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cidade resto: o espaço (da) roupa e o que [sobre]vive entre Baixa dos Sapateiros e Parque Novo Mundo

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cidade resto: o espaço (da) roupa e o que [sobre]vive entre

Baixa dos Sapateiros e Parque Novo Mundo

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE ARQUITETURA

Programa Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo

cidade resto:

o espaço (da) roupa e o que [sobre]vive entre Baixa dos

Sapateiros e Parque Novo Mundo

Marina Carmello Cunha

SALVADOR

2014

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Marina Carmello Cunha

cidade resto:

o espaço (da) roupa e o que [sobre]vive entre Baixa dos

Sapateiros e Parque Novo Mundo

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Arquitetura em Urbanismo.

Orientadora: Profª. Dra. Thais de Bhanthumchinda Portela Coorientadora: Profª. Dra. Paola Berenstein Jacques

Salvador 2014

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TERMO DE APROVAÇÃO

Marina Carmello Cunha

cidade resto:

o espaço (da) roupa e o que [sobre]vive entre Baixa dos

Sapateiros e Parque Novo Mundo

Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, pela seguinte banca examinadora:

Profª. Dra. Thais de Bhanthumchinda Portela PPGAU/UFBA - Orientadora Profª Dra. Paola Berenstein Jacques PPGAU/UFBA – Coorientadora Profª Dra. Ana Carolina de Souza Bierrenbach PPGAU/UFBA Profª Dra. Cristiane Ferreira Mesquita PPGD/UAM

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[Para minha amiga , e

os tantos outros que falam

através dela, eternizada nessa

costura de palavras. Com o amor e

a dor que cabem ao encontro]

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Agradecimentos

Agradeço a todos com quem me emaranhei por esses caminhos. Por me oferecerem

almoços e cafés, abrirem as portas de suas casas, doarem tempo, história e vida a esse

trajeto. À tudo que cabe dentro desse texto torto, como disse certo dia minha Mana

Preta, Pri: todos os afetos, ebós, choros e risos, todas as urgências, atrasos e o que

mais couber.

Às minhas avós, pelas linhas.

Aos distantes, mas sempre presentes Dé, Fabis e Nan.

Ao meu mestre e boss Cassio Brasil, que eu vi trabalhar lindamente costurando vida e

arte. Que me apresentou o Parque Novo Mundo e toda sua magia invisível.

Aos Borean, minha família porteña. Força e carinho por todos os lados.

Ao querido Zé, companheiro dos momentos mais difíceis e divertidos. Meu amor e

gratidão infinitos.

Aos amigos-irmãos caipiras: Mama, Za, Du, Fe e Bidi que tem o dom de transformar a

vida em felicidade. Obrigada por serem tudo o que são! Quanto amor!

À pequena família que tive a alegria de construir em Salvador: Nini, Rê, Pri, TT, Jana,

Marcelo, Sara, Lu, Jujuba e o Barrigo, Gus, Tia Thai, Pablito, Clarita, OzLindo, Tai, Titi e

vovó Suda. Seria impossível sem vocês!

À minha amiga Lis, pelas descobertas, as trocas e o amor todo. E à sua família, que

virou um pouco minha.

À Carol Bierrenbach e Cris Mesquita, pela amizade, confiança e os caminhos abertos

com delicadeza.

À Paola por caminhar junto, apontar caminhos e fazer comentários certeiros.

À Tai por aceitar remar comigo e fazer isso da maneira mais leve e bonita que poderia

acontecer. Muito amor e gratidão.

À minha família, essa ilha para onde remo o barquinho sempre que preciso de terra

firme. Sem vocês perderia o prumo!

E à cidade do Salvador, que me transformou infinitamente.

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Resumo

Qual é a relação do corpo com o espaço urbano? E quais são as interferências e

influências das roupas nessa relação? Através de conceitos como o do homem em

farrapos, de Flávio de Carvalho, do trapeiro, de Walter Benjamin, das cinco

peles, de Hundertwasser, da antropofagia, em Oswald de Andrade e outros

autores e do paradigma indiciário, de Carlos Ginzburg, é que este trabalho se

faz, enquanto uma catação de rastros, sobras, trapos e restos de roupa, de cidade e

de gente na intenção de trazer à tona pistas que nos levem a possíveis respostas a

essas perguntas, vestígios que encontramos entre a Baixa dos Sapateiros, em Salvador

e o Parque Novo Mundo, em São Paulo. Essa costura invisível nos leva a conhecer o

que chamamos cidade resto, um lugar agenciado por sujeitos que vivem dos

restos de outros sujeitos.

Palavras-chave: cidade; resto; roupa; corpo.

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Abstract

What is the relation between body and urban space? Which are the influences

and interferences of the clothes in this relation? Through concepts such as the man

in rags, from Flávio de Carvalho, the ragpicker, from Walter Benjamin, the

five skins, from Hundertwasser, the anthropophagy in Oswald de Andrade

and other authors and the evidential paradigm, by Carlos Ginzburg, this work

is designed. Through the scavenging of traces, remains, rags and remnants of clothing,

city and people, we intend to bring up clues that lead us to possible answers to these

questions where we can find this traces between Baixa dos Sapateiros, in Salvador and

Parque Novo Mundo, in São Paulo. This invisible sewing leads us to comprehend what

we call the city of remains, a place intermediated by subjects who live within

the remains of other subjects.

Palavras-chave: city; remain; clothes; body.

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Lista de figuras

Fig.1, 2 e 3 {32}

Peças da linha ‘0’, de Martin Margiela, das coleções Primavera-

Verão 2007, Outono-Inverno 2005 e Primavera-Verão 2008,

respectivamente. Fonte:

http://maisonmartinmargiela.tumblr.com/collections#/en_US/10_arc

hives/01_coll_-artisanal-/09_2008_pe/ Acesso em: 29 de out. de

2013.

Fig.4, 5 e 6 {33}

Peças da linha ‘0’, de Martin Margiela, das coleções Outono-

Inverno 2008, Primavera-Verão 2007 e Outono-Inverno 2006,

respectivamente. Fonte:

http://maisonmartinmargiela.tumblr.com/collections#/en_US/10_arc

hives/01_coll_-artisanal-/09_2008_pe/ Acesso em: 29 de out. de

2013.

Fig.7 {34}

Imagem retirada de frame do filme Balzac et la Petite Tailleuse

Chinoise, de Dai Sijie, 2012.

Fig.8 {38}

Ticket de entrada para o Ahsan Manzil Museum, em Bangladesh.

Fonte: arquivo pessoal.

Fig.9 {42}

Imagem retirada de frame do documentário Les Glaneurs et la

Glaneuse, de Agnès Varda, 2000.

Fig.10 {46}

Loja da Baixa dos Sapateiros, em Salvador, onde a primeira pista

da pesquisa foi encontrada. Foto de arquivo pessoal, 2012.

Fig.11 {50}

Garagem de roupas no Parque Novo Mundo e seus trabalhadores.

Foto retirada do Google Maps, em setembro de 2012.

Fig.12 {51}

Ilustração de Hundertwasser representando as cinco peles. Fonte:

RESTANY, 2003, p.15.

Fig.13 {57}

Manequins da loja de roupas usadas na Baixa dos Sapateiros, em

Salvador – BA. Foto de arquivo pessoal, 2012.

Fig.14 {61}

Garagem de roupas no Parque Novo Mundo e seus trabalhadores.

Fonte: Google Maps, setembro de 2012.

Fig.15 {63}

Entrada do ateliê da Costureirinha na Baixa dos Sapateiros, em

Salvador – BA. Foto de arquivo pessoal, 2012.

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Fig.16 {64}

Misterioso corredor de entrada do ateliê da Costureirinha na

Baixa dos Sapateiros, em Salvador – BA. Foto de arquivo pessoal,

2012.

Fig.17 e 18 {70}

Local de trabalho da Costureirinha e ela mostrando um de seus

muitos truques: a tesoura imantada que atrai alfinetes, em

Salvador / BA. Fotos de arquivo pessoal, 2012.

Fig.19 {70}

Corredor do ateliê da Costureirinha cheio de bolsas e mochilas

consertadas por ela, em Salvador / BA. Foto de arquivo pessoal,

2012.

Fig.20 e 21 {72}

O Catador mostra peça de roupa ainda sem uso e etiquetada, São

Paulo / SP. Foto de arquivo pessoal, 2013.

Fig.22 {73}

Em frente à loja do Catador roupas são jogadas na calçada para

serem recolhidas pelo Rueiro ou pelo caminhão de lixo da

Prefeitura, São Paulo / SP. Foto de arquivo pessoal, 2013.

Fig.23 e 24 {80}

Local de trabalho da Costureirinha na Baixa dos Sapateiros, em

Salvador / BA. Foto de arquivo pessoal, 2013.

Fig.25, 26 e 27 {91}

Fotografias de Isa Marcelli, Sem Título, 2011. Disponível em:

https://www.flickr.com/photos/isamarcelli/sets/72157627505306353

Fig.28 {95}

Cartografia bordada da dimensão da cidade de Salvador para a

Costureirinha baseada em sua concepção temporal. Foto de acervo

pessoal.

Fig.29 {95}

Leitura das localidades da Costureirinha aos moldes

urbanísticos, baseada em uma concepção espacial. Mapa retirado

do site: http://www.meuclub.net/wp-content/uploads/2012/03/mapa-

de-salvador-veja-aqui.jpg, com alterações e marcações nossas.

Fig.30 {99}

Cartografia bordada da Baixa dos Sapateiros a partir das

relações da Costureirinha. Foto de arquivo pessoal.

Fig.31 {102}

Cartografia bordada do Parque Novo Mundo a partir das relações

do Catador. Foto de arquivo pessoal.

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Sumário

SOBRE A ESCRITA

o início {14}

“canteiro de obras a céu aberto” {15}

GUIA DE LEITURA {21}

capítulo I

PUXANDO FIOS EMARANHADOS: CATAÇÃO DE CONCEITOS {22}

a catação {23}

Desalinhavo#1 {29}

puxando fios: Martin Margiela nos apresenta à moda {31}

Desalinhavo#2 {34}

quando moda e cidade se encontram {35}

A beirada {37}

o resto {38}

Desalinhavo#3 {38}

o corpo e o resto ou o “corpo-resto” {40}

Desalinhavo#4 {41}

o espaço (da) roupa {45}

capítulo II

ALINHAVANDO TRAPOS: QUANDO SE VAI À RUA {54}

vestígios e vínculos:

primeiras pistas {56} memória {58}

Desalinhavo#5 {60}

das desculpas e táticas {62}

Desalinhavo#6 {64}

os aliados {66}

fardo de miudezas ou o “dia-a-dia da roupa usada” {67}

Desalinhavo#7 {68}

vão-se os dedos, ficam os anéis {74}

Desalinhavo#sem número {75}

o lugar e o tempo {72}

Desalinhavo#8 {79}

o Rueiro e suas múltiplas facetas {80}

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capítulo III

COSTURAS: QUANDO SE COLOCAM AS AGULHAS À PROVA {85}

Desalinhavo#9 {87}

ferramentas e ofícios {87}

Desalinhavo#10 {90}

o clarão da morte {93}

o mapa e o mapeado {96}

em outro canto, o mesmo conto? {100}

O ARREMATE FINAL: CIDADE RESTO OU RESTO DE CIDADE? {105}

referências bibliográficas {108}

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“Vale a pena em certas horas do dia ou

da noite observar objetos úteis em

repouso: rodas que atravessaram

empoeiradas e longas distâncias, com sua

enorme carga de plantações ou minério;

sacos de carvão; barris; cestas; os

cabos e as alças das ferramentas de

carpinteiro...As superfícies gastas, o

gasto infligido por mãos humanas, as

emanações às vezes trágicas, sempre

patéticas, desses objetos dão à

realidade um magnetismo que não deveria

ser ridicularizado. Podemos perceber

neles nossa nebulosa impureza, a

afinidade por grupos, o uso e a

obsolescência dos materiais, a marca de

uma mão ou de um pé, a constância de uma

presença humana que permeia toda a

superfície. Esta é a poesia que nós

buscamos.”

(NERUDA, 1983 apud STALYBRASS, 2008, p. 31)

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SOBRE A ESCRITA

o início

Porque alguém com formação em Design de Moda busca investigar suas

questões em uma Faculdade de Arquitetura e Urbanismo? Em 2006, visitando a 27ª

Bienal de São Paulo pela segunda vez das quatro em que fui, assisti a um vídeo

chamado “Olive Green”, de uma artista peruana chamada Narda Alvarado. No vídeo,

uma fila de homens vestidos com fardas militares levava um prato nas mãos e

caminhava como se fosse atravessar uma rua pela faixa de pedestres. Quando o

primeiro homem da fila chegava ao outro lado da rua, todos eles paravam em cima da

faixa, se viravam de frente para os motoristas dos carros parados na via, tiravam do

prato uma azeitona verde e a comiam lentamente roçando o caroço com os dentes até

não sobrar nada comestível da iguaria. Quando o último dos homens fardados

colocava o caroço no prato eles seguiam seu caminho e terminavam de atravessar a

rua. Os motoristas, por sua vez, assistindo a tal cena que bloqueava sua passagem,

buzinavam e gritavam indignados. Não havia paciência para esperar nem mesmo o

tempo de se saborear uma azeitona. A Bienal, que tinha como tema: “Como viver

junto?”, me provocava em meu primeiro ano morando na grande capital do estado de

São Paulo. Naquela tarde foi que percebi o quanto vivíamos acelerados e eu, uma

estudante de primeiro ano de Design de Moda entrei em crise com a cidade e,

consequentemente com meu objeto de estudo, a roupa e seus modos de fazer.

Somente alguns anos depois fui entender o que era o urbanismo em sua

constituição, sua base modernista, sua faceta mais desenvolvida e qual era a relação

dele com aquele vídeo de militares e azeitonas. O tempo do mastigar lento está fora

dos contornos espaciais e temporais propostos pelo urbano planejado nos moldes

desse urbanismo citado acima. A faixa de pedestres é feita para se atravessar, a rua é

feita para que os carros possam seguir um fluxo corrente e tudo deve se encaixar

harmonicamente para que a cidade funcione sem problemas. Mas a questão “Como

viver junto?” nos traz outras perguntas que passam por lugares mais subjetivos e

profundos em relação à organização social e o cotidiano dos sujeitos na cidade.

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Questões estas que, por vezes, nos dão pistas da existência de lugares e

acontecimentos inalcançáveis por esse pensamento linear e formal. Foram essas

questões, levadas a diante nessa dissertação, que me fizeram chegar a um mestrado

em Urbanismo. Minha crise com a cidade se desdobrou em perguntas e curiosidades

que passeiam por uma questão principal: o que cabe e o que não cabe nos moldes

desse urbanismo? Como não poderia deixar de ser, um dos objetos fundamentais da

pesquisa é a roupa, porém ela não está sozinha, vem acompanhada de suas duas

camadas mais próximas, o corpo e o espaço por onde circula, nesse caso, a cidade.

Através da roupa, suas camadas e dos fios teóricos e experienciais que nos permite

puxar é que pensamos o urbanismo e seu alcance espacial, temporal e cotidiano. Ao

contrário dos caminhos lineares ou radiais pensados por essa disciplina, essa pesquisa

segue tortuosa e sem limites determinados.

“canteiro de obras a céu aberto”

“eu acreditava entrar no

porto, mas... fui jogado

novamente em pleno mar” 1

Buscar um porto se faz desafio no viver. Quando se encontra um, a felicidade

da estabilidade contrária ao marear das ondas, parece não durar muito tempo. Em um

diálogo virtual entre Piracicaba/SP e Barcelona/Espanha se encontram, no tatear da

conversa, algumas interpretações empíricas da frase com a qual decidimos introduzir

esse texto:

- parece que ando assim o tempo todo...no fazer campo, na vida, em

tudo...(risos)

- mas o que você acha disso? tá sendo bom ser jogada em pleno mar

o tempo todo?

- por enquanto tô achando bom sim. meio cansativo né? mas

bom...eu interpretei como se fosse assim, a cada porto, um monte de

outras coisas a serem descobertas....um mar de coisas...

1 LEIBNIZ, Gottfried. Novo sistema da natureza, par.12 In DELEUZE, G.; GUATTARI, F., 2010,

p.30.

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- humm...essa é uma boa interpretação...e dá pra pensar que ser

jogado no mar é também questionar tudo que a gente vê como base

pra gente, né?

- é, essa também é uma boa interpretação...duvidar do porto..

- mas acho que são interpretações complementares. e também

pensar na transitoriedade das coisas, e como a gente não pode

controlar nada.

- sim, complementares...exatamente...nada, nossa! nada mesmo!2

Duvidar do porto, ter ciência do descontrole das coisas, ver em cada atraque

uma nova perspectiva para olhar o mar. Assim se tentou levar esta pesquisa o tempo

todo. A pesquisadora, mareada, tateando com os pés a linha onde se equilibra, sem

medo da queda (cair em pleno mar pode ser delicioso ou extremamente perigoso),

pois, enquanto pesquisadora é sempre preciso assumir o risco. O chão estável do

porto, que poucas vezes esteve sob os pés desta pesquisa, teve o tempo todo o papel

de lançador do olhar para o horizonte3. Pelo trajeto da investigação, o resultado não

poderia ser outro: esse oscilar entre solo firme e mar aberto. A escrita não poderia se

fazer diferente: cambiável, mutante, mareada, em vai-e-vem.

Por isso, é necessário introduzir esse texto dando destaque principalmente à

falta de eixo ou cronologia nesta escrita. Os fatos dos quais aqui falamos não

necessariamente aconteceram na ordem tal em que foram organizados, os mergulhos

se confundem e as linhas dão nós. Nem mesmo os conceitos foram encontrados na

ordem que estão postos, pois a escrita quase sempre não tem fim, está em processo,

em movimento, é este porto que te lança o tempo todo de volta ao mar. É, muitas

vezes, um texto fragmentado, que desacredita da totalidade das coisas e prefere fazer

a tentativa de trazer as partes diversas de um todo heterogêneo que é a própria

pesquisa. Portanto, encarando esse trajeto fragmentado, enredado por desvios e rotas

de fuga, conclui-se que, se houvesse mais tempo (ou menos), a escrita seria outra, a

dissertação diferente. É então, um processo vivo e sem fim, que não acaba mesmo

2 Este diálogo foi feito em novembro de 2013 via Skype entre duas amigas pesquisadoras, as

duas se interessam pelos restos urbanos e veem na pesquisa um lugar tão desafiante quanto a vida. 3 Aqui preferimos conceber o horizonte pelas palavras de Deleuze e Guattari em O que é a

filosofia?: “Não o horizonte relativo que funciona como um limite, muda com um observador e engloba estados de coisas observáveis, mas o horizonte absoluto, independente de todo observador, e que torna o acontecimento como conceito independente de um estado de coisas visível em que ele se efetuaria” (1992, p.46).

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depois da ilusória finalização da escrita. Deste modo, esta, configurada aqui, neste

momento, é um resultado de inúmeros afetos que permitiram vir à tona diversas

questões sobre a vivência numa cidade, sobre o sistema da moda, o cotidiano, o

capitalismo, a hegemonia e a micropolítica. Essas questões postas culminaram no

encontro de um prumo, mesmo que nunca certeiro, mas um prumo para onde mirar: o

resto urbano.

Apesar de usarmos como recurso de escrita a criação de personagens que nos

ajudam a dissertar, este texto não é uma ficção. Porém, seguindo os pensamentos de

Foucault, para criar esse discurso na tentativa de desvendar uma suposta cidade

resto, a qual, imaginamos, pode possibilitar a descoberta de outros modos4 de

existir no espaço urbano, decidimos “ficcionar”. Essa é, então, uma discussão

acadêmica, baseada em acontecimentos e descobertas reais, abordados de forma a

configurar um discurso, uma cartografia e levantar questões possíveis sobre as

cidades. Segundo Araújo,

“Em 1977, sendo entrevistado por Lucette Finas para La Quinzaine

Littéraire, Foucault é inquirido sobre o aspecto ficcional

frequentemente associado a seus textos. Sua resposta: ‘Quanto ao

problema da ficção, ele é para mim um problema muito importante;

eu me dou conta claramente que nunca escrevi nada senão ficções.

Eu não quero dizer por isso que estas estejam fora da verdade. Me

parece que é possível aí fazer trabalhar a ficção na verdade, induzir

efeitos de verdade com um discurso de ficção, e de fazê-lo de tal

forma que o discurso de verdade suscite, fabrique qualquer coisa que

não existe ainda, e assim ‘ficcione’’”. (2011, p.58)

Foi nesse sentido então, que “ficcionar”, virou nossa estratégia de escrita. Criar

um discurso “na fronteira entre o dado e o criado” (PINTO, 2012, p.198), utilizando-se

de recursos como a memória, a fotografia e o registro escrito, entendendo que ciência

e ficção, como pensadas por Certeau, não existem em suas “formas ‘puras’, mas tão

somente nessa estranha mistura” (PINTO, 2012, p.198), nessa existência não

delimitada e contaminada a todo o tempo.

4 Outros modos estes que possivelmente burlariam, desviariam e se diferenciariam do modo

padronizado e ideal imposto pelo pensamento hegemônico, higienizado e linear desencadeado a partir do capitalismo e do pensamento moderno.

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O “ficcionar” deve ser entendido aqui como atitude literária que acontece com

o intuito de favorecer a experiência de leitura, é um modo de “opor-se a totalizar”

(ARAÚJO, 2011, p. 61), “afinal, a ficção enquanto geradora de efeitos de verdade é

uma intervenção na ‘política do pensamento’” (ARAÚJO, 2011, p. 61). “Ficcionar” é

então “produzir efeitos de verdade”, é a tentativa de provocar no leitor uma

“experiência de liberdade, de autogoverno” (ARAÚJO, 2011, p. 70). É um ato

processual, experimental e indefinido. Com o qual se pretende dar ao leitor a

possibilidade de outras formas de leitura e entendimento da verdade.

É através de conceitos como o do homem em farrapos, de Flávio de

Carvalho, do trapeiro, de Walter Benjamin, das cinco peles, de

Hundertwasser, da antropofagia, em Oswald de Andrade e outros autores, do

paradigma indiciário, de Carlos Ginzburg e de outros conceitos desenvolvidos

pelo próprio trabalho como o da cidade resto, do espaço da roupa e do

espaço-roupa, que esta pesquisa e esse texto se pretendem fazer, enquanto uma

catação de rastros, sobras, trapos e restos de roupa, de cidade e de gente na

intenção de trazer a tona um alinhavo5 entre Salvador e São Paulo. Uma tentativa

incessante de que “os procedimentos de pesquisar/produzir/escrever não se separem

do próprio objeto e configurem uma viva tessitura, uma pesquisa como ‘canteiro de

obras a céu aberto’” 6.

No entanto, a forma como se apresenta o texto, foi pensada de maneira que

facilite o entendimento de nosso assunto, metodologia e objeto. Por isso, iniciamos a

dissertação a partir de uma catação de conceitos teóricos que nos ajudarão a

5 Alinhavar se diz do ato de se costurar com pontos largos e à mão o que depois deve ser

costurado com pontos mais estreitos. É fazer uma costura “temporária” que depois deve ser reforçada por outra. Alinhavar a escrita ou o mapa é ainda rascunhar o pensamento e a experiência. É juntar acontecimentos a pontos largos, pontos tais que após serem feitos, observados e aprovados podem ser reforçados por uma costura definitiva de pensamento, uma reflexão mais madura, um traçado mais certeiro.

