está de acordo com esse fato; pois se diz que cada letraabeto devanágari aparece vinte vezes nas pétalas de sahasrāra. Há, é claro, razões astrológias quais o planeta Saturno é associado a esse centro último e mais alto; no entanto, deve esta

arente que essa correspondência pouco tem a ver com números da gestalt .Voltando ao arranjo de concordâncias entre a anatomia tântrica doschacras e os fatos daronomia da gestalt , eu gostaria de salientar que essas descobertas notáveis, em verdade, exooutrina muito ridicularizada do “geocentrismo”; afinal, uma astronomia que produz asncordâncias em questão é irreparavelmente geocêntrica. Tomemos, por exemplo, os círculos arte: de uma perspectiva heliocêntrica, eles simplesmente não existem, e tampouco existem donto de vista da cosmologia contemporânea, uma vez que ela se funda no princípio copernican

1 ] Logo, o fato de que uma congruência entre o microcosmo humano e o macrocosmo planetám à luz precisamente de um ponto de vista geocêntrico não somente confere legitimidade, mambém uma certa primazia à cosmologia geocêntrica. Vemos que a suposta revolução copernice tem sido retratada em nossas escolas e universidades como uma vitória da ciência sobre aperstição, é, na realidade, um passo fatídico que fechou as portas para qualquer entendimento vado acerca do homem e de seu destino.

Todavia, há um segundo argumento importante que precisa ser ressaltado: ocorre que a descobHinze desqualifica as teorias científicas contemporâneas concernentes à origem de nosso sist

anetário. E faz isso, ademais, de um só golpe e com rigor exemplar, em razão do fato de que ancordâncias em questão se traduzem em “informações complexas especificadas”: afinal, hoje

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bemos, com a força de um teorema matemático, que nenhum processo natural, seja deterministatório ou estocástico, pode gerar ICS.[ 152 ] Refiro-me, é claro, ao que veio a ser conhecido

mo “design inteligente”, assunto que recentemente vem recebendo atenção considerável nosculos científicos e na mídia. Infelizmente, porém, essa teoria tem sido interpretada de modo

devido quase que invariavelmente − e, com efeito, de forma tendenciosa − como “criacionistaando, na verdade, ela é a única ciência “dura” que incide direta e decisivamente sobre o probquestão. Longe de se basear na fé religiosa ou em convicções bíblicas, a teoria do DI se esc

bre um teorema ou lei tão sólido quanto a segunda lei da termodinâmica, com a qual, na verda

tem íntima relação. Para retificar a disputa: são os darwinistas e não os seus oponentes do Dão violando as normas do debate científico. Retornando ao sistema planetário, agora émonstrável que nenhuma explicação “naturalista” de sua origem − nenhuma explicação baseaocessos deterministas, aleatórios ou estocásticos, para ser exato − pode dar conta dasncordâncias que Hinze trouxe à luz. O mesmo ocorre com esse sistema planetário que ocorre genomas: o fato de que essas estruturas “carregam ICS” põe em jogo necessariamente a noçãesign inteligente” ou “causalidade vertical”.[ 153 ]

* * *

Na terceira parte de seu livro, Hinze reflete sobre os ensinamentos de Parmênides, aos quais eorda de um ponto de vista inerentemente iogue ou “iniciático”. Ele não está interessado apenautrina, mas também, e especialmente, em seu autor: podemos dizer, no gênero do homem; e oce há três grandes pistas que se mostram esclarecedoras a esse respeito. A figura de Parmênide emerge das elucidações resultantes difere enormemente do “lógico que nega o mundo”,contrada nos livros-texto de filosofia: em lugar de um mero “pensador”, Hinze nos revela asções de um adepto, de alguém que alcançou uma modalidade superior de conhecimento. Assimnze também nos dá a entender que o ensinamento de Parmênides não equivale ao famoso

onismo” que é discutido nos departamentos de filosofia, e sim algo que, no mínimo, lembra ovaita, o verdadeiro “não dualismo”, como o que pode ser encontrado, por exemplo, nosanixades.

Contudo, parece que o estereótipo do “lógico quixotesco”, longe de constituir uma invençãooderna, existe há muito: desde os dias de Aristóteles, em verdade, o qual via o “monismo”rmenidiano como algo “próximo à loucura”. Porém, essa “loucura” se mostrou singularmenteminal: afinal, ao menos um século depois da morte do mestre eleata, era a sua doutrina quetigava os principais pensadores da época, a ponto que o chamado “milagre da filosofia gregade ser visto, com efeito, como uma resposta ao seu ensinamento. Mas qual era esse ensinamenum monismo espúrio ou um advaita autêntico? É difícil dizer; o que está claro, em todo caso

e, à época de Aristóteles, tudo o que sobrara era uma doutrina “próxima à loucura”.Acho digno de nota que Parmênides não somente se encontra no início do que, com freqüêncianomina-se cultura ocidental, mas também que, perto do fim, ele surge outra vez: pois, em verdfoi “redescoberto” em nossa época, e o sentido autêntico de seus ensinamentos continua a se

svendado pelos estudiosos, ainda que fora das principais correntes acadêmicas. Um exemploso, evidentemente, é O. M. Hinze, cujo artigo sobre o assunto (publicado pela primeira vez e71) constitui um dos primeiros estudos pertinentes a esse novo gênero. Esporadicamente − e

certo sem fanfarra ou aprovação vinda de cima −, um punhado de estudiosos, dotados de cert

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nhecimento acerca das tradições orientais, vieram reexaminar o legado dos pré-socráticos e, ê-lo, trouxeram à luz certas verdades que há muito haviam sido soterradas sob as areias do te

nforme observa Peter Kingsley na frase introdutória de seu próprio tratado magistral: “É melhe eu escreva essas coisas antes que se percam por mais dois mil anos”.[ 154 ]

Os ensinamentos de Parmênides, como sabemos, estão dados em um único poema didático queegou a nós na forma de fragmentos, transmitidos por vários autores da antiguidade. Ele começm uma descrição de uma jornada para as “mansões da noite”, o reino dos mortos governado pusa Perséfone. Não é incrível que esse “detalhe” tenha escapado a uma atenção séria, por tanmpo, nas mãos dos principais exegetas? Um hindu culto, por exemplo, não teria se lembradotantaneamente de Nachiketā, que outrossim viajou até o submundo em busca da verdade, comde ler no Katha Upanishad ? A jornada empreendida por Parmênides é descrita compressionante detalhamento, cada faceta do qual, supostamente, tem a sua significância. Assimerência a uma “carruagem” puxada por “cavalos” (por “éguas”, para ser exato) e guiada por onzelas” que se diz serem as “filhas do Sol”; há menção a um “eixo” e a “centros” e a “rodasm de uma alusão a “portões” que se abrem e fecham. E, o que é mais importante, é somente nssa jornada que a famosa doutrina é comunicada a Parmênides pela própria deusa: “Eu hei de

ar”, ela lhe diz, “e é tua a tarefa de levar embora as minhas palavras uma vez que as tiveresvido”. Como Hinze e Kingsley apontam, longe de ser um lógico que pondera silogismos,rmênides é basicamente um profeta: isto é, um mensageiro vindo de um plano que está além dundo. Mas, aparentemente, esse “detalhe” foi igualmente negligenciado, em geral, por historiailósofos; e é isso o que, de certa forma, predetermina o resultado final de sua exegese: asemissas, em grau maior ou menor, acarretam a conclusão. Tendo ignorado a jornada ou oferecplicações simplistas para ela e tendo relegado ao status de artifício literário a figura da deusao reino Parmênides fora transportado, é causa de alguma surpresa que nossos “especialistas”

uditos tenham interpretado tão erroneamente a doutrina em si?O que também confunde os exegetas é o fato de que a deusa não professa uma doutrina, e simd

quais, ademais, parecem ser logicamente incompatíveis. A resposta costumeira a esse impasso rebaixar e efetivamente eliminar a segunda parte do poema didático, estratégia que, com efde ser rastreada até Aristóteles, que pensava que, na segunda parte, Parmênides estava

mplesmente reexpondo as opiniões de seus predecessores, com a intenção de rejeitá-las. Poréaba que as duas partes compõem um mesmo todo − que, em verdade, complementam e comple

ma à outra; sem sombra de dúvidas, Hinze acertou na mosca ao escrever:

A subdivisão do poema doutrinal em duas seções, das quais a primeira lida com o “Ser” e com a verdade absoluta e a segu

com a “aparência” e “os significados dos mortais”, tem correspondência exata, na Índia, com a doutrina dos dois tipos ou nívconhecimento, dos quais um é chamado conhecimento “superior” e o outro “inferior” (84).

Aqui, o que está em questão é a distinção védica entre paravidyā ou o “conhecimento supremoseado em anubhava, a percepção imediata da realidade mais elevada,[ 155 ] e aparavidyā, unhecimento inferior ou “não supremo” que diz respeito ao que se pode chamar de reino dasparências”, no sentido mais amplo imaginável. Precisamos entender, em primeiro lugar, que aima categoria inclui tudo aquilo que, acertadamente, consideramos “conhecimento”, seja relalidades cósmicas ou supracósmicas. A despeito de seu status “inferior”, ademais, essearavidyā não deve ser desprezado, negligenciado ou descartado contanto que não se tenhaançado o paravidyā; como se lê no Mundaka Upanishad:[ 156 ] “ Dve vidyā veditavye” (“D

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os de conhecimento devem ser conhecidos”). O fato que é a deusa ensina a mesma coisa: elambém não restringe seu discurso ao “Ser e a verdade absoluta”, mas comunica igualmente oaravidyā. Ela o faz, porém, com um aviso: daquele ponto em diante, ela nos diz, suas palavranganosas”. E notemos que também isso está de acordo com a posição védica. Shankarāchāryaito, expressa a questão de forma ainda mais veemente: em seu comentário ao verso supracitas Upanixades, ele se refere ao aparavidyā como avidyā (“ignorância”, denominação que parentradizer a noção de que ainda se trata de um vidyā, conquanto seja “inferior” (apara). Pode-er que, ao passo que a deusa se refere ao conhecimento inferior como “enganoso”, Shankarāc

hama de “enganado”. Seja como for, deve estar claro, em todo caso, que o ensinamentonsmitido por Parmênides acerca do “Ser e a verdade absoluta” está fadado a permanecer ompreensível no plano de aparavidyā; como Sri Ramakrishna disse certa vez: “Não se podem

spejar quatro quilos de leite em uma jarra de três quilos”.[ 157 ] Mas isso, aparentemente, é omaior parte dos supostos especialistas em “filosofia pré-socrática” não conseguiram entenderHinze aborda o assunto dessa doutrina bipartite pela reflexão acerca do que às vezes se chamo-Unidade Divina. Para expressar essa doutrina em termos védicos: a produção do mundo devibuída a Ṥakti, e não a Ṥiva. Como explica Hinze: “Ela é a força criadora de Deus (Ṥiva) e

presenta o Seu aspecto feminino” (95). A palavra “aspecto”, aqui, é crucial, pois não devemorder de vista o fato de que “Ṥiva e Ṥakti são fundamentalmente o mesmo”, como Hinze diz emguida. Temos aqui um autêntico Mistério, similar ao da Trindade, o qual, como sabemos, situcoração do ensinamento cristão. Ora, como aponta Hinze, é Ṥakti quem produz a manifestação

smica; mas esse “aspecto feminino de Deus” tem, por sua vez, dois aspectos ou faces, chamadāyā-Ṥakti e Vidyā-Ṥakti, os quais correspondem precisamente, ademais, a Afrodite e Perséfonpectivamente, na tradição grega. O primeiro desses aspectos pode ser caracterizado como umder de velar, que aparentemente realiza “um ato de autolimitação ou mesmo autonegação de D6); e, em virtude desse Poder que, para nós, é inescrutável, aqueleavidyā − que é um tipo de iiversal − penetra no tecido mesmo da existência cósmica. É essencial compreender que a ilusnorância” da qual os sábios falam não é obra nossa, mas é algo em que participamos por razmos o que somos, assim como participamos naquilo que o cristianismo chama de pecado origsim, ela não pode ser superada pelo esforço do próprio indivíduo humano:aquilo que Ṥakti a

enas Ṥakti pode liberar . E é aí que Vidyā-Ṥakti entra em cena: ao passo que Afrodite ata, engalmente, mata, Perséfone libera, ilumina e dá a vida. Mas, novamente, lembremo-nos de que ntam de poderes distintos e opostos, mas aspectos complementares de uma única Ṥakti, que nadis é que “o aspecto feminino de Deus”. Isso nos traz à mente a cena do jovem Ramakrishna a

erecer adoração à Mãe Divina diante da imagem ensanguentada de Kālī, uma prática que poderecer muito incongruente ao observador ocidental; no entanto, nós cristãos não rezamosriamente: “E não nos deixai cair em tentação...”? E o Jardim do Éden já não abrigava umapente?

Em vista dessa ambivalência de Ṥakti a que nos referimos, pouco surpreende que haja, em veras maneiras principais de ver o cosmo: a primeira, denominadaVivarta-vāda, concebe o univmo ilusório ou “onírico”, ao passo que o segundo, chamado Pariṇāma-vāda, não fala em “ilusim em fluxo, em “gênese” ou “devir”, posição essa que, com efeito, é característica do tantris8 ] Onde, então, perguntemos, posiciona-se a deusa acerca dessa questão na metade “cosmolóseu discurso? De acordo com Hinze, ela está no lado de Vivarta-vāda − no lado da “ilusão”,

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de-se dizer. Ora, concedendo que esse seja mesmo o caso, não obstante isso me pareceestionável: afinal, podemos supor, razoavelmente, que a doutrina da deusa deve transcender, ito, os confins de um darśana[ 159 ] ou “ângulo de visão” em particular! No cômputo final, nlmente uma contradição entre Vivarta-vāda e Pariṇāma-vāda: “são apenas dois modos diferver uma mesma coisa”, como ressalta o próprio Hinze.

Na primeira parte de seu discurso, a deusa parece estipular uma dicotomia entre Ser e Não Sedo feito isso, abole essa última por meio do reconhecimento duplo de que “o Ser é” e “o Nãoo é”. Para o lógico ou para o filósofo racionalista, isso talvez implique que somente o Ser rmanece − “em isolamento esplêndido”, por assim dizer − e que, conseqüentemente, não podever geração ou dissolução, mudança ou movimento, divisão ou limitação. Contudo, o Não Serusa a ser exorcizado: no fim das contas, não pode haver cosmo, nem criação e nem universo o Ser. E isso será verdade se olharmos para o cosmo tanto do ponto de vista deVivarta quanriṇāma-vāda; em ambos os casos, o Não Ser está presente. Do cosmo em sua inteireza à menoas partes, por todo o lado deparamos tanto com o Ser quanto com o Não Ser, conforme afirmaópria deusa ao declarar, na Segunda Parte de seu discurso, que “Tudo está, a um só tempo, chLuz e de Noite escura”. Isso também não nos parecerá estranho ou incongruente se apenas no

mbrarmos de que o cosmo, afinal, é mesmo a manifestação da própria Bi-Unidade Divina; comdemos ler em certo texto tântrico: “Tudo o que vem ao mundo consiste deṤiva e Ṥakti”. Ocorre, a despeito das diferenças de terminologia, da “colocação cultural” e, quiçá, mesmo dedarś

nsinamento cosmológico de Parmênides está em consonância com o tântrico, conclusão essa mo Hinze nos informa, “pode ser confirmada com certeza ainda maior por meio de uma análidadosa de alguns outros Fragmentos”.

* * *

Resta-nos agora considerar a porção introdutória do poema didático, que não trata da doutrina

m da jornada. É aí que Hinze descobre uma gama impressionante de paralelos com a Iogandaliní , a começar pela primeiríssima palavra do texto grego: hippoi. Decerto, não é estranh

ma carruagem seja puxada por cavalos; o que é digno de nota, entretanto, é que esses cavalospecíficos são caracterizados como “ polyphrastoi”, que significa, literalmente “muito inteligendie vielverständigen Rosse”, no alemão de Hermann Diels).[ 160 ] Hinze percebe aí um paralm a Kundalinī-Ṥakti, que também é “muito inteligente” ou “vielverständig ”. Ele qualifica essancordância em particular, todavia, como de “identidade” imperfeita, já que “a igualdade commetáfora, aqui, está faltante”; contudo, ele propõe, em seguida, uma lista de concordâncias “qo hesito em ver como paralelos exatos”. Ele observa, em primeiro lugar, que o despertar dandalinī  está associado a uma experiência tripartite, que envolve calor, som e um movimento ação, todos os quais são mencionados no texto (“E o eixo do centro soltou o som de uma flauis cintilava com a pressão...”). Em seguida, ele aponta que as “donzelas” que “o conduzem”rresponde às Ṥaktis dos chacras respectivos. Quando o poema fala da “muito famosa estrada dvindade que carrega o homem sábio ao longo do vasto e negro desconhecido”, Hinze enxerga aminho real” do suṣumnā nādī , “que também reside fora da esfera normal dos humanos, mas, stante, desfruta de grande renome”. Aos “caminhos do Dia e da Noite” correspondem osnādī

ngalā e Idā, “que não apenas se designam pelo mesmo nome, mas também desempenham o me

pel”. E quando Parmênides fala de um portão “etéreo” no qual reúnem o Dia e a Noite, Hinze

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into chacra, denominado viśuddha, que se localiza na garganta e se associa ao elemento ākāśāo “éter”. É dito na tradição tântrica que esse chacra constitui de fato uma “junção do Dia e daite” − isto é, de Pingalā e Idā − e, assim, trata-se de um centro no qual as polarizações do muero, com efeito, são transcendidas. “O iogue, aqui, é capaz de ver juntos o passado, o presenturo”, um poder conhecido como trikāla jñāna siddhi. Situado na garganta, esse chacra constirtão, chamado de “o Portão da Grande Liberação”, o qual conduz diretamente ao mundo espirceleste: “do irreal (asat ) ao real ( sat ), da escuridão à luz, da morte à imortalidade”, como de

ma famosa prece védica. E podemos nos perguntar: não seria esse também o “portão estreito”

angelhos, “o fundo de uma agulha” pelo qual os “camelos” não podem passar? Entrando por ertão, o iogue alcança o ājñā-chacra, com freqüência retratado como um “terceiro olho” situadntro da testa, pelo qual ele percebe a última camada do tribhuvana ou “mundo triplo”. Comoplica Hinze:

É aqui também onde a deusa, que ensina a Parmênides a doutrina do Ser e do Não Ser, recebe o eleata. Todo o poema

doutrinal é característico dessa esfera; com efeito, trata-se de uma representação exata da verdade como compreendida  partir desse nível em particular. A experiência que Parmênides havia atingido não era a suprema realização do Ser (nirvika

 samādhi) no lótus de mil pétalas, mas a realização “restrita” do Ser ( savik alpa samādhi) na região do ājñā-chacra (109).

Em verdade, como Hinze observa em seguida, no sahasrāra “não há mais escopo para a fala”,z que o som (śabda) se origina abaixo desse nível: nomeadamente, noājñā-chacra.Em suma, tal é a interpretação “iogue” de Hinze quanto à jornada narrada por Parmênides: umerpretação de seus meios, de sua destinação e de seu propósito. Contudo, não devemos suporrque essa jornada termina abaixo do nível de sahasrāra, a doutrina resultante é ipso facto

ovisória, imperfeita ou incompleta; o fato é que, na verdade,essa doutrina em si está, de um mbordinada à verdade que expressa, o que é bem diferente. O que está em questão é precisamentinção entre a gnose propriamente dita e a gnose doutrinal , a qual, por um lado, constitui umpressão ou manifestação da gnose em modalidade linguística e, por outro, um signo que pode

vir como “meio” para alcançá-la.[ 161 ] Ora, a própria gnose doutrinal aceita ambas asodalidades e graus; há uma distinção categórica que devemos fazer, por exemplo, entre transmal  e escrita. Concedendo, então, que haja tipos e níveis diferentes de gnose doutrinal, em quaes se deve colocar a doutrina de Parmênides? Basta dizer que, enquanto doutrina “expressa

almente pela própria deusa”, ela situa-se mais acima de toda filosofia humana e que, enquantoma representação exata da verdade” relativa à mais alta esfera em que ainda há “escopo paraa”, ela evidentemente é suprema.

* * *

Deve-se notar que muito do que se aprendeu recentemente quanto aos antigos fócios, ostepassados de Parmênides, e esses fatos recém-descobertos tendem a confirmar as conclusõesnze. O nome em si já é significativo, dado que deriva da palavra “ phoca”, que significa “focao é, um animal anfíbio. Parece que os fócios de fato praticavam certas disciplinas que podemracterizadas como “iogues” e que eram conhecidos especialmente por seus poderes de cura e rnadas até outros mundos”. É dito que eles se prestavam à prática dahesychia, uma disciplinêncio ou da imobilidade, e podiam entrar em estados de animação suspensa; é de se perguntaesicasmo” observado até hoje no Monte Atos não teria, em última instância, uma origem fócia

ativo aos seus aspectos técnicos. É de grande significância, ademais, que uma inscriçãosenterrada em Velia, o local de nascimento de Parmênides, refere-se a ele como um “filho de

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olo”, dando a entender que Parmênides era de fato um iniciado, alguém que, na linguagem daoca, era chamado de iatromantis. O que me parece notável não é que tenha sido assim, mas qe fato − e tudo o que acarreta! − pôde ter sido esquecido depois de apenas dois séculos e,

bseqüentemente, excluído dos relatos. Mas, como se pode supor, esse “esquecimento” leteu dorreu e parece mesmo acontecer, invariavelmente, ao término de uma era, o nascimento de umova era”. Basta dizer que aquilo que os historiadores, admirados, chamam de “milagre grego”encalço dos pré-socráticos, quando os caminhos e a sabedoria dos velhos mestres caiu no

quecimento e um novíssimo Zeitgeist  começou a se impor.

sso não significa, porém, que o ensinamento de Parmênides foi simplesmente abandonado ouquecido; pelo contrário, sua doutrina permaneceu no centro do fermento filosófico que se segur um século ou dois, e pode não ser um exagero dizer que as escolas que surgiram, da platônifística, apareceram em reação às palavras enigmáticas da deusa. De um modo ou de outro, autrina parmenidiana tinha de ser desmembrada ou “assassinada” − e, com efeito, o próprio Plrefere a esse ato como um “parricídio”.[ 162 ] Mas essas questões encontram-se muito além dcopo da nossa presente exposição;[ 163 ] desejo enfatizar apenas que o “verdadeiro Parmênidm se ocultado de nossa visão por mais de dois mil anos.

