cidade de terra: lutas de ocupações urbanas por moradia em belo horizonte

Upload: bruno-vieira

Post on 12-Jul-2015

454 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Trabalho de conclusão de curso do jornalista Mateus Coutinho (UFMG). Belo Horizonte, dezembro de 2011.

TRANSCRIPT

mateus coutinho

cidade de terraLutas de ocupaes urbanas por moradia em beLo Horizonte154

Mateus Coutinho

cidade de terraLutas de ocupaes urbanas por moradia em beLo Horizonte

"Hoje, mais que nunca, no existe pensamento sem utopia. Ou ento, se nos contentarmos em constatar, em ratificar o que temos sob os olhos, no iremos longe, permaneceremos com os olhos fixados no real. Como se diz: seremos realistas... mas no pensaremos! No existe pensamento que no explore uma possibilidade, que no tente encontrar uma orientao."Henri Lefebvre. espao e poltica.

5

ndice

um convite cidade

09 13 41 57 85 107 135

1

busca por Histrias

2

ocupando

3

por trs do quintaL de anLia

4

mais que apoio

5

do outro Lado da rua

6

na Luta, a Luta

Um convite cidade

mesmo? Mas isso s em Belo Horizonte?, a cara assustada, o olhar incrdulo e a prpria expresso da fala no deixavam dvidas. At pouco tempo aquele tenente do Batalho de Polcia de Eventos comentava a quantidade de trabalho que tinha ao realizar aes de despejo em todo o estado. Sem esconder seu posicionamento sobre os movimentos de moradia, ele contava sobre os filhos de papai e pessoas que se passavam por necessitados nos protestos e ocupaes que tinha que acompanhar. Certamente no mudei seu posicionamento, mas, ao ver sua cara quando comentei que existem mais construes vazias do que pessoas precisando de moradia em Belo Horizonte e no pas, soube que mostrei quele policial como o problema habitacional era complexo, ou pelo menos o incomodei. Enquanto a cerveja gelada descia pela minha garganta eu tentava entender, sem acreditar, como fui chegar atrasado ao encontro de antigos amigos e justamente ter ficado com o lugar que sobrara, ao lado daquele policial, amigo de um amigo meu de infncia, que eu nunca havia conhecido. No poderia ter sido a chance mais oportuna e infeliz para tal encontro. Aps vrios finais de semana atravessando a cidade rumo ocupao Dandara para acompanhar mais de perto a luta daquelas pessoas, eu havia tirado aquele final de semana para09

ir minha cidade natal, So Joo Del Rey, visitar meus parentes e, sobretudo, minha av recm recuperada de um AVC. Mas nem o lcool parecia conter minha ficha caindo. A situao, digna de um caso de pescador, era real e aquela noite de sbado, que havia planejado para me desligar um pouco da luta por moradia, acabou se tornando mais uma ocasio para discutir sobre as ocupaes urbanas. Para minha surpresa, o policial, que at antes de saber do meu trabalho, criticava a forma como a imprensa retratava o trabalho de seu Batalho, sempre explorando os casos de violncia e agresso, acabou se mostrando interessado nos polmicos processos jurdicos envolvendo as ocupaes que eu pretendia abordar. Alm de policial ele tambm era estudante de Direito. At hoje tenho lembranas daquela noite e sei que ela no terminou ali naquela mesa de restaurante em meio a alguns amigos e bebida. Mais do que uma inesperada situao, aquela noite acabou me fazendo perceber o maior desafio que teria ao lidar com uma realidade to distinta da minha naquelas ocupaes, compreender o meu lugar e o lugar das fontes antes de me deixar levar por qualquer pr-julgamento. Um jovem de classe mdia surpreendido, um estudante universitrio tentando entender um pouco de sociologia urbana, um jovem com seus ideais polticos, uma pessoa sem capacidade para querer julgar uma realidade at pouco tempo alheia a ele. So alguns dos lugares que me coloquei ao longo deste livro e que deixo para o leitor avaliar se foram suficientes para superar os desafios que tinha a minha frente. O fato que, a cada nova viagem que fazia pela cidade rumo quelas ocupaes uma parte de mim ia se incomodando. A cada prdio, rua, avenida e fachada que passavam pelo meu caminho uma dvida voltava a minha cabea. A quem, ou para qu, de fato, nossas cidades esto servindo? Qual o significado se esconde por detrs de todas aquelas veias de concreto rasgando o solo, no meio das quais10

se erguem as mais diferentes obras, fachadas e portentosos prdios de concreto, como que querendo provar natureza e a ns mesmos qual a ordem (democrtica?) que impera. Nada mais encontrei alm de especulaes para tentar acalmar este incmodo. Fiquei apenas com a certeza de que aquele jovem oriundo de uma classe mdia que pode se dar ao luxo de discutir sobre problema urbano em uma mesa de restaurante sem nunca ter pisado em uma ocupao no mais o mesmo. Experincia que deixo registrada nas pginas que se seguem trazendo mais do que um pedao meu, um convite para conhecer as complexas cidades de terra que so as ocupaes urbanas aqui retratadas.

11

1Busca por histriasRodeado de nascentes preservadas, com muito verde, uma vista panormica da grande Belo Horizonte e uma brisa para esquecer o estresse da cidade grande. Descrio que caberia muito bem em um anncio publicitrio como o de tantos outros condomnios ecolgicos que se v pela cidade. Mas, ao entrar na Dandara, muito mais do que a dimenso e as qualidades do terreno, chama a ateno a forma estranhamente organizada daquele emaranhado de barracos e suas ruas de terra cortando o lugar. No difcil lembrar a primeira impresso que tive quando fui l, um silncio marcante, e uma aragem que, de fato, te conseguem fazer esquecer por instantes o ritmo da cidade grande. Em meio a isso um amontoado de barracos feitos de papelo, pedaos de placas, madeirite e lona mesclado com obras de tijolo se erguendo e at casas com uma fachada bem construda. Um cenrio cuja calma incomoda e faz lembrar muitas das imagens de guerra onde se v casas e barracos por construir entre ruas de terra. Com o tempo, se torna notvel como aqueles barracos cercados e aquelas ruas seguem uma lgica planejada que fazem de l no uma favela como tantas outras espalhadas pelas cidades, mas um projeto de habitao. Mas, se tem uma lio que Dandara ensina que nada l13

dentro to bom ou ruim quanto parece, e que no faltam esforos para que ela esteja sempre melhorando. Hoje com cerca de mil famlias, Dandara possui um centro ecumnico que est terminando de ser construdo em mutiro, um centro comunitrio, com duas salas para receber visitas e realizar reunies, alm de espaos destinados para a construo de uma creche comunitria, uma horta comunitria e parques para a populao, ainda que nada disso tenha sado do papel. A ocupao organizada em nove grupos ou setores divididos pelo terreno, cada qual com aproximadamente 100 lotes que possuem dois coordenadores para administr-los. Toda semana os grupos tm reunies com seus coordenadores nas quais so discutidos os problemas e necessidades do grupo, as propostas para lidar com eles e feito um repasse do que foi discutido nas reunies da coordenao, que ocorrem todos os sbados pela manh. A coordenao composta pelas 18 lideranas, mais representantes das Brigadas Populares, Comisso Pastoral da Terra e outros apoiadores que atuam l desde o incio, alm da Rede de Educao Cidad articulao de diferentes atores, entidades e movimentos sociais que promovem a mobilizao e educao popular de setores mais vulnerveis social e economicamente, como mulheres, negros, pobres e populao LGBT. Todos os sbados pela manh eles fazem uma reunio onde discutem os problemas, desafios e propostas para a comunidade. Nas quartas-feiras s sete da noite a coordenao se rene novamente e define o que vai ser repassado para a comunidade na Assembleia Geral, que ocorre todas as quartas s oito horas na parte externa do Centro Comunitrio, localizada na regio mais alta da ocupao onde, nos quatro meses iniciais, os ocupantes viveram sob o cerco da polcia. E exatamente neste local que fica uma das entradas principais, e na qual se pode ver uma placa escrita Comunidade Dandara. Uma definio que chama a ateno pelas diferentes inter14

pretaes que suscita: quando comea, a gente chama de ocupao, acampamento. Quando a ocupao comea a se consolidar, suas ruas comeam a ser demarcadas, respeitadas, as casas construdas, os equipamentos coletivos, quando tudo isso comea a ser uma realidade, entendemos que passa a ser comunidade, explica o advogado e militante das Brigadas Populares, Joviano Mayer, que participa da ocupao desde o incio. No incio muitos falam em invaso, depois descobrem que a palavra correta ocupao, porque uma coisa legtima, voc est ocupando uma propriedade que no cumpre funo social. A depois cresce a organizao e o povo comea a falar que uma comunidade, porque hoje tem sentimento de comunidade. Tem os grupos, coordenao, centro comunitrio, horta comunitria, horrio da celebrao [missa], uma comunidade onde todos do as mos, explica o Frei Gilvander Moreira, assessor da Comisso Pastoral da Terra, que tambm atua na Dandara desde o incio. No faltam definies para a comunidade, que vo desde um objetivo de legitimao poltica at a consolidao de laos quase que familiares. Para quem pisa l pela primeira vez fica a dvida sobre o que realmente se passa na Dandara. Diante disso procurei a melhor forma, ou pelo menos a mais fiel s pessoas que l vivem, de tentar responder esta e outras dvidas, pela boca dos prprios moradores. Estava iniciada minha busca por histrias.

nos laos da lUta Che Guevara, Martin Luther King, Zumbi dos Palmares, Irm Dorothy. Estes e outros personagens polticos do nome a algumas15

"Um cenrio cuja calma incomoda e faz lembrar muitas das imagens de guerra onde se v casas e barracos por construir entre ruas de terra [...]"16