6 Trecho retirado do parecer de Cristiane Mesquita para nossa primeira banca de qualificação. A frase “canteiro de obras a céu aberto” teria sido dita por Rosane Preciosa em referência a alguém que Cristiane não se lembrava. Ficamos com a “imagem” da frase de Preciosa, como pretendia Cristiane em seu parecer. Para conhecer mais de Mesquita, ver: MESQUITA, Cristiane [tese]. Políticas do vestir: recortes em viés. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2008. Para conhecer mais de Preciosa, ver: PRECIOSA, Rosane. Produção Estética – notas sobre roupas, sujeitos e modos de vida. São Paulo: Editora Anhembi Morumbi, 2005.

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entender o segundo capítulo, que consiste na escrita de nossa prática pela cidade, o

fazer campo. Porém, por serem indomados os fios dessa pesquisa, algumas vezes o

primeiro capítulo é atravessado por questões a serem desenvolvidas mais a diante, no

capítulo seguinte e no segundo, questões tratadas no primeiro atravessam o texto

como se quisessem puxar à memória o que já foi trazido ao leitor. Mais ao final, como

se o primeiro capítulo fosse um puxar de fios emaranhados e o segundo um processo

de alinhavar retalhos, chegamos ao terceiro com o intuito de costurar mais

firmemente os alinhavos com os fios conceituais desemaranhados, conscientes de que,

por serem os conceitos e a vivência em campo lugares sem limite definido, essa

costura se faz tortuosa, um tortuoso estabelecer de conexões entre conceitos e

prática, numa possível cartografia dessa cidade resto.

São apresentados no decorrer do texto, principalmente a partir do segundo

capítulo, alguns personagens conceituais que nos ajudam a puxar os fios emaranhados

dessa trama, num entendimento quase rizomático7 dos bairros em questão. Esses

personagens conceituais dialogam com os fios de conceito puxados no primeiro

capítulo e nos ajudam a encontrar e desvendar as pistas que nos levam em direção à

descoberta de uma possível cidade resto.

Entre tantos alinhavos que vamos tentando fazer destes retalhos e fios

recolhidos pela cidade, há ainda desalinhavos que não poderiam deixar de aparecer.

São questões, acontecimentos ou curiosidades que podem levar o leitor a outros

caminhos dentro ou fora desta dissertação. Os desalinhavos aparecem algumas vezes

no decorrer do texto, como apareceram durante a pesquisa de campo e incitaram a

vontade do pesquisador de mudar a direção: são entrelinhas, dados marginais. Aqui,

os desalinhavos se tornam pequenas tentações para o leitor espiar por esta fresta, este

buraco na costura que permite ver algo além da parte exterior da roupa, se configuram

7 O pensamento rizomático proposto por Gilles Deleuze e Félix Guattari em seu livro Mil Platôs,

vol.1, diz de um sistema de pensamento não hierárquico, não- significante e heterogêneo, onde não há uma força coordenadora dos movimentos e cujos resultados não se pode prever ou organizar. O rizoma, “(...) é feito de direções móveis, sem início nem fim, mas apenas um meio, por onde ele cresce e transborda, sem remeter a uma unidade ou dela derivar” (PELBART, 2003, p. 216), portanto, “qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.22). É um pensamento sem eixo.

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como pistas que o leitor escolhe ler ou não, seguir ou não. Estas pistas são retalhos

catados durante a pesquisa, que não tivemos tempo de continuar costurando a esse

patchwork8 tentacular (mas que fazem sentido no processo desta dissertação), fica

apenas a vontade de desenvolver, de se enveredar por cada novo emaranhado, cada

novo trapo, que possivelmente nos levaria a outros, nessa rede infinita de fios e

tramas onde personagens se conectam e enlaçam através dos restos urbanos.

8 A tradução literal da palavra Patchwork é “trabalho com retalho” ou “trabalho de remendo” e

é o nome dado a uma certa técnica de artesanato que consiste em unir pedaços de tecido através da costura.

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GUIA DE LEITURA

Para ler esta costura/dissertação/cartografia é preciso entender algumas regras e os

termos englobados por elas. Segue abaixo um diagrama que facilitará a leitura do

texto, tire-a da página e boa leitura!

Conceitos: homem em farrapos, trapeiro, cinco peles,

antropofagia, paradigma indiciário, espaço da roupa,

espaço-roupa e cidade resto.

Palavras-chave: catação, o fazer campo, sobrevivência,

memória, corpografia, personagem conceitual/figura

estética, desculpa, brecha.

Desalinhavos#

Costuras e descosturas abertas ao leitor.

Notas do fazer campo.

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capítulo I

PUXANDO FIOS

EMARANHADOS:

CATAÇÃO DE CONCEITOS

Qual é a relação do corpo com o espaço urbano? E quais são as interferências e

influências das roupas nessa relação? Esta pesquisa começou com essas questões

principais, uma simples inquietação nossa. Logo do fazer dessas questões, a imagem

que surgiu foi a do morador de rua, esse corpo que vagueia pelas cidades e geralmente

constrói seu espaço apenas com o corpo e os tecidos que o recobrem, as amarrações

que juntam seus objetos e seus cobertores à sua pele. Mas foi a mudança de São

Paulo para Salvador para frequentar as aulas na UFBA que fez nossos olhos

perceberem outras coisas. A necessidade de criar espaços através de poucos objetos e

tecidos nessa vivência na rua se fazia muito mais clara em São Paulo, onde

possivelmente o clima e as condições de sobrevivência na cidade favoreciam tais

práticas. Percebeu-se que o morador de rua em São Paulo se fixava, o de Salvador

caminhava e, quase sempre, levava pouca roupa e nenhum objeto. A construção do

espaço era outra e as roupas e objetos quase não estavam implicados nessa

construção. É claro que generalizações não foram feitas e nosso olhar estava atento

para encontrar um corpo que pudesse dizer desse espaço construído na cidade, mas

eis que durante algumas caminhadas pelo centro da capital baiana, fomos

atravessados por outras questões e essas percepções nos levaram a fazer um desvio

de rota. O encontro com a Baixa dos Sapateiros, em Salvador, e suas lojas de roupas

usadas nos levou a acionar antigas memórias e descobrir ligações deste bairro com o

Parque Novo Mundo, um bairro da periferia de São Paulo, onde anos atrás estivemos

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diversas vezes com o intuito de selecionar e comprar roupas usadas para serem

utilizadas em figurinos de teatro e cinema. Os encontros desse trajeto investigativo

nos deram a possibilidade de pensar estes dois bairros de cidades distintas através de

uma matéria que resulta da própria cidade: o resto. É então seguindo pistas que

perpassam por esse estado de matéria que a pesquisa vai se fazendo. O resto se torna

objeto principal da investigação, fio condutor do alinhavo.

a catação

Para encontrar o caminho da pesquisa foi preciso caminhar. Queremos dizer

com isso, que foi no decorrer da pesquisa que a metodologia (ou a catação de

métodos) usada em campo (aqui o campo inclui também a pesquisa teórica) se fez

entender. Sem estabelecer regras primárias, logo a relação entre pesquisador e cidade

impulsionou uma maneira particular de estar no espaço urbano. Tal maneira acabou

sendo levada também para nossas buscas conceituais e teóricas.

Esse conjunto de métodos descobertos e catados, se apresenta aqui em um

modo de escrita alegórico. Para Walter Benjamin (1984), o alegórico se aproxima do

simbólico, mas é diferente dele por acompanhar o fluxo do tempo, estar em constante

progressão e revelar a todo momento novas possibilidades de significação. Em seu

texto “Origem do drama barroco alemão”, Benjamin destaca a alegoria como uma

expressão de múltiplos sentidos e a relaciona com o Barroco. Ele define tal período

artístico e a expressão alegórica como efêmeros, inacabados e fragmentários. A arte

barroca lhe parece sempre aberta, tumultuada diversa e confusa, uma arte que deixa

aberta a possibilidade de continuação, não tem fim, assim como a alegoria. Nesse

sentido, assumir um texto alegórico é deixar o caminho aberto, certo de que “cada

pessoa, cada coisa, cada relação pode significar qualquer outra” (BENJAMIN, 1984,

p.196). A alegoria, segundo Benjamin, tem uma “tendência destrutiva”, no sentido de

que desconstrói qualquer “falsa totalidade” (1984, p.246), apresentando os

acontecimentos em fragmentos. Portanto, a própria pesquisa se mostra como uma

expressão fragmentada, aberta, cheia de nuances e camadas – máscaras cambiáveis.

Tomando a alegoria como processo de constituição de sentido, preconizamos uma

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essência fragmentária e selecionamos frações de acontecimentos que talvez, fora

desse texto, não fizessem sentido. As organizamos de forma a constituir um todo

fragmentado, não totalitário, porém significante.

Para além da escrita, encontramos em nosso caminho diversas posturas

metodológicas que nos tornaram em certos momentos, devoradores da história9.

Engolimos pistas e fragmentos e os devolvemos em uma possível cartografia de afetos,

memórias e restos da efemeridade urbana. Descobrindo modos de relacionar pistas

e acontecimentos, tentamos fazer o encontro e a costura entre os retalhos conceituais

e o campo da pesquisa, agenciando-os nessa descoberta de uma suposta cidade

resto.

Assim vai se fazendo nossa pesquisa, percebendo em tudo a possibilidade de

costura, não deixamos passar os trapos encontrados pelas ruas: uma catação de

rastros, sobras, farrapos e restos de roupa, de cidade e de gente na intenção de fazer

um alinhavo entre trechos de cidades e seus usos através de nossas descobertas.

Caminhamos entre bairros de Salvador e São Paulo, em busca de pistas para continuar

a perseguir os restos, possíveis reveladores de um existir na cidade que transgrida o

padrão hegemônico10 de pensamento. Em nosso trajeto, descobrimos as perguntas

que levarão a pesquisa adiante: onde vão parar as coisas que já não servem mais à

cidade formal, esta que é regida pelo pensar hegemônico? O que acontece com elas?

Como sobrevivem? Seguindo um percurso delimitado pelo processo da própria

pesquisa, é na perseguição dos restos que encontramos os personagens que poderão

colaborar para o desvendar dessas questões no âmbito urbano.

Percebemos então, que nos serão valiosas as características da “noivinha-

antropófaga”, uma das noivinhas cartografadas por Suely Rolnik (2011), que “se guia

9 Questionamentos de historiadores como Aby Warburg e mais posteriormente Carlo Ginzburg,

nos fazem pensar sobre a história e sua maneira linear e cronológica de ser contada. Os esforços destes dois estudiosos e de alguns outros para tentar encontrar outra maneira de narrar a história que passe por lugares mais subjetivos dos acontecimentos, como a memória, nos induzem a questionar tudo o que já parece estabelecido em nossa sociedade. Quando devorada a história pode ser experienciada, virando outra coisa, fragmentando-se.

10 No decorrer do texto definiremos melhor o “hegemônico” de que falamos.

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pelas causas estimulantes (afetos de um corpo que estimulam os afetos do outro

corpo) e não pelas causas finais ou determinantes” (ROLNIK, 2011, p.193), “embarca

no movimento (de desterritorialização e reterriotorialização) e, de dentro dele, deixa

que seus afetos se atualizem na invenção de um território” (ROLNIK, 2011, p. 195).

Através dela chegamos à antropofagia que é, então, o artifício que utilizamos

enquanto postura metódica.

Essa postura é inspirada no Movimento Antropofágico que ocorreu nas artes

durante as décadas de 1920 e 1930 e foi consolidado pelo Manifesto Antropófago,

escrito por Oswald de Andrade, em 1928. Os artistas envolvidos no movimento tinham

por objetivo reagir contra a dominação artística estrangeira, mas sem negá-la ou

copiá-la. Eles “preconizavam devorar suas ideias (...), comer a arte europeia, ruminá-la

com um molho nativo e popular e, finalmente vomitar a arte antropofágica,

tipicamente brasileira, com toda sua ironia e crítica subversiva” (JACQUES, 2012, p.98).

Neste sentido, usar a antropofagia enquanto postura metódica poderia ser

devorar o que o “outro”11 encontrado no fazer campo nos dá, ruminar esse

material com nosso repertório teórico e vomitar de outra forma.

Nosso então assumido estado antropofágico, faz pensar em que sentido essa

condição pode influenciar na apreensão desta cidade supostamente regida pelos

restos. Em sua tese denominada Exercícios de Leitoria, Jorge Menna Barreto12 (2012)

faz uma leitura interessante do livro de Hélio Oiticica, Aspiro ao Grande Labirinto,

considerando seu texto uma construção gerada a partir de uma prática antropofágica.

Para Barreto, no texto de Oiticica é perceptível a “deglutição, o engolir, os movimentos

peristálticos, os ácidos críticos da saliva e do estômago que transformam a matéria e a

preparam para a absorção” (2012, p.114). Ele percebe no artista esse devorar do outro

11 Esse outro de que se fala é a alteridade que está relacionada às roupas e aos restos urbanos.

Sujeitos que, encontrados durante a pesquisa, se tornaram importantes em relação ao contexto dos

restos e dessa suposta “cidade resto”, agentes de ressignificação desses objetos, espaços, ideias e corpos que sobram. Nesse sentido, não é toda e qualquer alteridade, ou todo “outro” que é devorado por nós, mas sim os que, como os índios antropófagos faziam, podem permitir a absorção de alguma qualidade, convivência ou informação desejada.

12 Jorge Menna Barreto é Formado em Artes Plásticas pela UFRGS, mestre e doutor em Poéticas Visuais pela USP.

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e faz um paralelo entre deglutir e ver, duas maneiras de capturar a alteridade que se

diferem principalmente pela temporalidade do processo de captura.

“A apreensão do outro pelo sistema digestório é lenta. Envolve uma

extensa jornada que atravessa o corpo e aciona intensos processos

químicos e mecânicos de decomposição. Cada pedaço de alteridade

tem que ser mastigado e vigorosamente modificado, quebrado em

moléculas. (...) É muito diferente dos processos de incorporação pela

visão, nos quais há uma imediaticidade enganosa (...). O olho acelera

o processo de captura. Sua função não é de absorver a alteridade,

mas de detectá-la e reconhecê-la. A alteridade só pode ser absorvida

lentamente, mastigadamente, engolidamente, digestivamente,

antropofagicamente. A radicalidade maior da antropofagia está

na mudança, no desvio de modo e temporalidade na percepção do

outro. Deixa-se de usar o mecanismo ótico para usar o digestivo, que

também envolve órgãos de leitura, mas não da imagem, e sim do

valor nutritivo da matéria-outro, reconhecendo o que deve ser ou

não absorvido” (BARRETO, 2012, p.114, grifo nosso).

Foi inspirada na prática dos índios tupis que a antropofagia se consolidou

nas ideias dos artistas e nas palavras de Oswald de Andrade, fazendo migrar para a

cultura a relação com o outro, identificada no ritual do canibalismo. Os índios tupis

devoravam seus inimigos, não todos, apenas aqueles que, selecionados por suas

virtudes, pudessem favorecer o próprio devorador. É assim que, no chamado

Movimento Antropofágico, essa “fórmula de produção cultural” ganha visibilidade

(ROLNIK, 1998). Pode parecer que, justamente por enaltecer o “não europeu”, tal

movimento apenas persistiu na posição subalterna da cultura produzida

nacionalmente, mas não se pode deixar de lado que

“a força da Antropofagia é justamente a afirmação irreverente

da mistura que não respeita qualquer espécie de hierarquia cultural a

priori, já que para esse modo de produção de cultura todos os

repertórios são potencialmente equivalentes enquanto fornecedores

de recursos para produzir sentido” (ROLNIK, 1998, p.133, grifo

nosso).

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Portanto, esta pesquisa só pode existir em relação ao outro, aos sujeitos que

encontramos em nosso trajeto, bem como o outro só existe aqui em relação a nós13.

Somos devorados o tempo todo pelos sujeitos encontrados no fazer campo que

aqui são retirados da sua condição de sujeito para serem empregados enquanto

conceito que nos ajuda a pensar o que chamaremos de espaço-roupa. A

temporalidade, que sempre questionamos em nosso trajeto à cata de conceitos, é

subvertida também na maneira encontrada para se estar na cidade. Assim, o leitor

verá adiante em nossa prática de campo, a vontade de simplesmente estar, pois

acreditamos (metodologicamente) que é o tempo, e só ele, que pode fazer emergir do

campo nossas desejadas pistas, que nos permitirão seguir em frente.

É o resto na (ou da) cidade que se faz fio condutor das reflexões aqui

estabelecidas e é na perseguição deste estado de matéria que encontramos nossas

pistas. A intenção desobstinada é tratar a cidade e suas fronteiras por meio de um

fazer campo que vai acontecendo rizomaticamente, a princípio sem regras.

Portanto, a percepção da metodologia só acontece no meio do processo: basicamente

encontra-se um composto, uma catação de métodos que poderiam ser úteis, cada

um a sua maneira, para o entendimento desta trama dos restos. O que devoramos em

nosso caminho são pistas encontradas na cidade.

É partindo do encontro com o paradigma indiciário, método proposto

pelo historiador Carlos Ginzburg14, que se decide efetivamente perseguir os detalhes,

os dados marginais. Aí se estabelece, através das descobertas da própria pesquisa,

uma primeira regra: nossos olhos e ouvidos devem estar atentos às pequenas coisas,

dicas, fatos e encontros pelo caminho. A primeira regra diz de uma maneira de estar

em campo. Essas pequenas fontes, então, devem ser tomadas enquanto pistas,

13 A escolha pela escrita na 1ª pessoa do plural (nós) se deu pela percepção de que a escrita,

justamente por ser alegórica, se faz como se a pesquisadora pudesse vestir e desvestir diferentes máscaras no decorrer do texto e da pesquisa. Assim, a pesquisadora é modista, cartógrafa, catadora de pistas e escritora, além de ser afetada a todo o tempo pelo outro encontrado em campo, esse que também fala através dela.

14 Apesar de citarmos com maior importância o trabalho intelectual de Carlo Ginzburg, estamos cientes da influência que ele teve do historiador de arte Aby Wasburg. Ginzburg teria estudado no Warburg Institute de Londres e aprendido através dos estudos de Aby a pensar a História de uma forma diferente, não linear e possibilitadora de diálogos interdisciplinares. Para aprofundamento nas pesquisas de Warburg ver: DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2013.

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indícios, sinais e vestígios sobre os quais muitas vezes devemos fazer uso de nossa

intuição e sensibilidade para encontrar o caminho da pesquisa (GINZBURG, 1990).

Método investigativo de produção de conhecimento, o paradigma

indiciário é colocado a serviço da história por Ginzburg, sendo usado para

descobrir e escrever a história do lugar, partindo do pressuposto de que as pistas são

necessárias para levantar dados que existiam no passado e não existem mais. Nos

textos em que fala dessa metodologia, Ginzburg utiliza fatos históricos para “justificar”

sua eficácia, trazendo para a discussão o Paradigma Venatório e o Divinatório. O

primeiro, relativo aos caçadores do Neolítico, tinha como instrumento de investigação

pistas como esterco, pelos, pegadas e plumas, o segundo trata dos adivinhos da

Mesopotâmia que observavam entranhas de animais, gotas de óleo na água, astros e

movimentos involuntários do corpo para decifrar o que viria a diante. Ambos os

métodos eram usados para descobrir pistas de eventos dos quais o observador não

pôde participar ou experimentar, seja porque ocorreu no passado ou porque ainda virá

a acontecer no futuro. Nos dois casos, o exercício de descoberta das pistas envolvia

operações semelhantes, como análises, comparações e classificações (GINZBURG,

1990).

Ginzburg questiona o papel e os modos de fazer da história, se pergunta sobre

o que é a verdade, principalmente em relação às interpretações e usos de documentos

e busca demonstrar que as provas visíveis e palpáveis não são as únicas possíveis de

serem averiguadas pela narrativa histórica. Ele afirma que os historiadores deveriam

se lembrar que todo ponto de vista pode ser seletivo e parcial (RODRIGUES, 2005).

Para ele

“o historiador é, por definição, um investigador para quem as

experiências, no sentido rigoroso do termo, estão vedadas.

Reproduzir uma revolução é impossível, não só na prática, como em

princípio, para uma disciplina que estuda fenômenos temporalmente

irreversíveis enquanto tais” (GINZBURG, 1991, p.180).

Por isso, ele insiste numa maneira de fazer história que leve em consideração

pequenas pistas e fatos que poderiam revelar muita coisa. Segundo ele, esses

pequenos vestígios “são frutos do acaso e não da curiosidade deliberada. Surgem em

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algum momento da pesquisa onde a sensação é de ter encontrado uma pista relevante

e ao mesmo tempo a consciência aguda da ignorância sobre o que é ou significa”

(Ginzburg, 2004, p.11). Nesse sentido, se há o recurso da memória, se há esse “estalo”,

esse lampejo do encontro entre o passado e o presente, esse “fruto do acaso”, será

mesmo que a experiência está vedada ao historiador?

Desalinhavo#1

“[...] num dia de inverno, chegando eu em casa,

minha mãe, vendo-me com frio, propôs que

tomasse, contra meus hábitos, um pouco de chá.

[...] E logo, maquinalmente, acabrunhado pelo

dia tristonho e a perspectiva de um dia seguinte

igualmente sombrio, levei à boca uma colherada

de chá onde deixara amolecer um pedaço da

madeleine. [...] Mas no mesmo instante em que

esse gole, misturado com os farelos do biscoito,

tocou meu paladar, estremeci, atento ao que se

passava de extraordinário em mim. [...] E de

súbito a lembrança me apareceu [...]”.

(PROUST, 2002, p.50)

Para seguir essa pista leia PROUST, Marcel. No

caminho de Swamm ; À sombra das moças em flor.

Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. Ou vá até a

página 58 dessa dissertação.

A memória, muitas vezes involuntária, se apresenta como uma pista para a

conexão de situações diversas e é caracterizada pela clara ligação entre linguagem,

história e tempo. Portanto, essas fontes involuntárias que atravessam a pesquisa

devem, segundo ele, ser questionadas com intuição e sensibilidade, já que a imagem

gerada pela memória é de extrema importância para indicar uma outra possibilidade

de contar a história, de uma maneira que nem sempre se valha do tempo linear15.

15 Essas informações sobre a memória foram obtidas através de uma entrevista com Jeanne

Marie Gagnebin. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=Dr7jJoqxFfU

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Sobre a narrativa histórica, o autor ainda afirma que teria sido feita pela primeira vez

por um caçador, sendo este “o único capaz de ler, nas pistas mudas uma série

coerente de eventos” (Ginzburg, 1990, p.152) e, portanto, o primeiro capaz de

transmitir tal leitura para seu grupo. É este passado da caça que teria contribuído para

o desenvolvimento de inúmeras capacidades humanas, como o raciocínio lógico, a

abstração, a percepção e a imaginação. Ginzburg afirma que

“por milênios o homem foi caçador. Durante inúmeras perseguições, ele aprendeu a reconstruir as formas e movimentos das presas invisíveis pelas pegadas na lama, ramos quebrados, bolotas de esterco, tufos de pêlos, plumas emaranhadas, odores estagnados. Aprendeu a farejar, registrar, interpretar e classificar pistas infinitesimais como fios de barba. Aprendeu a fazer operações mentais complexas com rapidez fulminante, no interior de um denso bosque ou numa clareira cheia de ciladas. Gerações e gerações de caçadores enriqueceram e transmitiram esse patrimônio cognoscitivo”. (GINZBURG, 1990, p.151)

Por outro lado, encontramos em Rolnik a elucubração do que seria uma

“subjetividade antropofágica” (1998), onde a autora afirma que a antropofagia

está intrínseca na existência social dos indivíduos brasileiros. Seria uma característica

enraizada em nossa sociedade. Então, ser brasileiro é ter um “quê” antropofágico e ser

humano é ter um “quê” de caçador. Nós, enquanto caçadores de pistas e trapos que

falem sobre o tempo presente, não temos a pretensão de contar a História oficial de

uma localidade, por isso as pistas são devoradas e deglutidas com conceitos e

informações alheias ao fazer campo. É através dos indícios e das pistas capturadas

pelo tempo lento de deglutição antropofágico que inventamos nossas hipóteses e

buscamos desvendá-las. Antropofagia e paradigma indiciário interferem

metodologicamente o tempo todo, ora a pista é encontrada e devorada, ora a

deglutição acontece primeiro para depois permitir que novos vestígios surjam em

campo.

