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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA Programa de Pós-graduação em Direito Programa de Pós-Graduação em Engenharia e Gestão do Conhecimento Disciplina: EGC9001-10 – 2008/1 Complexidade e Conhecimento na Sociedade em Redes Professor: Aires José Rover, PhD Tutura: Marisa Carvalho, Msc Aluno: Regina Celi Bonissoni Resumo do Livro: A Inteligência da Complexidade Edgar Morin / Jean-Louis Le Moigne Capítulos: Cap.1 - Ciência e consciência da Complexidade Cap.2 - A epistemologia da complexidade Cap.4 - O pensamento complexo, um pensamento que pensa Cap.5 - Sobre a modelização da complexidade Conclusão - Da análise, da complicação à concepção da complexidade Posfácio - “Trabalhar para bem pensar...” - Pragmática e ética da compreensão

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA Programa de Pós-graduação em Direito

Programa de Pós-Graduação em Engenharia e Gestão do Conhecimento

Disciplina: EGC9001-10 – 2008/1 Complexidade e Conhecimento na Sociedade em Redes

Professor: Aires José Rover, PhD Tutura: Marisa Carvalho, Msc Aluno: Regina Celi Bonissoni

Resumo do Livro: A Inteligência da Complexidade Edgar Morin / Jean-Louis Le Moigne

Capítulos:

Cap.1 - Ciência e consciência da Complexidade Cap.2 - A epistemologia da complexidade

Cap.4 - O pensamento complexo, um pensamento que pensa Cap.5 - Sobre a modelização da complexidade

Conclusão - Da análise, da complicação à concepção da complexidade Posfácio - “Trabalhar para bem pensar...” - Pragmática e ética da

compreensão

Capítulo 1 - Ciência e consciência da Complexidade

“Ciência sem consciência é somente ruína da alma” – Rabelais. Na Renascença , quando nasce a Ciência Moderna, era preciso que o

conhecimento científico, para se desenvolver, colocasse como princípio fundamental a disjunção absoluta entre o julgamento de valor e o problema de dever moral.

Era necessária a ruptura com o poder de inibição da Igreja. A essa disjunção se acrescenta uma segunda formulada por Descartes

onde determina dois campos de conhecimento distintos. De um lado, o problema do Sujeito, do ego cogitans, do homem que por assim dizer reflete sobre si mesmo, e esse problema vai ser, deve ser aquele da filosofia. De outro lado, o problema daquilo que ele chama de res extensa, quer dizer, dos objetos que se encontram num espaço, e o universo da extensão do espaço é aquele oferecido ao conhecimento científico.

A filosofia tornou-se cada vez mais reflexiva, do sujeito que por si próprio tenta sondar-se, conhecer-se, enquanto o conhecimento científico fundou-se excluindo, por princípio, o sujeito do objeto do conhecimento. E essa exclusão podia desse modo ser legitimada, há pesquisadores de opiniões diferentes, de paises diferentes, de classes diferentes, de metafísicas diferentes, e é isso que deve ser retirado, sua subjetividade.

Mas como retirá-la? Com o método experimental ou pela observação, o que faz com que,

se uma experiência for confirmada por pessoas que são de classes, de raças, de opiniões diferentes, ela seja objetiva. Ao extrair, detectar, isolar objetividade dos dados e dos fenômenos, torna-se um conhecimento que reflete a realidade. Sem consciência moral, sem consciência reflexiva e também subjetiva. Cada vez mais o desenvolvimento extraordinário do conhecimento científico vai tornar menos praticável a própria possibilidade de reflexão do sujeito sobre a sua pesquisa.

Com a especialização, foi gerado o fenômeno da hiperespecialização, que faz com que um verdadeiro puzzle de objetos disciplinares não possam se comunicar uns com os outros. Mas essa especialização produz também outro fenômeno: a fragmentação, depois a desintegração das realidades molares com as quais são confrontadas nossas vidas e nossas reflexões como o individuo, a subjetividade, o homem, a sociedade, a vida.

Efetivamente, estudam as interações moleculares, os comportamentos na cadeia de etologia, os processos da evolução na cadeia da evolução. O problema da vida parece ter-se tornado secundário , quando nos damos conta de que não existe substância viva, mas de que os seres vivos são simplesmente seres constituídos da mesma química que tudo aquilo que existe no mundo físico, Eles têm simplesmente uma organização diferente. Então nesse momento, a vida como princípio, como essência, desaparece.

A biologia molecular negligencia não somente o mito metafísico do “princípio vital”, mas também o problema teórico fundamental da auto-organização vivente. Desse modo, nas ciências humanas, o homem desaparece. “A finalidade das ciências humanas não é revelar o homem, mas dissolvê-lo”, Claude Lévi-Strauss.

Trata-se de estabelecer princípios ou regras estruturais que permitam compreender o funcionamento do casamento, da economia, etc. A ciência econômica não tem necessidade da noção do homem. Teve necessidade durante um tempo de um homem abstrato, que foi chamado de Homo oeconomicus, mas pode até dispensá-lo de agora em diante. A demografia não tem necessidade da noção do homem. A historia, se é uma história feita de processos e que elimina o papel aleatório dos indivíduos, dos reis, dos príncipes, pode finalmente epifenomenalizar a noção de homem. Então, podemos chegar às ciências em que a vida, o homem, a sociedade não existem. Chega-se a uma situação oposta àquela que reina na cultura humanista do século XVII ou do século XVIII.

O que é cultura humanista? É a cultura que continuamos mais ou menos a aprender no colégio,

marcada pelos nomes de Montaigne, Voltaire, Rousseau, Diderot....É interrogar-se sobre o homem, a sociedade, o destino, a vida, a morte, o outro lado. Uma cultura que se fundamenta sobre um número de conhecimentos ou informações limitadas, permite reflexão e meditação, permanece num nível de problemas em que o conhecimento está aliado à vida de cada um e à sua vontade de se situar no universo.

A nova cultura científica possui uma natureza diferente, por se fundamentar cada vez mais sobre uma quantidade enorme de informações e conhecimentos que nenhum espírito humano nem saberia, nem poderia armazenar, tanto mais que esse material está fechado , compartimentado. Um conhecimento que não se pode discutir, nem refletir. Daí uma situação cultural nova.

O dilema dos especialistas é que, se eles próprios não podem ter uma idéia geral sobre suas especialidades, proíbem-se a si mesmos ter idéias gerias sobre outros assuntos. No entanto, têm idéias gerais! Nós os vemos quando se exprimem sobre o plano político, social; essas ”idéias gerais” são do mesmo nível de incompetência ou irreflexão que aquelas de um simples cidadão, com a diferença que o cidadão tem medo e é intimidado , enquanto o grande sábio é arrogante, vitorioso e em nome do seu premio Nobel pode fazer qualquer proclamação sobre os problemas mais gerais, no reino das idéias vazias, não refletidas.

