cidade e experiÊncia urbana na comÉdia as fias de...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA JOILSON FRANCISCO DA CONCEIÇÃO CIDADE E EXPERIÊNCIA URBANA NA COMÉDIA AS FIAS DE MAMÃE CUIABÁ-MT 2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE LINGUAGENS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM

ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA

JOILSON FRANCISCO DA CONCEIÇÃO

CIDADE E EXPERIÊNCIA URBANA

NA COMÉDIA AS FIAS DE MAMÃE

CUIABÁ-MT

2014

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JOILSON FRANCISCO DA CONCEIÇÃO

CIDADE E EXPERIÊNCIA URBANA

NA COMÉDIA AS FIAS DE MAMÃE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

graduação em Estudos de Cultura Contemporânea -

ECCO/UFMT como requisito parcial para obtenção

do título de Mestre em Estudos de Cultura

Contemporânea na Área de Concentração Estudos

Interdisciplinares de Cultura, Linha de Pesquisa

Comunicação e Mediações Culturais.

Orientador: Prof. Dr. Yuji Gushiken

CUIABÁ-MT

2014

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AGRADECIMENTOS

O "mundo" é o palco para o espetáculo da vida. Para nós atores, o teatro é esse

"mundo", um universo infinito de possibilidades. É uma experiência holística de afirmação,

de reflexão, de descoberta, de entretenimento, da revolução e do encontro com o outro.

Agradeço sempre a Deus pelas oportunidades de quando houver tristeza, que eu leve a

alegria e nossos sorrisos prevaleçam. Se houver pouco riso, com fé e muito siso, que renasça a

luz da sabedoria em minha mente e coração. Eu só quero arriscar e deixar o amor acontecer.

Nesta caminhada, o meu respeito, admiração e gratidão pela colaboração

imprescindível das Profª. Drª. Judite Gonçalves de Albuquerque, Profª. Drª. Maria Thereza de

Oliveira Azevedo e Profª. Drª. Ludmila de Lima Brandão, que me deram a mão e permitiram

passos acadêmicos afirmativos e evolutivos. Muito grato!

Agradeço aos meus pais, Oniza Sampaio e Manoel Conceição.

E aqueles que colaboram na construção de minha história de vida e formação

acadêmica. Entre eles estão: Programa ECCO/UFMT, PROPG/UFMT, Prof. Dr. Yuji

Gushiken, Prof. Dr. Flavio Gatti, Profº. Dr. Rafael Pádua, Alisson Julian de Almeida Lobo,

Dª. Neura Garcia, Edna Lia Roque, Jucelina Ferreira, William de Paula, Celso Gayoso, Carlos

Ferreira, Dr. Marcio Vinicius, Daniele Romanim, Antônio Marinho, Ademir Vilela, Deize

Águena, Alex Lima, Marise Freitas, Gabriele Lobo, Elisabete Silva e Lairce Aleluia.

Um registro, humilde e sincero, ainda que em minha lembrança, onde quero agradecer

a todos e a todas que colaboraram e colaboram para o fazer teatral no Mato Grosso. Nativos

ou "paus-rodados", cada qual com sua parcela de contribuição. A arte está mais rica e grata;

as cenas em suas transformações e, o povo, percebendo sua cultura, com seus valores.

Esta dissertação foi realizada com apoio de bolsa de mestrado da Capes/Fapemat.

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A mágica de quem faz do cotidiano matéria-prima de criação, atravessa os tempos e absorve

a cidade para além da arte.

J. Francon

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RESUMO

Conceição, Joilson Francisco. Cidade e experiência urbana na comédia As fias de

mamãe. Cuiabá, 2014. 148 p. Dissertação de Mestrado em Estudos de Cultura

Contemporânea — ECCO/UFMT.

A peça As fias de mamãe (1998) coloca em cena temas sobre a experiência urbana, a partir de

dois personagens que sugerem, em suas histórias cotidianas, o que significa, numa cidade

como Cuiabá, de passagem de século e de milênio, o viver às margens da economia de

mercado e diante da precariedade das políticas públicas. A cidade, como questão, é a base de

discussões sobre a peça teatral e o imaginário urbano que a peça evoca. Coube a esta pesquisa

pautar a relação entre os personagens, o imaginário de cidade, a busca de sentido do que é

viver no Oeste brasileiro, segundo a recriação de uma peça com os desdobramentos, tendo

como propósito firmar um campo de reflexão das artes cênicas na cidade de Cuiabá como

condição também de desenvolvimento socioeconômico e cultural. Numa abordagem

interdisciplinar, a pesquisa e dissertação visam produzir reflexões e diálogos circunstanciais

sobre a necessidade de por em cena a crítica da modernidade, ao reconhecer as diferenças, as

singularidades e promover o acesso às informações que produz modos de existência e

afirmativas ao que se entende por globalização. Reportamo-nos, principalmente, a Giorgio

Agamben para pensar e ler a cidade contemporânea pela peça As fias de mamãe e ter o teatro

como modalidade de crítica da cultura, na medida em que, politicamente, se expõe as ranhuras

da vida local no contato com o processo civilizatório, percebendo os modos como uma

imagem de cidade se produz e reproduz, enquanto experiência urbana na cidade Cuiabá nos

anos 90.

Palavras chave: Cidade; Teatro; As fias de mamãe; Cuiabá.

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ABSTRACT

Conceição, Joilson F. Gushiken, Yuji. Cidade e experiência urbana na comédia As

fias de mamãe. Cuiabá, 2014. 148 p. Masters Degree Dissertation on Contemporary

Culture Studies — ECCO/UFMT.

The play As fias de mamãe (1998) brings to the fore pungent themes so as to broaden the

debate on urban experience from the perspective of two characters who suggest, based on

their quotidian stories, what it means, in a turn of the millennium city like Cuiabá, to live on

the outside of market economy facing the local precariousness of public policy. The city, as

subject, is the base for discussion on the play and on the urban imagines that the play evokes.

This research has the purpose of grounding the relationship between characters, the city's

imagine and the quest for the meaning of life in the Brazilian West, employing the re-creation

of a play with developments so as to have as purpose the strengthening of the scenic arts in

the city of Cuiabá as a requirement for social, economic and cultural development. In an

interdisciplinary approach, this research and dissertation aim to produce analysis and dialogue

about the need for staging critical thinking on modernity, by recognizing differences and

singularities, and to promote access to information which produces modes of living and self

affirmation in the face of globalization. We have referred, mainly, to Giorgio Agamben, for

thinking and reading the contemporary city through play As fias de mamãe and for seeing the

theatre as a means for cultural criticism, to the degree to which it, politically, exposes the

nitty-gritty of local life in contact with the civilizational process, acknowledging the ways in

which a city's image is produced and reproduced, as urban experience in Cuiabá in the 90's.

Key words: City; Theatre; As fias de mamãe; Cuiabá.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

FOTOS

Páginas

Foto 1 - Personagens: Benedita Sampaio (Atriz: Jucelina Ferreira)

e Amazonina Bocaiuva (Ator: William de Paula). Foto: J.

Francon.

-

12

Foto 2 - 1º Cartaz da peça As fias de mamãe. Arte Plástica:

Gervane de Paula; Arte Gráfica: J. Francon

-

47

Foto 3 - Comadre Nhara (personagem do ator e diretor Liu

Arruda). Fonte: https://www.flickr.com/photos.

-

52

Foto 4 - Comadre Creonice (personagem do ator e diretor Ivan

Belém). Fonte: http://sociedadedospoetasamigos.blogspot

.com.

-

52

Foto 5 - Comadre Pitu (personagem do ator e diretor Vital

Siqueira). Fonte: http:// nicoelau.blogspot.com.

-

52

Foto 6 - Cena do velório de As fias de mamãe, primeira

montagem, Benedita (Atriz: Jucelina Ferreira) e

Amazonina (Ator: William de Paula). Foto: J. Francon.

-

56

Foto 7 - Vista frontal da fachada, parte do quintal e da arquitetura

de uma "casa cuiabana", fonte de inspiração do autor de

As fias de mamãe. Foto: J. Francon.

-

57

Foto 8 - Imagem parcial do cenário da primeira temporada de As

fias de mamãe, Teatro do Sesc Arsenal, Cuiabá. Foto: J.

Francon.

-

58

Foto 9 - Cemitério à margem de uma das estradas de acesso ao

Município de Acorizal, Distrito do Aguaçu e Cuiabá, com

características como: mata fechada ao redor, enterramento

em cova rasa e "morro" de terra cobrindo o morto. Foto:

J. Francon.

-

63

Foto 10 - Modo de vida: Duas jovens no quintal de uma "casa

cuiabana" na região urbana, em frente ao Córrego da

Prainha, Cuiabá (década de 60). Foto: Oniza Sampaio.

-

73

Foto 11 - Imagem dos personagens junto ao toca discos e dos LP's

(atores Jucelina Ferreira e William de Paula). Foto: J.

Francon.

-

76

Foto 12 - Vista panorâmica parcial da região central de Cuiabá

(2014). Foto: J. Francon.

-

81

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Foto 13 - Casa no centro urbano do Município de Acorizal/MT,

com aspectos e modo de viver semelhante a um sítio.

Foto: J. Francon.

-

89

Foto 14 - "Calçadão" da Rua Galdino Pimentel (antiga Rua de

Baixo), que antecede o início da Rua 13 de Junho -

Centro Histórico e Comercial de Cuiabá. Foto: J.

Francon.

-

90

Foto 15 - Residencial Salvador Costa Marques. Projetos sociais:

modelo de casa popular na periferia de Cuiabá, anos 90.

Foto: J. Francon.

-

91

Foto 16 - Casa popular localizada na região do Centro Histórico de

Cuiabá, anos 90. Foto: J. Francon.

-

91

Foto 17 - Personagens Amazonina Bocaiuva (Ator: Joilson

Francisco) e Benedita Sampaio (Ator: Carlos Ferreira)

após apresentação de performance na disciplina de Teoria

da Comunicação do Curso de Graduação em

Comunicação Social no Instituto de Linguagens da

Universidade Federal de Mato Grosso (IL/UFMT), em

julho/2013.

-

112

FIGURA

Figura 1 - Esquema gráfico cromático com a evolução do perímetro

urbano de Cuiabá. Fonte: IPDU/Cuiabá (anexo).

-

85

TABELA

Tabela -

Emissoras de rádios AM na cidade de Cuiabá, década de 90. - 103

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................................................12

1 Tempos globais: novos modos de vida urbana

1.1 A cidade que se transforma pela sua própria experiência ........................................20

1.2 Estranhamento e interpretações sobre a cidade em As fias de mamãe...................27

1.3 Cuiabá: Espaço de consumo e condição de vida social.............................................35

2 Teatro e imaginário da cidade: Dramatização da experiência urbana

2.1 As fias de mamãe: A história de uma peça de teatro em Cuiabá...............................42

2.2 Personagens populares na cidade: Vida e ficção.......................................................55

2.3 Viver na cidade: Dramas da vida precária no roteiro de As fias de mamãe..............69

3 As fias de mamãe ou a globalização vista a partir de Cuiabá

3.1 Memórias trazidas para o presente pelas lidas locais................................................80

3.2 A experiência urbana dos personagens Benedita e Amazonina................................88

3.3 A cidade expandida e artificializada na comunicação.............................................102

CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................113

REFERÊNCIAS ..........................................................................................................117

BIBLIOGRAFIA DE REVISÃO...............................................................................120

SITES............................................................................................................................123

GLOSSÁRIO...............................................................................................................124

ANEXOS.......................................................................................................................126

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INTRODUÇÃO

A peça As fias de mamãe (1998), apresenta a história de duas irmãs que se

reencontram em Cuiabá, para resolver uma situação: a mãe morreu de modo dramático,

engasgada com a dentadura, e elas não têm condições financeiras para realizar o funeral sob

os protocolos da vida urbana na cidade que, no final do século XX, já adotou práticas

modernas de enterramento. Os personagens, com memórias do passado que permanecem na

atualidade, enfrentam a realidade em busca de viver na cidade.

Foto 1 - Personagens: Benedita Sampaio (Atriz:

Jucelina Ferreira) e Amazonina Bocaiuva (Ator:

William de Paula).

Foto: J. Francon

As fias de mamãe coloca em cena temas contemporâneos, em especial os relacionados

às bruscas transformações sociais impostas pelo processo de modernização, de modo a

esgarçar os debates sobre a experiência urbana, a partir de dois personagens que sugerem, em

suas histórias cotidianas, o que significa, numa cidade como Cuiabá de passagem de século e

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de milênio, o viver às margens da economia de mercado e diante da precariedade das políticas

públicas.

Em As fias de mamãe, o processo que envolve a criação teatral buscou não se resumir

a um mero reprodutor de informações. O teatro refere-se a um campo artístico no qual, em

alguma medida, inventa-se um processo de criação que envolve diretor, atores e espectadores.

Os personagens ganham corpo e materialidade nas histórias escritas nas cenas do texto. Os

espectadores, na medida em que se abrem para um diálogo para fazer do texto uma obra,

ressignificam o sentido do que é exposto a partir do texto da peça.

No caso desta peça teatral, mais que representação do cotidiano, trata-se de recriação

do cotidiano, na proporção em que cada cena produz, ou busca produzir, uma espécie de

segunda realidade que se instala na própria obra.

Em um momento em que os estudos sobre as teorias do contemporâneo passam a

repercutir diretamente no discurso da arte teatral, esta pesquisa visa produzir reflexões e

diálogos circunstanciais sobre a necessidade de se pôr em cena a crítica da modernidade em

dois aspectos: a) ao reconhecer as diferenças e as singularidades dos distintos modos de vida

que não necessariamente conseguem correr na velocidade da vida moderna e b) ao promover,

na cena teatral, o acesso a questões relativas a modos de existência sob o intenso processo de

globalização da economia e da mundialização dos costumes.

Ao descrever a relação entre os personagens, o imaginário da cidade e a busca de

sentido sobre o que significa viver no Oeste brasileiro, por meio da recriação de um texto

teatral, coloca-se nesta pesquisa uma lente e um pretexto para se indagar a existência de

indivíduos e coletividades no espaço urbano. Os dramas da experiência urbana nacional, ao

ter como pano de fundo as transformações no imaginário e a singularidade das práticas

culturais em Cuiabá, permitem anotar e pensar sobre o teatro como modo de se testemunhar e

registrar as transformações do imaginário de uma época. De modo específico, na perspectiva

da criação teatral, enfatizam-se os indícios da experiência da modernização na perspectiva de

dois personagens forçados a assistir à intrusão do capitalismo global na Baixada Cuiabana, em

especial na região do antigo Aglomerado Urbano Cuiabá-Várzea Grande, atualizado mais

recentemente, em 2009, em Região Metropolitana do Vale do Rio Cuiabá (RMVRC).

O trabalho busca se justificar na medida em que a questão que se impõe é conceber o

teatro como modalidade de crítica da cultura, produção artística que expõe politicamente as

ranhuras da vida social, no seu mais ínfimo e banal cotidiano de uma cidade nos sertões de

Mato Grosso em meio ao desenvolvimento do processo civilizatório.

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A postura metodológica para este estudo demandou um manuseio de conceitos que

permitam uma abordagem interdisciplinar. Trata-se, num primeiro momento, de um processo

descritivo: colocar em cena o texto teatral e, como consequência, o imaginário urbano que o

texto e suas traduções em cena sugerem sobre uma Cuiabá que se transforma de cidade de

médio porte à experiência de metropolização na segunda metade do Século XX. A estratégia

de ação deve considerar um processo indutivo, a começar pela descrição do objeto, dar-lhe

forma e visibilidade e, a partir deste domínio acerca do objeto empírico, transformá-lo num

objeto teoricamente concebido na perspectiva dos estudos de cultura contemporânea.

Adota-se, para fins de análise, a obra de Giorgio Agamben (2009), a partir da qual,

para se pensar as transformações urbanas, define-se o contemporâneo como um passado que

não se foi totalmente e ao mesmo tempo um futuro que não se instalou por completo.

Baseando-se na obra de Nietzsche, "Considerações intempestivas", Agamben formula e expõe

o que é ser contemporâneo:

Pertence verdadeiramente a seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo,

aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas exatamente por isso,

exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz,

mais do que outros, de perceber e apreender o seu tempo [...] A

contemporaneidade é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distancias (AGAMBEN: 2009, p. 58-59).

Não se prender a um tempo é ser capaz de oscilar entre passado, presente e futuro.

Olhar, avaliar o que já se passou, mesmo que não se tenha participado daquele momento,

pensar o que ainda virá, mesmo que não venha como se espera e, principalmente, experienciar

intensamente o que se vive no presente.

O contemporâneo é capaz de neutralizar as luzes provenientes da sua época para

descobrir as trevas que são inseparáveis das luzes, mas que, em geral, preferimos não

enxergar. Por isso o contemporâneo torna-se anacrônico entre o que se vive e o que os outros

já viveram, além de se pensar no que ainda pode vir a acontecer. Essa relação com o passado

tem, segundo Agamben, fundamento na origem, pois ela reflete o que acontece no presente,

que "não é outra coisa senão parte do não vivido em todo o vivido" (AGAMBEN: 2009, p.

70).

Viver na cidade, que se origina da necessidade de se deslocar das zonas rurais e então

ter que inventar contatos, processos comunicacionais, modos de organização e trocas

materiais e simbólicas com outros habitantes no espaço urbano, equivale à experiência de

tornar-se cidadão, morador da cidade, com a tomada de consciência dos direitos sociais, ao

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reivindicá-los e cumprir seus deveres. Na possibilidade de liberdade, viver o "tempo" da

cidade oferece a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e

assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes.

Conforme se prevê no fazer pesquisa, desenvolvem-se hipóteses que permitem

perceber os modos como uma imagem de cidade se produz e se reproduz na medida em que

distintas formas de expressão cultural capturam e reconstroem o que foi a experiência urbana

na cidade Cuiabá nos anos 1990. Assim, refletir a cidade a partir do teatro constitui uma

dinâmica de estudos que guia as considerações desenvolvidas na dissertação.

A cidade, como questão, torna-se a base de discussões sobre o texto da peça teatral

(em seu suporte físico impresso/digitalizado) e o imaginário urbano que a peça evoca. No

caso, a comédia como constituinte de um imaginário: o cotidiano e suas tramas, a vida

cotidiana para além dos processos econômicos, no seu mais banal dia a dia e a experiência

urbana como questão que incide no texto e, por consequência, na encenação teatral.

No caso de As fias de mamãe, trata-se de considerar a comédia em sua potência de

registrar uma conjuntura que singulariza uma época e que, em certa medida, dá conta de dizer

o que pode ser a experiência urbana como indicadora de condições históricas de existência

social.

Henri Lefebvre (1969) aposta numa sociedade urbana em constituição. O teórico

acredita que esta sociedade tem suas origens no processo de industrialização quando a

superação da precariedade foi possibilitada pela evolução tecnológica. Contudo, o autor

lembra que nem toda sociedade tem acesso aos meios necessários para vencer tal

precariedade, logo, a chamada sociedade urbana é uma projeção, uma virtualidade. Tal

sociedade refere-se à qualidade de vida, qualidade nas relações humanas e, assim, está muito

distante de concretizar-se, é uma realidade não concluída.

É no cotidiano que emerge a necessidade de se por em cena as impressões e os efeitos

da vida moderna, na qual "as famílias se tornam o palco para malabarismos contínuos, entre

múltiplas e divergentes ambições, entre as necessidades ocupacionais, limitações à educação,

responsabilidades parentais e a monotonia do trabalho doméstico" (BECK: 1992, p. 89). Entre

a narrativa da globalização como epopeia da economia capitalista e o mais banal cotidiano das

pessoas comuns nos ermos geográficos é que se considera a comédia de costumes como

instância cultural, capaz de refletir sobre como se dá a noção de desenvolvimento

socioeconômico.

A vivência e a experiência entre o campo e a cidade permite-nos apoiar em Max

Weber (1979), que busca o entendimento de cidade a partir de sua(s) funcionalidade(s).

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Segundo ele, as cidades têm funções específicas e essas funções podem ser modificadas no

decorrer do processo histórico. As especificidades funcionais que as cidades tinham e ainda

tem não significa dizer que elas eram ou são unicamente de um só tipo funcional, pois

"apenas cabe dizer que as cidades representam, quase sempre, tipos mistos e que, portanto,

não podem ser classificadas em cada caso se não tendo-se em conta seus componentes

predominantes" (WEBER: 1979, p. 73). Para Weber, existem dois pontos principais que

levam a considerar uma aglomeração como sendo cidade. São eles: o econômico, em que um

lugar conta com um mercado local para satisfazer a necessidade da população, e o político,

que tem um sentido administrativo que considera o âmbito urbano em especial.

A relação entre cidade e experiência urbana percorre o texto da peça As fias de mamãe

sob a perspectiva de amadurecimento das mudanças sociais que ocorrem nas sociedades

frente à globalização. Considerando o processo integral da vida, enfatizado pela

interdependência das várias esferas da realidade social e a atuação delas como forças

produtivas, ou seja, como elementos ativos na transformação social. Segundo Williams

(1989), a cultura

é todo um conjunto de práticas e expectativas, sobre a totalidade da vida: nossos sentidos e distribuição de energia, nossa percepção de nós mesmos e

nosso mundo. É um sistema vivido de significados e valores — constitutivo

e constituidor — que, ao serem experimentados como práticas, parecem confirmar-se reciprocamente (p. 113).

A prática comunicacional, como direito social historicamente debatido, torna-se

atualizável, em sua ampla potência expressiva, por meio da ação cultural que leva o indivíduo

em sua coletividade a uma experiência de conscientização como ator social, com igualdade de

oportunidades, direitos e deveres, mas especialmente como sujeito da inventividade da sua

própria história. Apesar de sujeitos criativos e transformadores, quem não têm voz própria,

postura crítica, sofrem de dualidade existencial, de um senso de autodepreciação, e se

caracterizam pela submissão e pelo silêncio (LIMA: 2011, p. 113).

A sociedade atual está construída em torno de fluxos: fluxos de capital, fluxos de

informação, fluxos de tecnologia, fluxos de interação organizacional, fluxos de imagens, sons

e símbolos. Os fluxos não são somente um elemento da organização social, mas são a

expressão dos processos que dominam nossa vida econômica, política e simbólica.

Nesses fluxos são criados personagens reais e fictícios, imagens que representam

grupos dissociados de contexto, processos, relações. A complexa realidade é resumida em

símbolos e, como critica Ianni (2002), a história torna-se uma coleção de figuras e figurações,

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ou tipos e mitos, relativos a indivíduos e coletividades, a situações e contextos marcantes, a

momentos da geo-história, que se registram metafórica ou alegoricamente (p.182).

Segundo Octavio Ianni (2002):

A fábrica global instala-se além de toda e qualquer fronteira, articulando

capital, tecnologia, força de trabalho, divisão do trabalho social e outras

forças produtivas. Acompanhada pela publicidade, a mídia impressa e

eletrônica, a indústria cultural, misturadas em jornais, revistas, livros, programas de rádio, emissões de televisão, videoclipes, fax, redes de

computadores e outros meios de comunicação, informação e fabulação,

dissolve fronteiras, agiliza os mercados, generaliza o consumismo. Provoca a desterritorialização e reterritorialização das coisas, gentes e ideias. Promove

o redimensionamento de espaços e tempos (p. 19).

A globalização com o seu poder de transformação tem características marcantes,

segundo Manuel Castells (2002): a nova economia global e a sociedade informacional

emergente apresentam uma nova forma espacial que se desenvolve em uma variedade de

contextos sociais e geográficos. As megacidades articulam a economia global, conectam as

redes informatizadas e concentram o poder mundial.

O capitalismo tardio (MANDEL: 1985) e os modos como ele produz novos mercados

consumidores, em que se combinam as transformações no campo econômico, a evolução no

plano tecnológico e os eventos políticos verifica o desenvolvimento desse fenômeno, definido

como a Terceira Revolução Tecnológica, que teria se iniciado por volta de 1940 nos Estados

Unidos e em outros países capitalistas desenvolvidos, graças ao maciço emprego da eletrônica

e da energia nuclear nos processos produtivos.

No bojo do que se considera desenvolvimento, a "multidão sem qualidades", através

de táticas e estratégias, inventa o cotidiano. Michel De Certau (1994) diz que toda e qualquer

manifestação cultural traz em seu bojo enunciados que denotam a criação de uma ordem

simbólica da linguagem, do trabalho, do espaço, do tempo, do sagrado e do profano, do

visível e do invisível, e que estes instituem a apropriação e a reelaboração da ordem social e

das coisas do mundo através das possibilidades de ressignificações e de rupturas promotoras

de um duplo movimento: da distinção e da constituição de eixos alternativos de adesão ao

universo das pequenas falas, dos ruídos e das imagens sintetizadoras que nos informam sobre

as dinâmicas de um universo que, ao exibir-se, se constitui cotidianamente.

Nas transformações sociais os conceitos de moderno (tudo aquilo que nos é

contemporâneo, mas no sentido de oposição ao que foi anterior: novo/velho, antigo/moderno),

nos permite estar na modernidade (traz a ideia de ruptura com a tradição, mas uma ruptura

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positiva que leva o homem ao progresso) onde o ser humano é o centro do conhecimento. O

modernismo é uma resposta estética a condições de modernidade produzidas por um processo

particular de modernização em uma sociedade. O significado, a percepção de tempo e do

espaço variam, mostrando que essa variação afeta valores individuais e processos sociais do

qual denominamos de modernização.

Com base nestes e outros apontamentos utilizados nesta dissertação, considera-se

possível que os aportes teóricos passem a dialogar com mais precisão no recorte do objeto e

nas questões mais relevantes que ele pode suscitar e que incidem na interface entre Artes,

Comunicação e Cidade. Neste aspecto, a pesquisa para esta dissertação buscou enquadrar-se

em duas instâncias: na linha de pesquisa em Comunicação e Mediações Culturais e no projeto

de Pesquisa "Modernização tecnológica e midiática: Imagens da cidade e demandas do

cosmopolitismo" (Propeq/CNPq), coordenado pelo professor Yuji Gushiken. Assim, uma vez

conectado às diretrizes interdisciplinares do ECCO-UFMT, o trabalho demandou constituir

um caminho de pesquisa que evidencia, a partir da peça teatral, uma possibilidade de se notar

as transformações construídas ao longo do tempo e na experiência urbana vivida pelos

cidadãos comuns que permeiam a peça teatral e suas representações da cidade como objeto de

estudo. De fundamental importância o apoio financeiro concedido pela Bolsa Capes/Fapemat,

ao proporcionar interesse e incentivo para a realização dos estudos neste trabalho acadêmico.

A dissertação divide-se em três capítulos.

No primeiro capítulo, Tempos globais: novos modos de vida urbana, desenvolvemos

uma discussão sobre um jeito de olhar a cidade pela comédia. As percepções, reflexões e

diálogos possíveis sobre teatro e experiência urbana na cidade com convivência social e

seletiva. Da condição humana em tempos globais, reorganizada em experiências ousadas,

criativa, conflitiva, no olhar o futuro diferente da racionalidade global. Ao reconhecer as

diferenças e as singularidades dos distintos modos de vida que não necessariamente

conseguem correr na velocidade da vida moderna, as mudanças e transformações que ocorrem

na cidade ganham novos contornos com sua expansão e inchamento. Os indivíduos e a

coletividade vão, vem e trafegam sua existência no mundo sob efeito da globalização.

No segundo capítulo, Teatro e imaginário da cidade: Dramatização da experiência

urbana, procuramos descrever o objeto de análise, resultado da escritura do autor que foram

observadas em comportamentos, práticas, hábitos dos personagens populares femininos que

constituem uma noção de história de vida, seja em Cuiabá ou em outro lugar. Neste caso, o

texto da peça As fias de mamãe foi construído fazendo-se usos de um vocabulário e um

sotaque que, nos parâmetros da língua portuguesa culta, apresenta-se como o que possa ser

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considerado bárbaro e marginal. No entanto, a fala, e não o código, é historicamente uma

ferramenta para se driblar a sisudez da língua portuguesa formal. Embora teatro seja ficção,

muito do que acontece na peça As fias de mamãe tem a ver com a realidade urbana de Cuiabá.

A história de uma peça de teatro nos emociona pelos dramas da vida precária dos

personagens, atinge-nos pelo recurso da arte cênica (texto para teatro) e pela existência da

cidade que se transforma por sua própria experiência urbana, vista a partir do texto de As fias

de mamãe.

No terceiro capítulo, As fias de mamãe ou a globalização vista a partir de Cuiabá,

destacamos a modernização da cidade que implica em perdas e ganhos. Os que vivem na

cidade se movimentam, trafegam e/ou permanecem pelos espaços numa nova ordem de

sentidos, novos modos comportamentais entre o público e o privado. No cotidiano instituem-

se relações de interação entre os habitantes e entre os habitantes com o meio ambiente urbano.

Os hábitos e valores urbanos não raro são codificados de modo rígido, o que, por vezes, faz

destacar, nas relações sociais, a indiferença ou a atitude blasé implicada pela vida moderna

que molda a sociedade cada vez mais marcada pelas experiências, em geral contraditórias, de

metropolização.

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Capítulo 1 - Tempos globais: Novos modos de vida urbana

1.1 A cidade que se transforma pela sua própria experiência

No contexto da globalização da economia e do impacto das tecnologias, a cidade de

Cuiabá vem se desenvolvendo como um centro realizações das relações sociais e comerciais

no Oeste brasileiro, processos comuns das regiões metropolitanas que são encaradas, hoje,

como novos pontos cardeais do mapa.

Na cidade, os processos de dualização e fragmentação caminham juntos com

homogeneização e heterogeneização social.

A cidade pode ser um caleidoscópio de padrões e valores culturais, línguas e

dialetos, religiões e seitas, modo de vestir e alimentar, etnias e raças,

problemas e dilemas, ideologias e utopias. Algumas sintetizam o mundo,

diferentes características da sociedade global, tornando-se principalmente cosmópoles, mais que cidades nacionais (IANNI: 1994, p. 28).

Os personagens Benedita Sampaio e Amazonina Bocaiuva, protagonistas no texto da

peça As fias de mamãe, fontes para nossas observações, por sua vez, expressam suas

impressões sobre a cidade de Cuiabá (Mato Grosso, Brasil). E a experiência urbana dos

personagens se dá num momento em que se testemunha historicamente a expansão do centro

da cidade para as periferias, processo que responde pela experiência de modernização da

cidade.

O texto é construído por meio das cenas criadas, inventadas, ou ainda, reinventadas

num exercício de imaginação sobre o que tem sido a experiência urbana, na então cidade de

médio porte, atravessada pelos fluxos que a transformam em parte central de uma região

metropolitana que, na segunda década do século XXI, se aproxima do seu milhão de

habitantes. O que nos toca ao ler o texto da peça As fias de mamãe, ao ter a cidade como foco,

embora teatro seja ficção, é o fato de que muito do que acontece na peça reflete, em alguma

medida, a realidade urbana de Cuiabá e seu entorno.

A Região Metropolitana do Vale do Rio Cuiabá (RMVRC), absorvendo uma

população que procura outras condições materiais, encontram em Cuiabá, no mínimo, uma

possibilidade de novo modo de vida. Com o inchamento da cidade, o perímetro urbano vai se

transformando numa grande rede de nodosidade, já que este perímetro, pela sua configuração

horizontal e vertical, contempla a diversidade e a pluralidade humana em busca de realizações

materiais e simbólicas. A cidade de Cuiabá vira um ponto fundamental da tarefa do perímetro

urbano que, ao se transformar em espaço, passa a ser capaz de integrar lugares cada vez mais

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articulados em rede e pessoas cada vez mais exigindo a presença da função da cidade em suas

vidas.

Ao longo da história humana, o campo (rural) e a cidade (o urbano), decretos que

configuram os limites geográficos, políticos e econômicos nos espaços territoriais,

determinam culturalmente os entendimentos e compreensões sobre as particularidades,

singularidades, funções de cada denominação dada aos espaços, como podemos perceber, por

exemplo, numa passagem do texto de Raymond Williams (1989) sobre campo e cidade:

[...] eu vim de uma aldeia para uma cidade: para ser ensinado, aprender; entregar fatos pessoais, incidentes de uma família, a um registro geral;

aprender dados, conexões, perspectivas diferentes. Se os muros das

faculdades eram como os dos parques que contornávamos quando crianças, sem poder entrar, agora havia um portão, uma entrada e, no final, uma

biblioteca: um registro direto, que cabia a mim aprender a usar. Relembro

agora, com ironia, que foi apenas depois de chegar à faculdade que conheci, através de gente citadina, dos acadêmicos, uma versão influente do que

realmente representava a vida campestre, a literatura campestre: uma história

cultural preparada e convincente. Li também coisas correlatas, em livros

eruditos e em obras escritas por homens que saíram de escolas particulares para ir trabalhar numa fazenda, e por outros que foram criados em aldeias e

agora são escritores do campo — todo um conjunto de livros e periódicos,

notícias em jornais: a vida campestre. E me vejo fazendo a mesma pergunta, por causa da história: onde me situo em relação a esses escritores — num

outro campo ou nesta cidade que dá valor às coisas? (p. 17-18).

Legalmente, no Brasil, cidades são definidas pelos perímetros urbanos das sedes

municipais, e os territórios e populações considerados urbanizados incluem os perímetros das

vilas, sedes dos distritos municipais. Entretanto, as áreas urbanizadas englobam amplas

regiões circunvizinhas às cidades, cujo espaço urbano integrado se estende sobre territórios

limítrofes e distantes em um processo expansivo iniciado no século XIX e acentuado de forma

irreversível no século passado.

Urbano e rural, cidade e campo. Esta distinção é necessária porque cidade e campo se

caracterizam por representarem concentração e dispersão, por serem continentes de processos

socioespaciais próprios e complementares. Urbano e rural se distinguem por serem atributos e

constituintes, condições e condicionantes. Assim, cidade e campo são formas espaciais.

Urbano e rural possuem, acima de tudo, uma dimensão processual: são conteúdo e

contingente.

Além disso, conforme aponta CARLOS (2004), não se trata de pensar na subordinação

do campo à cidade, mas na subordinação de ambos ao modo capitalista de produção e ainda,

igual e contraditoriamente, nas possibilidades de resistências e permanências impulsionadas

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pela classe trabalhadora, no campo e na cidade, que se consolidam na luta pela moradia

urbana e o direito à cidade e, no campo, principalmente, a partir da luta pela terra. Para a

classe trabalhadora, campo e cidade passam a representar possibilidades concretas de

sobrevivência, na luta pelo trabalho ou pela terra, em que a mobilidade passa a ser vista como

uma realidade concreta.

O texto da peça As fias de mamãe traz esta experiência, entre outras, sobre a

mobilidade humana existente na relação de experiência urbana encontrada pelos personagens

na Região Metropolitana do Vale do Rio Cuiabá (RMVRC). O personagem Benedita

Sampaio, que mora na cidade de Cuiabá, afirma que não vai morar no sítio com sua irmã e

demais parentes, instaurando o conflito: deixar a cidade para ir morar no campo

(sítio/hinterlândia). Na opinião de Benedita, o melhor é que a irmã troque o campo pela

cidade. Como resposta, outro personagem, a irmã Amazonina Bocaiuva justifica sua decisão

de não permanecer mais tempo na capital, onde está apenas de visita. Amazonina afirma que

seu marido não vai trocar a "roça" pela cidade. A decisão de Amazonina é fundamentada pelo

estranhamento do espaço urbano, pela crítica à cidade e às possíveis benesses que a urbe

possa de fato proporcionar.

As diferenças de narrativas entre campo/rural e cidade/urbano proporciona a

teatralidade da vida cotidiana fomentando explicações para as dificuldades, as turbulências, os

conflitos e as insatisfações em meio as relações sociais apresentadas na peça As fias de

mamãe. A relação de pertencimento aos locais são ressignificados pelas necessidades

existenciais de cada personagem.

A cidade e o campo se diferenciam pelo conteúdo das relações sociais que neles se

desenvolvem. As relações sociais ganham conteúdo em sua articulação com a construção da

sociedade urbana, não transformando o campo em cidade, mas articulando o rural ao urbano

de um "outro modo", redefinindo o conteúdo da contradição cidade/campo, bem como aquilo

que lhes une (CARLOS: 2004, p. 9).

Castells afirmou que a cidade é uma estrutura social e espacial complexa, expressão do

processo de apropriação e de reinvestimento do produto do trabalho. Em relação à divisão do

trabalho entre a cidade e o campo, observou que esses dois espaços não podem ser entendidos

separadamente. Ao contrário, "[...] os dois estão intimamente ligados no âmago do mesmo

processo de produção das formas sociais, mesmo que, do ponto de vista destas próprias

formas, estejamos na presença de duas situações diferentes" (CASTELLS: 1983, p.16).

O mundo hoje é enfaticamente urbano, característica que tende a se acentuar. Grande

parte de seus habitantes vive em cidades, palcos de lutas em jogos incessantes de variados

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interesses. O crescimento populacional intensifica o contato entre indivíduos de origens

distintas, multiplicando o número de pequenos conflitos e ocorrências.

Mas, afinal, o que é o urbano neste processo de constituição histórica da cidade

contemporânea que se transforma pela sua própria experiência que ora abordamos para falar

das experiências em As fias de mamãe?

O urbano, ou o espaço urbano-industrial contemporâneo, metáfora para o espaço

social (re)definido pela urbanização, se estende virtualmente por todo o território através do

"tecido urbano", essa forma socioespacial, herdeira e legatária da cidade que caracteriza o

fenômeno urbano contemporâneo e a sociedade urbana.

O tecido urbano prolifera, estende-se, corrói os resíduos de vida agrária.

Estas palavras, ‘o tecido urbano’, não designam, de maneira restrita, o domínio edificado nas cidades, mas o conjunto das manifestações do

predomínio da cidade sobre o campo. Nessa acepção, uma segunda

residência, uma rodovia, um supermercado em pleno campo, fazem parte do

tecido urbano (LEFEBVRE: 1999, p. 17).

No urbano se espacializam o tempo linear da produção, da circulação e do consumo,

ou seja, o tempo do cotidiano programado para fins determinados, aqueles da reprodução

social. Ao mesmo tempo se realiza, ainda que residualmente, o tempo-duração intrínseco ao

tempo natural e humano, como crítica e condição de superação do tempo-sistema.

Em As fias de mamãe, o tempo atende as necessidades sociais de acordo com a

realidade fática do cotidiano, se adaptando para preservar a vida e a dignidade humana.

O imaginário, misturado às realidades urbanas, é recriado na expansão do centro da

cidade para a periferia. O imaginário da periferia cria aspectos que, por vezes, são anunciados

como descaso do poder público diante da modernização. O abandono, por parte do Estado, de

boa parte das suas funções tradicionais de planejamento, gestão urbana e metropolitana, que

vêm se transferindo para atores privados, leva a uma afirmação crescente da lógica do capital

imobiliário, na produção e reprodução dessas cidades, com impactos decisivos sobre a

paisagem e a vida da sua população.

A urbanização, que é um processo intrínseco às transformações econômicas, políticas

e técnicas da sociedade como um todo, onde, em cada país ou região, este fenômeno expressa-

se de forma particular, visto que a conjuntura mundial se mescla com as particularidades

históricas, naturais, políticas e culturais. A cidade se constitui não apenas na soma pacífica

dos elementos que a constituem, mas no conflito dos fluxos com os elementos fixos que

fazem parte do jogo da urbanização. A sociedade se urbanizou, a acumulação de capital se

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intensificou e, a cidade e o campo, submetidos a à lógica capitalista e à supremacia do valor

de troca sobre o valor de uso, observaram novas formas e situações de complementaridades.

A cidade torna-se palco das atividades do capital econômico e do capital simbólico,

incluindo atividades de todas as pessoas, inclusive daquelas expulsas do campo pelas

máquinas e manejos tecnologicamente avançados para uso no trabalho agrícola, como de

outras que já estão na cidade e se reorganizam em busca do seu bem-estar.

No desejo de melhorar as condições precárias da vida, os indivíduos buscam na

dinâmica da cidade os atrativos oferecidos pela urbanização, com características presentes em

cidades globais e que chegam, em maior ou menor grau, às distintas geografias mundiais.

Marginalizados ou bem-sucedidos, os indivíduos buscam identificações pela aceitação, em

duas vias — a deles e a dos outros — para criar e compor um lugar de abrigo, referência,

comunicação e de compartilhamento.

A cidade é tomada e produzida cada vez mais como uma grande possibilidade de

negócio, onde as práticas sociais hegemônicas produzem espaços cada vez mais segregados.

Ou seja, afastam cada vez mais as pessoas umas das outras. No entanto, a irredutibilidade do

corpo se faz presente e a busca do outro revela que o urbano ainda é, sempre potencialmente,

o lugar do encontro. Segundo Lefebvre (2001), no momento de inflexão do agrário para o

urbano, o peso da cidade no conjunto — campo/cidade — torna-se maior, em função da

riqueza imobiliária, produção, mercado, troca e das possibilidades dos encontros.

Nas situações precárias e nas benesses escritas no texto da peça As fias de mamãe,

percebemos que o processo de urbanização gera diálogo que enfatiza situações de

discordância entre os costumes tradicionais em face das novas tendências que buscam romper

com o que a modernização considera ultrapassado para instituir o novo. A tradição, enquanto

permanência do passado distante, apresenta-se como uma forma de organização social

resistente à modernização. A tradição na modernidade, como uma tradição reinventada,

recicla elementos da memória popular, recriando e atualizando elementos do passado que se

misturam com o presente.