A segunda regra é então estabelecida: não fazer perguntas. Se a catação de

metodologias até então fala da temporalidade, da espera digestiva e do encontro de

pistas que não se buscam, perguntar estaria fora do que se acredita para este caminho

investigativo. É claro que perguntas diretas poderiam esclarecer dúvidas, mas nos

levariam para um caminho quase pré-estabelecido, enquanto que as informações

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obtidas metodologicamente através do silêncio, em que escutamos a resposta para

depois formular a pergunta, nos levam na direção de novas descobertas

surpreendentes, mesmo que isso custe o “deixar de lado” de algumas informações. A

pesquisa se faz como uma escolha de caminhos, a escolha de que pistas seguir.

puxando fios:

Martin Margiela nos apresenta à moda

Levados pelas roupas, encontramos nossos pares: estilistas, costureiras,

separadores de roupa. Encontramos na maneira de olhar do outro, desvios

surpreendentes, a capacidade de ver no que resta alguma forma de transformação.

Uma pista dada a nós, nos leva a encontrar os restos reorganizados de Martin

Margiela e a puxar o que decidimos serem os primeiros fios deste emaranhado16 para,

enfim, refletir sobre a cidade. Mas como um designer pode colaborar para essas

reflexões sobre o urbano? O designer belga que questiona o sistema e a configuração

da moda, mesmo inserido nele, faz de sua marca de roupas, a Maison Martin Margiela,

um espaço de problematização e transgressão do sistema da moda. Desde sua

fundação, em 1988, Margiela não se deixa fotografar. E não aparece no final dos

desfiles como é de praxe no meio da moda. E em todo material de divulgação usa o

pronome “nós”, implicando toda sua equipe no processo de desenvolvimento das

roupas e usa etiquetas, caixas e sacolas brancas, sem logotipo. Ele “faz uma ode ao

anonimato” (RABELLO, 2011, p.82).

Sempre provocativo, Margiela questiona a velocidade da produção das roupas

através do inacabamento e da precariedade das peças. As costuras de algumas roupas,

bem como suas marcações de corte, fios, sobras de tecido e pespontos, que segundo a

tradição na confecção, ficam escondidos do lado avesso da peça, em muitas de suas

roupas estão do lado de fora (RABELLO, 2011). Tal atitude faz pensar a temporalidade

16 Como dito anteriormente, os conceitos e fatos não seguem aqui uma ordem cronológica. Nossa escolha foi montar o patchwork de trapos encontrados da maneira que nos pareceu mais compreensível para o leitor.

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da produção de moda, em que muitas indústrias sacrificam seus funcionários e

maquinário para produzir uma quantidade exorbitante de peças em tempo recorde.

Como produzir roupas bem acabadas, com qualidade e desenvolvidas com delicadeza

se o sistema da moda impõe essa velocidade de produção extravagante? A velocidade

e volume de peças lançadas no mercado se somam a efemeridade do uso das roupas

e, em Margiela, estes três fatores são arguidos principalmente através de uma linha de

produtos de sua marca, a linha artesanal chamada oficialmente de linha ‘0’. Nesta

linha, o estilista e sua equipe usam roupas, acessórios e diversos objetos de “segunda

mão”, desenvolvidos a princípio para funções diversas, para serem transformados

manualmente em peças de vestir. Uma das características principais dessa proposta é

que cada peça seja feita completamente à mão.

Figura 1, 2 e 3: peças da linha ‘0’, das coleções Primavera-Verão 2007, Outono-Inverno 2005 e Primavera-Verão 2008, respectivamente. Fonte: http://maisonmartinmargiela.tumblr.com/collections#/en_US/10_archives/01_coll_-artisanal-/09_2008_pe/ Acesso em: 29 de out. de 2013.

Por conta disso, o tempo se torna um elemento importante para a valorização

das roupas e, nas etiquetas desta linha, a Maison Martin Margiela coloca as horas de

trabalho para a concepção da peça como informação tão importante quanto o

tamanho ou a composição do produto (RABELLO, 2011). Ao usar materiais simples, de

baixo valor de mercado, o estilista desconstrói alguns padrões da indústria da moda,

transformando matérias-primas ordinárias na confecção de produtos luxuosos. Sua

crítica vai em direção “ao princípio de descarte e a efemeridade dos itens produzidos

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em massa pela cadeia de moda e à submissão do público às tendências estilísticas do

vestuário” (RABELLO, 2011, p.122). Seria então, segundo Margiela (2009, p.360.1-

360.b In RABELLO, 2011, p.122), esta submissão dos consumidores que distorceria a

percepção de valores das roupas e acessórios no sistema da moda. Uma hegemonia de

valores, construída subjetivamente pela própria cadeia produtiva da moda e sua

necessidade de produção em larga e escala.

Fig. 4, 5 e 6: peças da linha ‘0’, das coleções Outono-Inverno 2008, Primavera-Verão 2007, e Outono-Inverno 2006, respectivamente. Fonte: http://maisonmartinmargiela.tumblr.com/collections#/en_US/10_archives/01_coll_-artisanal-/09_2008_pe/ Acesso em: 29 de out. de 2013.

É refletindo sobre o processo criativo de Margiela que nos sentimos

provocados a pensar a velocidade produtiva e a efemeridade do sistema da moda,

fatores que começam a parecer bastante importantes no processo de descarte de

qualquer objeto no espaço urbano. Temporalidade, descarte, autoria, desvio,

transformação, modos de usar e modos de produzir. O encontro com a roupa de

Margiela traz inúmeras questões que aparecerão em diversos contextos durante nossa

trajetória. Tais questões colaboram para que o resto comece a se configurar diante de

nossos olhos como um estado de matéria que tem a capacidade de subverter e burlar

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o sistema através da transformação consentida por mãos como as dos profissionais da

Maison Martin Margiela.

Desalinhavo#2

O filme “Balzac et la Petite Tailleuse Chinoise”

(2002), que em português é traduzido para

“Balzac e a Costureirinha Chinesa”, de Dai

Sijie, se passa na China dos anos 1960, sob a

Revolução Cultural de Mao Tse-Tung, quando as

universidades foram fechadas e muitos livros

proibidos. Dois jovens mandados para o campo a

fim de serem reeducados pelos camponeses

encontram uma costureirinha e uma maleta cheia

de livros proibidos e juntos descobrem uma

realidade desconhecida além das fronteiras da

China. Através de escritores como Balzac,

Dostoievsky, Dumas e outros autores

estrangeiros, a costureirinha conhece um mundo

para além de sua aldeia apresentado pelos dois

jovens. As influências de suas leituras acabam

sendo vistas claramente nas roupas que ela e seu

avô, o alfaiate, costuram para as moças da

aldeia. No sentido contrário, os dois jovens que

tinham a intenção de abrir os horizontes para os

moradores do campo, acabam por conhecer e

entender outros valores, diferentes dos que

trouxeram da cidade.

Fig. 7: imagem retirada de frame do filme Balzac et

la Petite Tailleuse Chinoise, de Dai Sijie.

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Para seguir esta pista vá para a página 67 desta

dissertação.

quando moda e cidade se encontram

Esta condição de matéria (o resto) é resultado de uma temporalidade cada vez

mais efêmera, do desejo pelo novo, pela renovação, o consumo e o desprendimento

material (LIPOVETSKY, 2009). Foi a partir da Revolução Industrial que o acelerar da

produção fez mudar a relação das pessoas com os objetos e espaços; a facilidade, os

preços, as novidades, tudo passou a favorecer o crescimento do consumo de roupas,

de objetos decorativos, de utensílios para casa, de carros, espaços, tecnologias,

serviços e ideias. A facilidade crescente de comunicação e transporte fez promover

ainda mais essa temporalidade apressada e “a sedução e o efêmero tornaram-se, em

menos de meio século, os princípios organizadores da vida coletiva moderna”

(LIPOVETSKY, 2009, p.13). Esse sistema produtivo insano e polarizado em poucos

pontos do globo, ganha potência quando se trata especialmente de um objeto: a

roupa17. Afinal, “o que poderia ser mais efêmero e mutante que a moda?” (JACQUES,

2012, p.132). Na moda, como por nós descoberto anteriormente através da Maison

Martin Margiela, essa lógica é bastante importante e aparente. É na cidade e sobre os

corpos que as vestimentas têm seu ponto auge, o qual acaba bastante rápido. As

roupas, espaços vestíveis, cambiáveis e móveis, que podem ser intervalo entre corpo e

ambiente estão talvez entre os objetos mais efêmeros18 desta cidade contemporânea

17 Entre 1998 e 2005, a China investiu 800 bilhões de dólares em estruturas produtivas

(JABBOUR, 2006), desde então a fabricação de diversos produtos, inclusive roupas, acabou sendo transferida e polarizada para este país, bem como para a Índia e a Tailândia. “A China já responde por 60% das confecções e 35% dos produtos têxteis importados vendidos no Brasil”. (MAWAKDIYE, 2010). De acordo com estimativa da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (ABIT), o custo da mão de obra brasileira na indústria têxtil é 367% superior ao da chinesa e nossos direitos trabalhistas bem mais rígidos quanto ao tempo de trabalho e volume de produção, o que faz com que o país não seja capaz de competir financeiramente, temporalmente e em volume com países como a China (MAWAKDIYE, 2010).

18 Uma ressalva deve ser feita neste ponto, onde incluímos na “lista da efemeridade”, em

primeiro lugar, os gadgets. Uma palavra inglesa que significa dispositivo, aparelho, engenhoca, é o termo usado para definir aparelhos eletrônicos portáteis, como celulares, pagers, tablets e smartphones. Para Marcela Antelo, os gadgets são “produtos do casamento da ciência e do capital” e “marcam com inutilidade o excesso da produção capitalista”. São objetos extremamente desejados, mas

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que “ordena-se sob a lei da renovação imperativa, do desuso orquestrado, da imagem,

da solicitação espetacular, da diferenciação marginal” (LIPOVETSKY, 2009, p. 182).

A hegemonia de valores que identificamos na moda se repete e amplifica

quando falamos de cidade. Sob esses valores e poderes hegemônicos, a cidade

contemporânea é entendida como este local de caráter descartável onde, “por

natureza, o novo é superior ao antigo” (LIPOVETSKY, 2009, p.185). A produção atual

permite ver cada vez com mais clareza o volume exagerado não só de objetos, mas de

edifícios, espaços e até ideias lançadas e descartadas a todo o momento. As diversas

mudanças produtivas que vem ocorrendo desde a Revolução Industrial e

principalmente o caráter não controlável deste processo, interferem intensamente no

uso e na produção do espaço urbano. Neste sentido, a partir do acontecimento do

processo de urbanização dessa cidade desordenada que estava a se formar, novos

limites são determinados e os excessos produtivos acabam por sobrar por suas

beiradas. Eletrodomésticos, comida, edifícios, espaços, ruínas, móveis, bairros, pessoas

e roupas. Tudo que não cabe dentro dos limites urbanos, sobra. Escolhemos seguir e

refletir sobre o que resta à beira da cidade, o que sobra e ainda assim sobrevive,

porque acreditamos que está nos restos, no que é quase invisível, uma resistência

potente à essa hegemonia de valores.

Está dentro dessa lógica hegemônica o desejo pelo novo, pela novidade e,

portanto, o descarte do que já parece ultrapassado. A lógica econômica atual deixou

de lado o ideal de permanência e durabilidade, sendo a produção e o consumo

dominados pelo efêmero (LIPOVETSKY, 2009). A necessidade de se individualizar dos

sujeitos encontra no crescente aumento de modelos das mercadorias esta

possibilidade, mesmo que os produtos sejam fabricados em série e em monstruosa

quantidade. A clara separação do trabalhador, tanto do produto resultante de seu

próprio trabalho, quanto do processo de produção de mercadorias como um todo,

vem promovendo mais rapidamente a cultura do efêmero, pois sem o conhecimento

dos processos de fabricação dos objetos, estes acabam se tornando alienados e sem

descartados frente à sua primeira atualização tecnológica. Para se aprofundar no tema ver: ANTELO, Marcela. Os Gadgets. Rev. Estud. Lacan, 2008, vol.1, n. 1, p.1-16. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rel/v1n1/v1n1a14.pdf

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valor. A roupa, este artefato que se encontra entre a necessidade e o desejo dos

indivíduos, acaba se tornando só mais um produto para o descarte. Para nós, que

caminhamos na tentativa de entender e seguir essa lógica do que já passou do prazo e

é deixado de lado, o lugar do resto vai parecendo suspeito: ele reside nas beiradas?

A beirada19

Estar à beira, à margem é estar fora? A fronteira é entendida aqui como espaço

poroso, por onde se pode entrar e sair, onde se pode estar, viver, sobreviver. É ainda

um espaço móvel, que transita e se modifica. Seguimos vestígios que nos levam a

ultrapassar fronteiras, caminhar por elas, sair e entrar. A beirada seria então a

fronteira enquanto emaranhado de relações porosas e permeáveis, mesmo que não

lineares ou contínuas. A fronteira permite passagem, deixa entrar e não se fixa (HISSA,

2006). Na cidade a fronteira pode se tornar invisível, já que ela margeia geralmente

ilhas “luminosas” 20, bairros espetaculares e sobrevive nessa condição de invisibilidade.

O resto, estado de matéria que está entre o novo e o lixo21 é beiradeiro e invisível. É,

portanto, fronteiriço. Enquanto beirada e fronteira, o lugar do resto é sem limites

lineares, poroso, permite o entrar e sair, o transitar pelos espaços outros e ainda assim

é capaz de delimitar lugares. O resto seria então aquilo que não coube dentro dos

limites da cidade e foi sobreviver na fronteira, na beirada?

19 No ano de 2012, nos juntamos a alguns amigos e seguimos por uma deriva pelo sertão

baiano. Essa ideia de deriva partiu dos estudos de duas mestrandas do PPGAU-UFBA, Jurema Moreira e Priscila Risi. A viagem resultou em uma grande aventura pelas cidades inundadas pela represa de Sobradinho / BA e em inúmeros encontros e conversas entre amigos pesquisadores. Jurema nos apresentou certa vez o conceito de territórios de beirada e seus “beradeiros”, que queria dizer dos moradores da beirada do lago de Sobradinho. Nos utilizando de nosso método antropofágico, digerimos os termos trazidos por Jurema e os juntamos a nossas novas experiências.

20 Conforme termo de Milton Santos: “chamaremos de espaços luminosos aqueles que mais

acumulam densidades técnicas e informacionais, ficando assim mais aptos a atrair atividades com maior conteúdo em capital, tecnologia e organização. Por oposição, os subespaços onde tais características estão ausentes seriam os espaços opacos” (SANTOS; SILVEIRA, 2002, p.264).

21 Gostaríamos de deixar claro que não consideramos resto e lixo a mesma categoria de matéria. Entendemos o resto enquanto objeto que ainda pode ter uso, mas foi descartado pelos fatores de efemeridade dos quais já falamos no texto. O lixo, para nosso entendimento, é uma categoria de matéria que já não tem nenhuma possibilidade de retorno socialmente falando, chegou ao seu fim extremo (aqui entram possibilidades de fim como incineração e aterro sanitário, que, a depender da maneira que são feitas, ainda podem permitir o retorno da matéria de alguma forma – energia, adubo, etc.).

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o resto

Este caráter efêmero identificado na cidade, necessário para a existência de

nosso objeto, o resto, é uma propriedade importante para a configuração do macro

sistema que incorpora a cidade contemporânea. A renovação constante de paradigmas

sociais e estéticos faz com que os antigos padrões desapareçam neste espaço, a partir

de uma suposta necessidade e do desejo das pessoas pelo novo; o espaço, as

vontades, as crenças, tudo pode ser renovado. O resto é o resultado material e

concreto deste processo, mas mesmo sendo palpável é de alguma forma invisível. E é

este “estado de eminente desaparecimento” do antigo que dá ao cotidiano sua

“potência de estranhamento” (JACQUES, 2012, p.131). Mas tudo que desaparece deve

residir em algum lugar e neste lugar fica até que possa ser percebido e explorado seu

potencial desviante dentro desta cadeia de processos molares22 (GUATTARI, 1985).

Será este lugar uma possível cidade resto onde os valores hegemônicos podem

ser, de certa forma, transgredidos? E essa cidade resto existe enquanto beirada

do sistema? É porosa, tortuosa e não se fixa?

Desalinhavo#3

Fig. 8: Ticket de entrada para o Ahsan Manzil Museum, em

Bangladesh. O ticket foi encontrado no bolso de um casaco usado

do Parque Novo Mundo.

Siga esta pista indo para a página 74.

22 Processos molares e moleculares são termos tratados por Guattari em seu livro Revolução

Molecular (1985) para falar de processos macro e micro políticos, processos grandiosos e pequeninos, que não são dicotômicos ou binários, mas existem em função um do outro; permeando, atravessando e penetrando um ao outro.

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De certa forma, o que nos intriga é o fato de ser o resto quase sempre um

corpo escondido, na tentativa de ser invisível, perambulando pelas fronteiras da

cidade, fazendo da invisibilidade uma tática de sobrevivência, sendo a própria

fronteira. Se o que é promovido pelo sistema é o gosto pelo novo, o limpo, o

esteticamente padronizado, o resto seria matéria desgostosa de se ver, tortuosa,

deformada e suja, por isso, para que sobreviva, deve se esconder. Resto pode então

falar de diversos tipos de matéria: eletrodomésticos, gadgets, roupas, embalagens,

alimentos e espaços urbanos. Tudo que parece não ter mais serventia funcional ou

social, ou o que simplesmente não é mais novo, e é descartado. Mas é preciso então

frisar que o descarte não é a transformação da matéria diretamente em lixo. Muitas

mãos passam pelos objetos fazendo a triagem do que ainda pode ser útil e do que

parece não ter serventia antes que possa chegar efetivamente ao fim. Enquanto os

artefatos não são escolhidos para serem transformados ou efetivamente descartados,

são o que chamamos aqui de resto. O resto se configura então enquanto uma matéria

em espera?

A espera parece definir um tempo lento e de ócio, um tempo de desperdício,

onde o olhar e o gesto do outro é necessário para que ela acabe ou se modifique. Ao

perceber o resto enquanto matéria que sobra e espera, que sobrevive à beira do

sistema e da cidade, questionamos: não seria então o morador de rua um “corpo-

resto”? Das primeiras indagações desta pesquisa, interpeladas pelos desvios que a

cidade impôs, ele volta à nossa história, esse corpo moldado pelas calçadas das

cidades. Volta como o primeiro personagem dessa trama de restos, o .

Cabe ao termo “resto” englobar, nesta pesquisa, a situação do homem

enquanto morador de rua. Um corpo que vagueia pela cidade, ocupando fronteiras,

tentando sobreviver em sua camuflagem diária, na lentidão da busca pela

sobrevivência e no ócio cotidiano. Um corpo que resta do sistema, que não segue

padrões, e que, através de seus caminhos tortuosos e desregrados se insere na cidade

formal e urbanizada. Mas que fio puxamos para pensar o corpo do enquanto

corpo-resto? O multifacetado Flávio de Carvalho, engenheiro, artista e provocador,

traz à tona em sua coluna “Casa, homem, paisagem”, no jornal Diário de São Paulo, em

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um conjunto de textos denominados “A moda e o novo homem”, um corpo-resto,

vestido de resto que ele chama de homem em farrapos. Ele enxerga este corpo

que está à margem e vê nele um sujeito capaz de imaginar e criar para além do que

seria a subjetividade capitalística trazida por Guattari (2005) devido a sua condição de

“pária social” e sua necessidade de inventar outros modos de sobrevivência na

cidade (JACQUES, 2012). Flávio de Carvalho, ao falar do homem em farrapos, fala

do morador de rua, dos loucos, deste “Outro urbano radical” (JACQUES, 2012, p. 135)

onde reside o extremo, a necessidade de inventar por sobrevivência; o homem

em farrapos, enquanto morador de rua, ou inventa uma maneira de estar no

espaço urbano ou é engolido por ele.

“De tempos imemoráveis o homem em farrapos é um

desclassificado, um posto de lado pela sociedade. Ele é o totalmente

sem classe e sem hierarquia por ser o último, é o homem para o qual

todas as portas se fecham. É ele um ser submetido

permanentemente à dor, à miséria e ao desprezo. O homem em

farrapos é o contrário do homem investido de autoridade, pela

disciplina. A sua situação de último dos últimos o concede uma forma

de libertação da disciplina hierárquica e por ser o último, está em

estado semelhante a um estado anti-hierárquico de começo”

(CARVALHO, 2010, p.85, grifo nosso).

É este corpo em farrapos que lida diariamente com os restos da cidade,

sobrevive entre eles e tira deles seu alimento, sustento e, portanto,

sobrevivência. Uma pergunta nos intriga: será somente o o que trata dos

restos na cidade diariamente?

o corpo e o resto ou o “corpo-resto”

Para Flávio de Carvalho,

“é pelo movimento que se processam as alterações nas formas

fundamentais da moda. As formas fundamentais seriam forças

latentes e adormecidas dentro da eternidade que conhecemos. O

movimento desperta o homem do seu sono filogenérico, coloca-o

frente às exigências conscientes; é só pelo movimento que ele

percebe e compreende a necessidade de mudar” (apud JACQUES,

2012, p. 136).

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Movimento tal que pode ser a errância do ou o movimento insistente

do corpo de um catador ou até de uma costureira para permanecer. Enquanto o

morador de rua erra para encontrar sobrevivência, os outros trabalhadores

insistem pelo mesmo objetivo. Entendemos então que devemos aceitar o desafio que

a pesquisa coloca, o de encontrar no corpo do trabalhador informal, do

lumpemproletário23, o que seleciona os farrapos e vive deles, essa corpografia24

dos restos, do corpo que se implica na seleção ou na renovação principalmente de

tecidos e vestimentas através da catação ou da costura. É através do trabalho não

normatizado com os restos que o corpo se insere nessa cadeia maior e se coloca no

desvio, na produção de outro sentido para estar na cidade, de uma ressignificação do

corpo, do objeto e do lugar.

Desalinhavo#4

Agnès Varda: “Les Glaneurs et la Glaneuse”

(2000), que em português se traduz como “Os

Catadores e Eu”; um documentário onde a diretora

encontra vários catadores e catadoras que por

necessidade, acaso ou escolha, vivem de catar e

recuperar os restos de outras pessoas. Na

verdade, a palavra glaneur significa respigar,

que é um ato muito comum na França, o de

recolher as espigas que sobram após a colheita

no campo. Ou seja, é o ato de recolher as

sobras, os restos. O próprio filme parece uma

compilação de diversos personagens e situações

23 O termo lumpemproletariado foi trazido por Karl Marx para definir pejorativamente uma

categoria de trabalhadores que estaria abaixo dos operários assalariados, para ele esses trabalhadores eram danosos às intenções socialistas, já que ao invés de lutarem pela causa encontravam desvios para conseguir sobreviver na cidade. Este mesmo termo relido por Walter Benjamin é tomado enquanto desvio, potência positiva diante da monotonia do trabalho produtivo e burocrático. Para aprofundamento no termo ler BENJAMIN, W. “Paris do Segundo Império. Obras Escolhidas III”. São Paulo: Brasiliense, 1989, p.9-101 e RAMIREZ, P. N. “A revolução vagabunda: Baudelaire, Walter Benjamin e o fim da história”. Revista eletrônica Ponto e Vírgula, São Paulo: PPGCS PUC-SP, 2010, n.8, disponível em: http://www.pucsp.br/ponto-e-virgula/n8/artigos/htm/pv8-15-pauloramirez.htm

24 Segundo Jacques (2007, p.95), “a cidade é lida pelo corpo e o corpo descreve o que podemos

passar a chamar de corpografia urbana. A corpografia seria um tipo de cartografia realizada pelo e no corpo, ou seja, a memória inscrita no corpo, o registro de sua experiência da cidade, uma espécie de grafia urbana, da própria cidade vivida, no corpo de quem a experimenta”.