17 Cyro Almeida

"No difcil lembrar a primeira impresso que tive quando fui l, um silncio marcante, e uma aragem que, de fato, te conseguem fazer esquecer por instantes o ritmo da cidade grande[...]"18

Mateus Coutinho

ruas de terra da ocupao Dandara. A escolha por fazer as homenagens veio dos prprios moradores quando ali foram estabelecendo seus barracos e abrindo as ruas. Em meio a tantas figuras marcantes da luta poltica, uma rua na parte mais baixa do terreno leva o nome de duas personagens no to famosas, mas nem por isso menos marcantes na Dandara: Beatriz e Esthefany. Foi l que, em maro de 2010, duas irms, uma de seis e outra de sete anos, morreram carbonizadas enquanto dormiam dentro do barraco de madeirite que foi incendiado por Carlos* (os personagens desta histria sero apresentados com nomes fictcios). Por volta de meia-noite, a me Vera Lcia foi levar o filho de seu cunhado Ricardo*, que estava na casa dela e sentindo falta do pai, para encontrar com ele em um bar onde Ricardo estava ali prximo. Ao chegar no local para conversar com o cunhado, Vera avistou o incndio de longe e voltou correndo para a Dandara, mas j era tarde demais. O pai das garotas estava trabalhando no horrio e tambm no presenciou o incndio. Cerca de trs meses antes do ocorrido, Ricardo comeou a se envolver com Carla*, a esposa de Carlos. O marido, contudo, acabou descobrindo e chegou a ameaar Ricardo. Ainda assim, muitos moradores disseram ter visto os amantes se encontrando novamente, at que, um dia antes da morte das crianas, Carlos foi preso por agredir a esposa. No dia seguinte ele foi libertado e, por volta de meia-noite, o barravo de Vera foi incendiado. No local do incndio foi encontrado tner, material inflamvel que Carlos utilizava em seu trabalho de fazer portes para grades. Aps o ocorrido nem Carlos nem Carla foram vistos novamente na Dandara. Desde ento, os moradores decidiram prestar sua homenagem s pequenas moradoras da comunidade. Algumas casas acima, na rua ao lado, mora ngela, que at hoje se lembra da noite: acordei de madrugada com o barulho da tornei19

ra do meu quintal aberta e fiquei sabendo do incndio, mas, quando cheguei l, j tinham levado os corpos das meninas. Presente desde o incio da ocupao, ngela a coordenadora responsvel pelo setor 5, onde hoje fica a Rua das Flores. O nome simboliza o objetivo pacfico das pessoas que foram para l em busca de seu direito moradia. uma senhora baixa, de cabelos curtos e olhos claros, que se orgulha do trabalho que faz para a comunidade e adora receber visitas. Aqui tem muitos relatos, muitas histrias, todo mundo veio no intuito de conseguir um lugar pra morar, s que chegando aqui conseguimos muito mais que isso. Nascida em 1959 no bairro Padre Eustquio, regio noroeste de Belo Horizonte, ngela Fagundes Pinto se casou em 1984 com Jos Pinto Sobrinho, que trabalhava de maitre, e os dois foram morar de aluguel no bairro Lagoinha, tambm na regio noroeste da capital. Contudo, em 1986, Jos comea a adoecer e ngela, que at ento era dona de casa, tem que ganhar dinheiro para sustentar a famlia e o tratamento do marido.Logo depois que nos casamos ele adoeceu, teve cncer na garganta, tudo que eu ganhava era para tratar a doena, naquela poca no era igual hoje que tem Samu, tudo tinha que ser no dinheiro mesmo. Ele vivia mais internado do que em casa. Eu sei que foi uma dificuldade to grande, ele parou de trabalhar e no tinha como eu cuidar dos dois meninos, por isso fui pedir ajuda para o meu cunhado, que na poca tinha uma condiozinha melhor. Ele estava doido para comprar um boteco, a ele me mandou um dinheiro, falando para eu tratar do irmo e dos sobrinhos dele, ento eu fui e comprei um bar l na Lagoinha com o dinheiro emprestado.

Por seis anos ngela conseguiu criar os filhos trabalhando no bar, at que seu marido faleceu: como morvamos perto da Pedreira Prado Lopes [um dos aglomerados com os maiores ndices de violncia de Belo Horizonte], e eu pagava o aluguel da casa e do bar, estava muito20

pesado para mim. Assim que ele morreu, minha me me levou para o Serra Verde [bairro na regio norte da cidade], e me falou para montar o bar l. Durante cerca de um ano e meio ficou morando em um apartamento com a me e os sete irmos, tarefa que no foi fcil: morvamos em um apartamento pequenininho, aqueles da COHAB-MG [Companhia de Habitao do Estado de Minas Gerais, criada para combater o dficit habitacional e urbanizar vilas e favelas], sabe como que n? Era um sofrimento, tive que desfazer das minhas coisas. Como se no bastasse a falta de conforto, a relao com alguns de seus irmos no estava muito boa, e ela acabou alugando dois cmodos em uma casa no mesmo bairro. Meu irmo tava enchendo o saco, falando que depois de casada eu tinha que ter minha prpria casa, ficava humilhando meus meninos, a peguei aluguei os dois cmodos e fui. Chegou l, a mesma coisa, a mulher [dona da casa] enchendo o saco. Nem meus irmos podiam me visitar porque eu no podia receber visita de homem, morar de aluguel muito sofrimento, j penei, meu filho. Por quase oito anos ela aguentou viver no Serra Verde, at que um dia ficou sabendo de uma ocupao que estava ocorrendo no bairro e decidiu participar. Vi essa ocupao, peguei e disse, 'seja o que Deus quiser, vou entrar l', mas eu no tinha a mnima ideia do que era ocupao. H sete anos participando do Movimento de Luta por Moradia, pelo Ncleo Serra Verde, ela nunca havia sido contemplada pelo programa habitacional da prefeitura, que distribui moradias aos membros dos ncleos. Ao decidir participar da ocupao, ngela deixou de fazer parte do ncleo e sua irm passou a ocupar seu lugar. Desde o incio da histria de Belo Horizonte, o movimento de luta por moradia esteve atuante, por meio de ncleos e associaes de sem-casa que se organizavam para lutar por um lugar onde morar. Mas, em 1993, surge o Oramento Participativo da Habitao (OPH), uma poltica habitacional que busca dialogar com estes21

movimentos, e prope a institucionalizao deles por meio de ncleos de moradia cadastrados em cartrio. Em outras palavras, mesmo continuando com sua organizao e administrao prprias, os ncleos, para participar da poltica habitacional de Belo Horizonte, tm que atender a algumas demandas da prefeitura. Alm de terem que ser reconhecidos em cartrio, eles devem se reunir periodicamente, preencher uma lista de cadastro da prefeitura e participar dos Fruns do Oramento Participativo da Habitao. Nestes Fruns so definidas quantas moradias sero produzidas e quais os ncleos sero beneficiados, de acordo com a quantidade de famlias participantes do Frum que cada ncleo possuir. As pessoas que participam na organizao dos ncleos ou contribuem para seu funcionamento no precisam ser necessariamente sem-casa. Contudo, somente os filiados aos ncleos que atendem aos critrios da prefeitura podem ser contemplados com o benefcio. Para tanto eles devem ter renda de 0 a 5 salrios mnimos, residir h pelo menos dois anos na cidade e no ter casa prpria, o que inclui as pessoas que moram de aluguel ou de favor. Aqueles contemplados pelo OPH financiam suas residncias de acordo com sua condio financeira a preos subsidiados pelo Fundo Municipal de Habitao Popular. Atualmente existem 172 ncleos cadastrados e aproximadamente 13 mil famlias na fila de espera do OPH. Sem lembrar a data da ocupao, h cerca de 17 anos, ela logo ajudou a tomar frente na luta: fui a primeira mulher de Belo Horizonte a levar 70 pessoas para o Frum Lafayette [frum municipal] por causa dessa ocupao, conta orgulhosa. Mas sua disposio no foi suficiente para evitar o despejo ainda naquele ano: constru dois cmodos, fiquei toda feliz quando me mudei, mas no adiantou nada, me despejaram. Aps oito meses, as 34 famlias que tentaram se estabelecer no terreno sofreram o despejo, deixando todos, literalmente, na rua:22

quando eles nos despejaram ns ficamos 10 dias na rua, at que uma dona l passou e falou que tinha um terreno ali perto para poder doar. Na mesma hora aceitamos. O terreno era pequeno, trs lotes, mas foi de bom grado, fomos todos para l, ficamos debaixo de lona e construmos nossas casas. A moa era uma dos mais de 30 herdeiros de Antnio Luciano Pereira Filho, que durante muito tempo esteve entre os homens mais ricos de Belo Horizonte. Ele faleceu em 1990 deixando herana de U$ 3 bilhes de dlares e aproximadamente 40 mil imveis no municpio, alm de fazendas que possua pelo interior. Ela viu na TV, se sensibilizou com a nossa situao e foi l ajudar, conta ngela, lembrando de todo o apoio que recebeu da rica herdeira: na poca ela teve muita coisa comigo, ajudei muita gente l no terreno sabe, ento ela at me ajudou bastante, me deu dinheiro pra comprar cimento e telha que eu no tinha. E assim as 34 famlias foram construindo suas casas nos trs lotes doados do bairro Enseada das Garas, um tradicional bairro de classe alta prximo Lagoa da Pampulha, na regio norte de Belo Horizonte, cujos moradores, temendo a desvalorizao do terreno com a chegada das famlias, tentaram vrias vezes retir-los de l. Sofremos discriminao quando chegamos, os vizinhos tudo chamaram a policia pra ns, a PM veio vrias vezes, cada dia um chamava, apresentvamos o documento [do terreno, que a herdeira havia passado para as famlias] e eles no podiam fazer nada. Mesmo assim lutaram pra tirar a gente de l porque ia desvalorizar o terreno deles, voc sabe que assim, pobre morar em lugar de rico eles falavam que ia desvalorizar, estavam achando que estvamos ocupando mas num ocupamos nada. Quando a luta de ngela por conseguir sua moradia parecia ter chegado ao fim, ela iria se deparar com um desafio muito mais familiar do que propriamente financeiro: conviver com a nora. Com o passar do tempo seus filhos se casaram, um deles foi morar em Sarzedo, no interior do estado, e ela passou a morar com o outro em um barraco no23