Esse neo-obscurantismo generalizado significa que existe uma renúncia submissa e fatalista à ignorância e à incapacidade de saber. E, no final, vê-se que uma enorme quantidade de saber que continua a ser produzido, vai se acumulando cada vez mais para ser estocado, graças aos computadores, aos meios informáticos. Nos encaminhamos, se esse processo se torna dominante (o que eu não acredito, porque haverá reação), em direção a uma revolução na história do espírito humano; pela primeira vez o saber seria produzido para não ser pensado, refletido, discutido entre as pessoas, mas especialmente para ser armazenado pelas instâncias anônimas e manipulados pelas chamadas instâncias anônimas da empresa e do Estado.

Além disso, os princípios que dinamizaram o conhecimento científico, apresentam hoje graves problemas.

A pesquisa de leis ou princípios universais e a pesquisa dos elementos de base fecundaram o progresso e o conhecimento. Desse modo, a obsessão pelo elementar fez descobrir a molécula, depois o átomo, depois a partícula,

mas quando que percebemos que a partícula não era uma noção de base, mas de fronteira, bruscamente nos deparamos com algo duvidoso, não sabermos ao certo o que é uma partícula. Chegamos pela própria ciência ao não-simples, chegamos ao que é complexo. O conhecimento científico que multiplicou seus meios de observação e de concepção do universo, dos objetos, está completamente cego, se quiser considerar-se a si próprio!

Certamente a ciência do século XVIII estava muito marginalizada na sociedade. Os cientistas eram amadores esclarecidos, eram ao mesmo tempo filósofos e cientistas, como Descartes, Gassendi. Mas a ciência, em alguns séculos, chegou ao centro da sociedade. A ciência tornou-se um fenômeno central; o conhecimento científico estimulou o desenvolvimento, o qual evidentemente reestimulou o conhecimento, mas esse desenvolvimento científico também permitiu a criação da bomba atômica, etc. Estamos num circulo vicioso, num circulo de intersolidariedade em que é justo distinguir aquilo que é científico, técnico, sociológico, político.Mas é preciso distingui-los não dissociá-los. O conhecimento científico é um conhecimento que não conhece mais a si próprio. O filósofo Husserl, nos anos 30, já havia percebido a crise da ciência ocidental, a ausência do sujeito de se conhecer e refletir sobre si mesmo.

Além disso, o problema da consciência moral, coloca-se hoje em outros termos. Uma ditadura inteligente sabe que ela tem interesse em deixar sua autonomia aos cientistas para que eles façam descobertas que poderão ser utilizadas nos objetivos militares ou industriais. O verdadeiro problema moral nasce dessa enormidade de poderes que vieram da ciência e diante dos quais o cientista é impotente. Houve uma crise terrível e concomitante com a arma termonuclear, quando se pos a questão: Somos responsáveis? Do que somos responsáveis?

Mas vocês sabem muito bem que a responsabilidade não é um conceito científico.

A responsabilidade não tem sentido senão com relação a um sujeito que se percebe, reflete sobre si mesmo, discute sobre ele mesmo, contesta sua própria ação. Ou o conceito de sujeito não tem nenhum lugar justamente nos princípios do conhecimento científico: ser cientista é ser literalmente irresponsável por profissão! Isso não quer dizer que o cientista não seja responsável. Ele se sente responsável. Mas ele deve tratar o problema de responsabilidade como qualquer cidadão, com aquela diferença que o faz trabalhar justamente em alguma coisa que pode produzir ida e morte, sujeição ou liberação.

Assim vemos que o problema da ciência e da consciência se encontra hoje colocado como problema ético e como problema de consciência reflexiva, postulando ambos a reintroduçao do sujeito.

Há a possibilidade de operar a ressurreição dos objetos e dos problemas que são aqueles das nossas vidas no quadro de certo tipo de conhecimento científico moderno que se chama “ecologia”. Falo da ecologia como conhecimento científico e não como movimento político. Mas, Qual o objeto da ecologia?

Os objetos da ecologia são interlocuções que existem no seio de um ecossistema entre os constituintes geológicos, físicos, climáticos, mas também biológicos e, portanto, os microorganismos, os vegetais, os animais de todas as

espécies. Assim o ecologista estuda as interações formando sistemas. A palavra “ecossistema” é clara. O ecologista tem a necessidade de conhecer um pouco de biologia, de botânica,, de sociologia... Sua cultura para desenvolver seu conhecimento ecológico precisa ser multidimensional; ele deve desenvolver uma policompetência. Isso não só é possível , como existe e funciona! O que é a priori impossível tornou se possível através da exigência desse conhecimento. E partir desse momento em que tem uma ciência de ecossistemas e, que os ecossistemas estão ligados aos ecossistemas mais vastos, ecossistemas em ecossistemas, chegamos ao conjunto que se chama “biosfera”, constituída de todas as coisas vivas, aí subentendidas as humanas.

O conhecimento ecológico permite dialogar com nossos problemas e nossas necessidades.

O extraordinário é que o conhecimento científico se fundou em reação à metafísica! Diz-se “Todos esses problemas, o ser, o nada, o vazio, o tudo, o começo, a origem, o fim, isso não tem nenhum interesse, são reflexões para filósofos. Aquilo que queremos saber é como isso funciona, essas são as regras, essas são as leis...”.

Existe de qualquer modo um contra movimento na ciência moderna que reencontra os grandes problemas filosóficos, que é a retomada da reflexão.

Infelizmente, os filósofos profissionais não têm respondido a esse apelo. Se durante séculos a filosofia viveu do diálogo do saber, isto é, com o conhecimento científico, hoje ela lhe dá as costas, e com os argumentos e raciocínios especificamente abstratos, que são os argumentos da racionalidade francesa: “A partir do momento em que me torno filósofo, não tenho competências para poder falar de problemas científicos. Só os cientistas competentes as possuem”. Mas os cientistas, enquanto especialistas, não são competentes para falar de problemas filosóficos. Portanto, eles mesmos realimentam o obscurantismo generalizado do qual digo: é preciso, sobretudo procurar entender.

Hoje, no entanto, existe uma renovação, o que significa dizer que os cientistas, quando chegam através do seu conhecimento a esses problemas fundamentais, tentam por si próprios compreendê-los e fazem um apelo à sua própria reflexão. Nós sabemos: desde que uma experiência foi concluída, ela foge da esfera da competência daquele que conseguiu fazer a manipulação.