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encontradas pela diretora que trabalha a partir

de associações e deslocamentos onde uma

descoberta leva a outra e, mesmo que distantes,

quando colocadas lado a lado, dão sentido a um

discurso construído por ela.

Fig. 9: imagem retirada de frame do documentário Les

Glaneurs et la Glaneuse, de Agnès Varda.

Para encontrar vínculos com esta pista vá para a

página 67.

O resto é ressignificado através desses sujeitos que selecionam, usam o corpo

como ferramenta de trabalho, quase numa coreografia de catar e restaurar. Assim

como uma costureira transforma a roupa que seria jogada fora para que seja usada

novamente, sobrevivendo deste trabalho diariamente, o vê no que sobra às

margens da cidade, nos farrapos, uma possibilidade de transformação e

sobrevivência. A imagem do homem em farrapos vai então se confundindo

com a do trapeiro, de Baudelaire, trazida por Walter Benjamin. Figura que mesmo

mergulhada na fugacidade do espaço urbano consegue ver nos trapos, nas sobras, nos

restos da cidade, algo de valor.

“Tudo que a cidade grande jogou fora, tudo o que ela perdeu, tudo o

que desprezou, tudo o que destruiu é reunido e registrado por ele.

Compila os anais da devassidão, o cafarnaum da escória; separa as

coisas, faz uma seleção inteligente; procede como um avarento com

seu tesouro e se detém no entulho que, entre as maxilas da deusa

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indústria, vai adotar a forma de objetos úteis ou agradáveis”

(BAUDELAIRE, apud BENJAMIN, 1989, p. 78).

Este corpo configurado a partir do gesto diário de quem “compila os anais da

devassidão” (BENJAMIN, 1989, p.78), num ato quase heróico dentro da cidade grande

(PIGNATON, 2011), reúne, seleciona e classifica tudo o que cata. A figura do

trapeiro, do e até mesmo da costureira nos remetem à imagem do

trabalhador que se move pelo objeto que separa, cata ou costura. Em movimentos

repetitivos, o atrofiar dos músculos e dos tendões modifica a postura do corpo do

sujeito. O corpo se molda através do trabalho. O separar e tratar dos restos imprime

uma corpografia particular em cada um, a corpografia gerada a partir dos

restos urbanos. Mas também se modifica no contato com a cidade. O corpo do

andarilho, do , do homem em farrapos deixa clara a transformação que ele

faz na cidade e que a cidade faz nele. O corpo que afeta o espaço, geograficamente ou

socialmente, com suas vestes improvisadas, suas amarrações e trocas. Seus usos fora

de padrão. É também a transformação do corpo pela cidade. A cor da pele que vai se

acinzentando pelo ar poluído, a poeira das calçadas, a estrutura do corpo que vai

perdendo gordura, enrijecendo os músculos, mudando a postura. Os hábitos que se

tornam públicos: o sexo, o banheiro, o sono. As táticas de sobrevivência – caixas

de papelão, sacos de lixo, jornais 25. O corpo transforma a matéria, mas a matéria

também transforma o corpo. E mais, essa transformação pode ser percebida também

socialmente: “(...) as coisas fazem as pessoas tanto quanto as pessoas fazem as coisas”

(MILLER, 2013, p.200). E é socialmente que Flávio de Carvalho coloca a transformação

do homem em farrapos através dos objetos. Para ele, é

“nos estados agudos do individuo que alcança o limiar de um mundo

próprio, [que] aparecem as sobrevivências compensadoras

graciosamente apoiadas no ornamento e no desejo de criação.

Encontramos pateticamente, nas ruas de toda parte, exemplares de

homens e mulheres que perderam o controle dos seus desejos e das

suas angustias e que se apresentam vagando pela rua, discursando

25 Para se aprofundar sobre os corpos que restam na cidade, em um texto cheio de analogias

muito interessantes do corpo modificado na rua com o corpo modificado a partir de intervenções corporais como piercings, tatuagens e todo tipo de body modification; um “compilar” de histórias de

corpos na rua, com reflexões profundas sobre a materialidade e a sobrevivência na cidade, ler: BORGES, Fabiane Moraes [dissertação]. Domínios do Demasiado. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006.

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histericamente para um publico, às vezes imaginário. Exibem profuso

aparato e ornamento, cobrem-se com flores e fitas, e cores e panos

diversos que se desdobram, agradavelmente. Marginais

descontrolados que falam a um mundo próprio, o mundo da loucura

e do sonho. São estes os detentores da grande imaginação e da

grande moda. São os supremos criadores da fantasia humana...e tão

desprezados pelo povo que passa...” (CARVALHO, 2010, p.16, grifo

nosso)

O desprezo de que fala Flávio de Carvalho nos remete novamente a

invisibilidade desse estado resto, invisibilidade que, veremos ao longo de nosso

trajeto, permite a sobrevivência dos corpos e matérias que se encontram

enquanto sobra. Se pudéssemos classificar o resto em uma linha categórica de

diferentes nuances, o estaria em um ponto extremo dessa categorização,

sendo ele o que lida com as sobras no intuito de sobreviver diretamente delas na

cidade. Isso quer dizer que depois dele, após o uso e reinvento da matéria o resto

encontra um fim, vira lixo. Veremos adiante (principalmente no desenrolar do fazer

campo), que os outros personagens dessa trama, que se aproximam do trapeiro

ou da costureira, trabalham com o resto enquanto mercadoria, moeda de troca. Na

maioria das vezes revalidam os objetos no intuito de tirar dele seu sustento26. O

, ao contrário, vive dos trapos, é um homem em farrapos, come e veste

restos, sendo ele por isso possivelmente categorizado socialmente enquanto o próprio

resto. Para além das questões sociais imbricadas nessa condição de sobrevivência

através do resto, o que nos encanta neste pequeno mundo encontrado até agora é a

possibilidade de ter essa matéria transformada e trazida de volta, neste jogo entre

macro e micropolítica. O resto articulado aos corpos e ao que é novo, nessa zona

fronteiriça porosa, onde nada é fixo. Outras perguntas surgem frente aos restos: se

eles estão à espera, estão à espera do que ou de quem? Quem os agencia? Onde

estão? Porque são descartados? Porque perdem ou ganham valor?

26 Veremos adiante, que em algumas situações nossos outros personagens também vestem os restos, mas fica clara a diferença de sua relação com eles. Enquanto o morador de rua trata esta matéria como sua, os outros personagens a tratam como mercadoria.

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o espaço (da) roupa

Esta hipotética cidade resto, imperada pela espera e o tempo lento, é aqui

buscada através das roupas usadas, estas que aguardam para serem vendidas,

utilizadas, catadas, separadas ou reformadas. Estes lugares resto poderiam ser

categorizados como espaços opacos (SANTOS, 1994), “espaços do aproximativo, da

criatividade, da lentidão, abertos, movediços e compartilhados, as zonas opacas dos

habitantes ordinários, os anônimos da cidade, considerados, pela lógica do espetáculo,

‘perdedores’” (OLIVIERI, 2011). Habitantes estes que podem ser “homens lentos”

(SANTOS, 1994), esses que vivem uma temporalidade substancialmente diferente da

imposta pelo poder hegemônico, diferente do pensamento que domina a lógica das

grandes cidades: a da velocidade, da higiene, das formas e caminhos determinados.

Por isso, quando assumimos a postura de digerir o campo antropofagicamente,

em um tempo não maquinal ou virtual, permitimos que nosso olhar fosse atravessado

pela cidade e seus restos. Restos estes que, como nosso olhar, tentam sobreviver na

subversão do hegemônico, mesmo impregnados por ele e somente existindo dentro e

por causa dele.

Quando nosso olhar foi atravessado pela cidade e seus restos, caminhávamos

por um bairro chamado Baixa dos Sapateiros, que fica em Salvador, na Bahia. No

momento em que vimos uma loja que não tinha placa, apenas uma faixa com os

dizeres: “QUASE TODA A LOJA de 1 à 5 Reais”, tivemos nossa curiosidade aguçada,

seguimos o que nos pareceu uma primeira pista e entramos. Dentro da loja vimos

sacos cheios de roupas com inscrições feitas à caneta piloto. Era a segunda pista, que

levou nossa memória a viajar alguns quilômetros e anos, até chegar ao Parque Novo

Mundo, em meados de 2009.

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Fig. 10: Loja da Baixa dos Sapateiros, em Salvador, onde a primeira pista da pesquisa foi encontrada. Foto de arquivo pessoal, 2012.

Este bairro, que beira a Rodovia Presidente Dutra e está localizado no distrito

de Vila Maria, Zona Norte de São Paulo, se faz espaço de trabalho para algumas

pessoas que sobrevivem fazendo a “triagem” de roupas usadas. Estas roupas que se

empilham em montes de 2 a 3 metros de altura chegam ao bairro quase diariamente

vindas de diversas instituições de caridade que recebem mais doações do que podem

cuidar e colocar em seus bazares ou distribuir para os que estão sob seus cuidados. Os

separadores das roupas as selecionam por tipo e estado de conservação, as colocam

em fardos que serão levados por caminhões para a distribuição em pequenas lojas de

itens usados espalhadas pelo país e em fazendas, nas quais as roupas são utilizadas

pelos trabalhadores rurais para proteção do próprio corpo e o não desgaste de suas

roupas pessoais27. Os sacos vistos por nós na loja de roupas usadas da Baixa dos

Sapateiros chegaram até ali de caminhão, vindos de São Paulo, embalados pelas mãos

dos separadores do Parque Novo Mundo28.

Estes lugares, de certa forma beiradiços, possibilitam o trafegar da roupa resto

pela cidade. Enquanto responsáveis pelo fim da espera do resto, os dois bairros e seus

27 Baseado em conversa com um separador, em uma ida ao Parque Novo Mundo, em 2011. 28 Informação obtida em conversa com a dona de uma loja de roupas usadas na Baixa dos

Sapateiros, em 2012.

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trabalhadores são a ligação dessa matéria que sobra com a cidade formal, regida pelo

novo e pelos padrões de poder hegemônico discutidos aqui anteriormente. Estes

lugares, associados a outros, onde a roupa também está, como shoppings e lojas de

departamentos, são lugares que chamamos aqui de espaços da roupa.

A Baixa dos Sapateiros, bairro que abriga muitos desses espaços, é

basicamente formada pela longa Avenida J. J. Seabra, rua esta que está localizada ao

lado do Centro Histórico da cidade e é um local de grande importância histórica para

Salvador. Já no século XVI, esta área, localizada em ponto estratégico da cidade, teve

importante função defensiva, já que sua geografia configurava-se numa vala

acompanhada por um rio que volteava por trás a colina do alto da Bahia de Todos os

Santos. Este rio era chamado rio das Tripas e servia principalmente como esgoto e

local de descarte dos restos gerados por um matadouro que se encontrava no bairro

de São Bento, próximo ao local onde hoje se encontra o terminal da Barroquinha. A

rua, que beirava o rio foi chamada primeiramente de Rua das Hortas, já que era nela

que grande parte da cidade se abastecia de frutas e legumes. Mas foi somente a partir

da drenagem do rio, feita na primeira metade do século XIX, que a rua pôde ser

realmente habitada. Passou a ser então chamada Rua da Vala e pode ser considerada a

primeira das ainda futuras avenidas de vale da cidade (NASCIMENTO, 2007). As casas

construídas nesse momento eram “casas modestas e pobres, térreas geralmente,

raramente com um andar, moradia de artesãos, principalmente sapateiros, que

terminaram por transferir à rua o nome que ela possui atualmente (…)” (SANTOS,

1959, p. 171). O nome popular desta área associa a geografia e a profissão mais

exercida por ali durante muitos anos: Baixa dos Sapateiros. Oficialmente, depois das

mudanças urbanas propostas por José Joaquim Seabra para a cidade de Salvador, a rua

passa a ter seu nome. O homem que dá nome a rua foi governador do estado da Bahia

por duas vezes, de 1912 a 1916 e de 1920 a 1924, mas foi em sua primeira gestão que

desenvolveu os projetos que marcaram seu governo. Influenciado pela urbanização do

Rio de Janeiro de Pereira Passos, o então governador fez importantes intervenções

urbanas na capital. Na Cidade Baixa, o projeto constituía na construção de uma nova

urbanização e na Cidade Alta na inauguração de “largas avenidas, numa tentativa de

romper com seu passado” (PINHEIRO, 2011, p.213).

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É na Avenida J. J. Seabra, que se tornou importante centro comercial para a

cidade, que encontramos então os primeiros espaços da roupa desta

investigação. Tendo sido local de grande movimento no passado, foi através dos

processos de revitalização do seu bairro vizinho29, da instalação do terminal de ônibus

da Lapa, que desviou o trajeto de muita gente, da abertura de Shoppings como o

Piedade aos arredores da região, nos anos 1980, que o bairro passou a ser uma

localidade que sobrevive do que remanesce dessa revitalização e dos poucos

transeuntes que ainda se aventuram pelas ruas vazias da Baixa. A queda da frequência

de transeuntes fica clara com o passar dos anos30.

Desde sempre enquanto beirada, primeiro de um rio que se fazia fronteira da

cidade antiga, depois de um Centro Histórico que, ao mesmo tempo em que ofusca

sua existência, permite que muitos processos aconteçam livremente por suas ruas, não

seria a Baixa dos Sapateiros um bairro resto? Suas lojas, que vendem desde artigos

importados da China a artigos para festas, incluem araras cheias de roupas novas e

iguais, vendidas por preços baixos; prateleiras cheias de bolsas e mochilas; calçados de

plástico, borracha ou lona; camisetas esportivas penduradas nos toldos; manequins

vestidos com roupas justas ocupando as calçadas; nichos de madeira cheios de roupas

usadas vendidas a 1 ou 2 reais; e muitas outras coisas que vão configurando este

espaço onde a roupa está à espera. O espaço da roupa se estabelece enquanto

lugar que abriga a roupa.

Espaço que também é encontrado, de outra forma, no Parque Novo Mundo.

Este trecho de bairro, que está entre dois subdistritos que oficialmente se chamam

Vila Maria Baixa e Jardim Andaraí, ficou conhecido por esse nome e é assim chamado

pelos moradores há muito tempo31. O bairro começou a se formar na década de 70,

quando ainda era um lugar cheio de chácaras, pequenas lagoas e terrenos alagadiços.

29 Reconhecido como patrimônio histórico pela UNESCO em 1985, o Centro Histórico de

Salvador, mais conhecido como Pelourinho, começou a receber recursos financeiros para revitalização, reformas e investimento em turismo a partir da década de 1990, o que acarretou em inúmeras mudanças que transformaram muitas das casas coloniais do bairro em empreendimentos de cultura e lazer.

30 Baseado em conversa com a uma trabalhadora do local, em 2012. 31 Oficialmente, segundo mapeamento do plano diretor da cidade de São Paulo, o bairro com

nome de Parque Novo Mundo fica a algumas quadras das ruas aqui utilizadas enquanto lugar de fazer campo.

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À beira das lagoas aconteceram as primeiras ocupações informais, de barracos feitos

de madeira, papelão e todo material estruturante que pudesse ser encontrado na rua.

Ali, em 1972, podia-se comprar um barraco construído em palafita por mais ou menos

4 mil reais32. Mas foi no fim da década de 80, quando o bairro já estava densamente

ocupado, que o governo de Luiza Erundina urbanizou algumas ruas, soterrou áreas

alagadiças e deu estruturas de alvenaria aos barracos33. O bairro, que beira a Rodovia

Presidente Dutra, está localizado no distrito de Vila Maria, Zona Norte de São Paulo. Os

espaços da roupa encontrados ali estão principalmente em um trecho de bairro

delimitado pela Rua Amadeu Conrado Marti e a Avenida Berimbau. São pequenas

garagens cheias de roupas usadas, amontoadas, que estão ali para serem separadas

por inúmeros trabalhadores. Quando se está passando pelas vias próximas ao bairro é

muito difícil conseguir vislumbrá-lo, ele está escondido entre fronteiras, invisível –

tática de sobrevivência. O espaço da roupa está protegido.

Se configuram então, estes espaços, enquanto lugar de espera, de comércio,

de transformação do resto em mercadoria. É o local de acesso do que está à margem,

para o que está inserido no macro sistema urbano e capitalístico. Porém, é também

nesses lugares que se encontra a possibilidade de que agenciamentos micropolíticos

aconteçam a partir do encontro dos corpos – dos personagens a serem apresentados a

seguir – com essas roupas. A vestimenta descartada, que volta à tona, está fora de

moda, já despadronizada e por isso pode ser desviante, um artifício de

desterritorialização. É um objeto que permite ao sujeito, nos conceitos de Guattari

(1986, p.45) o “atrevimento de se singularizar” (apud PRECIOSA, 2012). É quando a

roupa reencontra o corpo que entendemos sua nova função, a de espaço. Temos

então o que chamamos aqui de espaço-roupa.

32 Informação obtida em conversa com trabalhador do bairro, em 2013. 33 Idem.

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Fig. 11: Garagem de roupas no Parque Novo Mundo e seus trabalhadores. Foto retirada do Google Maps, em setembro de 2012.

Pensando sobre o espaço como uma sobreposição de camadas, platôs

(ROLNIK, 2011) ou até mesmo peles, encontramos o conceito das cinco peles,

sobre o qual trabalhou o artista austríaco Hundertwasser. Para ele cada corpo é

cercado por cinco peles: a epiderme, a roupa, a casa, a identidade social e o meio

global – incluindo aí fatores como ecologia e humanidade.

A primeira pele, a epiderme, é invólucro, camada sensível, viva, constituinte do

corpo, inspira e expira as necessidades mais básicas do ser humano. É a ligação entre

o “Eu” e o mundo (RESTANY, 2003). É a camada que coloca o sujeito em contato com

os espaços que o envolvem. A epiderme tem ligação direta com a segunda pele, a

vestimenta. Para Hundertwasser, o vestuário é um meio de expressar a criatividade e

deve ultrapassar as barreiras da “uniformidade, da simetria e da tirania da moda”

(RESTANY, 2003, p.38). A segunda pele cobre, protege e abriga a primeira e é

diretamente ligada a quarta pele, o meio social. Podemos considerar nesse estudo o

meio social como a cidade por onde o corpo vagueia, onde a roupa é fronteira

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delimitadora de espaços que ora se expandem, ora contraem, regulando o vínculo

entre o corpo e seu entorno. Cada tecido e forma transmite para o corpo e para o

mundo alguma coisa. A roupa torna-se um ambiente duplo, que se projeta para

dentro e para fora. Para dentro, é o primeiro e mais próximo contato da epiderme,

provocando os sentidos e, para fora, ilude os olhos do observador, revela ou esconde

o corpo, cria estruturas e sensações visuais (SALTZMAN, 2007).

Fig. 12 - Ilustração de Hundertwasser representando as cinco peles. Fonte: RESTANY, Pierre. Hundertwasser: o Pintor-Rei das Cinco Peles. Köln: Taschen, 2003, p.15.

Para Jacques, “a diferença entre prédio e vestimenta estaria nos diferentes

níveis da ideia de habitar, e sobretudo do abrigar, em todos os envolvimentos

possíveis da interioridade, da pele às fronteiras” (2008, p.162). A roupa é abrigo, a

proteção mais simples, envolvimento têxtil do corpo. Objeto que se difere do edifício,

para além do “nível da ideia de habitar”, através do tempo: é mais efêmera, se sugere

passageira, cambiante, tem uma temporalidade diferente do “habitar”. E, se a roupa é

abrigo, é também um espaço móvel, movido pelo corpo que cobre. É então afetada e

modificada a cada mudança de entorno e, dependendo do contexto – paisagem,

ambiente, temperatura, luz, cultura, sociedade, tecnologia, recursos e economia - tem

a capacidade de adaptar-se e desempenhar funções distintas (SALTZMAN, 2007).

Enquanto espaço e objeto, a roupa também se deixa afetar e modificar pelos corpos.

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Traça caminhos, é levada pelo corpo, mas também o leva. Porque “a roupa é capaz de

carregar o corpo ausente, a memória (...)” (STALYBRASS, 2008, p.26, grifo nosso). “As

roupas recebem a marca humana e (...) duradouras, elas ridicularizam nossa

mortalidade” (STALYBRASS, 2008, p.11), porque continuam, duram mesmo após a

morte do corpo que a carrega. “Os corpos vêm e vão: as roupas que receberam esses

corpos sobrevivem” (STALYBRASS, 2008, p.10). E essa sobrevivência é carregada

de marcas e histórias, o espaço-roupa é, portanto, abrigo temporário dos corpos

e, como casas, se desgastam, sujam e fissuram através do tempo e do sujeito que a

habita. No mesmo sentido, são modificadas e transformadas para abrigar o corpo da

maneira que melhor o agrade. As casas são pequenos mundos particulares fixos, as

roupas, um tanto mais efêmeras, são este espaço particular que se carrega

diariamente. “As roupas são, pois, uma forma de memória” (STALYBRASS, 2008,

p.33). Um local onde se sedimentam camadas de acontecimentos.

O espaço-roupa se configura a partir da roupa vestida, da união entre

corpo, vestimenta e cidade, fato que só é possível de acontecer através de mãos como

as do , do trapeiro, do homem em farrapos e dos outros personagens

conceituais ainda a serem descobertos nessa trama (no caso dos restos), que

trabalham em lugares como o Parque Novo Mundo e a Baixa dos Sapateiros, aqui

entendidos como espaços da roupa. Assim, através dos usos e descartes, a

trama do resto urbano vai se complexificando, outros corpos e locais se ligam a ela,

numa construção tentacular, especialmente em se tratando, neste caso, dos restos

das roupas. Vamos descobrindo então, percorrendo esses espaços, que ao fazê-lo

transitamos por uma

“(...) sociedade da roupa, pois a roupa é tanto uma moeda quanto

um meio de incorporação. À medida em que muda de mãos, ela

prende as pessoas em rede de obrigações. O poder particular da

roupa para efetivar essas redes está estreitamente associado a dois

aspectos quase contraditórios de sua materialidade: sua capacidade

para ser permeada e transformada tanto pelo fabricante quanto por

quem a veste; e sua capacidade para durar no tempo”. (STALYBRASS,

2008, p.13)

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E é a partir deste entendimento, que nos infiltramos nesta rede de relações,

descobrindo seus personagens conceituais, seus segredos e suas pistas. Vamos à rua.

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capítulo II

ALINHAVANDO TRAPOS:

QUANDO SE VAI À RUA

“Para conhecer os vaga-lumes, é preciso observá-los

no presente de sua sobrevivência: é preciso vê-los

dançar vivos no meio da noite, ainda que essa noite

seja varrida por alguns ferozes projetores. Ainda

que por pouco tempo. Ainda que por pouca coisa a

ser vista: é preciso cerca de cinco mil vaga-lumes

para produzir uma luz equivalente à de uma única

vela”.

(DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 52, grifo nosso)

Não seria nas ruas que a cidade acontece efetivamente? No encontro e na

troca? Não seriam as pessoas as responsáveis por “fazer a cidade” a cada passo que

dão por suas vias tortuosas ou planejadas? E nesse sentido, quais seriam as

“possibilidades de experiência da alteridade urbana” (JACQUES, p. 11, 2012)? Como

essas possibilidades de experiência podem se tornar potentes “na construção e na

(contra)produção de subjetividades, de sonhos e de desejos” (JACQUES, p. 11, 2012)

na cidade?