Para concluir, eu gostaria de salientar que os fócios, em adição às suas buscas “místicas”, tamham grande interesse em astronomia e geografia; pode-se presumir que Parmênides estivesse o somente de suas práticas “iogues”, mas também de suas descobertas científicas. Devemosmbrar que aquela que é talvez a primeira grande descoberta científica da história − a saber, oonhecimento de que a Terra é esférica − era atribuída pelos escritores antigos a Parmênides.cernimento, em particular, pertence à segunda parte de seu poema didático, essa porção de sugnum opus que, em geral, tem sido negligenciada ou, de algum modo, explicada de forma

mplista. Os estudiosos nos informam que o mais velho texto completo existente que fala da Temo esférica é, com efeito, o Fédon; mas o próprio Platão deixa claro que esse ensinamento lhssado por fontes mais antigas. E, o que é ainda mais significante, porém, é que ele se refere agrado dogma científico como um “mito”: o que devemos pensar disso? Eis o que Peter Kingslm a dizer a esse respeito:

Orgulhamo-nos de sermos capazes de separar fato de ficção, ciência de mito, mas não percebemos que nossa própria ciêaquilo que sempre foi: uma frágil mitologia do momento. [...] E assim voltamos ao fato de que, no  Fédon  de Platão − o primtexto completo sobrevivente a dizer que a terra é uma esfera −, a idéia de uma terra esférica nos é apresentada simplesmentcomo um mito. Pois isso não é nenhuma coincidência. Não é o resultado de algum acidente bizarro ou de alguma aberração história ou da natureza. É que os amigos de Platão o ensinaram bem.[ 164 ]

Começamos a ver que o aparavidyā de Parmênides, longe de ser “ilusório”, no sentido vulgarmporta realmente um conhecimento de tipo científico, mesmo segundo os critérios de nossos mo Kingsley brilhantemente observou: “Descartar a ilusão como uma simples ilusão é, em sismo, apenas uma ilusão”. Entretanto, conquanto não se possa descartá-la como “simples ilusdemos presumir que o fator de “ilusão” −avidyā, māyā, “engano” ou como desejarmos chamá conosco, não obstante, e isso é verdade para todas as modalidades de conhecimento, desdezo mais simples até o conhecimento do tipo que vence um prêmio Nobel. Precisamos entendepalavras de admoestação proferidas pela deusa não perderam nada de sua relevância ou urgêra citar Kingsley outra vez:

Mais de dois mil anos atrás, a ciência, como a conhecemos, foi oferecida ao ocidente com um alerta anexado a ela: Use-a

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não seja enganado por ela. Mas, é claro, crianças impacientes que somos, arrancamos a etiqueta e ignoramos o aviso. [ 165

Podemos acrescentar que, na Academia de Platão, a “etiqueta” ainda estava no lugar, comodenciado pelo status místico atribuído, no Fédon, à noção de uma “Terra esférica”. Talvez teo Aristóteles quem “arrancou a etiqueta”; em todo caso, o que precisamos perceber, sobretude nossa ciência, mesmo no que há nela de melhor , é ainda um aparavidyā: um conhecimentoperfeito e inferior, que, a despeito de toda a sua proeza, ainda é “enganoso”, como bem avisausa. O que, precisamente, isso significa? Não há uma resposta simples − não há resposta no pferior”. Assim como a escuridão é invisível em si mesma, também o caráter “ilusório” do

nhecimento inferior não pode ser discernido do seu próprio ponto de vista. O que é necessárium grau de participação no conhecimento superior, o paravidyā; e essa é uma tarefa para o

têntico metafísico e, idealmente, para o iniciado, o sábio esclarecido, o “filho de Apolo”.

141 ] Oscar Marcel Hinze, ed. Motilal Banarsidass, Nova Dehli, 2002.142 ] Ver capítulo 2 para uma discussão detalhada dessa questão.143 ] Os números entre parênteses designam números de páginas no livro de Hinze, Tantra Vidyā: Archaic Astronomy and

a, op. cit .144 ] O leitor notará que isso concorda com a alegação fundamental de James Gibson, de que percebemos movimentos entecimentos sem a intervenção da memória. Ver capítulo 4.145 ] Heinz Werner, Comparative Psychology of Mental Development  , NY, 1948, p. 68. Citado por Hinze em Tantra Vidy

haic Astronomy and Tantra Yoga, op. cit .146 ] Ou, como também se pode dizer: uma astrologia, no verdadeiro sentido da palavra.147 ] Deve-se notar que, embora o śabda-brahman corresponda de certo modo ao Logos ou Verbo, o tantra vidyā, certamencebe esse śabda-brahman em termos ternários.148 ] O termo Ṥakti se refere ao “aspecto poderoso” de Deus ou, melhor dizendo, ao componente feminino da biunidade divinaignada pelo termo Ṥiva-Ṥakti).149 ] Talvez seja seguro dizer que ninguém, antes de Hinze, jamais realizou esse feito ou mesmo considerou essa possibilidade150 ] A exposição completa se pode encontrar em Tantra Vidyā, op. cit ., p. 42-75.151 ] Ver capítulo 1.152 ] Ver William A. Dembski, The Design Inference, Cambridge University Press, 1998. Para um resumo acessível da teor

remeto o leitor ao capítulo 10 de meu livro The Wisdom of Ancient Cosmology, Foundation for Traditional Studies, Oakton: V3.153 ] Acerca da causalidade vertical, ver meu tratado O enigma quântico, op. cit., cap. 6.154 ] Peter Kingsley, Reality, The Golden Sufi Center, Inverness, CA, 2003. Desde a publicação de seu primeiro livro ( Ancie

losophy, Mistery and Magic, Oxford University Press, 1995), Kingsley figura como uma das principais autoridades em filosorática.155 ] Retornaremos ao assunto da “percepção imediata”, no capítulo 8, de um ponto de vista cristão, com base nos ensinamenster Eckhart.156 ] I.i.4.157 ] Esses números são significativos: assim como há três “mundos” principais na enumeração védica (os tribhuvana), tambgraus associados de conhecimento (que correspondem aos estados de vigília, de sonho e de sushupti, o estado de sono sem s

“quatro quilos de leite” correspondem, evidentemente, ao estado chamado de tur  ī  ya, que literalmente significa “o quarto”. O mdu está dizendo que aquilo que se percebe na gnose suprema não é compreensível em nenhuma modalidade inferior de conheciim como quatro quilos de leite não podem ser despejados em uma jarra de três quilos”.158 ] Deve-se compreender que essas alternativas não são mutuamente excludentes, e sim complementares.159 ] Tradicionalmente, a doutrina hindu se divide em seis darśanas, às vezes chamados, no ocidente, de “os seis sistemas desofia”. Isso nos induz ao erro, porém: um darśana é uma perspectiva determinada por um ponto de vista. Há seis darśanas bá

m como seis direções do espaço. Assim, onde o ocidente pressente uma contradição, o oriente percebe uma complementarida

160 ] Hermann Diels (trad. e org.), Die Fragmente der Vorsok ratiker , vol. 1, Weidmann, Zürich, 1968, p. 228.161 ] A esse respeito, remeto o leitor ao capítulo 1 de meu tratado Christian Gnosis: From Saint Paul to Meister Eckhart,

gelico Press/Sophia Perennis, Tacoma, WA, 2012.162 ] Sofista, 241b.163 ] A esse respeito, remeto o leitor aos escritos de Jean Borella. Ver, em especial, Penser l’analogie, Ad Solem, Geneva, 236-61, e La crise du symbolisme religieux, L’Age D’Homme, Lausanne, 1990, p. 281-304.

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164 ] Peter Kingsley, Reality, op. cit ., p. 254.165 ]  Ibid ., p. 253-54.

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DA F SICAÀ FICÇÃO CIENTÍFICA:

Uma resposta a Stephen Hawking 

certo, o livro mais recente de Stephen Hawking, O Grande Projeto,[ 166 ] não é simplesmentra produção do tipo “ Physics for the Millions”, e Hawking tampouco é apenas mais um ciente se dirige ao público em geral. Em vez disso, o surgimento desse tratado deve ser visto comspassar de um limiar, comparável, em alguma medida, à publicação do magnum opus de Charwin, um século e meio atrás. Sempre houve físicos que se esmeram, em nome de sua ciênciapensar a “hipótese de Deus”; o que nos depara emThe Grand Design, contudo, é algo mais de isso. Trata-se do espetáculo de uma física − nada mais, nada menos − no ato de explicar comverso em si veio a ser: “porque há algo ao invés de nada”, como declara Hawking. Agora, ds, a resposta a esse enigma supremo pode ser dada pela própria física, segundo um rigoroso

ndamento matemático: eis a “descoberta revolucionária” que esse tratado se propõe a expor, eguagem simples o bastante para que tenha acesso a ele o não-especialista.

A fim de apreciar a significância e o impacto potencial de O Grande Projeto, temos de nos leme, na seqüência do falecimento de Albert Einstein, foi Stephen Hawking quem se tornou, aos opúblico, o físico primaz: a figura solitária que personifica a feitiçaria da física matemática.rescentemos esse fato ao brilhantismo do próprio livro e começaremos a pressentir a magnitu

u impacto provável − o efeito, sobre milhões de pessoas, da alegação de queuma física

temática descartou a sabedoria sagrada da humanidade!Essa afirmação não deve passar sem resposta. Ela torna necessária uma réplica definitiva, umutação rigorosa; e eis o que me proponho a apresentar a seguir, com o auxílio de Deus Todo

deroso: o mesmo Deus cuja existência, supostamente, foi refutada.Este ensaio se divide em três partes. A primeira fornece um panorama de O Grande Projeto,pítulo a capítulo, salientando seus conceitos-chave e a lógica geral de seu argumento. A segunerece uma refutação pentâmera com base em razões filosóficas e científicas. A terceira, por fisca colocar em perspectiva o fenômeno dobest-seller  de Hawking, refletindo sobre a natureztivação e os limites da própria empreitada científica.

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I

Antes de embarcarmos em uma crítica da doutrina de Hawking, proponho-me a enunciar não aumas proposições selecionadas que se destinem a ser alvos de crítica, mas, com efeito, as id

ntrais de O Grande Projeto. Proponho, ademais, apresentar esses dogmas perante o leitor, nãmo diversos fragmentos isolados, mas de modo a exibir sua função na doutrina como um todofim, tentarei não condensar esse sumário ao ponto de lhe tirar todo o sabor, mas veicular,

dependentemente da lógica pura do texto, um senso de seu brilhantismo geral, de seu poder cantatório: somente assim poderemos avaliar integralmente o que de fato está em questão.

Começamos pelo capítulo 1, intitulado “O Mistério do Ser”, o qual lida realmente com probletológicos básicos. “Tradicionalmente, essas são questões para a filosofia”, escreve Hawkingmas a filosofia está morta. Ela não se manteve a par dos desenvolvimentos modernos da ciênpecialmente da física. Os cientistas se tornaram os portadores da tocha da descoberta em nosssca pelo conhecimento” (5).[ 168 ] Após essa ressalva introdutória, Hawking começa a delinudança radical no conceito de “ser” − por essa palavra, ele se refere, é claro, ao ser físico − qplicada pela transição da física clássica à quântica. “De acordo com a concepção tradicionalverso, os objetos se movem em trajetórias bem definidas e têm histórias definidas”.[ 169 ] O

smo não é verdade na física quântica. Valendo-se do fato de que a mecânica quântica pode smulada de várias maneiras diferentes que se revelam matematicamente equivalentes, Hawkinta pela abordagem desbravada pelo físico americano Richard Feynman, julgando ser ela a maequada para exprimir seu pensamento. E, embora adie sua apresentação à la Feynman da teorântica para o capítulo 4, ele manifesta imediatamente um argumento central: “Conforme Feynm

m sistema não tem apenas uma história, mas todas as histórias possíveis”. (6) Vemos que Hawkncipia a defender sua posição: começa a parecer que a nova ontologia, com efeito, deixou pas as concepções tradicionais de “ser”.

Observando que as coisas não são “o que parecem quando percebidas pelos sentidos” (7),wking anuncia uma de suas inovações fundamentais: o conceito de “realismo modelo-depende “se baseia na idéia de que nossos cérebros interpretam o input  de nossos órgãos sensoriaisnstruindo um modelo do mundo”. Deve-se acrescentar que a força total daquilo que Hawking

mente se torna manifesta no capítulo 3, com a asserção de que “Não há concepção da realidae seja livre de imagens ou de teorias” (42); também nos dizem, nesse capítulo, que o realismoodelo-dependente é “a idéia de que uma teoria física ou imagem do mundo é um modeloeralmente, de natureza matemática) e um conjunto de regras que conectam os elementos do moobservações” (43). Voltando ao capítulo 1: em seqüência à proclamação dessa concepção cr

wking passa a uma consideração da história do conhecimento humano, “de Platão à teoria cláNewton, e daí às teorias quânticas” (7) e, após isso, levanta a seguinte questão: “Será que es

qüência chegará enfim a um ponto final, a uma teoria última do universo, que incluirá todas asças e preverá cada observação que podemos fazer, ou continuaremos eternamente a encontrarrias melhores, mas jamais uma que não possa ser aprimorada?”. Ora, é nesse momento quewking rompe com seu antecessor, Albert Einstein: não há uma “teoria última”, segundo o quencebia previamente, que abarque todo o universo, conforme sustenta Hawking. O que é necesm tipo radicalmente novo de teoria, algo que ele denomina “teoria M”, uma noção que se enc“realismo modelo-dependente”; como explica Hawking: “A teoria M não é uma teoria no sen

mum da palavra. Trata-se de toda uma família de diferentes teorias, cada qual constituindo um

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a descrição de observações apenas com relação a uma certa gama de situações físicas” (8). Oetivo último da física − uma ciência, notadamente, que em princípio abarca todo o universo −

de ser cumprido por meio de uma teoria M; e Hawking acredita que a física contemporânea eroximando de tal formulação final e inclusiva.sso nos leva à alegação mais surpreendente de todas: a noção de que uma teoria M desse tiponstitui não apenas a culminação da física, mas também da filosofia − de que, com efeito, esse ico tipo de teoria que pode nos esclarecer acerca do “mistério do ser”. E o que ela revela?forma-nos, em primeiro lugar, de que “o nosso não é o único universo”, que, em verdade,úmeros universos foram criados a partir do nada”. Mas − como se isso já não bastasse! − tammais: em princípio, a teoria M final, dizem-nos, revelará tudo o que pode ser conhecido, não

mente no que concerne ao nosso universo, mas, de fato, no que concerne atudo.Podemos ver agora o plano do livro: evidentemente, trata-se apenas de fazer o leitor acompansso a passo, a formulação da teoria M última, até o ponto em que Hawking pode nos levar noesente momento.O capítulo 2 lida com a “Primazia da Lei”. Tem seu início com uma citação da mitologia vikinrefere a lobos que perseguem o sol e a lua e, quando alcançam um ou outro, supostamente oc

m eclipse. “A ignorância acerca do funcionamento da natureza”, conclui Hawking (após listar versos exemplos similares), “levava as pessoas, nos tempos antigos, a inventar deuses paravernar todos os aspectos da vida humana” (17). Depois de nos informar que “a nossa espéciemo sapiens, originou-se na África subsaariana, por volta de 200.000 a.C.”, Hawking rastreiameços rudimentares do esclarecimento científico: o reconhecimento, conquanto difuso etorcido, da “Primazia da Lei”. A primeira fase dessa evolução humana vai de Tales de Miletágoras a Anaximandro, Empédocles, Aristarco e Ptolomeu; em seguida vêm a Idade Média, anascença e o começo da era moderna, na qual a ciência, propriamente dita, finalmente veio à

aças aos esforços de Kepler, Galileu e Descartes. Não há necessidade, porém, de resumir essato, o qual, com efeito, não difere muito das exposições costumeiras a esse respeito. Basta noe “o conceito moderno de leis da natureza surgiu no século XVII. Kepler parece ter sido omeiro cientista a entender o termo no sentido que lhe dá a ciência moderna” (25). No que tanlileu, ele não apenas “descobriu uma multidão de leis”, mas “defendeu o importante princípie a observação é a base da ciência e que o propósito da ciência é investigar relações quantitae existem entre fenômenos físicos” (26). Descartes vem na seqüência; e aí o relato se escora oncepção cartesiana de “lei” e a noção de “trajetórias” que são determinadas singularmente pas condições iniciais. Agora o terreno está preparado para Newton, cujas realizações notávei

aticamente não são mencionadas por Hawking nesse momento; devem ser consideradassteriormente, segundo sua relação com a física pós-newtoniana.iel a seu título, esse capítulo concentra-se de fato na “Primazia da Lei”. Há, em especial, três

estões fundamentais concernentes a essa Primazia que o autor deseja examinar: em primeiro lual é a origem das leis?”; em segundo, “existem quaisquer exceções a essas leis, por exemplolagres?”; e, em terceiro, “Há apenas um conjunto possível de leis?”. Como já deve ter conclutor, essas questões estão entre aquelas que Hawking pretende solucionar com base na teoria Mr ora, entretanto, sua preocupação recai sobre a segunda pergunta: a questão do determinismo

ico. E, no tocante a esse problema, ele cita Laplace como o grande inaugurador: “O determinintífico que Laplace formulou é a resposta dos cientistas modernos à segunda questão. Trata-s

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rdade, da base de toda a ciência moderna e de um princípio que é importante ao longo de todro” (3). Para ser preciso, o princípio afirma que “dado o estado do universo em um determin

omento, um conjunto completo de leis determina totalmente tanto o futuro quanto o passado”.vemos notar que parece haver um conflito entre o “determinismo científico” assim concebidouilo que se chama comumente de “indeterminismo” quântico, um problema que Hawking iráfrentar no capítulo 4.Mas vamos prosseguir. Tão logo formula a noção de determinismo universal, Hawking observma vez que as pessoas vivem no universo e interagem com objetos presentes nele, o determinntífico também deve ser verdadeiro para as pessoas”. E, decerto, isso significa que, em realio existe algo chamado “livre arbítrio”. Como Hawking explica em seguida: “Embora sintame podemos escolher o que fazemos, a compreensão do fundamento molecular da biologia mose os processos biológicos são regidos pelas leis da física e da química e, portanto, são tãoerminados quanto as órbitas dos planetas” (32). Com efeito, “Experimentos recentes de

urociência sustentam a visão de que é o nosso cérebro físico, obedecendo às leis conhecidas ncia, que determina nossas ações, e não um agente que exista fora dessas leis”. E isso implicro, que não pode haver livre arbítrio: “É difícil imaginar como o livre arbítrio pode operar s

sso comportamento é determinado por leis físicas, então parece que nada somos senão máquiológicas e que o livre arbítrio é somente uma ilusão”.Hawking certamente admite a impossibilidade de calcular realmente o comportamento humanoo não significa que o organismo humano não seja redutível a um sistema físico, mas apenas que sistema é complexo demais para ser manejável. “Porque usar as leis subjacentes da física p

ever o comportamento humano é tão pouco prático”, prossegue ele, “adotamos o que se chamria eficaz. Em física, uma teoria eficaz é um quadro criado para modelar certos fenômenosservados sem descrever detalhadamente os processos subjacentes”. Logo, também no que tocssoas, podemos falar em “livre arbítrio” no nível de uma teoria eficaz: “O estudo de nossobítrio, e do comportamento que surge a partir dele, é a ciência da psicologia” (33).Chegamos assim, finalmente, na conclusão do capítulo: o fato de que “Este livro tem suas raíznceito de determinismo científico” (34).No capítulo 3 (“Que é Realidade?”), Hawking avalia as implicações científicas do realismoodelo-dependente. Ele começa contrastando o geocentrismo ptolomaico ao heliocentrismopernicano e conclui que “embora não seja incomum que as pessoas digam que Copérnico refuolomeu, isso não é verdade” (41). O fato é que “podem-se usar tanto uma quanto outra imagemmo modelos do universo”; a diferença é apenas que “as equações de movimento são muito ma

mples no quadro de referência em que o sol está em repouso” (42). E isso nos traz à premissantral: “ Não há concepção da realidade que seja independente de teoria ou de imagem”.vemos notar que essa noção aparentemente inócua tem implicações profundas; pois ela signife uma teoria científica não é uma descrição de uma realidade que existe independentemente (cviam pensado tanto os cientistas quanto os leigos), mas um “modelo” quedefine a realidade. Dordo com o realismo modelo-dependente, o conceito de realidade independente de modelos sostra vácuo. Ora, e o que acontece se diferentes modelos concordam com as observaçõesrrespondentes? “Se há dois modelos que concordam com a mesma observação”, sustenta Haw

ntão não podemos dizer que um é mais real do que o outro” (46). Com efeito, podemos identiduas realidades modelo-dependentes, assim como identificamos habitualmente duas figuras d

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eto sólido que correspondem a pontos diferentes de observação.À pergunta acerca da razão pela qual o realismo clássico (ou “independente de modelos”) foiandonado, Hawking dá uma resposta baseada na teoria quântica: “Embora o realismo [clássicssa ser um ponto de vista tentador, como veremos adiante, o que sabemos de física moderna ona difícil de se defender. Por exemplo, segundo os princípios da teoria quântica, a qual é umscrição precisa da natureza, uma partícula não tem nem posição definida e nem velocidadefinida a menos e até que essas quantidades sejam medidas por um observador” (44). Porém,wking não se contenta apenas com uma nova filosofia da física, mas também afirma que a idélismo modelo-dependente se aplica, ademais, como já vimos (em referência ao capítulo 1), ados pré-científicos de conhecimento, inclusive à percepção sensível: “O realismo modelo-

pendente”, ele reitera, “aplica-se não somente aos modelos científicos mas também aos modenscientes e subconscientes que todos nós criamos para interpretar e compreender o mundoidiano” (46). E, em seguida, ele enfatiza: “Não há como remover o observador − nós mesmo

rcepção do mundo, o qual é criado por meio de nosso processamento sensorial e por meio dodo como pensamos e raciocinamos”. Em seguida, ele fala da percepção, dos sinais que se en

ra o cérebro por meio do nervo ótico e do processamento que ocorre nesse órgão, como, por 

emplo, a construção de uma terceira dimensão que não está dada na imagem retiniana: “O céroutras palavras, constrói uma imagem ou um modelo mental. [...] Isso mostra que o que se quer quando se fala ‘vejo uma cadeira’ é simplesmente que se usou a luz refletida pela cadeira

nstruir uma imagem ou um modelo mental da cadeira” (47).Em seguida, Hawking aborda a questão provável: as “coisas” − por exemplo, as mesas −xistem”, mesmo quando não são percebidas? E a sua solução é simples: “O modelo segundo omesa continua no mesmo lugar é muito mais simples e está de acordo com a observação. Isso

ue podemos desejar como resposta”. A mesma lógica se aplica às partículas fundamentais, aais não podem ser percebidas, mas, apesar disso, podem ser “observadas”: os elétrons, por emplo, “existem”, mesmo antes de afetarem um instrumento de detecção (como uma tela deevisão). O caso dos quarks (que se crê serem os componentes a partir dos quais prótons, nêu

íons são formados) é um pouco mais complicado, porque não se podem observar os quarksdividuais”; logicamente, porém, o caso é o mesmo: o modelo segundo o qual osquarks existe

uito mais simples e está de acordo com a observação. Isso é tudo o que podemos desejar comoposta”.

Conquanto alguns modelos tenham maior poder explanatório do que outros, Hawking insiste qo podemos dizer que são mais “reais” (51), provavelmente porque não faz sentido quantificar

outro modo, “graduar” as realidades modelo-dependentes. Assim, ele compara o relato bíblismogênese à cosmogonia do big bang , que “explica os registros fósseis e radioativos e o fatoe recebemos luz advinda de galáxias que estão a milhões de anos-luz de nós” e que, por nseguinte, é “mais útil que a primeira”. Porém, não obstante, “não se pode dizer que um modeis real do que o outro”.

A esta altura, percebemos a necessidade de critérios que nos permitam graduar teorias, determquanto um modelo é “bom”; e mencionaremos, de passagem, que Hawking fornece quatro crituma teoria “é elegante”, se “contém poucos elementos arbitrários ou ajustáveis”, se “concord

m todas as observações existentes e as explica” e se “faz previsões detalhadas acerca deservações futuras que possam refutar ou falsear o modelo caso não sejam confirmadas”.

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sso nos traz, finalmente, a noção crucial de “dualidades” que Hawking introduz próximo ao fipítulo. Ele cita o exemplo da “dualidade onda-partícula”: o fato de que a luz, por exemplo, po

descrita ou “modelada” tanto como uma onda quanto como partículas. “Dualidades assim −uações em que duas teorias muito diferentes descrevem acuradamente o mesmo fenômeno − sãerentes com o realismo modelo-dependente” (58). Esse fato se mostra decisivo pela seguinteão:

Parece não haver um único modelo ou uma única teoria matemática que possa descrever cada aspecto do universo. Em vdisso, conforme mencionado no capítulo inicial, parece haver uma rede de teorias chamada teoria M. [...] Onde os seus alca

se sobrepõem, as várias teorias da rede estão de acordo, de modo que podemos dizer que são partes da mesma teoria. [...] Enão realize o sonho do físico tradicional quanto a uma única teoria unificada, essa situação é aceitável dentro do quadro do remodelo-dependente.