Enseada das Garas, voc sabe como morar com nora, n?, resmunga ela. At que em 2009 ela ficou sabendo da ocupao que estava sendo planejada no bairro Nova Pampulha, na regio noroeste da cidade, e decidiu participar. Eu nem pensava em morar aqui, vim pra c por causa da minha irm, arrumei essa barraquinha aqui pra ela [alm do barraco onde mora, seu terreno possui um outro ao lado que ela est terminando de construir para a irm]. Minha irm tem dois meninos e doente, coitada, tem problema de desmaio, tireide, num muito certa das bolota, a vim pra c por causa dela, acabou que gostei e arrumei uma rea pra mim. Em busca de um canto s seu e na oportunidade de ajudar a irm deficiente, que ainda mora com a me, ela iria arriscar suas chances em uma segunda tentativa de ocupao, experincia que lhe renderia ainda mais histrias. Ah, era muito bom viu, era um sofrimento, mas era uma luta com todo mundo juntinho um com o outro, se desse um espirro o outro escutava, era uma festa, no era ruim no, a dificuldade porque no tinha gua nem luz, conta ela que at hoje sente saudades dos primeiros dias da ocupao. E foi nesse ambiente que seu interesse pelos movimentos sociais foi crescendo. At ento ela tinha ouvido falar de Movimento Sem-Terra apenas pela TV, e na Dandara teve a oportunidade de conhecer um pouco melhor o movimento, e at de fazer parte dele: o MST entrou junto com as Brigadas [Populares], e os dois davam cursos de formao. Tive duas oportunidades de ir para o MST, mas no sei por que no fui, e quando me chamaram para fazer curso nas Brigadas eu fui. Hoje ela tambm se considera uma simpatizante do MST. Quase trs anos depois de ter iniciado sua formao nas Brigadas Populares e ter sido escolhida como uma das 18 lideranas da Dandara (so dois coordenadores para cada setor), ngela gosta muito do trabalho que realiza e do lugar onde vive. Gosto demais daqui, muito24

Aqui tem muitos relatos, muitas histrias, todo mundo veio no intuito de conseguir um lugar pra morar, s que chegando aqui conseguimos muito mais que isso, ngela25

Mateus Coutinho

tranquilo para morar, a gente tem muita amizade, um precisa de uma coisa e vai para casa do outro, aqui dentro tem muita unio. Nas reunies vai bastante gente, e ,quando um morador afasta, a gente vai e busca. Aqui se tornou uma verdadeira grande famlia.

Famlia qUe acolhe Em minha primeira entrevista com uma moradora da Dandara no poderia ter ficado com a curiosidade to atiada. Desde a primeira visita que havia feito l, passando pelas inmeras conversas com apoiadores e pessoas ligadas quela luta, a forma como era mencionada a ligao dos moradores de l como uma comunidade me pareceu estranhamente forosa e, at certo ponto, vaga para descrever aquele lugar (afinal de contas uma favela ou um bairro tambm no podem ser, em certa medida, comunidade?). Talvez por causa de um certo clich jornalstico de sempre duvidar das coisas primeira vista, talvez pela prpria dimenso da Dandara, que faz qualquer desacostumado quela realidade (e com alguma dose de preconceito) duvidar da capacidade de organizao e articulao daquelas pessoas, o fato era que aquele termo sempre me chamara a ateno. E ali, logo nos primeiros depoimentos que ouvia daquela liderana, pude perceber que a noo de comunidade de que tanto se fala na Dandara poderia ser mais intuitiva e prxima de uma vida de cidade pequena do que havia pensado inicialmente. Grande famlia, uma expresso idlica que, se por um lado lembra um desejo to comum em nossa sociedade de poder viver em um lugar tranquilo, sem o barulho e a agitao das cidades grandes, e com uma boa e conhecida vizinhana, por outro no deixa de incitar certa desconfiana quanto aos verda26

deiros laos daquelas pessoas. Foi com dvidas como estas na cabea que me direcionei ao barraco de uma vizinha de frente ngela, e que iria me mostrar como nada naquela comunidade estava livre de paradoxos e contradies que podem fazer cair por terra qualquer pr-concepo acerca daquelas pessoas e suas vidas. Na entrada da casa, um cubculo de tijolos mostra coberto com telhas de fibra de vidro como tantos outros da ocupao, uma cerca com pedaos de madeira e arame que d para um jardim. Do lado de fora do barraco, prxima ao tanque na parte lateral da casa, uma criana brincando com sua boneca e os cachorros passando. Por toda a ocupao os cachorros so presena marcante. Quer dentro das casas, quer perambulando pelas ruas de terra, impossvel ir Dandara sem se deparar com pelo menos meia dzia destes animais. Alguns deles foram abandonados no terreno pelos seus antigos donos de fora da comunidade, muitos so vira-latas e h at ces de raa que alguns moradores conseguem para vender. Logo ngela e eu atravessamos o quintal e nos deparamos com Simone passando roupa em uma cadeira na parte de dentro do barraco. O local basicamente uma rea quadrangular cujo nico cmodo separado por uma divisria o banheiro nos fundos cuja entrada um tecido velho pendurado no que seria o lugar da porta. Ao lado de onde Simone secava as roupas havia um mvel com uma televiso estragada e uma pia e um armrio de cozinha no canto. direita da pia, duas geladeiras, uma encostada no canto da parede e outra de frente para ela, prximo a uma das camas, mas apenas a do canto estava funcionando j que graas aos gatos de luz o fornecimento de energia inconstante e, no raro, acaba queimando muitos eletrodomsticos. De frente para essa cozinha, um emaranhado de armrios e pedaos de mveis de madeira separando uma velha cama de casal do lado direito e uma, to velha quanto, cama de solteiro do outro lado. No canto, de frente para as camas e antes do banheiro, algumas cadeiras velhas terminavam de compor o bagunado cenrio.27

Com bom humor e disposio para conversar, em pouco tempo Simone ajeita as roupas e me indica uma carteira velha, destas que so utilizadas em escolas e tm um apoio para cadernos, para eu sentar. Sentada na ponta de sua cama de casal, de frente para mim, comeamos a entrevista. Tem hora que...vou ser bem sincera, tem hora que bate uma certa indignao na gente sabe, porque vou te falar, quem trabalha em obra v muito desperdcio, muita desigualdade. Ento acho que muita coisa poderia ser evitada se, sei l, as pessoas fossem mais humildes sabe?. Essa uma das sensaes experimentadas por Simone Gomes da Costa em seu trabalho como rejuntadeira (vai na etapa final da obra para fazer rejunte em pisos e paredes), sobrevivendo da produo daquilo que ela luta para conseguir: moradia. H dois anos ela foi para a Dandara, cansada de viver de aluguel no bairro Nacional, em Contagem, com trs filhos para cuidar e recentemente separada do marido. Decidiu arriscar suas chances na ocupao, e o acolhimento que recebeu marcaria sua vida. Eu vim conhecer, fiquei um pouco insegura no incio porque no sabia como funcionava, no entendia nada e era sozinha tambm com aquele medo todo. Mas como se diz, a necessidade fala mais alto. Vim, enfrentei, peguei com Deus e falei melhor viver aqui do que de aluguel, conta ela que reclama at hoje do ex-marido. Cerca de um ano depois da separao, ele parou de enviar dinheiro para sua filha mais nova, nascida no ano do rompimento e hoje com quatro anos. Vim com Deus e a pequena (sua filha mais nova), fiquei morando quatro meses dentro de uma barraca de lona, foi muito difcil porque quem construiu praticamente fui eu, algumas pessoas me ajudaram, mas foi tudo improvisado e muito rpido. Inicialmente foi morar na parte mais baixa do terreno, prximo ao Crrego Olhos dgua. Como naquele perodo inicial da ocupao a rea era pouco habitada e tinha muitas pedras, o que dificultava a28

construo de barracos, sobretudo para uma mulher sozinha, ela conversou com uma famlia que morava na parte mais alta e ocupada do terreno e conseguiu trocar de lote. A troca entre moradores comum quando eles, junto com as lideranas, concordam ser necessria a mudana das famlias. Desde ento ela mora na parte mais alta, onde construiu sua primeira barraca de madeirite.Eu fiquei morando um ano e trs meses na barraca de madeirite aqui atrs, tem at marcado onde . Era eu e a pequena, foi muito difcil sabe? S Deus sabe o que eu passei na poca de chuva. Mas sempre tem uma coisa que fica para o resto da vida. Quando chovia, tinha vezes que eu pensava que se ficasse do lado de fora estaria melhor do que dentro da barraca. Como eu no sabia construir, constru onde passava enxurrada, e a gua descia toda no meio do barraco. Eu no sabia o que fazia. O telhado eu ganhei de doao de um colega, as telhas eram velhas, pingava muito, vinha gua do teto e da enxurrada. A eu me lembro que sentava com ela [a filha] dormindo, abraava ela e ficava chorando com a enxurrada passando. Mas a, graas a Deus, foi muita luta, muito triste, mas estou aqui.