Em nosso caminho trapeiro, encontramos diversos sujeitos que retiramos de

sua condição de sujeito para serem aqui personagens conceituais, alguns dos quais já

apareceram anteriormente neste texto, que nos encaminham, através das trocas, da

abertura de seus pequenos mundos aos nossos dentes devoradores, ao encontro de

nossas questões centrais e à possível descoberta de outras formas de estar na cidade e

produzir subjetividades, sonhos e desejos. Antes de serem claramente apresentados

tais personagens conceituais, é preciso fazer algumas observações sobre eles e sobre

sua relação conosco. Primeiro, em nosso trajeto investigatório, uma questão aflora e é

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reforçada pelas palavras de Gilles Deleuze e Félix Guattari: seria o “outrem (...)

necessariamente segundo em relação a um eu?” (2010, p.23).

O outrem, “sempre percebido como um outro”, se faz condição para que o eu

passe do mundo em que se encontra a um distinto (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p.26).

É o outro que se faz condição para a percepção de si e do meio e, consequentemente,

é necessário para a mudança e o movimento destes. Os “outrens” encontrados por

nosso caminho estão aqui colocados enquanto condição de nossa existência (enquanto

autor / pesquisador) e movimento. Esses personagens podem ser configurados

enquanto “personagem conceitual” e “figura estética” (DELEUZE, G.;

GUATTARI, F., 2010), em um possível “lugar de encontro entre” (MESQUITA, 2008,

p.31) os dois conceitos. Ambos se diferem por ser o primeiro “potência de conceitos” e

o segundo “potência de afectos e perceptos” (DELEUZE, G.; GUATTARI, F., 2010, p.80).

Para Deleuze e Guattari, o personagem conceitual não é histórico, é sim um

acontecimento, existe em trânsito e tem contornos irregulares (MESQUITA, 2008). Ele

tem ainda o papel de “manifestar os territórios, desterritorializações e

reterritorializações absolutas do pensamento” (DELEUZE, G.; GUATTARI, F., 2010,

p.84). Enquanto que as figuras estéticas, “são sensações: perceptos e afectos,

paisagens e rostos, visões e devires” (DELEUZE, G.; GUATTARI, F., 2010, p.209). Devires

tais que também se encontram nos personagens conceituais. No entanto, “o

devir sensível é o ato pelo qual algo ou alguém não para de devir-outro (continuando a

ser o que é), (...) enquanto que o devir conceitual é o ato pelo qual o acontecimento

comum, ele mesmo, esquiva o que é” (DELEUZE, G.; GUATTARI, F., 2010, p.209). Os

personagens desta dissertação ora são sensações, ora acontecimentos. Ora são

personagens conceituais, ora figura estética. Ora são algo entre os

dois conceitos, como se fosse possível que se produzissem entre eles “não somente

alianças, mas bifurcações e substituições” (DELEUZE, G.; GUATTARI, F., 2010, p.81).

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Os personagens34 encontrados não pretendem aqui ser explicados ou

categorizados. Eles não são metáforas nem a generalização de pessoas reais. Eles

acontecem, portanto, enquanto conceito e sensação. Não falamos então dos sujeitos

em si, mas sim da potência conceitual encontrada neles ou através deles e que nos

aproximou do que é para nós o espaço-roupa.

Apresentamos a seguir os encontros urbanos pelos quais nos deixamos levar,

os sujeitos que vieram a ser personagens e que afetaram nossas reflexões e caminhos

nessa jornada. Através das posturas metodológicas descobertas durante o próprio

trajeto, uma suposta cartografia vai se fazendo e parece não ter fim. É a partir daqui

que nossos caminhos vão para além dos livros e conceitos, é entre ruas e múltiplos

encontros que nos deparamos com nossos aliados e ganhamos nossas valiosas pistas. É

através de nossos cadernos de campo que seguimos com essas reflexões.

vestígios e vínculos

primeiras pistas

Caminho por um dos quarteirões da Avenida J.J. Seabra, na Baixa dos

Sapateiros, em Salvador, vejo pelo menos três lojas de roupas usadas. A

descoberta dessas lojas resulta na imediata vontade de entrar, tocar as

roupas, sentir o cheiro gasto, desvendar os mistérios daqueles

estabelecimentos; continuar a perseguir a roupa – ato este inevitável e

recorrente a mim. Com a memória ativada, passam por meus olhos

outros tempos, em que roupas usadas eram meu objeto de trabalho e

34 Deve-se deixar claro que a palavra personagens a partir daqui pode querer dizer de

personagem conceitual e/ou figura estética, já que os dois conceitos se apresentam imbricados nesse texto.

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se transformavam em figurinos para personagens de filmes e peças de

teatro.

Passados alguns minutos dentro de uma dessas lojas, uma atendente

chega mais perto e oferece seus serviços. A pergunta que eu faço,

desconcerta-a: “Essas roupas são usadas?”. Ela, uma senhora que

imagino ser uma das donas da loja, dá voltas nas palavras e responde

que parte delas é usada, mas a maioria é nova, justifica que isso só

acontece pelo fato de comprarem as peças pelo telefone, de um lugar

em São Paulo, que lhes envia sem escolherem o que vem. É visível pelos

puídos, as cores e as formas que todas as roupas são usadas. Eu sei!

Caminhando mais um pouco pela loja, meus pés quase tropeçam em

grandes fardos de roupas escondidos debaixo das araras. Neles se pode

ler uma inscrição em caneta piloto:

“NOME DO

DESTINATÁRIO

SALVADOR – BA

SSA

MULHER”

Fig. 13: Manequins da loja de roupas usadas na Baixa dos Sapateiros, em Salvador – BA, onde vimos os fardos de roupa pela primeira vez. Atrás dos manequins se lê: não efetuamos troca. Foto de arquivo pessoal, 2012.

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Memória

“Tudo que não invento é falso”

(BARROS, 1996)

Um lampejo aceso a partir do encontro do passado e do presente, a memória é

estratégia de investigação, atividade intelectual. É uma faculdade paradoxal que é, ao

mesmo tempo, ligada a um acontecimento voluntário do lembrar e a algo involuntário:

lembranças, imagens que afetam quem lembra. Portanto, quando se lembra

voluntariamente de algo, outras lembranças surgem, coisas que talvez não se

pretendia lembrar. Assim sendo, muitas vezes “o lembrar e a lembrança se

contradizem”35. A lembrança é capaz de trazer de volta sensações e acontecimentos

passados, produz imagens, imaginação. Possibilita uma transformação do passado,

uma vez que a lembrança ocorre num momento presente e é, de certa forma,

influenciada por esse momento. Esse encontro do “Outrora” com o “Agora” (DIDI-

HUBERMAN, 2011, p.62) configurado em imagens mentais involuntárias, transforma a

lembrança do passado e pode colaborar para a mudança do presente (GAGNEBIN,

2006). Nesse sentido,

“se a imaginação – esse mecanismo produtor de imagens para o

pensamento – nos mostra o modo pelo qual o Outrora encontra, aí, o

nosso Agora para se liberarem constelações ricas de Futuro, então

podemos compreender a que ponto esse encontro dos tempos é

decisivo, essa colisão de um presente ativo com seu passado

reminiscente” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 62).

É decisivo, pois é através desse encontro, desse acontecimento mental, que se

passa à narrativa, ao discurso, seja ele histórico ou não. Para Gagnebin, a memória é

acaso, não enquanto “irrupção estatística de coincidências”, mas por ser algo que “não

depende de nossa vontade ou de nossa inteligência, algo que surge e se impõe a nós e

nos obriga, nos força a parar, a dar um tempo, a pensar” (GAGNEBIN, 2006, p.153).

“Não se trata de um resgate voluntário do passado, senão um passado que se apossa

involuntariamente de nosso presente e de nossos atos” (RAMIREZ, 2011, p. 120), nos

fazendo reconhecer no presente elementos remanescentes do já acontecido.

35 Frase retirada de entrevista com Jeanne Marie Gagnebin sobre a memória. Disponível em:

http://www.youtube.com/watch?v=Dr7jJoqxFfU

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Trazendo outra vez a discussão já posta anteriormente, quando falávamos da

metodologia de Ginzburg, o paradigma indiciário, esse acaso

“só pode ser percebido se há como um treino, uma ascese da

disponibilidade, uma “seleção”, umas “provas” que tornam o espírito

mais flexível, mais apto a acolhê-lo, esse imprevisto, essa ocasião –

kairosl – que, geralmente, não percebemos, jogamos fora,

rechaçamos e recalcamos” (GAGNEBIN, 2006, p.153).

Como diz Ginzburg, é necessário prestar atenção e “ouvir” as pistas com

cuidado, aflorando a intuição e aguçando os sentidos. Talvez as pistas só funcionem

quando, de alguma forma, causam esse lampejo de memória. A ocasião é então

aproveitada, não criada (CERTEAU, 1994). A memória traz para o momento a pequena

peça de encaixe que faltava, “como os pássaros que só põe seus ovos no ninho de

outras espécies, a memória produz num lugar que não lhe é próprio” (CERTEAU, 1994,

p. 162), realoca imagens do passado no presente, obtém sua força de intervenção de

“sua própria capacidade de ser alterada – deslocável, móvel, sem lugar fixo”

(CERTEAU, 1994, p. 162). “Longe de ser o relicário ou a lata de lixo do passado, a

memória vive de crer nos possíveis, e de esperá-los, vigilante, à espreita” (CERTEAU,

1994, p. 163). Ela fica à espera da ocasião, do momento em que aparecerá em forma

de lembrança para trazer à tona o acaso, o lampejo, o “clique”. Sem se limitar ao

passado, essa capacidade intelectual vive em uma pluralidade de tempos não lineares

(CERTEAU, 1994), por isso, essa memória involuntária seria capaz de anular distâncias

temporais entre o passado e o presente, como se fez em nós. É por meio da lembrança

estalada através de um acontecimento presente que a Salvador de 2012 e a São Paulo

de 2008 se encontram.

Voltando ao questionamento de Guinzburg sobre a impossibilidade do

historiador reviver um momento histórico, nos deparamos com o pensamento de

Walter Benjamin sobre o manejar do passado através da história. Para ele, "articular

historicamente o passado não significa conhecê-lo 'tal como ele propriamente foi'.

Significa apoderar-se de uma lembrança tal como ela cintila num instante de perigo"

(In GAGNEBIN, 2006, p.40), assim sendo, a memória nos parece outra vez

intrinsecamente ligada à narrativa histórica. Novamente afirmando, porém, que não

nos interessa fazer um levantamento histórico dos dois bairros em questão ou até

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mesmo criar uma narrativa histórica, falar sobre a memória e sua narrativa pode

colaborar para o maior entendimento do próprio fazer campo e da maneira como

ele é colocado para o leitor. Afinal, o que garante a fidelidade das imagens lembradas?

E da narrativa criada? Voltamos aqui a pensar no estado ficcional do texto, no

encontro com os personagens, na criação de um discurso a partir de acontecimentos

verdadeiros. A memória ajuda a preencher nossos cadernos de campo e a articular

nossas vivências do presente com acontecimentos do passado. Ela nos ajuda a

“ficcionar” (FOUCAULT, 1977 apud. ARAÚJO, 2011, p.58).

Desalinhavo#5

“Se eu vestia a jaqueta, Allon me vestia. Ele

estava lá nos puimentos do cotovelo, puimentos

que no jargão técnico da costura são chamados de

‘memória’. (...) Eu vesti a jaqueta de Allon.

Não importa quão gasta estivesse, ela sobreviveu

àqueles que a vestiram e, espero, sobreviverá a

mim. Ao pensar nas roupas como modas

passageiras, nós expressamos apenas uma meia-

verdade. Os corpos vêm e vão: as roupas que

receberam esses corpos sobrevivem” (STALYBRASS,

2008, p.10).

Para seguir este desalinhavo leia STALYBRASS,

Peter. O Casaco de Marx: roupas, memória, dor.

Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008. Ou vá

para a página 75.

(Sobre São Paulo, se não me falha a memória, em meados de 2008)

A primeira vez que fui ao Parque Novo Mundo, fui de carro, por um

caminho que não se poderia errar (o erro me daria alguns quilômetros

de pista até o próximo retorno). Fui até lá para selecionar roupas para o

figurino de um longa-metragem. Beirando a Rodovia Presidente Dutra, o

bairro localizado no distrito de Vila Maria, Zona Norte de São Paulo, tem

apenas um acesso pela Marginal Tietê que, se fosse perdido, faria com

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que eu desse uma grande volta de alguns quilômetros na Rodovia. É

preciso estar atento para encontrar o bairro. Se fosse conhecedora da

área, poderia ter chegado também por dentro de outros bairros, ou de

ônibus, por uma linha que me deixaria em uma de suas ruas internas.

Me lembro que quando cheguei ao bairro pensei: “se são tantos

caminhos, como nunca passei por aqui”?

Mas foi caminhando por suas pequenas vias deterioradas e passando

entre a Rua Amadeu Conrado Marti e a Avenida Berimbau que eu

realmente me surpreendi. Em um quadrado de ruas que abriga vários

quarteirões, estão os vestígios do processo de industrialização, vestígios

dos restos que a urbanização preferiu tirar das vistas. Eu estremeci

surpresa: garagens e cômodos inteiros cheios de montes de roupa, com

2 ou 3 metros de altura, onde imagino que 40 ou 50 pessoas trabalham

separando as peças por qualidade e tipo. Vi o Catador pela primeira vez,

ele escrevia nos fardos com uma caneta piloto, assinalando da seguinte

forma:

“NOME DO DESTINATÁRIO “ABREVIATURA DA CIDADE

CIDADE – ESTADO” CATEGORIA DA ROUPA”

Fig. 14: Garagem de roupas no Parque Novo Mundo e seus trabalhadores.

Foto retirada do Google Maps, em setembro de 2012.

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das desculpas e táticas

Nos vemos sozinhos na Baixa dos Sapateiros, um território desconhecido, mas

temos vontade de estar ali, de descobrir os segredos dessa trama que começa a se

apresentar diante de nosso estômago36. Queremos correr o risco e pagar o preço da

descoberta de novas pistas que possivelmente nos levarão a descobrir outras ligações

entre Salvador e São Paulo além dos fardos de roupas usadas. Nos lembramos então

de uma longa conversa com outros pesquisadores37 e da necessidade de todos, ao

chegar em um local desconhecido, de criar uma tática, descobrir uma desculpa

possível para se estar neste lugar. Se lembra que “criar é resistir” (DELEUZE;

GUATTARI, 1992, p.133) e vai em busca da brecha necessária para essa invenção

que, espera, possibilitará sua efetiva entrada na Baixa dos Sapateiros.

A tática, segundo Michel de Certeau, está presente em diversas camadas

estruturais de nossas cidades e opera em diversas situações enquanto instrumento de

sobrevivência social, principalmente enquanto ferramenta para os “fracos” e está

mais ligada ao tempo que ao lugar. É como o lampejo da memória, trabalha sobre

ocasiões, brechas, chances de ação, associações que podem ser capazes de gerar

outra coisa.

“(...) Ela (a tática) opera golpe por golpe, lance por lance. Aproveita

as “ocasiões” e delas depende, sem base para estocar benefícios,

aumentar a propriedade e prever saídas. O que ela ganha não se

conserva. Este não-lugar lhe permite sem dúvida mobilidade, mas

numa docilidade aos azares do tempo, para captar no voo as

possibilidades oferecidas por um instante. Tem que utilizar, vigilante,

as falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do

poder proprietário. Aí vai caçar. Cria ali surpresas. Consegue estar

onde ninguém espera. É astúcia” (CERTEAU, 1994, p. 100).

A tática que encontramos para frequentar o bairro está baseada nos mesmo

princípios táticos cotidianos de convívio na cidade. “Muitas práticas cotidianas (falar,

36 Brincando com as palavras: Já que nossa metodologia é antropófaga e não visual, tudo se

devora, tudo se digere, nada simplesmente se vê ou se apresenta diante dos olhos. 37 Conversa ocorrida em outubro de 2012 com pesquisadores do Laboratório Urbano, grupo de

pesquisa do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFBA, sobre trabalhos de campo.

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ler, circular, fazer compras ou preparar as refeições etc.) são do tipo tática” (CERTEAU,

1994, p. 47).

Quando a memória entra na história, vem com ela a necessidade da

investigação. Como ligar os vestígios? Como estabelecer vínculos entre

memórias e pistas? Eu preciso encontrar uma maneira de manter minha

presença na Baixa dos Sapateiros. Preciso chegar mais fundo. Preciso

estar ali para continuar a investigar a roupa usada.

Saindo da loja em que estava e continuando meu trajeto, atento o

paladar e algumas lojas depois encontro meu passe de entrada. Vejo

duas placas penduradas em uma pequena porta que dá para um

corredor bem fundo:

VENDE-SE

DUAS MÁQUINAS

INDUSTRIAL

E

COSTUREIRA

ACEITA-SE ENCOMENDAS

CONSERTOS DE BOLSAS EM

GERAL

Fig. 15: Entrada do ateliê da Costureirinha na Baixa dos Sapateiros, em Salvador – BA. Foto de arquivo pessoal, 2012.

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No fim do corredor vejo uma mulher séria sentada em frente a uma

máquina de costura. A desculpa se apresenta: “quero comprar uma

máquina de costura”, parece funcionar. Percebo então que sem a

desculpa não poderia estar ali, porque não tenho a permissão de

ultrapassar essa fronteira, de conversar com aquela mulher. A

desculpa me deixa entrar. Depois dela a conversa toma outros

rumos. A me abre as portas da Baixa dos Sapateiros.

Fig. 16: Misterioso corredor de entrada do ateliê da Costureirinha na Baixa dos Sapateiros, em Salvador – BA. Foto de arquivo pessoal, 2012.

Desalinhavo#6

“Na Baixa do Sapateiro”, música de Ary Barroso

Na Baixa do Sapateiro eu encontrei um dia

A morena mais frajola da Bahia

Pedi-lhe um beijo, não deu

Um abraço, sorriu

Pedi-lhe a mão, não quis dar, fugiu

Bahia, terra da felicidade

[...] Ô Bahia

Bahia que não me sai do pensamento...

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Para seguir esta pista vá para a página 97. Ou

procure escutar a canção de Ary Barroso.

A brecha se apresenta em forma de placa, indicando um caminho escuro por

um pequeno corredor onde, no fundo, se encontra a luz: a . A

associação feita para chegar ao impulso da desculpa passa pela memória e pela tática.

Para se usar da tática tem-se “constantemente que jogar com os acontecimentos para

os transformar em ‘ocasiões’” (CERTEAU, 1994, p. 46), jogo este que não pretende

configurar um “discurso, mas a própria decisão, ato e maneira de aproveitar a

‘ocasião’” (CERTEAU, 1994, p.46).

É a partir de então que passamos a frequentar esse trecho da Avenida J. J.

Seabra algumas vezes por semana, com a desculpa de visitar a e

conhecer seu trabalho e seu dia-a-dia. Todos os dias, antes de chegar ao ateliê de

nossa álibi, passamos pelas lojas de roupas usadas para descobrir qualquer novidade e

levamos conosco um pequeno caderno para anotações e uma câmera fotográfica

analógica38 para registrar eventuais situações.

Peço para passar algumas tardes com ela durante um tempo, para vê-la

trabalhar, aprender com ela. Conto que faço um trabalho nessa região

para a faculdade, uma pesquisa de campo. Ela parece não se importar, o

que a interessa é ter minha companhia, alguém para conversar. Não me

pergunta nada sobre a pesquisa, mas conversamos sobre igreja,

televisão e o pé de Araxá na casa dela.

Desta vez decido conversar com o , contar que estou fazendo

uma investigação sobre a roupa usada e pedir para ficar ali convivendo

38 A escolha pelo sistema analógico se dá exatamente pelo tempo de maturação deste material.

Só se vai rever a fotografia muito tempo depois do momento fotografado, o que traz novas reflexões e reaviva certas memórias. É o tempo de deglutição da antropofagia. Um registro lento e que possibilita diferentes ponderações sobre o momento.

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com ele durante alguns dias. Sua esposa está na loja, mas ele não.

Converso primeiro com ela, conto meu interesse sobre a roupa usada,

aqui a desculpa é a própria investigação, a Universidade, as

orientadoras, a bolsa Capes. O chega no meio da conversa,

volto ao início e lhe conto a mesma coisa que contei à sua esposa. Ele

me olha com ares de dúvida e me diz que pode me contar tudo: preços,

como chegam e como saem as roupas, como separam, quem traz, quem

leva, quem compra. Eu lhe digo que isso tudo me interessa, mas me

interessa mais estar ali, convivendo com eles, vendo o trabalho que eles

fazem diariamente e é então que sua esposa me ajuda a definir a

pesquisa e resume em uma pequena frase tudo que eu mesma queria

dizer: “ela quer conhecer o dia-a-dia da roupa usada”. É isso! Quero

conhecer o dia-a-dia desse resto urbano que se reinventa através das

mãos desses trabalhadores. O se dispõe a me ajudar.

Qual a diferença de se estar em campo com a certeza da desculpa? Que

segurança ela pode trazer à pesquisa? Vivemos situações diferentes nos dois bairros:

um é bastante central e, por isso, parece comum que alguém passe por ali todos os

dias, mesmo que sem se relacionar com ninguém, ao contrário, ficar parado ali poderia

parecer estranho para os trabalhadores e moradores locais. O outro bairro, periférico,

não é passagem comum para pedestres e qualquer pessoa desconhecida que passe

por ali é notada e, possivelmente, corre riscos. Ter aliados, os protetores de nosso

portal de entrada aos bairros, nos garantem a segurança da pesquisa e a possibilidade

de seguir adiante e conhecer outros personagens participantes dessa trama.

os aliados

Estamos agora seguros ao lado de nossos personagens. É preciso então explica-

los. A , o e o , principais agenciadores dessa trama,

podem ser a costureira de qualquer bairro, o catador de qualquer rua, o rueiro da

praça de qualquer cidade. Eles são o nosso encontro com os restos urbanos, eles são

os principais agentes dessa trama complexa, são a profusão de acontecimentos do

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fazer campo, que não necessariamente aconteceram do nosso contato com um

único sujeito. Enquanto acontecimento e sensação, esses personagens podem ocorrer

em qualquer sujeito que esteja imbricado na rede dessa suposta “cidade resto”.

São personagens criados para traduzir e levantar questões, conceitos, “afectos”. A

, como a de Balzac (veja desalinhavo#2, na página 26 desta

dissertação), costura de forma a modificar o entorno, a desviar das imposições do

sistema, do poder hegemônico, porém com o propósito de sobreviver e resistir na

cidade. Costura para contar histórias de livros revolucionários ou para fazer sua

própria história revolucionária. O separa o que são para ele pequenos

tesouros que a cidade deixou de lado, como o trapeiro, ou como os próprios

Catadores de Vardá (ver desalinhavo#4, na página 34 desta dissertação), que veem nos

restos uma possibilidade de recomeço, desvio ou construção de uma outra forma de

estar na cidade.

fardo de miudezas

ou

o “dia-a-dia da roupa usada”

Ele termina de colar um coturno, se levanta e me chama para entrar. Vai

explicando cada monte de roupa já separada e dobrada. Calças sociais

de primeira, calças sociais de segunda, camisas masculinas, lençóis,

roupas femininas, ‘fardo de miudezas’. Ele me explica que as roupas de

primeira ele vende mais caro, geralmente para lojas, as de segunda ele

vende mais barato e até onde sabe são roupas usadas por trabalhadores

da lavoura. As roupas de segunda tem bastante aceitação também no

Paraguai. As camisas masculinas tem boa saída e geralmente são

vendidas em um saco que vai metade calça social, metade camisa. Mas

as camisas brancas geralmente saem bem pouco, pouca gente quer. As

roupas femininas também saem menos e geralmente vão organizadas

em um ‘fardo misto’ que leva 300 peças e custa R$100, também podem

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ser classificadas como de primeira ou de segunda. O ‘fardo das

miudezas’ é um saco menor que é cheio de peças miúdas: roupas de

bebê, meias, roupa íntima. Esses fardos não tem quantidade de peça

certa, o preço é dado no fardo cheio, ‘socado’ como diz o .