O capítulo 4 (“Histórias alternativas”) começa com uma descrição do famoso experimento daupla fenda”, o qual, segundo Richard Feynman, “contém todo o mistério da mecânica quânticia remonta a um experimento realizado no século XIX por Thomas Young, no qual a luz passavés de uma tela com duas fendas e atingia uma superfície localizada atrás da tela. Isso nãooduzia apenas uma linha brilhante atrás de cada fenda, mas um padrão de regiões brilhantes ecuras, de “linhas” múltiplas. Aí, porém, não há nenhum mistério: dado que a luz se compõe de

das (como a maioria dos cientistas haviam presumido desde o começo), essas “linhas” são appadrão que resulta do fato de que, quando duas ondas são sobrepostas, a amplitude resultanteança um cume sempre que “uma crista encontra outra crista” e um mínimo sempre que “uma ccontra um ventre”. O que surpreendeu os físicos, por outro lado, é que o mesmo ocorre quand

o experimento com partículas, em vez de ondas.[ 170 ] O que é importante é o tamanho dasrtículas: o efeito deixa de ser mensurável quando as partículas são grandes o suficiente para srcebidas.[ 171 ] O que talvez é a coisa mais impressionante é que o efeito perdura mesmo quertículas em questão sejam emitidas pela fenda “uma de cada vez”: contanto que ambas as fend

ejam abertas, o padrão de interferência persiste. De alguma misteriosa maneira, um elétron qussa, digamos, pela fenda A “sabe” se a fenda B está aberta ou fechada. Isso, por si só, torna ce, em uma escala atômica ou subatômica, as concepções e leis da física clássica desmoronamque a teoria quântica entra em jogo − uma física que, de certo modo, trata as partículas comodas.

Na seqüência desse reconhecimento fundamental, Hawking expõe as idéias básicas que difereísica quântica da mecânica newtoniana, a começar pelo “princípio de incerteza” de Heisenbeal afirma que certos pares de variáveis, como a posição e a velocidade de uma partícula, nãodem ser medidos com perfeita precisão: quanto mais acuradamente conhecemos uma dessasriáveis, maior será a “incerteza” no que tange à outra. Com feito, de acordo com a teoria quân

m elétron, por exemplo, não tem simultaneamente uma posição e uma velocidade precisas: o qservável permanece, de certa forma, difuso ou “fantasmagórico”, a menos que um ato densuração limite sua dispersão.

Percebe-se que a incerteza de Heisenberg acarreta a ruína do determinismo clássico; como noorma Hawking, “o resultado dos processos físicos não podem ser previstos com certeza porqo são determinados com certeza” (72). A natureza “não dita os resultados de nenhum processperimento, mesmo nas situações mais simples. Em vez disso, ela aceita que inúmeras

entualidades diferentes se realizem, cada qual com uma certa probabilidade de se realizar”.[

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pressiona o fato de que essa admissão parece contradizer o princípio laplaciano de determinntífico, enunciado no capítulo 2 como “a base da ciência moderna” (30), o qual assevera queado o estado do universo em um determinado momento, um conjunto completo de leisdetermi

almente[ 173 ] tanto o futuro quanto o passado”! Isso não é verdade, afirma Hawking: “A teoântica pode parecer solapar a idéia de que a natureza é regida por leis, mas esse não é o casoz disso, ela nos leva a aceitar uma nova forma de determinismo: Dado o estado de um sistema

m determinado momento, as leis da natureza determinam as probabilidades de vários futuros essados, em vez de determinar o futuro e o passado com certeza”. Para a maioria dos cientista

nfessamente, essa foi uma admissão indesejada, e somente em face de evidências incontrovere eles finalmente concordaram com ela: a despeito de Laplace, não há enfim um “conjuntompleto de leis” que “determina totalmente tanto o futuro quanto o passado”.Não obstante a natureza probabilística das previsões da mecânica quântica, contudo, suasgações são testadas rigorosamente, o que significa que as distribuições de probabilidade podobservadas por meios estatísticos. A teoria quântica ainda é física: uma ciência rigorosa qu

gar a previsões quantitativas que podem ser verificadas ou refutadas por experimentos; e, comonta Hawking: “Ela nunca falhou em um teste e já foi testada mais vezes do que qualquer outr

ria da ciência” (74).Em seguida, ele nota que as probabilidades da teoria quântica são de um tipo desconhecido naidiana. Lançar uma moeda, por exemplo, ocasiona uma distribuição de probabilidade, não poa intrinsecamente indeterminado, mas simplesmente porque não podemos controlar os parâmscritivos do lançamento com precisão suficiente para determinar a trajetória resultante. “Na tântica, as probabilidades”, entretanto, “são diferentes. Elas refletem uma aleatoriedade que éndamental à natureza”. O que está em questão já foi capaz de intrigar os grandes cientistas − epecialmente os maiores, podemos acrescentar −, de Albert Einstein a Richard Feynman, o quanderou acerca dessa “aleatoriedade fundamental” durante anos e, enfim, foi levado a concluirenso que posso dizer, com segurança, que ninguém entende a mecânica quântica”.

Hawking se volta agora para uma formulação da mecânica quântica que foi apresentada por ynman na década de 40, a qual “se revelou mais útil do que a original” (76). Ela se baseia emia extremamente ousada, do tipo que somente um gênio científico de primeiro escalão podepregar com sucesso. Consideremos o experimento da dupla fenda, realizado com partículas dum tipo. Sabe-se, pela teoria quântica, que uma partícula não tem nenhuma posição definida e

momento em que inicia sua trajetória e o momento em que é detectada na segunda tela. Mas, eminterpretar que isso significa que as partículas “não iniciam uma trajetória quando transitam e

onte e a tela”, Feynman percebeu que, ao contrário, isso poderia significar que “as partículasciam todas as trajetórias possíveis que conectam esses pontos”. Nisso, pressentia ele, reside gredo da teoria quântica: “Isso, afirmou Feynman, é o que torna a física quântica diferente da wtoniana” (75). E dado que “a concepção de Feynman no tocante à realidade quântica é crucira a compreensão das teorias que em breve apresentaremos”, Hawking se certifica de nos darma idéia de como ela funciona” (77).Tomemos o experimento da dupla fenda. Para determinar a amplitude de probabilidade de umrtícula que está em um ponto A da segunda tela, precisamos acrescentar a contribuição para e

plitude de cada trajetória possível partindo da fonte O para o ponto A. Ora, o que importa é ntribuída por qualquer trajetória determinada (por exemplo, se a onda correspondente tem um

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sta ou um ventre em A), e o que faz com que isso seja calculável é o fato de que, exceto para jetórias especiais, as contribuições das trajetórias próximas se cancelam.[ 174 ] Essas idéiasrém, podem ser extrapoladas do caso do experimento da dupla fenda para o caso geral de umrtícula que se move de um ponto a outro: “A prescrição matemática de Feynman [...] mostrou ando somamos as ondas de todas as trajetórias, obtemos a ‘amplitude de probabilidade’ de q

ma partícula, começando em A, alcance B”. O mesmo é verdade, ademais, para um sistema físibitrário que se componha de um dado número de partículas: “Feynman mostrou que, para umtema geral, a probabilidade de qualquer observação se constrói a partir de todas as histórias

ssíveis que poderiam ter levado àquela observação. Por causa disso, seu método é chamado mulação de ‘soma de histórias’ ou ‘histórias alternativas’ da física quântica” (82).

Após introduzir o leitor, desse modo, à versão de Feynman da teoria quântica, baseada na noçstórias alternativas”, Hawking toca em um outro aspecto “estranho” da nova física: o fato de passado (não observado), assim como o futuro, é indefinido e existe apenas como um espectrssibilidades. O universo, de acordo com a física quântica, não tem um só passado, uma sótória”. E isso implica (o que talvez seja o fato mais estranho de todos!) “que as observações emos em um sistema no presente afetam o seu passado”. Esses chamados experimentos de

colha postergada” podem ser executados, por exemplo, no caso do contexto da dupla fenda. wking se ocupa, sobretudo, em levar a noção de “escolha postergada” à sua conclusão últimaeremos que, como uma partícula, o universo não tem uma única história apenas, mas todas astórias possíveis, cada qual com sua própria probabilidade; e nossas observações de seu estaal afetam o seu passado e determinam as diferentes histórias do universo, assim como asservações das partículas no experimento da dupla fenda afetam o passado dessas partículas”

O capítulo 5 (“A Teoria de Tudo”) se inicia com um panorama da física clássica pós-newtonimeçando pela descoberta do campo eletromagnético, que culmina nas equações de campo demes Clerk Maxwell. Todo tipo de ondas eletromagnéticas, de raios-x à luz visível e às ondasdio, poderiam agora ser descritas com uma precisão sem precedentes. Contudo, uma dificuldandamental se apresentava: presumia-se que o campo eletromagnético pressupunha um meio qurmeasse todo o espaço: o suposto éter; e essa doutrina tinha certas implicações científicas: “Sr existisse, haveria um critério absoluto de repouso [...] e, por conseguinte, também uma mansoluta de definir o movimento. O éter forneceria um quadro de referências preferível ao longodo o universo, diante do qual se poderia medir a velocidade de qualquer objeto” (93). Emnjunção com a hipótese galileana de um sol estático, ao redor do qual a Terra revolve com umocidade orbital v (relativa ao éter), isso levava os cientistas a perguntar se podia ser possíve

dir v. Em 1887, ademais, Albert Michelson e Edward Morley, com efeito, conduziram um talperimento, com base na seguinte idéia: se c designa a velocidade da luz (relativa ao éter), enta velocidade relativa à Terra deveria ser c − v, para um feixe de luz que se move na mesmaeção da Terra, e c + v, para um feixe que se move na direção oposta. Entretanto, o experimen

velou − para a consternação da comunidade científica! − que as duas velocidades relativas, emrdade, são iguais.[ 175 ]Nesse momento crítico, Hawking opta por delinear as concepções básicas da relatividade

steiniana, começando pela teoria especial da relatividade (publicada em 1905), que resolve

passe supracitado estipulando que a velocidade da luz é exatamente a mesma em qualquer qureferência inercial. Matematicamente, isso leva à noção de um contínuo espaço-tempo

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adridimensional e a uma modificação correspondente das equações newtonianas. A teoria esprelatividade, então, foi aplicada (em 1927) em quadros de referência arbitrários na teoria geatividade, a qual se baseia na noção revolucionária de que os campos gravitacionais podem plicados geometricamente como resultando de uma “curvatura”, não do espaço tridimensionaora descartado, mas do espaço-tempo quadridimensional. Em termos breves, mas compreensíuitivamente, Hawking nos conduz através desse desenvolvimento, exposição que conclui comgação de que a relatividade einsteiniana (incluindo a teoria geral), nesse entremeio, foinfirmada por uma gama de experimentos que vão desde medições feitas por relógios atômico

talados em aviões que circulam a Terra até dados oriundos de satélites GPS que supostamentectam efeitos “gravitacionais”. “A tecnologia moderna”, Hawking nos informa, “é sensível o

stante para que possamos realizar muitos testes delicados acerca da relatividade geral, e elassou em cada um deles” (102).A visão de Hawking quanto à física, porém, difere radicalmente da visão de Einstein; como a xwelliana que substituiu, a física einsteiniana também não é a mais atual: “Embora ambas ten

volucionado a física, a teoria de Maxwell sobre o eletromagnetismo e a teoria de Einstein sobavidade − a relatividade geral − são, ambas, assim como a física de Newton, teorias clássicas

ratam-se de modelos em que o universo tem uma única história. Conforme vimos no últimopítulo, nos níveis atômico e subatômico, esses modelos não estão de acordo com as observaç03). O que é necessário, afirma Hawking, é uma teoria quântica que não abarque apenas acânica newtoniana, mas também a teoria eletromagnética de Maxwell e a teoria gravitacional

nstein. Para ser preciso, há quatro forças básicas da natureza: a gravidade, o eletromagnetismças nucleares fortes e fracas. Ora, a mecânica quântica, segundo concebida originalmente (polta de 1925), era essencialmente uma teoria da matéria: isto é, das partículas de massa, comoótons, nêutrons e elétrons. O que falta agora, para completar o quadro, é uma teoria quânticae não apenas a matéria, mas também os campos de força sejam “quantizados”, isto é, tratados

m ponto de vista teórico quântico. É aí que entram em cena as teorias quânticas de campo; complica Hawking, “nas teorias quânticas de campo, os campos de força são concebidos comompostos de várias partículas elementares chamadas bósons, que são partículas veiculadoras dça que vão e vêm entre as partículas de matéria, transmitindo as forças. Essas partículas detéria são chamadas férmions” (104).

O primeiro campo a ser quantizado com sucesso foi o eletromagnético, resultando natrodinâmica quântica ou EDQ, uma teoria desenvolvida, na década de 40, sob a tutela deynman. Assim, o primeiro bóson a ser descoberto foi o fóton: “De acordo com a EDQ, todas

erações entre partículas carregadas − partículas que sentem a força eletromagnética − sãoscritas em função de uma troca de fótons” (105). E podemos acrescentar que a EDQ está entrrias físicas mais espetacularmente precisas já criadas.

Antes de passar ao próximo feito de quantização de campo, Hawking comenta duas brilhantesncepções, ambas introduzidas por Feynman, que tornam possível essa quantização. A primeirpeito aos “diagramas de Feynman”, os quais permitem calcular as supramencionadas “integr

bre histórias” que entram no formalismo das teorias quânticas de campo, diagramas esses quewking considera “uma das ferramentas mais importantes da física moderna”. Um segundo

stáculo que precisava ser superado era o temeroso fato de que “quando somamos as contribunúmero infinito de diferentes histórias, obtemos um resultado infinito” (107). E é aí que entra

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na outro dos golpes de mestre de Feynman: para lidar com essa dificuldade fundamental, eleventou um procedimento matemático chamado “renormalização”. O processo envolve “subtraantidades que se definem como infinitas e negativas de tal modo que, com operações matemátdadosas, a soma dos valores negativos infinitos e dos valores positivos infinitos que surgemria se cancelem, deixando apenas um pequeno resto, os valores finitos observados de massa

rga”.Como aponta Hawking, foi essa descoberta revolucionária, realizada em EDQ, que encorajou ico a tentar a quantização de outros campos. Todavia, tornou-se aparente com o tempo que, po, esses campos, de algum modo, tinham de ser unificados: começamos a perceber que “a divs forças naturais em quatro classes é provavelmente artificial e uma conseqüência de nossa faendimento” (109). E, assim, teve início a busca por “uma teoria de tudo, que unifique as quatsses em uma única lei que seja compatível com a teoria quântica”. Uma primeira descoberta

ntido foi feita em 1967, quando Abdus Salam e Steven Weinberg “propuseram, cada qualdependentemente, uma teoria na qual o eletromagnetismo estava unificada com a força fraca escobriram que a unificação curava a praga das infinitudes. Essa força unificada é chamada detrofraca. Sua teoria pode ser renormalizada e previu assim três novas partículas: W+, W− e Z

busca por essas partículas agora estava em andamento nas grandes instalações de pesquisa nuaté 1983, a existência de todas as três foi descoberta.Em seguida, veio a força nuclear forte. “A força forte, em si mesma, pode ser renormalizada ema teoria chamada CDQ ou cromodinâmica quântica. De acordo com a CDQ, o próton, o nêutr

uitas outras partículas elementares de matéria são feitas de quarks, os quais têm uma propriedrível que os físicos vieram a chamar de cor”. A nomenclatura curiosa (que obviamente não dtomada ao pé da letra) serve para rotular os três tipos de quarks previstos pela teoria: eles s

egorizados como “vermelho, verde e azul”. O próximo passo no sentido de uma unificaçãonsistiu na formulação das chamadas teorias da grande unificação ou TGUs, que buscavam uniforças forte e eletrofraca; porém, essas tentativas se revelaram mal sucedidas: em conseqüênevidências observacionais adversas, “a maior parte dos físicos adotou uma teoria ad hoc chamodelo padrão, o qual abarca a teoria unificada das forças eletrofracas e a CDQ como uma tforça forte [...]. O modelo padrão é muito bem-sucedido e concorda com todas as evidênciasservacionais atuais, mas, no final, é insatisfatório, porque, além de não unificar as forçastrofraca e forte, ele não inclui a gravidade” (112).

É aqui, em seu encontro com a gravidade, que a teoria quântica de campos depara o seu maiorstáculo. Em conseqüência da incerteza de Heisenberg, o campo gravitacional não pode mante

ado de energia mínima, chamado de vácuo, sem «o que se chama de tremores quânticos outuações de vácuo − situação em que partículas e campos vão e vêm para dentro e para fora dastência” (113). Essas partículas-fantasma, que ocorrem em pares, são chamadas de “virtuais”

speito do fato de que não podem ser observadas diretamente, seus efeitos sobre as órbitas dotrons, embora extremamente pequenos, “podem ser medidos, e concordam com as previsõesricas com um grau notável de precisão”. Entretanto, há um enorme problema, o de que “as

rtículas virtuais têm energia, e porque há um número infinito de pares virtuais, eles teriam umantidade infinita de energia. De acordo com a relatividade geral, isso significa que eles dever

brar o universo em um tamanho infinitamente pequeno, o que obviamente não acontece!”.oi esse impasse que ocasionou um outro grande salto conceitual, talvez o mais colossal de to

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sa nova teoria, proposta em 1976, é chamada de supergravidade, denominação em que o prefere a “um tipo de simetria que a teoria possui, chamada de supersimetria”, que implica que “ças e as partículas de matéria (e, assim, as forças e a matéria), são, na verdade, apenas duasetas de uma mesma coisa. Falando praticamente, isso significa que cada partícula de matéria

mo, por exemplo, um quark , deve ter uma partícula parceira que seja uma partícula de força, da partícula de força, como um fóton, deve ter uma partícula parceira que seja uma partícula dtéria” (114). O problema é que, até agora, “não se observou nenhuma tal partícula parceira”5), talvez devido ao fato de que essas partículas, supostamente, são mil vezes mais pesadas

e um próton; “mas há esperança de que tais partículas sejam criadas, algum dia, no grande CoHádrons, em Genebra”.

Ocorre, ademais, que a idéia de supersimetria antecede a teoria da supergravidade, uma vez qe sua origem nas teorias de cordas ou de “supercordas”. O que é mais saliente em todo esse

nglomerado de teorias é o fato de que a supersimetria exige, no mínimo, dez dimensões espaçmpo “em vez das quatro habituais”: como, então, passa-se de dez ou mais para quatro? “Na tecordas, as dimensões adicionais são condensadas no que se chama de espaço interno, emosição ao espaço tridimensional que experimentamos na vida cotidiana. Conforme veremos,

ados internos não são apenas dimensões ocultas que foram varridas para baixo do tapete − elm importante significância física” (116).O que é de suma importância, semelhantemente, é o fato de que “as teorias de cordas estão hojnvencidas de que as teorias de cordas e a supergravidade são apenas aproximações diferente

ma teoria mais fundamental, cada qual possuindo validade em diferentes situações”; e, como jáderíamos esperar, “essa teoria mais fundamental é chamada teoria M [...]” (117).. É aqui,ecisamente, que Hawking propõe sua inovação radical: “Talvez”, ele nos diz, “a expectativadicional dos físicos quanto a uma teoria única da natureza seja insustentável, e não existe nenmulação de uma tal teoria”. Seu argumento é que uma família de teorias ou “modelos” que

oncordem em suas previsões sempre que elas coincidam” pode servir igualmente bem. Hawkmite que não sabe ao certo se a teoria M, no fim, não pode acabar se revelando “clássica”, emdentemente considere isso improvável. De qualquer modo, conhecemos, com efeito, alguns fm primeiro lugar, a teoria M tem onze dimensões, e não dez”. Ademais, sabe-se que “a teoriade conter não apenas cordas, como também pontos materiais, membranas bidimensionais, boldimensionais e outros objetos que são mais difíceis de imaginar e que ocupam ainda maismensões, chegando até à nona” (118). E, o que é mais importante, sabemos que a constituiçãopaço interno determina tanto “os valores das constantes físicas, como qual é a carga de um elé

anto a natureza das interações entre partículas elementares. Em outras palavras, ela determinas aparentes da natureza”, isto é, as leis que descobrimos por meios empíricos. “Porém, as leiis fundamentais são as da teoria M”. Com efeito: “As leis da teoria M, por conseguinte,ssibilitamdiferentes universos com leis aparentes diferentes, dependendo de como se dobra paço interno. A teoria M apresenta soluções que possibilitam muitos espaços internos diferenegando talvez ao número de 10500, o que significa que ela possibilita 10500 universos difereda qual com suas próprias leis”.sso nos traz ao capítulo 6, intitulado “Escolhendo nosso Universo”. Esse capítulo começa com

ato acerca da teoria do big bang , rastreando as etapas principais de seu desenvolvimento, deprimeiras contribuições de Einstein, Hubble e Friedmann passando pelas várias etapas até ch

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teoria da “inflação”, que afirma reduzir a origem de nosso universo a um “evento quântico”. pa do céu (localizado na página 138 do livro de Hawking), com base em dados coletados aosete anos e publicado em 2010 − no qual uma miríade de pontos de cores variadas pretende

presentar diferenças de temperatura menores que um milésimo de grau centígrado, cerca de 13hões de anos atrás! − conclui a apresentação. “Então, olha cuidadosamente para o mapa do ccro-ondas”, observa Hawking. “Trata-se da planta de toda a estrutura do universo. Somos ooduto de flutuações quânticas que ocorreram no começo do universo. Se fôssemos religiosos,deríamos dizer que Deus de fato joga nos dados” (139).

E assim tem início a parte mais original da teoria de Hawking. “A suposição habitual, emsmologia, é que o universo tem uma única história definida. Podem-se usar as leis da física pcular como essa história se desenvolve no tempo. Chamamos isso de abordagem ‘dos pés à

beça’ com relação à cosmologia”. Hawking reprova essa abordagem com base no fato de queessupõe um único ponto de partida para a evolução cósmica: “Em vez disso, devem-se rastretórias de cima para baixo, regredindo no tempo a partir do presente”. Aquilo a que Hawkinganta objeção é a noção de que o universo tem “uma única história que independe dosservadores”. Ele argumenta, em lugar disso, que somos nós que determinamos ou “escolhemo

ssa história, pelo fato de que habitamos este universo. Podem haver  outras histórias, que levaversos diferentes do nosso; e, com efeito, a teoria M nos diz que esse é de fato o caso.Uma aplicação importante da abordagem de cima a baixo é que as leis aparentes da naturezapendem da história do universo” (140). Consideremos a dimensão do universo: por que o esp

nosso universo é tridimensional, quando, segundo a teoria M, poderia ter até dez dimensõesma de Feynman prevê todas essas [possibilidades], para cada história possível do universo, mservação de que nosso universo tem três grandes dimensões espaciais seleciona a subclasse dtórias que têm a propriedade observada” (141). Hawking faz questão de enfatizar, entretantoo não é mera especulação, que não se trata, com efeito, de ficção científica, como se poderiapor, e sim de física do tipo mais rigoroso. Em verdade, “a teoria que descrevemos neste capíttável”. O que Hawking tem em mente, especificamente, é a magnitude e a distribuição deegularidades no plano de fundo de micro-ondas, as quais estão entre os aspectos de nosso une agora estão ao alcance da observação e que, com efeito, “descobriu-se concordarem exatamm as exigências da teoria da inflação”.[ 176 ] Contudo, medições mais precisas “são necessárra diferenciar totalmente a teoria que vai de cima a baixo das demais e para a reforçar ou refua como for, Hawking nos deixa com a crença de quenosso universo provém de um “eventoântico” que teve lugar cerca de 13.7 bilhões de anos atrás.

sso nos traz ao capítulo 7, “O Milagre Aparente”, que trata do motivo pelo qual o universo seostra habitável ou possui um “design favorável ao ser humano”. Tradicionalmente, é claro, amanidade tem acreditado que esse “design favorável ao ser humano” deriva do fato de que oundo fora criado por um Deus benevolente; mas Hawking vê problemas nessa crença. “As divorrências improváveis que conspiraram para possibilitar nossa existência”, ele nos diz, “seriao intrigantes se o nosso fosse o único sistema solar do universo” (153). Mas, devido ao fato e há bilhões de estrelas em nosso universo, muitas das quais têm um sistema solar, a hipóteseesign” começa a se tornar questionável. “Obviamente, quando os seres de um planeta que lhe

stenta a vida examinam o mundo ao seu redor, estão fadados a descobrir que seu ambiente satcondições das quais necessitam para existir”. E aí, precisamente, reside a chave para o misté

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arente: “ possível transformar essa última afirmação em um princípio científico: nossa própstência impõe regras que determinam a partir de onde e em qual tempo nos é possível observiverso”.