Cuiabá, se tratada conceitualmente como uma cidade que começa a deixar sua

condição de cidade de médio porte, pelas suas condições geográficas, se justifica porque

ganha outra dimensão quanto ao aspecto demográfico. Recorrendo a Sposito (2007),

encontramos que a função, o papel que a cidade desempenha, exerce forte relação com a área

regional na qual está situada, pela concentração e centralização econômica, tendo em vista a

realidade local ampliada.

São as características de uma cidade média e não somente de médio porte, com

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[...] o papel de intermediação entre as pequenas e as grandes, então são cidades que comandam uma região, que polarizam uma região, que crescem

em detrimento da sua própria região ou crescem em função da sua própria

região, as duas coisas acontecem. Cidades médias que ampliam seus papéis, porque diminuem os papéis das cidades pequenas a partir de uma série de

mecanismos econômicos, ou cidades que, em função do tipo de atividade

que têm, das lideranças que ali se encontram, são capazes de crescer e propor

um projeto ou desempenhar um papel político, econômico e social de crescimento para toda uma região (SPOSITO: 2009, p. 19).

Dessa forma, a noção de cidade média aqui evocada corresponde às cidades que

apresentam uma concentração e centralização econômicas expressivas, provocadas pela

confluência do sistema de transporte, podendo ser reconfiguradas pela incorporação de novas

atividades do setor agropecuário que, por sua vez, redefinem a indústria, o comércio e os

serviços. No quadro urbano brasileiro, as cidades ora consideradas médias, embora

apresentem similaridades, revelam diferenças tanto em sua estrutura como em sua dinâmica.

Ao investigar a dinâmica da centralidade e definir a densidade das atividades

comerciais e de serviços que os núcleos centrais urbanos oferecem, apreende-se que os fluxos

que sustentam essas localizações e que delas resultam, através da articulação entre o que está

fixo e o que está em movimento, configura a centralidade (SPOSITO: 2001, p.247).

Castells (1983) afirma que a centralidade advém da dimensão social do espaço, a partir

do momento em que as diversas atividades se espacializam e ocorrem as diferenciações, tanto

em nível social como espacial. Os centros urbanos são produtos da divisão social do trabalho.

Nessa perspectiva Sposito, salienta que:

[...] o centro não está necessariamente no centro geográfico, e nem sempre

ocupa o sítio histórico onde esta cidade se originou, ele é antes de tudo o ponto de convergência/divergência, é o nó do sistema de circulação, é o

lugar para onde todos se dirigem para algumas atividades e, é o ponto de

onde todos se deslocam para a interação destas atividades aí localizadas com as outras que se realizam no interior da cidade ou fora dela. Esta qualidade

pressupõe, provoca e reforça os traços concentradores desta área, permitindo

dizer que mesmo que a dimensão ou uma nova dinâmica da divisão territorial do trabalho provoque a emergência de outros centros, o principal e

cada um deles, desempenha um papel de concentricidade, ou seja, para

diferentes setores da cidade e para diferentes escalas de atuação/atração, é

uma área de interesse de convergência. Ao investigar a dinâmica da centralidade e definir a densidade das atividades comerciais e de serviços

que os núcleos centrais urbanos oferecem, apreende-se que os fluxos que

sustentam essas localizações e que delas resultam, através da articulação entre o que está fixo e o que está em movimento configura a centralidade

(SPOSITO: 2001 p.247).

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O que define uma centralidade são as movimentações de fixos e fluxos, ou seja, a

circulação contínua de consumidores, trabalhadores, automóveis, mercadorias, informações e

ideias. A presença desses elementos, e suas dinâmicas constroem espaços luminosos, onde a

presença do capital é constante, ou ainda, sua ausência faz com que os espaços tornem-se

opacos. Suas dinâmicas dão função aos espaços e definem territórios.

No cotidiano, os que vivem na cidade, se movimentam, trafegam e/ou permanecem

pelos espaços numa nova ordem de sentidos, novos modos comportamentais entre o público e

o privado. Não convém afirmar que uma pessoa que adquire um automóvel tenha dinheiro ou

que sua vestimenta define sua classe social, seu conhecimento, seu poder de influência.

Porém, na cidade, andar maltrapilho, ser analfabeto, não possuir um endereço fixo para

correspondência gera indícios para imaginar o local que melhor o posiciona na sociedade.

A cidade cresce e os hábitos e valores são alterados. Como afirma Sposito (2009):

[...] as metrópoles são entidades espaciais tão complexas que, em si, o dentro é tão pleno já de questões, ele é tão depositário do conjunto da realidade

econômica social e política, que ele quase se basta, no sentido de oferecer

elementos em quantidade e qualidade suficientes para compreender o quadro

nas macro e nas micro determinações (p. 30).

A ação da globalização atua no sentido de transformar tudo e todos em parte integrante

da sua proposta de "sociedade global". Seu alvo principal é o indivíduo, que dentro deste

cenário não busca mais a compreensão dos valores do cotidiano, das suas raízes, das suas

tradições ou do seu contexto local, mas preocupa-se apenas em ter o "status" e integrar o

"padrão global", através do poder, do dinheiro e da fama momentânea.

As novas articulações no mundo atual só se tornaram possíveis porque um conjunto de

interesses políticos e econômicos convergiu para que a "aldeia global" erigisse, com base num

forte investimento em capital ligado à alta tecnologia, e isso alterou profundamente as

relações tempo-espaço, modificando a própria vida cotidiana.

Segundo Carlos (2004), a cidade se reproduz na contradição entre a eliminação

substancial das formas que criam o desaparecimento dos referenciais da vida, produzindo o

estranhamento. Este se revela no plano da relação do indivíduo com os lugares e no cotidiano

que está hoje invadido, pelos signos de uma nova ordem que cria um novo modelo de vida (p.

56-57).

Independentemente da parcela do espaço na qual se produza e se realize a reprodução

da vida, na urbanização sob o domínio do capitalismo, reforça-se o fato de que a apropriação

do espaço pelos sujeitos sociais será sempre desigual, pois sinalizará a forma como cada um

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está inserido no processo, repercutindo na produção do espaço enquanto condição para

reprodução de tal lógica.

O futuro, construído pelo sonho, desejo, imaginação e planejamento, revela a carência

de satisfazer o consumo material e imaterial, a busca de direitos políticos, de participação e de

cidadania. Percebe-se que os conflitos, as contradições, os dilemas da vida e sua

conscientização são elementos fundamentais para qualquer processo de amadurecimento

efetivo e de aprendizado quando se trata de sociedade.

As críticas e sua conscientização, a partir da informação, são sempre empreendimentos

custosos, que demandam processos intensos de autoreflexividade. É sempre arriscado encarar

conflitos na vida social, do mesmo modo que é sempre arriscado conviver com a verdade de si

(particular) e da coletividade (social).

O teatro instiga a imaginação humana e a reflexão pelos modos de vida que inspiram

maneiras de pensar, os modos de pensar criam maneiras de viver. A vida ativa o pensamento e

o pensamento, por seu lado, afirma a vida (DELEUZE: 1994, p.17-18). O teatro, em suas

possibilidades, faz da e na cidade modos de vida que a imaginação, como uma faculdade

fundamental de sua interpretação, abra caminhos criativos, plurais, diversos e empreendedor

para questões artísticas e sociais.

As fias de mamãe, pela sua produção textual e recriação imaginária da cidade,

promove o estranhamento e, a partir deste, as críticas florescem em benefício da desalienação

de qualquer envolvimento alienador que a sociedade contemporânea possa exercer e inferir

sobre o indivíduo.

1.2 Estranhamento e interpretações sobre a cidade em As fias de mamãe

BENEDITA - Istimada Mazonina! Recebi suas notícias e criei coradge pra te

escrever, ponto e virgula. Bom, bamos nas notícias: sua rivar Chulipa montou um cabaré de nome Maria Careca; Dona Maria do pão doce tá

tocano um bolitcho. Ocê lembra do xô Alis? Pois é, ele revirô cô a caçamba,

só foi graça. Iscuta, o baile do quartel não é mais o meszmo como de antes... A comunidade num participa mais... Esses dias lembrei de Presidente e o

banzé que ocês formava. Tempo bom né Mazonina?!! Esteêê, acho que

mamãe tá me assombrano. Num tenho certeza, mas pela cara da aparição era mamãe! Minhas crianças e Presidente também tão cô verme, vê se arranja

casca de quina pra mim. Catchorra, vê se me devorve o cinto de tala larga

que ocê levô e os batãons... Vou terminando sentindo muito sua farta porque

ocê estará sempre nas minhas lembrança. Deus te proteja e guarde xeu lar. Um abraço de sua irmã que tanto te quer... Dita.

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A cidade, como cruzamento de linguagens variadas (visuais, sonoras, táteis,

olfativas...), pode ser interpretada a partir dos diversos olhares imprevisíveis de quem nela

vive ou por ela transita. O interlocutor pode atribuir sentido às formas de acordo com os

signos e os valores atribuídos no tempo e no espaço.

A combinação de todos os sentidos, agindo sobre o espaço onde nos encontramos,

permite-nos o registro de algo que faça diferença em nossa memória. A memória, em seus

modos de funcionamento, exercita o poder de trazer à tona experiências, informações

contaminadas e intercambiadas pelo meio social.

Como não estranhar a si e aos outros já que, principalmente na cidade, a velocidade

das mudanças, as transformações físicas e as práticas culturais emergem pelas vias informais

de socialidade.

Uma cidade tece sua rede de relações, refletindo nos espaços físicos as interações

socioculturais representadas pela estética de um lugar, o que inclui sua arquitetura e demais

expressões coletivas. Esses lugares, que representam o espaço da socialidade, são fortalecidos

e sedimentados pelos sentimentos em comum e por uma forma de expressão também comum

aos que os fazem. Assim, "as portas e as pontes" são as conexões sociopolíticoculturais que

vão tecendo a rede interpessoal na cidade (MAFFESOLI: 2001b, p. 92, grifo nosso).

Os estranhamentos na construção dessa relação urbana, que é expandida e virtualizada,

torna-se cada vez mais ligados às infinidades de artefatos de consumo das inovações no

capitalismo contemporâneo. Acontece de emergir o estranhamento quando algo ou alguém

não busca adequar-se ou coincidir com a sua época, na qual encontra-se intensa e

profundamente mergulhado, mas lhe diz "sim" e a interroga mediante um anacronismo, um

descolamento.

Os personagens da comédia As fias de mamãe, com suas características particulares,

percebem as transformações na cidade nessa perspectiva do descolamento. Elas mantêm

comportamentos, hábitos e valores que se referem às singularidades locais, dos que vivem e

cultivam a cultura popular próprios da cidade de Cuiabá. Além do linguajar peculiar, que

arranha e rearticula a língua portuguesa formal, os personagens trazem o que poderia se

denominar, no senso comum, de ultrapassado ou em desuso, ou seja, o anacrônico. No

entanto, optamos por considerar que há, nesta língua portuguesa falada em Cuiabá, uma

relação de ressignificação, consumo, uso, associado ao imaginário urbano.

A distinção, que se dá na constituição dos signos e seus significados, é apropriada de

acordo com a necessidade que os personagens têm no cotidiano. Usufruir a cidade em tudo

que ela possa proporcionar, inclui ou exclui, afirma o pertencimento ou causa o

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estranhamento aos que por algum fator não conseguem acompanhar o dinamismo que o

urbano apresenta.

Viver na cidade de Cuiabá demanda perceber as transformações que nela ocorrem,

pelos novos modos com que ela se apresenta no cotidiano, com marcas deixadas pelos

moradores e imigrantes que nela moram ou por ela passam, produzindo interferências na

arquitetura, estilos de vida, nos hábitos alimentares enfim, em diferentes redes de socialidade.

O cotidiano, sugere estabilidade, mas revela surpresas.

As ações e as lembranças dos personagens, observadas no texto da comédia As fias de

mamãe, causam o descompasso para a possível identificação de si e do pertencimento ao

espaço urbano. Os bailes do quartel 16º BC, o salão de beleza, as brincadeiras de criança, o

bolicho com pão doce e novidades para consumo, bate-papo com vizinhos, conhecidos, na

calçada em frente da casa, as festas e os bailes, as cartas enviadas aos programas de rádio, o

velório e os reencontros, a casa que recebe pessoas após as faxinas (com troca de móveis de

lugar, enceramento do piso, capinação do mato do quintal): tudo isto sofreu mudanças e,

também, são imagens construídas com significados que permitem reflexões, críticas e

esclarecimentos para a causa da rarefação destas práticas comum no cotidiano da cidade de

Cuiabá.

Longe das estruturas econômicas ou políticas, a comunicação, função

essencial, inscreve-se nos lugares mais humildes, nas situações mais banais

[...] aí, no espaço humilde onde se exprimem tantas alegrias e desapontamentos, aí, nesse espaço onde se joga tanto afeto e onde têm lugar

tantas conversas, constitui-se pouco a pouco a sólida trama social. Não se

trata naturalmente de extrapolar, mas, certamente, nesses espaços é que melhor se vive a relação de alteridade em toda a sua pequeneza e em todo o

seu trágico [...] o espaço que culmina na cidade, permite antes de tudo o jogo

da diferença e o enriquecimento

que isso supõe [...] quando 'tudo se sabe' em tal bairro ou em tal rua, o que está em jogo é a partilha diária dos afetos, da palavra, e muitas vezes

também dos bens. A inscrição espacial estrutura essa socialidade de base. A

mercearia, as lojas, as praças, os mercados, os lugares públicos representam as várias ocasiões de viver, em conjunto e sem brilho, o crucial problema do

tempo que passa (MAFFESOLI: 2001b, p. 92-93).

A função do teatro, nas suas diversas vertentes, não significa negar a existência de

uma intenção lúdica. É o momento de lembrar que, para além da fruição estética, por si uma

fonte de prazer, os dramaturgos se preocupam em combinar a diversão com a visão imaginária

do mundo real. Uma reflexão sobre os problemas da cidade com a intenção de valorizar ainda

mais a existência humana na mesma, percebendo que o teatro sintetiza o cotidiano e expõe,

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pelo viés da lente do olhar, um grande espelho voltado para si. O teatro reflete a cultura em

uma dada sociedade, num local e época.

Por mais que se destaque a eficácia, a muitos respeitos superior, do cinema,

do rádio e da TV, a qualidade artesanal do teatro lhe proporciona um privilégio indelével: a presença viva do homem no palco, a comunicação

(não mediada por imagens ou transmissões) entre pessoas encarnando

personagens e o público concreto e real, convivendo no mesmo espaço e tempo, apesar de as personagens se moverem em espaços e tempos fictícios.

Precisamente hoje é importante repetir esse fato tantas vezes destacado.

Ocorre daí uma atitude diversa da plateia, outra concentração, outra

disposição, outra maneira de ver e ouvir. Por mais que o teatro tenha se distanciado de suas origens e rituais, seu público conserva algo da sua

qualidade primitiva de participante numa realização comum. Sua presença

ativa, de certo modo criadora, distingue-se da passividade conformista do público manipulado pelo suave terror totalitário das indústrias culturais

(ROSENFELD: 1985, p.37).

O autor de uma peça de teatro, ao observar as peculiaridades da cidade, dos

governantes e dos governados, para acender as luzes no palco da vida, o imaginário criativo

de representação social da tradição e da modernização, expõe a sua crítica.

A prática social da “fofoca” (falar bem ou mal da vida do outro) pode, também, gerar

motivo do riso em forma de uma piada, de uma roupa engraçada, uma cena de comédia etc,

sob o olhar crítico do Outro. O riso, na comédia de costumes, reprime toda e qualquer

excentricidade. Porque o excêntrico é algo que não adota as convenções da sociedade e, por

isso mesmo, a assusta, causa estranhamento e torna-se risível.

A comédia de costumes é um jeito de olhar a cidade por meio do teatro. A comédia de

costumes, expressão da crítica social através da utilização da brincadeira e da ironia,

possibilita a identificação com o público através da semelhança com os tipos que eram

construídos a partir de traços externos e superficiais de um modelo da comunidade local,

tornando-o facilmente reconhecível pelo público.

O riso no teatro jamais vem de um prazer puro, desinteressado. Sempre traz algo de

ridicularização a que estão sujeitos determinados indivíduos ou grupos sociais. Como se

dissesse a quem assiste a determinada peça: "isso acontece todo dia!" ou "isso está errado ou

fora dos padrões!". Os estereótipos1 passam a ser cômicos porque ganham como automatismo

instalado na vida e imitado como forma repetição do que já existiu ou aconteceu, sendo de

conhecimento do outro o imaginário risível, as diferenças em relação a si.

1 Estereótipo como sendo generalizações, ou pressupostos, que as pessoas fazem sobre as características ou

comportamentos de grupos sociais específicos ou tipos de indivíduos.

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A comédia teatral se tece com elementos significativos em um determinado ambiente

cultural. A comédia não procura eternizar em si o cerne do conflito encenado, mas busca

reproduzi-lo, reinventando-o. O conflito é que, em circunstâncias idênticas, pode repetir-se e

eternizar o quadro social que lhe serviu de condição histórica de emergência.

Na comédia, a predisposição ao escárnio leva aos sentidos da comicidade, do riso,

baseado nas incongruências tecidas com relação a uma situação em cena. O riso deve

corresponder a certas exigências da vida em comum, de modo a ter uma significação,

contexto social. É na sociedade que se acha a fonte do risível.

As memórias trazidas para o presente pelas lidas locais em As fias de mamãe como

recurso libertador chamado comédia vai contra o poder limitador e ridiculariza o grotesco.

O cômico, ao contrário do dramático, "indica claramente que os valores e normas

sociais não passam de convenções humanas, úteis à vida em comum, mas dos quais

poderíamos nos privar e que poderíamos substituir por outras convenções" (PAVIS: 1999, p.

59).

As insatisfações humanas, seja pela estética, forma de uso ou sentimento/emoção,

abrem caminhos para nascer a força de troca, mudança, sucessão, "virar a mesa" ou

renascimento. A comédia rompe fronteiras, desarma, destrói censuras, satiriza, ridiculariza a

opressão, os poderes contrários, e segundo Mikhail Bakhtin, "o destronamento do rei se opõe

ao coroamento. É como se o rito de destronamento encerrasse a coroação, da qual é

inseparável. O Carnaval triunfa sobre a mudança. Nada absolutiza, apenas proclama a alegre

relatividade de tudo" (BAKHTIN: 1997, p. 125).

O fato é que a mistura acontece historicamente e o espaço da Região Metropolitana do

Vale do Rio Cuiabá é ocupado pela diversidade, embora entre a diversidade haja, certamente,

a afirmação das culturas populares que caracterizam o que se entende por cultura cuiabana em

Cuiabá. Os personagens da comédia As fias de mamãe expõem hábitos, valores cultivados ao

longo da vida e riem de si mesmos, pelas características psicossociais e mazelas vividas entre

a cidade e a hinterlândia.

O que acontece no cotidiano das pessoas passa pela questão das bases materiais e

imateriais. Na vida cotidiana, os detalhes e as banalidades são revelados pelos valores

estéticos. Nada se anula nem se esgota em um valor estético que direciona o tempo. Como

todo ser humano reflete questões do pensar, do querer e do julgar, e é o julgar que está na

mira da estética já que a estética está na mira do julgamento.

Para Giorgio Agamben (2009), convém notar a relação entre os indivíduos como seres

viventes e o elemento histórico, entendendo com este termo o conjunto das instituições, dos

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processos de subjetivação e das regras em que se concretizam as relações de poder (p. 32),

onde qualquer coisa que tenha, de algum modo, a capacidade de capturar, orientar,

determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os

discursos dos seres viventes (p. 40). Ao dizer "qualquer coisa", incluem-se todos os objetos

observáveis no mundo, a começar pela própria linguagem (maneira de se expressar ou de estar

expresso), no qual movimentam uma contínua "captura" do Ser (agente/ação) em relação a

uma opinião ou "ponto de vista".

O que não pode ser visto, pode ser dito. Os discursos populares e a mídia encarregam-

se de fazer julgamentos, de potencializar a efervescência do cotidiano das pessoas. Entre o

terror e a esperança prevalece a criatividade que, apesar da tecnologia da informação, o povo

constrói em seu "espaço de fluxos" (CASTELLS: 2002) alternativa para compor o ritmo da

vida.

Do real ao ficcionado, do riso ao estranhamento, a comédia As fias de mamãe

apresenta formas das culturas populares, já em suas versões do que hoje se entende como

culturas híbridas, ou seja, em suas modulações transversais, em que o artesanal, o midiático, o

publicitário, o industrial, o tecnológico e o cibernético se fundem, configurando uma nova

aparência.

Causar estranhamento no âmbito da cena teatral é tirar o indivíduo de um lugar

conhecido e fazer brotar a sensação de espanto, curiosidade e desconhecimento para que ele

tenha uma postura crítica, tirando-o do estado amorfo, criando o estado ativo e conectado com

a obra. O estranhamento é uma forma de questionar o processo, de trazer a naturalização que

continua presente em nosso olhar.

Na concepção de Anatol Rosenfeld (1985), o efeito de estranhamento — centro da

poética brechtiana — seria melhor traduzido como "efeito de alienação", procedimento em

que a coisificação da vida é por sua vez alienada, ou seja, tornada objeto de crítica.

Ao romper com as permanências conservadoras, Henry Bergson (2007) diz que "o riso

tem significado e alcance sociais, a comicidade exprime acima de tudo certa inadaptação

particular da pessoa à sociedade" (p. 99). O riso, para ele, é um gesto social: "o riso castiga os

costumes" (p. 13).

Os personagens da comédia As fias de mamãe são construídos com apelo popular, mas

não popularesco. Benedita Sampaio e Amazonina Bocaiuva são responsáveis pela cena da

partilha dos bens deixados pela mãe morta. Algo foi esquecido ou estava faltando na partilha

enquanto patrimônio, sugerindo desconfiança e ação de furto por um dos personagens.

Estranhando-se, os personagens lembram-se da imagem do Santo Antônio, deixando o que

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poderia ser um hábito de "lerdeza", desapego e descomprometimento com os bens materiais

da casa, porém, naquele momento passa a ser considerado como uma relíquia e o que melhor

representa a lembrança de sua mãe. Porém, evocam particularidades, sentimentos e modos de

vida que em outro local possa ser igual ou estranhamente diferente.

As fias de mamãe, por mais estranha que possa vir a ser, é contemporânea por si só. O

autor de comédia, Joilson Francisco, comprometido com sua arte de escrever, sob olhar

crítico, "desenha" no texto o que está conceitualmente inflexível na realidade, e pelo desfecho

da comédia, pelo núcleo dramático que lhe confere sentido, o desmascaramento das situações

criam possibilidade de esclarecimento.

Ter "máscara", esconder-se, omitir em vez de emitir são artifícios que os cidadãos

encontram para enfrentar a realidade. A estética não veio antes do homem, pelo contrário, foi

criada por ele. Apenas o significante não faz o signo. O autor da comédia As fias de mamãe,

por sua vez, em suas escrituras, percebe o cotidiano sob seu olhar e vale-se de seu caráter para

entender e agir a sua identidade de cidadão que mergulha em esclarecimentos sobre o ato

temático de questionar as ideias e ideais (ideologia), seja qual for, pelo seu discurso que é

político.

Entende-se que sentir na própria miséria a miséria alheia, ou um voltar-se para dentro,

para aprender a detectar o exterior que passa ao seu olhar como algo relativamente anônimo,

sem voz, indiferente, expressa uma ação política e de indignação.

O fazer teatral é sobretudo um lugar de lucidez, de crítica racional, de discussão

intelectual de valores, fato que, evidentemente, não nega, antes exige, a intensa participação

emocional.

O texto teatral é um documento que deixa transparecer valores, ideias,

comportamentos e imaginários, que recriam a realidade e reapresentam os modos de ver e agir

dos diferentes grupos sociais em determinada época e suas representações do mundo. Esse

documento, o texto, descreve a realidade como uma interpretação daquilo que a sociedade é

ou daquilo que ela poderia ser ou gostariam que fosse. Os personagens de As fias de mamãe,

enquanto "leitores da cidade", descrevem a cidade e a sociedade enquanto atores sociais,

elaborando representações determinadas pelos interesses dos grupos que as forjam. Portanto,

devem ser relacionados com a posição de quem as utiliza, para revelar os códigos, convenções

que regulam a sua produção e que remetem ao contexto cultural em que se inserem.

A condição marginal dos personagens, que o mesmo texto teatral apresenta,

caracteriza-se por uma mudança no valor de troca das coisas por um valor de uso que é

totalmente atrelado a uma cultura de consumo. Sendo assim, ao expor os mecanismos do

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próprio sistema baseados em um uso de conceitos como linguagem e valor de troca para

opressão, repressão e redirecionamento de desejos e satisfações, estes "marginalizados"

conseguem dispersar e acabar com a base fundante do mesmo, através de seu diacronismo: ser

alguém pertencente ao mundo e, ao mesmo tempo, não inserido e contido dentro dele por

razões ideológicas.

A urbanização das periferias das cidades médias passou a traduzir cada vez mais a

necessidade de se construir a sociedade moderna. A expansão das metrópoles para as bordas,

assim como o descenso demográfico, o empobrecimento ou a própria deterioração de antigas

áreas centrais, paralelamente ao surgimento de novas centralidades, muitas vezes associada à

edificação de equipamentos de grande impacto na estruturação do espaço urbano, como

shopping centers, grandes hospitais, complexos empresariais ou centros de convenções,

modificam a tipologia urbana e oferecem novas experiências com a modernização.

As políticas de moradia popular são expressivas quando as políticas urbanas têm

privilegiado o sistema capitalista. Com interesses político-partidários, a infraestrutura

necessária na periferia da cidade demora a chegar e, quando chega, valoriza as promessas de

melhorias sociais em períodos eleitorais, às especulações imobiliárias dos grupos.

Os automóveis ganham privilégios em vias que cortam o espaço e permitem o acesso

aos lugares, e por sua vez, tiram do pedestre o direito de mais atenção quanto ao direito de ir

vir, de circular com segurança pelo mesmo complexo de vias. Resulta disso tudo um cenário

de esvaziamento de certos lugares e crescimento de outros, em prol de projetos de renovação

urbana, expulsando moradores para mais longe. Os bairros se descaracterizam, referências

urbanas se destroem e as ruas ficam estranhas.

A existência de uma cultura global que só é global porque não existe uniformidade

cultural e só tem sentido se existir a diversidade, é neste contexto contemporâneo que as

culturas populares estão sendo reinventadas, num jogo de negociação dialético entre o local e

o global. Neste jogo, a rotina automatiza a percepção, impedindo ao máximo qualquer

estranhamento.

O imaginário urbano que o texto da peça As fias de mamãe evoca uma Cuiabá na

década de 1990 que se transforma. A experiência urbana dos personagens produz-se em

espaços concretos, mas de contornos fluidos. Observamos no texto da peça que os

personagens, em suas perspectivas identitárias, por vezes falam da cidade com um olhar que

busca se acostumar à velocidade das transformações sociais.

Em determinado momento da história de vida, os personagens da peça se deparam

com o rigor da recriminação de uma nova geração que acabam por fazer o que eles, quando

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criança, faziam em seus momentos de brincar. Subiam em árvores, pegavam frutos nos

quintais sem barreiras que os impedissem de atravessar os limites imaginários e concretos do

privado, apropriado e legitimado pelas convenções legais e humanas.

Havia um tempo em que para se chegar da zona rural (uma hinterlândia) até o centro

comercial de Cuiabá, utilizavam-se táticas de transporte que não conferia "status". A

personagem Amazonina, para chegar ao seu destino final, não hesitou em pedir carona a um

conhecido, baseado na relação social que o conhecido lhe conferia. Havia um tempo em que

as pessoas ofereciam carona ao conhecido para diminuir suas aflições, desconfortos e

estranhamentos diante da demora do ônibus que esperava e deveria passar na estrada de terra,

sob sol escaldante. Não era um hábito estranho pedir carona.

Mas, na peça, Amazonina chega, enfim, em casa e nota uma socialidade questionável.

Há indícios de que algo estranho está acontecendo, já que a casa de sua mãe, a matriarca da

família, onde o personagem acabara de chegar, está cheia de gente, tal como na estalagem do

"Ponto Azul" (parada de ônibus que faz o itinerário da zona rural ao Centro da cidade, vice-

versa). No roteiro da peça há muita gente na parada de ônibus por falta do mesmo e, muita

gente na casa, que em dado momento revela que alguns chegaram até ali com o transporte de

ônibus em caravana para velar a mãe morta.

O exercício de olhar a cidade precisa superar as cegueiras do simples ver. Trata-se de

testar os diversos ângulos usados para olhar o espaço urbano e passar pela experiência de para

onde estes exercícios irão nos levar. O teste de distintos ângulos potencializa captar, na

espacilidade da cidade, brechas, fissuras, desníveis, descontinuidades, vazios, passagens num

espaço inicialmente visto como homogêneo.

São os usos dos recursos do ambiente que configuram os espaços vividos, isto é, os

espaços dos usuários e suas performances cotidianas em espaços concretos. Os usos reiteram

ou modificam, parcial ou completamente, o espaço concebido pelos planejadores, aquele

espaço abstrato pensado para reproduzir o poder. Assim, as calçadas, feitas para os

transeuntes andarem até seus destinos diversos, tornam-se muitas vezes espaços de vivência

e/ou convivência, ou seja, espaços usados de múltiplas formas, transformando-se em palcos

para diversas encenações.

1.3 Cuiabá: Espaço de consumo e condição de vida social

Teatro e cidade são "sujeitos" produtores de discursos e é com seus discursos que esta

pesquisa encontra a força dos resultados que As fias de mamãe imprime sobre seus

interlocutores. No acontecimento do encontro com o texto da peça, cujo caráter de alteridade

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não deixa nenhuma margem de previsibilidade ou de controle da parte do autor, As fias de

mamãe, busca despertar a atenção dos espectadores e produtores artísticos com os

personagens Benedita Sampaio e Amazonina Bocaiuva.

O autor da peça desejou o encontro com o público, seja nas salas tradicionais de

encenações da cidade de Cuiabá ou indo até aos locais que desejavam ter um encontro com a

montagem de As fias de mamãe. Não demorou muito e os encontros aconteceram nos teatros,

auditórios, salas de aula, salão paroquial, salão de festas, quadra de esportes, carroceria de

caminhão, programas de televisão e eventos artístico-sociais. A peça As fias de mamãe

despertou, também, o interesse de diretores para transformá-la em roteiro de filme e outras

montagens com encenação local e nacional.

As fias de mamãe revela uma construção de caminhos, sendo uma espécie de lente

para observar e pensar a cidade em sua complexidade de experiência cotidiana e cheia de

criatividade para viver este cotidiano.

O olhar voltado para as condições de transformação social eleva a experiência urbana

como fato social que alude às experiências aviltantes e aos modos de atravessar diferentes

fronteiras: a da legalidade e ilegalidade, a da extensão do sobre-trabalho por meio da

autoconstrução, a da violência como elo estruturante da vida social, etc.

O espaço urbano é um elemento fundamental da identificação das pessoas com as

cidades, seja nos espaços do bairro ou mesmo nas suas moradias, nos espaços públicos, como

as praças e os parques, nas suas construções referenciais das várias formas de viver. O texto

da peça As fias de mamãe traz o olhar sobre esta relação de identificação.

Percebemos que, na construção da nossa identidade, vários sentidos desempenham o

papel de nos ligar às pessoas, às coisas e aos acontecimentos, mas o espaço é um dos

principais. É por meio da lembrança dos lugares que as nossas experiências se fixam na

memória e na nossa sensibilidade. Pertencer a uma cidade, a um estado ou a uma nação não é

apenas uma condição legal, mas principalmente o compartilhamento de experiências e de

vivência dos lugares.

No âmbito da cultura encontramos os argumentos para dialogar sobre as

reorganizações dos grupos que se acham, assim, vinculados a uma ordem semelhante de

ideias e a um propósito comum: sobreviver. O que se opera é que ser cosmopolita está na

capacidade de transformar o particular em algo comum à humanidade que busca qualidade de

vida urbana no sobreviver.

O capitalismo age neste sentido em nosso cotidiano, ante o universo das necessidades

humanas, uma dupla processualidade: de um lado, ao impulsionar o desenvolvimento das

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forças produtivas, produz necessidades "múltiplas e ricas" e de outro, limita-as, provocando o

empobrecimento do ser humano, porquanto transforma o desejo de possuir em síntese e

principal expressão da riqueza, aspiração primeira do gênero humano.

A força de trabalho que o cidadão realiza para satisfazer suas necessidades e cumprir

com seus deveres são recriados na peça As fias de mamãe ao apresentar o personagem

Amazonina utilizando de táticas, como a venda de doce na "Feirinha da Mandioca" para ter

dinheiro que custeará as despesas e satisfação dos desejos criados em meio às possibilidades e

transformações nos modos de viver que a cidade apresenta.

À expansão do consumo no capitalismo tardio, Mandel (1985) agrega outras variáveis.

Para Mandel, as causas deste fenômeno não residem apenas na intensificação do trabalho, o

que demanda um nível mais elevado de consumo de alimentos e de produtos de primeira

necessidade, como também na expansão das metrópoles, razão pela qual tem sido exigido

maior tempo para que o trabalhador se desloque entre a casa e o trabalho.

Entendemos no pensamento de Mandel que o aumento do consumo constitui um dos

traços essenciais do movimento de expansão capitalista, como impulso à acumulação privada.

Entretanto, no capitalismo tardio, o desenvolvimento das forças produtivas articula-se,

contraditória e dialeticamente, ao "desperdício institucionalizado" como modo privilegiado de

acelerar a velocidade de rotação do capital, posto que a ampliação do círculo do consumo no

interior da circulação é condição precípua para a realização do valor. Assim, a obsolescência

programada das mercadorias expõe uma das faces mais destrutivas do capitalismo

contemporâneo. Sem falarmos do aumento do desemprego, das desigualdades sociais ou da

pobreza, com impactos adversos em termos da conflitividade e da violência.

O papel do consumidor individual contrasta com a força das grandes corporações que

também gera a produção de estilos de vida, na criação de apetites e de padrões de

comportamento, pretensamente inovadores, mas reafirmadores da irracionalidade no uso dos

recursos naturais e da subalternidade do conjunto da sociedade face à hipertrofia do mercado.

Os efeitos são de apelo moralizador, remetendo às normas de condutas, a julgamentos de

valores, ao tempo em que mantêm intocadas as suas bases constitutivas.

Segundo Ernest Mandel (1985), a crítica ao consumismo e ao desperdício "só pode

significar rejeição de todas as formas de consumo e de produção que continuem restringindo o

desenvolvimento do homem, tornando-o mesquinho e unilateral" (p. 277).

É preciso lembrar que o homem, enquanto ser material com necessidades

materiais, não pode atingir a plena expressão de uma 'individualidade rica'

por meio do ascetismo, da autopunição e da autolimitação artificial, mas

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somente pelo desenvolvimento racional de seu consumo conscientemente

controlado e conscientemente subordinado a seus interesses coletivos

(MANDEL: 1985, p. 277, grifo do autor).

A cidade representa um recurso valioso, cuja exploração, se orientada por princípios

meramente lucrativos, não poupará nem a sociedade como um todo nem a convivência nas

cidades de consequências a longo prazo. Partindo da constatação de que cada vez mais

pessoas moram em cidades, um desenvolvimento urbano sensato, sustentável e social, que

equilibre as diferenças de classe, gênero e etnicidade, apresenta-se como demanda por parte

das massas que passam a habitar o espaço urbano.

O direito à cidade para uns é a satisfação de necessidades básicas, como moradia, o

acesso a recursos vitais, como água e infraestrutura, coleta de lixo e saneamento básico, bem

como vias e meios de transporte urbanos. Para outros, esta reivindicação expressa a demanda

por uma cidade que possibilite e incentive a criação de pontos que caracterizam a vida e a

cultura urbanas, o que inclui considerar a heterogeneidade cultural e a viabilização de uma

diferença produtiva.

A cidade de Cuiabá, em sua singularidade urbana, busca se adaptar aos novos modelos

de dinâmicas sociais e econômicas globalizadas. A produção de subjetividade cada vez mais

passa pelos processos de consumo, ou seja, pela produção do mundo do consumidor. Com os

atrativos encontrados na cidade, de acordo com Debord (1992, p. 9), "o consumidor real

torna-se um consumidor de ilusões".

A publicidade destinada a suscitar o consumo de bens, torna-se assim o primeiro dos

bens de consumo (LEFEBVRE: 1991, p. 115). E a cidade no novo mapa do mundo é

perseguida por hábeis gestores do city marketing que fabricam também uma nova cidadania,

um novo modo de ser e viver na cidade. Tudo visa aceleração do consumo e acumulação

capitalista. A globalização e a vida cosmopolita existem e devem ser apropriadas em

benefício da ação de direito, de voz, de acesso e de inclusão.

As táticas criativas dos personagens encontradas no texto da peça As fias de mamãe,

possibilita-nos pensar ainda mais nos novos modos de viver na cidade, inclusive na condição

de dramaturgos, visto que, a atratividade de uma cidade, para os que migram dos interiores ou

para moradores antigos, pode ser medida, também, com base nos territórios de criação nos

mais diversos campos: culturais, artísticos, científicos.

A partir das táticas criativas desenvolvidas pelos personagens, Benedita Sampaio e

Amazonina Bocaiuva, que metalinguisticamente refletem a própria condição da produção

teatral, pode-se considerar que o desenvolvimento de "locais criativos", centrais ou

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periféricos, dão os impulsos apropriados ao processo como um todo da cidade. Oferecem, por

exemplo, aos responsáveis pelo planejamento urbano a oportunidade de experimentar novas

estratégias e conceitos para o desenvolvimento de locais, comunidades, bairros vivos,

produtores de potencial econômico e sentido ao local pela condição de vida.

O incentivo às áreas de manifestações artísticas e criatividade são itens que podem ser

consideradas no planejamento urbano das cidades. Devemos pensar e partir do princípio de

que "locais criativos" enquanto modos de aliar cultura e economia contribuem para que uma

cidade seja considerada atraente ou bem-sucedida.

Artistas e agentes culturais sempre marcaram de maneira duradoura os espaços

urbanos. A novidade é que as pessoas criativas estão desejando serem vistas, em vida,

também, como potencial econômico para o desenvolvimento urbano.

Cuiabá, ao longo de sua história quase tricentenária, tem se apresentado como cidade

que se destaca por sua diversidade de manifestações artísticas e técnicas. Dela, fazem parte

não apenas artistas, agentes culturais e técnicos fornecedores, mas também empresas das áreas

de arquitetura, cinema, música, publicidade, do mercado editorial entre outros.

Segundo David Harvey, os investimentos de apoio a atividades culturais e de

consumo, e uma ampla série de serviços urbanos disponíveis estimulam a captura da mais-

valia em circulação. O risco, segundo o autor, é alto, mas os rendimentos são altos também

(HARVEY, 1989, p. 47-48). As cidades procuram reforçar seu papel de centro de consumo,

buscando melhorar sua atratividade por meio do turismo, do entretenimento, de inovações

culturais que podem resultar em melhorias na qualidade de vida e do meio urbano. Acima de

tudo a cidade tem de parecer como lugar inovador, excitante, criativo e seguro para viver,

visitar, para jogar ou consumir.

As inovações culturais (festivais, eventos culturais, artísticos, exposições), atrativos de

consumo (centros de convenções, shoppings centers, praças de alimentação) e atividades de

entretenimento (estádios, parques temáticos, espetáculos temporários ou permanentes, feiras)

influenciam na centralidade da economia de bens simbólicos, reforça estilos de vida,

diversifica as ofertas de consumo, promove espaços de consumo e de lazer (HARVEY: 1996,

p. 54-55). A divulgação da cidade como um espaço para atividades de consumo pode resultar

em algo positivo.

A produção orquestrada de uma imagem urbana, se bem sucedida, pode

ajudar também a criar um sentido de solidariedade social, orgulho cívico e

lealdade ao lugar e mesmo permitir que a imagem urbana forneça um refúgio

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mental em um mundo no qual o capitalismo alija cada vez mais o senso de

lugar (HARVEY: 1996, p. 60).

Ao se promover a circulação de capital por meio do consumo de bens, serviços e

mercadorias, acaba-se muitas vezes por "esvaziar" a cidade de seu conteúdo para transformá-

la em uma imagem a ser consumida. Acaba-se por fazer prevalecer o local como valor de

troca e não como valor de uso, enfim acaba-se por transformar a própria cidade e região em

uma mercadoria. David Harvey (2004) também pontua alguns aspectos negativos, onde

muitas das instituições culturais — museus, organizações do patrimônio histórico, arenas para

espetáculos, exposições e festas e festivais — parecem ter como objetivo o cultivo da

nostalgia, a produção de memórias coletivas higienizadas, a promoção de sensibilidades

estéticas acríticas e a absorção de possibilidades futuras numa arena não conflituosa

eternamente presente. Os contínuos espetáculos da cultura da mercadoria, incluindo a

transformação do próprio espetáculo em mercadoria, desempenham seu papel do fomento da

indiferença política (p. 221).