Esta catação de trapos, acontecimentos fragmentados pela memória e

configurados em ficção é como o fardo de miudezas do Pequenos fatos

(meias, sutiãs, cuecas) ‘socados’ em um saco que, quando aberto, é desencadeador de

surpresas e desterritorializações. Não se sabe que peça será tirada do fardo, não se

sabe a cor, o estado de conservação, a matéria prima, o valor comercial. Mas cada

peça traz consigo uma história, um possível desencadear da memória, um possível

“acaso”, um puxar de fios.

Desalinhavo#7

Receita de moqueca de peixe, feijão de leite e peixe

frito. Presente da Costureirinha para nós, escrita por

sua sobrinha.

Para seguir esta pista, compre os ingredientes e vá

para a cozinha. Ou siga para a página 106 dessa

dissertação.

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A está encurtando algumas calças jeans,

transformando-as em bermudas.

- Nossa, mas essas calças são novas, não são? Porque te pediram para

fazer isso?

- Aqui faz muito calor, eles compram essas calças baratas e vale a pena

pra eles me pedirem pra reformar. Assim vende mais. Eu faço um preço

pelo pacote e fica bom pra eles.

Pergunto ao qual é o preço de uma bota de couro marrom. Ela

está praticamente nova. Ele me olha com certa desconfiança e me

responde:

- Essa bota é boa, por isso é mais cara. Tá conservada. Custa R$2,50.

No solado e na palmilha da bota posso ler sua marca, que

provavelmente ele desconhece. Essa mesma bota deve custar em torno

de R$300,00 na loja oficial. Compro-a.

Chego e encontro a remendando e colocando etiquetas

de diferentes marcas nas roupas usadas que são vendidas na loja ao

lado.

A está colocando zíperes novos e trocando cursores de

zíperes de mochilas da loja de bolsas chinesas da rua. Muitos deles já

chegam na loja quebradas, outras estouram na primeira vez que são

abertas.

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Fig. 17 e 18: Local de trabalho da Costureirinha e ela mostrando um de seus muitos truques: a tesoura imantada que atrai alfinetes, em Salvador / BA. Fotos de arquivo pessoal, 2012.

Fig. 19: Corredor do ateliê da Costureirinha cheio de bolsas e mochilas consertadas por ela, em Salvador / BA. Foto de arquivo pessoal, 2012.

As ações executadas pela e pelo passam pela

necessidade de estar na cidade, é preciso resistir e sobreviver diariamente, para isso

aprendem, apreendem, desenvolvem e se utilizam de táticas e truques. Através do

trabalho, do remendo, do uso de retalhos e da invenção de uma nova categoria de

objeto essa maneira de estar na cidade vai contra o caminho normatizado do trabalho

formal.

Se a vida urbana impõe a pergunta: “que possibilidades restam de criar laço, de

tecer um território existencial e subjetivo na contramão da serialização e das

reterritorializações propostas a cada minuto pela economia material e imaterial atual”

(PELBART, 2003, p. 22), o Parque Novo Mundo e a Baixa dos Sapateiros com seus

sujeitos agentes, aqui trazidos enquanto personagens, exibem sorrateiramente uma

resposta, e é essa própria trama de cidade resto uma das possibilidades,

“em que o desperdício, longe de figurar como resíduo irracional,

recebe uma função positiva, substituindo a utilidade racional numa

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funcionalidade social superior e se revela, no limite, como a função

essencial – tornando-se o aumento da despesa, o supérfluo, a

inutilidade ritual do “gasto para nada”, o lugar de produção de

valores, das diferenças e do sentido – tanto no plano individual como

no plano social”. (BAUDRILLARD, 2008, p. 40)

Estes espaços e corpos resistem. Resistem por serem resto? Muitas vezes

aparentam ser como um morador de rua: estão em ruínas, escondidos por uma parede

social e invisível, são homens lentos, errantes, em farrapos, vagabundos39. Habitam

uma beirada e configuram sua existência em outro tempo, que não o fugaz e efêmero

da cidade hegemônica. Há tempo para olhar, esperar, analisar, investigar e catalogar.

Ali onde as regras são ditadas mais vezes pela sobrevivência que por outros

fatores de natureza mais normativa, essas roupas resto são então objetos

desterritorializados e desviantes, pois instigam outros universos de referência, estão

permeando o sistema, quase invisíveis, mas com muita potência. Micro potência.

O que está em voga é o desvio, pois quando a roupa, o espaço e o corpo são

resto, as regras que se configurem enquanto macropolítica nem sempre são seguidas.

Por isso ao perguntar ao sobre o preço da bota ele categoriza-a como “boa” e

por isso justifica seu alto preço de R$2,50, não sabendo ele, que a mesma bota, no

shopping mais próximo deve custar em torno de R$300,00, devido à marca que leva

impressa em seu solado. Da mesma forma, em Salvador, a é

contratada pelo dono da loja de roupas usadas para costurar etiquetas nas roupas na

tentativa de referenciá-las como novas ou importantes dentro da lógica capitalista, o

dono da loja subverte e boicota o sistema, se inserindo nele, de uma maneira quase

contraditória. O mesmo se dá quando alguém decide vestir uma roupa que era resto,

pois ao vesti-la deve adaptá-la ao corpo, agir de improviso usando os recursos que

estiverem à mão; assim, estará de alguma forma indo contra os padrões estabelecidos

pelo sistema, provocando os olhos alheios pelas ruas da cidade e possibilitando que a

partir de seu improviso criado aconteça o estranhamento e, consequentemente, o

desvio. O espaço-roupa vai se apresentando para nós em todas estas situações: é

39 Termos utilizados respectivamente por Milton Santos, Paola Berenstein Jacques, Flávio de Carvalho e

João do Rio para falar de homens e mulheres que vagueiam pela cidade sem compromisso com a

velocidade e as imposições da contemporaneidade.

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fazer corpo, fazer vestimenta e fazer cidade, acontece em diversas camadas. Assim

como pensado por Hundertwasser, várias peles se sobrepõem neste nosso conceito,

peles do espaço-roupa resto.

Reformulação dos desejos, inversão de valores, possibilidade de resistência,

invisibilidade, desvio, ressignificação. Micro fatores que funcionam para despistar a

cidade como sistema capitalista, de macro acontecimentos. O que incide entre o

Parque Novo Mundo e a Baixa dos Sapateiros é uma sorrateira ação micropolítica,

mesmo que não consciente, uma ação de “microcombate” ao hegemônico, ao pré-

estabelecido. É a construção de outros modos de existir na cidade.

Ele me mostra um dos sacos que chegaram hoje com roupas novas,

ainda dentro do saco transparente da loja, com etiqueta de preço e

tudo. Vejo uma blusa feminina: R$27.

Fig. 20 e 21: O Catador mostra peça de roupa ainda sem uso e etiquetada, São Paulo / SP. Foto de arquivo pessoal, 2013.

Eu pergunto se ele usa as roupas que aparecem ali, ele me diz que sim,

que sempre aparece roupa boa e ele pega pra usar. Tem muita roupa

que chega nova e ele pega. Começa a contar que tem gente que tem

medo de usar roupa usada (se diverte com isso, ri) porque pensa que a

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pessoa que era dona da roupa já morreu. Ele ri e diz que temos que ter

medo de gente viva, gente morta não faz mal pra ninguém. A única coisa

é que tem que lavar a roupa direitinho, porque vai que a pessoa tinha

uma doença transmissível? Aí é só lavar e passar bem e pronto, pode

usar.

Ajudo o a arrumar algumas roupas. Uma das funções é olhar

dentro dos bolsos. Em um deles encontro um pequeno papel que parece

um ingresso para museu de algum país do oriente. Mostro o papel para

ele com surpresa, ele não se importa tanto com a descoberta, pergunto

então se ele encontra muita coisa nos bolsos, ele conta que antes

encontravam mais, mas que ele próprio nunca encontrou muita coisa,

que um parente já encontrou uma joia que vendeu por 3 mil reais. Ele

acha que agora as próprias instituições já olham os bolsos, a roupa

passa por muitas mãos antes de chegar ali.

Fig. 22: Em frente à loja do Catador roupas são jogadas na calçada para serem recolhidas pelo Rueiro ou pelo caminhão de lixo da Prefeitura, São Paulo / SP. Foto de arquivo pessoal, 2013.

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vão-se os dedos, ficam os anéis

Qual seria, afinal, a lógica dessa relação que se constrói diariamente com os

objetos? O desapego, o desconhecimento de seus processos e origens, a carga

sentimental que depositamos sobre eles. As coisas carregam em si camadas e camadas

de acontecimentos, que persistem desde o início de sua existência ou até mesmo

antes de se tornarem matéria, quando ainda eram apenas ideias.

Depois de serem separadas pelas mãos de gente como o , as roupas

são colocadas em fardos e levadas pelos caminhões e seus motoristas que os

distribuem em pequenas lojas de itens usados espalhadas pelo país e em fazendas, nas

quais as roupas são utilizadas pelos trabalhadores rurais para proteção do próprio

corpo e o não desgaste de suas roupas pessoais. O que seria resto é revertido e

mandado de volta para ser comercializado e reutilizado. O , o motorista do

caminhão, o lojista ou o trabalhador que recebe as roupas, a , o futuro

usuário, o figurinista e os atores do filme que usarão o figurino, o que pegou

na rua as roupas que o considerou ruins: a roupa e os corpos formam uma

rede de relações. A roupa é um objeto que traça caminhos, é levada pelo corpo, mas

também o leva. Porque “a roupa é capaz de carregar o corpo ausente, a memória (...)”

(STALYBRASS, 2008, p.26, grifo nosso) (não só ela, mas o mapa, a cartografia, a

dissertação e até mesmo a cidade). A roupa vai alinhavando e desalinhavando

territórios através de pessoas. Territorializa o espaço-roupa que, por sua vez,

territorializa os espaços das cidades. É através da roupa, dos corpos e espaços com os

quais ela interage, sendo vestida ou não, que uma série de tramas urbanas se revelam,

ou o avesso delas.

E é passeando por essas tramas, tocando as roupas, vestindo-as ou colocando

as mãos em seus bolsos, encontrando vestígios e pistas do passado que se pode tocar

a memória da matéria, imaginar a história da roupa e dos corpos que já passaram por

ela. As roupas (ou as coisas) são também uma forma de memória (STALYBRASS, 2008).

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Peter Stalybrass, em seu livro O casaco de Marx: roupas, memória, dor, fala sobre a

experiência de vestir o casaco de um velho amigo que faleceu:

“Eu vesti a jaqueta de Allon. Não importa quão gasta estivesse, ela

sobreviveu àqueles que a vestiram e, espero, sobreviverá a mim. Ao

pensar nas roupas como modas passageiras, nós expressamos apenas

uma meia-verdade. Os corpos vêm e vão: as roupas que receberam

esses corpos sobrevivem” (STALYBRASS, 2008, p.10).

Esse é, segundo ele, o “terror do traço material”, essa capacidade da matéria

de carregar em si estes extratos da existência. Essa capacidade de ser, ela mesma,

memória. Memória que carrega os traços de quem lidou com ela.

Desalinhavo#sem número

(ou ‘escolhe-se não categorizar a morte’)

Há um momento em que o desvio e o burlar diário

não são suficientes para garantir a sobrevivência na

cidade. A Costureirinha adoece. Tem o corpo mais

magro, a barriga inchada e não consegue se

alimentar. Ela vai ao pronto socorro, nós a

acompanhamos. Vamos de ônibus e ao desembarcar

temos que andar uma certa distância, pela qual a

pede nosso braço como apoio.

Chegamos ao pronto socorro e as portas estão

fechadas, um guarda informa que o hospital está

em reforma e não está fazendo atendimentos de

urgência. Indica outro pronto socorro

pertencente a um posto de saúde distante umas

duas quadras dali. A se sente

fraca e quer desistir, mas insistimos e seguimos

adiante. Chegando ao outro pronto socorro há uma

fila de aproximadamente 30 pessoas que esperam

da maneira que podem, sentadas nas poucas

cadeiras da sala de espera, em pé, sentadas no

chão ou na sarjeta do lado de fora. As que

sentem ânsia, vomitam, as que salivam, escarram.

Uma situação constrangedora em uma sala de

espera pequena e escura. Depois de uma espera de

3h a Costureirinha é atendida.

________

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Descobrimos que a Costureirinha está internada e

decidimos visitá-la para saber os detalhes da

sua situação. Ela está no Hospital do Subúrbio,

um hospital novo e bem equipado, porém muito

distante. Para chegar do centro da cidade é

necessário tomar dois ônibus e o trajeto leva

aproximadamente 2h. A Costureirinha está deitada

em uma maca no corredor. Parece melhor, mas

ainda não consegue comer.

________

A Costureirinha não resiste.

Sai de cena.

________

Para seguir esta pista vá para a p. 94 dessa

dissertação.

Começa então a analisar ternos pretos, separa-os e dobra-os com muito

capricho. Olha dentro dos bolsos, coloca a calça dobrada ao meio dentro

do paletó e fecha os botões do paletó. Dobra os braços do paletó em ‘X’

e então o dobra ao meio. Antes de separar e dobrar as peças elas estão

amontoadas em uma grande caixa de madeira, as calças estão enfiadas

nas mangas de seu respectivo paletó.

O corpo de quem lida com a matéria, dos trabalhadores, está completamente

ligado a essa estratificação de acontecimentos sobreposta nos objetos. O do

Parque Novo Mundo, que separa, organiza e cataloga as roupas que antes eram resto

é como o trapeiro e, enquanto lida com os trapos, seu próprio corpo se estende a

eles e vira trapo. Da mesma forma, a da Baixa dos Sapateiros, ao

remendar e renovar os trapos tem seu corpo estendido à máquina, ao tecido e à

roupa. Nossos personagens trabalham com farrapos e assim se tornam o próprio

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farrapo? Lidando com restos, estas profissões, corpos e finalmente essa cidade

construída para além das fronteiras formais poderiam ser também consideradas resto?

o lugar e o tempo

Um bairro formado por ocupações irregulares bastante recentes e densas, o

outro com uma história antiga, a cada dia tem mais edifícios abandonados, ruindo.

Bairros bastante diferentes e com uma dinâmica cotidiana bastante parecida. A

convivência diária entre moradores e trabalhadores dá às duas localidades um ar

parecido, onde vizinhos de trabalho ou de moradia, compartilham as necessidades e se

ajudam dentro do possível. É o tempo o fator crucial para a percepção dessa dinâmica.

É ele também o que propicia a existência da mesma. Costureirinha e Catador, por

exemplo, construíram amizades, parcerias e relações de vizinhança vivendo e

convivendo durante muitos anos nesses bairros.

De um lado um lugar que, por sobrar à beira da cidade, possibilitou a densa

ocupação de suas ruas com edificações irregulares; do outro, um lugar que sobrevive

na invisibilidade de suas ruínas, moradias abandonadas por diversos fatores. Seriam

esses bairros restos de uma cidade formal?

Quando ele chegou ali onde hoje é a R. dos Figos tinha uma lagoa onde

se jogava muito lixo, era como um lixão mesmo. Chegou e comprou um

barraco por mais ou menos R$4 mil. O barraco ficava em cima do lago e

era bem simples, construído com madeira e papelão. Depois de um

tempo ele mudou para um barraco melhor, com chão de cimento,

construído com Madeirit. Em 1980, ele comprou o terreno onde hoje é

sua loja e sua casa e em 1981 já tinha terminado de construir a casa e se

mudou, tudo com o dinheiro das roupas. Ele diz que ganhou muito

dinheiro com as roupas.

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A me conta que tem 65 anos e trabalha na Baixa dos

Sapateiros há pelo menos 50. Primeiro foi vendedora, depois ajudante

em um ateliê que trabalhava com couro, do outro lado da rua. O mesmo

ateliê se mudou para onde ela trabalha hoje, ali ela aprendeu algumas

coisas sobre costura, mas não trabalhou como costureira. Foi a morte de

seu patrão, que tinha como pai, que a possibilitou aprender a costurar

para permanecer ali. A família dele deixou o espaço e as máquinas para

que ela cuidasse e ela teve que aprender de tudo para ganhar a vida.

Costura desde sapatos até roupas delicadas, passando por mochilas,

barras de calças jeans, troca de zíperes e ajustes em geral. O que não

sabe fazer tenta mesmo assim. Improvisa. Pede ajuda aos vizinhos e à

sobrinha, que a ajuda com alguns ajustes mais delicados em casa.

Uma mulher sai da portinha que fica ao lado da loja e vem conversar

com o , ela pede dinheiro emprestado para colocar crédito no

celular, precisa de R$13, o diz que só tem R$10, que foi o que

ele vendeu no dia, mas empresta pra moça e diz pra ela pedir o resto do

dinheiro para outra mulher. Ela vai pedir. O me conta que ela é

sua inquilina e que paga tudo direitinho. Entrando naquele corredor ele

tem 11 aluguéis, o que lhe rende 5mil reais por mês. Ele construiu vários

apartamentinhos no terreno para poder alugar.

Desalinhavo#8

O me conta que existe um projeto para

demolir algumas casas naquela rua para fazer a

ligação direta do Viaduto Curuçá com a Marginal

Tietê, cortando o bairro ao meio. Então, quem

comprar essas casas corre o risco de ter que

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sair depois e a prefeitura paga mais ou menos

R$5 mil por andar. Sua vizinha, por exemplo, que

poderia vender a casa agora por 150 mil,

ganharia da prefeitura cerca de 15 mil reais sem

indenização, porque o terreno já é da prefeitura

e a construção irregular.

Para seguir esta pista vá para a página 101

dessa dissertação.

Dentre as funções que ela me dá, encomendo o lanche ou a marmita

para o almoço, vou comprar botões na loja da Ladeira da Praça, busco

mochilas na loja do chinês, entrego as reformas já feitas e a acompanho

no fim do dia até o ponto de ônibus, quando no caminho, ela vai me

apresentando para os funcionários das lojas vizinhas:

- sua sobrinha?

- não, não, ela é minha amiga.

A vizinha veio tirar satisfação com a esposa do porque ela disse

para um amigo que ela estava pedindo 250 mil pela casa dela, mas ela

está pedindo 150. Depois da intriga resolvida, a esposa mostra uma

planta para ela pelo celular e ela diz que acha que tem uma planta

dessas, vai até sua casa, que fica bem na frente da loja, para buscar a

planta. Enquanto isso a esposa me fala da vizinha, que ela sabe que

dessa casa não sai escritura, por isso não pode vender mais caro (a casa

tem 3 andares e está completamente reformada, com varanda e porta

comercial de aço no térreo). Porque ali as únicas casas que tem escritura

são as casas “de Cohab” que ficam “pra lá da R. dos Figos”, porque ali foi

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a prefeitura que construiu. O resto é ocupação irregular. A vizinha volta

com a planta e ambas vibram por ser a mesma. Trocam informações

sobre o cuidado da planta. A vizinha vai embora.

Fig. 23 e 24: Local de trabalho da Costureirinha na Baixa dos Sapateiros, em Salvador / BA. Foto de arquivo pessoal, 2013.

o e suas múltiplas facetas

O , em sua existência ambulante, se desdobra em múltiplas facetas que

vão se revelando a depender da necessidade momentânea de seu estar na cidade. O

seu corpo resto, que caminha pelas brechas e beiradas da cidade formal redesenhado

pelas próprias ruas, nos aparece algumas vezes, sempre transformado. Como numa

brincadeira sobre sua própria vida, ele troca de máscaras a todo o tempo, desvia, se

esconde em suas próprias aparições. É como se ele se configurasse enquanto múltiplos

espectros dos quais, mesmo os olhos mais atentos, poderiam duvidar. É ele mesmo a

imagem do “ficcionar”.

Enquanto conversamos chega um e pede uma calça. O

fala que não tem, que já conhece ele e que ele pede ali todo dia, que

não vai dar nada. O insiste e ele continua negando. Entra na loja

e se aproxima de mim procurando alguma coisa por traz, como se fosse

pegar algo e correr. Não faz isso. Pergunta pela última vez:

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- não tem não, né?

- não rapaz, eu te conheço, não vou te dar nada.

Ele sai e vai pedir na loja da rua em frente. O me conta que o

pede roupas para trocar por droga.

- Pega a roupa e vai lá trocar por pedra. Conheço ele.

Logo um rapaz sai da portinha que fica ao lado da loja com um saco nas

mãos, entrega ao sem falar nada e vai embora. Ele deixa o saco

ali enquanto conversamos mais um pouco. Depois resolve abrir o saco e

me explicar:

- esse é o rapaz do quintal, ele morava na rua, agora ele mora ai atrás.

Eu comecei pedindo pra ele me dar 150 reais em roupas por mês, ele faz

direitinho e ainda ajuda a varrer, botar o lixo. Essas roupas as pessoas

dão pra ele e ele me vende em troca da moradia. Mas as roupas dele eu

já nem conto mais, ele traz e eu aceito. Ele come na casa dos outros,

porque ai não tem nem fogão. Eu acolhi ele da rua, sabe?

Chega um com uma sacola na mão, o , sempre muito

direto:

- fala meu rapaz!

- bom dia.

- ah! Que bom que ele falou! Bom dia!

O tira da sacola uma colcha vermelha com escritos japoneses,

oferece ao e ele diz que paga R$3. Tira então outro tecido da

sacola. É um lençol de solteiro. O se adianta:

- dá R$5?

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- olha! Já está por dentro dos preços, né? (para mim) Nesse aqui eu

pago R$2 porque é de solteiro.

O tira os R$5 da carteira para dar para ele, que tira do bolso

duas notas de 2 e uma moeda de 1 e coloca sobre a perna do :

- tem nota de R$10?

O dá a nota e fica com os trocados.

O vai embora e o diz que com aquele dinheiro já “dá

duas pedras”. Segundo ele o é um usuário de crack e no ponto

de venda não se aceita moeda, por isso queria a nota de R$10. Assim

que eles conseguem algumas peças que dão R$5 eles correm pra

vender.

- eu não tô vendendo droga, nem me drogando, tô fazendo meu

trabalho. Quer se matar, se mata.

Caminho pelas ruas do Parque Novo Mundo, muitos montes de roupas

estão nas calçadas, os lançam das portas de suas garagens as

peças que não lhes interessa. O lixeiro passa e leva tudo. Os

continuam na mesma função mesmo depois do caminhão passar. Vejo

então alguns selecionando roupas e acessórios.

É ele que nos dá então essa clareza da percepção do resto enquanto moeda de

troca clandestina. Ao utilizar dessa matéria para financiar seu consumo de drogas ou

simplesmente para conseguir algum dinheiro, ele se alinha com o e com a

nessa possível categoria de agenciador do resto. Se antes ele se

apresentava enquanto usuário, explorador da matéria para vestir o próprio corpo,

agora faz às vezes de negociador, do que tem a necessidade de utilizar o resto para o

seu sobreviver dentro do sistema capitalista.

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Suas ações de troca se caracterizam enquanto táticas de sobrevivência, ou

até mesmo táticas do consumo, o que para Certeau são “engenhosidades do fraco

para tirar partido do forte” (CERTEAU, 1994, p. 45). Tais artifícios são capazes, então,

de provocar uma certa “politização das práticas cotidianas” (CERTEAU, 1994, p. 45).