O que Hawking acaba de enunciar é o chamado princípio antrópico, ou “princípio antrópico fra ser exato, a respeito do qual muito se tem escrito nas décadas recentes. Ele aponta que oncípio se revela científico na medida em que leva a previsões que são testáveis e as quais, coito, prova serem verdadeiras; por exemplo, ele implica, como primeiro demonstrou Robert De “o universo deve ter cerca de 10 bilhões de anos de idade”, o que está muito de acordo commero de 13.7 bilhões de anos apresentado pela teoria dobig bang .

O mistério, porém, ainda não foi solucionado; pois acontece que nossa existência não requer enas o tipo correto de sol e um sistema planetário favorável ao homem, mas também, em um nis fundamental, as leis físicas e as constantes da natureza corretas, fato que um mero “princípeção” não parece explicar. Uma coisa é “selecionar” um sistema planetário favorável,viamente; mas trata-se de algo muito diferente o selecionar um valor da sutil constante estrutue permite a ocorrência da química orgânica. Ora, é precisamente nesse momento que Hawkingo novo à cena: a saber, a noção de que o nosso universo é apenas um entre 10500 universos,

al possuindo as suas próprias leis; pois, com efeito, tendo isso por base, nossa existência servra “selecionar” as leis físicas da natureza, assim como seleciona nossa posição dentro do espmpo do universo em que nos encontramos. Assim, por meio da teoria M, Hawking aparentemetificou o que fora conhecido como o princípio antrópico forte, o qual afirma que “o fato de qustimos impõe limitações não apenas ao nosso ambiente, mas também nos conteúdos e formas

ssíveis das próprias leis da natureza” (155).Não precisamos seguir Hawking enquanto ele relata “a narrativa de como o universo primordto de hidrogênio, hélio e um pouco de lítio evoluiu para um universo que abriga ao menos um

undo de vida inteligente”: trata-se, essencialmente, do relato familiar que começa com a astrobig bang  e culmina no panorama darwinista da evolução. O que é interessante, presentemente as leis e constantes universais da natureza precisam passar por uma “afinação sutil” pararmitir que as fases astrofísica e darwinista desse processo ocorram. Consideremos, por exemo de que a vida na terra se baseia no carbono e que a formação de núcleos de carbono resultaocesso chamado triplo alfa, que envolve uma colisão de três partículas, cuja probabilidade secessivamente pequena a menos que a força nuclear forte se encontrasse no âmbito de 0.5 por cseu valor observável, a força elétrica no de 4 por certo e assim por diante. Ou, para dar um o

emplo: a existência de vida em um planeta requer uma estabilidade extrema de sua órbita; no

tanto, “é somente em três dimensões que as órbitas elípticas estáveis são possíveis” (160). Eião, a razão − argumenta Hawking, com efeito − pela qual, emnosso universo, o espaço tem tr

mensões, e não cinco ou nove.A lógica do argumento de Hawking é clara como um cristal: uma vez substituído o universo úntempos idos por um verdadeiro “multiverso”, a afinação sutil das leis e constantes naturais pexplicada pelo princípio antrópico fraco, o que significa que o “milagre aparente” desapare

conceito de multiverso pode explicar a afinação sutil das leis físicas sem a necessidade de uador benevolente que fez o universo em nosso benefício” (165).

Mesmo essa “suplantação da hipótese de Deus”, todavia, ainda não é a palavra final: no últim

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pítulo (intitulado “O Grande Projeto”), Hawking propõe uma resposta para as perguntas de “ pê?” que foram colocadas no começo do livro: Por que há algo em vez de nada? Por que

stimos? Por que esse conjunto particular de leis e não algum outro?” (171). A substância dpítulo, à qual restringiremos nosso resumo, é dada nos parágrafos concludentes; e, como se pperar, a resposta às três perguntas de “ por quê?” deriva da teoria M e da versão correspondenprincípio antrópico. “A criação espontânea [isto é, a criação concebida à la teoria M, como

ento quântico] é a razão pela qual existe algo em vez de nada, pela qual o universo existe e peal nós existimos” (180). Essa é a resposta de Hawking para as duas primeiras questões; e sua

posta à terceira também diz respeito à teoria M. Ela tem sua origem na versão forte do princítrópico, relativa ao “multiverso”, a qual explica por que encontramos “esse conjunto particul

s e não algum outro”. A resposta para as questões últimas, assim, pode ser suprida pela físicora está em andamento: “Se a teoria for confirmada pela observação, será a conclusão bem-cedida de uma busca que remonta a mais de 3 mil anos. Teremos descoberto o grande projeto

81).

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II

O primeiro argumento a ser colocado, tendo em vista uma resposta, refere-se à natureza da ciêquanto distinta da filosofia. “A filosofia está morta”, assevera Hawking, e agora é a ciência qrega “a tocha da descoberta em nossa busca pelo conhecimento” (5). Porém, mesmo concedee boa parte daquilo que passa por filosofia nos dias de hoje deve de fato estar “morta”, resta que a ciência e a filosofia, como tal, são disciplinas muito diferentes, ao ponto de que nenhum

s duas pode substituir a outra. Conforme observamos anteriormente neste livro, há, com efeitomplementaridade, uma oposição, poder-se-ia dizer, entre a filosofia pro priamente dita e a ciê

ando esta é tosquiada de sua mitologia e compreendida pelo que é de direito. Para indicar, aie sumariamente, a natureza dessa oposição, precisamos distinguir categoricamente entrensamento e linguagem (distinção que, incidentalmente, cabe apenas ao domínio da filosofia)

ma afirmação breve, o pensamento é um ato intencional que busca apreender um objeto por mem conceito, o qual se pode definir, com base na escolástica, como a forma do ato. A linguagem

tro lado, é algo subsidiário ao pensamento: trata-se de seu veículo − aquilo que serve parapressar e comunicar o pensamento. Ora, pode-se dizer que, para a filosofia, o pensamento temmazia sobre a linguagem, ao passo que, para a ciência, a relação é invertida. Deixa-me recor

7 ] que, para o filósofo, o conceito não é mais que um meio para um fim transconceitual, o qufim, é o conhecimento imediato do próprio objeto; como os chineses poderiam dizer, os concvem ao filósofo como “um dedo que aponta para a lua”. O cientista, por outro lado, não temnhum interesse na “lua”, nem sabe que existe um tal objeto. Para ele, o conceito desempenha upel muito diferente; afinal, o que ele busca não é uma entidade transcendente, mas os “fenômesentido contemporâneo desse antigo termo.[ 178 ] Como esses supostos fenômenos, ademais,acionam com o objeto transcendente é uma questão que diz respeito somente ao filósofo, nadida em que a idéia mesma de “objeto”, no sentido filosófico, é alheia ao cientista. Logo, tam

modus operandi do cientista é oposto ao filosófico: em vez de “abrir” o conceito na busca po

eto transcendente, ele o fecha, para consolidar sua preensão sobre os fenômenos. E é aqui quguagem adquire sua condição fundadora: como Jean Borella deixou claro, o fechamento

istêmico do conceito, pelo qual a ciência se define, é efetuado por meio de umcritério de

ntificidade que é especificado no nível da expressão formal ou lingüística.[ 179 ]Vemos, à luz dessa análise, que a filosofia e a ciência são fundamentalmente opostas: ao passoilósofo trata os conceitos como auxiliares providenciais na busca por um objeto transcendentntista, por sua vez, empenha-se em um processo de fechamento epistêmico, na busca por 

nômenos definidos ou condicionados por esse mesmo processo. Como mostrei em outra parte

0 ] a história da física, de seus inícios galileanos até as últimas teorias do “multiverso”, exibrios estágios desse fechamento progressivo, que se manifesta como uma recessão concomitanetos correspondentes da experiência humana real, culminando em uma concepção de entidad

rtencentes a universos outros que o nosso. O que nos preocupa no momento, contudo, não é ardade ou a validade científica dessas teorias, mas o fato de que a evolução da física confirmabredita oposição entre ciência e filosofia. O cerne dessas considerações sumárias é simplesme: sugerir que a ciência pode, mesmo em princípio, substituir a filosofia “em nossa busca p

nhecimento” é exibir uma carência fundamental de compreensão no que tange à natureza e

copo de ambas as disciplinas.

Meu segundo ponto argumentativo diz respeito à concepção de Hawking de realismo modelo-

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pendente, o qual, de certo modo, é rememorativo de um princípio metafísico fundamental: aque, com efeito, chamei de “realismo antrópico”.[ 181 ] Este afirma que o cosmo existe − não emlamento esplêndido, qual um Ding an sich kantiano, mas, em verdade, “para nós”, isto é, cometo da intencionalidade humana. O homem e o cosmo, portanto, devem estar unidos: eles form

ma complementaridade. Mas isso não é essencialmente o que também o “realismo modelo-pendente” afirma? Ali, igualmente, entra em cena o observador humano, em virtude do fato dele quem cunha as concepções − os “modelos” − em função do qual se define a realidade. Conuma diferença entre o realismo modelo-dependente e o realismo antrópico, a qual se mostra

ucial: pois, ao passo que Hawking considera o observador humano como componente ou partiverso,[ 182 ] o realismo antrópico insiste que o homem, o anthropos autêntico, transcende osmo − que ele, literal e necessariamente “não é deste mundo”. Por certo, o seu corpo físicortence de fato ao cosmo, ao mundo no qual nos encontramos; o fato, todavia, é que o homem,quanto tal, não se reduz ao corpo físico: o observador ou a testemunha, em outras palavras,vela-se ser transcendente.Ora, ocorre que, mesmo de um ponto de vista estritamente científico, a concepção reducionistservador acaba enfim por ser indefensável. Tomemos o caso da percepção visual: mantendo-

ordo com a opinião predominante, Hawking supõe que a visão se reduz a uma função do cérebe nos conta, por exemplo, que o cérebro humano “lê uma gama bidimensional de dados vindoina e cria, a partir deles, a impressão de um espaço tridimensional” (47). Esse preceito, porédesafiado criticamente por um cientista empírico chamado James Gibson, com base em

scobertas experimentais coletas por meio do que, talvez até hoje, foi a pesquisa mais exaustiverca da natureza da percepção visual. O que os experimentos de Gibson trouxeram à luz foi ocisivo de que a percepção não se baseia em uma imagem retiniana (como haviam quase todosesumido), e sim em informações dadas no arranjo ótico ambiente, que especifica, entre outrassas, a estrutura tridimensional do ambiente. Parece que nosso sistema visual não foi projetad

mplesmente para receber imagens retinianas, mas para vasculhar esse arranjo ótico ambiente etrair dele aquilo que Gibson chama de invariantes. São essas invariantes que, em verdade, sãrcebidas, o que significa que o percepto não é construído, e sim objetivamente real : não estáramente “dentro da mente”, mas fora dela, como a humanidade, com efeito, sempre supusera.er dizer que o que é percebido não é uma imagem visual, seja retiniana, cortical ou mental, e qamada terceira dimensão, em particular, não é mesmo diferente das outras duas: ela não precinstruída − por meio de um processo que ninguém, mesmo remotamente, jamais foi capaz denceber −, mas, com efeito, é percebida diretamente, assim como todas as outras invariantes.[

Embora amplamente discutido e jamais refutado, a “teoria ecológica da percepção visual” debson, notarei de forma parentética, não obteve mais do que um séquito parcial entre os cientisgnitivos; e, poder-se-ia acrescentar, à luz de considerações que serão adiadas para a parte IIIeitação do paradigma gibsoniano pelo establishment  científico como um todo foi efetivamentpedida por razões outras que científicas. O que nos ocupa agora, porém, é o fato de que asscobertas empíricas de Gibson bastam para invalidar a concepção reducionista do observadomano, sobre a qual a noção de realismo modelo-dependente se baseia. Tomemos, por exemplgação de que “se pode perceber um objeto ou umhabitat  inteiro a partir de nenhum ponto fixservação”[ 184 ] ou de que os acontecimentos não são percebidos em um momento do temponquanto possam parecer incríveis essas alegações, elas simplesmente expressam o fato de qu

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mbiente estático e nem o movimento são percebidos por partes, como teriam de ser, se arcepção se reduzisse a uma função do cérebro. Não importa o que ocorra no cérebro, é necesestágio final, que se unifique aquilo que está espacial e temporalmente disperso no nível da

vidade neural; e isso implica queo observador propriamente dito não está sujeito, ele mesm

mitações espaço-temporais. É essa transcendência do “aqui” e “agora” espaço-temporais quermite perceber “um objeto ou umhabitat  inteiro a partir de nenhum ponto fixo de observaçãom como o movimento, algo que não pode ser detectado “em um instante do tempo”. Entretantoer que o observador “transcende as limitações espaço-temporais” é declarar que ele não é um

tidade cósmica.Ocorre, ademais, que uma conclusão substancialmente idêntica foi alcançada por meio de umrema matemático e, o que é bastante curioso, por ninguém menos do que o antigo mentor eaborador de Stephen Hawking, Roger Penrose. Na seqüência de suas explorações astrofísicae culminaram no famoso “teorema da singularidade” de Hawking-Penrose, o matemático de Oudou seu foco do cosmo como um todo para o cérebro humano. A pesquisa neurológica, a essaura, havia concluído que o cérebro humano, em muitos aspectos, de fato se assemelha a ummputador feito pelo homem, e a busca por descobrir como esse computador “feito de carne”

liza, em verdade, os vários prodígios da inteligência humana estava em progresso. Fixando snção sobre a solução de problemas matemáticos, em particular, Penrose se perguntava se talvtemático poderia resolver problemas que, em princípio, não podem ser resolvidos por mputador, isto é, por meios algorítmicos. Por intermédio de uma aplicação engenhosa do queama comumente de teorema de Gödel, ele foi capaz de provar que esse é de fato o caso (e, poescentar, a formulação e a prova desse fato matemático é, ela mesma, uma realização “nãoorítmica”). Mas notemos o que isso acarreta: o fato prova que a inteligência humana não se

duz a uma função do cérebro. A premissa reducionista de Hawking, logo, havia sido refutadaor matemático completo.[ 185 ]sso nos traz ao meu terceiro ponto crítico, que diz respeito à ontologia de Hawking: sua reduçtodas as coisas − de todo o “ser” − a partículas quânticas. Hawking, portanto, não apenas redservador a um status de entidade cósmica, como também, em seguida, reduz as entidades cósmquanto tais, a “partículas” que não podem ser observadasdiretamente, não podem ser vistas; o significa que não somente o observador, mas também o que é diretamente observável, no fimntas, reduz-se a uma função do cérebro. Mas, além do fato de que ninguém tem a menor idéiaquer de como o disparo de um milhão de neurônios pode produzir algo como uma maçã vermontece de haver razões científicas sólidas que militam contra essa hipótese: novamente, as

scobertas de James Gibson são um exemplo adequadíssimo. Filosoficamente falando, a ontolHawking se reduz, fundamentalmente, à ontologia cartesiana, a qual sobrevive, até hoje, com

emissa metafísica oculta que é universalmente pressuposta pelo establishment  científico comodo. O que está em questão é o postulado da “bifurcação”, que afirma que a realidade se divid

m mundo “externo”, que consiste de coisas que podem ser descritas sem resíduo em termostemáticos, e um mundo “interno”, subsistente naquilo que Descartes chama deres cogitans ou

ntidade pensante” (a qual Hawking identifica ao cérebro humano vivente). Entendamos istoramente: eis a pressuposição ontológica não declarada sobre a qual todo o edifício da

smovisão de Hawking se baseia.Deve-se observar que essa premissa cartesiana não pode ser testada empiricamente, o que sig

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e ela não pode, em princípio, ser afirmada com base em razões científicas. Como, então, sabeé verdadeira? Podemos lembrar que o próprio Descartes enfrentou grande dificuldade para snvencer de que esse mundo “externo” deres extensae − que nenhum olho humano jamais podntemplar − existe de fato e que ele buscou justificar sua crença em um tal mundo por meio de gumento filosófico que recorre, enfim, à “veracidade de Deus”: esse mesmo Deus que, desde

rejeitado por cientistas cripto-cartesianos, de Laplace a Hawking, como uma “hipótesesnecessária”. O que nos preocupa primeiramente, contudo, é o fato de que, no século XX −ando, segundo Hawking, a filosofia estava à beira da morte! −, a “bifurcação” sofreu ataque

oroso pelas mãos de filósofos notáveis, começando com Edmund Husserl e Alfred Whiteheadas pesquisas demonstraram que a premissa cartesiana não somente era infundada, mas também

rdadeiramente insustentável. A despeito do que mais possamos dizer acerca da filosofia do sela certamente rompeu o duradouro garrote da ontologia da bifurcação − mas apenas, é claro

ueles dispostos e capazes de ouvir.Agora, surge a questão: a física tem necessidade da premissa cartesiana? Suas descobertas nãderiam ser interpretadas igualmente bem, quiçá, em função de uma ontologia realista que sejaastante para incluir aquilo que Gibson chama de “ambiente”: o universo perceptivo,

meadamente, o qual, segundo ele observa, “não é o mundo da física”? Revela-se que esse é daso;[ 186 ] e observemos, sem delongas, o que isso implica: se é verdade que as descoberta

ica podem ser interpretadas consistentemente de forma não bifurcada, esse mesmo fato imp

e, em princípio, é impossível basear uma cosmovisão bifurcada nessas descobertas, comowking afirma fazer. No cômputo final, a coisa é assim tão simples.

Mas há mais: como mostrei, semelhantemente, em O enigma quântico, a física em si não somede ser interpretada perfeitamente bem de forma não bifurcada, como também, com efeito, só p“bem interpretada” desse modo: pois ocorre que o postulado cartesiano constitui uma fonte

nfusão e, em última instância, um paradoxo. Refiro-me primeiramente ao chamado “problemansuração” − a saber, o fato de que o ato de mensuração interrompe a trajetória de Schrödinge

usando o “colapso de vetor de estado” −, fenômeno que vem intrigando os cientistas desde ovento da teoria quântica. Então, não somente Feynman estava certo ao observar que “ninguémende a teoria quântica”, como também ocorre que a física quântica não pode, de fato, ser 

mpreendida filosoficamente de forma bifurcada.Não tentarei resumir aqui a interpretação ontológica da física enunciada emO enigma quântic

sta notar que ela se baseia em uma distinção categórica entre dois tipos de entidades cósmicasas que, em princípio, são perceptíveis (os objetos corpóreos) e aquelas que, em última instâ

duzem-se a partículas quânticas (objetos físicos). E isso significa, é claro, que um objeto corpo se reduz a um mero agregado de partículas quânticas, ao contrário do que quase todos hojeem. Um objeto corpóreo se revela algo mais do que um tal agregado; e esse “mais” advém de

amado forma substancial , para expressá-lo em termos escolásticos.[ 187 ] A ontologia daíultante − uma ontologia rica o bastante para incluir tanto o “ambiente”quanto “o mundo da f

difere do pré-científico, por conseguinte, em virtude da inclusão de um estrato adicional que apreitada empiriométrica dos séculos passados trouxe à luz (ou “construiu”, como creem algu8 ] o físico, isto é, enquanto distinto do corpóreo. Os dois estratos, ademais, estão intimament

ados (e, sem essa ligação, a física seria impossível), e ocorre que, filosoficamente falando, oico está para o corpóreo assim como a potência está para o ato. Logo, o físico se revela um

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mínio subcorpóreo,[ 189 ] o que significa que a mensuração acarreta uma transição ontológicma passagem da potência ao ato.

sso constitui um reconhecimento-chave, digo, que abre as portas para uma compreensãotológica da teoria quântica. Se a física enquanto tal é mesmo a “ciência da mensuração”, comservou Lord Kelvin, segue-se disso que o chamado “problema da mensuração”, longe de con

m mero enigma “técnico”, refere-se necessariamente ao mistério central da física quântica, quegina do fato de que a mensuração nos leva para fora do domínio físico. O que ocorre, portande mensuração não pode ser concebido como um processo físico.[ 190 ] Não é nenhuma surp

e o problema da mensuração se tenha mostrado recalcitrante aos físicos! Retornando a O Gra

ojeto, acho incrível que uma ontologia que não pode compreender o ato pelo qual se define aica enquanto tal possa ter desqualificado a sabedoria perene!

Uma vez que identificamos o domínio físico como subcorpóreo, não devemos deixar de notar o elimina, de um só golpe, o espetáculo da “estranheza quântica”, que surge da crença equivoque as potências se somam para compor um mundo. A noção, por exemplo, de que uma partíe se move de A até B toma todas as trajetórias possíveis, ou de que um sistema não tem uma stória, e sim todas as histórias possíveis − tais idéias se aplicam precisamente ao nível das

tências, enquanto distinto da realidade corpórea. Confundindo esses dois domínios ontológictintos, Hawking ilude o leitor e o leva a aceitar uma verdadeira conjuntura de ficção científicrei claro: o que é ficcional é a suposição de que as noções do tipo supramencionado se aplicalidade corpórea, isto é, ao mundo perceptível, o que elas certamente não fazem. Precisamosender que a física fundamental se refere necessariamente ao mundo físico, enquanto distinto d

rpóreo; e pouco é surpreendente que meras potências ajam de modos estranhos e inimagináveo há nada de estranho ou paradoxal nisso! O fato é simplesmente que Hawking transformou a ica em uma ficção científica, por meio de sua confusão quanto aos dois domínios ontológicos

A ontologia de Hawking é cartesiana; porém, devemos acrescentar: não exatamente. Assim comscartes, ele deseja reduzir o universo objeto a res extensae − a partículas quânticas, nesse caque exige que tudo o mais, tudo o que não se reduza a quantidade ou estrutura matemática, sejegado a res cogitans − àquilo que Hawking chama de observador. Porém, ao passo que Hawgue Descartes em tornar o percepto subjetivo, ele imediatamente dá um segundo passo que o ncês foi inteligente o bastante para evitar: tendo livrado o universo objetivo de tudo o quenã

temático, ele o preenche novamente com uma pletora de qualidades, trazendo res cogitans delta para o mundo de res extensae: “Tanto o observador quanto o observado”, ele nos diz, “sãrte de um mundo que tem existência objetiva” (43). Ora, deixando de lado a questão acerca d

a redução das res cogitans ou do observador a res extensae faz realmente algum sentido − seo, ela é pensável – ,[ 191 ] ocorre que esse passo se mostra inadmissível, mesmo de um pontota científico: é precisamente isso que nossa crítica do “realismo modelo-dependente” trouxe

as, se o observador se revela transcendente − se ele não se reduz a partículas quânticas, tampoazem as maçãs ou coisas tais. Pelo postulado cartesiano da bifurcação − isto é, a subjetivizaçrcepto −, todas essas entidades são relegadas a res cogitans, donde não podem, doravante, seuperadas: Hawking não pode fazer com que sejam, ao mesmo tempo, res cogitans e res exten

portanto, as res cogitans se revelam transcendentes, o mesmo vale para o mundo percebido,

a inteireza. E isso significa que o universo putativo de partículas quânticas exclui necessariamo apenas o observador, como também, ipso facto, tudo o que é diretamente observado. Nas

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avras memoráveis de Whitehead, resta-nos apenas duas coisas: do lado dasres extensae, umnjectura; do lado das res cogitans, um sonho. Não importa se a conjectura é verdadeira ou fasmo que seja verdadeira − mesmo que haja de fato um mundo quântico −, deve haver, em adio mais: também há, necessariamente, “o sonhador e seu sonho”. Isso basta acerca da ontologwking, que se mostra infundada e contraditória.