Enquanto contava, ela no parava de rir, o que na hora no me pareceu to estranho quanto sincero, como se no fundo aquilo fosse uma forma de ela demonstrar que estava grata por ter superado as dificuldades que passara. Quanto mais ia ouvindo aquela histria seguida por suas risadas mais me dava conta de como rir ao invs de chorar pode ser to significativo para quem passou por tantas dificuldades e lutas. Durante o perodo em que viveu na barraca de madeirite ela trabalhou em grandes empresas de construo civil da cidade, e no deixou de pedir ajuda nas obras em que ia:Teve uma vez que pedi para o mestre-de-obras e falei com ele que meus madeirites estavam todos quebrando, sabe? E eles29

tiraram uns trs caminhes de madeirite pra jogar fora, por fogo. A eu cheguei perto dele e pedi, expliquei minha situao. Ele virou pra mim e falou que tinha ordens do dono para no deixar tirar um caibro que fosse. Por um lado entendi a situao dele porque ele tambm cumpria ordens, no era bem culpa dele, seno ele seria demitido. Mas o que eu falo, quem no deixava tirar realmente era a prpria construtora, proibido, qualquer construtora, eles preferem jogar fora do que doar para algum que precisa.

Se as empresas no ajudavam, alguns colegas, quando podiam, faziam algumas doaes para ela, e foi exatamente um destes colegas que fez com que ela pudesse sair do madeirite e arrumar os tijolos para seu barraco. Chegou a poca que eu tive que arrumar um jeito de construir, o madeirite j no estava aguentando nada, tinha risco muito grande de acabar cedendo mesmo. Peguei e comecei a preocupar em construir, muitas pessoas me ajudaram, um colega meu me ajudou muito, ele conhecia um rapaz que tinha olaria e conversou com ele pedindo refugo [tijolo com defeito que as olarias no conseguem vender e nem aproveitar de outra forma]. O dono da Olaria acabou aceitando ceder os tijolos, desde que ela fosse l busc-los. E assim ela e ngela foram a Justinpolis, um distrito de Ribeiro das Neves, na Regio Metropolitana de Belo Horizonte, onde fica a olaria.Minha madrinha foi comigo, fomos debaixo do sol quente, eu chorava e ria ao mesmo tempo, chorava de tristeza porque estava pesado e difcil debaixo do sol quente, mas sorrindo porque sabia que ia conseguir levantar meu cmodo, ia sair da barraca de madeirite, n?, at que enfim. Ento foi assim, consegui com muita luta, com ajuda da minha madrinha, do pessoal que me ajudou muito aqui, consegui levantar aos poucos, o telhado quem colocou foi minha madrinha porque eu no sabia mexer com isso. O piso tambm foi minha madrinha, o piso grosso foi a esposa do meu padrinho que fez. Mas a consegui fazer, graas a Deus. Quem v, fala que feio, mas pra mim minha manso, o barraco mais bonito daqui.30

At chegar na Dandara, Simone no havia sido batizada, situao que mudaria com o acolhimento que ela recebera l dentro. Antes de seu barraco de rejunte ser construdo, ela e sua filha ficaram vivendo por um tempo com ngela. Um dia ela viu que minha situao estava difcil e ofereceu para eu dormir uns dias l no barraco dela at conseguir levantar a minha barraca. Acabei ficando uns dois meses e com o tempo surgiu a construo da igreja que tinham planejado e que iriam inaugurar com um batizado comunitrio. Eu num era batizada e estava morando l, a a ngela pegou e falou comigo, por que voc no batiza? Eu fiquei sem saber o que responder, mas ela insistiu eu disse que aceitava s se ela quisesse ser minha madrinha, a ela respondeu que ia me bater se eu escolhesse outra, comenta ela, rindo. E assim Simone acabou ganhando uma madrinha e um padrinho, o Marquinhos, que coordenador do grupo junto com a ngela e tambm deu apoio Simone em sua chegada na comunidade. Hoje ela no esconde sua satisfao por morar onde foi to bem recebida:Pra mim ela mais que madrinha, mezona. Me adotou aqui igual a terra que me adotou como filha e moradora. De vez em quando ela um pouco chata, mas normal. Mas isso, eu adoro aqui, j aconteceu muitas coisas que deixaram a gente triste, [conta ela relembrando o caso das meninas que faleceram] mas tambm temos muita alegria aqui dentro. Cada dia que acordo abro os olhos e penso que tenho minha casa e sei que no pago aluguel, a casa minha e dos meus filhos, onde temos uma estrutura de vida, um incentivo pra poder seguir em frente cada dia.

Ainda que tenha encontrado na Dandara uma grande famlia, Simone sente falta dos outros dois filhos mais velhos, uma menina de 16 anos e um menino de 14 que moram com o pai no Nacional. Como esto estudando e no conseguiram transferncia para escolas prximas da comunidade, eles, diferente da filha mais nova, de quatro anos, no vieram com a me. Se Deus quiser, com muita luta e fora, vou31

fazer nem que seja mais um cmodo, que a sim d pra trazer eles, colocar pelo menos uma caminha pra cada um, j que eles esto grandes. Nos finais de semana, os filhos costumam visit-la e at dormem l dividindo o espao das duas camas. Atualmente ela diz que trabalha, mas que est desempregada. O estranho paradoxo se explica por causa do tipo de trabalho que ela realiza, j que ela depende de ser chamada pelas construtoras quando h uma obra que precise de rejunte. E nem sempre as oportunidades so as melhores: h um tempo atrs me chamaram para uma obra s que era longe, tinha que pegar dois nibus e como eu que pago a passagem a fica complicado. Mas estou aguardando a resposta, se Deus quiser o mais breve possvel vai vim, ou da construtora que eu estava trabalhando, uma de uma prxima do Castelo [bairro] que meu padrinho trabalha e ficou de arrumar pra mim. Mas entre o final de 2009 e incio de 2010 sua espera foi longa: fiquei mais ou menos seis meses sem conseguir trabalhar e correndo atrs de servio. Como eu morava na barraca de madeirite que mofava muito, a pequena, com asma, passava mal direto. Ento assim, j recorri muito a eles aqui, graas a Deus sempre que precisei encontrei apoio, ningum fechou a porta, ignorou, por isso somos uma grande famlia. Hoje ela militante das Brigadas Populares, movimento que conheceu quando entrou na comunidade, e participa na Dandara do grupo de trabalho da Sade. Na luta que acabou escolhendo para si, aquele pedao de terra, com pouco mais de cento e vinte metros quadrados, at ento sua maior conquista, que ela no poupa esforos para exaltar.Nossa...isso pra mim ....j ouviu falar na Casa Branca n? No vou ser modesta no, acho que melhor, porque a minha casa, tenho meu jardim que amo de paixo, tenho minha horta tambm, minha filha que tem a liberdade de entrar e sair na hora que quiser porque a casa dela. Sempre morei de aluguel em casa pequena e com pouco conforto, ento o conforto que ela32

tem aqui hoje meus filhos mais velhos no tiveram, a liberdade de brincar, de andar, cantar, meus filhos no tinham.

Em meio ao orgulho e emoo que ela demonstrava, descobri a nica palavra que parecia tirar a alegria daquela mulher que ria mesmo quando se lembrava de suas dificuldades passadas: despejo. Ao lembrar-se do assunto sua expresso deixava transparecer um incmodo cujas palavras transcritas abaixo mal chegam perto de traduzir, mas que, ao mesmo tempo, so a maneira mais sincera de mostrar o que presenciei:Tenho muito medo, mas acredito muito em Deus. Sei que o que Ele quiser que seja feito por ns vai ser, mas temos medo porque quando ouvimos falar que tem despejo uma histria triste, n? J vivemos muitas coisas tristes e boas, j tivemos atos de desespero, umas pessoas desistindo de lutar, outras dando a prpria vida, mas difcil quando a gente ouve falar que vai ter ou que teve uma ordem, entende? Quando eu escuto isso, sento nessa porta [aponta para a entrada do barraco] que dali d pra ver tudo que eu tenho, meu comodozinho humilde, minhas coisas, minhas plantas, minha cachorrinha e a bate aquela tristeza, aquela dor, decepo, angstia. Vou confessar: eu choro, choro muito, mas depois eu penso que no adianta eu ficar chorando porque eu sei que Deus no tem planos de jogar esse tanto de famlia que realmente precisa na rua, no. E Ele sabe muito bem que aqui no estamos fazendo nada mais nada menos do que lutar por uma casa para criar os filhos, continuar a vida da gente e saber que amanh ou depois podemos no estar aqui, mas pelo menos sei que minha filha no vai ficar na rua, vai ter um teto pra morar, pra ela no precisar ser humilhada ou, Deus me livre e guarde, ficar vivendo na rua dependendo dos outros, sendo humilhada e desprezada. Eu j passei isso muito na pele e no quero isso para os meus filhos, por isso que luto sim, continuo lutando e no desisto no, s desisto na hora que Deus falar comigo, minha filha voc no vai continuar lutando porque nesse mundo voc no vai mais pisar. A eu desisto.33