Ë a ressurreição dos problemas fundamentais, seja pelas ciências de um tipo novo, como a ecologia, seja nos seus próprios progressos, como os da biologia ou da física. Existe também o contributo considerável da epistemologia moderna. A grande importância da epistemologia moderna consiste em ter mostrado de maneira decisiva que a teoria científica não é o reflexo do real; é uma construção do espírito que efetivamente se esforça por aplicar sobre o real. As teorias são sistemas lógicos elaboradas pelo espírito humano e este os aplica sobre o real.

De um lado, as teorias científicas são produzidas pelo espírito humano; portanto elas são subjetivas. De outro, estão fundamentadas em dados verificáveis e, portanto objetivos.

Como isso é possível? Conhecemos o exemplo da astrologia. Os astrônomos da Antiguidade,

caldeus e babilônios, fizeram observações que permitiram predições validas,

mesmo apos o abandono do sistema de Ptolomeu, que fazia da Terra o Centro do Universo. Em seguida, a teoria mudou: passou-se à teoria de Copérnico, mas muitas correlações sobre as quais se fundava na antiga concepção foram mantidas, embora as mudem e apareçam novos dados objetivos que não haviam sido observados até então. Os cientistas são homens que têm idéias metafísicas, quer camuflem ou não. Alguns, no fundo, gostariam de provar a existência de Deus; outros, de provar que Deus não existe. Alguns gostariam de provar o determinismo; outros, ao contrário, estão satisfeitos que exista o acaso no universo. Cada um, com sua mania, produz mais ou menos conscientemente as teorias em relação a sua libido ideológica. Essas teorias estão evidentemente em conflito.

Daí essa idéia ser tão importante – a cientificidade não está na certeza teórica. Ao contrário, já Whitehead, o grande filósofo das ciências anglo-saxônicas, havia observado que a ciência é mais mutável que a teologia. Com efeito, o envelhecimento das teorias científicas é sem dúvida incrível. As teorias se desatualizam e ainda assim a ciência continua! Ë que a verdade científica não está na certeza teórica. Uma teoria é científica não porque ela é certa, mas, ao contrário, porque ela aceita ser refutada, seja por razões lógicas, seja por razões experimentais ou de observações. Isto é, uma teoria científica não é o substituo, num mundo laico, de verdade teológica e religiosa. É o contrário!

Uma teoria científica tem sempre a incerteza, ainda que ela possa fundar-se em dados que possam ser certos. A biodegradabilidade da teoria científica é um fato fundamental que nos mostra que a fecundidade do conhecimento científico é uma luta de teorias. É uma luta de diversidades que aceitam uma regra comum. Quando a aplicação da regra comum pode ser bem feita, como nas ciências físicas, isso não caminha mal! Mas, quando não se pode encontrar a verificação,como nas ciências sociais, isso evidentemente caminha muito menos bem!

Mas eu diria quase: felizmente! Porque, se houvesse hoje uma ciência social que fosse manipuladora e redutora, e também eficaz, como a física, então, nesse caso, seriamos completamente, e em muito breve, “orwelliazados”! As teorias científicas são produções do espírito, as ciências físicas são espirituais, porque produtos do espírito humano, e elas são sociais porque emanam de atividades sociais.

Outros já observaram: o fato de quere negar que as ciências físicas sejam ciências sociais é um empreendimento obscurantista, porque, efetivamente, o terreno das ciências físicas é a sociedade, a historia. As ciências físicas, assim como as ciências ilógicas têm um modo de relação verificável com o mundo exterior que advém das experiências,das observações, etc. Mas elas não podem escapar de uma dependência com relação à sociedade que as produz.

Se os cientistas das ciências físicas ou biológicas são incapazes de conceber que a ciência física possa também ser uma ciência social, como podem eles ter os instrumentos para pensar os problemas de sua responsabilidade?

Enfim, estou convencido de que os novos desenvolvimentos do conhecimento científico nos conduzem um pouco a todos os domínios para restituir o diálogo, senão diretamente entre o sujeito e o objeto, pelo menos entre o observador e aquele que o observa. O problema do sujeito é inevitável

nas ciências humanas. Quer dizer, não é possível iludir-se com o seguinte problema: eu sou uma pessoa egocêntrica e etnocêntrica numa determinada sociedade, e eu não posso encontrar por mim mesmo, completamente, os conceitos que me permitiriam ultrapassar o egocentrismo e o etnocentrismo se eu não voltar ao exame do problema da subjetividade.

Ë claro que nas ciências físicas pode eliminar-se o sujeito individual, mas não pode eliminar-se o “sujeito epistêmico” (Piaget), nem o problema do observador. O observador perturba a observação (Heisenberg), toda observação se utiliza e se funda na negentropia potencial (Brillouin). Mas é também pelo princípio “antrópico” desses astrofísicos que dizem que a consideração da gênese do universo deve incluir a possibilidade da consciência humana.

Concluindo: O que eu queria dizer é que, por caminhos diversos, reintroduzem-se hoje o problema da consciência, no sentido reflexivo, e o problema da consciência, no sentido rabelaisiano. Eles se reintroduzem, mas estamos no inicio do processo. A meu ver, estamos numa época de mudança de paradigma: os paradigmas são os princípios dos princípios, algumas noções mestras que controlam os espíritos, que comandam as teorias, sem que estejamos conscientes de nós mesmos. Creio estarmos numa época em que temos um velho paradigma, um velho princípio que nos obriga a disjuntar, a simplificar, a formalizar sem poder comunicar aquilo que está disjunto e sem poder conceber os conjuntos ou a complexidade do real. Estamos num período “entre dois mundos”; um, que está prestes a morrer mas que não morreu ainda, e outro, que quer nascer, mas que não nasceu ainda. Estamos numa grande confusão, num desses períodos angustiantes, de nascimentos, que se assemelham aos períodos de agonia, de mortes; mas creio que nessa grande confusão existam movimentos diferentes – citei apenas alguns – para reintroduçao da consciência na ciência. A aposta não é simplesmente a aposta do enriquecimento do espírito dos cientistas, o que já não seria mau. Não é somente a consciência no sentido da complexidade que uma visão mutilada das coisas havia eliminado, o que seria também muito bom! Penso ser uma aposta não somente científica. Mais do que isso: é profundamente política e humana, humana no sentido que concerne, talvez, ao futuro da humanidade.

Capitulo 2 - A epistemologia da complexidade

2.1 Sobre a ”paradigmatologia”

A questão sobre a complexidade é complexa! Como dizia Jean Perrin, o papel do conhecimento consiste em explicar

o visível complexo pelo invisível simples. Atrás da agitação, da dispersão da diversidade existem as leis, por conseguinte, o princípio da ciência clássica é legislar, colocar as leis que regem os elementos fundamentai da matéria viva; e para legislar ela deve disjuntar, isto é, isolar os objetos sujeitos às leis. Legislar, disjuntar, reduzir – esses são os princípios fundamentais do pensamento clássico.