Chegamos agora a meu quarto grande ponto argumentativo: afirmo que a teoria de Hawking secora sobre uma concepção inadequada de causalidade. Por certo, isso pouco é surpreendenteque dissemos anteriormente quanto ao problema da mensuração. Deve-se notar, ademais, que,tratando da noção de causalidade, o próprio Hawking mostra sinais de vacilação. Assim, emerminado momento, conta-nos que o determinismo laplaciano − o princípio de que “dado o euniverso em determinado momento, um conjunto completo de leis determina totalmente tantouro quanto o passado” (30) − constitui “a base de toda a ciência moderna”, ao passo que, quaginas depois, Hawking nos diz que “dado o estado de um sistema em um determinado momens da natureza determinam as probabilidades de vários futuros e passados, em vez de determinuro e o passado com certeza” (72), o que, certamente, não é a mesma coisa. O que desejo enfaue Hawking é forçado a compensar essa questão: afinal, como já vimos, o que está em questã

olapso de uma probabilidade”, em última instância, é a passagem da potência ao ato, algo quusalidade física não pode efetuar. O que, então, diremos? Que o “colapso de uma probabilidaenas uma questão de “sorte”? Devemos supor, em outras palavras, que tudo o que não tem cauica não tem causa alguma? Fiz grandes esforços para mostrar, em O enigma quântico, que esso é de modo algum o caso.Essa questão se revela, é claro, necessariamente filosófica: metafísica, para ser preciso. Falanforma breve, ocorre que o universo espaço-temporal − repleto de seus domínios corpóreoe f

não constitui de fato um sistema fechado, como costumam supor os cientistas. Somos forçadosfim, a admitir não somente a existência de um metacosmo, mas também um modo correspondecausalidade, que não tem lugar “no tempo” − isto é, por meio de uma seqüência temporal −, mera “instantaneamente”. Mantendo-me de acordo com um simbolismo tradicional, refiro-me aodo de causalidade como “vertical” e aos modos naturais como “horizontais”. Quais seriam, eemplos de causalidade vertical ? No âmbito da física fundamental, como já vimos, tratam-seecisamente dos atos de mensuração. Mas há também outros grandes âmbitos de causalidadertical, dos quais o exemplo primaz é o comportamento humano do tipo que, normalmente, estáociado à idéia de “livre-arbítrio”.[ 192 ]

Consideremos o caso da “arte”, no sentido amplo de “produção humana”: será que a criação d

efato pode ser atribuída unicamente à causalidade física ou “horizontal”? Afirmo que não podas como se pode descartar a possibilidade teórica de que possa de fato haver uma cadeia deusalidade natural, que envolve bilhões de neurônios no cérebro do artesão e que explica aodução do artefato? Ocorre que se pode descartar essa possibilidade e, com efeito, pode-se fm o máximo rigor, por meio de um teorema matemático: refiro-me ao trabalho de Williammbski,[ 193 ] o qual subjaz àquilo que hoje se conhece como design inteligente ou teoria do Dr certo, todos reconhecem exemplos de “design inteligente”: se deparamos um conjunto de peencosta de uma colina, que forma alguma mensagem, entendemos perfeitamente que não foi um

slizamento de rochas que a colocou ali; ou, então, se encontramos um pedaço de papel com umneto digitado ali, sabemos que isso não foi produzido por um macaco que batia aleatoriament

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las. Isso levanta a questão relativa ao fato de que talvez haja uma “assinatura”, um critério qussivelmente, pode ser expresso em termos matemáticos e que nos permita inferir o “design”. em resposta a essa questão que Dembski foi levado a definir aquilo que chama de “informaç

pecificada complexa” ou IEC, que prova que nenhum processo natural, seja determinístico,

eatório ou estocástico, pode produzir IEC . Em nossa terminologia, isso significa que a IEC éinatura de causalidade vertical. Deixa-me enfatizar, ademais, que isso não é uma conjectura, ra asserção, mas que se trata, com efeito, de um fato matemático, um teorema. E o que esse fas diz? Ele implica, por exemplo, que, quando um artesão produz um objeto que apresenta umsign original[ 194 ] (evento esse que acarreta um aumento líquido de IEC), esse artefato não éoduzido somente por meio da causalidade horizontal: em algum ponto, um ato de causalidadertical deve ter entrado na cadeia causal. Não há necessidade de conhecer a anatomia e a fisiolcérebro com sua miríade de neurônios: se o cérebro funciona segundo as leis da física, elenã

de explicar a produção de um artefato original. Porém, isso não apenas nega a alegação dewking de que “nosso comportamento é determinado por leis físicas”, como também a refutac

ecisão matemática.Devemos notar que a teoria de Dembski não lida simplesmente com “design”, mas, de forma

tiva, com o “design inteligente”. O que isso significa? Parece que Roger Penrose, em seu estuerente ao que os computadores ou os cérebros podem ou não fazer, acertou em cheio a resposncluir que “a essência mesma da consciência” consiste em uma “visão” interior, uma “habilidadivinhar (ou intuir) a verdade, distinguindo-a da falsidade (e a beleza da feiura!) nascunstâncias apropriadas”.[ 195 ] Quer se trate de uma questão de julgamentos que não se podmar por meios algorítmicos ou de atos producentes de IEC, o que conta é que uma certa “visã

ma apreensão intelectiva, seja da verdade ou da beleza (e, se a beleza é de fato o “esplendor drdade”, como declara Platão, ambas verdade e beleza estão intimamente ligadas). Segue-se dora, que, no cerne mesmo de um ser humano, a inteligência ou o “intelecto” entra em jogo: algo se reduz a uma função do cérebro e que possibilita atos que a causalidade física não podetuar.

Mas, para Hawking, há apenas a causalidade física e sua ausência, chamada de “sorte”, a quapostamente explica por que uma distribuição de probabilidade entra em colapso sem nenhumaão atribuível. Vemos agora (ei-la aqui de novo, essa palavra!) que, se fosse esse o caso, teríaconcluir, junto com um batalhão de outras absurdidades, que todos os julgamentos nãoorítmicos − incluindo aqueles que subjazem à própria doutrina de Hawking − são alcançadoste”, o que, decerto, implicaria que não possuem qualquer importância. Falando de forma gen

egação da causalidade vertical no domínio humano acarreta a negação da inteligência e constr conseguinte, uma reductio ad absurdum da mesma sobredita negação. É desnecessário dizeis.sso nos traz, enfim, à posição de Hawking com relação à “criação”. Desde o princípio, ele atção de um Criador e dificilmente perde uma oportunidade de ridicularizar a crença de que umus beneficente “criou os céus e a terra”. Ele argumenta que tal hipótese é tão desprovida decessidade quanto de razão e que, com efeito, um número virtualmente infinito de universos suum vácuo prévio, por meio da operação de leis físicas, o que significa que a criação, em últi

tância, reduz-se a um “evento quântico”.Para começo de conversa, precisamos notar que a idéia de “criação” se revela irremediavelm

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tafísica. Temos de perceber, em primeiro lugar, que o Ato criador não pode ser concebido dodo temporal : a criação não é algo que ocorre “no tempo”. Como afirma Meister Eckhart, comreza extrema: “Deus faz o mundo e todas as coisas neste momento presente”, isto é, no nunc s

“agora” que não é um momento que transcorre no tempo. E que é que “Deus faz”? Diz-nos ostre que são «o mundo e todas as coisas”. Ora, uma enorme confusão se seguiu, mesmo,asionalmente, no discurso teológico, porque as pessoas tendem a esquecer a segunda parte deerção. Há aqueles que pensam que, embora Deus o tenha dado à existência eras atrás, o mund

m funcionado por si mesmo desde então; mas essa noção está duplamente equivocada: primeir

rque coloca o Ato criativo no passado; e, em segundo, na medida em que reduz o que Deus fem mero ato inicial. Por certo, a idéia de que “Deus faz o mundo e todas as coisas neste momenesente” é difícil de compreender e, com efeito, acarreta a difícil concepção de um metacosmoterno ou mundo primeiro; mas isso implica, simplesmente, que todos que desejarem desafiar utrina imemorial devem ter cuidado para não refutar um Ersatz .

No entanto, é precisamente essa a intenção do argumento de Hawking, quer ele tenha consciênso ou não. Sua estratégia é retratar a doutrina judaico-cristã como um tipo de ciência primitiv

m “modelo” projetado para explicar os fatos observáveis. Efetivamente, isso é tudo o que ele p

er; afinal, enquanto a doutrina for concebida em seu próprio nível − isto é, em termosenticamente metafísicos − ela está, ipso facto, imune a qualquer ataque com base em razõesritamente físicas. A física não está equipada, enfim, para falar em realidades metacósmicas: d

u próprio ponto de vista, tais noções são necessariamente julgadas “sem sentido”. Para provaumento de modo físico, Hawking requer um critério correspondente pelo qual a doutrina peressa ser julgada.

Ele aborda o tópico da “criação” com um famoso dito agostiniano: “O mundo não foi criadon

mpo, e sim com o tempo” (50) − o qual ele respeita e considera legítimo segundo esses mesmomos. “Esse é um modelo possível”, ele nos diz. Ora, tudo revolve em torno dessa palavra,odelo”, a qual foi escolhida, decerto, em virtude de suas conotaçõescientíficas. Por meio designação inapropriada e enganadora − esse truque semântico! −, Hawking retrata a doutrinatafísica da “criação” como um tipo de física primitiva, uma ciência rudimentar que, enquantode ser comparada à nossa ciência. Restam-nos dois “modelos” que competem entre si: o bíbl

da física do século XX. Assim posicionando o seu espantalho, Hawking imediatamente argumsegundo modelo”, informa-nos, “pode explicar os registros fósseis e radioativos e o fato de ebemos luz de galáxias que estão a milhões de anos-luz de distância de nós ...”, todas coisas

o carece dizer, o primeiro “modelo” não pode fazer. Mas ainda que concedamos que os “regi

dioativos” e “as galáxias a milhões de anos-luz de distância” são mesmo factuais e podem serplicados por meio da física contemporânea, isso, por si só, dificilmente basta para desqualifirmação de que “Deus criou o mundo” − a menos, é claro, que a doutrina primeiro tenha sido

duzida ao status de um “modelo competidor”.Tal é o argumento reducionista quanto à natureza e à função da doutrina criacionista que Hawk

oca em jogo; e, por certo, ele faz isso sub-repticiamente e sem o menor vestígio de evidênciavor de sua alegação. Não precisamos nos deter mais nessa hipótese infundada; será interessandavia, dizer algumas palavras acerca do “valor explicativo” da doutrina metafísica que Hawk

seja desqualificar. Deve-se notar, em primeiro lugar, que o Ato criativo, evidentemente, é “caextremo, na medida em que traz à existência “o mundo e todas as coisas”. Mas essa causalida

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podemos chamá-la assim, revela-se “vertical”, já que certamente não é mediada por umaqüência temporal de eventos. Além disso, o Ato criativo constitui, com efeito,o protótipo e

ncípio de toda a causalidade vertical , o que significa que a causalidade vertical, propriamea, constitui um modo secundário de criação, um tipo mediado pelos agentes criados. O que esestão, aqui, é o milagre da inteligência, o que é precisamente aquilo que distingue a causalidrtical da horizontal. Decerto, há tipos diferentes de mediação inteligente, desde a mediaçãogélica − que, enfim, não é uma criação da imaginação primitiva! − até a humana, a qual dá lugs modos correspondentes de causalidade vertical.[ 196 ] O fato, mais uma vez, é que um agen

eligente, assim como o chamado observador, não se reduz simplesmente a uma entidade cósmnalmente, precisamos reconhecer que a inteligência se escora sobre uma realidade transcendeo que é efetivamente divino: “a verdadeira Luz ”, nomeadamente, “que ilumina cada homem

m ao mundo”.Porém, resta a questão: pode haver uma ciência baseada na causalidade vertical, assim como ncias baseadas na causalidade física? Ora, acontece que sim e que tais ciências, com efeito,stem desde os tempos antigos:[ 197 ] as ciências tradicionais ou “sagradas”, podemos chamáato é simplesmente que as nossas ciências, atreladas como estão à causalidade física, são

apazes, em princípio, de compreender uma ciência baseada na causalidade vertical. As ciêncdicionais, por certo, têm o seu próprio modus operandi, o qual, não é preciso dizer, diferedicalmente do empiriométrico. Assim, elas também têm um “valor explicativo” e uma utilidadópria, utilidade e valor esses que, para dizer o mínimo, não se comparam de maneira desfavos benefícios que se podem extrair das ciências físicas de nossos dias.[ 198 ] Sim, este não é oomento de nos demorarmos mais profundamente sobre as ciências tradicionais e sua relação cncias físicas; desejo apenas colocar mais um argumento: a saber, que esses dois tipos de ciêno têm relação de conflito ou de contradição, que não se trata de “esta ou aquela”. Conforme jámonstrei em outra parte,[ 199 ] os modos horizontal e vertical de causalidade podem coexistifato o fazem, sem interferência mútua, o que significa que cada qual tem seu próprio efeito.memos um exemplo simples: um atirador dispara contra um alvo. Ora, do ponto de vista dausalidade horizontal, o impacto subseqüente se explica em função de uma seqüência temporalentos que se inicia com o pressionar do gatilho, ao passo que o mesmo efeito é igualmente oultado de um ato intencional: nenhuma das explicações desqualifica a outra e, por certo, não de dizer qual é «mais verdadeira».

Hawking, porém, certamente não tem a menor pista de quehá ciências além da contemporâneanos ainda de que os dois tipos não são opostos, mas complementares: sua inabilidade em

onhecer a existência da causalidade vertical o predispõe a julgar o valor de toda doutrina emnção de sua capacidade de explicar os fenômenos por meio da única causalidade que ele conhmodo horizontal, segundo concebido pelo físico.Voltando ao argumento de Hawking: parece, agora, que Deus − o Criador “dos céus e da terra

tivamente sobreviveu ao ataque; uma vez dissipada a fumaça, vemos que o espantalho de Hawo tem a menor importância. Mas isso é apenas metade da história: afinal, não somente o seu

gumento contra a doutrina de um Criador divino como também a sua própria versão da

smogênese − que, supostamente, deveria substituir os ensinamentos judaico-cristãos − é

almente imperfeita. Consideremos o fato observado anteriormente, de que o universo físico vela não ser, enfim, um sistema fechado, o que significa, outra vez, que a causalidade vertical

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jogo necessariamente. Segundo já indicamos sob o rótulo de “causalidade”, ela entra em jogda ato de mensuração quântico-físico, bem como em qualquer ato que se baseie na inteligêncimana, a começar pela produção de um artefato. Hawking, entretanto, gostaria de nos fazer acre a física contemporânea, em princípio, é capaz de explicar não apenas o funcionamento doiverso observável, incluindo o homem, mas também de desvendar como esse universo veio a a, essa última alegação parece estranha, dado o fato de que, mesmo depois que o universo es

gar, surgem entidades que, demonstravelmente, não podem ser produzidas por meio da causalica. Se as causas físicas se revelam incapazes de produzir até mesmo um pote d’água a partir

rro pré-existente, cabe perguntar se essas mesmas causas poderiam dar lugar ao universo comdo! E, com efeito, não podem: pois, ao asseverar que o próprio universo foi trazido à existêncas causas físicas, Hawking afirma, assim, que aquilo que veio à existência não é simplesmenado inicial, mas inclui necessariamente tudo o que existe ou ocorre nesse universo. Segue-se e um único ato demonstrável de causalidade vertical é bastante para desqualificar a tese d

wking .Não precisamos de elaborar mais esse ponto. Como se poderia supor desde o início, as alegae Hawking apresenta quanto ao tópico da “criação”, no frigir dos ovos, revelam-se não

nfirmados e insustentáveis. Não somente a física contemporâneanão foi capaz de refutar osncípios autênticos da doutrina criacionista como também ocorre que essa difamada doutrina,ima instância, é necessária para a compreensão da própria física, do que ela pode e não podeer. No cômputo final, as concepções verdadeiramente metafísicas entram inelutavelmente emstem os cientistas disso ou não, pela simples razão de que tanto o universo quanto a causalidartical ali operante advêm de uma realidade transcendente acerca da qual a ciência física, enqu nada sabe.

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III

Convém, enfim, que coloquemos em perspectiva as alegações de Hawking, examinando mais drto a empreitada científica contemporânea. Precisamos transcender aquilo que nos ensinaramcolas e universidades a fim de descobrir, por nós mesmos, o que jamais nos contam: somentedemos começar a perceber o problema na sua complexidade. Para situarO Grande Projeto dcontexto da cultura existente, é imperativo, sobretudo, que superemos a noção de que a ciênc

mplesmente uma jornada em busca da verdade: aberta, imparcial e justa. Precisamos atinar coo de que essa empreitada tem uma ideologia, uma agenda, umestablishment  e interesses

onômicos a proteger; qualquer um que já tenha deixado a infância deve se dar conta de que aolítica” entra, sim, nesse jogo.Em conformidade a essas observações gerais, eu gostaria de salientar que Hawking exagera antífica que ampara suas alegações, suprimindo toda evidência contrária. E, por certo, ele o fma mais ostensiva em seu tratamento relativo à teoria darwinista, a qual, evidentemente, cons

m componente necessário de sua cosmovisão: em nenhuma parte ele dá sequer a menor indicaçe ainda restam questões não resolvidas de tipo básico e tanto menos reconhece o fato de queversos tipos de evidências adversas vêm se acumulando há mais de um século e que, de um po

vista estritamente científico, a hipótese darwinista deveria ter sido rejeitada há muito.[ 200 ]esmo a publicação da teoria de William Dembski − que demonstra que a evolução à la Darwim base em razões estritamente matemáticas, revela-se impossível − parece não ter surtido quaito em Hawking: ele continua alegremente a tratar a evolução darwiniana como fatontificamente estabelecido.

Precisamos indagar, agora, como o argumento científico se sustenta no que diz respeito às teoicas, como a relatividade einsteiniana e a cosmologia do big bang : será que essas teorias foranfirmadas de modo rigoroso, além de qualquer dúvida razoável? De fato, essa é uma questãoícil e necessariamente técnica; porém, pretendo lançar uma luz sobre a questão mostrando qusmo aí, nesse domínio técnico rarefeito, um elemento de ideologia também entra em jogo,emediavelmente. E isso ocorre, ademais, não apenas como uma síndrome de crenças e valorepelem o cientista a realizar sua pesquisa ou que definem a direção de sua busca, mas, com efemo uma determinante da teoria resultante − daquilo que, no final, encontra-se ou descobre-se.maneira simples, sustento que a cosmovisão à qual chega o cientista por meios supostamen

orosos se revela, enfim, um reflexo dos pressupostos ideológicos que guiaram a empreitad

sde o começo.Começo relembrando um acontecimento: quando, em 1965, Arno Penzias e Robert Wilson cap

ais vindos do espaço exterior, sinais esses que se teriam originado no plano de fundo de micdas, o New York Times anunciou a descoberta com a manchete: “SINAIS IMPLICAM QUE O UNIVE

RGIU DO  BIG BANG”. Para fins de contraste, recordo agora o que ocorreu em 1887, quando Albechelson e Edward Morely conduziram seu experimento cujo fim era medir a velocidade da Tseu movimento orbital ao redor do sol. O que eles descobriram − para a infelicidade da

munidade científica! − foi que essa velocidade, longe de ter o valor esperado de cerca de 30ilômetros por segundo, era, na verdade, exatamente zero. E notemos que esse resultado não erodo algum incerto ou tênue: com base nas leis daquilo que, em retrospecto, hoje se chama físic

ássica”, o fato de que a Terra não se move era uma implicação rigorosa do resultado doperimento. Mas, embora esse achado tenha abalado o mundo científico, pouco se contou ao p

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geral. Com certeza, não houve nenhuma manchete proclamando que “MEDIÇÕES IMPLICAM UMA

RRA IMÓVEL”, o que, diferentemente da legenda de 1965, não teria sido um mero exageronalístico, e sim, com efeito, uma afirmação científica precisa.

O que ocorreu, enfim, em resposta à descoberta de Michelson-Morley, foi o advento de uma nica, que consistia das teorias da relatividade geral e especial, as quais contornam esse resultaeologicamente importuno por meio da postulação de que a velocidade observada da luz é a m

todos os quadros “inerciais” de referência. E, é desnecessário dizer, esse evento, sim, recebda a publicidade que podia receber: como todos sabem, Albert Einstein, quase da noite para onou-se uma celebridade científica e sua teoria da relatividade se tornou uma descoberta cien

volucionária de primeira grandeza. Porém, a pergunta persiste:essa teoria é verdadeira? Seráísica einsteiniana corresponde, real e totalmente, aos fatos observados (ao menos em situaçõee os efeitos quânticos podem ser negligenciados), como Hawking e, com efeito, oestablishme

ntífico, como um todo, declaram? O que desejo salientar é que essa questão se mostra muito mícil do que normalmente supomos: como no caso do darwinismo, esse assunto não é, de modoum, tão simples quanto Hawking nos quer fazer crer. Só uma coisa é certa: a escolha é entre o

ocentrismo e Einstein.[ 201 ]

Tendo identificado “a constância da velocidade da luz” como um postulado motivadoologicamente (verificado ou não, dependendo do caso), eu gostaria agora de apontar uma seg

emissa ideológica que, igualmente, revela-se essencial para a cosmovisão de Hawking. O quequestão, agora, não são as leis da física, e sim a estrutura do universo tal qual concebido na

smologia astrofísica. Ocorre que também isso se escora sobre um postulado ideológico; e, o stante estranho, é o próprio Hawking quem nos conta isso, em um tratado posterior: “Não sompazes de criar modelos cosmológicos”, escreve ele, “sem alguma mistura de ideologia”.[ 202fere-se ele, em particular, à suposição de que a matéria estelar, quando vista em uma escalaficientemente ampla, distribui-se uniformemente ao longo do espaço (semelhantemente àsoléculas em um gás, que parecem ter uma distribuição uniforme de matéria dada por umansidade). Ora, isso é uma suposição e, mais ainda, um postulado ideológico, como nos informóprio Hawking. Mas o que é que torna essa premissa “ideológica”? Hawking também explicahamaremos essa suposição, seguindo Bondi, de princípio copernicano”, diz ele em seguida. Aá: o que está em questão, mais uma vez, é um repúdio ao “geocentrismo”, no sentido amplo d

quitetura cósmica que reflete inteligência − design inteligente, isto é − e, portanto, um Criado

eligente.Pensemos nisto: aqui o próprio Hawking está nos dizendo que seu repúdio ou sua negação do

sign em escala cósmica não é de fato uma descoberta científica − uma conclusão racional basfatos observáveis −, e sim uma “mistura de ideologia”! Contudo, ainda que possa parecer 

preendente essa admissão à luz do que nos ensinaram a crer, é bem fácil reconhecer que épossível basear uma cosmologia em fundamentos estritamente científicos. Eis o problemandamental: dado que somos incapazes, no domínio astrofísico, de agir sobre a fonte dos sinaisebidos, não podemos executar aquele tipo de experimento controlado sobre o qual a física mbaseia. Dito de outro modo: ao passo que a física lida, enfim, com o que John Wheeler chamniverso participativo”, ocorre que o cosmo, como um todo,não é participativo. A cosmologia

rofísica, portanto, não é física, e nem pode sê-lo. E, em verdade, essa cosmologia se funda som “postulado ideológico” na forma do princípio copernicano, como o próprio Hawking nos re

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m termos simples, diz-nos que a negação a priori do design inteligente em escala cósmica

nstitui o pressuposto ideológico sobre o qual se baseia a cosmologia do big bang . Ao quederíamos acrescentar que o argumento de Hawking contra “o Grande Designer ” se revela circrtanto, e que a física propriamente dita não pode concluir tal coisa.