Estas práticas acontecem diariamente, de diversas formas, agenciando diversas

situações, porém, elas estão invisíveis diante dos olhos do poder hegemônico, pois

tudo o que ele contabiliza é “aquilo que é usado, não as maneiras de utilizá-lo”

(CERTEAU, 1994, p.98). É por isso que, para Certeau, essas práticas cotidianas se

tornam invisíveis, já que as ferramentas utilizadas para “mapear” as ações cotidianas

são do universo da codificação e da estatística. Para ele, “a enquete estatística só

encontra o homogêneo. Ela reproduz o sistema ao qual pertence e deixa fora do seu

campo a proliferação das histórias e operações heterogêneas que compõe o

patchwork do cotidiano” (1994, p.46). Em se tratando dos restos, matéria que já nos

parece bastante invisível diante da configuração urbana que encontramos, essa

negociação, de certo modo clandestina e de valores diversos, acontece de forma

bastante heterogênea. Os valores dados à matéria tem parâmetros divergentes

daqueles com os quais o poder hegemônico está acostumado a tratar. Nesta economia

da roupa usada, “as coisas adquirem vida própria, isto é, somos pagos não na moeda

neutra do dinheiro, mas em material que é ricamente absorvente de significado

simbólico e no qual as memórias e as relações sociais são literalmente corporificadas”

(STALYBRASS, 2008, p.15). Neste caso, o tempo, a estratificação de acontecimentos, o

gosto e o afeto podem ser também fatores de influência na negociação.

A me conta que só tem R$4,00 na carteira, que espera

que no dia seguinte o pagamento (aposentadoria?) caia, se não vai ficar

sem dinheiro. Estou pronta a oferecer alguma coisa quando um cliente

entra. Ele é muito simpático com a , parece ser cliente

antigo. Tira uma calça de dentro de uma sacola e pede para que ela faça

a barra na medida que ela sempre faz. Não prova a calça para que ela

meça. Diz que quer pagar adiantado (vibro por ela!), tira R$10,00 da

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carteira e pergunta se o serviço ainda custa R$5,00 ou se subiu. Ela

reponde rápido que agora subiu para R$6,00. Ele paga, ela dá os R$4,00

que tinha. Esperta, varia o preço do serviço a depender dos trocados

que traz na carteira.

Ele me fala que as roupas que ele vende ali vão por transportadora e

levam nota de um imposto bem baixinho, já que, segundo ele, essas

roupas já tiveram seu imposto pago e o governo deve achar até bom

que se pague duas vezes pelo mesmo produto.

E a negociação acontece também enquanto tática, pois vai influenciar a

resistência do “fraco” para estar em seu lugar. Assim, a Costureirinha modifica o preço

de seu serviço devido a sua disponibilidade de troco e o Catador paga menos impostos

do que deveria para poder manter-se trabalhando. “Em suma, a tática é a arte do

fraco” (CERTEAU, 1994, p.101), que se utiliza dela para continuar e persistir.

É perpassando tais táticas, costuras diárias de resistência, que nossos

personagens insistem, desejam sobreviver na cidade através dos restos que agenciam

e parecem ser eles próprios. Permanecer em seu lugar ou em seu nomadismo é

questão de sobrevivência.

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capítulo III

COSTURAS:

QUANDO SE COLOCAM AS AGULHAS À PROVA

“Quem anda no trilho é trem de ferro, sou água

que corre entre pedras: liberdade caça jeito”

BARROS, Manoel de.

As coisas e os espaços parecem perder o mistério e o interesse à medida que os

usamos. Os espaços sem gente parecem mais perfeitos, assemelhados ao seu projeto,

ao ideal desenhado por um sujeito. Ao ser ocupado, ao ter as paredes manchadas, o

piso desgastado, os móveis improvisados, os aparatos diários fora de seus lugares

certos, o espaço parece perder valor. As rachaduras nas paredes, golas puídas, as

manchas dos vazamentos e dos suores, a pele suja do asfalto, o bolso furado, o cinto

inventado, o ventilador empoeirado, a panela furada, as unhas sujas. “[...] Em meio à

avalanche de propósitos, à avareza minuciosa incrustada na fracção circular de cada

dia” (RAMOS, 2008, p.170), o desgaste, a poeira, o desuso e o tempo são elementos

perturbadores.

O uso, esse relacionar de corpo-objeto, corpo-espaço, corpo-corpo, objeto-

espaço, é o que define a cidade. A cidade resto é resto, portanto, pelo seu uso. É

esse lugar subjetivo da existência de objetos, pessoas e espaços que levam consigo o

peso de uma temporalidade que muitas vezes transgride o proposto ou imposto pela

vivência nas grandes cidades. Ela existe no vazio do interesse urbanístico hegemônico,

político e capitalístico e carrega em si o questionamento desse modo de existir nesses

espaços, o questionamento da própria existência e da vida enquanto ciclo. A cidade

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resto sobrevive entre os interesses que regem o urbanismo e é também uma das

forças que age sobre ele. Existe dentro e fora dessa camada invisível que se instaura

sobre todos os sujeitos e domina pensamentos e vontades, é às vezes agente dessa

camada, outras vezes infringe suas regras.

Os caminhos irregulares ou tortuosos, a falta de calçada, a cusparada dada no

chão ao lado do banco onde se senta diariamente, outra noção de higiene que não

priva o corpo de experiências necessárias, como separar roupas de pessoas

completamente desconhecidas, muitas vezes já mortas, ou revirar sacos de lixo na rua.

Mas ao mesmo tempo a transformação de sua existência na cidade resto em uma

possibilidade de transgredir esse viver, de acompanhar os desejos capitalísticos

comuns, uma possibilidade de, através dos agenciamentos que faz na cidade

resto, poder participar de um consumo pacificado, se inserindo de alguma forma na

sociedade do espetáculo na qual o resto não é bem-vindo. A cidade resto

possibilita a sobrevivência de seu sujeito de formas capitalísticas, assim, apesar de

usarem as roupas que separam ou costuram, os sujeitos agentes da cidade resto

que encontramos pelo caminho, consomem televisores de última geração, celulares

touch, câmeras fotográficas, assistem filmes da sessão da tarde e não leem livros, a

não ser a bíblia. Fazem de seu trabalho resto, a possibilidade de estarem inseridos na

esfera do pensamento hegemônico. É, portanto, um lugar transgressor, que carrega

em si valores outros que não os padronizados pelo pensamento hegemônico, porém é

esse pensamento dominante que possibilita sua existência, que por sua vez possibilita

a sobrevivência de espaços, objetos e indivíduos, garantindo através deles a

sobrevivência da própria cidade resto, que por sua vez possibilita a esses sujeitos,

espaços e objetos uma certa participação renovada nesse lugar do predominante,

nessa cidade formal, hegemônica, formatada para satisfazer as vontades de um poder

dominante. O resto se configura, em meio a esse desejo de “não-vida” (RAMOS, 2008,

p.160), de esterilidade do espaço e das coisas, de repetição simultânea, enquanto um

intervalo, “pequenas células de inutilidade ou de utilidade incompreensível” (RAMOS,

2008, p.170), capaz de trazer a memória à tona, tornando sua própria sobrevivência

única e singular.

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Como o pão, que embolora aleatoriamente, em diversas partes de seu “corpo”,

sem ordem ou lógica perceptível, o resto vai se alojando e sobrevivendo dentro dos

limites desse hegemônico, e é o próprio hegemônico que embolorou. Não existe

delimitação ou corte entre esses retalhos, eles se tocam, são costurados lado a lado e

sobrepostos, suas tramas se confundem, se misturam.

Desalinhavo#9

“Manifesto do Mofo contra o racionalismo em

Arquitetura”, Hundertwasser (1958)

“Quando a ferrugem ataca a lâmina de barbear,

quando o mofo forma-se num muro, quando o musgo

nasce num canto e atenua os ângulos, nós

deveríamos nos alegar de que a vida microbiótica

entra na casa e nos damos conta que somos

testemunhas das mudanças arquitetônicas em que

temos muito a aprender. [...] Para salvar a

arquitetura funcionalista da ruína moral uma

substância corrosiva deveria ser jogada nos

muros de vidro e superfícies de concreto liso

para permitir ao mofo que se fixe sobre eles. É

tempo de que a indústria reconheça que a missão

fundamental é a produção do mofo criativo!”.

Para seguir essa pista continue lendo o

Manifesto no livro Hundertwasser Architecture:

for a more human architecture in harmony with

nature. Alemanha: Taschen, 1997. p. 46-48. Ou

acesse (traduzido) em:

http://www.cronologiadourbanismo.ufba.br/apresen

tacao.php?idVerbete=41&langVerbete=pt

ferramentas e ofícios

As tesouras e agulhas da e de Margiela são ferramentas para

cortar, alinhavar, desalinhavar, alinhavar outra vez e, por fim, costurar uma roupa ou

um tecido que venha a se reconfigurar a partir dessas ações listadas acima. Como uma

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cartografia em movimento, nas mãos desses costureiros por essência, a roupa pode

traçar diversos e inúmeros caminhos, pode ser desfeita e refeita, costurada e

descosturada, mas cada decisão e movimento realizado neste processo pode deixar

marcas sobre o material costurado. Marcas estas que afetam o todo da peça, que

ferem o tecido, que ficam como cicatrizes sobre a matéria. O urbanismo se faz

ferramenta feito as tesouras e agulhas de nossos aliados e se pronuncia sobre a cidade

através do urbanista, do Estado e de outros profissionais que pensam sobre ela:

cortando, alinhavando, desalinhavando, alinhavando outra vez e, por fim, costurando.

Porém, ao pensarmos sobre o poder dessa ferramenta e o que ela possibilita a

quem a utiliza, encontramos outros fatores e camadas que podem vir a influenciar o

peso da mão de quem a emprega. Vemos como o grande desafio na gestão de nossas

cidades a sua ordenação “por parâmetros socialmente mais justos” (WHITAKER, 2014),

a necessidade urgente de modificar a “dinâmica segregadora de produção de cidade”

(WHITAKER, 2014) dentro da qual nos encontramos hoje. Em forma de projeto ou de

planejamento, o urbanismo no Brasil acontece a princípio e principalmente como

forma de controle de uso do solo urbano. A maneira segregadora de crescimento das

grandes cidades é resultado de um problema que, pode se dizer, se resume à falta de

terra. Ou melhor, a falta de terra com valor acessível. Esse problema, por sua vez, é

resultado de um conflito de interesses: “de um lado, a cidade, o espaço urbano da

maioria e, de outro, os interesses imobiliários” (VILLAÇA, 1995, p.50), turísticos ou

comerciais, ou seja, capitalísticos. Esses interesses divergentes acabam por fazer do

urbanismo uma ferramenta contraditória, já que, quando é utilizada, acaba sendo para

“favorecer a ordem atual das coisas” (WHITAKER, 2014). Assim, quem tem poder, seja

ele financeiro ou político, acaba impondo seus interesses para favorecer suas próprias

necessidades. Desse modo, se uma cidade já está dividida em zonas elitizadas e não

elitizadas, industriais e não industrias, de interesse social e de interesse do capital

imobiliário, a tendência é que essas zonas sejam cada vez mais bem definidas e

separadas. Primeiro pelo valor agregado a cada zona, possibilitando a moradia em

certas áreas apenas para quem “pode pagar”, depois pelos próprios interesses dos

quais já falamos acima, que parecem querer construir uma cidade ainda mais

valorizada do ponto de vista imobiliário. Nosso trajeto de campo nos possibilitou

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vivenciar essa segregação que acontece tanto em São Paulo, pela valorização

imobiliária de certos pontos da cidade, quanto em Salvador, pelo mesmo motivo, mas

somado aí um interesse turístico de supervalorização de algumas áreas históricas ou

privilegiadas pela natureza.

Assim, esses espaços produzidos pela racionalização do urbano, resultado

desses interesses dominadores, tem o intuito de manter separados elementos centrais

e marginais, ou seja, os espaços luminosos e opacos (SANTOS, 1997), os

espetacularizados e os invisíveis. Porém, como temos visto aqui, são as práticas

ordinárias e cotidianas dos sujeitos (SANTOS,1997; CERTEAU,1994) que possibilitam

essa articulação não desejada por esse urbanismo e, o tempo e a vivência dessas

pessoas no espaço dão a ele uma outra atmosfera, construindo nele um sentido de

lugar. Para Certeau (1994), o lugar só passa a sê-lo pela multiplicidade de pessoas e

acontecimentos que o habitam e pelo tempo que possibilita a segmentação de

camadas de história e memória num espaço. A articulação entre espaço e tempo é que

nos parece construir o sentido de lugar.

Voltando a olhar para as roupas e a costura, se percebe que o arremate da

costura, seu ponto final, representa o estágio no qual ela persistirá. Porém, a roupa

desafia os moldes em que foi feita e se modifica através do uso. Com as cidades é a

mesma coisa. Ela se apresenta como a água que se diz ser Manoel de Barros no trecho

que citamos no início do capítulo, escorre pelos espaços que sobram e constrói seus

próprios caminhos. Essas interligações entre a costura e esse urbanismo nos levam a

pensar sobre seus moldes, que passados pelos ares de um racionalismo modernista,

ligado a industrialização e ao capitalismo, se esforçam por padronizar corpos e

espaços. Um deseja facilitar e acelerar a produção, desenvolvendo moldes e modos de

padronizar tamanhos e cortes, o outro tenta encontrar a fórmula espacial perfeita para

abrigar estes corpos padronizados, estabelecer limites e descobrir maneiras de

construir cidades coerentes com as formas de produção que se desenvolveram, mais

aceleradas e ambiciosas, permitindo seu funcionamento sem interrupções. Porém,

quando nos deparamos com o espaço-roupa, principalmente em seu estado resto,

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percebemos que é a interação desse espaço com o corpo que o veste ou o agencia que

transforma esses moldes em desvio, em potência transformadora da cidade.

Nesse sentido, qual seria o alcance desse urbanismo nessa “cidade resto”?

Seria ele capaz de atingir os micro acontecimentos percebidos e encontrados através

dessa pesquisa? E essa “cidade resto”, configurada através de uma

temporalidade mais lenta, como cabe e se adapta a esse urbanismo de tempo rápido,

de planejamento imponente e padronizado?

Desalinhavo#10

O jogo do resta um: Em um tabuleiro de jogo com

32 peças, o objetivo é deixar apenas uma no

final. Tudo começa quando se tem um espaço vazio

no tabuleiro e o jogador escolhe por que peça

começar. Tira uma delas do tabuleiro, “pula” por

cima de outra e recoloca a que retirou no espaço

vazio do tabuleiro. A peça “pulada” sai do jogo,

a que “pulou” continua até que não seja mais

possível fazer jogadas. O jogo é dado por

perdido se, no tabuleiro, fica mais de uma peça.

Se resta uma só, o jogador foi vitorioso, todas

as peças desnecessárias foram eliminadas, o

objetivo proposto foi alcançado.

O tempo lento e antropofágico descoberto no decorrer desta pesquisa passa a

ser uma reflexão que deve ser considerada em diversos âmbitos e que, em nosso caso,

é uma brecha para pensar o urbanismo. Está claro que o tempo se apresenta para

nós como uma questão de enorme importância. Levando em consideração algumas

das palavras-chave trazidas nesse texto, entendemos que muitas delas dependem do

tempo para se configurarem de uma maneira ou outra. A sobrevivência, a

memória, a desculpa e a brecha só acontecem da maneira que propomos aqui

devido a ação de um tempo que difere do tempo capitalístico (GUATTARI, 1985) e que,

portanto, não é linear nem cronológico. A memória se apresenta como uma

artimanha do tempo para nos propor associações, acasos e descobertas, é construída

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em camadas móveis, que se sobrepõem, se acumulam e comparecem aparentemente

sem coerência. A desculpa é sempre apresentada para que o tempo se estenda e

que o jogo do fazer campo tenha seu fim adiado. E a brecha nos parece ser um

intervalo de tempo que segue outra velocidade, um buraco que nos permite ver

acontecimentos e coisas que durante um tempo linear e rápido estariam invisíveis.

Estas três pequenas palavras estariam ligadas à sobrevivência, enquanto

instância temporal e espacial de continuidade. Sobreviver quer dizer de um corpo ou

um fator subjetivo que persiste em um lugar e um tempo. Muitas vezes, como vimos

em toda a pesquisa, a depender da ajuda dessas pequenas palavras: memória,

desculpa e brecha.

Fig. 25, 26, 27: Fotografias de Isa Marcelli, Sem Título, 2011. Disponível em: https://www.flickr.com/photos/isamarcelli/sets/72157627505306353/

A cidade resto sobrevive feito vaga-lume. Sendo o resto um estado de matéria

errático por não ter local delimitado ou fixo, é muitas vezes intocável e, por isso,

resistente. Se mostra a uma luz fraca, emanada de sua própria existência. E é esse

intervalo vazio, essa falta de intervenção e de vislumbre em meio às estruturas

vigentes. Sua sobrevivência, assim como a dos vaga-lumes, está garantida por seu

pequeno lampejo, visto apenas em um certo momento do dia ou da noite, por sujeitos

que devem estar atentos às minúcias do momento. Didi-Huberman, em seu livro

Sobrevivência dos vaga-lumes, traz, através do cinema e dos escritos de Pier Paolo

Pasolini, questões bastante importantes sobre o domínio cultural e político na época

do fascismo italiano. Diante dos holofotes iluminados desse pensamento que se fez

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hegemônico e persistente, a sobrevivência dos pequenos pirilampos, apesar de “fugaz

e frágil”, se fazia potente:

“[...] ainda era possível, nos tempos do fascismo histórico, resistir, ou

seja, iluminar a noite com alguns lampejos de pensamento, por

exemplo, relendo o Inferno de Dante, mas também descobrindo a

poesia dialetal ou simplesmente observando a dança dos vaga-lumes

em Bolonha, em 1941” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p.28)

Diante dos holofotes que iluminam amplas áreas das nossas grandes cidades,

da experiência de espaço e troca que nos é dada como única, baseada em moldes

modernos, arriscamos dizer que os restos são esses pequenos lampejos que,

diariamente, assombram nossos olhos com sua existência e, principalmente, com sua

capacidade de sobrevivência. A poeira, o mofo, o desgastado, o engordurado e tantas

das qualidades naturais do tempo que age sobre os objetos e corpos são definidas

como inaceitáveis dentro desses moldes iluminados do espetacular. Porém, é quando

nos deparamos com essas condições que, muitas vezes, somos atingidos pela reflexão

de nossa própria existência na cidade, porque vislumbrando o tempo que age sobre as

coisas temos a possibilidade de perceber o tempo da própria vida e nos encontramos,

por alguns instantes enquanto dentro desse pensamento, resistentes às imposições

desse poder político, midiático e mercadológico que muitas vezes nos toma por

inteiro. Assim como Didi-Huberman, não podemos nos conformar com o

desaparecimento dos vaga-lumes “na ofuscante claridade dos ‘ferozes’ projetores:

projetores dos mirantes, dos shows políticos, dos estádios de futebol, dos palcos de

televisão” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p.30), porque isso seria

“[...] agir como vencidos: é estarmos convencidos de que a

máquina cumpre seu trabalho sem resto nem resistência. É não

ver mais nada. É, portanto, não ver o espaço – seja ele

intersticial, intermitente, nômade, situado no improvável – das

aberturas, dos possíveis, dos lampejos, dos apesar de tudo”.

DIDI-HUBERMAN, 2011, p.42)

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O resto é para nós, “aquilo que aparece apesar de tudo” (DIDI-HUBERMAN,

2011, p.65) diante dos olhos atentos, enquanto uma pequena contemplação diária,

feito vaga-lumes, e que revela um mundo.

Por isso, nossas reflexões feitas aqui sobre esse urbanismo dominado por

diversos interesses e baseado em moldes modernos nascem a partir do vivido, desse

fraco cintilar luminoso que os restos nos possibilitaram ver mesmo sob a ofuscante luz

desse cotidiano não inventivo. O urbanismo com bases na racionalização moderna,

deseja transformar o tempo em algo acelerado, linear, controlado e estabilizado. Não

prevê nem deseja intervalos, brechas ou lentidão e, assim, afeta (de muitas formas)

a experiência cotidiana, a memória coletiva e a estratificação dos acontecimentos e

subjetividades dos diversos segmentos sociais. Esse urbanismo, não deseja conviver

com surpresas, mas projeta para desenvolver espaços controlados e normatizados,

que às vezes não atendem as verdadeiras necessidades dos moradores dos locais em

questão. Em uma cidade fragmentada como Salvador, por exemplo, utilizar a

ferramenta do urbanismo na tentativa de construir um espaço totalitário e luminoso

pode ser de certa forma agressivo com seus moradores. Foi através da morte da

que nos deparamos com reflexões importantes neste sentido, na

descoberta de um urbanismo segregador, já que a morte é o retrato mais palpável do

tempo e nos faz pensar as condições da própria sobrevivência.

o clarão da morte

A morte apareceu no meio do caminho para mostrar que o descontrole do

campo e da vida é completo. Ela é um acontecimento que faz parte do trajeto da

pesquisa, do caminho trilhado por nós e que, surpreendentemente, nos esclarece

muitas coisas. Trazer à tona a morte de um personagem é uma escolha como todas as

outras. Aqui esse evento nos permite vislumbrar um universo de questões ainda não

discutidas, que estão envolvidas com o urbanismo e sua maneira de agir nas cidades.

A , moradora de um bairro periférico chamado Mussurunga,

todos os dias pegava duas conduções para chegar ao seu trabalho, um ateliê na Baixa

dos Sapateiros, área central da cidade de Salvador. Certo dia, já bastante doente,

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chegou em casa, depois de pegar suas duas conduções diárias e achou que deveria

chamar uma ambulância. A ambulância veio, socorreu-a e levou-a para a internação.

Devido aos poucos leitos vagos e às condições ruins de muitos hospitais, a

foi levada ao Hospital do Subúrbio que é um ótimo e novo hospital,

porém está do outro lado da cidade em relação à casa dela e de seus familiares, que

também moram em Mussurunga.

A foi morar em Mussurunga por ter se inscrito em um

programa habitacional da prefeitura, em meados da década de 1970. Havia um

escritório na Avenida Sete, no centro da cidade, onde a população podia se inscrever

no programa para ter sua casa no conjunto habitacional. A antes

morava na Baixa dos Sapateiros, de aluguel, a algumas quadras do trabalho. Logo que

se mudou para Mussurunga, a cidade se modificou para ela. O trajeto casa-trabalho,

que antes fazia a pé, tomou outra dimensão: duas conduções diárias para ir e duas

para voltar, o que lhe tomava em torno de 4 ou 5 horas diárias. Próximo a sua casa,

que tem um grande quintal com árvores como Araxá, das quais ela tira frutas para o

lanche da tarde, não havia nenhum ponto de ônibus, por isso ela e os outros

trabalhadores do bairro caminhavam aproximadamente dois quilômetros até chegar

ao lugar onde a condução passava. Com os anos, a estrutura do bairro se modificou e

por isso, de alguma forma, acabou se aproximando do centro da cidade, o transporte

chegou até mais perto, o comércio do bairro se desenvolveu, escolas e hospitais foram

sendo construídos40. Porém, mesmo com o desenvolvimento do bairro, quando uma

de suas moradoras necessita, ela precisa ser internada no outro extremo da cidade.

40 Estas informações sobre o bairro de Mussurunga foram obtidas em conversa com a Costureirinha, em 2012.

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Fig. 28: Cartografia bordada da dimensão da cidade de Salvador para a baseada em sua concepção temporal. Foto de acervo pessoal.

Fig. 29: Leitura das localidades da aos moldes urbanísticos, baseada em uma concepção espacial. Mapa retirado do site: http://www.meuclub.net/wp-content/uploads/2012/03/mapa-de-salvador-veja-aqui.jpg, com alterações e marcações nossas.