Dentre muitos efeitos da globalização, a espetacularização das cidades surge como

resultado, dito pelos empreendedores "bem sucedido", vindo de planos internacionalizados,

ou melhor dizendo, do chamado planejamento urbano estratégico, promovendo cidades cada

vez mais semelhantes e desconsiderando aspectos regionais de cada uma delas, ou utilizando

elementos aparentes de caracterização regional que funcionam para diversos locais.

Conforme as cidades são organizadas, produzem fronteiras invisíveis que legitimam as

desigualdades sociais no e através do espaço, sendo essas as consequências do tão bem

sucedido planejamento urbano, tendo como principal produto espaços capazes de reiterar a

fragmentação social.

Como forma popular de resistência ao controle social e ao modo capitalista de

organização social, contra o não-cumprimento das promessas de melhorias na infraestrutura

local, uma teatralização da vida pública pode refletir a análise dos indivíduos e de suas

relações sociais, envolvidos pelo cotidiano. Os espaços públicos que são regidos pelo poder

político e pelos interesses corporativos, em parcerias entre eles, que se transformam em

espaços semipúblicos, uma vez que o público deve pagar pelos serviços dos quais usufrui

(LIMA: 2004), abrem-se espaços para novas iniciativas, capazes de subverter a ordem

imposta ou recriar nova ordem pela experiência social e política.

A partir do momento em que há a homogeneização do espaço, muitas vezes

promovidas e reforçadas pela mídia, as múltiplas identidades e diferentes formas de vida

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social são simplificadas. As imagens produzidas para a cidade constituem-se na negação da

possibilidade de existência de outras imagens e, consequentemente, de outras leituras,

retirando da cidade a multiplicidade e o conflito. Dessa forma, a cidade vai perdendo uma de

suas expressões sociais: a sua diversidade de leituras.

A criação teatral, As fias de mamãe no caso, ao reconstruir o imaginário da cidade de

Cuiabá, na década de 1990, permite discutir e avançar nas leituras do que pode ser a

experiência urbana que é simultaneamente a experiência singular da modernização brasileira.

O homem não passa em branco por uma cidade. Ela o acompanha independente de seu

gesto ou vontade. Em tempos globais, com novos modos de vida urbana, as inquietações da

esperança humana para ter dias melhores, com melhores condições de viver, destaca-se a

democracia que continua sendo perseguida como uma forma de construir novos

representantes, novas maneiras de atender às necessidades sociais e possibilitar uma melhor

distribuição de renda. Renda esta que garante o poder de compra, de troca, de convivência, de

tolerância. A "fé" no dinheiro como senhor da história e dos homens, leva à perda de crença

nas potencialidades, na energia, no tempo de vida.

Se o cotidiano é uma teia de escrituras, promover a leitura destas escrituras demanda

atentar-se para os problemas, as dificuldades, as precariedades e as ambiguidades do convívio

social urbano. A cultura da precariedade, revela os gestos políticos, problematiza e realça a

existência humana na cidade. O teatro, em seu papel, expõe estas existências como uma

experiência cultural, refletindo, traduzindo modos de viver uma época da cidade de Cuiabá.

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Capítulo 2: Teatro e imaginário da cidade: Dramatização da experiência

urbana

2.1 As fias de mamãe: A história de uma peça de teatro em Cuiabá

O texto da peça As fias de mamãe foi escrito em 1998 em uma das primeiras

experiências do autor, Joilson Francisco, como dramaturgo. O texto se constitui de histórias

ouvidas, observadas, vividas e comentadas na cidade de Cuiabá e seus arredores.

As fias de mamãe buscou dar continuidade ao projeto teatral "Depois que mamãe

morreu..." (1997), de autoria de William Paula e Antonio Marcos Lima, que faziam do

linguajar caracterizadamente cuiabano o foco da produção textual e de um teatro, então em

experimentação, na Cuiabá da década de 1990.

Na trama de As fias de mamãe, a demanda é por um teatro com marcadores simbólicos

da cultura popular rural, em transição para uma característica urbana, em Cuiabá. A língua

falada, que diverge com força da norma culta, apresenta-se como marca afirmativa da cultura

popular em uma comédia de costumes, expondo modos de relações familiares e sociais nos

atritos entre modernização e aquilo que insiste em entrar, a seu modo, na modernidade.

O linguajar cuiabano (ARRUDA: 1998), rico em palavras excêntricas e exclusivas da

região, foi historicamente desenvolvido pela população que vive nos entremeios da zona

urbana e rural. Ouvido pelos demais falantes da língua portuguesa no Brasil, é percebido

como diferença que se apresenta pela sonoridade e, como elemento estranho no português

popularmente falado nos entremeios do cerrado e do Pantanal, torna-se estigmatizado por

destoar do português compreendido como o "correto" e, portanto, hegemônico, no imaginário

nacional.

O linguajar cuiabano nasceu de um cenário linguístico aparentemente homogêneo.

Mato Grosso se converteu, nesses tempos de intenso fluxo migratório, num cenário

visivelmente heterogêneo. Escutam-se aqui não mais apenas as notas do falar cuiabano, mas

também as do paranaense, do catarinense, do goiano, do mineiro, do gaúcho, do paulista, do

nordestino, entre outros brasileiros e estrangeiros.

As relações entre a variedade linguística local e as dos imigrantes estão longe de ser

pacíficas. Aliás, tensão e conflito estão sempre presentes nos contextos onde diferenças

linguísticas se entrecruzam, uma vez que as diferenças, via de regra, são hierarquizadas

segundo o status socioeconômico de seus falantes. Quer dizer, invariavelmente dividem-se em

variedades de prestígio e variedades estigmatizadas, não pelo que elas são em si mesmas, mas

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pelo poder maior ou menor de seus falantes. Os inevitáveis encontros culturais das diferenças

geraram as incorporações e discriminações sociais.

Segundo Arruda (1998), as elites que aqui atuavam como governantes quase sempre

vinham de fora. A circulação de pessoas por Cuiabá e seus arredores, possibilitaram as

misturas, inclusive da forma de falar. O "cuiabanês", o sotaque cuiabano para a língua

portuguesa, vem dialogando com outras formas de enunciação da língua nacional. Em geral,

acha-se ainda bastante praticada em áreas rurais. De generalizado que era, foi diluindo até

ficar restrito a pequenos redutos, até que seja atingido pelos elementos uniformizadores da

linguagem, especialmente o rádio e a televisão. Certamente, os mais velhos ainda resistirão,

enquanto os jovens são atraídos pelos novos valores. Salvo os que entendem, acreditam e

praticam valores que são importantes para uma determinada localidade, a partir dos seus

próprios valores.

A persistência e a intensidade do falar cuiabano, segundo Cox (2006), ganha melhores

entendimentos ao verificar que

nos seus quinhentos anos de vida no Brasil, o rotacismo tornou-se um traço

altamente estigmatizado, a marca registrada do dialeto caipira, língua que sai

da boca de jecas-tatus, reminiscência arcaica, não prevista e não esperada em práticas sociais e linguísticas urbanas, escritas e formais. É investido dessa

aura negativa que o rotacismo circula no mercado linguístico cuiabano em

sua configuração atual, espaço onde é impiedosamente rechaçado por falantes, chegados em Cuiabá aos milhares nas últimas três décadas, que não

apresentam esse traço fonológico em seu vernáculo (COX: 2006, p. 77).

Na perspectiva dos costumes cuiabanos, as marcas culturais dos personagens são de

fácil percepção quando suas ações são apresentadas com expressões características do

linguajar local, como trazem as falas e as rubricas no texto de As fias de mamãe. São falares

singulares de cuiabanos que, no bojo da hegemonia de um sotaque difundido pelos sistemas

nacionais de televisão, tornam-se em desuso em outras partes do país, mas que permanecem

na região de Cuiabá, em especial pelos segmentos populares, carregadas do CH como

substituto do X, com pronuncia de TCH: O Coxipó encheu (o cotchipó entcheu), enquanto o

G em seu correspondente J soam como DJ: gelo (djelo), jóia (djóia).

No caso, as expressões no texto da peça As fias de mamãe, como afirmativas locais,

podem ser interpretadas em seu processo de subjetivação de acordo com as conjunturas

dramatúrgicas dos personagens: Agora quando? Vôte! Digoreste! Tcha por Deus! Tchialá!

Cânháem! Cordêro, ocê! Cotchá: bamo! Ê aaah! De japa! Que que esse! Moage, banzé, corna,

rapariga, guri, precata, bambolê, tombera, nhô, xá, djira, cesso, bocó... Estas e outras

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expressões conotam usos linguísticos que perfuram o imaginário difundido de uma língua

portuguesa homogênea e que em certa medida representa o processo de modernização do

estado-nação na proporção em que dá contornos supostamente mais nítidos a uma ideia de

cultura nacional.

Os usos populares da língua portuguesa por vezes despertam riso e sugerem distintos

modos como as normas gramaticais são burladas, de modo mais ou menos consciente, pelos

segmentos populares. O uso de um vocabulário local e do sotaque cuiabano, carregados de

expressões e tons que também despertam muitas vezes o riso, torna-se uma ferramenta de

sarcasmo social. Trata-se de expressões e sentidos que ganham pronuncias e interpretações

singulares em Cuiabá.

Essas expressões, tiradas do senso comum e do cotidiano, ganham conotações

satíricas, que, nos costumes locais, servem também para sinalizar uma quebra de protocolo.

Para outros podem soar como ofensa. Ser chamada de "rapariga", "corna", "fiadaputa", por

mais pejorativas que se possa sugerir em outros contextos simbólicos, às vezes são usadas

para demonstrar uma sugerida busca de intimidade e aproximação com o interlocutor, e por

vezes, uma quebra cômica na sisudez que possa se apresentar, como se lê nas cenas do texto

da peça As fias de mamãe.

BENEDITA - É, e djá tava na hora do cê tchegá! Num me diga que ocê tava vendeno doce na ferinha da mandjioca?

MAZO - Craro! Defendeno esse... (gesticula com os dedos, $). Num vai me

dá um abraço? (abrançam-se) Como que vai xô tchêro?

DITA - Melhor que xás perebas!

Para Cox (2006), o riso foi a primeira reação, provocado certamente pela emergência

extemporânea de um traço de uma língua menor, suja de terra, rústica, num texto asséptico

que aciona o repertório de gêneros discursivos citadinos e ligados a esferas de atividades de

produção, comércio e consumo de alimentos, próprias das sociedades complexas e

industrializadas da alta modernidade (p.77).

O riso, diz Bergson (2007), castiga a rigidez dos movimentos mecânicos e

automáticos, convertendo-a em maleabilidade, ao que Larrosa faz coro:

O riso polemiza com o sério, entra em contato com o sério, dialoga com o sério, com essa linguagem elevada que pretende envolver o mundo e

compreendê-lo e dominá-lo, com essa linguagem canonizada e aceita que

não duvida de si mesma. O riso desmascara essa linguagem, retira-a de seu

lugar, de seus esconderijos, a expõe ao olhar como ela é, como uma casca vazia. [...] E, assim, o riso põe a nu [...] a arbitrariedade e a contingência de

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qualquer forma estabilizada, [...] impede que as máscaras, crentes de si

mesmas, se solidifiquem e se ressequem. E essa é sua contribuição para a

aprendizagem: não a destruição das máscaras, mas o reconhecimento de seu caráter de máscaras e o impedimento de que se grudem completamente. [...]

E, então, o baile de máscaras converte-se em uma alegre dança (LARROSA:

1998, p. 223-226).

Aprendemos a potência de diferenciação e multiplicação das línguas vivas que não se

deixam imobilizar por sistemas. Contaminam-se. Aprendemos o esgarçamento das fronteiras,

a mistura de códigos. Aprendemos que as línguas vivem não quando se purificam, mas

quando se misturam (COX: 2006, p. 79).

O autor de As fias de mamãe logo de início do texto escreve a relação da construção da

linguagem radiofônica, midiática e funcional, utilizada pelos locutores de rádio, aliada com a

linguagem oral falada (língua formal e linguajar cuiabano):

RÁDIO - [...] TEXTO DO LOCUTOR: - É, esse é o seu programa favorito que está no ar com a voz mais bonita de Mato Grosso. Alô amigos do rádio!

(pausa) Atenção senhores ouvintes! Vem aí a nossa sessão de cartinhas,

avisos e recados. (pausa) Alô meu povo da Figueira, Rosário Oeste! Nete

manda avisá a mana Louraci que está ino ela, Baxinha e Prefeita. Ela pede pra Rosino ir buscá na porteira. Atenção, Aparecida, da Cidade Batcha e

cumpadre Tonho: Cipriana manda avisá que Agustinho tá assim, assim,

assim.... Alô Amazonina, do Acorizal. Sua irmã Benedita manda avisá que você deve vir pra Cuiabá. Sua mãe não passa nada bem. Pede ainda pra você

trazê a sandália e o cinto de tala larga que ela isqueceu aí. Ahn! E diz que o

cal que você mandou não deu pra pintura da casa. (pausa) Mande sua

cartinha que nós bamos ler aqui durante a nossa programação. (pausa) Bamos sorteá mais uma cadeira de roda, um óculos e uma cartinha... Ah não

dgente! Essa Benedita não tem nada pra fazê? Outra carta dela. — "Quero

pedi uma música romântica-internacional-lenta-traduzida. Ofereço pra todos os ouvintes e pros moços do 16º BC".

A linguagem popular, calcada na fala como uso da linguagem, e não nos códigos

formais da escrita, fica colocada à margem do fator de prestígio social, pois trata-se de uma

fala que não se estende localmente nos círculos sociais pautados pelas normas cultas e nem

nacionalmente por não se difundir pelos demais centros urbanos do país agora unificado em

torno de uma brasilidade centrada no Sudeste carioca ou paulista. O sotaque (pronúncia

peculiar a cada indivíduo, região ou nação) e o dialeto (variações de pronúncia, vocabulário e

gramática pertencentes a uma determinada língua) acontecem sistematicamente segundo a

formalidade ou informalidade da situação em que se encontram.

O autor também valeu-se de suas inquietações para manifestar na peça o seu

descontentamento com a política cultural então em vigência na cidade de Cuiabá. A produção

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praticamente artesanal de As fias de mamãe responde ao processo de marginalização dos

grupos de teatro que não conseguiam ter acesso aos recursos públicos, patrocínios, apoios e

incentivos aos projetos cênicos que buscavam emergir na cidade, na década de 1990.

Assim, a peça em questão representa, ela própria, uma crítica não apenas às políticas

voltadas para a produção cultural e artística numa cidade que passava pela sua experiência de

metropolização, mas também aos modos como o município vinha sendo historicamente

administrado e enfrentava as demandas de uma modernização avassaladora. Nas histórias dos

personagens Amazonina e Benedita, a peça destaca a precariedade socioeconômica das

pessoas comuns, principalmente daquelas que habitam os ermos das hinterlândias (entre o

campo/rural e a cidade/urbano, com pouca infraestrutura e de povoamento escasso) da

metrópole emergente.

Na época, um certo imaginário sobre o fazer teatral incidia nos editais públicos: era

preciso formação acadêmica em área afim da produção cênica para que o proponente do

trabalho pudesse se habilitar e receber incentivos através das leis de incentivos à cultura

existentes para fomento das artes. Os proponentes que, por processos históricos diversos,

conquistaram seu espaço de prestígio e notório saber pela experiência na área teatral, foram

legitimadas politicamente nas instancias burocráticas para aquisição de recursos financeiros

aos seus projetos culturais. Porém, produtores e diretores que apresentassem propostas de

projetos apenas com currículo de empirismos relacionados ao âmbito de uma cultura popular

urbana, o teatro amador, no caso, não tinham credibilidade a se habilitar para o fomento

público, o que já era um indicador de como as políticas para o campo da cultura, ao menos

naquela época, não dispunham de indicadores ou parâmetros sobre que práticas culturais

seriam merecedoras de incentivos governamentais.

Neste caso, produzir teatro, na cidade de Cuiabá, equivalia a resumir "os habilitados" a

poucos candidatos, dada a inexistência de cursos regulares de teatro ou artes cênicas em

qualquer dos níveis da educação formal: cursos técnicos e cursos de graduação (bacharelado e

licenciatura).

Era preciso continuar para mudar. A posição receptiva ou não das condições políticas

da época tornava-se uma condição a ser superada para se conquistar os espaços ou produzir

outros espaços para as artes cênicas. Havia resistências e dificuldades à formação de um

campo teatral, mas também havia compreensão e afeto, alimentados pela esperança de uma

comunidade artística atuante e que insistia na virtualidade de uma cena teatral na cidade.

O desejo do autor de As fias de mamãe era, como iniciante, construir uma carreira

bem-sucedida na produção de espetáculos de teatro. Para tanto, foi necessário deixar de ser

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amador para ser "amante" de teatro. Foi necessário obter conhecimentos em gestão cultural,

formar currículo artístico, habilitar-se em instâncias representativas e simplesmente praticar a

arte do teatro, compreendida na rubrica de artes cênicas. O autor, para montar as peças

teatrais, fez produções com recursos humanos e técnicos que não tivessem custos ou

precisassem formalmente de remuneração.

As primeiras produções começaram a receber a assinatura do Teatro Termômetro, uma

referência simbólica à alta temperatura que se registra normalmente em Cuiabá. Havia um

chiste no nome dado à companhia de teatro então nascente que era modo de aferir e buscar um

propósito do fazer teatro: amor à arte, mas, no caso, com muita transpiração.

O Teatro Termômetro, sem Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ), gerenciou

as suas produções cênicas basicamente por convites a atores, autores, técnicos e

incentivadores a fazerem parceiras, de acordo com cada proposta apresentada pelo diretor,

ainda que os convidados fossem de outros grupos ou companhias de teatro. E os incentivos

passaram a acontecer por parte do poder público e privado.

Foto 2 - 1º Cartaz da peça As fias de mamãe.

Arte Plástica: Gervane de Paula; Arte Gráfica: J. Francon.

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As fias de mamãe teve pré-estreia em 1999, na varanda de uma típica casa cuiabana,

com público formado por amigos e vizinhos. A jornada de ensaios foi realizada em um galpão

alugado e alternadamente muitas vezes no quintal das residências da equipe. O horário era

combinado para que os ensaios não chocassem com o horário de trabalho dos membros da

equipe.

A primeira montagem de As fias de mamãe, a estreia, definitivamente, ocorreu em 28

de fevereiro de 2002. Com incentivo de uma estação de TV, a Centro América, em Cuiabá,

que cedeu o auditório da empresa, sob uma política organizacional, para a encenação do

espetáculo. Foi a primeira conquista de espaço e de apoio de marketing conseguido pelo

Teatro Termômetro.

A equipe era formada por:

- Jucelina Ferreira de Campos, professora de língua portuguesa, formada pela UFMT,

concursada na rede pública estadual de ensino, mestre em Educação, casada, mãe. Ela

interpretou o personagem Benedita Sampaio;

- William Silva de Paula, professor de língua portuguesa, formado pela UFMT, mestre

em Educação, concursado na rede pública federal de ensino, solteiro, interpretou o

personagem Amazonina Bocaiuva;

- Roberto Calmon, funcionário público estadual, solteiro, com função de maquiador;

- Bene de Paula, solteira, mãe, secretária do lar, com função de contra-regra;

- Aguinaldo Barros, marceneiro, técnico e operador de instalações elétricas, casado,

pai, com função de montagem de cenário e iluminação (iluminador);

- Gervane de Paula, casado, artista plástico, criador da obra fotografada para compor a

identidade visual dos materiais gráficos e publicitários;

- Joilson Francisco da Conceição, formado em publicidade e propaganda pela UFMT,

gestor cultural, dramaturgo, com função de diretor, operador de som, cenógrafo, composição

de figurino, artes gráficas, fotos e produção executiva.

A base de conhecimento para a prática teatral se deu durante a participação dos

componentes da montagem da peça em diferentes momentos no Núcleo de Teatro Ânima,

com sede na então Escola Técnica Federal de Mato Grosso (ETF), que em 2008 passou a ter a

designação de Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso (IFMT).

O Teatro Ânima é um núcleo de produção cênica que esteve sob direção do professor

Gilberto Nasser Canavarros. Os componentes do grupo que produzia As fias de mamãe

encontraram no Teatro Ânima um espaço de formação alternativa em teatro, considerando a

ausência de cursos de graduação/bacharelado e licenciatura em artes cênicas na cidade.

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Porém, as montagens conseguiam resultados satisfatórios e, em certa medida, com

resultados que buscavam estar próximos a montagens profissionais. O Teatro Termômetro foi

um dos muitos grupos que saíram da experiência do Teatro Ânima, responsável, a partir da

ETF, por gerar e difundir a prática das artes cênicas na cidade e no estado.

O amplo conhecimento acumulado em várias atividades pelo professor Gilberto

Nasser, que é formado em física pela UFMT, ganha características de múltiplas habilidades, o

que inclui trabalhos interdisciplinares como locutor de rádio, locutor publicitário, escritor,

cantor, facilitador ao conhecimento sobre artes. Dado curioso: Nasser era neto da professora,

poetisa e pianista Zulmira Canavarros, nome fortemente ligado à história da produção cultural

em Cuiabá.

Pode-se afirmar que o teatro em Cuiabá na década de 1990 foi intensamente produzido

a partir do trabalho do Teatro Ânima e do professor Gilberto Nasser. A partir do Ânima, o

público de teatro na cidade teve a oportunidade de assistir a encenações (espetáculo montado

e sendo apresentado ao público) que iam da comédia ao drama, incluindo gêneros populares

do pastelão ao besteirol.

Em meio a um nascente ambiente de artes cênicas, o Teatro Termômetro buscou criar

um regime de credibilidade junto à opinião pública local. A partir dessa imagem, que os

membros consideravam positiva, o grupo passou a fazer empréstimos de objetos, produtos de

familiares, vizinhos e conhecidos para produzir as peças.

Nos anos 90, a prática do marketing cultural estava em ascensão no mercado cultural

cuiabano, mas poucos grupos de teatro sabiam como usá-lo. A entrada em cena do marketing

cultural passou, então, a ser conhecido e difundido nos meios acadêmicos, empresarial e

artístico, embora o desconhecimento tenha gerado confusão quando juntado às igualmente

recentes leis de incentivo à cultura em âmbitos nacional, estadual e municipal.

Havia poucos profissionais no campo maior da cultura acessíveis para prestar

esclarecimentos aos artistas e aos candidatos a artistas que precisavam se atualizar com

informações. Os grupos de teatro, a maioria em âmbito amador, passou a compreender a

necessidade de se dar respostas mercadológicas ao recebimento de patrocínio, apoio ou

doação.

A contrapartida dos grupos de teatro era entendida como troca de benefícios entre a

produção de um espetáculo e empresas que se colocaram dispostas a investir recursos no

campo das artes. Benefícios, no caso, se traduziam em atividades já praticadas no marketing

em outras áreas, o que incluía a aplicação da marca das empresas nos materiais de divulgação,

concessão de ingressos de cortesia, apresentações de performances para poucos convidados e

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em locais fora do circuito de realização cênica (teatro com "caixa preta", típico dos palcos

italianos).

O objetivo era ter, como incentivadores, empresas com suas logomarcas e boa imagem

para agregar valores à produção do espetáculo2. Empresas buscavam firmar suas marcas no

mercado cuiabano, enquanto grupos de teatro buscavam, na parceria, fortalecer a prática

teatral e simultaneamente fortalecer a marca dos patrocinadores e apoiadores.

Nessa categoria de incentivadores encontravam-se empresas de distintos portes e

ramos de atuação na economia da cidade. Para fins de registro histórico, citam-se Rede

Cemat, Restaurante Porto da Conceição, Casa Domingos, Engenharia de Criação, Smoke

Tabacaria, Gráfica Futura, Instituto de Beleza Di Kátia, Sesc Arsenal, Rádio Cultura de

Cuiabá, TV Universitária (UFMT) e MTV Cuiabá.

Essas empresas colaboraram com recursos financeiros para produção do cenário,

figurino e serviços de impressão dos materiais gráficos de divulgação da peça As fias de

mamãe.

Instigados pelas possibilidades que As Fias de Mamãe pôde proporcionar, outros

produtores e atores realizaram montagens após sua primeira estreia. Apresentações em

espaços públicos e privados fizeram o público conhecer um pouco mais da produção teatral de

Cuiabá e, simultaneamente, conhecer manifestações calcadas na cultura popular. Experiências

observadas e vividas pelos atores que interpretaram os personagens, também, foram somadas

e retratadas ao longo das encenações do texto de As fias de mamãe.

A atriz Jucelina Ferreira, desde a estreia da peça, esteve no papel de interpretar o

personagem Benedita Sampaio, sem haver substituições no elenco. O personagem ganhou

outra interpretação, em 2013, quando o ator Carlos Ferreira aceitou desenvolver uma

construção para o personagem em encenações nos eventos das empresas que contrataram a

produção da peça para apresentações. O personagem Amazonina Bocaiuva, por sua vez, foi

interpretado, além do ator William de Paula, que estreou o personagem na peça, em outras

montagens o personagem esteve sob o ofício dos atores Celso Gayoso, André D'Lucca e Aline

Wendpap.

O gênero comédia, com características das manifestações culturais locais, ao longo do

tempo ganhou destaque nas mídias no final dos anos 1980. Numa década em que a cidade se

via premida pela chegada de levas de imigrantes do Sul e do Sudeste, trazendo valores e

visões de mundo distintos, aquele foi um momento em que características locais tiveram

2 Espetáculo: exposição pública para apreciação do resultado da arte em questão.

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grande apelo na reafirmação de valores ligados à cidade e à região, o que incidiu muito

enfaticamente num modo de produzir teatro.

O teatro de comédia, principalmente, começou a ganhar visibilidade e a formar um

público numeroso, lançando mão de práticas cômicas no processo de criação artística. A

invenção de um aspecto cômico na produção teatral tinha algumas referências oriundas da

cultura popular: o teatro se cria nos entremeios dessa superfície discursiva que são os

elementos de uma cultura tradicional que, aos poucos, ganha uma dinâmica própria de cultura

popular urbana.

Os procedimentos de criação equivaliam a algumas atividades e iniciativas:

a) A utilização do sotaque caracterizadamente cuiabano, que em geral tem forte

conotação satírica, principalmente quando carrega o sentido de ser uma produção de

linguagem que, num sentido mais consciente, afronta propositalmente as normas

cultas da língua portuguesa. Historicamente, no âmbito da cultura popular, o sotaque

cuiabano responde por um modo singular de criar ambientes de sociabilidade, o que

inclui o costume de se colocar apelidos nos amigos e nos parentes como modo de

produzir alguma coesão social através da sátira.

b) A criação de uma imagem visual que reinventa uma paisagem local: o figurino dos

personagens é caracterizado através de peças de vestuário em que prevalecem o tecido

conhecido popularmente como chita. Recortam-se retalhos que, costurados em tecido,

ganham adições de artesanatos de crochê e de fuxico. A paisagem do teatro reinventa

também os cenários teatrais tipificados como locais, utilizando-se de elementos da

culinária cuiabana que, por si só, expõe peixes de rio, comidas à base de produtos de

agricultura familiar, além de utensílios domésticos e decorativos, entre outros, como

ponto principal nas produções.

De modo inédito, na década de 1990, para uma geração de cuiabanos que passou ao

largo do hábito de ir ao teatro, pela ausência de produções locais e de circulação de peças

produzidas em outros estados, alguns artistas na cidade de Cuiabá encararam a temática local

e afirmação do que significa ser cuiabano como oportunidade de, simultaneamente, gerar

renda e produzir crítica social. Era preciso, portanto, fazer uma espécie de elogio da cultura

local, nas fricções produzidas com as alteridades que atravessavam o estado de Mato Grosso.

Os costumes foram transformados em ferramenta de produção não apenas da vida social, mas

também do fazer artístico.

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Personagens com características cuiabanas constituíram momentos das artes cênicas

de atores e diretores que conquistaram destaque nos espaços sociais e midiáticos, produzindo

um fenômeno instigante na cidade de Cuiabá: a superlotação de teatros e espaços cênicos

alternativos com a encenação de peças tendo Comadre Nhara e Comadre Creonice como

personagens principais de um momento histórico em que a cidade passava por intensas

experiências de urbanização.

O ator e diretor Liu Arruda, morto em 24 de Outubro de 1999, criou e interpretou

vários personagens tipificados como cuiabanos de distintas gerações e diferentes aspectos

identitários, como Comadre Nhara, Juca, Gladstone, Ramona, entre outros. O também ator e

diretor Ivan Belém, parceiro de trabalho de Liu Arruda, também teve importante participação

na gestação deste modo singular de fazer teatro de comédia, em busca também de inventar

uma prática teatral com fortes vínculos simbólicos com uma ideia de cidade. É de Ivan Belém

o personagem Comadre Creonice, que também esgarçou o imaginário da cidade com uma

comadre faladeira, caracterizada cenicamente como esperta e inteligente, parceira cênica da

igualmente esperta e inteligente Comadre Nhara, personagem de Liu Arruda.

Foto 3 - Comadre Nhara

(personagem do ator e diretor

Liu Arruda).

Foto 4 - Comadre Creonice

(personagem do ator e diretor

Ivan Belém).

Foto 5 - Comadre Pitu

(personagem do ator e diretor

Vital Siqueira).

Fonte: https://www.flickr.

com/photos.

Fonte: http://sociedadedospoetas

amigos.blogspot.com.

Fonte:http:// nicoelau.blogspot.

com.

Da mesma época há o trabalho igualmente importante do ator e diretor Vital Siqueira,

criador do personagem Comadre Pitu, que ainda hoje, no ano de 2014, vem reconstituindo um

imaginário das "comadres faladeiras" (de forte personalidade e de inteligência marcante),

produzindo um lastro do que se entende por representações do feminino no teatro de comédia,

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e mais precisamente um feminino segundo os olhares de atores e diretores de teatro que

observam e reinventam modos de se subjetivar no mundo.

A figura da "comadre faladeira" é conhecida pela imagem dos recortes visuais da

janela de casa onde a figura feminina apoia os cotovelos, enquanto uma mão apoia o queixo.

Por meio da janela (porta, calçada ou onde quer que ela, a comadre faladeira esteja) se vê a

rua e os movimentos dos transeuntes.

A comadre faladeira acompanha os namoricos dos casais na rua, discussões acaloradas

dos mais exaltados, entradas e saídas dos vizinhos cada qual em sua casa ou na casa do alheio.

Sempre na espreita, a comadre faladeira é taxada de fuxiqueira porque procura compartilhar

as informações que denuncia a "vida alheia" (ações do cotidiano do outro) a outros curiosos.

A comadre faladeira é aquela que sabe de tudo e de todos.

A linguagem teatral contemporânea é extremamente diversificada e complexa. Não

existe uma regra fixa que estabeleça as características de uma peça. A diversidade e a

transdiciplinaridade são a tônica do teatro contemporâneo.

Os textos das peças teatrais eram produzidos em formatos de esquetes e performances,

sem uma estruturação que desenvolvesse uma história com texto para uma trama de início,

meio e fim de uma história. Um dos dados mais relevantes da prática teatral desta geração,

que incluía Liu Arruda, Ivan Belém, Vital Siqueira, Chico Amorim, Mara Ferraz, Claudete

Jaudy, Luiz Carlos Ribeiro, Carlos Ferreira, entre outros, refere-se ao fato de se constatar que

era possível fazer um teatro artisticamente relevante e sustentável do ponto de vista

econômico.

O que se nota, a partir das produções cênicas, é que a cultura popular foi reafirmando

sua existência, diante de uma realidade que renegava, ainda na década de 1990, manifestações

populares.

O intercâmbio de experimentações vividas e novas experimentações das artes cênicas

na pluralidade de linguagens dentro da cena teatral contemporânea compreende a produção do

espaço cênico por meio das formas de visão e apropriação do espaço urbano. E o espaço

urbano em As fias de mamãe, com suas características específicas e seu contexto maior, a

cidade, transforma-se em um participante ativo na obra como um todo.

Percebe-se que o sentido maior que emerge no modo de escrever a história da peça As

fias de mamãe encontra-se na tensão gerada entre o indivíduo (autor) e a realidade concreta

em uma situação determinada pelo espaço, tempo e pela experiência prévia, catalisados pelo

desejo de continuar acreditando na força do teatro e seus elementos constituintes.

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A cidade de Cuiabá foi percebida para além de sua funcionalidade quando inscrita na

peça pela ação no seu tecido urbano. A demanda cênica, no caso, foi por um processo de

imaginação através do qual buscou-se compor quadros cotidianos de uma Cuiabá em

acelerado processo de urbanização, com a dramatização dos segmentos populares na

adaptação e resistência aos modos de vida que se instituem nessa experiência de

modernização.

As motivações pessoais do autor que o trouxeram ao teatro de As fias de mamãe, agora

permitem encontrar o sentido da arte que vai além do indivíduo, que o confronte socialmente

com os outros. O trabalho do autor é uma forma de pensar sobre si mesmo, sobre sua

condição humana numa sociedade e sobre os acontecimentos de nosso tempo que tocam o

mais profundo sentido de pertencimento a uma cidade com todos os transtornos sociais típicos

da metropolização brasileira como Cuiabá.

A produção cultural dos segmentos populares, seja ela enquadrada na rubrica das artes

cênicas ou das culturas populares urbanas, tende a demandar o reconhecimento da sociedade.

Neste sentido, o texto da peça As fias de mamãe nos apresenta indícios da preocupação com a

tradição, considerada aqui como princípio de resistência social, com o interesse das

manifestações culturais frente ao progresso transformador, que também permite pensar um

pouco mais sobre a mobilidade, o fluxo constante das pessoas que estão mais abertas e

interconectadas pelas novas tecnologias, desenraizando-se. Configura-se novas relações de

pertencimento com a ampliação do espaço urbano.

Transcender as interações que vão desde o processo de nascimento, passando pelas

experiências vividas até o fato considerado como morte de cada elemento envolvido,

reconstrói-se nessa relação particular com o cosmo e com a vida, um "recompor" em sua

singularidade individual e coletiva.

Os personagens, na dinâmica constituinte das relações sociais, na narrativa da cidade,

implicam com os modos de viver do outro, como se lê no trecho abaixo:

Amazonina conversa pela janela com o povo que está do lado de fora da

casa. MAZO - Ô gente, ri mais batcho, é velório! Respeita sentimento aeio. É

minha mãezinha querida, meiga, serena e solidária. Gente, não tinha visto

esse lado do quintal, ta tcheio de dgente. Podem ficá a vontade. Mas não metcham nos ortifruti do quintá tá! Adjuda a organizá aí Carmozina... de

onde que emprestaram essas cadeiras de festa? Ahm? Lá do Lar Espírita

Monteiro Lobato? Depois nheu passo lá pra agradece. Para de correria

criançada... Aí Jucelina, fala pra essas criançada pará co essa algazarra. Inda vão caba caino e quebrano a boca. Ei, psiu fufurinha, aí num é lugar de faze

isso não! Utiliza a casinha ali perto do tchiqueiro. Num vai deixa esse guri

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cagá aí perto da hortaliça. Rhum! Avê, ta bombano o velório de mamãe.

Num pára de chegar ônibus cum povo. A senhora é bem conhecida e querida

né mamãe. [...] Se esperasse dava tempo, de divulgar na Rádio Cultura ou mandá uma cartinha pra titia que ta morano em Vila Bela. Dava tempo dela

tchegá aqui e fazê o cortejo co nós na tcharrete nova que ela comprô. Mas

não, a hoster do velórinho de mamãe fez o favor de marcar pra agora de

manhãos o enterro da centenária... (Dita entra na sala toda produzida) Ditaaaaaaaa....

DITA - Ué! Mamãe ainda tá por aqui?

Benedita e Amazonina, personagens populares da peça, vivem as experiências urbanas

tramada pelo autor e possibilitam questionar os novos modos de vida ao migrar das

hinterlândias para a periferia planejada das cidades médias em seu processo de

metropolização.

2.2 Personagens populares na cidade: vida e ficção

Entre as experiências que fazem a história do Teatro Termômetro, a experiência

dramatúrgica da escritura do texto da peça As fias de mamãe dota-se de uma direção cênica ao

colocar em cena os personagens Benedita Sampaio e Amazonina Bocaiuva, irmãs que se

reencontram em Cuiabá para velar o corpo da mãe que morreu de modo banal, mas

exageradamente dramático: engasgada com a dentadura, após levar uma "rasteira" em uma

fila de serviço de assistência social, à espera de uma cesta básica.

A matriarca da família não aguentou as forças contrárias da velhice e sucumbiu pela

sua idade, pela força da juventude dos outros, pela fraqueza da fome e principalmente por

uma dentadura que a fez engasgar. Não teve atendimento de primeiros-socorros que, ao

menos naquele momento, não havia como chegar em tempo.

A comédia desenvolve-se a partir de uma circunstância: a morte da mãe das

personagens e a falta de condições econômicas para se realizar um funeral moderno (enterro

com caixão e serviços de funerária) e, portanto, a necessidade de se praticar um enterro em

cova rasa em cemitério numa hinterlândia, espaço geográfico já fora do perímetro urbano.

A cena imaginada da morte da mãe funciona como sintoma de uma condição histórica,

que a ficção do teatro traz à tona acerca da realidade: a ausência, ainda na Cuiabá dos anos

1990, de melhores condições de saúde bucal como foco de política pública municipal,

estadual ou federal, o que se agrava, no caso cuiabano, com a ausência, em pleno final de

século XX, de um curso de graduação em instituição pública para formação de odontólogos

para servir à população da região.

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O ambiente indica, na cidade de Cuiabá dos anos 1990, os modos de vida que,

contemporaneamente, permanecem na memória e ao mesmo tempo vão se esvaindo com a

experiência de modernização no país.

Giorgio Agamben (2009), no texto "O que é o contemporâneo?", possibilita entender

que a peça As fias de mamãe traz memórias de um passado e ao mesmo tempo nos remete ao

futuro do que podem ser as experiências dos personagens nos fluxos do processo de

globalização pelo qual passa uma capital como Cuiabá, no Oeste brasileiro.

A matriarca morreu. Uma das filhas entra por entre a plateia, recepcionando o público

na sala da casa. O velório é feito como antigamente: na sala-de-estar da residência, onde o

morto era deitado às vezes no sofá, outras sobre uma mesa. A mãe dos personagens é velada

numa rede, que antes tinha a função de rede de dormir.

A filha chora exagerada e escandalosamente, ao mesmo tempo em que observa as

manifestações de sentimento e, de modo típico da zona rural ou das cidades de pequeno porte,

observa também a aparência dos presentes ao velório. Nas conversas de velório, dada a

função social do luto, a filha fala sobre a boa convivência de sua mãe na comunidade e fala

também da vida alheia.

Foto 6 - Cena do velório de As fias de mamãe, primeira montagem, Benedita (Atriz: Jucelina Ferreira) e Amazonina (Ator: William de Paula).

Foto: J. Francon

Ela presta atenção, por exemplo, no cabelo mal pintado de uma mulher e compara o

seu cabelo ao dela, que diz "estar bem cuidado". A comparação é um modo de estar no mundo

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e, numa conversa qualquer, busca produzir uma espécie de vínculo social. Na ocasião do

velório há indícios de um modo de vida nem sempre explicitado: se alguém vai a este tipo de

ocasião com bolsa grande é porque foi ao velório para aproveitar o café servido e, se possível,

ainda levar um pouco dos salgados para casa.

Velório, no caso, funciona também como indício de uma condição social. No caso,

para servir algo às visitas, será necessário fazer, em pleno velório, a popular "cotinha",

espécie de colaboração em dinheiro do público para comprar salgadinhos a serem servidos

durante o funeral. No decorrer desta cena ouve-se em background um programa de rádio AM

muito animado, segundo o texto.

Em seguida, entra na sala (e em cena) a outra filha da falecida, sem saber que a mãe

está morta, fazendo algazarra com as crianças que estão no quintal da casa. Mulher de gritos

estridentes, ela defende o quintal das crianças que deveriam estar na escola, mas estão a

colher frutos verdes das árvores cultivadas pela família. Os frutos maduros eram para ser

vendidos na feira da comunidade. Um personagem repreende o outro pelos descuidos com os

pertences e mazelas da família.

Foto 7 - Vista frontal da fachada, parte do quintal e da arquitetura de uma "casa

cuiabana", fonte de inspiração do autor de As fias de mamãe.

Foto: J. Francon.

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Na medida que as sete cenas da peça são descritas, o autor apresenta uma casa

genericamente brasileira com elementos de uma experiência moderna traduzida por práticas

de consumo: móveis de madeira, cortina bordada (embora envelhecida), uma vitrola como

objeto de distinção sobre uma pequena mesa da sala, discos de vinil de artistas populares

dispostos como adorno do ambiente, fotografias de parentes em preto-e-branco, um baú para

guardar tranqueiras, roupas velhas ou necessitando de reparos, uma enceradeira também como

enfeite da sala.

Foto 8 - Imagem parcial do cenário da primeira temporada de As fias de mamãe, Teatro

do Sesc Arsenal, Cuiabá.