Mas essas práticas clássicas do conhecimento são insuficientes. Acreditou-se que o conhecimento tinha um ponto de partida e um fim;

hoje penso que o conhecimento é uma aventura em espiral, tem um ponto de

partida histórico, mas não tem um fim, deve sem cessar, fazer círculos concêntricos, que a descoberta de um princípio simples não tem fim; ela reconduz ao mesmo principio simples que ela esclareceu em parte.

Mas a complexidade tem dificuldades de manifestar-se. Ela tem sempre dificuldade de emergir, em princípio, porque não foi o centro de grandes debates e de grandes reflexões.

Naturalmente a complexidade foi muito abordada no domínio teórico, físico, no domínio sistêmico. Mas a complexidade organizada é frequentemente direcionada para a complicação. A complexidade é muito mais uma noção lógica do que uma noção quantitativa. Ela tem sempre suportes e caracteres quantitativos que desafiam os modos de cálculo, mas é uma outra noção. Ë uma noção a ser explorada, a ser definida.

A idéia da complexidade é uma aventura. Só podemos tentar entrar na problemática da complexidade se entrar na da simplicidade, porque a simplicidade não é tão simples assim como parece.

No meu texto “Os Mandamentos da complexidade” publicado em Ciência da Consciência, tentei levantar treze princípios da inteligibilidade pela simplificação. Vou simplesmente relê-los e tecer alguns comentários na primeira parte (A). A segunda parte (B) será consagrada à epistemologia complexa que está ligada à tudo isso.

Parte A 1- Podemos dizer que o princípio da ciência clássica é legislar. Hoje o

nosso universo nos aparece como fenômeno singular, e que as grandes leis que o regem, podemos chamar as leis das interações, que só se manifestam, só se atualizam a partir do momento em que existam elementos em interação. Estas leis não tem um caráter de abstração e estão ligados às coações singulares do nosso universo. A singularidade está profundamente inscrita no universo, ainda que o princípio da universalidade permaneça no universo, ela vale para um universo singular, com fenômenos singulares e o problema consiste em combinar o reconhecimento do singular e do local com a explicação universal. O local e o singular devem cessar de ser rejeitados como resíduos elimináveis.

2- O segundo princípio era não levar em consideração o tempo como processo irreversível. Hoje em dia, o mundo, o cosmos, no seu conjunto, e a matéria física, na sua constituição (particular, nuclear, atômica, molecular) têm uma história. Enquanto o pensamento simplificador elimina o tempo, ou concebe somente um tempo único (aquele do progresso ou aquele da adulteração), o pensamento complexo afronta não somente o tempo mas o problema da politemporalidade em que se encontram ligados a repetição, o progresso e a decadência.

3- O terceiro princípio da simplificação é o da redução ou da elementariedade. O conhecimento dos sistemas pode ser conduzido àquele das partes simples ou unidades elementares que os constituem.

4- O quarto princípio simplificador é o da Ordem-Mestra. O Universo obedece estritamente a leis deterministas, e tudo aquilo que parece desordem (aleatório, agitado, dispersivo) é apenas uma aparência devida unicamente à insuficiência do nosso conhecimento.

5- A antiga visão simplificadora na qual a causalidade é simples; ela é exterior aos objetos; ela é linear.

Existe uma nova causalidade que introduziu a retroação cibernética ou o feedback negativo. O efeito complementa, em circulo, a causa e pode-se dizer que o efeito retroage sobre a causa.

Sobre o plano da causalidade, há uma revisão muito importante a fazer.

6 – Existe o principio da emergência, o que significa que a qualidade se as propriedades que nascem da organização desse conjunto retroagem a esse conjunto.Quanto ao conhecimento de um conjunto: “Considero impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, assim como o conhecer o todo sem conhecer as partes.” – Pascal.

Isso reconduz o caso do conhecimento a um movimento circular ininterrupto. O conhecimento não se interrompe. Conhecemos as partes que permitem conhecer melhor o todo, mas o todo permite novamente conhecer melhor as partes. Em outras palavras, são as interações entre os indivíduos que produzem a sociedade, mas é a sociedade que produz o individuo.

7- O pensamento simplificador baseava-se na disjunção entre o objeto e o meio. Compreendia-se o objeto isolando-o do seu meio ambiente. Mas existe um outro conhecimento que não pode progredir senão concebendo as interações com o meio ambiente.. É preciso , pois, não disjuntar, mas distinguir os seres do seu meio ambiente.

É um convite ao pensamento rotativo: da parte ao todo e do todo à parte. Por trás da noção do observador esconde-se a noção ainda nefasta do sujeito. Em física podemos ultrapassar a noção de sujeito sob a condição de bem esclarecer que toda nossa visão do mundo físico se faz por intermédio de representações, de conceitos ou de sistemas de idéias, ou seja , de fenômenos próprios ao espírito humano.

Mas podemos ultrapassar a idéia do observador-sujeito num mundo social constituído pelas interações entre os sujeitos?

8 a 11 - No conhecimento simplificador, as noções de ser e de existência eram totalmente eliminadas pela formalização e pela quantificação, com os quais era impossível conceber o ser, a existência, a autonomia, o sujeito, a responsabilidade.

12 a 13 – o conhecimento simplificador baseia-se na confiança absoluta da lógica para estabelecer a verdade intrínseca das teorias, uma vez que ela está fundada empiricamente nos procedimentos da verificação.

Eu diria, em duas palavras, que o trabalho do pensamento, quando ele é criador, consiste em fazer saltos, transgressões lógicas, mas que o trabalho de verificação é retornar à lógica clássica, ao núcleo dedutivo, o qual efetivamente só opera verificações segmentárias.

Desse modo no coração do problema da complexidade existe um problema do princípio do pensamento, ou paradigma, e no coração do paradigma da complexidade existe o problema da insuficiência e da necessidade da lógica, do afrontamento “dialético” ou dialógico da contradição.

Parte B O segundo problema é o da epistemologia complexa, que, no final, tem

quase a mesma natureza do problema do conhecimento do conhecimento.Como conceber o conhecimento do conhecimento?

O problema poderia ser colocado em dois níveis: o nível empírico e o de conhecimento cientifico, que graças às verificações e experimentações múltiplas, induziria as teorias que “refletiam” o real. Num segundo nível essas teorias se fundamentariam na coerência lógica e assim fundamentariam sua verdade do sistema de idéias. Haveria, portanto, dois tronos, o trono da realidade empírica e o trono da verdade lógica. Os princípios da epistemologia complexa são complexos não existem tronos. Existem instancias que permitem controlar o conhecimento; cada uma delas é necessária e cada uma delas é insuficiente.