Mais do que um apelo emotivo e uma f marcantes, aquelas palavras causaram em mim um arrepio, pois por trs delas, mesmo as que j eram de se esperar, estava o significado mais duro de tudo aquilo ali: pessoas dispostas a dar a vida. Mal sabia eu que por vrias outras vezes iria me deparar com casos semelhantes, o que me fez aprender muito mais sobre aquelas pessoas e sua luta do que eu imaginava. Em todas as outras entrevistas nas quais via essa mesma disposio, o arrepio voltava, me lembrando que, independente do quo acostumado eu estava realidade daquela comunidade, algumas verdades so difceis de digerir simplesmente por serem extremas. Por outro lado, a ideia de comunidade comeava a fazer mais sentido, e aqueles laos to familiares eram apenas uma demonstrao do que, em maior ou menor grau, se passava com as pessoas necessitadas que ali chegavam. Mas sem concluses precipitadas fui procura de outras famlias e histrias para contar, e nessa busca me deparei com S., uma me de 16 anos que conseguiu na Dandara o que ironicamente muitos adolescentes de classe mdia tanto desejam: um espao onde pode ser independente dos pais para tomar suas decises. Com o rosto de menina e as responsabilidades de uma dona de casa, ela recebe a mim e ngela em seu barraco, um cmodo quadrado onde se misturam sem divisrias um fogo e uma pia na parte da frente, uma geladeira e uma cmoda com televiso e um DVD no lado direito e um armrio no lado esquerdo. Ao lado do armrio e de frente para a cmoda, uma cama de casal com um bero na frente e, nos fundos da casa, uma entrada para o que parecia ser um banheiro. Prximo pia e quase no centro do barraco, uma mesa de madeira antiga que ela logo oferece as cadeiras para nos sentarmos. S. e o namorado de 18 anos moravam no Nacional at que, quase dois anos atrs, descobriu que estava grvida e, junto com ele, teve34

que procurar um local para morar: minha me no ia me deixar morar na casa dela, falou que ele [o namorado] tinha que arrumar um lugar pra gente ficar. Ela morava com a me e o padrasto, e revela que sempre teve dificuldades de conviver com ele, que tem duas filhas. A gente nunca se deu bem desde pequeno, ele brigava direto com minha me por causa de mim. Sua sogra Ierclia, que mora no lado oposto da rua, h alguns lotes acima, j estava na Dandara e ajudou a conseguir um espao para a nora, como conta ngela: na poca a dona que morava aqui desistiu, a passei pra eles. No comeo muito sofrimento, nem todo mundo aguenta. Tem gente que precisa, mas no tem coragem de enfrentar e na poca precisava enfrentar, descemos tudo aqui, abrimos as ruas no brao, moramos debaixo de lona, muita gente no tem peito pra isso. A a dona falou que no aguentava e que ia embora, por isso consegui colocar ela aqui. Assim ela e o namorado vieram para Dandara, e com o apoio de sua me e dos moradores foram construindo o barraco:A gente no tinha muita coisa, o que conseguimos construir aqui foi com ajuda dos outros, sabe? De pouco em pouco, minha me, a ngela ajudavam, de pouquinho em pouquinho, teve gente aqui de dentro que doou as coisas. Hoje ela, que parou de estudar na sexta srie, no trabalha e fica por conta do filho de sete meses. Seu namorado trabalha no Ceasa produzindo cestas e ganha pouco mais de um salrio mnimo. Para ajudar a cuidar do filho a ajuda dos familiares fundamental: O bero foi o padrinho dele [seu filho] que deu e a cmoda foi a sogra, antes no tinha lugar pra colocar as roupas dele. Minha me tambm ajuda a cuidar e sempre quando falta ela manda dinheiro para comprar as coisas para ele.

Com toda a ajuda que recebeu hoje ela gosta muito de viver na Dandara e revela que nunca teve medo de ir para l: assim no35

"Vim com Deus e a pequena, fiquei morando quatro meses dentro de uma barraca de lona, foi muito difcil porque quem construiu praticamente fui eu [...] ", Simone36

37 Mateus Coutinho

comeo vim sem conhecer ningum, agora eu conheo porque aqui praticamente uma famlia. Mas eu no tinha medo no, eu gostava de ficar sozinha sabe, e aqui eu posso ficar sozinha sem medo. Com seu jeito tmido ela conta que pretende voltar a estudar e concluir o ensino mdio: antes de ter ele eu j no ia mais na escola, mas tenho que voltar, sem estudo no consigo nada n? Tenho que voltar de qualquer jeito, ano que vem ele fazendo um ano eu volto. Ao ouvir isso ngela no perde a oportunidade de chamar a ateno de S. : nesse Dandara ningum pode ficar toa no, cabea toa oficina do diabo. Naquela semana, um funcionrio da prefeitura havia avisado ngela sobre as vagas na creche municipal ali prximo e ela estava explicando aos moradores de seu grupo para cadastrarem os filhos. a primeira vez que prefeitura vem oferecer berrio, agora passaram a nos respeitar porque esto at vindo na nossa porta, contava orgulhosa. Quieta, S. escuta tudo e promete correr atrs da oportunidade, pois com o filho no berrio ela poder ter mais tempo para concluir os estudos e at trabalhar. Passado o aviso, conversamos mais um pouco sobre o que ela pretende fazer na casa: quero fazer mais um cmodo, mas estou esperando o marido juntar dinheiro porque ele recebe 35 reais por dia. Estou esperando juntar uns 100 reais porque material est caro, a coisa comprar devagarzinho mesmo, aqui tem que ser aos pouquinhos. Para muitos que esto l este o ritmo de construo que parece definir suas vidas, de pouco em pouco, quer seja nos tijolos e mveis doados, quer no esforo de ir juntando dinheiro, a luta para conquistar aqueles pedaos de terra deixa suas marcas no terreno. E em meio a elas se erguem ali laos de amizade, convivncia e companheirismo que, cada um a sua maneira, constri para superar seus desafios.38

signiFicado em aBerto Uma senhora cuja moradia foi mais uma das lutas que enfrentou na vida, uma me de 30 anos preocupada com seu futuro e de seus filhos e uma jovem que, com 16 anos, comea a sentir o peso de ser me sem casa. Foram estas as trs histrias que escolhi retratar aqui para falar sobre a comunidade que se formou na Dandara. Mais do que uma estratgia poltica para legitimar a ocupao e a forma como ela foi organizada, a noo de comunidade parece traduzir-se nos vrios relacionamentos e formas de convivncia que ali foram se dando. Por um lado so apenas trs histrias, de tantas outras que caberia colocar aqui, um nmero nfimo para descrever a complexidade de todas as relaes ali presentes. Por outro elas refletem o que acontece em maior ou menor grau entre muitos dos moradores dali. Quer seja uma relao de quase parentesco que se forma, quer seja apenas um apoio temporrio em situaes difceis, na Dandara raro ver um vizinho que no faz parte, em alguma medida, da vida do outro. Talvez esteja a o melhor significado para a comunidade de Dandara, e que perpassa as diferentes histrias que se seguem neste livro.

39

2ocupandoTerreno rural em Justinpolis, denominado Olhos Dagua. At ento era esta a definio da rea localizada na fronteira entre Ribeiro das Neves, Belo Horizonte e Contagem, a noroeste da Regio Metropolitana da capital mineira. Dividido em glebas de 70.000, 50.000 e 195.000 m, o terreno estava oficialmente registrado na comarca de Ribeiro das Neves, municpio do qual Justinpolis distrito, e por mais de 30 anos esteve abandonado. At ento. Na madrugada do dia 9 de abril de 2009 cerca de 150 famlias ocuparam o terreno de 315 mil m. Em seu caminho nada mais que uma cerca de arame farpado, obstculo facilmente transposto por quem via naquela vasta rea abandonada a possibilidade de, finalmente, conseguir seu pedao de terra. As famlias estavam organizadas por trs movimentos sociais: Brigadas Populares, um movimento social que surge em Belo Horizonte em 2005, a partir de um ncleo de estudos marxistas agregando dissidentes de partidos da esquerda tradicionais e militantes do movimento estudantil; Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra; e Frum de Moradia do Barreiro, espao que rene vrias associaes de moradores e ncleos de sem-casa da Regional do Barreiro, em Belo Horizonte, que se organizam para pressionar os governos por polticas pblicas para a populao mais pobre, especialmente a moradia.41

Os ocupantes foram logo estabelecendo seus barracos de lona no local. Oriundos das Vila da Luz e Vila da Paz ocupaes no entorno da BR 262 que corta Belo Horizonte, tambm conhecida como Anel Rodovirio dos bairros Novo Boa Vista (regio leste da capital) e Aaro Reis (regio norte) e da cidade de Contagem, eles representam a parcela da populao que menos tem acesso moradia: a que possui renda de 0 a 3 salrios mnimos e constitui cerca de 89% dos 5,5 milhes de sem-casa no Brasil. J no primeiro dia de ocupao eles passaram pela primeira tentativa de despejo. Na noite daquela quinta-feira e sem liminar de reintegrao de posse, a Tropa de Choque da Polcia Militar de Minas Gerais foi ao local para retirar as famlias. Bombas de efeito moral, gs de pimenta e at voos rasantes de helicptero para destruir os barracos foram utilizados. Os ocupantes reagiram com pedradas e os confrontos que resultaram em vrios feridos e trs presos. Ainda assim, algumas famlias e militantes resistiram, contando com apoio de advogados, e acabaram por se concentrar em um pedao da propriedade de onde, mesmo pressionados pela polcia, no arredaram o p. A cada dia que passava mais e mais famlias iam surgindo procura de terra. No final da primeira semana j eram mais de mil famlias que ocupavam a rea, desde pessoas que moravam de favor ali prximo e decidiram ir para a ocupao at aqueles que vieram de cidades distantes. Em pouco tempo, o contingente que se formava decidiu por votao o nome da ocupao: Dandara, uma homenagem esposa de Zumbi dos Palmares que participou ativamente da luta do maior quilombo do pas. O nmero de famlias na rea surpreendeu at os organizadores do movimento, que tiveram que estabelecer um limite de 1.086 famlias (pois onde ficaram sitiados no cabia mais pessoas) e at mudar os planos iniciais da ocupao, antes prevista para pouco mais de 80 famlias.42

Por mais de um ano, a presena da polcia militar seria marcante, com viaturas na rea todos os dias durante 24 horas, alm do micronibus da tropa de choque, que continuou aparecendo no local por quatro meses. Ainda assim, no dia 12 de julho, os moradores romperam o cerco e comearam a espalhar seus barracos pelo terreno. Aps tanto tempo sem ser utilizada, a rea era ocupada, e a mudana (extra-oficial) de seu nome era apenas a primeira de muitas transformaes que ali ocorreriam.