Perdura a questão de uma base de evidências, de uma verificação. Deve-se observar, em primgar, que, na ausência de experimentos controlados, a verificação, em sentido científico pleno, scartada de antemão: o melhor que podemos esperar é que os sinais vindos do espaço externoando interpretado segundo a física terrestre, não entrem em conflito com a teoria. Ocorre, noanto, que o fazem, o que significa que vem sendo necessário introduzir inúmeras hipótesesad

o é, suposições formuladas especificamente com o propósito de adequar a teoria aos achadosservacionais conflitantes.[ 203 ] Ademais, o processo de acrescentar suposições adicionais eposta a dados adversos parece continuar; como Brent Tully (conhecido por sua descoberta d

pergaláxias) observou: “É perturbador o fato de que surge uma nova teoria cada vez que há umva observação”. Ao que podemos acrescer o fato de que Tully tem toda a razão em se sentir rturbado: pois um tal modus operandi, com efeito, elimina a verificação empírica enquantotério de verdade. Sob tais auspícios, torna-se difícil confirmar se há ao menos um vestígio de

dência real  que ampare a teoria.Todavia, Hawking não diz uma só palavra quanto a esse assunto: somos levados a crer que asmologia do big bang  não passa de física e que, assim, foi rigorosamente provada, de uma vedas, com base em fundamentos científicos incensuráveis. A necessidade de “uma mistura deologia”, em especial, não é mencionada em parte alguma de O Grande Projeto: pelo contráriwking faz questão de veicular a impressão de que a “teoria M” − a ciência última! −, por si segura a veracidade de tudo o que ele tem a dizer.

Certa similaridade entre a cosmologia do big bang  e o darwinismo, assim, veio à tona, analog

bre a qual pode ser esclarecedor refletir. Tal como a cosmologia astrofísica, a biologia darweputada uma teoria científica defendida sem razões insuficientes, o que significa que ambas, erdade, são defendidas por razões ideológicas. Devemos reconhecer, além disso, que aspectivas teorias se originam, em verdade, exatamente do mesmo postulado ideológico: seja cação às espécies ou ao universo como um todo, aevolução − a negação do design inteligente

revela ser o dogma fundador tanto de uma quanto de outra. Em suma,a cosmologia do big ba

rwinismo em escala cósmica. E, o que é desnecessário dizer, esse fato realmente se mostravelador, tanto mais porque, no momento, o darwinismo biológico é compreendido muito melhe o astrofísico.[ 204 ] O fato saliente que aparece com especial clareza no domínio biológico

e o darwinismo nunca é uma ciência; não importa de que revestimento cubra, ele permanece,ência, aquilo que era no começo: uma ideologia. E isso quer dizer que a “evidência” perde amazia: ela ainda é desejável, ainda é buscada, mas deixa de ser necessária, na medida em quria se ergue sobre bases ideológicas. Lembramo-nos da resposta dada pelo darwinista Ernes

ayr quando confrontado com cálculos que demonstravam a improbabilidade astronômica dapótese evolucionista respeitante ao olho humano: “De um modo ou de outro, ajustando essesmeros”, disse ele, “ajustando esses números, acharemos uma solução. Estamos tranqüilos, peo de que a evolução ocorreu”.[ 205 ] Nesse entremeio, a questão foi expressa com clareza ext

r Richard Lewontin, ele próprio um biólogo evolucionista preeminente; comentando sobre ancia em geral, ele escreve:

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Ficamos do lado da ciência a despeito da absurdidade patente de alguns de seus construtos, a despeito de seu fracasso emcumprir algumas de suas promessas extravagantes quanto à saúde e a vida e a despeito da tolerância da comunidade científicom relação a contos não provados, tudo isso porque temos um comprometimento prévio com o materialismo. Não é que osmétodos e as instituições da ciência nos compelem a aceitar uma explicação material acerca do mundo fenomênico, e sim qcontrário, somos forçados, por nossa adesão a priori às causas materiais, a criar um aparato de investigação e um conjunto conceitos que produzem explicações materiais, não importa o quanto essas explicações sejam contra intuitivas, o quanto sejaintrigantes para os não-iniciados. Ademais, esse materialismo é absoluto, porque não podemos aceitar um Pé Divino na porta]

Resta-nos levantar apenas mais um argumento: o caso da ciência, propriamente dita, é diferen

que toca à física fundamental , em particular − que não é e não pode ser nada mais que a teoântica −, o que nos depara é, com efeito, a autêntica “ciência da mensuração”. Sim, sem dúvidma ideologia motivou os seus fundadores − de Bohr a Heisenberg, Schrödinger e Feynman − e

ecionou seu foco para o polo quantitativo da manifestação cósmica;[ 207 ] e, no entanto, issoerferiu no modus operandi legítimo de uma física matemática − não forçou o resultado.etivamente, o exato oposto é verdadeiro: na medida em que a mecânica quântica contradiz oradouro cânone do determinismo laplaciano, sua descoberta foi profundamente desagradável omunidade da física como um todo, segundo aponta o próprio Hawking. Deve-se notar, por nseguinte, que a física quântica certamente não se aprovou por razões ideológicas, mas se imp

vez disso, com base em evidências empíricas irrefutáveis. Além disso, por mais de oito déccontinuou a se distinguir pelo escopo sem precedentes e a precisão incrível de suas previsõmilhares de experimentos, até hoje ela não foi refutada. Não há necessidade, nesse domínio,

póteses ad hoc: a lógica interna da própria teoria quântica, interagindo com as descobertasperimentais, guia o desenvolvimento. Deixando de lado a penumbra de noções cientificistas qrcam a disciplina sem corrompê-la, o que nos depara aqui constitui, evidentemente, a realizaçis brilhante e mais notavelmente bem-sucedida da ciência física enquanto tal. Que pena quewking estragou a bela física com especulações infundadas e amadoras de tipo pseudo-filosóf

166 ] The Grand Design, publicado pela editora Random House em 2010, em coautoria com Leonard Mlodinow. Editado no mo O Grande Projeto, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2011, p. 192.

167 ] Ao nos referirmos apenas a Hawking, não almejamos fazer pouco caso do co-autor, Leonard Mlodinow.168 ] Isso indica que a citação foi extraída à página 5 de The Grand Design.169 ] Sempre que uma citação não for seguida de seu número de página, esteja subentendido o número de página anterior.170 ] O primeiro experimento desse tipo foi realizado, em 1927, por dois físicos do Bell Labs, usando elétrons.171 ] Como relata Hawking, as maiores partículas já usadas até hoje (em um experimento conduzido na Áustria, em 1999) foras moléculas chamadas “bolas de fulereno”, compostas de 60 átomos de carbono.172 ] Não obstante, no que diz respeito aos processos macroscópicos aos quais a física clássica se aplica, a distribuição de

babilidade resultante para o produto de uma mensuração se concentra tão intensamente em torno de seu valor médio que detervalor único na precisão da mensuração. Em outras palavras, no domínio macrocósmico, a física quântica, com efeito, se reduz sica.173 ] Ênfase minha.174 ] Falar com base em “fase” e “cancelamento”, certamente, é falar com base na representação de ondas. Lembremo-nos eoria quântica, as partículas também são tratadas como ondas.175 ] Hawking pára antes de apontar o que isso significa: isso implica (com base na física newtoniana) que v = o, o que signifiorma contrária ao dogma galileano, a Terra não  se move. Retornaremos a esse ponto na parte III.176 ] O termo “teoria da inflação” se refere a um modelo quântico que, segundo dizem, descreve o primeiro universo tal qual ea de 10-35 segundos após a singularidade inicial − ou “big bang ”.177 ] Cf. capítulo 3.178 ] Deve-se notar que esse termo inerentemente grego adquiriu significado virtualmente oposto ao seu significado original e

mológico de “algo que se mostra a si mesmo por si mesmo”. Assim, é realmente o filósofo, e não  o cientista contemporâneo, q

verdade, tem o olhar voltado para o fenômeno! Cf. capítulo 8.179 ] Jean Borella, Histoire et théorie du symbole, L’Age d’Homme, 2004, cap. 4, art. 1.

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180 ] Capítulo 3.181 ] Cf. Wolfgang Smith, Christian Gnosis, Angelico Press/Sophia Perennis, 2012, livro no qual apresento a noção de realismópico (no capítulo 2), e mostro que ele subjaz às cosmologias tradicionais, da cosmologia védica à de Meister Eckhart. Para seciso: o realismo antrópico se revela o único realismo defensável “diante da gnose”.182 ] “Tanto o observador quanto o observado”, ele nos diz, “são parte de um mundo que tem uma existência objetiva” (43).183 ] Para um resumo e uma análise das descobertas de Gibson, ver capítulo 4.184 ] James Gibson, The Ecological Theory of Visual Perception, Lawrence Erlbaum, Hillsdale, NJ, 1986, p. 197. Precisammente que Gibson não chegou às afirmações em questão especulativamente, e sim com base em evidências empíricas que, coto, refutam a hipótese reducionista.185 ] Para uma discussão detalhada sobre “os neurônios e a mente”, ver capítulo 5.186 ] Cf. O Enigma Quântico, Vide Editorial, Campinas, 2012, onde essa questão foi tratada com todo o detalhamento neces187 ] Cf. capítulo 2.188 ] A visão de que o universo físico é, com efeito, “construído” − de que “a matemática não está ali até que lá a coloquemosprimeiro enunciada por Sir Arthur Eddington. Embora jamais tenha sido aceita pela comunidade científica como um todo, a alegEddington, recentemente, recebeu forte amparo das descobertas de Roy Frieden (cf. Physics from Fisher Information, Cambversity Press, 1995). Para uma discussão detalhada acerca do ponto de vista “construtivista”, remeto o leitor à minha tese: The

dom of Ancient Cosmology, The Foundation for Traditional Studies, 2003, cap. 3.189 ] Falando de maneira tomista, o domínio físico constitui uma espécie de materia secunda situada entre a matéria prima e

póreo. Cf. O Enigma Quântico, op. cit ., cap. IV.190 ] A descrição quântica deixa de fora um ingrediente essencial − em verdade, o ingrediente essencial − do ser corpóreo: aqa filosofia chama de “essência”. Tratamos dessa questão no cap. 2.191 ] De minha parte, sustento que isso não é realmente pensável. Falando estritamente, a suposta ontologia de Hawking não

cia e nem filosofia, mas um uso indevido da linguagem: um novíssimo sofisma que seduz os crédulos a acreditar no absurdo.192 ] Wolfgang Smith, O enigma quântico, op. cit ., cap. 6. Cf. também “Intelligent Design and Vertical Causation”, em: Wolth, The Wisdom of Ancient Cosmology, op. cit .193 ] William Dembski, The Design Inference, Cambridge University Press, 1998. Acerca desse assunto, remeto o leitor tam

Capítulo 10 de: Wolfgang Smith, The Wisdom of Ancient Cosmology, op. cit .194 ] O adjetivo é essencial: o teorema de Dembski assevera que a IEC do objeto não pode ser produzida por causas naturazar esse resultado, é necessário, portanto, excluir o caso em que a IEC em questão é suprida desde fora, como seria o caso, pomplo, se o design fosse copiado pelo artesão de uma fonte externa. Vemos, especialmente, que o teorema não se aplica no cadução artificial ou mecanizada.195 ] Roger Penrose, The Emperor’s New Mind , op. cit ., p. 412.196 ] Wolfgang Smith, The Wisdom of Ancient Cosmology, op. cit ., p. 194-198.

197 ] A única ciência tradicional sobrevivente até hoje, no ocidente, parece ser a astrologia. Sua ciência irmã, a alquimia,icamente desapareceu durante o século XVII.198 ] Para um vislumbre do que a ciência tradicional pode realizar − o escopo, a precisão e o valor explicativo estupendo que pnçar −, ver o cap. 6.199 ] O enigma quântico, op. cit ., cap. 7.200 ] Os trabalhos sérios antidarwinistas de nossa época, embora amplamente ignorados pela mídia, têm sofrido um crescimenetacular nas décadas recentes. Para mencionar, ao menos, uns poucos títulos representativos: Michael J. Behe, Darwin’s Bla

: The Bio-Chemical Challenge to Evolution, Free Press, NY, 1996; William A. Dembski, The Design Revolution, Inter-Vass, Downers Grove, IL, 2004; Michael Denton, Evolution: A Theory in Crisis, Adler & Adler, Bethesda, MD, 1986; Douglaswar, The Transformist Illusion, Sophia Perennis, San Rafael, CA, 2005; Phillip E. Johnson, Darwin on Trial, Inter-Varsity Prwners Grove, IL: 1993.201 ] A esse respeito, cabe a menção ao notável tratado, em dois volumes, de Robert A. Sungenis e Robert J. Bennet, intituladileo Was Wrong  (cuja quinta edição foi publicada em 2008), trabalho que constitui, provavelmente, o estudo mais exaustivo destão já feito. O livro contém mais de mil e cem páginas e fornece milhares de referências, boa parte das quais provêm de revistíficas especializadas, para embasar o argumento de que a física einsteiniana foi desqualificada de jure. Mas, conquanto muitoos autores trazem à luz seja de fato cogente e pese negativamente contra as alegações einsteiniana, o trabalho, no todo, infelizdesfigurado por uma polêmica excessiva que, às vezes, erra o alvo.202 ] The Large-Scale Structure of Space-time, Cambridge University Press, 1973, p. 134.203 ] Já tratei dessas questões em: Wolfgang Smith, The Wisdom of Ancient Cosmology, op. cit ., cap. 7.204 ] Já mencionei a literatura crescente que efetivamente tem «desmascarado» o darwinismo biológico.205 ]  Apud  Phillip Johnson, em Darwin on Trial , op. cit ., p. 38.206 ] The New York Times Review of Book s, 9 de janeiro de 1997. Apud  Bruce L. Gordon, em “Balloons on a String: A Crititiverse Cosmology” in: The Nature of Nature, B.L. Gordon e W.A. Dembski, eds., Intercollegiate Studies Institute, 2001, p. 5

207 ] Cf. capítulo 2.

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8METAFÍSICA ENQUANTO “VISÃO”

sde o começo da era moderna, a metafísica tem sido vista como uma disciplina acadêmica a udada nas universidades; e é interessante notar que, como tal, o seu lugar e prestígio no mundstrado têm sofrido um firme declínio, até o ponto em que muitos hoje em dia neguem suaitimidade filosófica. Contudo, eu argumento que a busca metafísica pertence por direito não biente artificial da universidade contemporânea, mas à vida humana, à existência humana emlidade irredutível. Em linguagem clara: ela surge da sede inata do homem pelaverdade, que

não a sede por Deus, a qual hoje em dia ‘não é mencionada nas classes altas’, conforme Ananomaraswamy nos lembra. Metafísica é, portanto, algo que a cada um de nós diz respeito por sermos humanos, o que equivale a dizer, “feitos à imagem e semelhança de Deus”. É, de fato,

so de “noblesse oblige”: longe de ser reduzida a uma mera disciplina acadêmica – a ser preendida por “profissionais”, em especial os portadores de doutorado em filosofia –, atafísica constitui uma atividade de mente e coração os quais, por princípio, não estão soment

itimados a tanto, mas são, de certo modo, “chamados” a tanto.É de se notar que nossas noções preconcebidas relativas à metafísica tendem a ser geralmenteinexatas, mas de certo modo invertidas ou “de ponta-cabeça”. Nós estamos inclinados,meiramente, a imaginar que tal disciplina se origina da “dúvida” quando de fato ela surge de

ntimento profundo de “espanto”, o qual na verdade é o oposto mesmo da dúvida: pois o espanova ser, em essência, um reconhecimento, conquanto obscuro, da imanência impenetrável de Ds coisas deste mundo. Então também tendemos a pensar que o meio oumodus operandi datafísica consiste em raciocínios, isto é, em argumentos racionais, quando de fato é, novament

osto mesmo: uma questão, nomeadamente, de “visão”, de percepção direta, de gnosisopriamente dita. Admito que o raciocínio tenha um papel a cumprir, mas sua função érentemente negativa e preparatória; para ser preciso, o argumento racional serve para dispersas crenças e, ao fazê-lo, para purificar a mente. Isto é tudo o que ele pode fazer e de fato é tue ele precisa fazer; pois na medida em que a mente tenha sido purificada – que o “espelho” teo limpado – a “visão” toma conta de si mesma. Isto é sempre verdade; o Salvador nos assegus limpos de coração verão a Deus”.Precisamos, todavia, atinar que Deus se inclui nessa perspectiva não somente ao cabo da busctafísica, mas desde o começo mesmo, e não somente como objeto do supramencionado “espa

s de certo modo como sujeito também. De fato, não poderíamos de modo algum “sentir” Deunós se Ele não estivesse presente dentro das profundezas de nossa alma como primeiro e supionário. É esta impenetrável morada de Deus – como a “alma de nossa alma” – que permite eo impele a busca, de seu início até a seu supremo final. Nós precisamos, pois, nos despir da igundo a qual o metafísico é simplesmente um fulano qualquer: se tal fosse o caso, opreendimento nunca poderia ter êxito e nem sequer começaria. Pode ter sido este entendimene induziu o senecto Husserl – um dos maiores filósofos do século XX – a tristemente confiden

m dia a Edith Stein (uma antiga discípula dele, que então se tornara uma freira Carmelita a cam

santidade): “Eu tentei encontrar Deus sem Deus!”Nós sustentamos, em conformidade com a tradição sapiencial, que a metafísica é essencialmen

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ma “visão”; contudo, também há que se notar que cada “visão” – mesmo o ato mais humilde dercepção sensorial – é de certo modo metafísica e pode em princípio servir para iniciar a busctafísica. É uma questão de seguir aquilo que pode ser denominado de “rastro de Deus” nas coíveis: “Pois as Suas coisas invisíveis, desde a criação do mundo, são vistas com clareza, pormpreendidas a partir das coisas criadas”.[ 208 ] Pode-se entender, com isso, que aqueles a quo Paulo refere como os “atributos invisíveis de Deus” são de fato “vistos com clareza”, o queuivale a dizer que eles são precisamente aquilo que seria visto caso víssemos “claramente”. Sulo está nos alertando de que, ao “vermos”, geralmente “não vemos”. Somos levados a conclu

e se abateu sobre nós uma cegueira coletiva, a qual o apóstolo imputa a uma apostasia, a umstamento de Deus: “Tais homens são, por isso, indesculpáveis; porquanto, tendo conhecimenus, não O glorificaram como Deus, nem Lhe deram graças; antes, tornaram-se nulos em seus

óprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato”.[ 209 ] Sem embargo de nossastumeira crença no “progresso” e no esclarecimento progressista, sucede que o Cristianismosina o contrário mesmo: ele afirma que não somente houve uma Queda primordial, mas tambéntínuo declínio em nossa capacidade de ver . Parece que, nesta era pós-modernista, avizinhamestágio final da deterioração coletiva, condição a qual São Paulo caracteriza em seguida:

nculcando-se por sábios“ – ele proclama – “tornaram-se loucos”.[ 210 ] Agora, por maissabonadora que essa descrição possa ser, convém tomarmos em consideração as palavras doóstolo. A tarefa precípua do verdadeiro metafísico é então desfazer aquele declínio coletivo

vertê-lo dentro de si mesmo. É uma questão de restaurar o “coração” de sua condiçãobscurecida” e, ao fazê-lo, retomar o uso desimpedido de nossos “olhos”, presenteados por Dé, em síntese, a tarefa da genuína metafísica. Não precisamos teorizar acerca de quem

ecisamente o metafísico possa ser, nem o que será dele quando seu coração deixar de ser scurecido: isso é algo que permanecerá como mistério até que o trabalho seja feito. É como São Evangelista nos diz: “Ainda não se manifestou o que haveremos de ser”.[ 211 ]

* * *

Para compreender o que verdadeiramente significa “ver”, precisamos, antes de tudo, despir-nalismo cartesiano que nossa educação inculcou em nós, quer disso estejamos conscientes ou nta filosofia predominante pode ser reduzida ao pressuposto segundo o qual a realidade inteiravide manifestamente em dois domínios: um mundo objetivo, composto por “entidades extensa

m reino subjetivo, formado pela denominada “consciência”. Acontece, porém, que essa dicotomficientemente embasada e, em verdade, espúria, um fato que não somente se coaduna com osandes ensinamentos metafísicos da antiguidade, mas também foi efetivamente reconhecido pelósofos mais proeminentes do século XX, a começar por Edmund Husserl e seu antigo seguidoartin Heidegger. O fato é que a “visão” não se reduz à “recepção na consciência” de algo queeexiste no mundo exterior, mas ao revés constitui um “ato de intencionalidade” que condicioncerto modo, “define” o seu objeto. E mais, a consciência não é algo que preceda o “ato”, mamesma aquele ato, o que equivale a dizer que ela não é nunca desprovida de conteúdo – comipiente vazio –, mas é invariavelmente “consciência de algo”. Igualmente, o que antecede

xternamente” o ato intencional não é na realidade o objeto ou a “entidade extensa”, mas oômeno, concebido (conforme o sentido literal da palavra grega) como “aquilo que mostra a

smo em si mesmo”. Deve ser notado, ademais, que o fenômeno, por força de mostrar-se “em s

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smo” – quer dizer, não somente em alguma representação, algum fantasma privado, maseralmente “em si mesmo” –, não pertence “exclusivamente” ao lado externo ou objetivo daurcação cartesiana: ele rompe a dicotomia, em outras palavras. É certo que, dado o viésntemporâneo, não é surpreendente que a palavra devesse ter perdido seu sentido originário esse a significar virtualmente o seu oposto: um efeito ou manifestação, cumpre dizer, de umalidade que subsiste eternamente “por detrás” do fenômeno. Para colocar em termos cartesian

dronizados: o “real” consiste supostamente de res extensae ou “coisas extensas”, situadas noundo externo, ao passo que o “fenômeno” foi reduzido, com efeito, a uma aparição subjetiva,

ntida dentro daquilo que Descartes nomeia como res cogitans ou “entidade pensante”. Todas alidades, em particular começando com as cores – tudo, em outras palavras, que não possa sencebido em termos quantitativos ou matemáticos –, foram excluídas da metade real ou “externurcação cartesiana e relegadas à res cogitans. O que, pois, “ver” significa? Significa observaçosamente uma aparição privada pertencente à própria res cogitans do sujeito.

Pode-se certamente perguntar sobre que bases essas conclusões estupendas foram alcançadas:tras palavras, qual é a evidência – quer empírica, quer a priori – que embasa as premissastesianas? Suficiente dizer que não há nenhuma evidência em absoluto: estes mesmos postulad

pedem que possa haver  semelhante evidência. Todavia, é estranho dizer, estas premissas emestão dominaram nossa visão de mundo supostamente “científica” desde o começo, e continuaê-lo até a presente data. Agora, como antes, o credo oficial da ciência é que cada um de nós enfinado em sua própria “consciência”, em sua própria res cogitans, e constrangido a contempm escapatória, aparições que de algum modo foram geradas por causas externas. Todos nós, éro, aprendemos a viver com esse impasse: é o que nossa suposta educação “superior” nos obazer. Contudo, deve ser notado que de fato – misericordiosamente! – nem um ser humano sequeita essa estipulação cartesiana em sua vida diária: fazê-lo seria insanidade.[ 212 ] Ao invésso, nós aprendemos a oscilar, por assim dizer, entre nossaWeltanschauung  “diária” e atesiana – a qual mantemos em nossas convicções científicas – sem atinar que essas orientaçõstram-se em manifesta contradição: num momento a grama é verde, e no próximo, já não é!