A primeira instancia é o espírito. O que é o espírito? Ë a atividade de qualquer coisa, de um órgão que se chama cérebro. A complexidade consiste em não reduzir o espírito ao cérebro, nem o cérebro ao espírito. O cérebro é hipercomplexo no sentido que é “triúnico”: o cérebro reptiliano (cio, agressão), o cérebro mamífero (afetividade) e o neocórtex-humano (inteligência lógica e conceitual), sem que exista predominância de um sobre o outro. Ao contrário, há um antagonismo entre essas três instancias, e algumas vezes é o impulso que governa a razão. Mas também no e através desse desequilibro surge a imaginação.

Nossas visões de mundo são as traduções do mundo. Aliás, aquilo que diferenciam a percepção da alucinação é a intercomunicação humana, e ainda existem casos de alucinação coletiva, por exemplo, a aparição em Fátima.

Mas a ciência estabelece um dialogo critico com a realidade, diálogo que a distingue das outras atividades cognitivas.

A teoria cognitiva, até mesmo a cientifica , é co-produzida pelo espírito humano e por uma realidade sócio-cultural. Isso não é suficiente.

Ë preciso também considerar os sistemas das idéias como realidades de um tipo particular, dotados de uma certa autonomia “objetiva” com relação aos espíritos que as alimentam e se alimentam delas.

Há necessidade de se elaborar uma ciência nova que seria indispensável ao conhecimento do conhecimento: a noologia, ciência das coisas do espírito, das entidades mitológicas e dos sistemas das idéias, concebidos na sua organização e no seu modo específico de ser.

Os problemas fundamentais da organização dos sistemas de idéias não revelam somente a lógica – há também aquilo que chamo de paradigmatologia. Isso significa que os sistemas de idéias obedecem a certos princípios fundamentais que são os princípios da associação ou da exclusão e que os comandam

Concluindo o que seria uma epistemologia complexa? É não mais a existência de uma instância soberana, o epistemólogo

que controla de maneira irredutível e irremediável todo o saber. Não existe trono soberano, mas uma pluralidade de instancias. Cada

uma dessas instâncias é decisiva; cada uma delas é insuficiente.

Mesmos nas condições mais singulares, mais localizadas, mais particulares, mais históricas da emergência de uma idéia, de uma teoria, não são prova de sua veracidade, nem da sua falsidade. Existe um principio de incerteza sobre o fundo de verdade. Ë o problema da epistemologia; é o problema da dialética; é o problema da verdade. Mas aí também a verdade foge. O dia em que criarem uma faculdade de noologia com o seu departamento de paradigmatologia, não será esse ponto central de onde se poderá promulgar a verdade.

A questão não é que cada um perca sua competência, mas que cada uma desenvolva suficiente para articulá-la a outras competências, que, ligadas em cadeia, formariam um circulo completo e dinâmico, o anel do conhecimento do conhecimento. Eis a problemática da epistemologia complexa e não a chave mestra da complexidade, cuja característica, infelizmente, é não fornecer a chave mestra. Capitulo 4 - O pensamento complexo, um pensamento que pensa 4.1 O paradigma da complexidade

Pensar a complexidade – esse é o maior desafio do pensamento contemporâneo que necessita de uma reforma no modo de pensar.

O pensamento científico clássico se edificou sobre três pilares: a “ordem”, a “separabilidade” e a “razão”, que se encontram hoje em dia abaladas pelo desenvolvimento.

Os pilares da ciência clássica

A noção de “ordem” se depreendia de uma concepção determinista e mecânica do mundo.

O pensamento complexo, longe de substituir a idéia de desordem ou aquele de ordem, visa a colocar em dialógica a ordem, a desordem e a organização.

O segundo pilar do pensamento clássico é a noção de separabilidade. Ele corresponde ao principio cartesiano segundo o qual é preciso, para estudar um fenômeno ou resolver um problema, decompô-lo em elementos simples.

O pensamento complexo não substitui a separabilidade pela inseparabilidade – ele convoca uma dialógica que utiliza o separável, mas o insere na inseparabilidade.

O terceiro pilar do nosso modo de pensar é da lógica indutivo-dedutivo-identitária, rejeição da contradição, identificada com a Razão absoluta.

O pensamento complexo convoca não ao abandono dessa lógica, mas a uma combinação da dialógica entre a sua utilização, segmento por segmento, e sua transgressão nos buracos negros onde ela pára de ser operacional.

As três teorias

Ordem, separabilidade e razão absoluta – esse três pilares, do nosso ponto de vista, foram, portanto abalados pelo desenvolvimento das ciências

contemporâneas. Assim como se conduzir num universo onde a ordem não é absoluta, ou a separabilidade é limitada, onde a lógica comporta buracos?

Esse é problema com o qual se defronta o pensamento da complexidade.

Uma primeira via de acesso é o que podemos chamar hoje em dia de "as três teorias”, que são:

A teoria da informação – uma ferramenta para o tratamento da incerteza, da surpresa, do inesperado. Esse conceito de informação permite entrar num universo onde existe ao mesmo tempo a ordem (a redundância), a desordem (o bruto), e extrair o novo (a informação). Além do mais, a informação pode assumir a forma organizadora (programadora) no seio de uma máquina cibernética. A informação torna-se, pois, aquilo que controla a energia e aquilo que dá autonomia a uma máquina.

A cibernética é uma teoria das maquinas autônomas. A idéia de retroação, introduzida por Norbert Weiner, rompe o princípio da causalidade linear e introduz a idéia de círculo causal. A age sobre B e B age, em retorno, sobre A. A causa age sobre o efeito e o efeito sobre a causa. A violência de um protagonista conduz a uma reação violenta que, por sua vez, leva a uma reação ainda mais violenta. Essas retroações inflacionistas ou estabilizadoras, são legiões de fenômenos econômicos, sociais, políticos ou psicológicos.

A teoria dos sistemas lança igualmente as bases de um pensamento de organização. A primeira lição sistêmica é que “é o que o todo é mais do que a soma das partes”. Acrescento que o todo é igualmente menos do que a soma das partes porque as partes podem ter qualidades que são inibidas pela organização do conjunto.

A teoria dos sistemas nos ajuda igualmente a pensar nas hierarquias dos níveis de organização, os subsistemas e as sua imbricações, etc.

O conjunto dessas três teorias nos introduz num universo dos fenômenos organizados em que a organização é feita com e contra a desordem.

A auto-organização

A essas três teorias é preciso acrescentar os desenvolvimentos conceituais trazidos pela idéia de auto-organização.