Foto e arte: J. Francon

Um rádio, que ainda funciona, está sobre a mesa. Há mochos ao redor da sala para se

sentar, moringa com água fresca para se beber, oratório com imagem sacra para rezar, flores

de papel crepom para um enfeite. Uma rede de dormir desgastada nos descansos diários,

constitui o leito da matriarca falecida. Paredes sujas com marcas de mãos, esquadrias de

madeira que sustentam vitrôs quebrados e servem para se ver o quintal arborizado cheio de

árvores frutíferas e medicinais.

Cada cena traz as construções imaginárias do autor. Os corpus selecionados para

análises representam a criatividade da arte dramática no texto de As fias de mamãe na visão

de como a cidade se transforma pela sua própria experiência.

Na cena um, o velório se desenrola com a chegada de Amazonina, que se espanta com

a quantidade de pessoas na sala da casa e no quintal. Ela entra na casa já contando as

dificuldades que passou para conseguir chegar até ali, muito tempo depois do esperado. Diz

que estava na "Feira da Mandioca" vendendo doces para conseguir dinheiro.

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Para chegar em casa, Amazonina teve que servir-se de um transporte de modo tático.

Ela conseguiu carona numa Variante, carro velho de um conhecido da família, já que a

"baleia", o ônibus coletivo que fazia transporte entre hinterlândias e centro urbano de Cuiabá,

demorava a passar. Cansada e com sua sacola cheia de produtos colhidos no sítio, não podia

esperar e ficar "quarano"3 no ponto de ônibus sem proteção contra os raios do sol e contra a

poeira que tomava conta da estrada. Ao receber a notícia que a mãe estava morta, deitada na

rede, Amazonina se desespera.

AMAZONINA - (grita) Benedita! Ô Dita, catchorra! Venha aqui vê como tá

empencado de gurizada no pé de cadjá manga. Ocê num cuida do terreiro não bandida? Desce daí guri! Quiem que mandô ocê subi aí? Bamo, pode

descê... Aí! Pegano manga tudo verde. Que de vez que nada! Tá tudo

verdolengo. Xaí essa rapariga fazeno polidance no pé de goiabeira, quebrano tudo os broto! Fio de quem que ocê é? Ahn, de seu Manoel Germano? E o

que que ocê tá fazeno uma hora desse no quintal aeio que num tá num banco

de escola? Bamo, djá falei pro cês descê. Desceeeee!!!! Ô Ditaaaa!! Cadê ocê bandida (entrando no palco) Vôte!Virgem Maria valha-me Deus... Aqui

em casa tá pareceno estaladgem do Ponto Azul, tcheio de dgente esperano

ônibus, vôte! [...]

DITA - Iscuta, e como que ocê tchegô até aqui? De baleia? MAZO - De baleia? Rhum! Se num fosse xô Alis, nheu tava quarano lá no

ponto.

DITA - Então, ele tava de tombera? MAZO - Tombera? Basculante? Caçamba? Tava cuma Variante que mais

parecia uma lata véio. Veio pulano de lá até aqui. Eu vim socano, rufano

minha bunda naquele banco duro. Mas pulava, pulava, pulava... pulô tanto

que até me deu câimbra no cesso, vôte! Cruz credo. (pausa rápida) Mas me fala uma coisa... O que que foi que ocê tá quéssa cara, Dita?

DITA - Pus num era pra está, bandida? Mamãe djá tá até fedeno! [...]

MAZO - Pera ê Dita! Ocê tá quereno me falá... Ocê tá quereno me dizê...

Ocê tá quereno me excramá... que mamãe...mamãe...mamãe morreu?

Indignada com memórias nem sempre as mais favoráveis, Benedita comenta a raiva

que sentia por ser chamada pela mãe para lavar as vasilhas4 sujas na cozinha. Tinha que sair

apressadamente do salão de beleza, que era modesto, mas equipado o suficiente para que a

cabeleireira pudesse atribuir-lhe a beleza necessária. A desobediência, normalmente, gerava

surras com galhos de goiabeira. Mas, naquele dia, a desobediência de Benedita era necessária

3 Expressão usada para roupas manchadas e quando lavadas com sabão são deixadas expostas ao sol com a

intenção de clarear ou eliminar as manchas. Sendo a roupa branca, o esforço é para deixá-la mais branca. Nesta

comédia, o efeito satírico é ao invés de bronzear a pele sob o sol de 40 graus, ela vai ficando mais clara pelo

tempo de espera, de exposição, como uma roupa suja sendo lavada. 4 No linguajar popular em Cuiabá, dificilmente se usava o termo "louça" para designar utensílios de cozinha. Na

cidade e região usa-se mais enfaticamente o termo "vasilha".

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para produzir sua beleza e ela estar presente no baile noturno do quartel do exército para

namorar novos soldados.

Parafraseando a letra da música "Eterno Aprendiz", de Gonzaguinha ("Viver, e não ter

a vergonha de ser feliz"), os personagens cantam, refletem e evocam os sentimentos do amor

e a necessidade da instituição familiar, a felicidade que era poder ter alguém que cuidava

deles e lhes ensinava os valores da vida.

Ao construir o imaginário urbano da cidade de Cuiabá na perspectiva da ficção teatral,

para dar forma e visibilidade ao processo de modernização, são apresentados os modos como

uma imagem de cidade se produz e reproduz nos diversos usos sociais e formas culturais, ao

capturar e reconstruir contextos da experiência urbana nos anos 90.

As situações se sucedem na peça. Os personagens não têm dinheiro para comprar

comida e nem para contratar funerária para fazer o enterro. A necessidade de se realizar o

enterro na localidade de Sucuri, um lugar ermo que naquela década e ainda hoje se refere aos

entremeios da zona rural e da zona urbana, reflete as condições sociais da população na lida

com as demandas de uma vida moderna.

Em meio à agonia do luto e as fricções da vida social, as cenas se constroem

descrevendo alegrias e desafetos dos personagens através de dados banais, porém

significativos na construção das cenas. O batom na boca de uma das personagens, ao invés de

enfeitar, enfeia. A observação, nada simpática, é rebatida com comentários sobre o esmalte

gasto na unha da outra, ao ponto de perderem a educação moral, cívica e religiosa pressuposta

na formação dos personagens ao da peça.

Referência importante na construção social, patriótica e conservadora dos personagens

e de parte da sociedade brasileira referia-se ao fato de Benedita e Amazonina terem passado

por uma formação escolar que incluía disciplinas de OSPB (Organização Social e Política

Brasileira), Ensino Religioso, Programa de Saúde, Educação Moral e Cívica, então

obrigatórias na matriz curricular do ensino e formação acadêmica do país.

DITA - (moralista) Respeita xá mãe Mazonina! Mamãe num tá rino pro cê!

É a dentadura dela que tá saino da boca. Ocê num tem vergonha na xá cara, não?

MAZO - Ocê que devia tê vergonha na xá cara! Onde já se viu velá mamãe

na rede! O povo tá tudo aqui oiano. Minha cara tá desse tamanho! Amanhã....

DITA- (descontrolada) ...aaaaaaaaaah pa- pa-pa-ra- pa-pa pa-pa-ra pa ra tim

bum-BUM-BUM! A minha já estorô! Ê-á! O que que ocê queria que nheu

fizesse? Nós num temo dinhero nem prá comprá comida, quanto mas pra contratá funerária! E além do mássssssss, mamãe vai sê interrada lá no

SUCURI.

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MAZO - SU-CU-RI Dita? Eu tenho ira da cara daquela gente!

DITA - Ocê tem ira da cara de Tchulipa que robô xô namorado! Pronto,

falei. MAZO - Ah é! Já que é pra lavá ropa sujo, bamo começá por esse ismarte

indecente que ocê tá usano!

DITA - E o batom que ocê tá usano? Tá urrivi no xô beiço!

MAZO - Num vem dá uma de moça aqui pra cima de mim que nheu perco minha educação moral, cívica e religiosa, e conto xôs podre aqui na frente de

tudu mundo.

DITA - Vôte, Mazonina! Ocê tá mais amarga que pinga cô nó de catchorro.

Os personagens, em meio ao luto, percebem que estão numa nova fase da vida. A

morte da matriarca funciona como marcador de tempo psicológico, mas o estar órfão define

uma temporalidade que induz à consciência de estar ao léu no mundo, agora aparentemente

mais inóspito.

Em dinâmica inconsciente, ao modo de estresse histérico de quem padece por estar

vivo, a mãe foi considerada culpada pela situação desfavorável. A mãe foi apontada como

invejosa ao imitar as pessoas. Morta, dura, retorcida pelas tentativas de sair do sufocamento

da dentadura, seu corpo foi esticado ao máximo na rede. A imagem criada foi a de que a mãe

estava parecida com um peixe seco.

Na peça, segundo enunciados dos personagens, ela ficou muito parecida com os que

procuravam atendimento no Pronto Socorro Municipal de Cuiabá e morriam por lá sob as

precárias instalações e parco atendimento. Mas, se no Pronto Socorro, as condições de

trabalho médico e de enfermagem são inadequadas, no velório em plena residência não havia

sequer uma cadeira "de fio" (enrolada por fio) para se sentar e muito menos para oferecer aos

presentes.

Na tensão pelos fatos acontecidos, o semblante de Amazonina, conforme se imagina

na cena da peça, era de rubor, ou seja, ficava semelhante ao de alguém quando toma cachaça

com nó-de-cachorro, raiz amarga imersa na bebida destilada. A imaginação dos personagens

sugeria que era mais relevante socialmente um velório em se que servem café e biscoitos, e

não cachaça. Para resolver a situação, as irmãs taticamente servem chá de capim-cidreira,

planta colhida diretamente no quintal, e pão velho e duro, doados por uma vizinha, para

passar-se por torrada.

DITA - Vôte, Mazonina! Ocê tá mais amarga que pinga cô nó de catchorro.

MAZO- Ah Bom! Bamo mudá de cunversxa. Iscuta, o que que ocê serviu

pro povo que batxou aqui em casa? DITA - ...o que que nós vamo servi no tchá bem cedo pro povo que batcho

aqui em casa? Da. Eulália num qué vê minha cara lá nem pintada de

ouro.[...]

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MAZO - Nem nheu quero vê! Assusta o povo aí... E tem bastante gente!

Dita, bamo bora fazê chá de capim cidreira, que já tá formano um colonhão

ali no quintal e bamo lá no Dona Maria do pão doce, a gente pede uns pão duro prele e depois nós fala que é pão torrado.

DITA - Cruz credo, de Dona Maria? Os gatos dela dorme em cima do pão.

Fica tcheio de pêlo daquela gata radjada dela que num sai daqui de casa atrás

de Presidente. [...] DITA - (triste) Ainda ri essa corna! Mamãe tá’i, abandonada iguá paciente

de pronto socorro.

MAZO - É mesmo Dita! Ainda mais co’essa rede. Inda se fosse uma cadeira de fio!

Foi impresso nesta primeira cena tudo que possa dar uma visão geral do que é a trama

de As fias de mamãe. A precariedade de uma família ao ter uma ligação muito forte com os

hábitos da zona rural, mas tendo que se adaptar à vida urbana. Os benefícios e a falta deles na

experiência de uma vida marcada pela modernidade do consumo sugerem a necessidade

constante de adaptação de todos e qualquer um ao ambiente que se transforma.

DITA- Vai lá vê bandida! Mamãe tá iguá petche seco, istirada na rede.

MAZO - (sem compreender) Istirada na rede!? Acorda mamãe que nheu já tcheguei. Bamo, levanta... ispia que nheu truce pra senhora... bamo levanta...

hum, mas mamãe tá priguiçosa. Durmino até uma hora desse! Venha vê que

nheu truce.... ispia aqui mamãe... rapadura, banana da terra no ponto pra fazê aquela farofa...maxixe, quiabo, mandjioca, pipino, abobrinha, pimenta dedo

de moça... Bamo mamãe, levanta! E é por sua causa que... (estranhando) eh,

êca, Dita! Ocê tá pareceno louva-Deus. Que isso? Um lado com bobes, outro lado sem. Agora é moda em Cuiabá? É fleshon wik esse barará cô bobs? E

até hodje ocê num trocô essa precata Benedita? Ah, num vai me dizê que

hodje tem festa lá no quartel 16(dezessês) BC?

DITA - Pois é bandida! Essa que é a minha raiva! Nheu tava lá no salão... Salão porra nenhuma! Lá só tem um espelho e uma escovinha!

A cena dois apresenta o enterro da mãe. A mãe foi colocada na caçamba de uma

"tombeira" (caçamba basculante), junto com outras pessoas e cachorros, sem o devido

cuidado de preservar a morta em posição ritualística e formalidades demandadas em um

funeral. A dificuldade financeira e o devido constrangimento no velório causam mais

indignação nos personagens.

Com a rede costurada, a mãe foi transportada até a localidade de Sucuri, uma

hinterlândia a 9 km do centro de Cuiabá, distância que naquela época era considerada um

local longínquo na medida em que o veículo próprio era ainda algo muito exclusivo de

pessoas de classe média alta. O cortejo, no entanto, é realizado sob a marca de reencontros e

celebrações. O cachorro da família, fiel, manteve-se deitado ao lado da falecida até o

momento de descê-la à cova definitiva.

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De modo inusitado, as irmãs foram expulsas do cemitério à base de pedradas, mas

conseguem encontrar um leito para a mãe de modo que se resolveu a situação de todos. Numa

cova rasa no cemitério do Aguaçu, local encontrado pelos amigos, cedido pelo coveiro local e

sem maiores cerimônias, o enterro foi finalizado com pás de terra sobre o corpo da mãe. As

cenas do funeral se completam com brincadeiras de crianças na água do córrego que por ali

passa, um piquenique à beira das sepulturas e a organização de Benedita na volta para a

cidade. Ela afirma que vai sobrar até mais um lugar: o da mãe que ficou na cova rasa sob

cuidados de Deus e dos urubus.

Foto 9 - Cemitério à margem de uma das estradas de acesso ao Município de Acorizal, Distrito do Aguaçu em Cuiabá, com características como: mata fechada ao redor,

enterramento em cova rasa e "morro" de terra cobrindo o morto.

Foto: J. Francon.

Enquanto rola a gravação, a alma penada da mãe passeia por entre os móveis toda de branco, véu e pantufa.

DITA - Segura mamãe aí! Me ajuda a subir aqui. Larga de ucieza Creverson.

Uhum, fica pegano na bunda da gente.

MAZO - Nheu vô lá na frente, na cabine co xô Alis. Cuidado aí gente! Segura ela com cuidado, com carinho, num vão derrubar ela. Puta que pariu!

Num deixa esse cachorro deitá ai em cima de mamãe. Oh! Dita, num tá veno

aí não corna. Aí, já pisaram no peito de mamãe. Ajeita a dentadura na boca dela. Nhá Barbina, desce daí xô, o caminhão do jogo é outro! Só mais tarde.

Desce qu’essa bandeira daí xô! Arretada por causa de jogo.

DITA - Pode ir seu Alis... (AS DUAS) Urhuuuuuuuuuuu!

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Barulho de caminhão saindo, algazarra de crianças, cachorro, ladainhas de

senhoras, festas, batuques de alguns – o barulho de caminhão chegando e

parando. DITA - Espia aí Mazonina, a cova de mamãe num tem nem sete palmo.

MAZO - É mesmo Dita! Tá perigoso o pé de mamãe ficá pra fora.

DITA - Ah não gente! Faz um morro aí! Num detcxha o pé de mamãe pra

fora. Nheu num quero nem sabê! Nheu num vô perde viagem. Mamãe fica assim mesmo! Faz o morro aí! Tudo isso por sua culpa bandida. Saímos

escurraçada de lá do Sucuri. Ocê deve dá graças a Deus por ainda tá com

esses dois dentes na boca. Se Chulipa acerta aquela pedrada... MAZO - ...nheu rufava a cara dela. Ela e ocê que vem cô graça.

DITA - Graça! Nheu que ia achá graça docê banguela... Aí meu bobs.

MAZO - Agora nós tamo aqui nesse fim de mundo que é Aguaçu. Enfim, foi

o que Ana Fobré arrumo pra nós, qué dizer pra mamãe. Bamo logo criançada! Come logo essa farofa. Acabam com essa Pitchula Predileto e

quem num tomo banho no corgo num toma mas! Silvia, tchama as criançada

aí! Já tamo ino. DITA - Vôte! Num precisa empurrar. Aí! Vai cabê todo mundo. Vai sobrar

até mais um lugar, o de mamãe.

MAZO - Que deus a tenha em bom lugar! Bamo xo Alis. O piquinique acabou. (barulho do caminhão saindo) Urhuuuuuuuuuuuuu (a algazarra

recomeça).

Na cena três, os personagens são trazidos à realidade. Sem a presença da mãe, a

decisão foi a de que a casa da família seria vendida e os bens deixados pela matriarca

passariam pela partilha como herança. O saudosismo aparece. Relembram-se os bons e maus

momentos que todas — mãe e filhas — passaram naquela casa. O simples ato de fazer um chá

(colocar água no fogo, esperar a fervura, a evaporação) demonstra que os ritmos dos lugares

agora são diferentes. E cogitar que enterraram uma "cabeça de burro" no local para insinuar o

atraso do progresso e, automaticamente, o atraso no tempo, um retroceder das conquistas.

A sensação foi a de que o tempo passou tão rápido e eles, sem perceber, ficaram com

as lembranças de um tempo que não volta mais. O tempo passa para todos, inclusive para os

personagens. Elas insinuam cuidar do hoje para construir um futuro de bons resultados. A

cidade, no entanto, lhes demanda um ritmo mais acelerado.

DITA - É, Mazonina, Aguaçu num vai pra frente mesmo.

MAZO - Intão, Dita! Duvidá interraram uma cabeça de’um burro bem grandona lá. [...]

DITA- E eu, hum! Iscuta Mazonina, o que é que vai sê de nós agora? Mamãe

não está mas aqui em casa, abotoou o paletó de madeira, qué dizê,

custuraram a rede dela. Ocê mora lá co’a tia Doquinha no Acorizá, e nheu num vou ficar aqui sozinha.

MAZO - Eu também num venho morar aqui co cê.

DITA - Então vamos tê que vendê essa casa e os trem daqui. [...] Mazô, a água? Corre, vai lá vê a água do tchá que djá deve tá pipocano.

MAZO - É mesmo né? (sai) Dita, secou a água!

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DITA - O tempo passou e nós nem vimo. Parece que vive perseguino a

gente. Bamo durmi que amanhã é outro dia a ser conquistado. Óia! Vê se

Presidente tá pra dentro.

As turbulências encontradas nos afazeres do dia-a-dia tapam, muitas vezes, o olhar dos

personagens. " O tempo passou e nós nem vimo" traz a reflexão de vidas que se preocupam

com o sobreviver e deixam o prazer do viver sob a "velocidade dos atropelamentos" que o

cotidiano na cidade proporciona na história e memória das pessoas. O tempo passa e a vida

segue no ritmo perturbador da consciência para se criar e recriar a realidade. O imaginário

consegue voltar no tempo e o corpo humano tenta acompanhá-lo.

Na cena quatro, a casa localizada no espaço já considerado como centro da capital,

padecia com a queda de energia elétrica, resultado da chuva que, apesar dos transtornos no

sistema elétrico, fornece água para cacimba comunitária. Os personagens atribuem as goteiras

aos descuidos da mãe no zelo do imóvel. E, como castigo, ao chegar no céu, foi logo

recebendo a incumbência de lavar o Paraíso. Utilizaram a tática de aparar goteiras da casa já

considerada patrimônio histórico por elas, com panelas, penicos e baldes plásticos. As

bugigangas compradas no comércio popular tornam-se tecnologias de reparar a casa.

Sob penumbra, chove e os barulhos de trovões, raios e goteiras intensificam.

DITA- (entra de camisola) Eh, mamãe já deve estar lavando o paraíso. Espia

aqui essas goteiras. Essa aqui é mais velha que Mazonina. Que apagão é esse? Cuiabá é só tchovê, cabô! Mazonina, vem ajudar salvar goteira.

MAZO - Ahhh! Detcha nheu durmi!

DITA - Durmi!? Você djá ta na idade de ir durmi as sete e acordar as quatro da manhãos. Pega panela e venha ajuda a salvá goteira. (Amazonina entra

sonolenta, segurando uma boneca e de pantufa) Acode aquela ali. Bamo,

bamo, rápido! Ali outra ali. (senta e dá ordens) Pega o pano e enxuga essa aqui, aqui em cima de mim. (Amazonina emburra e sai pisando duro) Vôte!

Num sei pra que tanto estudo se num tem a sensibilidade pra salvar um

patrimônio histórico. (explode mais um raio).

A cena cinco escancara a precariedade material e as dificuldades econômicas dos

personagens para sobreviver na cidade sem a liderança da matriarca. Nas lembranças de um

passado que se estende pela memória, entrelaçam-se os modos antigos e modernos de viver.

Na prateleira da cozinha estava o pão, guardado na lata promocional de um antigo

supermercado, Morita, que não existe mais. Faz-se economia de sabão, açúcar, arroz, farinha

e do pau de guaraná. O alimento deve render até o próximo recebimento da pensão da mãe,

que é muito pouco para garantir todas as despesas de uma casa com três personagens, pois não

se pode esquecer de Presidente, o cachorro da família. A tática de comprar fiado não era mais

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possível, já que a garantia e a confiança para anotações na caderneta era da mãe que estava

morta e enterrada.

A casa na cidade tinha o mínimo de conforto urbano, com infraestrutura de água

encanada e energia elétrica. O bairro tinha coleta de lixo, escola, segurança, saúde. Mas ter

imóvel na cidade implicava em pagar imposto predial. Só o dinheiro da pensão não era

suficiente para as dívidas. Para além da pensão, era preciso contar o lucro da venda de cajás-

manga, cultivados no quintal da casa e comercializados na feira.

Como atitude mais radical, era necessário vender os móveis e o imóvel, e assim ceder

espaço para o progresso ou experiência de modernização que se instala. A lembrança do

passado e a descrença na situação despertam nos personagens o desejo de um futuro próximo

com mais garantias de sobrevivência. Insinuar a prática de prostituição como forma rápida de

obter dinheiro para viver na cidade é concluída como um bom negócio para Benedita. Trocar

a roça do sítio para viver na cidade, com a família toda, já não é um bom negócio para

Amazonina. O melhor para elas foi vender tudo e fazer a partilha dos bens.

O dia seguinte amanhece com barulho de grosa de guaraná, copo e

colherinha por Amazonina enquanto Dita está estendendo roupas no varal do lado de for, na janela.

DITA - Óia, o pão torrado tá em cima da prateleira, na lata florida do Morita.

MAZO - Num vai gastá toda pedra de sabão nesses trapo, por que a pensão

de mamãe é uma mitcharia num dá pra compra nada. DITA - Ah é, o meszmo pro açúcar e pro pau de guaraná! [...]

MAZO - Palhaça! A farinha djá acabou, o açúcar djá tá no fim, seu Dutra do

fumo bão também já não está entre nós... Daqui a pouco nem arroz tem mas pra comê. Tumico Xakira do mercado municipal ta de olho bem aberto co

nós quando a gente entra lá.

DITA - Detxá aquela japonesa pra lá! Ocê isqueceu que nós temo conta lá no bar de Dona Isabelona?

MAZO - Nós não, mamãe, que Deus a tenha e ela não vai querer vender

fiado pra defunto.

DITA - É meszmo né, depois nós num paga... MAZO - E ai fica cô cara de tacho...

DITA - Ê-a! Por que não? Num tem pensão de mamãe?

MAZO - Tem, fia da puta! Mas só a luz e a água djá come o dinheiro de mamãe, inda mas agora com IPTUs...

DITA - Então só se eu fô dá meu tchêro pra pagar as conta aqui de casa!

MAZO - Até que não é mau negócio né, catchorra? [...]

DITA - O djeito é vende essa joça que mamãe dexô pra nós. MAZO - Por mim não! Se vendê eu quero minha parte. E vou te falar mais

uma coisa: mamãe pegou ocê pra criá!

DITA - (Dramática) Ocê ta me falano que nheu num sô fia de mamãe? Que fuxico de dgente batxo é esse?

MAZO - Dita, nheu num queria falá, mas ocê foi adotada depois da enchente

de 74.

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A nostalgia continua e amolece os corações das irmãs ao lembrar das práticas de

baldear água da cacimba comunitária, ouvir novelas no rádio, dos bailes no quartel do

exército, a máquina de costurar os uniformes de escola, da vitrola que toca discos de vinil e

embalou muitos bailes na casa.

Era necessário começar uma nova etapa da vida. Começaram com uma faxina na casa

para arrumar a bagunça deixada pela mãe, sob o som dos LP's que garantiram repertórios de

cantores populares como Giliard, Perla, Menudo, Pinduca, Gretchen, Amado Batista, entre

outros. A modernidade, em alguma medida, conquistava espaço na descrição dessa casa

popular.

As táticas continuavam até mesmo para sair e vender a casa, os móveis. Sem roupa

adequada para ir negociar no pregão da Rua 13 de Junho, Amazonina exerce sua criatividade

ao transformar um forro de móvel artesanal em uma roupa diferente e moderna. Protetora de

sua prole, a mãe, antes de morrer, pensou no futuro das filhas. Fez uma caderneta de

poupança para as duas, a fim de que as mesmas pudessem ter um futuro melhor. O problema é

quem vai administrar o dinheiro.

Na cena seis, a modorrenta prática de catar piolhos abre o desfecho da trama para se

chegar ao acerto de contas: a partilha. Entre tudo e todos estava a imagem de Santo Antônio,

que desde o início da peça esteve ali no seu lugar: o oratório. O oratório foi o local de pedidos

e agradecimentos da mãe. Entre as perdas e ganhos dos personagens, decidiram ficar com a

imagem do santo. Ficou com a imagem quem conseguiu ser mais rápida nos argumentos para

afirmar sua devoção. E não satisfeitas, sugeriram a disputa por outros bens simbólicos: a sete-

maria, elástico, amarelinha, piquelatinha, cobra-cega, caiu-no-poço, barata-voa, uestope,

cecererececê, jogo-da-velha, bozó, truco, xadrez, estilingue.

DITA - Aí! Meu bobs. Dói maninha.

MAZO - Ah, bom! Quem mandou virar fazendeira! Pára, se não nheu xinxo

xô cabelo. Da-í o invisíve pra prender seu barará. Parece que ta canhando invisive. Tem gasta invisive né Vanessa do Mato! Parece arame farpado...

Daqui a pouco povo vem aqui buscar os trem... (silêncio. Continua a enrolar

os bobs). DITA - Mazonina, por falar nisso, o que vai sobrá da leva?

MAZO - Bom, a casa xo Dutra do armazém compro. Sobrô nós duas,

Presidente – nheu ainda vou dá um fim nesse catchorro – a alma penada de

mamãe, quer dizer depenada, o baú que ocê vai ficar, lógico, a moringa que é minha, a mesinha que é para dona Maria do pão doce...

DITA - ...aquela que tem a gata radjada? Ou melhor, que tinha, por que

presidente djá deu fim nela. MAZO - No Dona Maria?

DITA - Na gata!

MAZO - Ah bom! Mas tá faltano alguma coisa.

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A primeira que acertasse Presidente com as pelotadas de estilingue ficava com a

imagem de Santo Antônio. Tudo indica que a confusão não terminou tão cedo, alimentando o

imaginário para a criação de outras cenas que pudessem compor a peça As fias de mamãe.

A cena sete é o encerrar da peça com uma leitura de cartas. Cada personagem com

uma carta passa a contar como estavam algum tempo depois da partilha dos bens. Além de

hábitos, lembranças, realidades, desejos, as mudanças ocorridas na vida dos personagens,

entre a hinterlândia e a cidade, percebe-se que o amor prevaleceu entre eles.

Luz-out, as duas estão no palco com uma carta na mão, contando como cada uma está vivendo as dificuldades da vida e sob ausência da mãe; cada

uma de lado, com apenas um foco sobre elas.

AMAZONINA - Querida irmã Benedita, cheia de garbo e simetria, tô mandano essa cartinha pra avisá que aqui tá tudo bem, [...] vê se num

demora viu? Venha me visitá! Lembranças a todos. Boas festas e feliz Natal.

Abraço, Amazonina. BENEDITA - Ìstimada Mazonina! Recebi suas notícias e criei corage pra te

escrever, ponto e virgula. Bom, bamos nas notícias: [...] vou terminando

sentindo muito sua farta porque ocê estará sempre nas minhas lembrança.

Deus te proteja e guarde xeu lar. Um abraço de sua irmã que tanto te quer... Dita.

Uma casa, uma família, um contexto com turbulência dos afetos, enfrentamento da

ordem social vigente, resistência na vida cotidiana e reserva da sociabilidade de base, numa

determinada zona de contato, de estratégias capazes de produzir, mapear e impor, ao utilizar,

manipular e alterar as táticas na peça As fias de mamãe como forma de garantir a

sobrevivência dos personagens.

A resistência apareceu como uma invenção local mostrando-se para a produção real de

um desejo. E os personagens foram criados aos modos da ficção como memória. A peça As

fias de mamãe sugere imaginar a cidade de Cuiabá como Macondo, na obra "Ninguém

escreve ao coronel", de Gabriel Garcia Marques5, onde a modernidade insiste em não se

instalar. Cenas do cotidiano da Cuiabá dos anos 1990: banheiro (o único) do lado de fora da

estrutura da casa, tomar banho com pouca água e "de latinha", mensagens enviadas a parentes

via rádio AM, fazer piquenique após tomar banho no córrego, uso de dispositivos como

precata (sandálias) e funda (estilingue).

5 Na obra "Cem Anos de Solidão" (1967), Gabriel Garcia Marques apresenta Macondo, uma aldeia fictícia e a

saga da família Buendía em um ínterim de cem anos. O escritor situa os ocorridos no pequeno povoado ante os

principais acontecimentos históricos do período, estabelecendo uma perfeita conexão entre micro e macro,

mesclando, simultaneamente, elementos reais e fantásticos. Percebemos também na trama uma intrínseca relação

entre percepção individual e memória coletiva, visto que os eventos vêm sendo contados conforme a percepção

dos personagens.

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Intrigas familiares, economia doméstica, tradições culturais, religiosidade, juventude,

drogas ilícitas, saúde, gravidez na adolescência, projeto social de habitação e arquitetônico,

infraestrutura, moda e modos de se comportar em público são temas gerados, ressignificados

pela diversidade dos dados reunidos para a multiplicidade de pensamentos dos indivíduos,

sobre o mais banal cotidiano da vida.

2.3 Viver na cidade: Dramas da vida precária no roteiro de As fias de mamãe

Cuiabá, na década de 1990, enredava-se no processo de urbanização nacional em um

processo de modernização com dinâmicas próprias. Os fluxos da modernização, em escala

global, implicam nos avanços de capitais financeiros e tecnologias nas regiões brasileiras e

nas áreas periféricas da cidade. As cidades e as hinterlândias não estão isoladas neste sentido.

O Oeste brasileiro é capturado no decorrer da narrativa, ao desconstruir o que poderia ser o

imaginário dos que vivem em outra região do Brasil pela construção textual do que de fato

nele se pode encontrar. Seja pela experiência ou pelo ficcionado pelas memórias.

Práticas sociais como jogo de amarelinha, lavagem de santo e enterro de morto em

rede de tecido indicam um modo antigo, bem anterior à década de 1990, ou algo para lá dos

sertões com poucas habitações, povoamento rarefeito, infraestrutura incipiente e pouca

comunicação com o mundo.

O imaginário cuiabano constitui-se com narrativas de serem receptivos, acolhedores,

bem humorados e cultivam hábitos singulares na culinária, na produção musical, nos modos

gerais de se vincularem às transformações no mundo cotidiano. Muitos ainda cultivam modos

particulares adquiridos pelos costumes dos antepassados e que não seguem os padrões

midiáticos. Muitos outros cuiabanos são influenciados pelos produtos midiáticos tornando-os

parte do seu cotidiano, da vida.

A memória de uma sociedade vislumbra o futuro com traços culturais presentes. As

reflexões sobre as experiências do passado permitem imaginar as contribuições no processo

de transformação urbana da cidade frente à modernização.

Duas brasileiras cuiabanas, órfãs de pai e mãe, com suas esperanças, sonhos e medos.

Amazonina Bocaiuva, vivendo numa hinterlândia, busca ser uma mulher madura,

emancipada, responsável, mãe, esposa, letrada pelo Mobral6, ocupa cargo de educadora em

escola municipal (ensino básico). Prefere vestir-se por combinações de peças e cores,

reservada, defende o que é seu por direito racionalmente. Cultiva bons costumes na medida do

6 Campanha de alfabetização de adultos para que aprendessem a ler e escrever, sem preocupação com a

formação do caráter humano.

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possível e desenvolve uma agricultura familiar de subsistência para ajudar no orçamento.

Mora com o esposo, os dois filhos e a tia Doquinha, senhora idosa, no sítio em Acorizal-MT,

cidade distante aproximadamente 67 km de Cuiabá-MT e foi chamada para vir à capital do

Estado, pois sua mãe estava passando muito mal.

Em contraposição, Benedita Sampaio, mais nova que Amazonina, vive na cidade com

sua mãe. Solteira, letrada, vive dos rendimentos que os cajás-manga colhidos no quintal lhe

proporcionam. Vaidosa e adepta do consumo por influência social, midiática, veste-se em

tentativas de estar na "moda" e como quem desafia a libido masculina. Ela é emotiva, não

pensa duas vezes em perder a compostura para defender o que lhe convém. Benedita foi quem

chamou sua irmã, após receber a notícia no instante que desfrutava dos benefícios de um salão

de beleza equipado com um espelho, uma escova e uma chapinha para alisar cabelos

comprada no camelô. Porém, Benedita não conta que a mãe já estava morta e que, passa por

dificuldades ao lidar com a experiência de estar sozinha na cidade, sem condições econômicas

para realizar um funeral moderno (enterro com caixão e serviços de funerária) e a necessidade

de se praticar um enterro em cova rasa em cemitério numa hinterlândia, já fora do perímetro

urbano de Cuiabá.

Como de costume, Benedita aproveita o serviço de comunicação da rádio AM, ainda

muito presente e de grande apelo popular nos interiores do Brasil, para comunicar-se com os

entes queridos, ao ter sua carta lida durante a programação com alto índice de audiência pelos

que vivem à margem do perímetro urbano e nas hinterlândias. Ela aproveita, ainda, para pedir

que sua irmã leve seus pertences, inclusive o "cinto de tala-larga" e o batom que havia

esquecido no sítio.

Com a morte da matriarca, decidiram fazer a partilha dos bens e vender tudo que possa

lhes dar mais condições econômicas de sobrevivência e alívio dos pesos que os fatos do

cotidiano impõem. E isso tudo virou um caso para Presidente, o cachorro da família que

precisava ficar fora do cotidiano dos personagens. O cachorro, que por vezes fazia guarda da

casa, agora passa a ser alvo das pelotadas no acerto de contas entre as irmãs.

No decorrer do velório, as preocupações que necessariamente marcam um evento

extraordinário como um enterro, mas neste caso marcado pela precariedade material dos

personagens ao escrever as dificuldades de realizar um funeral com serviço funerário: urna

para a mãe, velas em castiçais, crucifixo de prata, livro de registro e dedicatórias, traslado até

o cemitério e jazido com epígrafe.

A peça destaca manifestações no velar o morto de modo simples e subjetivo. Dá

indícios de que, desde antes de morrer até o enterro no cemitério, o indivíduo era

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acompanhado pelas pessoas mais próximas. Todo este processo de morrer, ser velado, durava

no mínimo vinte quatro horas ou dias para ser concluído. Mesmo depois da finalização do

ritual, os entes queridos visitavam o seu túmulo durante um grande período de suas vidas, ou

pelo resto de suas vidas.

Com o passar do tempo, os ritos passados de geração a geração ganharam novos

modos de realização. Outras características foram sendo incorporadas ou abstraídas. As fias de

mamãe registra e encena essas transformações no comportamento social, marcado

necessariamente pelas condições materiais. Entre elas, a cena em que se diz que a mãe dos

personagens morreu de forma dramática e pateticamente ao engolir a dentadura, mas, algo

nem tão explícito na peça, depois de levar uma "rasteira", numa disputa de cesta básica

distribuída por uma entidade assistencial. A cena aponta para o crescimento das cidades sob

influência das redes de circulação dos indivíduos em busca de realizações no seu processo de

existência e pertencimento social, mas também defrotando-se com disputas na ocupação do

espaço urbano.

Nos dias atuais, um fator principal que contribuiu para as mudanças de atitudes para

com os ritos fúnebres são os deslocamentos de sentidos nas relações entre lugar, pessoas e

morte. Não raro, a maioria dos indivíduos prestes a morrer passa a última etapa de suas vidas

em um hospital ou no serviço (unidade) de pronto atendimento. As formas de tratamento

médico possibilitam o prolongamento da vida pelo maior tempo possível. Já não se morre em

casa, rodeado pela família, mas no hospital. O funeral em geral é realizado em capelas (salas

equipadas para receber os rituais fúnebres modernos) comercializadas pelas funerárias.

Na trama de As fias de mamãe, explora-se dramaticamente as transformações

ocorridas nos aspectos funerários e em meio às confusões familiares no momento dramático

que deveria ser um enterro, mas que, por sua vez, acabam por ser satirizadas, como forma de

driblar o fator econômico, reafirmando o pertencimento social no espaço que as personagens

conhecem, faz parte de suas histórias, para contribuir na dinâmica cultural em que estavam

inseridas, na superação da precariedade, do que lhes faltavam, se fez necessário

enfrentamento da situação.

Coleta de capim cidreira no quintal para fazer um chá e ganhar pão velho de Dona

Maria do Pão Doce para fazer torrada, servindo a bebida e a comida às visitas do funeral eram

estratégias e táticas que os personagens apresentaram para lidar com dificuldades que a

modernização lhes apresentou. Reclamar das visitas que não levaram uma garrafa de pinga e

não estavam dispostos a ajudar financeiramente para amenizar a situação precária do velório

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expressavam o nível das relações sociais dos personagens e o modo de lidar com a

precariedade apresentada.

O muxirum (mutirão) era uma das práticas muito usadas nas tentativas de economizar

gastos com mão de obra para alguma ação. Então, organizava-se uma comida de baixo custo para

dar de comer os envolvidos na ação, composta de parentes, vizinhos e comunidade em prol de

uma benfeitoria para atender um indivíduo ou a coletividade. Emprestar a "tombeira" (caminhão

betoneira) do Seu Alis, vizinho e amigo da família de longa data, para transportar a falecida

até o cemitério e, por sua vez, ao serem expulsas do cemitério da hinterlândia Sucuri por

Chulipa, rival de Benedita por disputarem o mesmo homem, geram situações de mais

desconforto para o enfrentamento da vida.

Catar piolho como ausência de noções de saúde, entrar na fila de distribuição de

sacolão (cesta básica) pela LBA (Legião Brasileira de Assistência), engolir cuspe para matar a

fome, aparar goteira com panelas velhas no chão, vender móveis no pregão, colocar a casa à

venda, somam-se às experiências de se realizar um funeral que utiliza rede, flores de papel

crepom para ornamentar a rede, flores de plástico para a coroa de flores com faixa de TNT

(tecido não tecido), escritos feitos com cola gliter, poucas velas para durar um dia inteiro, uma

dentadura sobressaindo à boca aberta da falecida e que junta moscas, evidenciam mais

características da condição social dos personagens e como eles, de forma criativa e bem

humorada, se reinventam.

Os recursos dramáticos da peça mostram a necessidade de sobrevivência e a dinâmica

psicossocial dos personagens que permeiam o arcabouço de significados culturais sobre o que

significava viver em Cuiabá pelas margens do urbano.

A rua do bairro onde moravam os personagens não tinha asfalto. A água faltava muitas

vezes na rede de abastecimento básico. Elas usufruíam de luz elétrica, transportes táticos em

sistemas de charretes, bicicletas, mototáxi, ônibus ou caronas.

As fias de mamãe esgarça o imaginário da cidade que ironiza sua própria performance

no enfrentamento da vida moderna. Neste caso, considera-se a ironia de si como aquele

procedimento moderno de autocrítica, na qual os projetos que constituem a vida

contemporânea devem estar constantemente sob avaliação dos próprios atores sociais.

Nesta comédia, a cidade de Cuiabá expandiu o seu perímetro urbano, embora as

hinterlândias continuassem distantes, e os fluxos globalizadores impulsionassem a construção

imaginária do que significa para cada indivíduo ter que se adaptar à sociedade urbana.

A vida precária dos personagens ao viver na cidade, ainda que as benesses da

modernidade também estejam presentes, mas ao mesmo tempo, sentir que se está em

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constante débito nessa relação, contribui com os novos modos de lidar com as transformações

na vida.

Foto 10 - Modo de vida: Duas jovens no quintal de uma "casa

cuiabana" na região urbana, em frente ao Córrego da Prainha,

Cuiabá (década de 60).

Foto: Oniza Sampaio

Os personagens não percebem, na peça, que possuem casa própria, relações familiares

e vínculos sociais, o que seria, ao menos em hipótese, um indício de boa qualidade de vida.

Mas iriam entender minimamente que pobreza não está ligada ao objeto dinheiro, mas que a

precariedade é um reflexo de como sentem e pensam a vida cotidiana.