Enquanto isso, algo totalmente inesperado veio a acontecer, que devemos ao menos mencionacadas iniciais do século XX – a época mesma em que Husserl e outros vieram a reconhecer asurdidade da pretensão cartesiana – a própria física, de certo modo, repudiou aquela filosofiao quer dizer, é claro, que os físicos en masse tenham abandoado aquelas suposições filosóficda, decerto, poderia estar mais afastado da verdade. O que aconteceu, ao revés, foi que, com scoberta da mecânica quântica (por volta de 1926), a física não mais podia ser interpretada e

mos cartesianos, o que equivale a dizer que certas descobertas da mecânica quântica – pecialmente o assim chamado “colapso de vetor de estado” – assumiram a aparência de categradoxo. Atualmente, pode-se demonstrar que o paradoxo desaparece no momento em que seandone as premissas cartesianas, isto é, a dicotomia hipotética entre “coisas extensas”versus

gitans”.[ 213 ] Sucede que o “paradoxo quântico” é somente a maneira de a Natureza repudiaosofia espúria.Ao fim, percebe-se que o real prova ser aquilo que ele deva ser , a saber, “aquilo que mostra asmo em si mesmo”; em outras palavras, é de fato o fenômeno precisamente no sentido originá

termo. Estranhamente, contudo, o que percebemos de ordinário é outra coisa! Em razão da annomenológica” de Husserl, pode-se concluir que a “visão” mostra-se inadequada ao fenômen

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e de fato ele é posterior à “visão”, a qual pode ser desdobrada em objeto percebido e sujeitorcebedor . Os dois constituem assim uma complementaridade: o objeto percebido e o sujeitorcebedor estão interligados, como os lados de uma moeda. O que “precede” essamplementaridade – o que é primário – é o próprio ato intencional, quer dizer, é em realidadesão”. O ato vem primeiro, e “ao tempo” em que o sujeito separado e seu objeto “externo” se

ostram, a “visão” efetiva já se esgotou; como Henri Bortoft[ 214 ] argutamente afirmou: “Estammpre atrasados!”. Pois decerto que, na efetiva “visão”, sujeito e objetonão estão separados:nforme Aristóteles já observara, “de certa maneira” os dois são “um”.

Husserl entende, à sua própria maneira, que “vendo, não vêem”, tal como Cristo declarou àultidão:[ 215 ] para ele, o “não ver” resulta da ruptura do ato intencional, do fato de “estarmompre atrasados”. A fim de superar esta deficiência, esta cegueira congênita, precisamosdentemente capturar o ato intencional em um momento “mais cedo” por assim dizer, “antes” qse desdobre no famoso sujeito e em seu concomitante objeto. Aquele “antes”, contudo, most

o temporal, mas “ontológico”, se é lícito assim dizer; ele tem a ver não com seqüência tempors com níveis de consciência. Em outras palavras, “antes” quer dizer “mais profundo” ou, comde dizer também, “mais primário”. Não precisamos nos preocupar com o vocabulário técnico

sserl elaborou como meio de comunicar à comunidade filosófica em geral o que ele haviascoberto ou trazido à luz; basta dizer que seu método implica um “distanciamento” do familiapercepção, como para se observar aquele ato de um lugar mais profundo. Omodus operandi sserl era, de certo modo, o oposto do que os filósofos costumam fazer: ao invés de conceptu“desconceptualizou” a fim de “ver”. Pode-se tomá-lo por um “arqueólogo filosófico”, busca

svelar níveis mais profundos de consciência ao apartar camada por camada de constructosntais, sob os quais aqueles estratos “mais precoces” estavam soterrados.

Cabe notar que neste ponto, ao menos, a abordagem de Husserl é afim àquelas das grandesdições sapienciais, que igualmente reconheciam níveis “mais profundos” de percepção eplicavam uma concepção hierárquica do percebedor. Brevemente descrito, o genuínoanthrop

o por possuir não somente uma periferia (onde nossos atos conscientes “normalmente” ocorres também um centro absoluto, e por ser composto, ademais, por uma hierarquia de centrostermediários”, cada um dos quais definindo um “nível de visão” e um estado correspondente

O que, pois, “ver” significa? Em última análise, significa perceber a partir do centro mais protodos, algumas vezes denominado de “coração”; e essa é de fato a primária e autêntica “visãal o homem foi ficando progressivamente afastado, começando pela Queda.

* * *

Começando por onde atualmente estamos, vamos agora indagar o que é aquilo que “precede” eto “externo”: o que ele vê que não está “atrasado”? Em termos da análise de Husserl, está-s

rigado a responder que é precisamente o fenômeno, concebido como “aquilo que mostra a sismo em si mesmo”. Mas então, o que é aquilo que assim “mostra a si mesmo”? Claro que se pponder que isso é algo que todos deverão descobrir por si próprios aplicando os meiosropriados, necessidade a qual não pode ser negada nem contornada. Contudo, mesmo assim, eo a ser aprendido do testemunho daqueles que tenham trilhado aquele caminho, sejam eles

ósofos, poetas, artistas ou místicos de algum tipo. O campo claramente é vasto. O que agora

oponho a fazer, por via de seleção, é destacar as idéias científicas de um homem conhecido

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ncipalmente como poeta e figura literária, que falou com consumada precisão do assunto emestão numa época em que quase não havia alguém para prestar atenção. Como o leitor pode tevinhado, estou me referindo a ninguém menos do que Johann Wolfgang Goethe, cuja concepçncia era radicalmente oposta à newtoniana e pode ser reduzida ao que ele chama denschauung ”: uma “visão” do próprio fenômeno. “Não procure por nada atrás dos fenômenoss diz, “eles próprios são a teoria”. Eles são “a teoria” – não, por óbvio, no sentido de umancepção abstrata e muito menos no de uma fórmula matemática que supostamente descreva umlidade que ninguém percebe – senão no sentido originário de “teoria”: como uma efetiva “vi

m conhecimento direto no qual, “de certa maneira”, sujeito e objeto de fato “se tornam um”. Iste basta para não estarmos “atrasados”! Não se pode, contudo, pensar Goethe como um supostatônico”: para o poeta e artista alemão, o “saber” não era “meramente intelectual”, mas impl

ma visão efetiva, do tipo que envolve nossos olhos corpóreos. A “ Anschauung ” goethiana não m puramente intelectual nem exclusivamente sensível, mas pode ser caracterizada como “umnhecimento intuitivo obtido pela contemplação do aspectovisível ”, como alguém já afirmou cteza. Ela constitui, assim, uma “visão” em que o sujeito, longe de ser meramente um destinatáalgo dado, é um participante ativo. Para ser preciso, o “visionário” é conclamado a penetrar

specto visível” que ele recebe e, ao fazê-lo, tomar posse da essência mesma: em outras palavão autêntica constitui umato.O primeiro aspecto a ser notado acerca do conhecimento assim obtido é que o objeto não é a ssuas partes, mas é forçosamente uma totalidade; como Bortoft explica: o objeto de tal conhectotalidade que é não coisa” e tende conseqüentemente a ser confundida com um mero “nada”qual ele desaparece. “Quando isto acontece, nós somos deixados com um mundo de coisas e

arefa aparente de juntá-las para fazer um todo. Tal esforço desconsidera a totalidade autêntic7 ] É neste ponto, claramente, que a “ciência” no sentido baconiano – e a física moderna, empecial – torna-se um fator importante: tal como no caso de nossa visão, igualmente nossa ciêná “sempre atrasada”. Incapaz de lidar diretamente com o genuíno fenômeno – por meio dos n

hos presenteados por Deus –, o cientista baconiano postula um mecanismo (ou, sob o ponto deracional, um “modelo” de alguma espécie) para explicar o que ele pode ver, o que Bortoft ch“um mundo de coisas”. É bem sabido que Goethe se opunha a essa abordagem e que ele

solutamente rejeitava a idéia de um mecanismo “por detrás” do fenômeno; mas a questão é: coal embasamento? Pode-se responder o seguinte: ele entendeu, antes de tudo, que o real de fatoenão aquilo que pode em princípio ser conhecido e que isto é, em última análise, o fenômenoquilo que mostra a si mesmo em si mesmo”. E ele atinou, além disso, que o fenômeno autêntic

fato “a totalidade que é não coisa”, como Bortoft assinala. Resta a observar que essa “não coo pode ser um mecanismo, porque não é a soma de suas partes. Tal parece ser o argumento táa seqüência de idéias implícita pelos quais Goethe chegou à conclusão que chocou os seus

ntemporâneos: a negação categórica do mecanismo newtoniano. Na sua contínua disputa comtoridades científicas do dia, ele insistia, de novo e de novo, quenão há nenhum mecanismo: ne de fato fique “por detrás” do que é “visível” no sentido mais profundo. Não pode existir poima análise – cumpre dizer novamente –, o real é o visível: “aquilo que se mostra em si mesm

Eu gostaria de agora assinalar que a “negação do mecanismo” goethiana – que à época foi recm escárnio, quase chegando ao desprezo, e não somente peloestablishment  científico, masmbém pelo público “ilustrado” em geral – foi reabilitada pela descoberta da mecânica quântic

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e se revelou não ser mecânica em absoluto. Parece que o universo físico – o universo tal comncebido pelo físico – não pode ser realmente separado das intervenções efetuadas pelo próprico; como John Wheeler afirmou, nós fomos forçados a admitir que a física lida, ao cabo, comverso participativo”. Sucede que o que “decompõe o sistema físico em partes” é a intervençãpírica pela qual as partes em questão são especificadas; e porque a medição de um observáv

m um efeito incontrolável sobre seu assim chamado conjugado, segue-se que o sistema como tde mais ser concebido como uma soma de partes bem definidas. Isto se mantém verdadeiro,emais, mesmo para um sistema composto por uma única partícula: pois caso se meça, vamos

osição da partícula, inevitavelmente perturba-se seumomentum e eis que então o próprio siseste exemplo, a partícula) se revela como essencialmente proteico, algo que não é, e nem podalmente especificado em termos matemáticos. A noção de mecanismo universal, patrocinada lileu e aparentemente confirmada para além de dúvida razoável pelas descobertas de Newton

us sucessores, revela-se assim insustentável. Sucede que, um século mais tarde, a negaçãoethiana era apesar de tudo bem fundamentada: a própria física confirmou aquela conclusão,bora por uma abordagem amplamente diferente.[ 218 ]

O obstáculo fundamental que por tão longo tempo impediu nosso entendimento da obra científ

ethe – a saber, a hipótese do mecanismo e, mais importante ainda, a filosofia cartesiana sobral aquela premissa era baseada – foi então, em princípio, superado.[ 219 ] E, entretanto, aquepedimento permanece conosco como a central concepção cartesiana de “máquina”, a qualdentemente constitui o paradigma predominante da sociedade tecnológica. Não é insignifican

m inócuo estar rodeado por todos os lados por maquinário, por “alavancas e parafusos”, comethe diz. Com o tempo, e por meio de uma espécie de lógica inexorável, o paradigma da máqde a se impor dentro da sociedade tecnológica sobre todos os aspectos da cultura humana: noncepção mesma de sociedade humana e do próprio homem tende a ceder sob o seu jugo.[ 220 ultado, é escusado dizer, é um profundo afastamento da Natureza: do mundo natural ao nossomundo “antrópico” dentro de nós. Ambos os “mundos” tornaram-se para nós um “livro fechas podemos, é claro, teorizar sobre ambos, e o fazemos em grandíssima medida; mas não podeis “entrar”, não podemos mais “ver”. Nem precisaríamos dizer que este estado de coisas cerrrta até mesmo para o mais rudimentar entendimento da doutrina goethiana. Para começarmos mpreender o seu modo de ciência, nós precisamos evidentemente reverter a mencionadavolução” dentro de nós: recuperar uma relação normal e autenticamente humana com a Naturemelhor dizendo, com todas as vidas e almas dentro dela.

Nós assinalamos que a ciência goethiana assenta sobre “ Anschauung ”: uma penetração intuitiv

pecto visível apresentado pelo fenômeno; precisamos também, todavia, atinar que semelhanteenetração intuitiva” pressupõe uma profunda afinidade entre homem e Natureza: o microcosmmano e macrocosmo cósmico. O fato é que Goethe era um profundo conhecedor dessa afinidae o olho não fosse solar” – “wäre das Auge nicht sonnenhaft ” – ele declara, “não poderíamosSol”. Então ele também sentia que a Natureza é algo maravilhoso, algo completamente profunsterioso, que precisa ser abordado com uma espécie de reverência – novamente o oposto mesperspectiva baconiana, que considera a Natureza como algo que deveria ser “selado para

oveito”, tal como convém a uma máquina. No que é obviamente uma reprimenda aos newtoniaethe declara a impotência dos seus meios empíricos: “O que a Natureza não livremente revelcê não vai dela extrair com alavancas e parafusos” (“ zwingst du ihr nicht mit Hebeln und mi

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hrauben ab”). Claro que Goethe conhecia o fato de que “alavancas e parafusos” têm o seu usofera da tecnologia; o que ele negava era que tais meios pudessem levar a um genuíno conhecimNatureza: “daquilo que mostra a si mesmo em si mesmo”.

Mas há algo mais: a ciência de Goethe é baseada não somente sobre uma profunda afinidade ctureza, mas também sobre um profundoamor : um amor que não pode senão estar próximo do igião conhece como “o amor de Deus”. Se a natureza for mais do que um mecanismo – mais de uma máquina inerte –, ela deverá ser algo nobre e belo e um instinto com poder; e isso, comrteza, é algo que merece ser amado. Pode-se sentir quase uma qualidade franciscana na relaçãethe com o que ele denominava “ Natur ”.

Eu gostaria de assinalar agora que à medida que o objeto da ciência goethiana não pode ser duzido a um mecanismo, nem à soma das partes, mas constitui uma efetiva totalidade, a ciência, estritamente falando, com quantidades: ela não pode. Quantidade, afinal de contas – comoistóteles argutamente observou – é “aquilo que admite partes mutuamente externas”, o que éecisamente o que a totalidade goethiananão admite. Pode-se dizer, mais uma vez, que “partesutuamente externas” – e, portanto, quantidades – vêm “depois”. O que existe no nível da totaliethiana não são, pois, quantidades, mas precisamentequalidades. E já que as qualidades prim

rtencentes ao “aspecto visível” calham serem cores, não é surpreendente que a obra científicaethe comece com sua Farbenlehre, sua “teoria da cor”. O que, pois, é a ciência goethiana: o

atamente ela alcança? Falando estritamente, ela lida não com as cores enquanto tais – as quaisdem ser verdadeiramente descritas –, mas com as condições sob as quais as cores se manifesm o que afeta ou determina essa manifestação, algo que pode de fato ser tratado com exatidãontífica e que exibe leis rigorosas e previamente desconhecidas. A Farbenlehre, entendidarretamente, é de fato precisa ao ponto de ser em um sentido “matemática”, sem, contudo, e deodo algum, quantificar seu assunto, isto é, as “cores” propriamente. O que deu origem, ademamosa disputa de Goethe com os newtonianos a respeito desse tópico não foram essas descobee são decerto científicas e que ninguém poderia negar, mas a assertiva newtoniana de que a code ser reduzida à quantidade – isto é, comprimento ou freqüência de ondas –, noção a qual Grenhamente se opunha. Que cor era associada com comprimento ou freqüência de ondas, ele ngava; mas ele insistia que, nada obstante, a cor tinha sua própria realidade e que, em verdaderecede” os parâmetros quantitativos da concepção newtoniana. O que Goethe rejeitava, se fortendido em retrospecto, não era na realidade a física newtoniana como tal, mas a inadequadatafísica cartesiana, sobre a qual a física estava, àquela época, oficialmente baseada. Parece qethe não teria discordado de uma física newtoniana desbastada de suas pretensões metafísica

ma física concebida estritamente de acordo com a receita baconiana, isto é, de acordo com umnto de vista essencialmente operacional ou pragmático. É que tão-somente Goethe não haverignificar tal disciplina com o epíteto de “ciência”; muito provavelmente, ele a teria agrupado sulo de “tecnologia”, a aplicação das “alavancas e parafusos”.Nós deveríamos ao menos mencionar o segundo maior campo dos esforços científicos de Goee é a denominada “metamorfose” das plantas. Dado que o verdadeiro objeto da ciência goethnstitui “uma totalidade que é não coisa”, seu interesse em plantas é prontamente inteligível: acontas, uma totalidade que é “não coisa” é forçosamente um todo organísmico do qual o mai

mples e, de certo modo, mais básico exemplo é decerto a planta. Novamente, nos desviaríamouito do assunto caso falemos da “botânica” goethiana, mesmo que de modo sumário: como sua

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rbenlehre, o assunto é exigente e, à sua própria maneira, técnico. Suficiente notar que ambas ciplinas decorrem da Anschauung  goethiana, da qual permanecem auxiliares. Portanto, para ethe é necessário, em última análise, adquirir um “olho” correspondente – um que seja

rdadeiramente “ sonnenhaft ” – e isto é algo que não muitos, nem mesmo dentre seus seguidoreis ardentes, têm conseguido alcançar aparentemente.

* * *

A questão que surge agora é se a Anschauung  goethiana, que categoricamente supera a nossa

são” ordinária, deve ser tomada como a “palavra final” na busca metafísica. Tendo notado qnuíno anthropos – o homem em sua realidade integral – compreende não somente uma perifers decerto um centro absoluto junto com uma hierarquia de centros intermediários, correspondários “níveis de visão” distintos, pode-se perguntar a qual destes centros a “visão” goethianaatribuída. Suficiente dizer que à luz da tradição sapiencial – cristã e não cristã, de igual mod

e aquela não constitui, de modo algum, a “visão” mais recôndita ounon plus ultra: ela não pois ainda constitui ainda um modo de percepção “próprio da criatura”. Deixe-nos tentar agora bre a suprema “visão”, que – estranho dizer isto – é de fato uma visão com “o Olho de Deus”ui, e somente aqui, que a busca metafísica – que, como notamos, começa com o mais simples

percepção sensível – alcança seu término. Agora nós propomos a considerar a “visão supremrtir de um nítido ponto de vista cristão, baseado sobre os ensinamentos de Meister Eckhart, ontroverso dominicano que de fato afirmou:

Meu olho e o olho de Deus são um olho e uma visão, um saber e um amor.[ 221 ]

Nós precisamos falar, em primeiro lugar, do papel do Centro primário no homem – o “centro ntros” – que transcende não somente aquilo que chamamos de “corpo”, mas também a “mentesmo na conotação mais elevada deste termo. Eckhart se refere a ele como vünkelin ou “peque

ntelha” em nós, a qual ele declara ser “increatus et increabile” (“incriada e incriável”). É

arente desde o início que a antropologia eckhartiana transcende não somente a costumeirancepção “corpus-anima” do homem, mas a goethiana também: onde Goethe fala de um olho qolar”, Eckhart se refere a um que seja verdadeiramente divino; e embora aquele é capaz de fitl”, este, Eckhart nos assegura, não fita nada senão o próprio Deus. Agora, em vista dessa assee tudo o que ela implica, dificilmente é surpreendente que o ensinamento eckhartiano tenha s

sde o começo, uma fonte de controvérsia, condenado por alguns e saudado por outros como sltima palavra. Na verdade, o que o Meister confia – nos seus “momentos místicos”, quando ea, por assim dizer, do ponto de vista de Deus – é de fato no que a Escritura nomeia de “alime

ido” em oposição ao “leite”:[ 222 ] tal é, em qualquer caso, a premissa à base da qual vamosoceder.Mas se o alimento sólido “é para os adultos”, como o autor de Hebreus declara, por que expoutrina em questão num ensaio endereçado a todos: para “crianças e adultos”? A razão, permiter, é que esses são tempos muito especiais: tempos temíveis, na realidade. O fiel cristão encpremido de todos os lados pelas tendências dominantes de nossos dias, as quais, apesar de suqüentes aparências benignas e de fato sedutoras, revelam-se anticristãs em seus âmagos. Podver mais bestas selvagens no Coliseu, mas esta óbvia vantagem é contrabalançada pelo fato dé ardorosa dos tempos idos e o amor fraternal, que unia os primeiros cristãos e lhes davaensurável força, estão igualmente desaparecidos. Agora mais do que nunca, cabe ao crente

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dividual resguardar-se dos ataques. Há, porém, uma vantagem compensatória da qual ele seneficia: hoje nós temos acesso às doutrinas mais elevadas, ensinamentos que antigamente estaponíveis e permitidos somente a uns poucos, talvez em parte porque os muitos não tinhamcessidade desses ensinamentos elevados. Em nossos dias, por outro lado, a necessidade está alvez, está também uma certa aptidão por parte dos muitos, que anteriormente quedava ausenesar de seu progressivo declínio, fato ao qual já aludimos antes, há razões para acreditar quemanidade possa não obstante estar “amadurecendo”. Talvez, para o mais sério investigador drdade o tempo para o “alimento sólido” tenha chegado: quando se torna quase miraculoso

breviver a uma educação universitária sem perder a fé em Deus e na religião, parece que o teverdade, exija a tanto. Acontece que a doutrina eckhartiana põe em nossas mãos uma arma af

uma veraz “espada da gnose” – que nos permite, em princípio, “decapitar” doutrinas espúriasm único golpe. Admitimos que haja perigo nisso, e Clemente de Alexandria está sem dúvida co

observar que “não se entrega uma espada a uma criança”; mas eu suponho que, mesmo que nha crescido o suficiente para termos uma “espada” confiada a nós, o proveito atualmente poser os riscos. Além disso, o fato mesmo de que alguém abra este livro é, em si mesmo, um sin

spicioso!