O pensamento da complexidade se apresenta, pois, como um edifício de muitos andares. A base está formada a partir das três teorias (informação, cibernética e sistemas) e comporta as ferramentas necessárias para uma teoria da organização. Em seguida, vem o segundo andar com as idéias de Von Neumann (Viver de morte, morrer de vida), Von Foerster (ordem pelo barulho) e Prigogine (termodinâmica dos processos irreversíveis) sobre a auto-organização. A esse edifício, pretendi trazer os elementos suplementares, que são: o principio dialógico, o de recursão e o hologramático.

O principio dialógico une dois princípios ou noções antagônicas que aparentemente deveriam se repelir simultaneamente, mas são indissociáveis e indispensáveis para a compreensão da mesma realidade. Como disse Pascal: “O contrario de uma verdade não é um erro, mas uma verdade ao contrário”, que Bohr traduz à sua maneira: “O contrário de uma verdade trivial é um erro

estúpido, mas o contrário de uma verdade profunda é sempre uma outra verdade profunda”.

O problema é, pois, unir as noções antagônicas para pensar os processos organizadores, produtivos e criadores no mundo complexo da vida e da historia humana.

O princípio da recursão organizacional vai além do principio da retroação (feedback); ele ultrapassa a noção de regulação para aquele de autoprodução e auto-organização. É um círculo gerador no qual os produtos e os efeitos são eles próprios produtores e causadores daquilo que os produz. Os indivíduos humanos produzem a sociedade em e mediante as suas interações, mas a sociedade, enquanto um todo emergente, produz a humanidade desses indivíduos trazendo-lhes a linguagem e a cultura.

O terceiro principio, o “hologramático”, enfim, coloca em evidencia esse aparente paradoxo de certos sistemas nos quais não somente a parte está no todo, mas o todo está na parte. Da mesma maneira, o individuo é uma parte da sociedade, mas a sociedade está presente em cada individuo enquanto todo através da sua linguagem, sua cultura, suas normas.

Como vemos o pensamento complexo propõe um certo número de ferramentas de pensamentos oriundos das três teorias, das concepções da auto-organização que desenvolve sua s próprias ferramentas. A caminhada consiste em fazer um ir e vir incessante entre certezas e incertezas, entre o elementar e o global, entre o separável e o inseparável. É preciso articular os princípios de ordem e desordem, da separação e da junção, da autonomia e da dependência, que estão em dialógica (complementares, concorrentes e antagônicos), no seio do universo.

O paradigma da complexidade pode ser enunciado não menos simplesmente do que o da simplificação: este último impõe disjuntar e reduzir; o paradigma da complexidade ordena juntar tudo e distinguir.

O fundo filosófico

Na época contemporânea, o pensamento complexo começa seu desenvolvimento na confluência de duas revoluções científicas. A primeira revolução introduziu com certeza a termodinâmica, a física quântica e a cosmofísica.

A segunda evolução científica, mais recente, ainda indetectada, é a revolução sistêmica nas ciências da terra e a ciência ecológica. Ela não encontrou ainda seu prolongamento epistemológico (que os meus próprios trabalhos anunciam).

O pensamento complexo é, pois, essencialmente o pensamento que trata com a incerteza e que é capaz de conceber a organização. Ë o pensamento capaz de reunir (complexus: aquilo que é tecido conjuntamente), de contextualizar, de globalizar, mas ao mesmo tempo, capaz de reconhecer o singular, o individual, o concreto.

4.2 A necessidade de um pensamento complexo

O conhecimento deve certamente utilizar a abstração, mas procurando construir por referencia do contexto. A compreensão dos dados particulares

necessita da ativação da inteligência geral e a mobilização dos conhecimentos de conjunto. Marcel Mauss dizia: “É preciso recompor o todo”. Acrescentamos: “é preciso mobilizar o todo. Certamente, é impossível conhecer tudo no mundo, bem como aprender suas transformações multiformes. Mas, por mais aleatória e difícil que seja, o conhecimento dos problemas-chave do mundo deve ser perseguido, sob pena da imbecilidade cognitiva. Tanto mais que hoje o contexto de todo o conhecimento político, econômico, antropológico, ecológico consiste o próprio mundo. Mas para articulá-las e organizá-las é preciso uma reforma do pensamento.

A falsa racionalidade

A inteligência parcelada, compartimentada, mecanista, disjuntiva, reducionista quebra o complexo do mundo em fragmentos disjuntos, fraciona problemas, separa aquilo que está unido, unidimensionaliza o multidimensional. Quanto mais se tornam multidimensionais, tanto mais existe a incapacidade de pensar na sua multidimensionalidade. Quanto mais progride a crise, mas progride a capacidade de se pensar na crise. Quanto mais os problemas se tornam planetários, mas eles se tornam impensáveis. Incapaz de visualizar o contexto e o complexo planetário, a inteligência cega torna-se inconsciente e irresponsável.

O propósito do pensamento complexo é simultaneamente reunir (contextualizar e globalizar), revelar o desafio da incerteza. Como?

Os setes princípios

Podemos antecipar sete princípios guias para pensar a complexidade. Esses princípios são complementares e interdependentes.

1 - O princípio sistêmico ou organizacional que liga o conhecimento das partes ao conhecimento do todo, segundo a forma indicada por Pascal: “Eu sustento que é impossível conceber o todo sem conhecer as partes e conhecer as partes sem conhecer o todo”. A idéia sistêmica que se opõe a idéia reducionista, é que “o todo é mais que a soma das partes”. A organização de um todo produz qualidades ou propriedades novas em relação às partes consideradas isoladamente: as emergências. Então, a organização do ser vivo produz qualidades desconhecidas no nível dos seus constituintes físico-químicos, Acrescentamos que o todo é igualmente menos do que a soma das partes, cujas qualidades são inibidas pela organização do conjunto.

2 - O princípio “hologramático” coloca em evidência esse aparente paradoxo dos sistemas complexos em que não somente a parte está no todo, mas em que o todo está inscrito na parte. A totalidade do patrimônio genético está inscrito em cada célula individual; a sociedade está presente em cada individuo, enquanto o todo através de sua linguagem, sua cultura, suas normas.

3 - O princípio do circulo retroativo, introduzido por Norbert Wiener, permite o conhecimento dos processos auto-reguladoras. Ele rompe o princípio da causalidade linear: a causa age sobre o efeito e o efeito sobre a causa.

4 - O princípio do circulo recursivo ultrapassa a noção de regulagem para autoprodução e auto-organização. Os indivíduos humanos produzem a

sociedade em e pelas suas interações, mas a sociedade, enquanto emergente, produz a humanidade desses indivíduos, trazendo-lhes a linguagem e a cultura.

5 - O princípio da auto-eco-organização: autonomia e dependência, vale evidentemente de maneira especifica, para os humanos que desenvolvem sua autonomia, dependendo da sua cultura, e para as sociedades que dependem do seu meio ambiente geoecológico. Um aspecto chave é que ela se regenera permanentemente a partir da morte das suas células segundo a formula de Heráclito “Viver de morte, morrer de vida” e que as duas idéias antagônicas de morte e vida são complementares, permanecendo antagônicas.