O enterro em cova rasa, em "sete palmos abaixo da terra", é realizado sob sentimento

de economia de tempo, de poupança de esforço físico para cavar e da sensação, de familiares

e pessoas mais próximas, de livrar-se do morto. A prática de enterro abre espaço para se

questionar a formação geomorfológica do local, solo pedregoso, onde se instala o cemitério e

sua localização numa hinterlândia: isto pode configurar uma questão sociopolítica e

econômica até mesmo para os ritos fúnebres. Túmulos dos cemitérios urbanos precisam do

serviço burocrático da Prefeitura Municipal para liberação do enterramento ou até mesmo dos

atravessadores ilegais e oportunistas. Nas hinterlândias, a questão é conseguir um espaço para

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acomodação do morto. De preferência, sem custo para a família e longe dos urubus que

rondam mais uma futura "carniça" para continuar o tom cômico e realista da peça.

Os personagens destacam que o tempo passou e, apesar de os homens temerem a

morte, eles encontram maneiras peculiares de se relacionar com ela no sistema da vida. Será

que um lugar "não vai pra frente mesmo" por causa da cabeça de burro enterrada ali, enquanto

crendice, mito, superstição ou é uma forma de desviar o olhar, frisar que a dinâmica ali é

outra frente à modernização?

Benedita e Amazonina não esperaram o protocolo da vida moderna e burocrática dos

escritórios burocráticos e dos caríssimos serviços funerários para dar um desfecho à situação.

Nesta experiência com a cidade, elas tratavam logo de incumbir o Santo Antonio a fazer parte

deste processo de metropolização em que suas vidas são embarcadas. Enterram a mãe em uma

cova possível no cemitério fora do perímetro urbano e a sensação de orfandade continua.

Ritual cumprido, a vida segue com a falta de dinheiro para comprar esmaltes,

mantimentos da cozinha, que já estão no fim, liquidar a dívida anotada na caderneta do

bolicho (pequena venda, comércio de secos e molhados), colocar crédito no celular, pagar as

contas de luz, água e Imposto Predial e Territorial Urbano - IPTU. Revirar o lixo da feira,

para tentar conseguir algum alimento e fazer uma sopa, é uma possibilidade. Lavar "roupas de

ganho" está fora de cogitação para não estragar a unha. Insinuar a sua prostituição poderia ser

uma parcial resolução dos problemas.

Percebendo a precariedade em que se encontram, decidem que a casa precisa ser

vendida. Os móveis, o pregão São Jorge da Rua Treze de Junho, principal corredor comercial

do centro da cidade, pode vir a comprá-los. Mas se faz necessário desaparecer com o cachorro

não-pet da família, que vira um estorvo para os personagens.

Nos anos 90 ainda se via a prática de presentear um morador da cidade com uma

sacola cheia de legumes, ervas medicinais, ovos, produtos cultivados no quintal ou na roça.

As memórias da sociabilidade ainda eram cultivadas no espaço urbano, mesmo ao enfrentar a

espera de um ônibus precário sob o sol forte da região, carregando o peso da sacola de

presentes e disputando lugar no ônibus desconfortável com outros que também utilizavam

transporte público entre a hinterlândia e a cidade. Aumentar os mantimentos da cozinha com

os produtos colhidos na roça era uma forma saudável de se alimentar e diminuir despesas da

casa. Na sacola de Amazonina tinha mandioca, abobrinha, maxixe, banana da terra, limão,

laranja, doces, produtos de horta, raízes para cura de enfermidades, tudo narrado como forma

de presentear a mãe que vive na cidade.

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Benedita, apesar da vida nada fácil na cidade, gosta de cultivar a beleza corporal,

principalmente os cabelos e as unhas. Sempre que lhe rende dinheiro a venda de cajás-manga,

cultivados no quintal da casa da família, usa-o para fazer alisamento ou enrolar bobes no

cabelo, comprar esmaltes para pintar suas unhas. A intriga é gerada sempre que a mãe

percebia que os afazeres domésticos estão sofrendo descaso. Ela aciona a filha para dar conta

das obrigações domésticas. Entre elas, o arear panelas que rende para Benedita estragos aos

cuidados com sua unha.

Em dias de sábados, era comum acontecer bailes pela cidade. Estar com boa aparência

para frequentar as rodas sociais faz parte do cotidiano em As fias de mamãe. Também faz

parte deste cotidiano deixar a faxina da casa para os sábados. Uma dona de casa cuiabana

elege este dia para poder mudar os móveis de lugar, rearranjando-os numa nova composição

de ambiente da casa. Trocava-se o forro dos móveis, lavava-se tudo que esteja empoeirado ou

necessitando de reparos. Teias de aranha eram retiradas e quando se tinha água encanada ou

no reservatório, ela era usada para dar conta da limpeza da casa. Todas estas práticas

domésticas se realizam costumeiramente com música tocada em alto volume, no rádio, no

toca-discos ou no aparelho de fita K7 (cassete). Ouvia-se, entre outros sucessos locais e

nacionais dos anos 90, o que popularmente se chamava de "música internacional-romântica-

lenta-traduzida". Um tipo de música que entra no gosto do ouvinte por dizer o que ele sente

ou deseja sentir, como quem transcreve uma realidade ou um imaginário. Entre os músicos

popularmente difundidos pelo sistema midiático nacional estavam Gretchen, Pinduca,

Menudo, Giliard, entre outros que constituíam a imaginação popular da época.

Sabe-se, ao menos em hipótese, que o nível de educação formal, a dinâmica da

globalização das informações, a condição de classe social e o nível do poder de consumo da

sociedade influenciam no gosto, na aproximação e na identificação com as produções

musicais difundidas pela indústria cultural.

As músicas são divulgadas em diversos meios, em todas as classes e abrange todas as

camadas do público sem distinção. A música "internacional-romântica-lenta-traduzida"

ouvida pelo personagem Benedita em As fias de mamãe, de melodia e letras de fácil

decodificação que refletem o cotidiano e vivência das camadas mais populares da sociedade,

se mostra como uma ferramenta de expressar um modo de interação social e de sentimentos.

As precariedades no cotidiano das personagens da peça deixam espaços para a busca

de soluções que nascem na família, onde o indivíduo aprende moralmente a noção do que é

certo ou errado no plano social. Depois passa a sofrer influência do meio mais amplo onde

vive, o que inclui posteriormente amigos e colegas que acabam ajudando na formação da

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opinião, dos tipos de consumo e cultura que essas pessoas passarão a consumir ao longo de

sua vida. Os segmentos populares encontram na música "internacional-romântica-lenta-

traduzida" formas de ver, representar, ressignificar e transformar o mundo.

Foto 11 - Imagem dos personagens junto ao toca discos e

dos LP's (atores Jucelina Ferreira e William de Paula).

Foto: J. Francon

As contribuições da indústria cultural para o gosto dos ouvintes das programações

musicais das rádios AM que admiram e valorizam um artista em benefício das sensações, nos

valores cultivados em experiências de vida, compartilhados por homem, mulher, jovem e

adulto, traduzidos pela idolatria de serem fãs. Fãs que consomem sentimentos e produtos que

os aproximam de seu ídolo, cantando e dançando músicas de sucesso reconhecido pelo

público, pela história e pelo mercado, alterando regras da tradição.

As irmãs Amazonina e Benedita assumiram suas funções no cotidiano de As fias de

mamãe assim que a mãe morreu. Sob o forte calor da cidade, o dia começa com o cocoricar

das galinhas no quintal, o ralar do pau de guaraná na grosa, considerado um tonificante para

as energias do corpo. Revigoradas com o guaraná ralado e no desejo de ter um quebra-torto

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(sobras de comidas reunidas, incrementadas com temperos e, as vezes, por farinha de

mandioca) acompanhado de chá de capim-cidreira, apontam as necessidades da vida. A

ordem do dia começar por lavar a roupa suja, apesar do pouco sabão, e estendê-la no varal de

arame farpado instalado no quintal. Enquanto se lavava a roupa, pensava-se logo o que seria

feito para o almoço. Porém, com poucos recursos, o fato principal era ter que economizar para

render por mais tempo o que havia sobrado na casa.

As crenças dos personagens revestem-se com véu na cabeça, terço em punho, vela

acesa, imagens sacras no oratório e nos quadros dependurados nas paredes como uma forma

de agradecer e solicitar novas graças ao Santo Antônio, São Benedito, Nossa Senhora

Aparecida e Senhor Divino Espírito Santo. Procissão e festa de santo são momentos de

religiosidade e lazer que sugerem oportunidade de participação nas relações sociais e também

o momento de desfrutar de comes e bebes de graça, já que muitos alimentos são arrecadados

em processo de doação.

Para que as dores ou pensamentos negativos fossem eliminados do corpo dos

personagens, elas se apegavam às bênçãos de benzedeiras contra quebranto, arca-caída, mau-

olhado, erisipela, picadas de insetos, inchaços e outros males. O tema da reencarnação aparece

quando a imagem da mãe entra andando pela sala da casa no instante em que a cena do

enterro se desenvolve. Amazonina, ao ler a carta de Benedita, que diz estar sendo assombrada

com a aparição da mãe no seu cotidiano, insinuando que era um sinal de que a falecida não

descansou em paz.

Sentir-se em casa era a maior demonstração de pertencimento para as personagens.

Com a morte da matriarca, aquela casa deixou de ter o mesmo sentido. Os almoços de

domingo, o costurar roupas para ir aos bailes, a mesma credibilidade na região por ser uma

pessoa que honra seus compromissos, foram embora com a morte da mãe.

Era a mãe que resolvia os problemas financeiros da família, em caso de necessitarem

de crédito. Na época, crédito no comércio equivalia a anotar numa caderneta a dívida das

compras feitas no bolicho, designação de pequenos comércios em Cuiabá. A pratica do

"fiado", compra de produtos com pagamento posterior, era uma oportunidade para as filhas

conseguirem consumir alimentos que não necessariamente fossem de primeira necessidade,

mas indicavam os modos como, no desenvolvimento de um capitalismo tradicional, se

desenvolvia uma alimentação à base de produtos artificiais: um suspiro, maria-mole, chiclete

com anel de brinde, doce de abóbora, bananada, pão de cacau e mel. As novidades eram

experimentadas pelas irmãs, quando conseguiam ganhar de alguém de melhores condições

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econômicas um pedaço das guloseimas importadas de alguma indústria nascente

provavelmente no estado de São Paulo.

Vestir-se na moda, só quando alguém doasse uma roupa usada ou não buscasse algum

conserto deixado com a mãe para uma reforma. Os personagens sabiam a realidade de suas

condições socioeconômica, porém, faziam daquela condição uma irreverência à criatividade, à

ironia, ao modo diferente de ser. Enfrentavam com personalidade a produção de suas

cidadanias. Entre as brincadeiras de infância, juventude e maturidade, há hábitos de um certo

modo de vida que se instituem como referências simbólicas na peça teatral, remetem ao

passado e situa os personagens no presente e cria uma visão de futuro.

Ao tratar alguns dos hábitos populares da "Baixada Cuiabana", projeta-se, a partir da

realidade local e regional, uma dimensão universal das massas populacionais que transitam

entre a vida rural e a vida urbana, fenômeno socioeconômico e cultural reproduzido nos mais

diversos rincões do planeta também sob o desenvolvimento do modo de produção capitalista

e, igualmente problemático, na ausência dele como indutor e produtor de práticas de consumo

ou na ausência de políticas de bem-estar social. As experiências entre o rural e o urbano

tornam-se o fundamento e a forma da escritura da peça, na medida em que a experiência de

viver na cidade, torna-se o princípio da produção da ficção, e o método da ficção, torna-se o

modo de narrar a experiência de se viver na cidade.

A velocidade das transformações urbanas ou como os fatos se sucedem demanda um

tempo que não é medido pelo relógio, mas também pelas relações sociais. A prática da sesta

(dormir ou apenas descansar depois do almoço) segue a dinâmica de uma Cuiabá cujo

progresso se apropria dos espaços e dos desejos dos que vivem na cidade. O tempo moderno e

cronológico passa a ditar o ritmo do cotidiano e altera, forçadamente, os costumes diante do

mundo do trabalho que se instala.

Na peça, o sentimento das duas personagens foi externado como se vê e se recria

massivamente pelo imaginário de telenovelas e filmes de ficção. Tem como parâmetro os

rituais fúnebres de famílias de classe média, representados midiaticamente com muito choro,

escândalo, gritaria, o desejo de ir-se junto com o morto ou como a ausência física impõe

sofrimento aos que permanecem vivos. No funeral da peça, conhecidos e familiares

conversam e contam piadas. "Beber o morto", por meio de bebidas alcoólicas para

homenageá-lo, era prática comum que podia e ainda pode ser observada nestas ocasiões.

Nos modos locais de socialidade, o velório e o processo de enterramento tornam-se,

simbolicamente, um acontecimento. Pessoas que não se viam há tempos se reencontram,

incluindo os personagens. Amizades e inimizades são feitas. Durante o ritual fúnebre, em

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certos lugares, como nas hinterlândias das zonas rurais, deixam-se o protocolo e a formalidade

de um velório para se entrar num acontecimento social com características de entretenimento,

lazer e saudosismo pelos entes queridos.

Na peça, os personagens desejavam realizar um funeral cristão e moderno: urna de

madeira, castiçais, crucifixo, velas, terços, transporte funerário com cortejo e, principalmente,

uma sepultura digna de morto na década de 1990, numa cidade como Cuiabá, que tinha seus

cemitérios antigos (com jazigos e crucifixos, como no Cemitério da Piedade, no Centro de

Cuiabá) e novos conceitos de cemitérios-jardins (como o Cemitério Parque Bom Jesus, no

bairro Parque Atalaia). Mas o fato de as personagens não terem recursos financeiros para

pagar as despesas de um funeral, não impediu os personagens de realizar um modo criativo de

ritualizar a morte da matriarca na sala da residência, sob doses de licor de pequi.

Apelidos, codinomes e nomes de personalidades como Zaramela, Caititu, Maria

Taquara, Zé Boloflô, Jejé, Seu Emilianinho, Libória, Dona Maria do Pão Doce, Seu Dutra do

Fumo Bom, Dona Fia, Dona Belinha e outros, destacam a importância ou o desejo de, através

do nome que arbitrariamente se atribui aos pares, dotar-se de reconhecimento social. Atribuir

um apelido a um amigo ou conhecido, por exemplo, torna-se um modo de vincular-se

socialmente, tornar o conhecido mais próximo, na medida em que o apelido, ao gerar riso,

promove um modo de estar junto. Ideias de vida, morte e sobrevivência formam constelações

de imagens diferentes que emergem nos costumes, nas representações simbólicas, que

identificam a estrutura do imaginário em que se inserem indivíduos e/ou grupos sociais para

leituras contemporâneas do que é viver na cidade.

A realidade da falta de recursos financeiros vivida pelos personagens diante dos

costumes, tal como apresentado no texto, é semelhante em muitos lares, vividos por milhares

de pessoas no país. Assim se problematiza a situação da população urbana na cidade de

Cuiabá em seu processo de modernização.

Os contrastes econômicos e sociais invariavelmente distanciam as pessoas, através da

segregação familiar que se realiza na medida em que bairros distantes são construídos

empurrando o perímetro urbano sobre os limites oficiais do município. Por outro lado, os

modos como a população usa os espaços e ressignificam o tempo é que apontam modos

criativos de subjetivação da experiência urbana.

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Capítulo 3: As fias de mamãe ou a globalização vista a partir de Cuiabá

3.1 Memórias trazidas para o presente pelas lidas locais

Na perspectiva dos modos de viver numa cidade como Cuiabá da segunda metade do

século XX, sugeridos na comédia As fias de mamãe, pode-se pensar, com o geógrafo Milton

Santos (1979), que "todo espaço conhece assim uma evolução própria, resultado de uma

conjunção de forças externas [...] e internas já existentes nesse espaço (p. 25).

Os estranhamentos das próprias condições sociais são apenas relativas e, como tais,

fugazes e não "enviadas por Deus". O texto teatral, no caso, insinua a escritura de uma crítica

social. Para empreender é preciso compreender. Trata-se de um acúmulo de

incompreensibilidade até que surja a compreensão. Tornar estranho é ao mesmo tempo tornar

conhecido. A função do estranhamento é anular-se a si mesmo (ROSENFELD: 1985, p.151-

152).

O texto teatral apresenta-se carregado de referências socioeconômicas e culturais que

afetam a vida de uma imaginária cidade. A cidade, que cresce horizontal e verticalmente no

desenvolvimento do capitalismo histórico, passa a segregar espacialmente a população na

malha urbana. A experiência da população cuiabana, em especial por sua história ligada à lida

com um tempo lento das tradições e das relações com a natureza, serve de referência para se

ter um texto de uma peça de teatro e impressões das transformações pelas quais passam as

cidades brasileiras.

A cidade de Cuiabá cresce em população e em perímetro urbano na segunda metade

do século XX. Como resultado, cresce também a violência, a falta de estrutura e da oferta de

educação formal à população, que continua a entender a cidade como sem boa administração,

cuidados, segurança, condições dignas de reproduzir padrões de qualidade de vida instituídos

por um modelo moderno de vida.

Ao se adjetivar o substantivo cidade com a palavra "média" e/ou "pequena" faz-se

menção à dimensão populacional da cidade que, por sua vez, conduz ao estudo das redes e

hierarquias urbanas. Cidade pequena se contraporia à cidade grande. E cidade média seria

aquela que está entre uma e outra, ou seja, teria uma dimensão intermediária. Na classe de

cidades pequenas inserem-se aquelas que possuem até 20 mil habitantes; acima deste

montante são classificadas como cidades médias; e aquelas com mais de 500 mil habitantes

são consideradas cidades grandes. Este critério, com algumas variantes, tem sido adotado

pelas instituições de estudos estatísticos, a exemplo, o Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística.

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Porém, como expressa Sposito (2009), há que se "empreender um esforço para superar

a adoção desses adjetivos de pequenas e médias, cidades pequenas e cidades médias", uma

vez que não "são suficientes para caracterizar as cidades não metropolitanas". Complementa a

autora: "a realidade das cidades pequenas e médias é extremamente plural para que se

continue adotando, no plano teórico-conceitual, esses dois adjetivos" (p.13).

Historicamente, os indícios mostram que a Cuiabá dos anos 1990, se espelha nas

metrópoles nacionais, como São Paulo, em sua trajetória para tornar-se uma cidade moderna.

A movimentação das pessoas pelos espaços tornam-se adensados pelo aumento populacional

e a população cuiabana convive com imigrantes que chegam de outras regiões de Mato

Grosso e do país, constituindo uma sociedade marcada pelas experiências globais. O

crescimento populacional passa a promover também uma demanda por ampliação de

infraestrutura urbana.

Ao longo de sua história, Mato Grosso e sua expansão para o Oeste do país, distante

do litoral brasileiro, se apresentava numa condição de paisagem com urbanização irregular,

lugar ermo, reinventando processos civilizatórios dentro de seu enquadramento regional no

estado-nação, em movimento para a modernização nos séculos XX e XXI.

Era o Mato Grosso, considerado como interior do Brasil e Cuiabá, uma capital,

distante dos grandes centros urbanos. Os grandes centros de dispersão das novidades e

inovações mundiais, Rio de Janeiro e São Paulo, continuavam sendo a "luz" para dar o brilho

aos olhares locais. Para alguns, esses centros urbanos foram referência. Para outros, a

necessidade era criar, fazer e colher resultados a partir do local.

Os dados do Perfil Socioeconômico de Cuiabá (2000, 2001 e 2002) produzido pelo

Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento Urbano (IPDU) da Prefeitura Municipal de Cuiabá, e

do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), utilizados nesta pesquisa,

proporcionaram entender um pouco mais a História e as lidas locais na cidade para o que se

considera como processo de modernização da capital do Estado. Na caracterização do

Foto 12 - Vista panorâmica parcial da região central de Cuiabá (2014).

Foto: J. Francon.

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território de Cuiabá, podemos destacar os seguintes aspectos, que tomamos como relevantes

para a análise, constituição e registro desta pesquisa:

a) Com quase três séculos de fundação (1719) e localizada no Centro Geodésico da

América do Sul, Cuiabá tinha área de 3.224,68 km² no final dos anos 1990. Em 2014,

Cuiabá tem aproximadamente 3.538,76 km² e 551 mil habitantes.

b) O povoamento da cidade iniciou com a descoberta de ouro às margens do rio Coxipó,

por bandeirantes paulistas em busca de minerais preciosos e de índios para o trabalho

escravo, ensejou a fundação de Cuiabá em 8 de abril de 1719. Três anos depois — em

1722 — com o surgimento do "Arraial de Forquilha", denominação dada ao primeiro

povoamento que daria origem a Cuiabá, foram descobertas as "Lavras do Sutil", rica

jazida encontrada nas proximidades do córrego da Prainha e da "Colina do Rosário",

onde foi construída a histórica igreja do Rosário, situada no coração de Cuiabá onde,

também, se encontra a imagem de São Benedito.

c) A notícia do ouro logo extrapola os limites do lugar e exerce poderosa atração

migratória, trazendo consigo a burocracia do governo colonial português, com seu

sistema de controle e poder. Nesse contexto, Cuiabá foi elevada à categoria de vila,

com o nome de "Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá".

d) A queda da produção, aliada à baixa qualidade do ouro de aluvião e impostos

elevados, mais a descoberta de novas jazidas em outras regiões, causou um período de

decadência na exploração do ouro. As atividades agrícolas substituíram a mineração,

passando a ocupar papel de sustentação da economia local. Após esse período de

estagnação, quase um século depois de sua fundação, Cuiabá conquistou a condição de

cidade, através da Carta Régia de 1818, e declarada capital de Mato Grosso em 1835.

e) No final da década de 1930, o programa da "Marcha para o Oeste" deixou suas marcas

na cidade, que ganhou nova feição com a edificação de sua primeira avenida, a

Avenida Getúlio Vargas, com prédios destinados à administração pública, agências

bancárias, hotéis e lazer.

f) Ao findar o século XX, a capital com suas principais atividades econômicas (comércio

varejista, prestação de serviços e indústria) tinha projetos para compor o suposto

desenvolvimento da Baixada Cuiabana. Alguns de interesse da sociedade civil, como a

ampliação do aeroporto para voos internacionais em Várzea Grande, a conclusão e

pavimentação da rodovia Cuiabá-Santarém e a saída rodoviária para o Oceano

Pacífico pelo Oeste do país. Outros projetos eram de interesse apenas de setores da

economia local.

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g) Em 1998, ano que o texto da peça As fias de mamãe foi produzido, a população total

do município era de 483.346 entre população urbana e rural. No período 1991-2000, a

população de Cuiabá teve uma taxa média de crescimento anual de 2,13%, taxa de

urbanização cresceu 0,37, e em 2000 a população do município representava 19,30%

da população do Estado, e 0,28% da população do país.

h) A cidade cresceu tanto que houve conurbação com Várzea Grande, o município

vizinho do lado direito do rio Cuiabá. A nova realidade urbana tomou forma

administrativa como o Aglomerado Urbano Cuiabá-Várzea Grande. Sua criação deu-

se pela Lei Complementar Estadual n.º 028, de 1993, e foi disposta pela Lei

Complementar Estadual n.º 83, de 2001. Entretanto, em maio de 2009, essas leis

foram revogadas com a promulgação da Lei Complementar n.º 359, a qual dispõe

sobre a criação da Região Metropolitana do Vale do Rio Cuiabá (RMVRC), tendo por

base a Lei Complementar n.º 340, de 2008.

i) A criação da Região Metropolitana do Vale do Rio Cuiabá (RMVRC), conforme a

Constituição Estadual, levou em consideração os municípios limítrofes, em processo

de conurbação, integrantes do mesmo complexo geoeconômico e social, que exige

planejamento integrado, com organização e execução compartilhadas das funções

públicas de interesse comum. A RMVRC representa nova organização regional do

Estado e reúne os seguintes municípios: Cuiabá, Várzea Grande, Nossa Senhora do

Livramento e Santo Antônio do Leverger. A mesma lei criou também o Entorno

Metropolitano, formado pelos municípios de Acorizal, Barão de Melgaço, Chapada

dos Guimarães, Jangada, Nobres, Nova Brasilândia, Planalto da Serra, Poconé e

Rosário Oeste, porquanto contíguos à RMVRC e envolvidos no processo de

metropolização.

j) A Constituição de 1988 determina que todos os municípios com mais de 20 mil

habitantes elaborem seu Plano Diretor como marco regulatório básico do ordenamento

municipal. A Carta Magna fez que a Lei Orgânica Municipal, de 1990, reafirmasse o

Plano Diretor como condição sine qua non do planejamento e estabelecesse os

critérios de sua elaboração. Dando continuidade a esse processo, em dezembro de

1992 foi aprovada a Lei Complementar Municipal n.º 003 - Lei do Plano Diretor de

Desenvolvimento Urbano de Cuiabá, que ordenou o crescimento da cidade e

estabeleceu diretrizes para o desenvolvimento social integrado e ecologicamente

sustentável. Juntamente com a Lei do Plano Diretor e como parte integrante dessa,

aprovou-se também a Lei Complementar Municipal n.º 004 - Lei de Gerenciamento

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Urbano, que institui o Código Sanitário e de Posturas do Município, o Código de

Defesa do Meio Ambiente e Recursos Naturais e o Código de Obras e Edificações.

k) Visando regulamentar a Lei do Plano Diretor foram elaboradas as Leis do Perímetro

Urbano e a de Uso e Ocupação do Solo Urbano. A Lei do Perímetro Urbano, Lei n.º

3.412, de 1994, teve como diretrizes a incorporação ao perímetro urbano das parcelas

urbanas localizadas fora dos limites legais e a ampliação de oferta de áreas para fins

industriais. Esta lei passou por alterações, vigorando atualmente o texto da Lei n.º

4.719, de 2004 e, conforme Lei do Plano Diretor de Desenvolvimento Estratégico -

PDDE (Lei Complementar n.º 150, de 2007), este limite deve permanecer pelo período

mínimo de dez anos após a data da sanção do Plano, ou seja, até janeiro de 2017.

Apenas em caso de calamidade pública pode o perímetro ser ampliado.

l) A Lei de Uso, Ocupação e Urbanização do Solo, Lei Complementar n.º 231, de 2011,

que alterou a Lei Complementar n.º 044, de 1997, busca assegurar condições de

integração harmoniosa entre as diversas funções urbanas e padrões mínimos e

máximos de intensidade de ocupação do solo. Essa lei define o zoneamento urbano,

com a descrição do perímetro e definição dos padrões de uso e ocupação das Zonas

Urbanas, discriminando e relacionando as atividades e empreendimentos que

compõem as categorias de uso urbano, e ainda especificou os critérios de sua

localização e instalação.

m) Dentro das determinações desta lei, foi elaborada e aprovada a Lei de Hierarquização

Viária - Lei Complementar n.º 232, de 2011, que classificou as vias em estruturais,

principais, coletoras e locais e fixou seu padrão geométrico mínimo (PGM). Por serem

leis recentes, suas alterações ainda não trouxeram mudanças estruturais à cidade.

Prevalecem ainda os efeitos do zoneamento determinado pela Lei de Uso e Ocupação

do Solo Urbano, de 1982, que vigorou até 1997 e da Lei Complementar n.º 044, de

1997. A primeira, dispunha os "corredores de uso múltiplo" e as "zonas de uso", não

levando em conta a disponibilidade de infraestrutura da via. A lei atual incentiva a

ocupação dos vazios urbanos, mas fazendo o grau de adensamento depender da

infraestrutura instalada: onde há mais infraestrutura, maior pode ser o adensamento.

n) Cuiabá, referenciada como "cidade verde" pelas possíveis árvores encontradas na sua

região central e arredores, tinha a ordem da natureza para o meio ambiente cuiabano

com características que incidiam na performance cultural dos hábitos cuiabanos:

índice pluviométrico de 1470 mm por ano, relevo de baixa amplitude, clima tropical

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quente sub-úmido, vegetação de cerrado com arbustos, próxima a mais dois

ecossistemas que são o Pantanal e a Amazônia.

o) Os rios Cuiabá, Coxipó, Coxipó-Açu, Aricazinho, Aricá, Pari, Mutuca, Claro, São

Lourenço, das Mortes, Cumbuca, Coluene, Jangada, Suspiro, Casca e Cachoeirinha, os

mais importantes da RMVRC, colaboraram para o modo de como se constituiu a

singularidade de Cuiabá. Como quase todos os dias são quentes, tomar banho e fazer

"piqueniques" à beira dos rios era uma lazer e uma necessidade nos cotidianos sob alta

temperatura.

p) Nos anos 1990, Cuiabá sofreu a desaceleração no processo de investimento público

diante da demanda de outras cidades no interior do Estado. Porém, a urbanização

aumenta em Cuiabá e com ela os reflexos das mudanças econômicas ocorridas. Na

busca por melhores condições de vida, os serviços públicos e privados, tornam-se

atrativos para aqueles que vieram das hinterlândias, na medida em que o cotidiano

passa a ser configurado cada vez mais pela tecnologia, a solidariedade social passa a

ser promovida em função de mão-de-obra especializada. Segundo dados da Junta

Comercial de Mato Grosso, a capital tinha 90% de sua mão de obra e receita voltadas

para o funcionalismo público. Metade das empresas encerrava atividades nos

primeiros cinco anos de existência.

Figura 1 - Esquema gráfico cromático com a evolução do perímetro urbano de Cuiabá (anexo).

Fonte: IPDU/ Cuiabá.

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A modernização, no entanto, atravessa as geografias para constituir a história. Os

países em desenvolvimento, mais que escolher a modernização, são também escolhidos pela

globalização. Globalização, guerras, processos políticos, popularização dos computadores

pessoais conectados à internet, telefonia, expectativa e os estilos de vida proporcionados pela

ciência e tecnologia, economia e autoafirmação cultural criaram uma ideia de independência,

liberdade, rompimento de barreiras, de conceitos e preconceitos.

A cidade assume o papel de centro de atividades com ofertas de bens e serviços para

as hinterlândias. Cuiabá assume-se como referencia de espaço onde se encontram as

novidades oriundas de outras culturas, de outras regiões, nos diversos setores da sociedade.

A partir das condições ofertadas pela natureza, adequadas pelas necessidades dos

indivíduos, as práticas culturais em Cuiabá, que vão constituir a multifacetada cultura

cuiabana, são construídas em diálogos e conquistas de espaços sociais, através dos quais

criam-se códigos, comportamentos que identificam grupos específicos. Criam condições

adequadas para satisfazer necessidades dos indivíduos comuns.

Neste universo da cultura, o texto de As fias de mamãe liga o cotidiano do autor à sua

vivência em meio a esta cultura designada e afirmativamente cuiabana, apresentando os

aspectos da vida (físicos, simbólicos e imaginários) para construir a peça que registra um

período da vida social na cidade instalada nos sertões de Mato Grosso. Uma peça de teatro, ao

menos no caso de uma comédia de costumes, torna-se resultado do olhar do autor sobre a

cidade vivida e sobre os que vivem e transitam por ela.

No caso da produção teatral, por falta de recursos financeiros, recorria-se a textos de

autores consagrados pelo conteúdo da obra e isenção dos direitos autorais, sob vigilância dos

órgãos de fiscalização. Autores como Augusto Boal, Ariano Suassuna, Caio Fernando Abreu,

Chico Buarque, Dias Gomes, Fernando Bicudo, Hermilo Borba Filho, Maria Clara Machado,

Martins Pena, Mário Prata, Nelson Rodrigues, Plínio Marcos...

Em Cuiabá registravam-se poucas salas de teatros e o mínimo de estrutura técnica para

se realizar apresentações como palco italiano (palco que os espectadores assistem a

apresentação dispostos de frente para o mesmo). A produção das montagens da peça As fias

de mamãe buscou espaços alternativos para chegar em comunidades que nunca tiveram a

oportunidade de assistir a uma peça de teatro. O foco não era a tecnologia de encenação, mas

a disposição e a criatividade para apresentar a peça.

A obra teatral só se atualiza na medida em que há relação cênica entre atores e público.

Na interface existente entre ambos é que se atualiza o mecanismo de uma obra teatral. Nos 16

anos de existência do texto da peça, mais de 20 mil pessoas assistiram às encenações de As

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fias de mamãe. As montagens da peça circularam pelos palcos de teatro, auditório, saguão,

quadra poliesportiva de escola pública e particular, faculdade, centro comunitário, centro

cultural, praça, clube, eventos (de turismo, moda, cultura) realizados em Mato Grosso e em

São Paulo.

A expectativa era atingir o maior número possível de pessoas. Os resultados,

considerados satisfatórios pela produção à época, começaram aparecer e a satisfação do

público, após cada encenação, tornou-se um modo de recompensa para a equipe de As fias de

mamãe. Assistiram às encenações pessoas de classes sociais A, B, C, D, com idades acima de

três anos, transcendendo as intenções e uso do teatro, na medida em que o próprio teatro se

desterritorializava para ganhar materialidade em outros espaços que não o palco italiano dos

poucos espaços cênicos da cidade.

Mobilizações foram geradas, envolvendo locação de ônibus para que estudantes,

moradores de comunidades distantes dos locais das encenações fossem assistir às sessões

oficiais e extras. Grupos de pessoas se deslocaram do interior para assistir na capital a peça As

fias de mamãe, com sua proposta de levar mais humor ainda ao cotidiano dos cuiabanos, com

ingressos promocionais de R$10,00, R$5,00, R$2,50 e R$1,00.

O texto da peça teatral As fias de mamãe, ao questionar o que significa viver na

cidade aos que saem das hinterlândias para a periferia planejada das cidades médias em seu

processo de metropolização, expõe e registra semelhanças de histórias relacionadas à

imigração interna e externa, com os dramas, invariavelmente invisíveis, que se desenvolvem

no cotidiano mais banal das cidades. No decorrer das apresentações de As fias de mamãe,

assinala-se o fato de pessoas que nunca tinham ido ou assistido a uma montagem de uma peça

de teatro o fizeram no encontro desse público ainda na potência do virtual com montagem da

peça que transforma em obra.

A peça e suas encenações consideram a ironia de si como aquele procedimento

moderno de autocrítica, no qual os projetos que constituem a vida contemporânea devem estar

constantemente sob avaliação pelos próprios atores sociais. O teatro, talvez, buscando a crítica

social através da ironia, se alinhe à perspectiva de que apenas interpelando a realidade social e

os próprios projetos é que se alça a uma condição minimamente moderna.

A experiência urbana, na perspectiva da produção teatral, permite perceber o mundo

num processo de inserção de novas formas espaciais, tomando conta da paisagem da cidade,

transformando as experiências dos que vivem nela. A tendência na vida contemporânea é a

produção de um espaço social cada vez mais fraturado e segmentado socialmente. Relembrar

o passado, "tempos que não voltam mais", permite registrar na memória o que possa ser

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importante para cada agente (atores, técnicos e espectadores), favorecendo o que o teatro

pode, entre tantas possibilidades, contribuir com a cidade. Justapondo o passado e o presente,

o passado retoma o seu valor, não só pelo que foi um dia, mas pelo que é agora.

É nos aspectos físicos, econômicos, sociais, culturais, simbólicos e imaginários da

vida que as pessoas ocupam seus espaços, numa postura de existência, pertencimento e de

iguais direitos, no processo modernizante que a cidade que se apresenta hospitaleira e bem

humorada ao receber os de "tchapa-e-cruz" (que nascem em Cuiabá) e os "paus-rodados" (que

nascem em outro lugar e passam a morar em Cuiabá), embora essas designações pareçam

entrar em declínio conforme a própria sociedade se transforma e as distinções entre quem é

"de dentro" e quem é "de fora" se torna menos nítida e dotada de significado.

3.2 A experiência urbana dos personagens Benedita e Amazonina

As Fias de Mamãe reinventa os interiores de uma casa caracterizadamente cuiabana e,

mais precisamente da classe trabalhadora, de décadas anteriores: uma casa genérica das

condições sociais brasileiras, com indícios de modernização que insiste em não se instalar:

construção simples ainda sem muros, telhado com goteiras, quintal com horta e árvores

frutíferas, cozinha e banheiro do lado de fora da casa. Nesta casa moravam a mãe e a filha

Benedita, vigiada por Presidente, o cachorro vira-lata cuja imagem em muito se distancia do

que nos dias de hoje tem a característica de animal de pet shop (com registro de pedigree,

vacinas tomadas, coleira, tosa mensal, banho na loja e ração vitaminada enquanto comida).

Como se insinua a partir dos costumes dos personagens Benedita e Amazonina, sentar-

se na calçada, na frente de casa, após as obrigações cotidianas, era uma forma de ver o tempo

passar por meio de conversas com vizinhos que também se colocavam à porta da rua da casa

para socializar e colocar as informações em dia. Falava-se de tudo, principalmente das

mudanças da cidade e da violência.

A personagem Amazonina, que vivia a realidade de uma hinterlândia, passa a ser

permitir as múltiplas influências do cotidiano da cidade. Amazonina faz uma imersão nas

virtualidades de consumo de bens e serviços que a cidade oferece. Assim, a experiência

urbana, considerada como experiência de consumo, perturba a ordem social, desarticulando

estruturas que aparentemente estavam cristalizadas, forçando Amazonina a reorganizar

pensamentos.

Amazonina estava acostumada com a lentidão dos acontecimentos nos ermos da

pequena vila onde vivia perto de Cuiabá, onde todos se conheciam e viviam de modo simples.

No entanto, a necessidade da imigração a faz passar pela experiência do cotidiano agitado da

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cidade média que também experimenta crescimento demográfico ao receber muitas outras

amazoninas. Benedita, irmã de Amazonina, já vivia há mais tempo na cidade e assim usufruía

das benesses que a modernização do espaço urbano oferecia como promessa de uma vida

melhor.

Foto 13 - Casa no centro urbano do atual município de Acorizal/MT, antigo

distrito da capital Cuiabá, com aspectos e modo de viver semelhante a um sítio

Foto: J. Francon.

A peça As fias de mamãe, ao se forjar-se com base em hábitos populares da Região do

Vale do Rio Cuiabá, alça-se uma escrita teatral como experiência dos personagens na relação

entre a hinterlândia e cidade. Morar em um conjunto habitacional popular próximo ao centro

da cidade significa que os personagens, ao menos em hipótese, dispõem de bolichos,

quitandas, mercearias, padaria, cacimba comunitária, do rio principal que abastece a cidade.

A cidade, como totalidade urbana em As fias de mamãe, disponibilizava serviço de

assistência social, pronto-socorro, ensino básico, fundamental e superior, clubes de lazer,

pregão, escola de inglês, banco, quartel do exército e telefonia celular — embora nem todos

estes recursos urbanos sejam acessíveis à população em geral.

A modernização na cidade Cuiabá fez perceber que as práticas de consumo atendem às

necessidades biológicas e simbólicas. As frustrações com a vida social e a busca da realização

dos prazeres mundanos geram anseio contínuo nas pessoas, desencadeiam um consumo de

relacionamentos, de bens e serviços que se renovam a partir de sucessivas decepções. As

personagens trouxeram suas raízes fincadas nos costumes, modos de viver numa hinterlândia,

porém, os prazeres e dissabores que a cidade em desenvolvimento ofereceu foram

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compartilhados e consumidos na medida que a comunicação entre o rural e o urbano foi

acionado.

Foto 14 - "Calçadão" da Rua Galdino Pimentel (antiga Rua de Baixo), que antecede

o início da Rua 13 de Junho, no Centro Histórico e Comercial de Cuiabá.

Foto: J. Francon.

O que era longe, torna-se perto, e o rural, com o passar do tempo, foi incorporado

gradativamente ao urbano, à periferia da cidade que forçadamente vê-se na contingência de

planejar o seu território.

O desenvolvimento da agroindústria, além de trazer novos moradores, fez com que a

economia do Estado crescesse a um ritmo superior à média do país. Segundo a notícia

divulgada no caderno "DC Ilustrado" do jornal Diário de Cuiabá (Edição n.º 13730,

20/10/2013), a economia da capital Cuiabá cresceu e concentrou-se no comércio e na

indústria. No comércio, a representatividade era varejista, constituída por casas de gêneros

alimentícios, vestuário, eletrodomésticos, de objetos e artigos diversos. O setor industrial era

representado, basicamente, pela agroindústria. Muitas indústrias, principalmente aquelas que

deveriam ser mantidas longe das áreas populosas, estão instaladas no Distrito Industrial de

Cuiabá (DIC), criado em 1978 e que hoje (2014) está incorporado ao núcleo urbano da

capital.

A sociedade de consumo se anuncia também nos sertões brasileiros, na expansão dos

serviços privatizados e que geram a dinâmica do consumo pelo homem contemporâneo, que

está suscetível a medos, frustrações, ansiedades, à produção de novas e efêmeras necessidades

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de consumo que perpassam as aquisições materiais; assim, a sociedade de consumo chega ao

domínio das subjetividades em tentativas de aumentar a massa consumidora.

Até 1999 Cuiabá não dispunha de órgão responsável pela política municipal de

habitação. Os programas e projetos eram desenvolvidos por coordenadorias ou diretorias

subordinadas a secretarias municipais. Em 4 de outubro, a Lei Complementar n.º 055/99 criou

a Agência Municipal de Habitação Popular de Cuiabá e o Fundo Municipal de Habitação

Popular7.