Primeira ProPosta O objetivo da ocupao era claro. Diante de um cenrio no qual as polticas pblicas de habitao, em nvel estadual, municipal e federal, no atendem populao mais pobre, a ocupao de um terreno ocioso foi a forma de luta encontrada pelos movimentos sociais para denunciar o problema habitacional do municpio. A proposta pensada inicialmente era de constituir uma ocupao rururbana, uma iniciativa j praticada pelo MST em outras regies do pas e que consiste, basicamente, em mesclar os elementos de uma ocupao urbana e de uma rural. Em outras palavras, cada famlia que ocupa uma parte do terreno vai utiliz-la de acordo com o seu perfil, podendo trabalhar na prpria terra com plantio de subsistncia, ou utilizar a rea para trabalhar com artesanato, ou ainda utiliz-la para moradia e trabalhar na cidade. Para uma proposta rururbana, contudo, o terreno deveria ser ocupado por aproximadamente 80 famlias, de forma que cada uma obtivesse um lote de meio hectare (que corresponde a 5.000 m) para poder produzir nele. Com a intensa chegada de famlias, os movimen43

tos sociais logo perceberam que a proposta seria invivel, inclusive porque, para a prpria resistncia deles frente a polcia era importante aceitar o grande contingente que surgia na ocupao.

Briga na jUstia A Construtora Modelo, que desde 1997 era a proprietria da rea, entrou com o pedido de Reintegrao de Posse no dia 13 de abril, que foi acatado e a liminar de reintegrao de posse emitida. A ocupao, assessorada pelo Servio de Assistncia Judiciria (SAJ) da Pontifica Universidade Catlica de Minas Gerais (PUC Minas) recorreu da deciso. O SAJ um espao onde os alunos de Direito podem realizar prticas orientadas pelos professores e presta assessoria jurdica a pessoas carentes e sem condies de buscar seus direitos na justia. O servio j era conhecido pelos movimentos sociais que contaram com seu apoio em outras ocupaes. Aquele seria o primeiro de muitos recursos que a ocupao, sob a tutela do professor e advogado do SAJ, Fbio Santos, utilizou para tentar ganhar o direito a permanecer no local. De l pra c a batalha jurdica seria travada repetidas vezes, com a Construtora requerendo seu direito reintegrao e os ocupantes, assessorados pelo professor Fbio, recorrendo das decises e buscando uma forma de garantir o direito moradia daquelas pessoas. O processo foi para a Corte Superior do Tribunal de Justia de Minas Gerais que, por 22 votos a 1, deu parecer favorvel a reintegrao de posse da construtora. No incio deste ano, Fbio chegou a recorrer ao Superior Tribunal de Justia pedindo que o mandado fosse suspenso. Contudo o pedido no foi aceito e, diante disso, aps mais de dois anos de disputas na justia, Fbio requereu uma negociao com a Construtora, para evitar um despejo violento e tentar garantir a moradia para os que44

estavam no terreno. O pedido foi acatado e, por cerca de 40 dias, durante o ms de agosto, representantes da comunidade e da Construtora se encontraram para negociao pela primeira vez, acompanhados de apoiadores que ajudaram na organizao da ocupao. A Construtora apresentou uma proposta de construir em uma parte do terreno condomnios financiados pelo Programa Minha Casa Minha Vida, para atender aos ocupantes que se enquadravam nas condies scio econmicas do programa habitacional. Para tanto, a Modelo disse que precisava retirar os moradores do terreno enquanto construa os outros condomnios que havia planejado para rea, alegando que a presena deles l atrapalharia a venda dos apartamentos. Os moradores da Dandara, contudo, no aceitaram a proposta, alegando no ter garantias de que voltariam para o terreno, alm de que muitos dos moradores no aceitavam morar em prdios. Os representantes e apoiadores da Dandara chegaram at a apresentar um projeto alternativo, no qual seriam construdos pequenos prdios em meio s barracas para permitir o adensamento dos moradores sem que eles sassem de l. A proposta no foi aceita pela Construtora. Com isso a negociao acabou fracassando e em outubro deste ano o mandado de reintegrao de posse foi expedido. Em meio ao demorado trmite jurdico, os movimentos buscaram denunciar o descaso da empresa com o terreno. No processo eles alegaram que, alm do terreno estar ocioso h 12 anos, a construtora tinha uma dvida de mais de 1,8 milhes de reais em IPTU. A Modelo, porm, alegou que havia cercado a rea e possua um projeto de construo de 1.140 unidades habitacionais para o terreno que estava aguardando o processo de licenciamento ambiental e parcelamento na prefeitura para iniciar as obras. Quando contatados, os representantes da empresa mostraram que o licenciamento ambiental, requerido por ela em 1998, s foi aprovado em 2006 e que, desde ento, eles esto aguardando a aprovao do45

parcelamento do solo pela prefeitura. Segundo a construtora, a demora de oito anos no licenciamento ambiental ocorreu devido a discordncias da prpria prefeitura de Belo Horizonte que, pelo fato de o terreno possuir cursos d'gua com grande populao de girinos, no queria permitir o lanamento virio em uma parte do terreno que poderia afetar a reproduo destes animais. Quanto ao IPTU, a empresa alega que o valor menor que o alegado pelos movimentos no processo e que pagamento est sendo negociado com a prefeitura na justia e que, por isso, no pode divulgar o valor da dvida. Contudo, a batalha jurdica da Dandara no iria terminar na ao de reintegrao de posse. A Defensoria Pblica do Estado de Minas Gerais, responsvel por garantir o acesso justia das pessoas que no tm condies financeiras, entrou, em maro de 2010, com uma Ao Civil Pblica contra a Construtora, o estado de Minas Gerais e o municpio para que a rea fosse desapropriada e o poder pblico providenciasse moradia quelas famlias. A ao pode levar suspenso do mandado de reintegrao de posse e, at o fechamento deste livro ela ainda no havia sido julgada.

terra de ningUm Esse terreno foi de fulano, depois de ciclano depois de beltrano e no final das contas uma baguna, foi essa a explicao dada por uma das lideranas da Comunidade Camilo Torres no final da minha primeira visita ocupao. Apesar de simples aquela fala traduzia bem o que havia se passado naquele terreno antes das ocupaes Camilo Torres, que surgiu em fevereiro de 2008 e Irm Dorothy, que aconteceu em 2010, em um terreno logo abaixo da primeira.46

Localizado na Vila Santa Rita, um bairro da Regional Barreiro, na parte oeste de Belo Horizonte, o terreno de 12.230 m onde hoje se encontra a Camilo Torres pertencia Companhia de Distritos Industriais (CDI), atual Companhia de Desenvolvimento do Estado de Minas Gerais (Codemig). Em 1992, a estatal transfere a maior parte do terreno para a empresa de artefatos de borracha Borvultex, e a rea restante, de 2.770m, para o municpio de Belo Horizonte. Na transferncia do terreno a empresa de borracha tinha que cumprir algumas condicionantes e construir um empreendimento industrial no local, o que nunca foi feito. Em 2005, a Borvultex, autorizada pela Codemig, transfere o terreno para a empresa Vitor Pneus, que pagou R$ 141. 817,00 mil pela rea, cujo valor calculado de acordo com o IPTU era de cerca de R$ 232 mil. Na transferncia a empresa pagou ainda uma taxa de R$ 14 mil para a estatal. O terreno transferido, bem como a parte que pertence prefeitura, continuou abandonado, servindo de bota-fora e desova de corpos, at que, em fevereiro de 2008, cerca de 140 famlias do Frum de Moradia do Barreiro em conjunto com as Brigadas Populares ocupam a rea. A ocupao foi logo batizada de Camilo Torres, uma homenagem ao padre e guerrilheiro colombiano do Exrcito de Libertao Nacional. A polcia e o proprietrio apareceram horas mais tarde e, tal qual na Dandara, os ocupantes contaram com o apoio de advogados que eles conheciam, alm de sua luta, para resistir polcia. O proprietrio ento entrou com o pedido de reintegrao de posse na justia, perdeu na primeira instncia, mas acabou recorrendo na segunda instncia e conseguindo que o mandado de reintegrao de posse fosse expedido. Os ocupantes do terreno, assessorados pela Defensoria Pblica de Minas Gerais, tentaram recorrer at ao Supremo Tribunal Federal, sem nenhum sucesso. No ano passado, chegaram a ser realizadas reunies das lideranas com a Polcia Militar para definir como seria o despejo. Contudo, a ao ainda no foi realizada e, no incio do ano, acatando s denncias feitas pelos moradores da Comunidade47