6 - O princípio dialógico acaba justamente de ser ilustrado pela fórmula heraclitiana. Ele une dois princípios ou noções que devem excluir-se um ao outro, mas são indissociáveis numa mesma realidade. A dialógica permite assumir racionalmente a associação de ações contraditórias para conceber um imenso fenômeno complexo. Nós próprios somo seres separados e autônomos que fazem parte de duas continuidades inseparáveis: a espécie e a sociedade. Quando consideramos a espécie ou a sociedade, o individuo desaparece; quando consideramos o indivíduo, a espécie e a sociedade desaparecem. O pensamento complexo assume dialogicamente os dois termos que tendem a se excluir um ao outro.

7 - O princípio da reintroduçao do conhecimento em todo conhecimento. Esse princípio opera a restauração do sujeito e torna presente a problemática cognitiva central: da percepção à teoria cientifica, todo conhecimento é uma reconstrução/tradução por um espírito/cérebro numa cultura e num tempo determinados. O paradigma da complexidade pode ser enunciado não menos simplesmente do que o da simplificação: este ultimo impõe a disjunção e redução; o paradigma da complexidade prescreve reunir tudo e distinguir.

Ao final de uma longa história...

O pensamento complexo é, portanto, essencialmente um pensamento que trata com a incerteza e que é capaz de conceber a organização. É o pensamento apto a reunir, contextualizar, globalizar, mas ao mesmo tempo a reconhecer o singular, o individual, o concreto.

Capitulo 5 - Sobre a modelização da complexidade

Reconhecer a complexidade compreendê-la, portanto apresentá-la de maneira inteligível para e pelo espírito humano conhecedor é propor uma inteligência desse conceito abstrato e, sem dúvida, artificial, novo, advindo paradoxalmente para a história da Ciência.

Quanto mais uma situação for percebida como complexa, maior deverá ser a inteligência que será solicitada para dominá-la! E vice-versa. A inteligência da complexidade a complexidade da inteligência!

5.1 Inteligência da complexidade, complexidade da inteligência Da complexidade

Quaisquer que sejam as definições, a complexidade surpreende pela irrealidade, ou melhor, pela irreversibilidade do seu conteúdo.

Só podemos defini-la como a propriedade de uma representação elaborada por uma ação cognitiva, Ela é, pois, necessariamente dependente, a priori, desse modo de construção da representação, processo cognitivo por excelência.

Da inteligência

Se a complexidade é o produto de um exercício cognitivo ( produzir o inteligível), o reconhecimento desse exercício nos diz respeito imediatamente: o produto é muito dependente de um produtor para que nós possamos disjuntá-los por muito tempo.

Assumindo a Inteligência complexa, já que não é totalmente previsível ou antecipável, ainda que inteligível nas suas manifestações, podemos agora propor a enriquecer nossa inteligência funcional de inteligência “funcionante e evoluinte” ( ou se adapta ou se equilibra). O exercício nos indicará também algumas pistas pelas quais caracterizamos essa consciência na ação e que são aquelas pelas quais procuramos reconhecer a Complexidade.

5.2 O exercício da inteligência: a organização

“No princípio era ação”

Da inteligência do movimento à inteligência da ação

Essa concepção da percepção e da ação de perceber e de modelizar os fenômenos complexos, e a da Inteligência tentando aprendê-los através da sua “Ação”, e não através do seu “Estado”, suscita necessariamente um empreendimento da inteligência da ação.

A conjunção dos esforços dos pesquisadores na ciência da vida e nas ciências da engenharia vai, em alguns anos, conduzir a uma conceitualização instrumental da Ação, articulando-se em torno da noção central de Organização e mais especificamente da Organização-Método: a Organização entendida como o conceito metodológico fundamental de toda a modelização das ações ( e portanto dos fenômenos discernidos como ativos pelo seu comportamento e pela sua evolução, observados e rebatidos).

A Organização-Método: as grandes conjunções

A concepção de um universo constituído de estados, de formas invariantes, percebidos tão complexamente, incita o modelizador a fazer da separação, da disjunção, da análise o instrumento privilegiado de sua ação de apresentação para inteligibilidade.

A. Bognadov: “Constatou-se depois de muito tempo que a atividade humana, tanto prática como cognitiva, é juntar e separar... mas esses dois atos não desempenham o mesmo papel na atividade humana: um dos dois é primário; o outro, derivado... O ato de juntar é a base da formulação... que por sua vez é a junção de complexos. Nós o chamaremos de conjunção”. “Na base do mecanismo de modelização sistêmica (tecnológica), existe a conjunção dos complexos”.

O exercício da inteligibilidade da Complexidade pela Organização-Método, que aqui nos diz respeito, levou a alguns importantes enunciados que lembramos sem comentá-los, neste momento.

A organização, conjunto das ações

Inter-ação, Transação, Retro-ação e Re-ação

A organização: conjunção de um observado e de um observador

A compreensão do sistema observado (a complexidade) é da mesma natureza que aquela do sistema observador (a inteligência): são um e outro organização.

A organização, conjunção da ordem e da desordem

A complexidade é a conjunção do ordenado previsível e do desordenado não-previsível, de uma estrutura espacial instantânea, visível e descritível, de programas de comportamento invisíveis e eventualmente não previsíveis: é essa combinação que denominamos também de organização.

A organização, conjunção do autônomo e do solidário

O sistema autônomo é aquele que comporta referindo-se a seus próprios projetos e, é também,

Aquele que depende de suas relações com os ambientes, com os quais é solidário, ambientes talvez determinados. Essa ação é a organização.

A organização, conjunção do articulado e do jogo

A ação implica qualquer forma de articulação inteligível. O exercício da articulação implica em qualquer forma de jogo (ou de intermediação), de “liberdade de ação”. A existência desse jogo por suscitar a ocorrência de comportamentos imprevisíveis e inteligíveis. Essa conjunção do mecanismo algorítmico e da flexibilidade heurística se entende por organização.

A organização é teleológica, conjunção de um projeto e de um contexto

A ação suscitada pelo caráter de um projeto no meio ambiente torna-se teleológica, é a organização.

A organização, conjunção do organizado e do organizador

P.Valéry, em 1920: “a coisa organizada, o produto dessa organização e o organizante são inseparáveis”. É essa inseparabilidade (frequentemente insuportável para os matemáticos) que exprime precisamente o conceito de organização.

A organização, conjunção do sincrônico e do diacrônico

Retomemos J.Piaget: “... O conceito de organização, noção central,...” ao mesmo tempo sincrônico (a totalidade racional do organismo acabado) e diacrônico (sucessão de reequilibração que caracteriza qualquer desenvolvimento). Idéia fundamental, concluirá J. Piaget, a organização!