Segundo o IPDU de Cuiabá, a Agência Municipal de Habitação Popular, criada sob

regime de autarquia, com autonomia jurídica, administrativa e financeira, tem por finalidade

planejar e executar a política municipal de habitação e ainda propor e organizar a

regularização fundiária do município. O Fundo Municipal de Habitação Popular (FUMHAP)

é o responsável pela administração dos recursos financeiros da Agência. Cuiabá foi incluída

entre as 22 primeiras cidades participantes do Programa Habitar Brasil/BID, fato que

possibilitou à Agência Municipal de Habitação Popular captar recursos no valor de R$ 2

milhões, destinados à estruturação do órgão.

Para tanto, foram necessárias a construção de diversos núcleos habitacionais, muitos

deles fora dos limites do perímetro urbano. Na elaboração de nova lei, que incorporava essas

localidades, observou-se a necessidade de ampliação da área destinada a receber

empreendimentos que, por seu porte ou atividade, causassem impactos à cidade, os quais

deveriam se localizar em área onde não prejudicassem as demais funções urbanas.

Foto 15 - Residencial Salvador Costa Marques.

Projetos sociais: modelo de casa popular na

periferia de Cuiabá, anos 90.

Foto 16 - Casa popular localizada na

região do Centro Histórico de Cuiabá,

anos 90.

Foto: J. Francon. Foto: J. Francon.

7 Fonte: Perfil Socioeconômico de Cuiabá - 2002, Vol. II; Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento Urbano -

IPDU, p. 172.

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Esse processo de crescimento urbano foi propício para a especulação imobiliária. A

verticalização em Cuiabá era interpretada por vários motivos: a falta de terrenos disponíveis

dada a limitação do perímetro urbano, o sentimento da falta de segurança, a densidade

populacional existente e o valor dos bens imobiliários em determinados bairros. No plano

simbólico, a preferência pela região central, apartamentos e condomínios fechados por uma

parte da população deve-se ao fato de essas moradias serem consideradas modernas, que

buscam seguir e mesmo imitar os padrões da vida urbana das metrópoles. Ainda no plano

simbólico, os condomínios fechados configuram-se como espaço privilegiado em relação aos

espaços ainda declaradamente públicos.

A verticalização e as construções de condomínios fechados, a demanda por casas

populares, invasões e apropriações pelo uso do desocupado permitiram a expansão urbana por

vias de aquisição e uso de bens utilizados nos mais diversos setores da economia na

contemporaneidade de Cuiabá frente a globalização.

A cidade tornou-se mais cara operacionalmente, pois garantir a infraestrutura

necessária para a acomodação, circulação, manifestação e idealizações enquanto cidade

média, se fez necessário o fomento do transcender os limites da Cuiabá vivida e ficcionada.

Os espaços foram ocupados em velocidades que deixam para trás a lentidão de um modo de

viver na hinterlândia. Nessas ocupações, o desmatamento e as queimadas, provocados por

produtores rurais para a abertura de novas áreas de plantio ou de criação de gado também

demandam terras e empurram a população rural para as cidades.

MAZO - Palhaça! A farinha djá acabou, o açúcar djá tá no fim, seu Dutra do

fumo bão também já não está entre nós... Daqui a pouco nem arroz tem mas

pra comê. Tumico Xakira do mercado municipal ta de olho bem aberto co

nós quando a gente entra lá. DITA - Detxá aquela japonesa pra lá! Ocê isqueceu que nós temo conta lá no

bar de Dona Isabelona?

MAZO - Nós não, mamãe, que Deus a tenha e ela não vai querer vender fiado pra defunto.

DITA - É meszmo né, depois nós num paga...

MAZO - E ai fica cô cara de tacho...

DITA - Ê-a! Por que não? Num tem pensão de mamãe? MAZO - Tem, fia da puta! Mas só a luz e a água djá come o dinheiro de

mamãe, inda mas agora com IPTUs...

DITA - Então só se eu fô dá meu tchêro pra pagar as conta aqui de casa! MAZO - Até que não é mau negócio né, catchorra?

DITA - Mazonina, bamo falá sério. Ocê vem ou num vem morá aqui em

casa? MAZO - Eu não! Djá tô pra casá e Chicão...

DITA - ...o veado.

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MAZO - Oh Dita num fala assim que ocê me magoano profundamente. Ele

tá tocano uma roça lá em Acorizal e ele não vai querer trocar a roça pela

periferia da cidade. DITA - Pelo jeito vou ter que lava roupa de ganho. Então ocê num vai morá

comigo. (Brusca) Por quê que ocê num falou logo sua vaca!

MAZO - Entenda, eu vou casá xá burra! E ocê vai vivê do quê, de cadjá-

manga? E Presidente? DITA - Leva ele co’cê.

MAZO - Aqui procê!(Banana) De sarna pra coçá já basta Chicão.

O uso dos espaços implica nos novos modos de se viver na cidade. O conceito de

desenvolvimento historicamente adotado afetou a relação da população com o ambiente do

entorno urbano. Os sistemas público e privado de saúde apontam o aumento no atendimento

ambulatorial, custo com medicamentos, racionamentos de energia e o deslocamento de

animais para a área urbana que, por sua vez, são exterminados para garantir o espaço urbano

sem a ameaça da natureza ainda considerada hostil.

O novo modelo de cidade do século XXI altera a morfologia urbana e a relações

sociais em Cuiabá. Os segmentos populares acabam por vender sua residência sob a pressão

do poder econômico que se instala em Cuiabá, por um valor que poderia amenizar suas

dificuldades e para adquirir um imóvel na periferia da cidade com menor custo. Porém,

passará a viver a realidade das periferias, nem sempre dotadas dos equipamentos urbanos

necessários nos arredores.

As condições sociais de uma parte considerável da população de Cuiabá, com relação

ao que se entende, em parâmetros modernos, sobre o que seja bem-estar e desenvolvimento

socioeconômico, apoia-se no sistema subsidiado e gerido pelo governo municipal, estadual e

nacional através da empregabilidade no serviço público, na medida em que a cidade tem com

motor econômico a prestação de serviços considerados essenciais à população.

As benesses da experiência urbana que emergem no texto da peça As fias de mamãe

também abrem espaço para evidenciar as precariedades que os anos 90 imprimiram na

sociedade. Marco Alexandre de Aguiar, no seu artigo "As décadas de 80 e 90: transição

democrática e predomínio neoliberal", nos apresenta algumas considerações do processo

histórico que ocorreu no Brasil.

No dia 15 de março de 1990, Fernando Collor de Melo toma posse, e logo em seguida ocorre o lançamento de um plano econômico, que confiscou o

dinheiro da caderneta de poupança da população. Isso gerou grandes traumas

e muita confusão. A própria ministra Zélia Cardoso de Melo, ao fazer o

pronunciamento pela televisão, não mostrou segurança no que estava propondo. Esse governo caracterizou-se pela defesa da abertura econômica e

com um discurso forte a favor da privatização das empresas estatais. O

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presidente eleito, depois de trinta anos sem eleições diretas, acabou sofrendo

um processo de impeachment (1992) devido ao seu envolvimento em casos

de corrupção. Novamente um vice precisa assumir de forma precária. Itamar Franco (1992-1994), político mineiro, no final de seu mandato, acaba sendo

ofuscado pela presença do seu ministro, Fernando Henrique Cardoso, que

lançou as bases do Plano Real. Esse acaba servindo de trunfo para a eleição

do sociólogo da USP em 1994, uma vez que o trauma do povo brasileiro em relação à questão dos altos índices da inflação era enorme (AGUIAR: 2009,

p. 7-8).

Na primeira eleição direta para Presidência da República, elege-se em 1989, Fernando

Collor, após a ditadura militar (1964-1985). O voluntarismo individual, excesso de poder livre

de regras e condições pré-estabelecidas impossibilitaram a cooperação entre os poderes

executivo e legislativo brasileiro, mas instituíram trocas clientelistas de favorecimento. As

intenções do novo presidente de levar o País ao crescimento, de pôr em prática um plano de

Reconstrução Nacional, dividido em planos Collor I e II, ressuscitou o cruzeiro como moeda,

demitiu funcionários públicos, congelou salários, preços e o confisco dos depósitos bancários

(poupança) levou milhares de jovens (mobilizados por uma forte campanha de mídia) a criar o

movimento "Caras Pintadas" que pediram e conseguiram o impeachment de Collor em 19928.

Era preciso reerguer o Brasil. O vice-presidente, Itamar Franco, assume o comando do

país, que experimentou estabilidade econômica e crescimento com o Plano Real (1994). Este

plano, igualava a paridade da moeda e do dólar por meio de uma banda cambial. O Ministério

da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, implementou o Real durante o governo de Itamar

Franco, e se elege Presidente da República por duas vezes seguidas (1995-2002), após

mudança na legislação eleitoral do Brasil9.

O sistema de bandas cambiais mostrou fragilidades ao fim da década, tendo impactos

no aumento da pobreza. Com as reservas cambiais comprometidas, a moeda tornou-se

flutuante em 1999, após não suportar as pressões especulativas junto à crise russa de 1998. A

partir de um plano de estabilização monetária de profundo enxugamento da liquidez, a

política econômica voltou-se à abertura indiscriminada das barreiras tarifárias e o início do

processo de privatização das empresas estatais. A população buscava justiça social para que a

distribuição de renda, a audição da voz popular com suas reivindicações somasse para o

correto uso do recurso público10

.

8 Fonte: Revista Linha Aberta (virtual), Os acontecimentos que marcaram a história nos últimos anos,

Novembro de 2010, grifo nosso. 9 Ibidem, grifo nosso. 10 ibidem, grifo nosso.

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As pessoas comuns passam a utilizar táticas de sobrevivência para reinventar seu

cotidiano, sob o avanço do capitalismo em escala global. Diante das precariedades existentes,

a cidade surge para os que vivem nas periferias e nas hinterlândias, como um tonificante

agente sensorial. A cidade das aparências, dos outros, do progresso, num complexo jogo de

desejo, frustração, sonho e realidade, é vista como uma possibilidade de salvação para as

necessidades e inquietações que possam surgir.

A vida simples, a liberdade, uma certa despreocupação com o dia de amanhã nas

hinterlândias passou a ser transformada pelas possibibilidades que o crescimento populacional

e a estrutura da cidade oferece. Ao longo das experiências históricas do campo e do processo

de modernização que ocorre pelos espaços do mundo, no Brasil e em Cuiabá configuram

benefícios e malefícios e a ocupação dos espaços sofre a dinâmica de sobrevivência e

manutenção do poder dos que vivem e chegam à Região do Vale do Rio Cuiabá.

Em As fias de mamãe, a catação de piolho como ausência de noções de saúde é uma

tática cênica para se questionar o problema de caráter social, além de sugerir a falta de

recursos financeiros para se manter a saúde em domínio privado. As festas do quartel do

exército e os bailões nas vizinhanças surgiam como possibilidades de comer sem ter que

pagar. A distribuição de sacolão (cesta básica) pela LBA (Legião Brasileira de Assistência)

poderia significar mais um mês com comida na mesa. O pão amanhecido para fazer torradas e

não ter que jogá-los fora, já que o estoque de farinha de rosca estava todo por ser vendido,

ajudava a fortalecer a amizade e amenizar a fome dos personagens. O aparo de goteira com

panelas velhas no chão, aguardando o sorteio da casa do "projeto João de Barro", que parecia

uma loteria, era a crítica e o desejo para novo espaço de viver, o desejo de novas relações de

pertencimento. Na falta do novo, se mantém o velho, perpetuando-o.

Sob penumbra, chove e os barulhos de trovões, raios e goteiras intensificam.

DITA - (entra de camisola) Eh, mamãe já deve estar lavando o paraíso.

Espia aqui essas goteiras. Essa aqui é mais velha que Mazonina. Que apagão é esse? Cuiabá é só chovê, cabô! Mazonina, vem ajudar salvar goteira.

MAZO - Ahhh! Detcha nheu durmi!

DITA - Durmi!? Você já ta na idade de ir durmi as sete e acordar as quatro da manhãos. Pega panela e venha ajuda a salva goteira. (Amazonina entra

sonolenta, segurando uma boneca e de pantufa) Acode aquela ali. Bamo,

bamo, rápido! Ali outra ali. (senta e dá ordens) Pega o pano e enxuga essa

aqui, aqui em cima de mim.(Amazonina emburra e sai pisando duro) Vôte! Num sei pra que tanto estudo se num tem a sensibilidade pra salvar um

patrimônio histórico.( explode mais um raio).

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A globalização como acontecimento histórico torna-se presente, e a cidade de Cuiabá

vive a implantação de novas formas de produção do espaço urbano com mais

empreendimentos privados e públicos com infraestruturas modernas. A construção do

segundo shopping center na capital11

, o Shopping Três Américas, inaugurado em 1996, com

diversas lojas de grifes mundializadas, e na expectativa da finalização da obra do Pantanal

Shopping que só ocorreu em 2004 com sua inauguração, é contemporânea do aparecimento de

torres com apartamentos residenciais e comerciais, definições e demarcações de parques

ambientais e de convivência, o acesso às tecnologias. Aos poucos, a configuração urbana foi

se instalando e os personagens, semelhantes a muitos brasileiros, enredam-se, ou buscam se

enredar, nos processos de consumo.

O passado ainda é insistentemente presente, pois a peça As fias de mamãe evidencia o

retrato amarelecido pendurado nas paredes da casa, um oratório para as rezas costumeiras

com velas acesas, a vitrola com discos long plays de artistas consagrados pelos fãs de músicas

populares, imagens com referências às cenas de telenovelas. Na medida que a vida urbana se

institui, emergem sempre renovados desejos de consumo: tomar milkshake no shopping

center, comer baguncinha (versão cuiabana do cheeseburger) na gastronomia popular de rua,

equipar a cozinha com tupperware e comprar perfume barato da Avon para produzir e realçar

a beleza do corpo.

MAZO - Desnaturada! (conversa com a mãe como se fossem surdas e

mudas) Dita nheu vô tomá um bainho, porque virá a noite com esse tchero

num dá. Xia aí! Nheu ainda tô cum poeira de Acorizal. DITA - Vai mesmo, que daqui tô sentino um xirinho...

MAZO - Só se fô do Charisma da AVONs que ocê tá sentino e num adianta

pedi que num vô emprestá!

Na peça, os personagens enquanto potenciais consumidores dos bens e serviços que a

cidade oferece, se apoiam no desejo e realização do desejo como forma, estímulo do pensar

sobre suas relações pessoais e organizativa de sua vida na sociedade. No roteiro da peça, a

potência para se tornarem consumidoras rebate na condição econômica em que se encontram

e na forma como encaram sua participação social na sociedade de consumo. Pensando nas

atitudes dos personagens, entende-se as práticas contemporâneas em As fias de mamãe,

segundo Giogio Agamben (2009): trata-se de uma atitude de coragem, nada mais que "ser

pontual num compromisso ao qual se pode apenas faltar" (p. 65). A casa é composta por

objetos apropriados pelos personagens após o descarte feito por outras pessoas, frente à

11 O primeiro shopping center de Cuiabá foi o Goiabeiras Shopping, inaugurado em 1989.

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aquisição de um novo objeto que substitui o "estragado, o velho ou o ultrapassado". A

necessidade de sobrevivência fica sob a condição mínima de pertencimento, no usufruir das

benesses que a cidade oferece, mesmo que seja em forma de descarte.

Em agosto de 1994 entrou em operação a telefonia móvel no Estado de Mato Grosso

pela empresa Telemat. A novidade, conquista o desejo da personagem Benedita, que aparece

em cena para o enterro da mãe com um aparelho tipo "tijolão" (Motorola modelo

76057WAFBA) na cintura. O importante não era a necessidade funcional do produto, mas a

necessidade de se mostrar socialmente, enquanto consumidora, que tem um aparelho celular à

sua disposição. Porém, a precariedade no plano do consumo se evidencia, pelo fato de ela ter

que falar rápido, para não consumir seus últimos créditos. Amazonina aponta que não

adiantava levar o celular, na época ainda um objeto nem tão popular assim, ao enterro, pois

seria bem provável que nos ermos da hinterlândia onde se daria o enterro não haveria bom

sinal telefônico para realizar e receber ligações.

MAZO - (pega o punho da rede e se posiciona pra sair) Bamo enterrá mamãe!(pausa) Pra que que vai levar esse celular? Tijolão na cintura.

Duvidá lá nem num pega!

DITA - Olha Mazonina, eu tenho, eu posso, eu tenho que mostrar. MAZO - Pra quê que vai desse jeito? Num ta nem combinano. Olha é

enterro, num é carnaval.

DITA - Aé?! E ocê com esse Kitchute?

MAZO - Oh mulher antiquada. Se ocê num sabe, mulher fashion week e casa cor é assim: bolsa combina co sapato. Deixa de ser retrô e pega a coroa

aí!

DITA - (pega o outro punho da rede em direção contrária de Mazonina) Já peguei!

MAZO - A coroa de flores, troço!

DITA - Ocê me deixa confusa Mazonina. Pronto! Já peguei todas as coroas, coroa!

Dita e sai em direção contrário de Mazonina.

MAZO - Aí! Vai rebentar mamãe no meio! É desse lado bandida (toca o

celular e Dita atende). DITA - Ah, espera aí Mazonina! Meu smartfone ta tocano e vibrano. Alô,

fala rápido que ta gastano tudo meu crédito. Não! Num tô em Bonsucesso

não. Ai Pedro, num sei nem como te contar de mamãe... Quem que tá rino aí assim? Vai ter rodada de peixe e cerveja por sua conta?!!!! Tem como ocê

me buscar lá no trevo do Parque Cuiabá? O que? Pega um moto táxi? Então

enfia, soca, toca seu peixe tudo no seu Bocó e arrodeia três vez. Onde já se viu? Uma quase miss Liceu Cuiabano andano de moto táxi...To ficano mole

mesmo! E já que estou dialogando com você, eu quero meu chip que te

emprestei... Cadê meu chip Pedro. Devolve meu chip Pedro. Num quero

saber, devolve meu chip Pedrooooooooo. Onde já se viu! Desligou. MAZO - Ah não mamãe, isso realmente não pode ser da nossa árvore

genicológica!

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Na tendência de comprar, fazer, falar e ser o que todos eram no momento, o costume

que se instala baseado na moda efêmera se desenvolve pela necessidade, o acaso e o possível

entendimento sobre o cotidiano dos indivíduos da sociedade contemporânea.

Ao precisar sair de casa para vender os objetos deixados como herança pela mãe,

Amazonina sente que precisa se vestir de "maneira especial", que difere do estar vestida em

casa para um estar vestida na relação fora de casa.

MAZO - Óia, vamos pará de cunversinha e tratá do que interessa. E djá que

é prá vende os troço daqui, nheu vô aprontá pra saí e procurá qual pregão

que vai querer comprá esses trem daqui de casa, porque ocê é lerda de tudo e num vai consegui vendê nada.

Em meio à cultura das aparências, Amazonina insinua as funções do vestuário na

produção de sentidos que envolve a visualidade corporal, na qual a democratização de se

vestir, apropriadamente utilizada na prática dos personagens na peça, reflete um modo de

encarar a realidade. Esta visualidade corporal se transfere também para os interiores da

residência e nos modos como se desenvolve uma relação de consumo com móveis da casa, o

que passa pelo hábito de se cobrir sofás com tecidos. Além de proteger e prolongar a vida útil

do móvel, têm função de decorar a casa com suas cores, estampas e tramas. O forro de cobrir

um móvel na casa dos personagens indica o gosto de quem vive e ornamenta aquele ambiente.

A personagem Amazonina atualiza, numa das cenas, esses hábitos caracterizados da

população de baixa renda e ilustra assim o que significa a vida na cidade. Ela pega o forro

feito artesanalmente, que cobre um móvel domiciliar, e aparece em cena com uma pantalona e

um blazer feito com o tecido de forrar sofá. A este conjunto somam-se os acessórios: bolsa

tiracolo, calçados Kichute (utilizados por homens jovens) e a camiseta de custo baixo com

estampa das midiáticas "Meninas Superpoderosas". Para completar a ambiência do consumo

como indicador dos costumes de uma época, a personagem ouve a música "internacional-

romântica-lenta-traduzida", em uma combinação de linguagens, para além do sotaque e

linguajar local, misturado com o idioma inglês, que transcende o uso e evidencia os efeitos da

globalização, sob os comportamentos das personagens enquanto consumidoras.

DITA - Enquanto isso eu vou arrumano os trem e a bagunça que mamãe

deixou aqui em casa. Hoje nheu vou encerar essa casa... (sai pra cozinha e Amazonina entra tentando achar pra vestir e encontra um forro de fuxico

que cobre um baú da sala. Logo sai pra não ser percebida por Benedita que

segue limpando os móveis e lembra da vitrola e dos discos de vinil).[...] Será

que esse troço presta mesmo? Vô colocá uma música. Porque faxina sem música não é faxina (liga a vitrola, escolhe uma faixa do disco vinil e dança

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fazendo faxina. Brinca de interpretar a musica internacional-romântica-

lenta-traduzida. Em seguida, entra Amazonina toda produzida com uma

camiseta com estampa da Meninas Superpoderosas, pantalona e blaiser de fuxico, kichut, desliga o som).

MAZO - Ih! Bamo pará co essa uciesa aqui em casa que ta pareceno cabaré

de Coleta e chácara do Amorzinho.

A realidade do cotidiano dos personagens foi ressignificando os objetos na relação de

produção e uso, como soluções aos enigmas que assombram momentaneamente a identidade e

o pertencimento frente aos impulsos de sobrevivência com afirmativas a essa realidade,

mesmo que ficcionada na peça.

Pode-se entender que, diante da dificuldade financeira dos personagens, é conveniente

alimentar ilusões, as conversas que não rendem soluções ao problema e sair para um "pregão"

onde se compra e vende objetos usados na cidade, localizado no centro da capital e trocá-los

por dinheiro. O valor sentimental de cada objeto deixado pela mãe, que então se dotava de

valor de uso, em um momento era revestido de saudosismo nostálgico e em outro momento

adquire um valor de troca no comércio urbano, visando o dinheiro e forçando o desapego aos

objetos dotados de significados.

A comédia por sua vez, na medida que as cenas se desenvolvem, ganha espaço pelo

que foi e é formado pelo jogo entre a realidade e a ficção. O ponto de vista sobre a cidade de

Cuiabá, com suas experiências simultâneas de urbanização e de modernização, aponta para a

necessidade de tais transformações, ainda que os benefícios desta experiência não

necessariamente cheguem a toda a população.

A vida urbana produz comportamentos que não se imagina ter em uma hinterlândia. E

vice-versa. Os sentidos são atribuídos às necessidades do cotidiano, nas mais diversas

intenções: parecer conectado ao mundo, não necessariamente pela internet, mas pela condição

de estar informado, possuir conhecimentos e dotar-se de experiências. Tudo isto prepara o

indivíduo para o que está por vir, cambiado pelo presente cheio de fatos do passado,

sugerindo um futuro, facilitando novas invenções e novos usos na/da cidade.

Viver em sociedade urbana, especificamente, demanda regras e reservas nas condições

ambientais, sociais e culturais. Os reflexos na sociedade contemporânea em suas diversas

manifestações incidem sobre a existência, modificando posturas, pensamentos, valores e

significações. A comédia As fias de mamãe provoca ainda, nos locais onde é lida ou

encenada, as indagações sobre o que significa viver na cidade e o que pode ser a experiência

urbana.

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Elas se olha, andam tentando lembrar, desconfiada uma da outra de estar

escondendo algo e lembram-se do santo.

JUNTAS - O santo, relíquia de mamãe! (correm e pegam o santo ao mesmo tempo).

DITA - Me dá aqui, bandida, vai ser meu.

MAZO - Desdi quando biscate precisa de Santo? É meu.

DITA - Meu djá morreu seu cú é de djudeu. Tá qui pro cê. (dedo). MAZO - Olha aqui, corna, dobra e redobra e enfia no seu toba.

DITA - Escuta aqui, pra quê que ocê qué Santo Antônio, se ocê djá tá pra

casá e além disso, ocê é devota do Senhor Divino e Nossa Senhora do Limpo Grande.

MAZO - Teressa, mudei de Santo.

DITA - O qual, o do pau–oco? Não, nheu fico co’ Santo e você co’

Presidente que djá deve de tá lá embaitxo da xá cama. MAZO - Never, nem que me obrigue a mamá na onça, eu não fico co’

Presidente.

Diante da precariedade material dos personagens, a reafirmação do pertencimento

social pelas vias de acesso do local ao global, confere a importância da sociabilidade e da

aquisição de informações, notícias e conhecimentos. As transformações na cidade e dos que

vivem nela, ao longo do tempo, foi percebida pelos personagens, pois tudo já não era mais

como antigamente. Para Amazonina e Benedita, ouvir as programações das estações de rádio

AM, consumir produtos da indústria cultural já internacionalizada, construir um modelo de

procedimento social a partir das novelas, das revistas, e ter como novos parâmetros modos de

vida trazidos pelos que vinham de outras localidades: tudo isto afinava o fio de esperança para

viver tempos hipoteticamente melhores sem o tempo lento das hinterlândias e já vivendo os

dramas de se morar na cidade.

As pessoas já conhecidas da família muitas vezes causaram estranhamento para os

personagens, na medida em que a narrativa apresenta situações sociais ainda marcadas pela

desinformação e cravadas de tabus. As personagens Benedita e Amazonina, no entanto,

tendiam a observar e registrar em suas memórias as novas práticas sociais que afligem a vida

nos aglomerados urbanos.

Consumir drogas ilícitas, engravidar prematuramente, viver as promessas e ilusões da

cidade estavam tão perto delas e ao mesmo tempo distantes, já que seus desejos de consumo

eram outros. O valor familiar e social eram distintos. A educação cultivada por elas, entre as

precárias situações da vida, a moral e os chamados costumes familiares não eram esquecidos

pelos personagens.

MAZO - Craro! Também sou membra da família e eu posso, meu pai é

sócio, vovô foi pianista e mamãe vigarista. Sacou?

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DITA - Audácia pura da Malandra! Vamos tentá vendê esses cacos daqui

pro museu de Ulisses e pra Ramis Bucair. Eles tem dinheiro e pode comprá.

MAZO - É mesmo né! Mas a gente fala as coisas sob emoção, sem pensar nas consequências... (observando a casa) Mais esse rádio vai ser difícil de

esquecer. Quantos horóscopos a gente djá num ouviu nele...

DITA - A gente não, ocê! Eu ouvia novela...

MAZO - E nós só que esfolava o botão do rádio, pra lá e pra cá... DITA - Até que estragou o botão e acabocetudo. E por falar em rádio, e o

som?

MAZO - Será que ainda presta? Chia só, inda presta! Coloca a quarta que nheu gosto.(toca a musica)

DITA - Essas músicas me lembram os bailes e nós dançano com a corja de

soldados.

MAZO - Eu dançano porque a senhora sumia no breu, ia pra debaixo do pé tchimbuva e quando voltava tava com o barará desse tamanho.

DITA - Ah! Bamos dançá. (dançam e disputam o jogo de altura das pernas)

MAZO - Ufa! Cansei! E a máquina? DITA - E nossas roupas do colégio?

MAZO - Roupas do colégio? Iguá aquela que ocê foi inventá de costurá e

arrebentô o fio da máquina, e mamãe enforcou ocê malemá.

A banalização da existência, a dureza do trabalho, o poder do dinheiro, o papel da

mulher na sociedade, a maturidade precoce, a exclusão, a violência em suas variadas formas,

o novo, que se instala, e as descobertas da vida moderna em um território evidentemente

nacional, cambiados pela simplicidade, familiar, gentil, permite entender sobre o ambiente da

cidade Cuiabá dos anos 1990, construídas no texto da peça As fias de mamãe.

Nisso elas ajeitam o terço, véu, começam a rezar. Em intervalos, elas falam

da vida dos outros.

MAZO - (dá uma cotovelada em Dita) Puxa a reza aí Dita!

DITA/AS DUAS – Aíiiiiiiiiiive Maria cheia de graça o senhor é convosco, bem dita sois vós entre as mulheres...

MAZO - ... Dita, por falar em mulheres, como que vai a fia de Dona

Mariinha? DITA - Menina, isquici de te fala! Tão falano por aí que ela tá de esfrega-

esfrega com as gurizada por aí nos escurinhos...

MAZO - ...e depois falavam que era ocê né Dita? DITA - Bamo rezá!?

AS DUAS - Jesus! Santa Maria rogai por nós pecadores...

DITA - ...Mazonina, por falar em pecadores, como que vai a fia de seu

Sebastião? MAZO - Pois era isso que nheu tava tentando lembra e ocê me lembrô. Pus

ela num deu pra andá de turma. E deu mesmo! Tá até de bucho. E disque tá

mexendo cô tóxico. DITA - Desse jeito o fio dela vai nasce viciado! Temos que livrar essas

criançada dessas porcariada. Gravidez na adolescência não, droga não,

burrice não. Família sim, amizade sim, matinê no clube náutico sim... MAZO - Ei, psiu, bamo reza?!

AS DUAS - Agora e na hora da nossa morte... Nossa não, de mamãe!

Améns!

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3.3 A cidade expandida e artificializada na comunicação

Na primeira cena de As fias de mamãe, o texto apresenta um antigo aparelho de rádio

sintonizado numa estação AM, na qual se ouve música "internacional-romântica-lenta-

traduzida", recurso cênico para descrever uma casa comum na Cuiabá dos anos 1990 com a

experiência de consumo de música popular frente à globalização.

A produção do gosto, no plano do consumo, reduziu-se, em boa medida, a uma

concordância com padrões estabelecidos pelo mercado que se desenvolveu em escala mundial

na segunda metade do século XX, ou seja, a uma adaptação do indivíduo à lei comum dos

costumes mundializados. Os produtos da indústria cultural são fabricados de tal forma que a

sua apreensão não exige esforço reflexivo do sujeito, o que muitas vezes é até mesmo

dificultado. Ao propiciar um tipo de experiência onde tudo já está previamente estipulado,

julgado e ordenado, a indústria cultural presta um serviço de antiesclarecimento aos seus

consumidores, privando-os da necessidade de pensar de maneira autônoma.

Para a indústria cultural, qualquer indivíduo pode fazer do seu passado algo vendável

ou suscetível a negociação. A influência do imediatismo das novas tecnologias é que, em

termos liberais, a liberdade centrada no indivíduo torna historicamente possível que os valores

de uso se tornem valores de troca num mercado que se reinventa constantemente.

Aqueles que se submetem a esse modelo de indústria nada mais fazem que reproduzir

o que já está previamente dado. Porém, uma certa crítica ainda pode ser vista naqueles que

fomentam um tipo de arte, que produz efeitos estéticos fora da padronização oferecida pela

indústria. Mesmo assim, é uma tentativa que fica à margem do sistema porque não agrada

àquelas consciências acostumadas com um modelo estandardizado.

Nessa história, contada de forma muito breve, sobressaem alguns grandes temas que

caracterizaram a evolução recente da tecnologia eletrônica, reflexos da dinâmica indústria

cultural: a passagem do analógico ao digital, ou o embate entre a indústria europeia e a

japonesa. Com as fusões na indústria fonográfica (1928-1945), a sequencia de inovações

tecnológicas, tendo o aparecimento do microssulco (1943) e as rotações para discos de música

popular (1945), foi o conceito de copyright, criado para proteger os compositores musicais,

que fez com que a música se tornasse um negócio. Na sequencia nasceu o royalty, sob a venda

de discos. O Compact Disc (CD) simples e duplos no Brasil, em 1989, ganhou espaço no

mercado e o Long Players (LP), teve suas vendas diminuídas (DIAS: 2008).

A música popular e a evolução do rádio no Brasil aumentou consideravelmente: no

ano de 1970, ouvia-se mais música popular em rádio, do que na TV. Uma mudança

aconteceu em 1996, quando se ouvia músicas populares tanto em rádio quanto em TV. A

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música popular romântica no Brasil transpassa o período de repressão política (regime militar)

da cultura de massa e expansão da indústria fonográfica. Entre 1970 e 1976, a indústria do

disco cresceu em faturamento 1.375% no Brasil; a venda de LP's: de 25 milhões para 66

milhões; o consumo de toca-discos: aumento de 813% entre 1967 e 1980 (ORTIZ: 1991, p.

127-128). A cidade como ambiente artificializado pela presença das mídias destaca a rádio

AM como elemento constituinte da paisagem da cidade, que amplia e conecta-a ao mundo,

em alguma medida, pelas músicas e notícias. Cidade, portanto, já não é mais apenas território

físico, mas também simbólico.

Os personagens de As fias de mamãe utilizam o aparelho de rádio como objeto

decorativo, de utilidade e entretenimento. A comunicação com parentes e amigos que estavam

nas hinterlândias e no interior do Estado era estabelecida por meio de cartas (via Correios) ou

por recados transmitidos em programas de rádio. Na peça, a fictícia Rádio Jacuba AM, com

alto índice de audiência no roteiro da peça, permitia que os personagens ouvissem novelas,

programas de músicas, notícias locais, do país e do mundo.

A rádio AM possui uma linguagem mais próxima dos processos cognitivos do ouvinte.

Os programas produzidos para rádio AM buscam maior intimidade com o ouvinte padrão. A

linguagem popular, como se diz no meio radiofônico, "fala mais perto do ouvido, para chegar

mais rápido ao coração". As emissoras no espectro AM também buscam a segmentação junto

ao público ouvinte. É notória a preocupação com a cumplicidade, participação de quem ouve

a rádio AM. Seja na notícia, na utilidade pública ou no entretenimento a linguagem do AM

tem sua linguagem própria - mais extensiva e explicativa.

O produtor de um programa no AM vai preocupar-se mais com o preenchimento do

tempo da programação com diálogos, conversas e a palavra do comunicador.

Sua tarefa é preencher um programa com 70% de comunicação e 30% com músicas, quando

não eliminar as musicas, no caso de uma rádio news (rádio de notícias)12

.

Nos anos 1990 existiam as seguintes emissoras AM em funcionamento em Cuiabá:

Nome ou Razão Social Nome fantasia Frequência Ind./Prefixo Onda Sociedade Rádio Vila Real Ltda Gazeta 590,0 Hz ZYI420 Média Fundação Bom Jesus de Cuiabá Difusora 630,0 Hz ZYI384 Média Rádio A Voz d’Oeste Ltda. Portal da Amazônia 1.160,0 Hz ZYI385 Média Rádio Cultura de Cuiabá Ltda. 710,0 Hz ZYI386 Média Rádio Cultura de Cuiabá Ltda. Rádio Brasil Tropical 5.015,0 Hz ZYF903 Tropical Rádio Portal da Amazônia Ltda. 4.775,0 Hz ZYF902 Tropical

Fonte: Perfil Socioeconômico de Cuiabá - 2002, Vol. II; Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento Urbano -

IPDU, p. 310.

12 Fonte: "Como Criar, Produzir e Apresentar no Rádio", Cyro César. Editora Ibrasa, 2000, grifo nosso.

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Pelas ondas das emissoras de rádio foi possível manter um canal de comunicação

massivo. As pessoas podiam falar e ouvir de tudo, de todos e para todos, principalmente os

da comunidade local.

Para o personagem Benedita Sampaio, o rádio era o bem necessário, para onde podia

mandar suas cartas a serem lidas, contendo notícias de como estavam os parentes e

conhecidos na cidade, mas também solicitava notícias das pessoas que estavam pelos

interiores do país. Aproveitava para pedir músicas de artistas que caiam no gosto popular.

As estações radiofônicas FM em Cuiabá faziam lançamentos musicais, programação

jovem e com inserções de faixas musicais nacionais e internacionais. Com sua linguagem

mais direta e objetiva, visava buscar o ouvinte pela instantaneidade. O perfil do ouvinte do

FM não é ligado a uma só emissora como no AM. O ouvinte do FM busca a música ao invés

do diálogo. É comum o ouvinte mudar de estação quando a emissora veicula seus comerciais

ou quando a locução se estende demais sobre a programação musical. Embora muitas

emissoras no FM procurem popularizar mais sua segmentação como no AM, dificilmente

conseguem estabelecer a mesma fidelidade do ouvinte com a rádio.

No FM também está presente a segmentação do ouvinte com a programação, ou seja,

uma emissora que toque somente samba terá a maioria de seus ouvintes adeptos ao gênero. O

FM apresenta ainda uma característica bem peculiar e distinta do AM: seus comunicadores

segmentam também a forma de apresentar os programas. Uma emissora que toca rock terá

seus comunicadores inflexionando uma locução dentro da linguagem do público ouvinte. Bem

como outra emissora que já seja adepta do gênero sertanejo, terá seus comunicadores

assumindo uma postura mais popular e regional.

Entre as emissoras existentes nos anos 1990 em Cuiabá estão:

Associação Beneficente Comunitária ABC - Shalon

Associação Comunitária Cuiabana para Cultura e Defesa Ambiental

Rádio Clube de Cuiabá

Rádio Cidade de Cuiabá

Rádio Cuiabana de Melodias

Rádio Real FM

Televisão Cidade Verde (Band FM)

Rádio Capital FM

Fundação Cantares de Salomão13

.

13 Fonte: Perfil Socioeconômico de Cuiabá - 2002, Vol. II; Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento Urbano -

IPDU.

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Para os personagens Benedita e Amazonina, o que as aproximava da realidade eram

as letras cantadas pelas vozes dos ídolos da indústria cultural nacional e internacional.

A música "internacional-romântica-lenta-traduzida" tinha, desde a década de 1960,

algumas canções-símbolo, como o conhecido "Tema de Lara" no filme Dr. Jivago, gerando o

sentimento de paixões quase impossíveis e relações complicadas. Nas décadas de 1980 a

1990, o gênero manteve-se no sistema midiático internacional através de intérpretes e grupos

como a boy band de artistas porto-riquenhos Menudo. Este gênero romântico tinha também os

representantes que o reproduziam no sistema midiático brasileiro: Diana, Perla, Giliard,

Alcione, Roberta Miranda, Wando, Waldick Soriano, Nelson Ned, Lindomar Castilho,

Claudia Barroso, Reginaldo Rossi, Aguinaldo Timóteo, Luiz Ayrão, Benito di Paula, Evaldo

Braga, Odair José, Roberto Carlos, Los Angeles, Pinduca, Agnaldo Timóteo, Paulo Sérgio, e

outros artistas.

A música internacional, de artistas com carreiras produzidas por gravadoras

estrangeiras, era ouvida pelos personagens de As fias de mamãe. As cenas em que Benedita e

Amazonina ouvem música internacional tornam-se indício de como a globalização da

economia nos remete à produção de vivências pelos produtos originados em momentos de

autoritarismo, repressão, discriminação aos que viviam à margem da ordem social

estabelecida pelo regime imposto na "Voz do Brasil".

Três aspectos chamam a atenção no universo deste grupo de cantores compositores.

Em primeiro lugar, a mensagem de suas canções: grande parte delas traz a denúncia do

autoritarismo e da segregação social existentes no cotidiano brasileiro. O segundo aspecto é a

relação entre esta produção musical e o momento histórico: a maioria de seus autores e

intérpretes alcança o auge do sucesso entre 1968 e 1978, período de vigência do Ato

Institucional N.º 5.

Entre outros estão Paulo Sergio, Luiz Ayrão, Waldik Soriano, Benito di Paula, Odair

José, proibidos e intimados pelos agentes da repressão do regime. E o terceiro aspecto, a

origem social do público e dos artistas: ambos oriundos dos baixos estratos da sociedade e

boa parte deles tendo vivenciado uma das grandes mazelas do nosso país, o trabalho infantil.

Trabalhos como: engraxate, faxineiro, capinador, servente de pedreiro, camelô, office-boy,

vendedor de picolé, jornaleiro e outras atividades (ARAÚJO: 2010, p. 12-13).

Esta geração de artistas procurou expressar em suas composições as questões que,

como pessoas do povo, tiveram que enfrentar. Produziram uma obra musical que, embora

considerada tosca, vulgar, ingênua e atrasada, constitui-se em um corpo documental de grande

importância, já que se refere a segmentos da população brasileira historicamente relegados ao

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silêncio. Em muitas das letras do repertorio "cafona" se revelam pungentes retratos da nossa

injusta realidade social.

A música popular brasileira, versão "brega" ou "cafona", que tece o imaginário de

cada localidade no país, inclusive Cuiabá, é ouvida por pobres, negros, homossexuais,

prostitutas, empregadas domésticas, analfabetos, moradores de rua, sem-terra, deficientes

físicos, imigrantes nordestinos, o público ouvinte e os próprios compositores.

Sendo uma vertente da música popular, a música mais banal, óbvia, direta, sentimental

e rotineira possível, que não foge ao uso sem criatividade de clichês musicais ou literários,

segundo Marcondes (1998), a música "brega" ou "cafona" começa a ser usada na década de

80, para designar um conceito de coisa barata, descuidada, mal feita.

Pensar sobre o ritmo brega é vê-lo como algo desfocado da música erudita, ou de um

gênero musical que seja privilegiado por uma camada "elitizada" da sociedade, no entanto,

dependendo da influência social dos intérpretes, uma música considerada brega ganha

"status" e atinge outro patamar social que não seja o próprio meio dito "inculto" de onde ela

se origina, como foi o caso de músicas de Vicente Celestino, Odair José e Fernando Mendes

que foram regravadas por Caetano Veloso.