ainda em 2009, a Promotoria de Patrimnio Pblico do Ministrio Pblico Estadual (MPE) entra com uma ao de improbidade administrativa contra a Codemig e as outras duas empresas pelo prejuzo de mais de 140 mil reais aos cofres pblicos. A Defensoria Pblica, por sua vez, conseguiu fazer com que a ao do MPE fosse ligada ao processo de reintegrao de posse, j que, na ao contra a Codemig o Ministrio Pblico pede que os terrenos transferidos voltem para a estatal. Dessa forma, o mandado de reintegrao de posse foi recolhido e os processos devero ser julgados por um mesmo juiz. Com a Camilo Torres, muitas famlias sem-casa da regio comearam a procurar a ocupao em busca de moradia, com isso, os organizadores da Camilo Torres comearam, desde outubro de 2009, a articular cerca de 90 familias que estavam da fila de espera para entrar na comunidade para que fosse feita outra ocupao. Durante cinco meses eles planejaram ocupar o terreno que fica logo abaixo da Camilo Torres at que, em fevereiro de 2010 as 90 famlias, lideradas pelo Frum de Moradia e as Brigadas Populares, tomaram o terreno abandonado, dando a ele o nome Irm Dorothy, uma homenagem religiosa americana que morreu defendendo a Amaznia, denunciando o trabalho escravo e lutando por reforma agrria. E como na ocupao anterior, as famlias resistiram com o apoio de advogados e apoiadores, alm de que no faltavam donos e contratos estranhos para aquele terreno que, at 2001, pertencia a CDI. Naquele ano a estatal transferiu o imvel para a empresa Parr Participaes pelo valor de R$ 121 mil. A nova proprietria teria um prazo de vinte meses para realizar um empreendimento industrial na regio. Contudo, cinco meses aps o contrato de transterncia, a Parr, com a anuncia da CDI-MG, repassa o imvel para o Banco Rural (o mesmo que ficou conhecido por ser utilizado nos esquemas do Mensalo envolvendo o PSDB e, posteriormente, o PT e alguns de seus aliados) pelo valor de R$ 600 mil. Passados os vinte meses do contrato48

inicial, nada foi feito e o terreno ficou abandonado at que, em 2007, o Banco Rural vende a rea para a empresa Tramm locao de equipamentos pelo valor de R$ 180 mil. Sem dar nenhuma destinao ao local, a empresa vende o terreno, em fevereiro de 2010, para a Asacorp empreendimentos e participaes, pelo valor de R$ 580 mil. Essa empresa, por sua vez, entrou, junto com o municpio de Belo Horizonte, com um pedido de aprovao de um projeto habitacional financiado pela Caixa Econmica Federal por meio do Programa Minha Casa Minha Vida. A Caixa, por sua vez, notificou ao Ministrio Pblico Federal a retirada da Asacorp e da Tramm de qualquer empreendimento a ser realizado no local. Diante de tantas irregularidades, a Irm Dorothy, com o apoio da Defensoria Pblica e do professor Fbio Santos, entrou com representaes, tanto no Ministrio Pblico Federal, quanto no Estadual. O MPE, ainda no tomou nenhuma medida enquanto o MPF instaurou um Inqurito Civil Pblico em julho de 2010 para apurar os fatos e a denncia de lavagem de dinheiro. Neste meio tempo a empresa Tramm entra com processo de reintegrao de posse e consegue a expedio do mandado de reintegrao de posse. Em abril deste ano, o Ministrio Pblico Federal encaminhou um ofcio s autoridades envolvidas no processo de despejo para que seja respeitada a dignidade dos moradores das ocupaes Dandara, Camilo Torres e Irm Dorothy, bem como oferecidas alternativas de moradia a essas populaes. Quando contatada, a Codemig no quis dar declaraes sobre os processos em que est envolvida por eles ainda estarem em tramitao, e, at o fechamento deste livro a Procuradoria-Geral do Municpio no respondeu quanto solicitao de entrevista. Na madrugada do dia 14 de junho, as comunidades Camilo Torres e Irm Dorothy foram surpreendidas por homens armados que ameaaram as lideranas das comunidades. Um deles chegou a realizar disparos para assustar os moradores e, inclusive, tentou assassinar a49

criana de um dos lderes e seu pai, o que s no ocorreu devido a uma falha na arma. Nos quatro dias que se seguiram cerca de 10 homens armados ficaram no local ameaando as lideranas e colocando medo nos moradores. Felizmente no houve nenhuma morte, contudo muitos dos lderes acabaram abandonando as comunidades aps este episdio. Em meio a boatos e histrias sobre quem realmente planejou a ao e seus objetivos, nenhuma das lideranas que fugiram de l querem comentar sobre o assunto, e, infelizmente, devido ao ocorrido as histrias das pessoas e suas lutas naquelas comunidades no puderam ser retratadas mais detalhadamente.

moradia x ProPriedade Se no faltam polmicas nas lutas das ocupaes ao tentar se estabelecer no terreno, nos processos jurdicos a discusso sobre a reintegrao de posse no simples. A comear pela prpria noo do que posse, que pode ser basicamente entendida como uma relao de uso que uma pessoa estabelece com alguma propriedade, seja ela mvel ou imvel. A posse difere do domnio, isto , do direito que a pessoa tem de usar aquele bem, de forma que uma pessoa pode ter o domnio sobre uma propriedade e no exercer a posse sobre ela. Na legislao Brasileira, contudo, a propriedade tem que estar submetida chamada funo social, isto , deve atender aos interesses coletivos. Como explica o professor e doutor em Direito da UFMG, Jos Luis Quadros de Magalhes: a ideia de propriedade na Constituio de que, por exemplo, uma propriedade urbana tem que gerar emprego, cumprir o plano diretor da cidade, pagar impostos, dar finalidade social que justifique a pessoa estar com essa pro50

priedade. Dessa forma, terrenos ociosos, ou que estejam sendo utilizados para especulao imobiliria, vo contra a funo social, o que utilizado como argumento pelos movimentos sociais para realizar as ocupaes urbanas. Diante disso, nos processos de reintegrao de posse cabe ao juiz confrontar os direitos de propriedade e o direito a moradia, ligado funo social, o que no uma tarefa simples. A explicao do Juiz da 6 Vara da Fazenda Pblica de Minas Gerais, Manuel dos Reis Morais:O direito de posse protegido juridicamente, como o de propriedade, e para enfocar as duas coisas temos que levar em conta outros direitos, como o direito a moradia, se aquela propriedade est cumprindo funo social. Juridicamente entendemos essa funo como sendo, no meio urbano, geralmente destinado moradia. [...] juridicamente temos dois princpios que norteiam qual direito pesa mais, se temos os dois garantidos na Constituio, um no anula o outro, eles devem conviver. A prpria Constituio nos diz que nessas situaes temos que procurar o direito com mais peso e a existem dois princpios, proporcionalidade e razoabilidade, eles servem para, em uma situao de conflito, eu dizer que um direito deve prevalecer naquele momento sobre o outro.

Contudo, muitos advogados e especialistas alegam que h, nos casos de reintegrao de posse, uma predominncia do direito propriedade pelo judicirio: ainda temos herana muito forte de um Cdigo Civil patrimonialista e que tinha a propriedade arraigada como principal direito, um direito absoluto. Acredito que isso uma herana cultural que ainda vigora, explica a defensora pblica, Dra. Cleide Nepomuceno. Para Jos Luis, isso remete prpria formao dos profissionais de direito: h muita herana na formao, direito um curso muito clssico, profissional, embora o direito constitucional tenha se transformado ainda tem muitas pessoas com viso antiquada51

apegadas aos princpios liberais de l atrs que j foram superados e no pertencem Constituio de 88. Para Manuel dos Reis Morais, essa questo envolve a dinmica do judicirio, que est sujeito a constantes mudanas na forma de entender e interpretar os direitos, como o de propriedade, o que no impede a convivncia de vises diferentes:Est sendo construda uma nova viso do direito de propriedade, e sempre que isso acontece esse embate de idias muito natural, muito tranqilo, ns recebemos isso com bastante tranqilidade. Lgico que cada vez voc tenta abordar de uma forma ou de outra, e lgico que outros desembargadores e juzes tambm fazem isso. Dessa discusso teremos um resultado, um novo esboo do que seja o direito de propriedade, de moradia, o direito a moradia que esta sendo desenhado, ento lgico que existe esses desentendimentos, eu decido de um jeito, o tribunal de outro, etc. Isso tem a ver com viso de direito de sociedade. Leonardo Boff d uma lio muito interessante sobre isso logo no comeo de um livro dele no qual ele diz, quer saber como os olhos de uma pessoa vem o mundo? Veja onde os ps dela pisam. Ele lana essa pergunta e interessante porque tem a ver com o modo de ver o mundo, ou seja pesquise a vida daquela pessoa, veja como ela estudou, se posicionou nesse caminho de vida, quais experincias ela acumulou, dependendo disso vai ser um modo dela ver determinados direitos. Voc pode ate levantar, se eu tiver determinados juzes com determinada origem eu tenho uma viso se eu tiver outros tenho outra, isso mesmo.