A organização, conjunção da informação e da ação

A matéria é para a energia o que a informação é para a organização.

A Organização-Método: manter e reunir e produzir

A organização é a ação (e o resultado dessa ação) de, ao mesmo tempo, manter, reunir e produzir (ou Transformar).

Edgar Morin proporá sintetiza r a representação dessas conjunções recursivas, constitutivas de Organização, por um paradigma que se verifica bastante operacional para a Inteligência modelizadora: a AUTO-ECO-RE-ORGANIZAÇÃO, arquétipo e desse modo ponto de referencia das três funções constitutivas (manter a AUTO-nomia, pelas ECO-relações e as RE-produções).

O aparelho conceitual construído em torno da idéia central de organização-método que acabamos de descrever sucintamente deve ser colocado agora em ação por uma inteligência ativa, propondo-se modelizar os fenômenos reconhecidos como complexos.

5.3 Complexidade artificial e os jogos da inteligência

A representação da complexidade por uma inteligência que reconhece a si própria como complexa (primeira parte) é concebível como referencia à modelização da organização, conceito cuja complexidade aparente dissimula a inteligibilidade, visto que se demonstra economicamente descritível no seio do Paradigma Sistêmico (segunda parte). O processo pelo qual uma inteligência pode elaborar os modelos operacionais de um fenômeno considerado complexo, não somente como, mas também por sua organização, pode agora ser descrito em linhas gerais: é preciso introduzir os conceitos derivados de códigos e esquemas, de símbolos e de informação, de computação e de programação, de memorização e de traços, de desenho e de cognição.

A codificação da complexidade

É o processo de produção e de reconhecimento dos símbolos, ou dos códigos, ou dos patterns, ou dos signos e das combinações dos signos, que se

verifica na base do processo de modelização da complexidade por uma inteligência.

Sobre esse processo de construção de símbolos por uma organização inteligente, vai pouco a pouco se desenvolver, um corpo de pesquisas a ser reconhecidas como decisivas, não somente para os desenvolvimentos da Inteligência Artificial, em andamento, mas também para a instrumentalização da modelização da Complexidade.

O código das ações: a computação

A codificação da computação é usualmente apresentada pelos programas que simulam o comportamento de um sistema de estruturas simbólicas. Consideramos que tais programas reproduzem artificialmente o comportamento e a transformação de um dado sustentamos como legitimamente inteligente!

Da computação à cognição

H. Von Foerster propõe uma definição da cognição que ele justifica satisfatoriamente:

Cognição computação da descrição de uma realidade Essa realidade percebida, sendo ela própria o resultado de uma

representação simbólica (uma imagem), é oriunda de algum processo de descrição. Podemos descrever:

Cognição computação da descrição de Uma descrição, por definição, é o resultado de um processo de

computação, o que se interpreta por esse “teorema” um pouco provocador: Cognição computação de Dispomos de um modelo de inteligência concebido como uma ação ( a

ação de modelizar), que se reconhece ao mesmo tempo inteligível e manipulável: o modelo de uma organização suscetível de se transformar... até mesmo de se complexificar!

Inteligência cognitiva: registro e programação

As modalidades pelas quais um sistema inteligente elabora, manipula e gera as representações das ações que ele percebe ( ou seleciona pela identificação das diferenças) podem ser representadas pelo paradigma simoniano do Sistema de Tratamento da Informação. Edgar Morin mostra cuidadosamente a isoformia necessária aos paradigmas do Sistema de Tratamento da Informação e o da Auto-Eco-Re-Organização. Ele denominou cuidadosamente esse paradigma:

A auto-re-organização-computacional-informacional e comunicacional Registros e programação em níveis múltiplos A modelização inteligível da complexidade

O estabelecimento de um modelo inteligível de um sistema considerado complexo requer a caracterização da sua ação, o contexto no qual o entendemos, a teleologia (os projetos modificadores) com aos quais essa ação pode ser interpretada.

Em seguida consideremos as modalidades plausíveis pelas quais ele poderia registrar ou representar pelos sistemas de símbolos registráveis, as representações que ele pode construir de sua atividade no seio de seu sistema potencial de memorização.

Conclusão - Da análise, da complicação à concepção da complexidade

A complexidade é ainda freqüentemente um conceito incongruente no seio da pesquisa cientifica contemporânea que se oferece como objeto: reduzi-la para persegui-la.

É preciso reconhecer que tanta a Complexidade, como a Inteligência, é suscetível de ser inteligível praticável quando concordamos em concebê-la evolutiva para suscitar, passo a passo, as ações e os possíveis projetos. A Ciência da Complexidade é talvez a ciência da concepção dos possíveis, e a inteligência, “a faculdade de pensar aquilo que poderia ser tão bom”, dizia R. Musil.

O caráter coletivo e pragmático da inteligência da complexidade se assegura: só é inteligível aquilo que é praticamente comunicável, e, portanto, co-memoralizável num “tecido de relações... o Complexus...” ciente que não existe final para adaptação, já que as soluções conduzem sempre à ação e as novas dificuldades, a novos problemas. Edgar Morin nos incitará a essa inteligência da “ecologia da ação coletiva”, seguindo Montaigne, lembrando: “Ei-nos diante da roda de fiar...”. Posfácio

“Trabalhar para bem pensar...” - Pragmática e ética da compreensão “Trabalhemos, pois para pensar bem” é hoje em dia o lema mais

pertinente para exprimir essa inteligência da ação humana, estendendo sua práxis; em outras palavras, no seu empenho de tentar compreender “aquilo que ela faz”, de se perceber errático e não fatal, mas intencional, deliberada, consciente ao menos de sua própria cegueira e da incerteza de seus efeitos nos contextos nos quais ela atua.

Um entendimento que quer “compreender”, apreender o pensamento na ação e a ação no pensamento; um entendimento quem seja “compreensão” : Edgar Morin, meditando sobre a inteligível complexidade e a pragmática construção dos nossos empreendimentos, dos conhecimentos, das condições, dos nossos atos, convida-nos a uma “ética da compreensão.. uma ética que

não impõe uma visão maniqueísta do mundo, ética com fundamento somente em si própria, mas que tem necessidade de apoio exterior a ela própria”.

Pragmática da complexidade, inseparabilidade do “fato”, que privilegiava o cientifico, e do “fazer”, que privilegiava o prático: não podemos em todos os domínios em que estamos engajados, os da pesquisa e os do ensino, os da mediação social e os das responsabilidades econômicas e cidadãs, atuar juntos para “trabalhar para pensar bem”, para construir esse próximo passo que constrói o nosso caminho?