No Brasil pós-tropicalista, o "chique" e o "cafona" se aproximaram várias vezes, se

tocaram, se misturaram e até mesmo se beijaram. "Os ricos nas horas mais dolorosas e

calorosas choram, sentem, gritam, são os mesmos comedores de feijão, com as mesmas dores

de barriga de qualquer pobre de barraco", segundo Waldik Soriano (ARAÚJO: 2010, p. 316).

Ouvir as melodias e letras marcantes, acompanhadas de instrumentos que

possibilitavam o acorde que chegava aos corações e mentes dos fãs. Os artistas ditos "bregas"

cantavam para os milhões de brasileiros anônimos que, forçados por um sistema político-

econômico excludente, deixavam suas raízes e buscavam melhores condições de vida na área

urbana-industrial. Restava aos que estavam no fluxo mobilizador, encontrar refúgio, moradia

no suburbio, favelas, grilos, viadutos e presídios. E para estes milhões de brasileiros, que

insistiram em conservar aquilo que os profissionais de uma memória coletiva nacional

(gravadoras e agentes comerciais de distribuição), decidiram esquecer os artistas que cantam

e tocam os flagrantes na vida econômica, social e cultural contemporânea. Salvo as raras

exceções de privilegiados.

A cada vez que uma pessoa pede na rádio ou coloca uma mídia para reproduzir as

músicas "bregas", gera um ato de resistência. Dão vida a uma memória que não encontra

outros canais de expressão e segue num esforço contra um silenciamento cultural no país.

Marginalizados ou não, as músicas "bregas" continuam sendo tocadas e ouvidas nas rádios

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AM, nos cabarés, nos barracos, no comércio, nas casas simples com cadeiras na calçada e nos

programas de TV que abrem espaço, por nostalgia ou interesse particular, para artistas irem ao

encontro de seus fãs.

Saudades de minha terra (Waldik Soriano), O homem da montanha (Benito di Paula),

Eu vim da roça (Fernando Mendes), Vou voltar pra minha terra (Paulo Sérgio), Não tenho

culpa de ser triste (Nelson Ned), Sentimental demais (Altemar Dutra), Fuscão preto (Almir

Rogério), Oh meu amado (Diana), Não se vá (Jane e Herondi), Feiticeira (Carlos Alexandre),

Garçom (Reginaldo Rossi), Carimbó do macaco (Pinduca), Horóscopo e Quero você (Carlos

Santos), A moça (Sidney Magal), Melô do Piripiri (Gretchen), Pequenina (Perla), Fogo e

paixão (Wando), If you're not here (Menudo), A mulher em mim (Roberta Miranda),

rasqueados e lambadões fazem da trilha sonora para a peça, indicadas no texto, músicas como

um modo de dizer algo. E foi um grande canal de expressão, de ampla repercussão na camada

da população brasileira que não ficou calada nos momentos precários do país.

Os personagens, ao se utilizarem dos recursos radiofônicos para atender necessidades

de comunicação e lazer (ao ouvir músicas e adquirirem os long players (LP's), estabelecem

relações com a indústria cultural nacional e internacional. Elas expõem um modo cultural de

se relacionar com o espaço cênico e com outras pessoas, num processo dinâmico de

representação e afirmação de sua condição social, a partir de como se descreve sua realidade

cultural.

A ação do disc jokey (DJ), evocada por Benedita em As fias de Mamãe, põe em cena o

prazer que tem sido inculcado nos indivíduos que agem como consumidores modernos

encontrados na tensão entre nostalgia e fantasia, em que o presente é representado como se

fosse já passado. Esta inculcação do prazer do efêmero é o que disciplina o consumidor

moderno dos LP's.

Em Cuiabá, nos anos 1990, podia-se encontrar, no Centro da cidade, lojas de venda de

long plays, porém, já não eram mais especializadas no produto. Naquela década, os LP's já

dividiam o espaço nas prateleiras com os CD's, aparelhos eletrônicos e revistas diversas.

Muitos LP's tiveram, como destino, os sebos e as bancas de revistas para serem vendidos aos

que ainda se interessavam por eles, agora considerados objetos antigos. A cidade cresceu e os

processos econômicos, tecnológicos, intercambiados pela globalização, interferiram na

dinâmica do comércio de discos.

São as mediações que atribuem materialidade institucional e densidade cultural aos

meios e ao processo de comunicação, vinculam pessoas e geram práticas sociais. São práticas

de produção de sentidos. A resistência, a nostalgia em As fias de mamãe, aparece como uma

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invenção localizada nos costumes agora modernos da cidade, mostrando-se para a produção

real de um desejo, os personagens criam modos na ficção como memória.

A reprodução das músicas divulgadas pela indústria cultural era feita pela velha vitrola

(toca discos) que roda os discos de vinil, incluindo os compactos, adquiridos pela família,

para fazer a trilha sonora do momento de uso. A comodidade, o consumo e o "status" que um

aparelho eletrônico proporcionava na casa dos personagens diz respeito a múltiplas formas de

previsão de bens, serviços e as diferentes formas de acesso a esses mesmos bens e serviços

escritos nas cenas da peça.

Os personagens, em um momento, usufruem da vitrola tocando um disco para

relembrar momentos do passado e vislumbrar o que chega de fora como novidade ao local.

Em outros momentos usufruem da mesma novidade: ouvir música, nacional ou internacional,

para dançar, realizar festas, fazer faxinas.

Entre tantos exemplos de consumo de produtos pelos personagens, gerados pela

indústria cultural, que poderíamos discorrer, elegemos o fenômeno do grupo musical Menudo.

Quando viraram fenômeno midiático e musical no final dos anos 70, os meninos do Menudo

tinham menos de 15 anos e nem sonhavam em se tornar um sucesso quase que instantâneo.

Nascido em Porto Rico, o grupo se tornou precursor das boy bands na América Latina.

Em 1984, os garotos-fenômenos estouraram nas paradas mundiais com o hit "Não se

Reprima". No Brasil, uma legião de fãs acompanhou a passagem da banda pelo país no

mesmo ano. Era o grupo musical de maior visibilidade na mídia brasileira. Os garotos porto-

riquenhos apareciam a maior parte do tempo em programas televisivos, de rádios, revistas,

jornais, enfim toda a imprensa específica para celebridades estava voltada para o fenômeno

artístico Menudo. Naquela época, o Menudo chegava a fechar os mais caros hotéis no país

apenas para seu staff. Os shows só podiam ser realizados nos maiores estádios de futebol das

principais cidades brasileiras, devido ao imenso tamanho do público. Os produtos como

camisetas, bottons, álbuns, pôsteres etc, vendiam tanto que o grupo se sustentaria apenas com

a venda destes, sem mencionar os shows e discos. Cantavam músicas em espanhol, inglês ou

português, como a romântica "If you're not here" ou então as dançantes como a inesquecível

"Não se reprima" com sua coreografia. No decorrer de sua história, a banda, que se

enfraqueceu mercadologicamente e chegou ao fim nos anos 1990, vendeu mais de 20 milhões

de cópias de seus 32 álbuns14

.

14 Fonte: http://revistacrescer.globo.com/Revista/Crescer/0,,ERT29647-15566,00.html, acesso em 16/08/2012.

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Na experiência das personagens Benedita e Amazonina pela cidade ou na hinterlândia,

a música "internacional-romântica-lenta-traduzida" apreciada com o consumo de LP's de

artistas estrangeiros e de outras regiões do país desconstrói o discurso elitista pela

marginalização cultural. O gosto pela produção de artistas estrangeiros e nacionais, efeito

resultante da globalização dos mercados consumidores, ultrapassa as ondas do rádio, enquanto

veículo de difusão em massa, e influencia não só comportamentos culturais e de consumo,

mas também a organização social e familiar.

O impacto das novas tecnologias midiáticas propicia uma difusão extremamente ágil.

O modo de aprender, divertir-se e trabalhar renova-se conforme as transformações do próprio

capitalismo pressiona por mudanças. Entre estas mudanças está a produção de interfaces mais

amigáveis da tecnologia que se adapta à demanda e limitações dos públicos consumidores. O

cotidiano, enfim, ganha em praticidade. Para que essa praticidade se concretizasse, houve

mudanças substanciais nas formas da linguagem, na leitura das linguagens e na concepção das

relações sociais.

As ideias que transitam em espaços transnacionais geram comportamentos coletivos, e

podem ser ameaçadoras, na medida em que os meios de comunicação usam a sedução, a

linguagem do entretenimento e da informação, sem espaço aéreo delimitado.

Metaforicamente, as antenas parabólicas e os satélites funcionam como dispositivos de

vigilância na contemporaneidade.

Os deslocamentos, a estimulação infinita das necessidades e a instantaneidade dos

prazeres, característicos da pós-modernidade, levaram a uma nova configuração das

sociabilidades, determinadas pela mediação dos veículos de comunicação. A comunicação é

um produto da cultura e a cultura é a lente pela qual o homem vê o mundo, busca suas

satisfações, faz suas manifestações e interferências.

Na Modernidade, caracterizada pela expansão do consumo em escala mundial, o

cidadão urbano tende a estar quase sempre em trânsito e conectado a algum suporte

eletrônico, que lhe permita estabelecer contatos a longa distância. A rede de sociabilidade se

desenvolve cada vez menos nas relações interpessoais, e mais nas relações mediadas por uma

série de dispositivos tecnológicos que desassocia o indivíduo do ambiente ao seu entorno.

A constituição da realidade social pela mediação e pelo entrecruzamento de

informações ressignifica os laços sociais antes mantidos entre as populações pelo contato da

vizinhança nos bairros, pela proximidade dentro da escola ou pelo convívio para o lazer e o

consumo.

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Ao lidar com o passado, o efeito de uma herança em tempo psicológico, capaz de

nortear o presente, abriga tradições, hábitos e modos peculiares, que são reorganizadas nas

fronteiras da sociedade moderna pelo fato de elas não emergirem mais de uma forma pura e

unitária. Ressurgem mescladas com outras e desterritorializadas numa atmosfera de

pluralidade, que Néstor Garcia Canclini (1995), designa de hibridismo:

As hibridações [...] nos levam a concluir que hoje todas as culturas são de

fronteira. Todas as artes se desenvolvem em relação com outras artes; o artesanato migra do campo para a cidade; os filmes, os vídeos e as canções

que narram acontecimentos de um povo são intercambiados com outros.

Assim, as culturas perdem a relação exclusiva com seu território, mas

ganham em comunicação e conhecimento (p. 348).

Com a desterritorialização do mercado de trabalho e o desenvolvimento da indústria

cultural, a reflexividade acentua-se com o aparecimento de uma nova atmosfera cultural em

que circulam, desencaixados, conteúdos simbólicos e tradições gestados em diferentes regiões

do planeta. Esse é o contexto do processo que Canclini (1997), denomina de

"descolecionamento":

A agonia das coleções é o sintoma mais claro de como se desvanecem as

classificações que distinguiam o culto do popular e ambos do massivo. As culturas já não se agrupam em grupos fixos e estáveis e portanto desaparece

a possibilidade de ser culto conhecendo o repertório das grandes obras, ou

ser popular porque se domina o sentido dos objetos e mensagens produzidos

por uma comunidade mais ou menos fechada (uma etnia, um bairro, uma classe). Agora essas coleções renovam sua composição e sua hierarquia com

as modas, entrecruzam-se o tempo todo, e, ainda por cima, cada usuário

pode fazer a sua própria coleção. As tecnologias de reprodução permitem a cada um montar em sua casa um repertório de discos e fitas que combinam o

culto com o popular, incluindo aqueles que já fazem isto na estrutura de suas

obras (CANCLINI: 1997, p. 304).

O tempo presente, além de ser contínuo e perpétuo, também parece ser um tempo em

constante suspensão e dilatação. O tempo dentro de uma obra não obedece a um tempo

cronológico, mas um tempo vindo do fluxo e da oscilação da própria vida.

É o próprio conceito de contemporâneo, cujas memórias não se foram totalmente e o

futuro ainda não se instalou completamente que, segundo Agamben (2009), "fraturou as

vértebras de seu tempo (ou, ainda, quem percebeu a falha ou o ponto de quebra), ele faz dessa

fratura o lugar de um compromisso e de um encontro entre os tempos e as gerações" (p. 71). É

no espaço dessa falha que o encontro dos tempos e das gerações deve acontecer. O

contemporâneo, como registro na cena teatral, poderia ser reconhecido como um tempo

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constituído de "simulacros" constantes, onde, com frequência, ficção e realidade encontram-se

imbricadas, sem os contornos nítidos ou fronteiras aparentes.

O senso de pertencimento e identidade, organizado cada vez menos por lealdades

locais ou nacionais e mais pela participação em comunidades transnacionais ou

desterritorializadas de consumidores globalizados, sugere que a ideia de brasilidade é

construída pelo imaginário da legitimação dos "privilégios de classes" que apropriam-se, ou

não, do capital cultural e econômico da sociedade contemporânea.

Na contemporaneidade apresentam-se novas formas de pertencimento, em que o

território, como espaço físico de convívio, cada vez tem menos importância, e em que a

tecnologia e os meios de comunicação reorganizam o social, transformando-se na principal

argamassa para as cartografias pós-nacionais.

Os meios de comunicação assumem a tarefa de explicar o mundo para o cidadão,

telespectador comum, de prestar serviços, de produzir um modo de acesso ao poder público e

aos bens de consumo, de garantir-lhe informação e diversão. A influência dos meios de

comunicação no cotidiano das pessoas, ao pautar o tema das conversas, influenciar a decisão

sobre uma compra ou um voto e construir os desejos que seduzem corações e mentes de

homens e mulheres em todo o país são percebidos em As fias de mamãe.

Começa a tocar o hino do Divino Espírito Santo e elas mexem o corpo no

ritmo. Tentam ver pela janela o que acontece lá fora. DITA - (com inveja) Deve ser Dona Fia com a fulia da lavage do Santo...

MAZO - Mas num são nem meia-noite ainda! Será que vai ter a fulia do

refrexo?

DITA - Fulia de refrexo?

O que se carrega, de um passado mais ou menos recente, no texto da peça As fias de

mamãe, são os marcadores simbólicos de uma cidade que insiste e resiste em constituir o

presente. Procissão e festa de santo, benção de benzedeira, bolicho com seus doces,

armarinhos, brincadeiras infantis (amarelinha, elástico, pique-latinha, cobra-cega e atirar com

funda), criação de cachorro vira-lata e galinha caipira no quintal, velório na sala da residência

sob doses de licor de pequi, enterro em rede em cova rasa no cemitério possível, uso de bobes

no cabelo, apelidos e personalidades de reconhecimento social (Zaramela, Caititu, Maria

Taquara, Zé Boloflô, outros), ralar pau de guaraná. Estes são hábitos de um certo modo de

vida que se instituem como referências textuais pelas memórias trazidas para o presente e

simbólicas na peça teatral imersa nas lidas locais com a globalização. Tudo que é

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evidentemente local, regional ou nacional revela-se na medida em que se enreda na dinâmica

global.

A globalização, em seus meios de inclusão, possibilita a circulação do velho e do novo

para o contato com o indivíduo. A territorialização e a desterritorialização acontecem numa

interlocução de pertencimento e de tolerância. Tudo se desloca pelo espaço, atravessa a

duração, se revela flutuante, itinerante, volante. O teatro, neste caso, dentro do gênero

comédia, torna-se constituinte de uma imagem da cidade, capaz de algo raro, zombar de si

mesma, confundindo os incautos, como sendo falta de autoestima, porém, reafirma seu

pertencimento nesse mercado de coisas, gentes e ideias, bem como de realizações,

possibilidades e ilusões, compreendendo também homogeneidades e diversidades,

obsolescências e novidades.

O teatro em suas relações com o campo do desejo, sonho, planos e realizações

(consumo) na perspectiva crítica, porém, categoricamente faz seu papel de arte,

entretenimento e instrumento comunicacional sobre o mundo real e/ou fictício. A dinâmica da

cultura percebe-se proposital, acendendo a cada sombra, o foco para a cultura

contemporânea.

Foto 17 - Personagens Amazonina Bocaiuva (Ator: Joilson Francisco) e Benedita Sampaio (Ator: Carlos Ferreira) após apresentação de performance na disciplina de

Teoria da Comunicação do Curso de Graduação em Comunicação Social no Instituto

de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso (IL/UFMT), em julho/2013.

Foto/Selfie: J. Francon.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

DITA - [...] Uai é! Num me fala! Num sabia que Jorgete tinha morrido!

Morreu de que? Cirrose? Mas dgente, num dá pra acreditar. Jorgete era mais

nova que nheu... Pra ocês vê, o tempo não espera. Espia aí, o tempo passo e

nem me dei conta que já tá amanheceno e Dita.... O quê? Dita num me falou nada! Palhaçada! Dita nem pra me avisar que já tinha anunciado que mamãe

vai ser enterrada agora de manhãos. Num deu tempo de nheu arrumar nada.

Espia aqui minha sombranceia! Minha cara tá iguá mato. (gritando com Dita) Dita, cadê ocê bandida?

Compreendemos, na medida em que se desenvolvia o conhecimento sobre a

urbanização da cidade de Cuiabá, a fragmentação dos lugares da Região Metropolitana,

representada no texto de uma peça de teatro como novos modos de vida urbana. A peça traz a

experiência urbana dos personagens diante de um modo de viver, enquanto há o esgarçamento

do lugar como unidade de sociabilidade imediata.

As práticas sociais são práticas de produção de sentido. O linguajar cuiabano,

patrimônio imaterial do Mato Grosso, sofreu choques culturais com a democratização do rádio e

da televisão, sendo percebida e refletida na/pela elite "contaminada" pelas artes, em especial,

pelo teatro.

O teatro (peça) enquanto forma de cultura traduziu um modo de refletir uma

comunidade. A cidade de Cuiabá foi desdobrada, atravessada pelo autor, como forma de

refletir experiências de uma determinada época, em uma história de ficção.

Na esperança de solucionar os dramas da vida materialmente precária, os personagens

seguem os enfrentamentos da vida compartilhada, de contato, perante os transbordamentos

entre o vivido e o ficcionado. Por meio da peça, olha-se a sociedade e visualiza-se as gerações

que a cada instante percebem as possíveis mudanças ao longo do tempo.

A herança que os personagens Amazonina Bocaiuva e Benedita Sampaio receberam

de sua mãe poderia findar-se na dimensão da subjetividade material e imaterial das coisas. Os

valores são outros para um determinado momento da história humana. O significado de uma

imagem de santo vai além do valor enquanto objeto decorativo. Adquiri o valor sentimental

que não é mensurado em moeda de troca/compra. A singularidade imbricada naquele contexto

adquire dimensão que o dinheiro até compra, mas não paga o real valor que fundamente a

disputa para a guarda do mesmo santo por um dos personagens da peça As fias de mamãe. O

valor está no pertencimento e na memória que a imagem do santo representa para os

personagens.

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A construção das relações afetivas remonta à ideia de pertencimento e de direito. A

casa onde se desenvolve boa parte do roteiro de As fias de mamãe apresenta padrão

arquitetônico de outra época, já substituída pelas novas formas de constituir uma casa hoje

com sala, quarto e banheiro interno (estilo suíte). A casa dos personagens é composta de

móveis velhos. Os alimentos são adquiridos com dinheiro ganho pela força de trabalho ou

ganho pela "caridade/solidariedade" de outras pessoas. A situação era motivo para mudar de

vida. A ideia era trocar a casa atual por outra, em outro lugar, para gerar novos tempos. As

lembranças do autor são ressignificadas na constituição cênica dos dois personagens

femininos. A realidade urbana de Cuiabá é reconstruída em cada cena em que Benedita

Sampaio e Amazonina Bocaiuva enfrentam os conflitos que vivem no espaço urbano.

As transformações são percebidas nas diferentes narrativas encontradas no cotidiano

na cidade de Cuiabá e no texto da peça As fias de mamãe. Até mesmo quando não se percebe

que o tempo linear passou e o tempo psicológico não percebeu. Não se prender a um tempo

pode ser um exercício de capacidade de oscilar entre passado, presente e futuro e,

principalmente, experienciar intensamente o que se vive no instante presente. É ser

participativo, agente construtor de uma realidade.

A construção de significado do urbano pode ser uma maneira enriquecedora de

alcançar uma aproximação mais precisa para a compreensão da cidade. Considerando os

diferentes tempos e locais, a cidade induz a comportamentos e maneiras de pensar que

extrapolam o momento histórico específico que os gerou, e passam a povoar um imaginário

que constitui os signos urbanos.

Transformar as "coisas", acreditando que há uma "saída" para os dramas da vida, traz

a experiência com a teatralidade e as dimensões simbólicas que o cotidiano urbano efêmero

possa suscitar. O fator dinheiro implica em realizações que, por vezes, satisfaz as complexas

relações sociais que permeiam a sociedade contemporânea. Manter-se dignamente no sistema

urbano e capitalista, inclui ou exclui a possibilidade de ser indivíduo ou coletivo, privado ou

público. Parece-nos que é necessário viver intensamente cada segundo, sem pensar tanto no

futuro, já que, o futuro é imaginado e construído pelo presente. A experiência de vida

comunica os atos e as consequências.

Os processos de consumo constituem uma dinâmica que nem todos os seres humanos

encaram com pacificidade diante da globalização proferida pelos pensadores da economia e

das relações internacionais. O fato é que somos cidadãos do mundo e nele agimos sob os

reflexos que a vida nos proporciona. Real ou ficcionado, As fias de mamãe é um modo como a

cidade é percebida, vivida e também pensada. A própria experiência do viver em Cuiabá

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torna-se reflexo de uma condição e de um espaço para novas criações cênicas. Conhecer e

estranhar talvez sejam modos de aferição da potência humana em busca de uma saudável

racionalidade no mercado globalizado.

Ao pensarmos sobre uma dramaturgia, não a partir da cidade, mas com a cidade,

imagina-se uma ação que dialoga com os vínculos produzidos entre os indivíduos e um dado

espaço urbano. Talvez o conceito semiótico de cultura de Geertz (2008), que diz ser a cultura

uma "teia de significados" tecida pelo próprio homem, auxilie na percepção do espaço urbano

como um produto dos vínculos depositados pelos praticantes de um referido lugar no próprio.

Então, o teatro feito em espaço urbano e na perspectiva dos conflitos sociais emerge

num emaranhado de vínculos, que portam significados próprios, os quais estão numa

dinâmica conflituosa de conquista de território. Esse espaço de atuação que o Teatro se

propõe ocupar seria como um rio de vínculos, de significados que têm fluxo direcionado para

a foz, mas formado por pessoas com interesses distintos e objetivos diferentes.

A criatividade na arte do teatro e nas formas híbridas existentes no cotidiano da cidade

elevam a força das aparências e promove as combinações estranhas repensando o possível

existir. É preciso pensar e agir considerando o lugar e a produção cultural diversa na cidade.

Homogeneizar é um equívoco.

Ao conhecer e respeitar o modo de vida de diferentes grupos sociais, em diversos

tempos e espaços, reconhecendo semelhanças e diferenças entre eles, o futuro aparece-nos

através do passado, que não deve ser cultuado como mera recordação e sim ser usado para o

crescimento no presente. Não significa ser conservador, nem ficar preso ao passado. Convém

considerar que a legitimação do conhecimento de raízes promove sabedorias que elucidam

questões, dúvidas e confrontações contemporâneas. Busca-se uma consciência coletiva sobre

as reflexões individuais sobre a diversidade e a pluralidade existente no cotidiano.

A força da "cultura global" reside no fato de que existe todo um aparato midiático-

discursivo capaz de penetrar nas mais resistentes comunidades e infiltrar novos elementos de

forma massiva e repetitiva no cotidiano das pessoas até o ponto em que o global pareça tão

natural a essas pessoas quanto o local. Isso não significa, porém, que o global substitua por

completo o local, ou o torne totalmente obsoleto a ponto de as pessoas desejarem substituí-lo

pela novidade global, elaborando uma nova identidade cultural. Uma cultura sem memória

não valida a produção existente em um determinado local.

Apesar da base tecnológica, da rapidez das trocas comerciais e da fluidez com que

elementos da cultura hegemônica cruzam o globo, o local ainda resiste tanto em aspectos

econômicos quanto culturais. O global coloca-se como mais uma forma de cultura à

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disposição das pessoas, não como a forma de cultura, a única disponível porque suplantou as

tradições locais, como se erradicasse todas as influências ancestrais. Se faz necessário filtrar o

que de bom a globalização traz pro local e o que de "mau" deve-se temporariamente ser

apenas observado, não incorporado.

O desenvolvimento urbano sustentável das aglomerações verticais e horizontais nas

cidades médias, decorrentes das conurbações, buscam uma funcionalidade com proporções de

um futuro próximo e que podem estabelecer relações propriamente ditas metropolitanas. Uma

multiplicidade de recursos voltados à política pública de planejamento da cidade criam

relação com a organização da vida comunitária que envolve o bem-estar de todos os cidadãos.

Por sua via, a cultura, o desenvolvimento econômico e a infraestrutura da capital Cuiabá

acontece em escalas de tempo e espaço que a tecnologia, informação e tradição almejam

resultados práticos e eficientes.

“Cidade e Experiência Urbana na comédia As Fias de Mamãe” aponta a dinâmica que

solicita estar atento ao desconhecido que nos bate à porta, como sugere a perspectiva proposta

pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da UFMT, mas

considerando que, por vezes, este desconhecido somos nós mesmos que demandamos uma

memória mínima, de preferências as melhores memórias que buscamos num passado

construído historicamente, e demandamos um futuro, por mais incerto que seja, assim como

poderia ser a experiência urbana para Benedita Sampaio e Amazonina Bocaiuva diante das

promessas da vida moderna que insinuava no viver a cidade.

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GLOSSÁRIO

Agora quando! - Nunca.

Assombrano - Assombrado.

Baleia - Ônibus coletivo.

Bambolê - Brinquedo; chinelo.

Bamo - Vamos.

Banzé - Confusão.

Bocó - Ânus.

Bolicho (bolitcho) - Mercearia; venda; mini mercado.

Caçamba (tombe(i)ra) - Caminhão basculante.

Cânháem! - Confuso; dor.

Carniça - Putrefação

Cesso - Ânus.

Cordêro, ocê! - Incentivador; bajulador; sem opinião própria.

Corna - Feminino de corno; atrevida.

Cotchá - Relação sexual.

De japa - Brinde; sem custo.

Digoreste - Muito bom.

Djira - Louco.

Ê aaah! - Devagar aí, não concordo; afirmação de opinião.

Empencado - Cheio; dependurado; penca de indivíduos.

Estilingue - Badogue, badoque, bodoque, funda.

Fiadaputa - Filho de prostituta.

Guri - Criança.

Hoster - Promoter.

Mitcharia - De custo baixo; de pouca proporção.

Moage - Frescura; pirraça; remorso.

Nhô - Senhor.

Nó de cachorro - Raiz do vegetal "Heteropteris aphrodisiaca" usada como

estimulante geral.

Polidance - Exercício sensual feito em uma barra de ferro na vertical.

Precata - Sandália; chinelo.

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Que que esse! - Admiração; O que é isso?

Rapariga - Menina nova; Derivação para prostituta.

Roça - Cultura de plantação familiar e subsistência; zona rural; campo.

Tcha por Deus! - Admiração; Lamentação; Jamais; Por Deus.

Tcharrete (Charrete) - Veículo normalmente puxado por animais (cavalo).

Tchialá! - Olhar lá.

Terreiro - Quintal; terreno, limpo, sem construção e em chão batido.

Vôte! - Expressão de sentimento de admiração ou recusa.

Xá - Sua.

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ANEXOS

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AS FIAS DE MAMÃE ...agora quando!

Textos Originais – Joilson Francisco da Conceição (Registro 357.976, livro 661, folha 136,

Biblioteca Nacional / Ministério da Cultura / Escritório de Direitos Autorais)

O texto está apresentado com aplicações do linguajar cuiabano. Comédia.

CENA 01

A Mãe morreu. Um programa de rádio AM rola na maior animação.

RÁDIO – músicas de Diana, Wando, Pinduca, Menudo, Ritchy, Tema de Lara, Roberta

Miranda, Rasqueados, outras. TEXTO DO LOCUTOR: - É, esse é o seu programa favorito

que está no ar com a voz mais bonita de Mato Grosso. Alô amigos do rádio! (pausa) Atenção

senhores ouvintes! Vem aí a nossa sessão de cartinhas, avisos e recados. (pausa) Alô meu

povo da Figueira, Rosário Oeste! Nete manda avisa mana Louraci que está indo ela, Baxinha

e Prefeita. Ela pede pra Rosino ir buscar na porteira. Atenção Aparecida da cidade baixa e

Cumpadre Tonho, Cipriana manda avisá que Agustinho tá assim, assim, assim.... Alô

Amazonina do Acorizal. Sua irmã Benedita manda avisá que você deve vir para Cuiabá. Sua

mãe não passa nada bem. Pede ainda para você trazer a sandália e o cinto de tala larga que ela

esqueceu aí. Ahn! E diz que o cal que você mandou não deu pra pintura da casa. (pausa)

Mande sua cartinha que nós vamos ler aqui durante a nossa programação. (pausa) Vamos

sorteá mais uma cadeira de roda, um óculos e uma cartinha... Ah não gente! Essa Benedita

não tem nada pra fazer? Outra carta dela. - “Quero pedir uma música romantica internacional

lenta traduzida. Ofereço para todos os ouvintes e para os moços do 16 BC.” (MÚSICA)

Agora é hora de reflexão. Você minha amiga, é você mesma sua anta! Você que está triste,

desanimada, sem forças, não se desespere. Olhe para os lados e veja que por mais sofrida seja

sua vida tem sempre alguém próximo pior que você e ainda sorri. A vida continua. Olhe

quanta coisa para fazer. Então, sua lerda, vai trabalhar, vai lavar vasilha, larga de preguiça, vai

carpir quintal....(rádio começa a chiar e sai fora do ar quando Benedita entra aos berros,

muito emocionada e melodramática).

Benedita Sampaio entra por entre a platéia, recepcionando-a para o velório, chorando

escandalosamente, reparando os sentimentos e as aparências dos convidados. Fala sobre a

morte de sua mãe e da vida alheia. Após alguns comentários Dita resolve ir ver a mãe. Em

seguida entra Amazonina Bocaiuva fazendo algazarra com as gurizadas que estão no quintal

sem saber da morte de sua mãe.

AMAZONINA- (grita) Benedita! Ô Dita, catchorra! Venha aqui vê como tá empencado de

gurizada no pé de cadjá manga. Ocê num cuida do terreiro não bandida? Desce daí guri!

Quiem que mandô ocê subi aí? Bamo, pode descê... Aí! Pegano manga tudo verde. Que de

vez que nada! Tá tudo verdolengo.Xaí essa rapariga fazeno polidance no pé de goiabeira,

quebrano tudo os broto! Fio de quem que ocê é? Ahn, de seu Manoel Germano? E o que que

ocê tá fazeno uma hora desse no quintal aeio que num ta num banco de escola? Bamo, já falei

pro cês descê. Desceeeee!!!! Ô Ditaaaa!! Cadê ocê bandida (entrando no palco) Vôte!Virgem

Maria valha-me Deus... Aqui em casa tá pareceno estalagem do Ponto Azul, tcheio de gente

esperano ônibus, vôte!

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BENEDITA- É, e djá tava na hora do cê tchegá! Num me diga que ocê tava vendeno doce na

ferinha da mandjioca?

MAZO- Craro! Defendeno esse... (gesticula com os dedos, $). Num vai me dá um abraço?

(abrançam-se) Como que vai xô tchêro?

DITA- Melhor que xás perebas!

MAZO- (se afasta) Vôte! Num perde a velocidade da língua né cobra!

DITA- Iscuta, e como que ocê tchegô até aqui? De baleia?

MAZO- De baleia? Rhum! Se num fosse xô Alis, nheu tava quarano lá no ponto.

DITA- Então, ele tava de tombera?

MAZO- Tombera? Basculante? Caçamba? Tava cuma Variante que mais parecia uma lata

véio. Veio pulano de lá até aqui. Eu vim socano minha bunda naquele banco duro. Mas

pulava, pulava, pulava... pulô tanto que até me deu câimbra no cesso, vôte! Cruz credo.

(pausa rápida) Mas me fala uma coisa... O que que foi que ocê tá quéssa cara, Dita?

DITA- Pus num era pra está, bandida? Mamãe djá tá até fedeno!

MAZO- Também ocê não dá bãinho de aceio nela!

DITA- Quando boa, nheu dava.

MAZO- (Mazonina leva um susto e triste quereno chorar, pergunta) Dita... ocê tá quereno me

falá... Ocê ta quereno me dizê... ocê tá quereno me excramá... que mamãe...mamãe...mamãe

quebrou o braço de novo?

DITA- (indignada) Quebrou o braço? Pus dessa vez ela foi mais longe. Quebrou até o meu

encanto.

MAZO- Quero vê mamãe! Onde está mamãe que nheu ainda num vi cara dele? A culpa é sua,

catchorra! Quero ver mamãe...

DITA- Vai lá vê bandida! Mamãe tá iguá petche seco, istirada na rede.

MAZO- (sem compreender) Istirada na rede!? Acorda mamãe que nheu já tcheguei. Bamo,

levanta... ispia que nheu truce pra senhora... bamo levanta... hum, mas mamãe tá priguiçosa.

Durmino até uma hora desse. Venha vê que nheu truce.... ispia aqui mamãe... rapadura,

banana da terra no ponto pra fazê aquela farofa...maxixe, quiabo, mandjioca, pipino,

abobrinha, pimenta dedo de moça... Bamo mamãe, levanta! E é por sua causa que...

(estranhando) eh, êca, Dita! Ocê tá pareceno louva-Deus. Que isso? Um lado com bobes,

outro lado sem. Agora é moda em Cuiabá? É fleshon wik esse barará cô bobs? E até hodje ocê

num trocô essa precata Benedita? Ah, num vai me dizê que hodje tem festa lá no (dezessês)

quartel 16 BC?

DITA- Pois é bandida! Essa que é a minha raiva! Nheu tava lá no salão – salão porra

nenhuma! Lá só tem um espelho e uma escovinha! Nheu tava lá fazeno mi’a unha quando

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tchegô Naná de Grorinha até de nariz aberto pra me dá o recado que mamãe tava embarca,

num embarca pro paraíso.

MAZO- (interrompendo) –... Tá! Nheu sei onde que mamãe vai pará.

DITA- Tá. Aí, nheu toquei de lá pra cá do djeito que eu tava, peguei a monareta de Lucrecia,

e vim vuano pensano que fosse mentira, porque mamãe tem mania de mandá tchamá a gente

quando a gente tá no salão fazeno unha, só pra vir lavá vazilha. Menina, quando nheu

tcheguei aqui e me deparei com a centenária estirada lá na rede, mas nheu caí na gargalhada!

(as duas riem).

MAZO- Dita, não brinca cu’isso. Respeita xá mãe, catchorra.

DITA- Ah, mas ocê num sabe como que tava a cara dela! Iguá de Gigi loco (imita).

MAZO- Pera ê Dita! Ocê tá quereno me falá... Ocê tá quereno me dizê... Ocê tá quereno me

excramá... que mamãe...mamãe...mamãe morreu?

DITA- Ocê acha que mamãe tá daquele jeito por quê? Porque saiu pra bebê pinga no bar de

Edgare com Dona Tereza, no verdão? Não! Nós é que vamos beber mamãe.

MAZO- Num creditooooo! Mamãe morreuuuu! Oooooooh! Mamãezinha querida, amo-te,

adoro-te, idolatro-te, rrrraiiiinha do lar (vai pra rede e interrompe bruscamente o choro) Dita,

e quem qui vistiu mamãe e arrumô ela na rede?

DITA- Nheu que num fui! Vôte! Num tive corage! Pedi pra Lurdão e pra Dona Eva do Xo

Plínio vir adjeitá mamãe. Porque ocê sabe né que depois da morte de papai nheu fiquei

trarmatizada.

MAZO- É mesmo né Dita! Mas me conta menina, me conta como que tudo isso aconteceu.

Me conta essa história direito, porque mamãe era forte igual jatobá, num dá pra acreditar!

DITA- Amazônina, segura que lá vem chumbo!

MAZO – Ah, docê só pode espera chumbo né canhão!

DITA - Mamãe ocê sabe como que é desesperada! Torô lá pro LBA assim que ficô sabeno

que tava distribuino cesta básica (emocionada). Pus intão! Mamãe com aquela carinha de

macaca sagui entrou na fila com sua sacolinha recicrada e aí começô a distribuição. Aí ocê djá

deve imaginá o empurra-empurra que formo! Era soco, cotovelada, jueiada, ponta pé e mamãe

ainda tentava exercer seus direitos e gritava - “cambada de raparigada, essa é a fila dos idoso!

Respeita meus anus de vida...” - Nessa, ela num viu a hora que passaram uma rastera no

mamãe, e a centenária caiu e engasgou co’a dentadura. Isso foi o que Joaquim Vermelho me

contô. (bruscamente irada) Mas o que me deu mas raiva foi que mamãe tinha que morrê logo

hodje, no dia da festa do quartel, no dia da festa do 16 BC, que raiva! Um monte de

soldadinho de chumbo tudo me esperano... Eu tô com ira da cara de mamãe!

MAZO- É a vida que é bonita, que é bonita e é bonita...

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DITA- ...vivêeee e num ter a vergonha de ser feliz, cantar e cantar e cantar...(Amazonina dá

tapa na cabeça de Dita). Ai! Meu bobs!

MAZO- Respeita chá mãe cachorrinha! (emocionada) Ô mamãezinha querida... Ô Dita, espia

cara de mamãe, tá iguá petxe liso fora dágua. Mamãe, para de oiá pra mim com esse oio de

vaca parida... Xia aí Dita, mamãe tá até rino pra mim.

DITA- (moralista) Respeita xá mãe Mazonina! Mamãe num tá rino pro cê! É a dentadura dela

que tá saino da boca. Ocê num tem vergonha na xá cara, não?

MAZO- Ocê que devia tê vergonha na xá cara! Onde já se viu velá mamãe na rede! O povo tá

tudo aqui oiano. Minha cara tá desse tamanho! Amanhã....

DITA- (descontrolada) ...aaaaaaaaaah pa- pa-pa-ra- pa-pa pa-pa-ra pa ra tim bum-BUM-

BUM! A minha já estorô! Ê-á! O que que ocê queria que nheu fizesse? Nós num temo dinhero

nem prá comprá comida, quanto mas pra contratá funerária! E além do mássssssss, mamãe vai

sê interrada lá no SUCURI.

MAZO- SU-CU-RI Dita? Eu tenho ira da cara daquela gente!

DITA- Ocê tem ira da cara de Tchulipa que robô xô namorado! Pronto, falei.

MAZO- Ah é! Já que é pra lavá ropa sujo, bamo começá por esse ismarte indecente que ocê tá

usano!

DITA- E o batom que ocê tá usano? Tá urrivi no xô beiço!

MAZO- Num vem dá uma de moça aqui pra cima de mim que nheu perco minha educação

moral, cívica e religiosa, e conto xôs podre aqui na frente de tudu mundo.

DITA- Vôte, Mazonina! Ocê tá mais amarga que pinga cô nó de catchorro.

MAZO- Ah Bom! Bamo mudá de cunversxa. Iscuta, o que que ocê serviu pro povo que

batxou aqui em casa?

DITA- Qui que nheu servi...? Nada né! Aqui em casa num tinha nada né! Ninguém trouxe

nada né! Ninguém fez vaquinha pra nada né! Então, nheu servi meu tchoro preles.

MAZO- Vote! Cruz credo! Ninguém troxe uma pinga, uma granada de corote? Oh povo de

última! E nós fica aqui iguá besta sorrino preles! Pra ser simpáticas! Taqui ó! (dá dedo

indicador como banana pro público).

DITA- Mazonina, nheu tô aqui pensano...

MAZO – Aí, Dita pensano! Imaginem...

DITA - ...o que que nós vamo servi no tchá bem cedo pro povo que batcho aqui em casa? Da.

Eulália num qué vê minha cara lá nem pintada de ouro.

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MAZO – Nem nheu quero vê! Assusta o povo aí... E tem bastante gente! Dita, bamo bora

fazê chá de capim cidreira, que já tá formano um colonhão ali no quintal e bamo lá no

Dona Maria do pão doce, a gente pede uns pão duro prele e depois nós fala que é pão

torrado.

DITA- Cruz credo, de Dona Maria? Os gatos dela dorme em cima do pão. Fica tcheio de pêlo

daquela gata radjada dela que num sai daqui de casa atrás de Presidente.

MAZO- (ri) Ôh, Dita! Limpa xá boca catchorra! Quando nós precisamo dela, ela sempre foi

nossa cumprice contra as fofocas das fias do Seu Manoel da Cova. (ri)

DITA- (triste) Ainda ri essa corna! Mamãe tá’i, abandonada iguá paciente de pronto socorro.

MAZO- É mesmo Dita! Ainda mais co’essa rede. Inda se fosse uma cadeira de fio!

DITA- Quem mandô ela sê invedjosa imitano xo Imilianinho.

MAZO- O que que tem xo Imilianinho Dita? Ocê tá gira?

DITA- Ocê isqueceu que seu Imilianinho foi interrado na rede?

MAZO- É mesmo né Dita! Mamãe é invejosa.