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O que deseja atingir esse urbanismo que constrói conjuntos habitacionais

distantes do centro da cidade, de uma infraestrutura básica e do transporte, afastando

as pessoas de suas realidades, sua vizinhança e atingindo sua memória e sua produção

de subjetividade?

Em nossas cartografias inventadas a partir da busca de pistas, percebemos algo

importante em nosso trajeto logo após a morte da . A reflexão mais

pertinente que nos veio, caminhando pela Baixa dos Sapateiros foi principalmente

sobre a quantidade de edifícios em ruinas ou abandonados nas cercanias do Centro

Histórico de Salvador. Não é difícil chegar à pergunta que chegamos: porque escolas,

hospitais e moradias não são estruturadas nesses edifícios à espera? E estes edifícios

estão à espera de que? Serão estes espaços, espaços resto? Da mesma forma que

nosso conceito de espaço-roupa somente se mostra e se configura quando abriga

um corpo ou é por ele agenciado, as outras camadas, as outras peles de

Hundertwasser, só acontecem em relação ao corpo, à primeira pele, à epiderme.

Nesse sentido falar de objetos e espaços à espera é também falar do vazio. E vazio não

somente pela falta de preenchimento, mas principalmente pela falta da relação da

qual falamos acima: corpo-objeto, corpo-espaço, corpo-corpo, objeto-espaço, relação

tal que é um agenciamento social e político, o qual só pode acontecer através de

sujeitos. O espaço-roupa, a arquitetura e o espaço urbano são envolvidos por uma

camada maior que é o meio social. Se a produção de cidade segrega, quer dizer que a

camada do social está afetada e, consequentemente, todas as outras também estão.

Utilizar o urbanismo na construção de uma dinâmica que dá o real “direito à cidade” a

poucos, em que a estrutura da cidade desfavorece até mesmo a circulação de seus

moradores e o acesso a determinados lugares, é pensar o espaço-roupa enquanto

camada estéril, impossibilitada de ser utilizada e vivida em sua completude, já que ela

é essa camada que está inserida entre os corpos e os espaços por onde circulam.

o mapa e o mapeado

“Mas os vaga-lumes desapareceram nessa época de

ditadura industrial e consumista em que cada um

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acaba se exibindo como se fosse uma mercadoria em

sua vitrine, uma forma justamente de não aparecer.

Uma forma de trocar a dignidade civil por um

espetáculo indefinidamente comercializável”. (DIDI-

HUBERMAN, 2011, p.37)

Em junho de 2013, o então governador do estado da Bahia, Jaques Wagner,

assinou a ordem de serviço para o início de obras de requalificação da Baixa dos

Sapateiros. A obra, que foi orçada em R$13,8 milhões para a primeira fase e R$12,8

para a segunda, visa, a princípio fazer uma “vala única, por onde passarão redes de

infraestrutura subterrâneas (energia elétrica, telefonia, operadoras de internet), a

pavimentação das vias, recuperação de praças e passeios” (CONDER, 2013), fazendo

melhorias na iluminação e limpeza pública. A ação pretende valorizar o comércio local

e preservar o patrimônio histórico, já que a Baixa dos Sapateiros também faz parte do

Centro Antigo da cidade e tem grande importância histórica. A segunda parte do

projeto almeja fazer melhorias nas fachadas dos antigos casarões, “serviços de

limpeza, pintura e recuperação das coberturas das edificações, remoção de estruturas,

revestimentos e demolição de marquises” que, supostamente, “contribuem para a

degradação da área” (CONDER, 2013). O projeto prevê ainda a criação de uma praça a

ser nomeada Ary Barroso, em homenagem ao compositor de música popular que fez

uma canção em homenagem à Baixa. Além disso, o Governo do Estado vai reformar o

prédio do Quartel dos Bombeiros, que fica na esquina da Avenida J. J. Seabra com a

Ladeira da Praça e o Mercado de São Miguel. Para a Conder (Companhia de

Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia), responsável pelas obras, e o

governador do estado, o novo aspecto urbanístico a ser trazido para a Baixa, já atrai

investimentos privados e vai melhorar as vendas de todo o comércio local. Segundo

reportagem do jornal Tribuna da Bahia (2012), a falta de infraestrutura, limpeza

urbana, iluminação e o transporte público precário fizeram com que muitos

comerciantes deixassem o local onde, na década de 1990, ainda tinha as ruas

disputadas pelos transeuntes e consumidores principalmente perto de datas festivas,

como São João e Natal. Ainda segundo a mesma reportagem, a Baixa dos Sapateiros

gera cerca de 3 mil empregos diretos e 2 mil indiretos e há a preocupação em mantê-

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los. Além disso, outra grande preocupação que estimula a efetivação do projeto é a J.

J. Seabra ser “uma importante artéria do Centro Histórico, que pode servir inclusive

como entreposto durante a Copa do Mundo de 2014”, já que a avenida dá acesso à

Arena Fonte Nova, ao Pelourinho, à Praça da Sé e adjacências41.

Todos os esforços demonstrados para olhar em direção a essa região não

parecem conseguir ver o potencial do que já existe ali.

Muitos projetos de revitalização do Centro Antigo e das cercanias do já

revitalizado Centro Histórico, mais conhecido como Pelourinho, têm sido divulgados,

propostos e inicializados nos últimos meses. Suas intenções são de melhorar a visão

que os próprios moradores da cidade e os turistas têm desses locais, estimulando o

crescimento do comércio e do turismo. Para isso, algumas desapropriações devem ser

feitas, algumas lojas, moradores, empresas e escritórios terão de deixar seus locais a

pedido da Conder. Na Avenida J. J. Seabra, por exemplo, segundo reportagem do

Correio 24 Horas (2013), 27 imóveis serão esvaziados para que possam ser

reformados. Segundo Nilson Sarti, Presidente da Associação de Dirigentes de Empresas

do Mercado Imobiliário da Bahia (ADEMI-BA), a “arrecadação desses imóveis é um

grande benefício” (2014) para a cidade de Salvador, já que a maioria deles estão

“abandonados por falta de pagamento dos tributos ou não cumprimento da função

social”. Ainda segundo Sarti, esses edifícios tendem a ser utilizados para a instalação

de órgãos municipais que ainda não têm sedes próprias, para a instituição de parcerias

na utilização do espaço e para a venda dos mesmos. “Ocupar uma região hoje

abandonada é uma maneira de gerar movimentação financeira e estímulo ao

desenvolvimento do mercado imobiliário e do setor de serviços local” (SARTI, 2014).

Nesta “região abandonada” uma série de acontecimentos enchem as ruas

todos os dias. Os moradores das localidades próximas confiam a ida dos filhos à escola

aos amigos que trabalham nas lojas da Avenida; os lojistas, passam mais tempo ali do

que em suas próprias casas, dividem almoços, conversas e afetos; entre um ônibus e

outro que passa pela rua alguém grita de uma calçada para que do outro lado outra

41 Até a finalização desta dissertação não encontramos nenhuma notícia da efetivação das obras na região.

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pessoa continue a conversa. Ali, os trabalhadores das lojas vizinhas viam a

chegar e ir embora, o rapaz da padaria já sabia qual era o lanche diário

dela e o morador da vila de casas próxima ao seu ateliê confiava seu cágado aos

cuidados dela. Na loja de roupas usadas, onde alguns fiéis clientes passam pelo menos

uma vez por semana, as vendedoras dão conselhos de moda, de como vestir-se bem

para uma festa ou de qual sapato combinar com a roupa provada. Este trecho

aparentemente abandonado está apenas configurado, de certa forma, fora dos

padrões desejados para que possa ser considerado espetacularizado, para que possa

atender os interesses de uma minoria. Suas lojas de roupas baratas vindas da China,

suas fachadas tradicionais escondidas por letreiros e placas já gastos, os manequins

que ocupam as ruas, os moradores de rua e consumidores de crack que circulam por

ali pedindo dinheiro ou alguma mercadoria: tudo colabora para que, diante dos olhos

do hegemônico, esse lugar seja resto. E resto, apesar de sua capacidade de burlar

regras e transgredir fronteiras, não tem lugar pensado diante dos holofotes.

Fig. 30: Cartografia bordada da Baixa dos Sapateiros a partir das relações da Costureirinha. Foto de arquivo pessoal.

Em nenhum momento as propostas citadas acima parecem privilegiar

melhorias habitacionais e de transporte ou a implementação de hospitais, pronto

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socorros e escolas, iniciativas estas que poderiam fazer aumentar a frequência de

pessoas no bairro, principalmente se houvesse o estímulo da chegada de novos

moradores na região. Nesse caso, se as propostas não tocam nesses pontos e parecem

apenas ter a intenção de espetacularizar a área e privilegiar alguns, qual seria o

propósito de “revitalizar” um local que, nos parece, já tem vida?

O espaço-roupa, agenciado pela na Baixa dos Sapateiros se

faz interlocutor dos corpos dos sujeitos. É, portanto, um fazer corpo, fazer vestimenta

e fazer cidade. É ele o responsável pela vida que nos foi possível conhecer e vivenciar

ali, mas que existe de outras formas em todos os lugares. Ali o espaço-roupa era

resto ou vinha da China, em outros lugares é importado, de luxo ou sustentável. De

qualquer forma, quando o espaço-roupa está ativo e presente, existe para os

sujeitos a possibilidade de se transformar, socializar e dar vida a uma série de

acontecimentos. Essa camada que sobrepõe os corpos possibilita sua própria

(re)invenção e, apesar de parecer contraditório, quando se pensa na produção em

massa da indústria, potencializa a possibilidade do sujeito de se singularizar.

em outro canto, o mesmo conto?

Cabe ao urbanismo ser ferramenta, instrumento a ser usado nesse fazer cidade.

Porém, como toda ferramenta, ele está a serviço de quem o carrega, a serviço da força

que rege sobre ele. Nesse sentido, de certa forma, o urbanismo corre o risco de ser ele

próprio o responsável por “engessar” o espaço urbano. Empunhado pelo poder dos

grandes investidores do mercado imobiliário, o urbanismo está a serviço de interesses

financeiros. Enquanto que a dinâmica da cidade, o quanto ela é para todos ou não, o

quanto ela é democrática ou não fica comprometida, levada adiante com

preocupações tão específicas que impossibilitam a visualização do espaço urbano

como um todo.

Nas estreitas ruas do Parque Novo Mundo por onde circulamos, onde carros

passam lentamente e com cuidado por causa do pouco espaço, o tempo da cidade de

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São Paulo parece parar, ou pelo menos desacelerar. No miolo do bairro, a vida

acontece nas ruas, entre vizinhos, nas trocas diárias e cotidianas. Porém, o bairro

parece estar como um obstáculo que dificulta a passagem dos carros que vêm do

viaduto Curuçá para a Marginal Tietê. Pela Rua Queirós Veloso, os carros e caminhões

passam um pouco mais rápido, por ser a via de acesso principal, porém em relação a

grandes vias expressas, é ainda muito lenta e segue os padrões do bairro. Acontece

que o , em uma conversa casual, nos contou que essa rua está visada para

virar uma via expressa que conduziria os carros da Vila Maria para a Marginal Tietê.

Para que essa via exista é preciso que um dos lados da rua seja desapropriado,

demolido e asfaltado. Tal projeto, que circula boca-a-boca pelo bairro, assusta alguns

moradores que, como a vizinha do , decidem se desfazer do imóvel onde

vivem antes que tenham que ser desapropriados, o que os daria bem menos retorno

financeiro, já que, segundo ele, o valor da indenização por desapropriação pagaria

bem menos do que realmente vale o imóvel. A via expressa que cortaria o bairro,

cortaria também as relações já estabelecidas ali e transformaria a área onde antes era

uma lagoa, em uma espécie de ilha de ocupações irregulares, porém atenderia as

necessidades de grandes empresas que almejam facilitar a saída de seus produtos da

cidade de São Paulo.

Por outro lado, outros projetos também estão sendo planejados para a área,

através de um programa de urbanização de favelas chamado Renova SP, da Secretaria

Municipal de Habitação (SEHAB) de São Paulo. Segundo o diagnóstico desse projeto, a

área onde está o e seus espaços da roupa usada está dentro de um

perímetro chamado Jardim Japão e nos documentos do levantamento está nomeada

“Marconi Curuçá / Vila Maria III”, tendo como área de assentamento 18675m² e

comportando 700 domicílios. Metade dessa área está categorizada como “Favela” e a

outra metade como “Empreendimento”. Dentre as propostas do projeto em relação a

nossa área de maior interesse, está a “qualificação dos assentos habitacionais

precários através da inserção de áreas livres associadas à implantação de

equipamentos públicos de pequeno porte; novas conexões e percursos entre pontos e

centralidades identificados.” (SEHAB, 2012) Para a realização das propostas, o

pequeno trecho de bairro teria cerca de 140 remoções, ou seja, 20% dos domicílios.

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Essas famílias retiradas provavelmente receberiam da Prefeitura o seguro

aluguel que, segundo o , vale mais ou menos R$500, até que conseguissem

ser privilegiadas por algum programa de habitação social do governo. Novamente

algumas questões nos surgem. Imaginando para onde iriam tais famílias que vivem ali

há pelo menos alguns anos, não conseguimos encontrar nenhum local próximo ao

bairro onde pudessem alugar uma moradia em boas condições por esse valor, levando

em conta o suposto interesse em melhorar a qualidade de vida dessas pessoas, já que

as famílias retiradas, imaginamos, devem ser compostas em média por, pelo menos,

quatro pessoas. Suponhamos então, que essas famílias logo consigam sua moradia

própria através de algum programa do governo, nos perguntamos: onde estão sendo

construídas as habitações de interesse social para onde serão destinadas essas

pessoas? Quem serão seus futuros vizinhos? Onde comprarão pão, pegarão ônibus

para ir ao trabalho ou beberão cerveja no fim da tarde?

Fig. 31 Cartografia bordada do Parque Novo Mundo a partir das relações do Catador. Foto de arquivo pessoal.

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Nesse sentido, o espaço-roupa vem a ser um conceito que direciona nosso

olhar para outros tipos de acontecimentos na cidade, que ocorrem de forma

espraiada, pequena e nômade, possibilitando o exercício de olhar para o que também

existe na cidade além do que se pode ver à primeira vista. O espaço-roupa nos leva

a enxergar a cidade através de suas tramas e desvia nossos olhos do espetacular,

surpreendendo nossa percepção de cidade. A construção desse espaço se faz em

relação ao corpo que abriga e a seu entorno, a sua casa, ao bairro onde vive, as ruas

pelas quais caminha. Por isso o espaço-roupa do morador de rua é acinzentado,

sujo, desgastado, por que se constrói diariamente nas ruas. Por isso o espaço-

roupa de um morador do Parque Novo Mundo quando deslocado ou removido da

área onde se configurou, sofre alterações muitas vezes violentas. Ao servir aos

interesses de uma minoria que tem o poder em mãos, o urbanismo fica cego às

necessidades reais da maioria da população da cidade e aí é que sobram pelas beiradas

trechos de cidade, sacos de roupas, grupos de gente. Essas sobras, que em toda sua

potência não se deixam vitimizar, se configuram enquanto resto e driblam fronteiras e

regras para sobreviver de alguma forma. O urbanismo deixa escapar as sobras e, uma

vez que permite isso, já não as pode alcançar para inseri-las nessa cidade que

utopicamente deseja construir, uma cidade que seja para todos por direito. Desse

modo, o urbanismo que vem regido por esse poder hegemônico, permite que um

sujeito viaje 4 horas por dia em transporte público para servir a alguém que mora ou

tem sua empresa em localidades centrais ou elitizadas. Ao servir ao capitalístico, esse

fazer cidade cai em uma emboscada: perde entre seus limites temporais, espaciais e

sociais um tanto de matéria que poderia lhe servir na construção dessa cidade.

Todo nosso trajeto de catação de conceitos, descobertas de pistas, encontro

com sujeitos que transformamos aqui em personagens conceituais, alinhavos,

desalinhavos e costuras nos fazem refletir sobre as condições das dinâmicas em locais

como Salvador ou São Paulo que, mesmo muito diferentes entre si, sofrem com as

mesmas questões que envolvem o urbanismo e a construção de cidade. Nas duas

cidades, conversando apenas com as pessoas dos bairros em questão, vivenciando seu

cotidiano, flagrando suas táticas de sobrevivência, experimentando um pouco de

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sua maneira de existir na cidade em relação ao espaço-roupa, percebemos que

questões muito maiores do que as verdadeiras necessidades desses sujeitos é que

controlam a ferramenta do urbanismo. Questões maiores não em importância, mas

em influência e poder. Questões que privilegiam os interesses de poucos e com isso

levam o urbanismo a deturpar toda uma cidade.

O espaço-roupa resto se mostra para nós o tempo todo enquanto matéria

potencializadora do existir no espaço urbano, transgredindo a cidade resto e,

até mesmo, essa construção de cidade segregadora. Através das mãos de nossos

personagens conceituais, que nos ajudaram o tempo todo a encontrar o caminho

dessa pesquisa e de tantos outros sujeitos que poderiam ser inseridos nessa

configuração da cidade resto, entendemos a importância dessa micro resistência

na cidade que, ao infringir certas regras e desejos hegemônicos garante a

sobrevivência de pequenos vaga-lumes que vagueiam ao anoitecer pelas ruas,

deixando persistir a magia da vida nas grandes cidades.

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O ARREMATE FINAL:

cidade resto ou resto de cidade?

“Se não formos capazes de enlouquecer o ocorrido –

entendê-lo como louco (não incompreensível, mas

louco) –, de injetar variantes nele, mostrá-los

sempre à beira do apagamento, sempre à borda de

outra interpretação, se o que ficar de um fato não

for a borra de múltiplos fatos possíveis, se o

efetivo não prestar homenagem a tudo que não subiu

à superfície, se não cantar o réquiem dos

acontecimentos que morreram, as notas inaudíveis de

seus berros, bem, então será melhor recitar alto,

todos os dias, as manchetes que a gente lê nos

jornais, porque a isso vai se resumir a nossa

vida.” (RAMOS, 2008, p.167)

Talvez ainda estejamos em processo. Um processo longo e lento em busca de

uma maneira de fazer cidade, urbanismo e roupa. Maneira essa que talvez dependa do

aprender a ver e sentir o espaço e sua temporalidade, que precise do olhar para o que

sobra por suas beiradas não como sobra, mas como parte desse todo fragmentado,

como possibilidade de existência, como uma outra maneira, diferente apenas, não

errada ou subversiva. Talvez ainda estejamos em busca de entender esse corpo que

habita o espaço e que o constrói e o modifica, em busca de perceber novas e velhas

necessidades que podem ser atendidas em prol da construção de um lugar mais

articulado e que preze pelo tempo da própria existência e da memória. Esse tempo

que é lento, como o tempo da vida, que fica visível quando se planta em uma horta ou

se vive do tempo da natureza. Talvez estejamos em uma crise de velocidade e na

rapidez em que andamos não damos brecha para que as coisas que estão à nossa

volta emerjam e nos mostrem as reais necessidades das cidades, dos corpos e da

própria vida.

É como se houvesse na cidade espaços que sobram. Como terrenos baldios.

Lugares que restam mesmo não sendo vazios. Eles tem um motivo qualquer para

estarem ali. Especulação, esquecimento, abandono, descaso, desgaste ou

simplesmente falta de uso. A cidade resto existe às beiradas desse urbanismo

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orgânico (OLIVIERI, 2011) porque ele não deseja vê-la, não pode alcançá-la. Quando o

faz, é ainda deixando rebarbas, refugos espalhados pelos cantos. O urbanismo, que

guiado por mãos poderosas, tenta construir uma cidade totalitária, acaba por

fragmentar territórios, segregar pessoas, deixa escapar pedaços.

Nesse caminho nos ocorreu diversas vezes acabar esse texto de outras formas

além da escrita, nos deu vontade de sair do papel, virar tecido, roupa. Deu vontade de

que a dissertação seguisse esse seu tempo antropofágico, ruminante, do deglutir do

boi que passa os dentes sobre o alimento muitas vezes antes de realmente engoli-lo,

em outras plataformas. Ruminar. Essa palavra é o resumo desse processo todo. Um vai

e vem, um mastiga e engole e mastiga de novo. E esse processo todo, que se fez na

lentidão necessária para sua concretude nos fez refletir sobre o fazer roupa e as linhas

que possibilitam esse processo. Linhas não enquanto categorias, mas enquanto

matéria que costura, que junta retalhos, que da nó, se emaranha, arrebenta e borda.

Linhas que são como as relações entre pessoas e espaços, que vão se embolando,

entrecruzando, cada qual continuando a ser ela mesma, mas em função da outra,

amarrada nela, sendo apoio ou dependendo dela. Costurar, esse ato milenar de

construir o abrigo diário se transforma diariamente e, o tempo lento que antes se

abrigava nesta prática, vai se distanciando dela. As costureiras recebem por

quantidade de peças produzidas e isso faz com que precisem aumentar a velocidade

da produção. Os alfaiates, aqueles que se encontravam em todo centro de cidade, vão

virando uma lenda escondida entre as camadas dos ternos industrializados vendidos a

cada esquina. Mas apesar de toda mudança estrutural, de velocidade e de valores,

ainda persistem algumas mãos lentas. Essas como a da , do

ou do , essas que podem ser também as mãos das bordadeiras. E por isso, ao

pensar cartografias para além do papel, a primeira coisa a nos ocorrer foi o bordado, já

que traz em si a potência de ser linha, ser emaranhado e ainda poder ser outra coisa.

Assim como se faz o espaço-roupa: é abrigo, fronteira, espaço e pode ser outras

coisas. Pode ser potência política de transformação cotidiana, pode ser a possibilidade

do sujeito de se singularizar e de modificar seu modo de existir.

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Os fios encontrados e emaranhados, configurações provisórias do se relacionar,

foram nos dando as pistas, táticas de pesquisa, para encontrar caminho por onde

seguir. Como se um fio puxasse o outro, essa pesquisa se fez em um tricotar conjunto,

de muitas mãos, que guiaram a escrita em busca do compreender desse espaço

urbano por vias vestíveis e espaços têxteis. Não falamos apenas de espacialidades, mas

de tempo, como se um não pudesse existir sem o outro, já que não há construção de

espaço sem estratificação de acontecimentos e memória.

Pelas mãos do , do e da , personagens

conceituais extraídos de sujeitos encontrados por nosso caminho, encontramos os

restos, sua potência transformadora do cotidiano e algumas reflexões sobre uso da

ferramenta do urbanismo. Costurando essas reflexões aos conceitos do homem em

farrapos, de Flávio de Carvalho, do trapeiro, de Walter Benjamin, das cinco

peles, de Hundertwasser, da antropofagia, em Oswald de Andrade e outros

autores, do paradigma indiciário, de Carlos Ginzburg, chegamos ao encontro

da cidade resto, onde pudemos descobrir que, pelas mãos de diversos sujeitos e

sua maneira de inventar o cotidiano (CERTEAU, 1994), é possível ultrapassar os limites

impostos pelo poder e pensamento hegemônico.

Seguimos puxando os fios dessa costura tentacular e sem fim e descobrindo

diariamente potenciais transformadores da cidade que, mesmo sem formação ou

estudo, sabem como fazê-lo, como construir algo em sua micro potência, dentro do

raio de seu alcance: uma cidade mais justa e aberta, quase sem fronteiras, cidade esta

que encontramos a cada porta aberta, café servido e história de família compartilhada

durante esse fazer campo. Cada um revolucionando sua existência e seu entorno

dentro da pequenez de sua capacidade política, de sua potência humana. Afinal, qual

deve ser o tamanho das ações que realmente vão transformar as cidades? Quem será

que empunha realmente a ferramenta do urbanismo?

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