Voltemos então a vünkelin, a centelha divina escondida nas profundezas de nossas almas. Ecks informa que esse Centro “recôndito” tem uma “estrutura”: não é “indecomponível” como umnto matemático, mas compreende, formalmente falando, dois elementos: um “chão” e uma

magem”. Atualmente, não precisamos nos preocupar com aquele, ao qual Eckhart se referetaforicamente como um “vasto descampado” e “um ermo solitário”; o que precisa ser considerecisamente a “Imagem”. O que, pois, e “do que” é aquela Imagem? A resposta a esta questãomo o leitor pode supor, é que a Imagem não é senão o Verbo ou o Filho, que de fato é “a imagDeus”, como o próprio São Paulo afirma.[ 223 ]

Deve, porém, ser notado que o Verbo não fica sozinho, mas pertence à Santa Trindade, compor Pai, Filho e Espírito Santo. E nos lembremos de que este ensinamento constitui na realidadestério central da religião cristã, uma verdade ponderada e meditada pelos Padres e Doutores eja, a qual, porém, em última análise, transcende o que a mente humana é capaz de sondar.nceptualizar a Trindade – tratá-la como nós tratamos as outras coisas – já é errar o alvo. Ounto necessita na realidade ser abordado com “mãos entrelaçadas”; e quem não compreenda

o significa – em quem, em outras palavras, falte um “sentido do sagrado” –, não vai de maneinhuma ter acesso. É mais fácil, de longe, apreender a idéia do Absoluto, ou a do Deussconhecido, conceitos que são de certo modo nativos à mente humana e que foram sustentado

das as partes do mundo desde os tempos mais remotos. A idéia de Trindade, por outro lado,rtence somente ao Cristianismo e é de fato inseparável da Revelação dada à humanidade por isto, o Filho Encarnado de Deus. O fato, ademais, de que esse central ensinamento cristão écionalmente incompreensível” prova ser de suma significação: ele implica que a doutrina, qu

stentada seriamente, pode servir para ativar dentro de nós uma faculdade “mais-que-racional”o “mais-que-humana”, a qual não é senão o Intelecto, denominado propriamente: um poder quge da Imagem – do “Cristo dentro de nós” – e que por fim conduz de volta àquela Imagem.alar da Trindade é falar do Conhecimento divino: o conhecimento que Deus tem de Si mesmo

bora aquele conhecimento transcenda, seguramente, as divisões do tempo e é dito que ocorranc stans da eternidade – no “agora que queda imóvel” –, ele constitui, sem embargo, uma esp

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“movimento” e de fato uma “vida”, por paradoxal que isto pareça. A “visão” suprema – o “vm o Olho de Deus” – não é senão a “vida eterna” tal como o próprio Cristo define aquela vide a teologia conhece como “Oração Sacerdotal”, proferida na véspera de Sua Paixão: “E a virna é esta: que te conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste”.claro que “o único Deus verdadeiro” é decerto o Pai; contudo, é necessário também entende

r “o único Deus verdadeiro” – ver o Pai – e ver “Jesus Cristo a quem enviaste” é uma única esma “visão”; pois “quem me vê a mim vê aquele que me enviou”.[ 225 ]

E é assim por via de vünkelin, o Verbo ou Imagem “dentro de nós”, que somos chamados a ad“vida eterna”; como Cristo declara: “Eu sou a porta”.[ 226 ] Como, pois, “passa-se por aquerta”: como “adentrar” na vida trinitária? Pode-se dizer o seguinte: é uma questão de “visão”, ose propriamente dita; é pela “vista” que alguém “adentra”. Mas ao passo que tudo o que foi aqui constitui, em essência, o ensinamento comum do cristianismo, Meister Eckhart conta-nois: não somente ele diz que “ver a Imagem” é, em verdade, “a vida eterna”, mas ele acrescen

ma afirmação absolutamente atordoante; que de fato toda “visão” – todo o “conhecer”, qualquea – é ao cabo a “visão” da mesma e única Imagem! O que marca a diferença é o modo pelo quemos”, o tipo de “visão” que é. Tal é a alegação estupenda que se encontra no coração dos

sinamentos eckhartianos, o golpe de mestre epistemológico que guarda a chave para a sua doueira. Nós precisamos agora considerar esta premissa eckhartiana com o melhor de nossas forNós iremos basear nossa exposição num dos sermões alemães de Eckhart,[ 227 ] um texto que

a ao cerne mesmo do assunto. Ele expõe as palavras conhecidas de Cristo, normalmente assiduzidas: “Um pouco, e não mais me vereis; outra vez um pouco, e ver-me-eis”.[ 228 ] Eckharntudo, entende o “modicum” do texto da Vulgata não num sentido temporal – como “um poucompo” –, mas simplesmente como “um pouco algo”, o que quer que isto seja. E então ele começmão com as palavras: “Ainda que pequena seja uma coisa que se liga à nossa alma, nós nãoremos a Deus”. Com esta manobra exegética – que, aparentemente, ninguém antes dele jamaisvia concebido –, Eckhart põe em nossa mão a chave para a metafísica em geral: tudo está incl

última análise, nesta única declaração magistral. Que percebamos o cosmo, as coisas quertencem ao que a teologia conhece como “ordem da criação”, ou que, ao revés, percebamos orbo eterno, isto depende inteiramente da condição de nossa alma: que algo “ainda que pequense ligue” ou que não. Verdadeiramente: “Bem-aventurados os limpos de coração, porque ver

us”.[ 229 ]Eu vou mencionar, de passagem, que o ensinamento eckartiano guarda a chave não somente datafísica (conforme já falamos), mas também da física: do entendimento do que concebemos s

alidade cósmica.[ 230 ] O que agora nos diz respeito, contudo, é o fato de que Eckhart revela,smo tempo, os meios pelos quais os mais altos graus de “visão” – até a visão de Deus, a gnos

prema – podem ser adquiridos; e notemos que essa declaração eckhartiana constitui de fato oncípio por detrás de todo ioga, seja de proveniência oriental ou ocidental. O que de fato é ioaramente, é a disciplina que visa a remover o supramencionado “modicum”. O que, pois, sãoueles “pequenos pedaços” que se ligam à alma e, ao fazê-lo, obstruem nossa visão do Verbo,rdadeira Imagem? Na verdade, não se pode dizer o que eles sejam; pois o “modicum” em sismo não é nunca visível: não é o que sabemos ou que possamos saber. Pantajali, nos Ioga Su

1 ] se refere a esses “pedaços” fugidios como chittavritti, “modificações da mente”, o queuivale a dizer que eles surgem da mente (“chitta”), são carregados pela mente e se precipitam

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vo na mente.[ 232 ] Eles são algo, portanto, que não têm essência nem existência por direitoóprio; como ondas na superfície do mar, que não são nada sem a água. E, entretanto, por maisexistentes” que eles possam ser, são essas modificações (“vritti”) que nos causa a perceber “

z mil coisas” deste mundo ao invés de Deus: em lugar do queé.[ 233 ] Para colocar isso emmos bíblicos: são eles – estes chittavritti – que “tornam o coração insensível”, de modo queendo”, o povo “não percebe”.[ 234 ]Como Eckhart nos dá a entender, essas considerações implicam uma metafísica que transcendeplamente todas nossas concepções “dualistas” de Deus, do homem e do cosmo. Sem dúvida

condida nas Escrituras e nas palavras dos sábios, é na obra eckhartiana – e especialmente emmões alemães – que esta metafísica “secreta” vem, ao menos parcialmente, à luz. A doutrina khart, como eu argumentei alhures,[ 235 ] é baseada sobre o reconhecimento que o conhecer  –“a visão”! – tem precedência sobre o ser . Existem, em última análise, dois modos de conhecem ou sem “modificações mentais” – que Eckhart identifica como o humano e o divino. Conheem modificações” – sem “meios”, como Eckhart diz – é conhecer como Deus conhece a Si pró

que é então conhecido é o Verbo ou Filho de Deus, e mediante Ele, Deus o Pai. Conhecer “cdificações”, por outro lado, é conhecer pelo modo próprio das criaturas; e o que a criatura

nhece erra o alvo – erra a realidade –, que é e não pode ser senão o próprio Verbo. Para ser eciso: tudo o que é conhecido pela interposição de um meio, seja uma imagem sensível ou umncepção mental – tudo, pois, que “não é Deus”, que não é divino, que não é o próprio Verbo khart denomina de “criatura”.

Deve ser notado que este conhecimento “por interposição de meios” pelo qual nós percebemosas deste mundo é de fato a “visão” a qual São Paulo se refere na famosa máxima: “Porque,

mos como em espelho, obscuramente”.[ 236 ] Claramente, o que “obscurece” nossa visão – csobre um espelho – são precisamente as “impurezas” as quais Eckhart alude, e que “se ligam

ma”. Há também, contudo, um segundo modo de visão e São Paulo a ele se refere sem demorado afirmado que “agora, vemos como em espelho, obscuramente”, ele prossegue: “então, vere a face”. O “então” paulino se mostra em contraste com o “agora”, e evidentemente se referem momento passado ou futuro no tempo, mas a um modo alternativo de se conhecer: um conhce a face”, isto é, sem a interposição de meios. Mas qual a natureza daquele segundo conheca questão o Apóstolo também responde no mesmo verso, que termina com a frase: “como tamu conhecido”. No texto original há “epegnosten” (que, na verdade, significa “eu era conhecid

ma expressão que se refere especificamente ao conhecer “supremo”, que São Paulo nomeiapignosis”, como distinto de “ gnosis”. O que permanece em questão é um conhecer de Deus Pa

nforme à definição cristão de “vida eterna”:[ 237 ] isto é o que significa conhecer “face a facer sem a interposição de meios” é, pois, ver não do modo próprio da criatura, mas de fato “cho de Deus”, tal como Eckhart declara. Neste único verso paulino (i. e., 1Cor 13, 12), pode-shar a doutrina eckhartiana verdadeiramente compreendida.A busca metafísica – que não é senão a tarefa da religião de acordo com sua concepção maisvada – pode ser assim reduzida à limpeza que remove da alma suas impurezas: aquelesangíveis e fugidios “pequenos pedaços” que se ligam à alma e prejudicam a nossa visão.[ 238s somos chamados à “limpeza do coração” pela qual “veremos a Deus”. Nada menos que iss

ncionará: tal é a perfeição a que Cristo nos ordenou;[ 239 ] e isso é o que Eckhart sustentaquivocamente como a norma universal, a definição mesma do que ele denomina “o homem ju

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s como ele delineia aquela norma:

Eu digo em verdade, enquanto algo tome forma dentro de você que não seja o Verbo eterno e que não derive do Verbo etnão importa o quão bom possa ser, de fato não será correto. Portanto, o homem justo é somente aquele que tenha aniquiladoas coisas criadas e fique sem distrações mirando diretamente o Verbo eterno, e que seja formado nisto e reformado em justi240 ]

Nós somos informados que o “homem justo” é aquele em quem “nada toma forma senão o Verrno”: o que isto significa? À luz das considerações precedentes, isso só pode significar que não não esteja mais prejudicada, não mais distorcida pelosmeios. E esta é a razão pela qual o

mem justo “tenha aniquilado todas as coisas criadas”: tendo “desarraigado as modificações”,o mais contempla “criaturas”, mas agora vê em todas as coisas o próprio “Verbo eterno”. Tenniquilado todas as coisas criadas”, ele literalmente “fica sem distrações mirando diretamenterbo eterno”.

A grande questão, agora, é saber como essa proeza hercúlea pode ser alcançada: como um homniquila todas as coisas criadas”? E quem pode efetivamente alcançar aquilo? Eckhart respondas questões no seu sermão acerca do texto do “modicum”, o qual (conforme notamos) ele pros palavras: “Um pouco, e não mais me vereis; outra vez um pouco, e ver-me-eis”. E sua respo

mples: é o segundo “modicum”, ele declara, que destrói o primeiro. Mas o que é aquele segundicum, aquele segundo “um pouco”? Não é senão aquilo que ele alhures nomeia de “vünkelin

equena centelha” na alma que é considerada increatus et increabile. Isto também é um modic

m pouco” –, mas de uma espécie bastante diferente. Aquele segundo “um pouco” Eckhart idenm o Verbo ou a Imagem na alma; e aquela Imagem, ele prossegue, é a fonte do poder pelo quaodificações mentais” – as impurezas da alma – devem ser subjugadas. E vamos entender isto e poder não é humano, não é próprio das criaturas, mas é – e forçosamente deve sê-lo –divin

o, não é senão o Espírito Santo que “vos guiará a toda a verdade”, conforme o Salvador afirm1 ] De acordo com a análise de Eckhart, Ele o faz mediante o desarraigamento das “modifica

o que a teologia conhece como “pecado”, ou como os efeitos deste – que nos impedem de verrbo. O Espírito Santo, contudo, é “enviado” por Cristo; ou como Eckhart concebe: surge a pavünkelin, a Imagem que é “o Cristo em nós”.

Deixem isto bastar; talvez tenha sido dito o bastante para nos prover ao menos com um vislumcial para dentro do coração do ensinamento eckhartiano, o suficiente para indicar que “é tudobre a visão”: quer nós vejamos “como em espelho, obscuramente”, ou “face a face”, nas palavSão Paulo. É aqui, nesta intelecção central, que religião e metafísica finalmente se encontram

da uma se reconhece a si mesma na outra. E não deixemos de notar que elas se encontram, po

isto, n’Ele que é “o caminho, e a verdade, e a vida”:[ 242 ] o “caminho” porque Ele limpa e dder a nossos “olhos”; a “verdade”, porque Ele é a quem “os limpos de coração” verão; e a “vrque assim ver a Deus é de fato a “vida eterna”.

* * *

Deve ser notado também que as “modificações” que obstruem nossa visão – que nos impedemer a Deus“ – são divididas naquilo que o Vedanta chama de “kośas” ou “bainhas”, as quaisdemos conceber como várias “camadas” ou “conchas”, uma dentro da outra; e isto significa qem princípio, duas maneiras de eliminar essas obstruções: todas de uma vez só – como acon

esumivelmente, a São Paulo no caminho a Damasco – ou “uma por uma”, começando pelakośis externa e prosseguindo, passo a passo, para a mais interna. É escusado dizer que é a segun

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ssas opções – o que São Boaventura chama de “itinerarium mentis in Deum” ou “jornada dante até Deus” – que constitui o modo “normal” de ascensão espiritual. A jornada, contudo, nãmodo algum “contínua”, mas prossegue, por assim dizer, por “saltos quânticos”: de um “nívera o próximo. Desta maneira, o viator  passa sucessivamente pelos vários centros “intermediás quais já aludimos anteriormente; e, com certeza, em cada um desses graus ele tem a opção dmorar” e se defronta com o perigo, pode-se acrescentar, de recuar para um estado mais baixoTendo tocado no assunto da “fenomenologia” tal qual praticada por seus representantes semin

ethe e Husserl –, pode-se ver agora que a abordagem fenomenológica é de fato essencialmengue, sendo o caso de ir eliminando (ou contornando) as “modificações” e, em suma, de “limpapelho” pelo qual nós percebemos. Ver “mais cedo”, como os fenomenólogos estão acostumader – antes que tenha ocorrido a ruptura em objeto empírico e seu sujeito –, é prevenir as

odificações correspondentes e, ao fazê-lo, atinar com um modo de visão menos mediato e,nseqüentemente, “superior”. Mas ainda que a metodologia fenomenológica possa sem dúvidaante o praticante qualificado a uma certa distância na senda da ascensão e possa capacitá-lo nscender, em algum grau, a “cegueira” que se abateu sobre a humanidade em geral, também ée, à luz da tradição sapiencial, tais meios não podem nos levar “até o fim”. O método

nomenológico, mesmo em seu melhor, tem decerto seus limites infranqueáveis, um fato que,arentemente, Husserl descobriu em seus anos finais; conforme notamos antes, ao fim ele chegoonhecer sua própria inabilidade: “Eu estive procurando Deus sem Deus”, admite. E vamos

rescentar que tal é de fato um reconhecimento crucial, a profissão socrática de incapacidade qalmente abre a porta: saber que “nós não sabemos” – e, como o Salvador afirma, “porque semm nada podeis fazer”[ 243 ] – constitui decerto a principal condição para o esclarecimento.

Nós precisamos entender que a cegueira da qual a Escritura nos informa – e que os métodos eios do ioga, na acepção mais ampla o possível, planejam curar – não tenha sido causada

mplesmente pela Queda primordial, mas por todas as subseqüentes traições humanas, grandesquenas, ao longo do curso da história. É, portanto, aparente, à luz da tradição judaico-cristã, ais cedo”, falando no sentido fenomenológico, é correlato a “mais cedo” em sentido histórico

ca claro que o que os meios fenomenológicos nos capacitam a alcançar, ao menos até certa minalmente a recuperação dos estados correspondentes a períodos mais antigos, a uma idade emumanidade estava menos cega do que está hoje. O que esses métodos não pode fazer, por out

do, é “reverter a Queda”: para isto precisa-se do “poder” mesmo de que Meister Eckhart falao é senão o poder do Espírito Santo.A ciência autêntica busca apreender o fenômeno: “aquilo que mostra a si mesmo em si mesmo

do o resto é, no máximo, um semiconhecimento. Mas o que é “o fenômeno”? A resposta a estaestão é dada pela doutrina eckhartiana: no reconhecimento que oque é conhecido “sem a

erposição de meios” – e, pois, “em si mesmo”! – não é senão o Verbo. Comece com qualquesa que você queira e procure “aquilo que mostra a si mesmo em si mesmo”: e ao cabo você

contrará o Verbo. Você deve: em verdade, não há nada mais a ser encontrado! O Verbo é o Fiigênito do Pai que contém dentro de Si tudo o que era ou que há de vir; como São Paulo afirm

bre a Encarnação: “porquanto, nele, habita, corporalmente, toda a plenitude da Divindade”.[ 2o é “mera poesia” quando Cristo declara a seus discípulos: “Em verdade vos afirmo que, sem

e o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes”.[ 245 ] Um suposto logionstico, gravado em um Evangelho apócrifo, resume aquele ensinamento: “rache a madeira e vo

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e encontrará”. Quer seja madeira ou pedra ou qualquer coisa: se você penetrar no seu âmago, a essência mesma, você O encontrará. Você deve: porque a essência de todas as coisas estántida no Verbo. E o Verbo é um Ímã que atrai todas as coisas para si e paradentro de si. No smão do “modicum” – numa passagem de rara beleza –, Eckhart fala desta atração suprema e destino” universal:

Vocês devem entender que todas as criaturas estão por natureza se empenhando para serem como Deus. Os céus não gia não ser que seguissem a trilha de Deus ou a Sua semelhança. Se Deus não estivesse em todas as coisas, a Natureza iria fiimóvel, nem trabalhando e nem querendo; pois, quer você goste ou não, quer você saiba ou não, a Natureza está fundamenta

 buscando, embora obscuramente, e tendendo em direção a Deus. A caça da Natureza não é carne nem bebida... nem qualqcoisa em absoluto em que não haja nada de Deus, mas veladamente ela busca e cada vez mais ardorosamente ela persegue de Deus nisto.

Nós não podemos fazer melhor do que encerrar com as palavras com as quais o próprio Meistnclui o seu sermão: “Tendo por fim que possamos apreender isto e nos tornarmos eternamenteizes, que o Pai, o Filho e o Espírito Santo nos auxiliem. Amém”.

208 ] Rm 1, 20.209 ]  Ibid ., 1, 21.210 ]  Ibid ., 1, 22.

211 ] 1Jo 3, 2.212 ] Entretanto, a despeito dessa descrença disseminada, a doutrina cartesiana teve um profundo efeito na psique ocidental, a

provocar uma espécie de “esquizofrenia coletiva”, assunto com o qual eu lidei amplamente em: Wolfgang Smith, Cosmos and 

nscedence, Angelico Press/Sophia Perennis, Tacoma, WA, 2012.213 ] Vide meu tratado: Wolfgang Smith, O enigma quântico, Vide Editorial, Campinas, 2012.214 ] Um físico teórico (e nada menos que aluno de David Bohm), Bortoft pertence ao contingente excessivamente diminuto dtistas contemporâneos que transcenderam a visão de mundo cientificista contemporânea.215 ] Mt 13, 13.216 ] A descrição mais plena desses “centros” foi sem dúvida exposta na tradição Tântrica da Índia, a qual se refere a eles cocras (literalmente, “rodas”) e “ padmas” (“lótus”). O Tantrismo Caxemirense desenvolveu uma ciência efetiva no tocante a es

unto. Veja o capítulo 6.

217 ] Henri Bortoft, The wholeness of Nature, Lindisfarne Press, Hudson, NY, 1996, p. 14. Este é, sem dúvida, o melhor livraminho de Goethe em direção à ciência da participação consciente na natureza”, que também é o subtítulo do livro.218 ] Não é surpresa que, em conseqüência desta descoberta, tenha havido um surto de interesse na obra científica de Goethel nos dias idos havia sido descartada como obra de um amador.219 ] Eu digo “em princípio” porque acontece que os cientistas, virtualmente sem exceções, ainda estão imbuídos com osssupostos cartesianos. Para ser preciso, conheço apenas dois físicos que tenham transcendido aquela premissa filosófica ou quham ao menos reconhecido sua natureza hipotética.220 ] Eu lidei com esta questão em: Wolfgang Smith, Cosmos and Transcendence, op. cit ., cap. 7.221 ] Sermão 12.222 ] 1Cor 3, 2; Hb 5, 14.223 ] Por exemplo, em 2Cor 4, 4.

224 ] Jo 17, 3.225 ] Jo 12, 45.226 ] Jo 10, 9.227 ] Sermão 69.228 ] Jo 16,16.229 ] Mt 5, 8.230 ] Neste contexto, o princípio eckhartiano é equivalente ao que eu chamo de “realismo antrópico”, uma posição que prova

cial para toda a cosmologia e, em particular, para o entendimento da ciência contemporânea e, em especial, da teoria quântica. fgang Smith, Christian Gnosis: From St. Paul to Meister Eckhart, Angelico Press/Sophia Perennis, Tacoma, WA, 2012, ca231 ] O manual fundamental do ioga, de acordo com tradição hindu.232 ] Contudo, deve-se atinar que a “mente” por si mesma – mente “sem modificações” – não é mais “mente” do modo comondemos o termo.

233 ] O leitor pode se recordar do nomen Dei do Êxodo 3:14: “ Ego sum qui sum”.234 ] Is 6, 9.

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235 ] V. Christian Gnosis, op. cit ., cap. 6.236 ] 1Cor 13, 12.237 ] Ef 1, 17-18.238 ] O primeiro verso mesmo dos Ioga Sutras, na verdade, define ioga como chittavrittinirodha, o “desarraigamento” (niro

modificações mentais.239 ] Mais explicitamente em Mateus 5, 48: “Portanto, sede vós perfeitos como perfeito é o vosso Pai celeste”.240 ] Sermão 16b.241 ] Jo 16, 13.242 ] Jo 14, 6.243 ] Jo 15, 5.244 ] Col 2, 9. Acerca da significação do advérbio “corporalmente” (“ somáticos”, no original), faço referência ao meu tratado

nose cristã, op. cit ., especialmente o capítulo sobre Jakob Boehme.245 ] Mt 25, 40.

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ncia e mito: com uma resposta a O Grande Projeto de Stephen Hawkingfgang Smithdição – julho de 2014 – CEDET

lo original: Science & Myth: With a Response to Stephen Hawking’s The Grand Designdireitos desta edição pertencem aoDET – Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico

Ângelo Vicentin, 70P: 13084-060 – Campinas – SPefone: 19-3249-0580

ail: [email protected] 

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isão:rtim Vasques da Cunha

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ervados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja elarônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer meio.

dos Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)th, Wolfgang

ncia e mito: com uma resposta a O Grande Projeto, de Stephen Hawking [recurso eletrônico] / Dr. Wolfgang Smith; traduçãoro Cava – Campinas, SP: Vide Editorial, 2014.

BN: 978-85-67394-33-6

iências Físicas 2. Filosofia da Ciência 3. Física e Religiões

utor II. Título.

D – 201.65

ce para Catálogo Sistemático

iências Físicas – 201.65

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ilosofia da Ciência – 501

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SOBRE O AUTOR 

WOLFGANG SMITH

ormou-se aos 18 anos em Física e Matemática na Universidade de Cornell. Suas pesquisas em

rodinâmica e seus artigos sobre campos de difusão, forneceram a chave teórica para a soluçãoblemas de reentrada na atmosfera em viagens espaciais. Depois de receber o Ph.D em MatemUniversidade de Columbia, foi professor no MIT em Massachusetts e também na Universidadlifórnia.

Além de inúmeras publicações técnicas relacionadas à topologia diferencial, o Dr. Smith é aus livros e muitos artigos sobre questões interdisciplinares e epistemológicas, sempre preocupdesmascarar certas concepções equívocas amplamente admitidas como verdades científicas

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SOBRE A OBRA

Ciência, de acordo com a sabedoria vigente, constitui a exata antítese de mito. Como disse Anstein, em uma expressão que se tornou famosa, ela lida com ‘o que existe’; supostamente,rtanto, mito tem a ver com ‘o que não existe’. Acontece, no entanto, que a questão não é assim

mples. Em primeiro lugar, ocorre que a ciência não se refere pura e simplesmente ao ‘que exissmo no caso da Física – seu ramo mais preciso e sua disciplina de base –, ela se refere, no fi

s contas, não à natureza como tal, mas à resposta, da parte da natureza, às estratégias dos físicperimentais, o que se trata totalmente de outra coisa. Obviamente, isso não era compreendidompos newtonianos − e até hoje raramente é admitido em nossas escolas e universidades; porémópria física, na forma da teoria quântica, quem desqualifica nossa visão costumeira do que é qica traz à luz.

Gostemos ou não, a Física não lida simplesmente com ‘o que existe’, mas, enfim, com aquilo qhn Wheeler chama de ‘universo participativo’. Existe uma brecha, por conseguinte, entre o quópria Ciência afirma e o que geralmente se acredita ser a cosmovisão científica; em suma, a

posta cosmovisão científica se revela, no frigir dos ovos, ser ela mesma ummito”