AS DUAS- Mamãe é invejosa.

DITA- Lembra de seu Imilianinho quando ele vinha aqui em casa e nós caía na risada?

MAZO- Pois é, Dita! Ele era batxotinho, então papai fez um banquinho prele...

DITA- ...lembra Mazonina, quando nós escondemo o banco dele e ele teve que sentá naquele

banco arto? O pézinho dele ficava balançano iguá fio de relógio (faz gesto) Faz aí...

MAZO – Ocê lembra quando tinha baile aqui em casa e ele ficava encarnano só nu mim, só

nu mim, só nu mim.

DITA – Será por quê!???

MAZO - Hum, bamo relembrá?!!!

DITA – Como que era? Mostra aí!

MAZO – Assim ó! Nheu ficava no meu canto, parada, recatada, ingênua... (faz a encenação

do convite pra dançar com um anão que mesmo a contra gosto, aceita e dança. Caem na

gargalhada).... o priquito dele ficava roçano no meu jueio. (bruscamente) Dita, bamo pará de

gracinha e antes que amanheça vamos rezá um terço que até agora num saiu uma rodada de

terço. (Vão para a rede e pegam os véus e os terços).

DITA - Espia aqui Mazonina! Tá tcheio de mixinga! Tem até mosca varejera aqui! Tcheio de

berne tudo mexeno... (abanando as moscas da rede onde está a mãe).

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MAZO- (com vergonha do público) Que isso Dita! Olha o povo tudo olhano, disfarça! (sorri

sem graça) Que nada Dita! Não é varejeira! É lambe olho.

DITA - Agora quando! Nunca! Não adianta ocê vim com esses nomes científico que não me

engana não. Se não é varejeira, é lambe cú.

MAZO- (Horrorrizada) Dita! Eu estudei mais do que ocê e isso é lambe olho.

DITA- Tudo bem! Nessa ocê ganhô. Fazê o quê?! Estudou até o mobral...

MAZO – É EJA.

DITA – Tem diferença?

MAZO- (Indignada) Ah não gente, sacanagê! Espia aqui! Agora que nehu to reparano!

Entchêro de papoula a rede de mamãe. Desse jeito ela vai pro paraíso dopada.

DITA- Vai ser chamada de anja papoulinha.

Nisso elas ajeitam o terço, véu, começam a rezar. Em intervalos, elas falam da vida dos

outros.

MAZO – (dá uma cotovelada em Dita) Puxa a reza aí Dita!

DITA/AS DUAS – Aíiiiiiiiiiive Maria cheia de graça o senhor é convosco, bem dita sois vós

entre as mulheres...

MAZO - ... Dita, por falar em mulheres, como que vai a fia de Dona Mariinha?

DITA – Menina, isquici de te fala! Tão falano por aí que ela tá de esfrega-esfrega com as

gurizada por aí nos escurinhos...

MAZO- ...e depois falavam que era ocê né Dita?

DITA – Bamo rezá!?

AS DUAS – Jesus! Santa Maria rogai por nós pecadores...

DITA – ...Mazonina, por falar em pecadores, como que vai a fia de seu Sebastião?

MAZO – Pois era isso que nheu tava tentando lembra e ocê me lembrô. Pus ela num deu pra

andá de turma. E deu mesmo! Tá até de bucho. E disque tá mexendo cô tóxico.

DITA – Desse jeito o fio dela vai nasce viciado! Temos que livrar essas criançada dessas

porcariada. Gravidez na adolescência não, droga não, burrice não. Família sim, amizade sim,

matinê no clube náutico sim...

MAZO – Ei, psiu, bamo reza?!

AS DUAS – Agora e na hora da nossa morte... Nossa não, de mamãe! Améns!

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Começa a tocar o hino do Divino Espirito Santo e elas mexem o corpo no ritmo. Tentam ver

pela janela o que acontece lá fora.

DITA- (com inveja) Deve ser Dona Fia com a fulia da lavage do Santo...

MAZO- Mas num são nem meia-noite ainda! Será que vai ter a fulia do refrexo?

DITA- Fulia de refrexo?

MAZO – Ai, Dita! Nheu vou explicar pro cê e pro povo da cidade o que é a fulia do refrexo,

porque nheu tive a disciplina de cultura popular. Quem mandou ocê num estudá! Era assim:

juntava a turma da rezação naquela sala diante do santo e rezavam, rezavm até doê. Aí uma

fulaninha que num gostava da outra, cum inveja do alizamento do cabelo da outra, encostava

sem querer a vela no cabelo da outra. Gente, mas era um tcheiro de cabelo queimado e já não

aguentano com o tcheiro, saiam em retirada para beira do rio ou do poço pra lavagem do

santo. Quando thegavam no barranco do rio saia tudo mundo de carreira... uma já jogava

pedra na água pra bagunçá tudinho, cô medo de não verem a cara delas na água. Malandras

que só...! E tratavam de lavar logo o santo pra garantir a festa, a fé, saúde, fartura e vida

longa.

DITA – Tomara que ela não veja o refrexo dela na água! Aí ano que vem é ela que vai tá aqui

né mamãe. (esbarra na rede) Aí! Desculpa mamãe, num vi a senhora, a senhora num viu...

(riem).

MAZO- Dita, tô cuma fome!

DITA- Engole guspi que passa!

MAZO- Eu não quero nem saber, eu vou sim, quero sim, posso sim. Dita num manda em

mim! Vou tomá o sopão de Dona Fia e ocê fica ai fazeno sala pro povo que batchô aqui em

casa e pra mamãe. Nheu vou dormi de bucho tcheio.

DITA- Táqui pro cê! Nheu sei do que que ocê qué entche seu bucho. Olha! Mamãe não tá

mais aqui pra tomá conta de neto como faz Dona Cibalena.

MAZO- Não se preocupe fufurinha! Ocê sempre cuidou de mamãe, seja fiel até fim! Ocê fica

aí velano o o corpo de mamãe.

DITA- Mazonina, tive uma idéia!

MAZO- Aí! Dita teno idéia..

DITA – Já que nenhuma de nós qué ficar cô mamãe, mamãe vai cô nós na festa.

MAZO- Ocê tá usano tóxico, Benedita? Onde já se viu morto ir na festa!

DITA- Se nunca se viu, mamãe será inédita.

MAZO- Ôoooo mamãe! Perdoe essa pobre criatura que ela não sabe as merdas que estão

saindo da cabeça dela, num liga. Pronto! Tá decidido ninguém vai em parte algum. Vamos

ficar aqui em casa e dormi cô mamãe.

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DITA- Cruz credo! Jamais que nheu vo dormi cum defunto! Depois da morte de papai nheu

fiquei tramartizada.

MAZO- (dá um tapa na cabeça de Dita) Pronto! Destramartizou. Larga de besteira e bamo

rezá.

DITA- Nheu vô reza daqui mesmo.

MAZO – Desnaturada! (conversa com a mãe como se fossem surdas e mudas) Dita nheu vô

tomá um bainho, porque virá a noite com esse tchero num dá. Xia aí! Nheu ainda tô cum

poeira de Acorizal.

DITA – Vai mesmo, que daqui tô sentino um xirinho...

MAZO – Só se fô do Charisma da AVONs que ocê tá sentino e num adianta pedi que num vô

emprestá!

DITA- Tá.

Amazonina sai e Benedita conversa com o público sobre o povo que tá lá fora da casa só que

conta piada.

DITA – Ta quieto né! Ocês tão ouvino? Iscuta! O zum zum zum lá fora. É a turma animada lá

de fora só que conta piada. Só na risadama. Nheu iscutei umas piadas novas e fui lá iscutá.

Minha prima Cachumba começou a contar essa piada: “durante o jantar, Joãozinho conversa

com a mãe: - Mamãe, porque é que o papai é careca? - Ora, filhinho.... Porque ele tem muitas

coisas para pensar e é muito inteligente! - Mas mamãe....então porque é que você tem tanto

cabelo? - Cala a boca e come logo esta porra de sopa, menino!” Caí na gargalhada, mas ri, ri,

ri tanto que quase minha bexiga não agüentou de tanto ri. Aí duas fulaninha carpideira que

tava num canto só fuxicando – “ispia lá o comportamento da fia. Disque ta sentida com a

morte da mãe. A mãe ta lá socada naquela rede e a fia aqui só ri”. Gente, quando nheu iscutei

o zum zum zum, me toquei, vim pra cá chorar.. (começa a chorar mas é interrompida pela

entrada de Amazonina).

Amazonina entra.

DITA – Já tomo banho?

MAZO – Craro. Tomei um bainho rápido de gata. Pus ocê num encheu o tambor d’água. Era

só deixar na caeira pra enchê co água de chuva. Ajuda sua higiene e o meio ambiente. E por

fala em higiene, Dita, ocê num vai tomá banho? Xia aí! Tá cheio de mosca atrás do cê.

DITA – Atrás de mim?! Mas nheu já tomei banho de manhãos...

MAZO – Por isso mesmo!

DITA - Nheu vô tomá banho mas não é porque ocê tá mandano. É que nheu já ia mexsmo.

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MAZO – Xia aí! A legião urbana de mosca varejera e mutuca vuano atrás d’ocê. (Benedita

sai).

Escurece lentamente. Amazonina conversa pela janela com o povo que está do lado de fora

da casa.

MAZO – Ô gente, ri mais baixo, é velório! Respeita sentimento aeio. É minha mãezinha

querida, meiga, serena e solidária. Gente, não tinha visto esse lado do quintal, ta cheio de

gente. Podem ficar a vontade. Mas não mexam nos ortifruti do quintal ta! Ajuda a organiza aí

Carmozina... de onde que emprestaram essas cadeiras de festa? Ahm? Lá do Lar Espírita

Monteiro Lobato? Depois nheu passo lá pra agradece. Para de correria criançada... Aí

Jucelina, fala pra essas criançada pará co essa algazarra. Inda vão caba caino e quebrando a

boca. Ei, psiu fufurinha, aí num é lugar de faze isso não! Utiliza a casinha ali perto do

chiqueiro. Num vai deixa esse guri cagá aí perto da hortaliça. Rhum! Avê, ta bombano o

velório de mamãe. Num pára de chegar ônibus cum povo. A senhora é bem conhecida e

querida né mamãe. Ah, num credito! Mamãe até o grupo que dança rasqueado que a senhora

tanto gosta, ta aqui. Xia lá quem que ta ali, só que conta piada né Dona Belinha. Como que é?

Vendeno tapoer?! Colcha de chenil! Arhan! Luiz Carlos que ta contano... como que é essa

piada aí co ce ta contano? Conta aí, nheu num conheço essa daí! Como que é? (cai na risada)

para, para gente, essa é boa... Mas ri baixo gente é velório. O tempo passa e esse povo num

perde o bom humor né Marcelinho. Já casô ou tá me esperano? Quem que já tacô fogo aí

gente? Ahmmm! Tão assano carne! Mamãe tão fazeno até churrasco no velório da senhora,

venha vê. Deixa nheu esprementar pra vê se ta bão. Cum gurdurinha sim! Nheu sou diabética

e não gorda. Quem que temperô? Traz uma mandioca ferventada também. Num posso sai

daqui. Aí, rápido! Se não pegam tudo! Aí, já acabo! Pode assá mais aí! Não!Mamãe num pode

carne, ta regime né mamãe?! Uai é! Num me fala! Num sabia que Jorgete tinha morrido!

Morreu de que? Cirrose? Mas gente, num dá pra acreditar. Jorgete era mais nova que nheu...

Pra ocês vê, o tempo não espera. Espia aí, o tempo passo e nem me dei conta que já tá

amanheceno e Dita.... O quê? Dita num me falou nada! Palhaçada! Dita nem pra me avisar

que já tinha anunciado que mamãe vai ser enterrada agora de manhãos. Num deu tempo de

nheu arrumar nada. Espia aqui minha sombranceia! Minha cara tá iguá mato. (gritando com

Dita) Dita, cadê ocê bandida? Venha aqui na sala que nheu preciso ter uma conversinha com a

senhora. Deve ter dormido enquanto nheu fiquei velano mamãe junto com o povo. Acorda

jararacussu do brejo! Quem mando marcar o enterro de mamãe pra agora de manhãos? Agora

vou ter de arrumar com urgência as coisas. Num podia ter esperado Jaime voltar com o

caminhão de mudança que ele foi faze lá pra Alta Floresta, mas não... desesperada, qué

aparecer. Se esperace dava tempo, de divulgar na rádio cultura ou mandá uma cartinha pra

titia que ta morano em Vila Bela. Dava tempo dela tchegá aqui e faze o cortejo co nós na

charrete nova que ela comprô. Mas não, a hoster do velórinho de mamãe fez o favor de

marcar pra agora de manhãos o enterro da centenária... (Dita entra na sala toda produzida)

Ditaaaaaaaa....

DITA- Ué! Mamãe ainda tá por aqui?

MAZO- Não! É só a alma penada dela que ta aqui. Quem mandô ocê marcar o enterro de

mamãe pra agora de manhãos? Troço. Vai arrumano aí os trem queu vô lá chamá seu Alis, vê

se ele empresta a tombera pra conduzir mamãe pro seu endereço residencial definitivo (sai).

DITA- (vai pra janela) Num esquece de chamá Silvia! Avisa Rosete. Chama Minervina,

Dona Domingas cum Flor Ribeirinha, ela era unha e carne cô mamãe. Tchama Lucia Palma e

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Pádua pra recramá poesia pra mamãe. Num isquece de tchamá as criançada da flauta mágica...

É bom levar criança no enterro de gente velho. Avisa Gonçalina, xô Pedro. Chama Tetê

Spindola pra cantar “Escrito nas Estrelas”. Avisa o povo da Cruz Preta, do Cai Cai, da

Popular e da Praça da Mandioca. Tchama os festeiro de São Benedito e da festa do Divino. A

turma lá do Chorinho e do Riberão do Lipa. Tchama o moço do cremosinho. Avisa

Libóriaaaaa...

MAZO- Libória já morreu biscate!

DITA – Gente, num sabia! Libória morreu biscate! Então chama Kimberly Lorrayne.

MAZO- Vai levar cachorro pra quê? (voltando) Pronto, Já avisei xo Alis.

DITA- Tô passada a ferro a brasa. Libória! Então só nos resta chorar.

MAZO- Nheu sou do mato, não tenho dessas frescuras.

DITA- Mazonina, bamo fazê quinem os povo das novelas, espia aqui – (berrando) Me larga!

Me solta, eu quero ir djunto co mamãe. Me solta... Larga de mim Carlinhos, me solta

Pescuma, é minha mãe, me larga Marquinhos, eu quero ir junto cô mamãe... eu quero, eu

quero, cabe sim, cabe sim! Tem um cantinho, ali no cantinho entre a cabeça e o ombro

segurano a dentadura na boca de mamãe. Me solta Gegé, nheu fiquei órfão. Não me segura

Maria Taquara! Aí Nhá Preta... Mamãezinha querida, num me deixa aqui sozinha, não me

deixa só, eu tenho medo do escuro, eu tenho medo do in-si-gu-ro ma-ma-ma- mãe-zinha

(chora)

MAZO- OOOOh mamãe, num me detxa aqui sozinha co Ditaaaaaaa (desliza com a costa na

parede com os braços abertos. Para de chorar). Dita, faça pose para os convidados. Dita,

olha o povo tudo te olhano. Fecha Dita. (Dita chora mais) Fecha Dita (Dita Chora mais e

Amazonina grita) Fecha essa boca corna!

DITA- (pára de chorar) O Quê? Quer dizê que ocê me detxô tchorando sozinha? Agora vou

aprontar o maior pampeiro... Dijei...(dança em cima de um banco, canta e sapatea.

Amazonina vai e dá um tapa na cabeça de Benedita). Aí! Meu bobs!

MAZO – (pega o punho da rede e se posiciona pra sair) Bamo enterrá mamãe!(pausa) Pra

que que vai levar esse celular? Tijolão na cintura. Duvidá lá nem num pega!

DITA – Olha Mazonina, eu tenho, eu posso, eu tenho que mostrar.

MAZO – Pra quê que vai desse jeito? Num ta nem combinano. Olha é enterro, num é

carnaval.

DITA – Aé?! E ocê com esse Kitchute?

MAZO – Oh mulher antiquada. Se ocê num sabe, mulher fashion week e casa cor é assim:

bolsa combina co sapato. Deixa de ser retrô e pega a coroa aí!

DITA – (pega o outro punho da rede em direção contrária de Mazonina) Já peguei!

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MAZO – A coroa de flores, troço!

DITA- Ocê me deixa confusa Mazonina. Pronto! Já peguei todas as coroas, coroa!

Dita e sai em direção contrário de Mazonina.

MAZO – Aí! Vai rebentar mamãe no meio! É desse lado bandida (toca o celular e Dita

atende).

DITA – Ah, espera aí Mazonina! Meu smart fone ta tocano e vibrano. Alô, fala rápido que ta

gastano tudo meu crédito. Não! Num tô em Bonsucesso não. Ai Pedro, num sei nem como te

contar de mamãe... Quem que tá rino aí assim? Vai ter rodada de peixe e cerveja por sua

conta?!!!! Tem como ocê me buscar lá no trevo do Parque Cuiabá? O que? Pega um moto

táxi? Então enfia, soca, toca seu peixe tuido no seu Bocó e arrodeia três vez. Onde já se viu?

Uma quase miss Liceu Cuiabano andano de moto táxi...To ficano mole mesmo! E já que estou

dialogando com você, eu quero meu chip que te emprestei... Cadê meu chip Pedro. Devolve

meu chip Pedro. Num quero saber, devolve meu chip Pedrooooooooo. Onde já se viu!

Desligou.

MAZO – Ah não mamãe, isso realmente não pode ser da nossa árvore genicológica!

DITA – Ta oiano o quê? Puxa esse cortejo aí Santa Rita!

Saem em cortejo fúnebre. A luz intensifica no amanhecer do dia entardece no passar do

tempo.

CENA 02

GRAVAÇÃO

Enquanto rola a gravação, a alma penada da mãe passeia por entre os móveis toda de

branco, véu e pantufa.

DITA- Segura mamãe aí! Me ajuda a subir aqui. Larga de ucieza Creverson. Uhum, fica

pegano na bunda da gente.

MAZO- Nheu vô lá na frente, na cabine co xô Alis. Cuiadado aí gente! Segura ela com

cuidado, com carinho, num vão derrubar ela. Puta que pariu! Num deixa esse cachorro deitá ai

em cima de mamãe. Oh! Dita, num tá veno aí não corna. Aí, já pisaram no peito de mamãe.

Ajeita a dentadura na boca dela. Nhá Barbina, desce daí xô, o caminhão do jogo é outro! Só

mais tarde. Desce qu’essa bandeira daí xô! Arretada por causa de jogo.

DITA- Pode ir seu Alis... (AS DUAS) Urhuuuuuuuuuuu!

Barulho de caminhão saindo, algazarra de crianças, cachorro, ladainhas de senhoras, festas,

batuques de alguns – o barulho de caminhão chegando e parando.

DITA- Espia aí Mazonina, a cova de mamãe num tem nem sete palmo.

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MAZO- É mesmo Dita! Tá perigoso o pé de mamãe ficá pra fora.

DITA- Ah não gente! Faz um morro aí! Num detcxha o pé de mamãe pra fora. Os urubu vão

fazê a festa! Nheu num quero nem sabê! Nheu num vô perde viagem. Mamãe fica assim

mesmo! Faz o morro aí! Tudo isso por sua culpa bandida. Saímos escurraçada de lá do Sucuri.

Ocê deve dá graças a Deus por ainda tá com esses dois dentes na boca. Se Chulipa acerta

aquela pedrada...

MAZO- ...nheu rufava a cara dela. Ela e ocê que vem cô graça.

DITA- Graça! Nheu que ia achá graça docê banguela... Aí meu bobs.

MAZO- Agora nós tamo aqui nesse fim de mundo que é Aguassu. Enfim, foi o que Ana

Fobré arrumo pra nós, qué dizer pra mamãe. Bamo logo criançada! Come logo essa farofa.

Acabam com essa Pitchula Predileto e quem num tomo banho no corgo num toma mas!

Silvia, tchama as criançada aí! Já tamo ino.

DITA- Vôte! Num precisa empurrar. Aí! Vai cabê todo mundo. Vai sobrar até mais um lugar,

o de mamãe.

MAZO- Que deus a tenha em bom lugar! Bamo xo Alis. O piquinique acabou. (barulho do

caminhão saindo) Urhuuuuuuuuuuuuu (a algazarra recomeça).

CENA 03

O caminhão retorna, elas se despedem do povo ainda do lado de fora da casa, logo entram

no palco toda sujismunda, com o cabelo empoeirado, segurando uma sacola com latinhas

amassadas e câmara de pneu bóia.

DITA- É, Mazonina, Aguassu num vai pra frente mesmo.

MAZO- Intão, Dita! Duvidá interraram uma cabeça de’um burro bem grandona lá.

DITA- Agora Aguassu será uma terra abençoada, porque nela jás um anjo querido...

MAZO- ...um anjo muito querido. Um anjo co umas asas bem grandona, um vestidinho

branco pra combina com as asas, um sapatinho de cristal pra refletir as estrelas na cara de

mamãe....

DITA – Ei! Acorda! Ocê já tchegou de Aguassu. Mazonina, vai falano aí que eu vou botá uma

água no fogo prá faze um chá. Sorte que nós encontramo seu Alis pra levá a gente... Esse é

vizinho bom.

MAZO – Nheu sei o que ocê acha bom no xo Alis! (referindo-se ao tamanho do pênis)

DITA - Senão nós tinha que torá daqui até lá e de lá até aqui.Vôte! Mas tá doeno minha

bunda.

MAZO- E’a minha nem se fala. Tô cum minha anca tudu doeno. Vou depois benze de arca

caída no Dona Tuntum da Capela do Piçarrão.

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DITA- E eu, hum! Iscuta Mazonina, o que é que vai sê de nós agora? Mamãe não está mas

aqui em casa, abotoou o paletó de madeira, qué dizê, custuraram a rede dela. Ocê mora lá co’a

tia Doquinha no Acorizá, e nheu num vou ficar aqui sozinha.

MAZO- Eu também num venho morar aqui co cê.

DITA- Então vamos tê que vendê essa casa e os trem daqui.

MAZO- Mas quem que vai querê comprá essa casinha.

DITA- Oh muié acorda! Aqui agora tá ficano valorizado, djá até tchamam de Centro

histórico.

MAZO- Então o djeito vai sê sair pra vendê os trem daqui e atchá um comprador pra casa.

DITA- Oh, Mazonina, esses trem nos fazx lembrá muitas coisa boas e ruins.

MAZO- É meszmo né, Dita? Espia a cara nossa naquele retrato. Era quando nós fomo bardeá

água lá na cacimba comunitária... Nós andava tudo pelada parecendo índio. Nesse dia nós

caímos do barranco da cacimba e sudjo tudinha a água, o povo contou pra mamãe e ela deitou

o pau ne nós e ocê ainda fazia o maior escândalo que eles pensaram que mamãe tava matando

ocê.

DITA- E ocê ficô com sinal nas costa tudo envergada e o povo perguntava procê o quê que

tinha acontecido e ocê falava que tinha machucado no arame farpado pegano galinha no

quintal. Quá dia que eles acreditaram.

MAZO- Quero vê não!

DITA- Mazô, a água? Corre, vai lá vê a água do tchá que djá deve tá pipocano.

MAZO- É mesmo né? (sai) Dita, secou a água!

DITA- O tempo passou e nós nem vimo. Parece que vive perseguino a gente. Bamo durmi

que amanhã é outro dia a ser conquistado. Óia! Vê se Presidente tá pra dentro.

MAZO- Esse catchorro ainda existe? Passa chulinho... passa, passa, Dita, Presidente já tá com

graça aqui, sai catchorro, Ditaaaaaaaaa!!! (algazarra com presidente).

DITA- Que banzé é esse aí?

MAZO – Passa catchorro! Aí Dita! Presidente. Anda logo!

DITA – Calma, já vou aí ajudá ocê, peraí...(sem muita preocupação, vai devagarinho). Já vou

maninha! Pára Presidente! Num vai pega raiva de graça! Catchorro nervoso!

BLACK-OUT

CENA 04

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Sob penumbra, chove e os barulhos de trovões, ráios e goteiras intensificam.

DITA- (entra de camisola) Eh, mamãe já deve estar lavando o paraíso. Espia aqui essas

goteiras. Essa aqui é mais velha que Mazonina. Que apagão é esse? Cuiabá é só chovê, cabô!

Mazonina, vem ajudar salvar goteira.

MAZO –Ahhh! Detcha nheu durmi!

DITA – Durmi!? Você já ta na idade de ir durmi as sete e acordar as quatro da manhãos. Pega

panela e venha ajuda a salva goteira. (Amazonina entra sonolenta, segurando uma boneca e

de pantufa) Acode aquela ali. Bamo, bamo, rápido! Ali outra ali. (senta e dá ordens) Pega o

pano e enxuga essa aqui, aqui em cima de mim.(Amazonina emburra e sai pisando duro)

Vôte! Num sei pra que tanto estudo se num tem a sensibilidade pra salvar um patrimônio

histórico.( explode mais um raio).

BLACK-OUT

CENA 05

O dia seguinte amanhece com barulho de grosa de guaraná, copo e colherinha por

Amazonina enquanto Dita está estendendo roupas no varal do lado de for, na janela.

DITA- Oia, o pão torrado tá em cima da prateleira, na lata florida do Morita.

MAZO- Num vai gastá toda pedra de sabão nesses trapo, por que a pensão de mamãe é uma

mitcharia num dá pra compra nada.

DITA- Ah é, o meszmo pro açúcar e pro pau de guaraná!

MAZO- Oh! Dita, nhá cá, rápido! Corre! Venha vê o que que ocê isqueceu aqui.

DITA – O que que foi?

MAZO - Toma aqui xá sandália, troço! (mostrando uma ferradura)

DITA- Ê-a! Num calço xô número. (mostrando outra ferradura)

MAZO- Palhaça! A farinha djá acabou, o açúcar djá tá no fim, seu Dutra do fumo bão

também já não está entre nós... Daqui a pouco nem arroz tem mas pra comê. Tumico Xakira

do mercado municipal ta de olho bem aberto co nós quando a gente entra lá.

DITA- Detxá aquela japonesa pra lá! Ocê isqueceu que nós temo conta lá no bar de Dona

Isabelona?

MAZO- Nós não, mamãe, que Deus a tenha e ela não vai querer vender fiado pra defunto.

DITA- É meszmo né, depois nós num paga...

MAZO- E ai fica cô cara de tacho...

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DITA- Ê-a! Por que não? Num tem pensão de mamãe?

MAZO- Tem, fia da puta! Mas só a luz e a água djá come o dinheiro de mamãe, inda mas

agora com IPTUs...

DITA- Então só se eu fô dá meu tchêro pra pagar as conta aqui de casa!

MAZO- Até que não é mau negócio né, catchorra?

DITA- Mazonina, bamo falá sério. Ocê vem ou num vem morá aqui em casa?

MAZO- Eu não! Djá tô pra casá e Chicão...

DITA - ...o veado.

MAZO- Oh Dita num fala assim que ocê me magoano profundamente. Ele tá tocano uma roça

lá em Acorizal e ele não vai querer trocar a roça pela periferia da cidade.

DITA- Pelo jeito vou ter que lava roupa de ganho. Então ocê num vai morá comigo. (Brusca)

Por quê que ocê num falou logo sua vaca!

MAZO- Entenda, eu vou casá xá burra! E ocê vai vivê do quê, de cadjá–manga? E

Presidente?

DITA- Leva ele co’cê.

MAZO- Aqui procê!(Banana) De sarna pra coçá já basta Chicão.

DITA- O veado.

MAZO- Oh Dita, num fale assim que ocê ta me magoano profundamente.

DITA- O djeito é vende essa joça que mamãe dexô pra nós.

MAZO- Por mim não! Se vendê eu quero minha parte. E vou te falar mais uma coisa: mamãe

pegou ocê pra criá!

DITA – (Dramática) Ocê ta me falano que nheu num sô fia de mamãe? Que fuxico de dgente

batxo é esse?

MAZO – Dita, nheu num queria falá, mas ocê foi adotada depois da enchente de 74.

DITA- Cunversxa pra boi dormir. Em 74 mamãe ainda era virgem... Não confunda as coisas

não! Não mistura não.... Porque a urubu tava só esperano nheu falá que eu ia vendê pra tá

botano agouro.

MAZO- Craro! Também sou membra da família e eu posso, meu pai é sócio, vovô foi pianista

e mamãe vigarista. Sacou?

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DITA- Audácia pura da Malandra! Vamos tentá vendê esses cacos daqui pro museu de

Ulisses e pra Ramis Bucair. Eles tem dinheiro e pode comprá.

MAZO- É mesmo né! Mas a gente fala as coisas sob emoção, sem pensar nas conseqências...

(observando a casa) Mais esse rádio vai ser difícil de esquecer. Quantos horóscopos a gente

djá num ouviu nele...

DITA- A gente não, ocê! Eu ouvia novela...

MAZO- E nós só que esfolava o botão do rádio, pra lá e pra cá...

DITA- Até que estragou o botão e acabocetudo. E por falar em rádio, e o som?

MAZO- Será que ainda presta? Chia só, inda presta! Coloca a quarta que nheu gosto.(toca a

musica)

DITA- Essas músicas me lembram os bailes e nós dançano com a corja de soldados.

MAZO – Eu dançano porque a senhora sumia no breu, ia pra debaixo do pé tchimbuva e

quando voltava tava com o barará desse tamanho.

DITA- Ah! Bamos dançá. (dançam e disputam o jogo de altura das pernas)

MAZO- Ufa! Cansei! E a máquina?

DITA- E nossas roupas do colégio?

MAZO- Roupas do colégio? Iguá aquela que ocê foi inventá de costurá e arrebentô o fio da

máquina, e mamãe enforcou ocê malemá.

DITA- E ocê foi caí na rizada, zape!!! Mamãe deu co fio na xa cara que ficou até marcado.

(risada).

MAZO- Óia, vamos pará de cunversinha e tratá do que interessa. E djá que é prá vende os

troço daqui, nheu vô aprontá pra saí e procurá qual pregão que vai querer comprá esses trem

daqui de casa, porque ocê é lerda de tudo e num vai consegui vendê nada.

DITA- Lerda é xô cessu.

MAZO- Tá (sai pro quarto).

DITA- Enquanto isso eu vou arrumano os trem e a bagunça que mamãe deixou aqui em casa.

Hoje nheu vou encerar essa casa... (sai pra cozinha e Amazonina entra tentando achar pra

vestir e encontra um forro de fuxico que cobre um baú da sala. Logo sai pra não ser

percebida por Benedita que segue limpando os móveis e lembra da vitrola e dos discos de

vinil).

MAZO- É bom mesmo! Tá ai forte.

DITA- Será que esse troço presta mesmo? Vô colocá uma música. Porque faxina sem música

não é faxina (liga a vitrola, escolhe uma faixa do disco vinil e dança fazendo faxina. Brinca

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de interpretar a musica internacional-romântica-lenta-traduzida. Em seguida, entra

Amazonina toda produzida com uma camiseta com estampa da Meninas Superpoderosas,

pantalona e blaiser de fuxico, kichut, desliga o som).

MAZO- Ih! Bamo pará co essa uciesa aqui em casa que ta pareceno cabaré de Coleta e

chácara do Amorzinho.

DITA- Ai! Que susto. Vôte Mazonina, ocê tá pareceno despacho. Desse djeito ninguém vai

ter coragem de chegar perto do cê.

MAZO- Fala sério! E aí, estou bem?

DITA- Assim né, destrói num destrói.

MAZO- Lógico tem que esta preparada pru batente. Dita, vou te dizer-te-lhe uma coisa pra

você mesma em sua individualidade: muda xôs conceitos, fufurinha. O progresso chegou e as

coisas não são mais como antigamente!

DITA- Craro que não! É evidente que o tempo passou e ocê ta mais velha. E onde é que ocê

vai?

MAZO- Ah, vou lá no pregão São Jorge. Disque ele é bom prá comprá as coisa veio. Assim

disse Dona Nilza de xô Manézinho.

DITA- Do jeito que ocê tá eles vão dá é uma pregada no xô rabo.(ri)

MAZO- Agora quando! Never.

DITA- O quê?

MAZO- Salve-salve Ramona! Never, inglês, aprendi no CCBA - Centro de Cultura Britanica

de Acorizal. (sai)

DITA – Never!... neve... aqui em Cuiabá nem neva! Vou coloca a sexta que nheu gosto.

Remix (toca a música e continua a faxina da casa).

Benedita fica sozinha na casa. Disfarça e vai mexer no baú velho de sua mãe. Tira os

pertence de dentro do bau e quando acha a caixa misteriosa, mas é atacada por uma

ratoeira. Leva o maior susto mais não desiste e pega a caixa onde há coisa do tempo de sua

infância; ao acabar de mexer e separar um monte de coisas ela é interrompida por

Amazonina que passa pela janela igual gata e vê a violadeira.

MAZO- Ah!.. bandida, peguei ocê co’a boca na botija. Tá que nem rato fuçano o fogão. Ocê

não tem vergonha não, ordinária? Mexendo nas coisa particulares de mamãe. Violando a

privacidade de alguém que djás e muito querida. Olha aqui Benedita, não tem nada pra fazer,

toca o dedo no cú e cheira.

DITA- Quem manda melhor fazs! Você vai na frente que eu vou atrás.

MAZO- Tá... ér, Dita que mal lhe pergunte, o quê que tem aí nessa caixa?

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DITA- Amazonina, ocê num vai acreditá! Senta aqui que lá vem chumbo.

MAZO – Ai canhão, conta cachorra! Conta logo, que tá me deixano esgarfada.

DITA- Ô Amazonina, nós temo sido tão ruim cô mamãe e ela com seu ar maternal deixou um

dinheirinho pra nós na poupança.

MAZO- Num credito! Mamãe, a senhora agiu como um urubu que protege xos filhos. Por

mais feio que eles seje (apontando pra Dita) tem sempre o amor de mãe pra receber.

DITA- Eu num vou aguentar. Suas palavras foram tão bonitas e sábias, nheu vou chorar.

(chora).

MAZO- Calma, muié! Seja forte que depois da tempestade sempre vem a bonança.

DITA- E meszmo né? Agora que nós já vimos o que tem aqui dentro, vamos fechar e guardar

essa caixa.

MAZO- Tem que guardar mesmo! Mas quem vai guardar sou eu.

DITA- Não, sou eu.

MAZO- Sou eu. (Amazonina cai desequilibrada pra dentro da casa, sobre as panelas e volta

toda desconjuntada com a caixa na mão). Nheu que vou guardar tá Dita! Num vai sondá!

DITA – Tá bom! Guarda debaixo da minha cama. Assim, lá fica mais seguro.

Amazonina entra pro quartoe começa a confusão com Presidente.

MAZO - Benedita, me acode! Presidente tá acabano comigo. Passa chulinho! Socorro, Dita!

Venha logo bandida. Trazs o trabuco. (ouve-se rosnado do cachorro).

DITA- (sem muita pressa) Eh fulia, o banzé djá começo de novo. O quê? Mazonina, não tô

escutano!

MAZO- O rifle!

DITA – Serve o arco e flecha. (grita) Para de singraceira cachorro.

Ouve-se gemidos de cachorro acoado.

BLACK - OUT

CENA 06

Luz-out, Amazonina cata piolhos em Benedita.

DITA- Aí! Meu bobs. Dói maninha.

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MAZO- Ah, bom! Quem mandou virar fazendeira! Pára, se não nheu xinxo xô cabelo. Da-í o

invisíve pra prender seu barará. Parece que ta canhando invisive. Tem gasta invisive né

Vanessa do Mato! Parece arame farpado... Daqui a pouco povo vem aqui buscar os trem...

(silêncio. Continua a enrolar os bobs).

DITA- Mazonina, por falar nisso, o que vai sobrá da leva?

MAZO- Bom, a casa xo Dutra do armazém compro. Sobrô nós duas, Presidente – nheu ainda

vou dá um fim nesse catchorro - a alma penada de mamãe, quer dizer depenada, o baú que

ocê vai ficar, lógico, a moringa que é minha, a mesinha que é para dona Maria do pão doce...

DITA- ...aquela que tem a gata radjada? Ou melhor, que tinha, por que presidente djá deu fim

nela.

MAZO – No Dona Maria?

DITA – Na gata!

MAZO- Ah bom! Mas tá faltano alguma coisa.

Elas se olha, andam tentando lembrar, desconfiada uma da outra de estar escondendo algo e

lembram-se do santo.

JUNTAS- O santo, relíquia de mamãe! (correm e pegam o santo ao mesmo tempo).

DITA- Me dá aqui, bandida, vai ser meu.

MAZO- Desdi quando biscate precisa de Santo? É meu.

DITA- Meu djá morreu seu cú é de djudeu. Tá qui pro cê. (dedo).

MAZO- Olha aqui, corna, dobra e redobra e enfia no seu toba.

DITA- Escuta aqui, pra quê que ocê qué Santo Antônio, se ocê djá tá pra casá e além disso,

ocê é devota do Senhor Divino e Nossa Senhora do Limpo Grande.

MAZO- Teressa, mudei de Santo.

DITA- O qual, o do pau–oco? Não, nheu fico co’ Santo e você co’ Presidente que djá deve de

tá lá embaitxo da xá cama.

MAZO- Never, nem que me obrigue a mamá na onça, eu não fico co’ Presidente.

DITA- Então vamos disputar na sete maria.

MAZO- Sete maria não, no elástico.

DITA- Amarelinha.

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MAZO – Três Maria.

DITA – Pique latinha.

MAZO – Cobra cega.

DITA – Caiu no poço...

MAZO – Quem tira? ...Barata voa.

DITA – Não, uestope

MAZO – Ce ce re re ce ce

DITA – Jogo da velha.

MAZO – Mamãe já morreu lerda! Bozó, em baixo.

DITA- Fu de boca.

MAZO – General, xeque mate, ganhei!

DITA - Já sei! Na funda. Quem conseguir da fim no Presidente leva o Santo.

MAZO – Esse vai ser mole. Venha chulinho... (começa a rosnar pra elas).

DITA – Presidenteeeeee, olha a mochiba que nheu truce pro ce... Pegaaaaa!

MAZO - Passa cachorro! Esperá ai! Dexa eu mirar a funda...

MAZO – Pega. Sai Dita, ai, passa, passa catchorro nojento, passa, aiiiii Dita, ocê acertou

minha cabeça.

DITA – Agora como que nheu vou diferenciar ocês dois? Tudo co a mesma cara.

MAZO – Passaaaaaaaa!!!!!

BLACK-OUT

CENA 07

Luz-out, as duas estão no palco com uma carta na mão, contando como cada uma está

vivendo as dificuldades da vida e sob ausência da mãe; cada uma de lado, com apenas um

foco sobre elas.

MAZONINA – Querida irmã Benedita, cheia de garbo e simetria, tô mandano essa cartinha

pra avisá que aqui tá tudo bem, a num cê Chicão que tá bebeno iguá gambá e atasanano minha

paciência. Tia Doquinha tá morano aqui cô nós e cada dia que passa tenta fazê simpatia pra vê

se dá fim na birruga do cú que ela tem. Até fio de cabelo já amarrô e num deu certo. Meus

fios tão tudo bem só tava cô verme e catapora mas nheu soquei fedegozo e foia de São

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Caetano neles. Óia bandida, hoje nheu amanheci c’uma cara de boi sonso, tão triste. Nheu

oiava prum lado e pro outro, me dava uma vontade de tchorar, lembrando de nossas brigas,

algazarras e bricadeiras na época em que mamãe ainda vivia. Lembrei do velório de mamãe...

Ela era invejosa meszmo né Dita! Imitano seu Imilianinho. Lembrei de tudo o povo daí. A

saudade é grande. Óia, nheu finalizo essa cartinha mandano ocê tomá no cesso que até hodje

ocê num mandô o dinheirinho daqueles doce que pedi pro cê vendê pra mim... vê se num

demora viu? Venha me visitá! Lembranças a todos. Boas festas e feliz Natal. Abraço,

Amazonina.

BENEDITA – Ìstimada Mazonina! Recebi suas notícias e criei corage pra te escrever, ponto e

virgula. Bom, bamos nas notícias: sua rivar Chulipa montou um cabaré de nome Maria

Careca; Dona Maria do pão doce tá tocano um bolicho; ocê lembra do xô Alis? Pois é, ele

revirô cô a caçamba só foi graça. Escuta, o baile do quartel não é mais o meszmo como de

antes... A comunidade num participa mais... Esses dias lembrei de Presidente e o banzé que

ocês formava. Tempo bom né Mazonina?!! Esteêê, acho que mamãe tá me assombrano. Num

tenho certeza, mas pela cara da aparição era mamãe! Minhas crianças e Presidente também

tão cô verme, vê se arranja casca de quina pra mim. Catchorra, vê se me devorve o cinto de

tala larga que ocê levô e os batãons... Vou terminando sentindo muito sua farta porque ocê

estará sempre nas minhas lembrança. Deus te proteja e guarde xeu lar. Um abraço de sua irmã

que tanto te quer... Dita.

BBLLAACCKK--OOUUTT

FFIIMM