cidade, Um direito hUmano Se a avaliao do judicirio est em constante mudana e a cargo das diferentes formas como os juzes lidam com a propriedade e a moradia, os52

movimentos sociais tm a seu lado os chamados direitos humanos, como a funo social da propriedade, para legitimar sua luta. A Defensoria Pblica, em suas aes em defesa das comunidades, busca traz-los tona, como um trecho da Ao Civil Pblica em favor da Dandara revela: So tantas leis, decretos, resolues, estatutos produzidos nesta ptria com a mesma intensidade com que o prprio Poder Pblico os viola. Alm de ser considerado um direito fundamental no artigo 5 da Constituio, o direito a moradia reconhecido por sete tratados de direito internacional dos quais o pas signatrio. Alm disso, h diversos decretos e artigos da legislao nacional que, de alguma forma, protegem os moradores das ocupaes como, por exemplo, o dever do poder pblico de proteger as crianas de qualquer forma de opresso presentes nos artigos 2 e 3 da Conveno sobre os Direitos da Criana. Diante disso que a Defensoria busca garantir o direito moradia das ocupaes: a ocupao se torna legtima quando o direito humano a habitao violado, nossa atuao uma forma de conseguir legitimar esse direito depois, j que habitar necessrio, explica Dra. Cleide. Contudo, a ocupao de terras um assunto polmico e envolve tambm diferentes vises do direito, que vem distores ideolgicas do direito moradia na legitimao das invases:So direitos fundamentais e para o cumprimento deles preciso que cada um tenha sua moradia, mas isso no pode ser com dose ideolgica no, seno voc est traindo a democracia. Voc negaria o direito a propriedade expulsando o proprietrio, no h dio sobre quem tem, no h benevolncia para quem no tem, preciso que a pessoa tenha na conformidade da lei, ela no pode ter por outra forma. Ento quando voc pe a ideologia ela pesa marxistamente, como se fosse algo que voc pudesse conquistar e o meio no interessa o que interessa o fim, no bem isso. Porque a voc estaria infringindo a Constituio, ento voc imiscuir tendncia ideolgica extremada como faz muita gente negar o postulado democrtico.53

a posio defendida pelo professor de direito da PUC Minas, Juventino Gomes. Para o juiz Manuel dos Reis, os vrios princpios de direitos humanos que so levantados nestes processo so, na verdade, grandes intenes que, para se concretizar, precisam da atuao dos movimentos sociais: o que est por traz dessas ocupaes so movimentos tentando construir uma outra viso de propriedade. Agora isso construdo historicamente, h um embate, uma tenso, muita gente pensa diferente, o que no quer dizer que o que est na lei so palavras vazias, destaca. Junto a esses vrios princpios h um direito que central nas discusses das polticas urbanas e que cada vez mais vem ganhando destaque na legislao: o direito a cidade. Ele relaciona direitos diferentes e vrias noes de cidadania, ambiente adequado, habitao, enfim, todas essas funes de ir e vir com liberdade, direito a lazer, moradia digna, trabalho, condies de viver dentro de ambiente urbano, explica a mestranda Interdisciplinar em Geografia Social e Direito da Universidade de Sorbonne, Marianna Maciel. O Estatuto das Cidades, aprovado em 2001 e que estabelece as diretrizes gerais da poltica urbana do pas, traz esse direito como uma forma de garantir a todos o acesso cidade. Contudo, os processos da Camilo Torres, Irm Dorothy e Dandara mostram como muitas vezes esse direito desrespeitado: As instituies pblicas, tanto o governo quanto o judicirio, no fazem valer e acabam seguindo o poder do financeiro, dos empresrios. Mas tambm no podemos ser ingnuos nem maniquestas, existe uma dificuldade, porque toda mudana lenta e deve ser feita em espao de discusso e o direito cidade ainda no foi absorvido pelo judicirio, explica Marianna. Se ainda h dificuldades para se concretizar, muito da legislao urbana, tanto a presente na Constituio, quanto no Estatuto das Cidades, foi conquistada pela luta e presso dos movimentos sociais, o que nenhum especialista nega. E mesmo sendo alvo de discusses na54

justia, as ocupaes vo continuar lutando para, mais do que novas leis, escrever os rumos das cidades.

55

3Por trs do quintal de anliaPassadas as primeiras impresses ao se deparar com os barracos e ruas de terra da Dandara naquele cenrio, primeira vista desolador, no raro ver dentro dos cercos de arame que demarcam os lotes jardins e hortas colorindo o ambiente. Desde portentosos girassis que chegam facilmente altura da cintura at ps de couve e outras verduras dividem os espaos com as reas construdas, como se fossem resqucios da proposta inicialmente rururbana na qual as famlias ocupariam lotes maiores podendo viver da agricultura pensada para o terreno. E nas suas plantaes que Anlia Rodrigues de Oliveira, de 58 anos, se distrai e relembra dos tempos em que trabalhava na roa em Almenara, sua cidade natal localizada no Vale do Jequitinhonha a 742 Km de Belo Horizonte. L em Almenara eu mais minha me mexia com horta, fui criada com minha av, morvamos l na fazenda dela. A gente colhia as plantas, as couves e levava pra cidade pra vender, eu sempre ajudava minha av, lembra ela que aos vinte anos decidiu vir para a capital junto com sua tia para trabalhar como empregada domstica. Durante muito tempo viveu de aluguel e chegou at a morar em um barraco prximo a um crrego no bairro Santa Mnica, na regio da Pampulha, at que um dia, h 18 anos a enchente veio e carregou as coisas tudo, a fomos morar na casa dos outros e depois demos um57

jeito e fomos morar de aluguel no Nova Pampulha. Um tempo depois o pessoal tava entrando aqui e falei que ia arrumar meu pedacinho de terra n? peguei minha lona, montei meu barracozinho ali e estou aqui, conta ela. Hoje em seu terreno h um barraco de madeirite coberto com lona e telhas de amianto onde ela e seu marido, o pedreiro aposentado Atade Benedito Ferreira, de 69 anos, mal conseguem dividir espao com a geladeira, o fogo e as garrafas de cloro que ela vende para os moradores da comunidade lavarem a roupa. Do lado de fora do barraco h um banheiro feito de tijolos, cuja entrada um pano dependurado, construdo recentemente e o jardim que ela se orgulha de mostrar. E ali naquele espao que Anlia, com vergonha de me mostrar seu apertado barraco (disse que estava muito bagunado), conta sobre sua vida e suas plantaes. Aqui bom, a gente deita e consegue dormir, sabe que o aluguel no est brigando com a gente, o salrio que eu e meu marido ganha aqui d pra comprar o feijo e o arroz que comemos, a verdurinha eu vou colhendo no terreiro, colho couve, cebolinha, fao salada pra gente comer. At plantei cebola naquele carrinho velho, que achei no lixo, olha l proc v, conta ela apontando para onde ficam as mudas. Enquanto me conta sobre o jardim e a horta, seu marido Atade sai do barraco e vai em direo ao banheiro e, quando me v, acena com a mo e, com um leve sorriso no rosto, me cumprimenta e pergunta se est tudo bem. Respondo o cumprimento e tambm aceno com a mo, gesto que ele aparentemente ignora enquanto entra no banheiro. Esse da ficou at surdo, depois que adoeceu no tem condies de sair, s sai comigo, agora fica por minha conta. Bateram muito nele, teve at princpio de epilepsia, ficou com rosto roxo grande assim [leva as mos ao rosto indicando como estava o marido], bateram nele, cataram o dinheiro e foram embora. Foi ali na virada do Cu Azul [conta apontando para uma rua longe da comunidade]. Ele fazia a entrega na rua, os ladro via ele com aquele tanto de cloro, quando foi no domingo pegaram e judiaram dele, explica ela, que no mesmo dia ficou sabendo do ocorrido e foi58

para o hospital acompanhar o marido. Ela e o marido comearam a vender cloro diludo em garrafas pet desde que foram para Dandara, hoje Anlia comercializa as garrafas dentro do seu prprio lote e Atade s consegue sair de casa acompanhado da esposa. A forma como ela ia contando suas histrias, sem mudar o tom da voz e com seu jeito humilde e sincero chamavam a ateno pela fora de vontade que aquela senhora deixava transparecer. A gente vai vivendo com a aposentadoria dele e o dinheiro que consigo do cloro. Vamos construindo aos pouquinhos, j dei conta de comprar saco de cimento, quero ver se daqui pra frente vamos comprar tijolo pra ver se levanta aqui pra poder morar. Mais do que mostrar um pouco da personalidade de Anlia, as palavras conseguiram tirar minha concentrao j que um dia antes daquela visita os coordenadores da comunidade me informaram que o mandato de despejo havia sido expedido. Os moradores, contudo, s seriam informados no dia seguinte, quando ocorreria a Assembleia Geral. E ali, enquanto me dava conta do quo perversa era aquela condio de viver espreita do despejo, um inimigo to cruel quanto o aluguel que torturava aquelas pessoas, tinha que me segurar para no chorar e deixar transparecer que todo seu esforo fora em vo. Um desafio que no imaginava ter que enfrentar mas, simplesmente por no conseguir contar a ela que sua batalha para erguer uma casa de tijolos estava perdida, consegui superar, o que no foi uma tarefa fcil e nem rpida. Em um dado momento da conversa Anlia vai me mostrando suas diferentes plantaes que ocupam quase tanto espao no terreno quanto seu humilde barraco. Passo nos lugares, vejo semente nesses negcios com cimento, pego, trago e planto n? J tenho um p de algodo, semana passada colhi um cacho de banana aqui, aqui planta pra fazer ch [mostra a erva cidreira] hoje plantei aqueles ps, fiz canteiro ali, isso aqui achei no lixo peguei e plantei flor, essas aqui as irms [apoiadoras da igreja que vo na Dandara toda semana para rezar e distribuir sementes para os moradores] vieram e me59

deram sementes. Tem semente de mamo que plantei ali, olha o tamanho que j t. O p de tomate j tem tomate, eu flui plantando aos pouquinhos, contava ela que, para manter suas plantaes teve de se prevenir dos cachorros e ratos que aparecem por l: sa catando pedao de madeira jogado no lixo e cerquei para os animais no comerem as plantas da gente. Enquanto me contava sobre seu quintal orgulhosa, o doloroso pensamento de imaginar que todo aquele simples e nada mais que humilde cenrio estava com seus dias contados me torturava. Mesmo a ideia de registrar tudo aquilo perdera por um tempo o sentido diante da impotncia que aquela condio, digna de uma tragdia grega, me fazia sentir. Certamente no foi uma das melhores entrevistas jornalsticas que fiz, mas a que at hoje ocupa com mais intensidade minha memria, e a que mais me fez aprender sobre o sentido daquela luta. Para dar conta de fazer o que tanto gosta, hoje ela conta com a gua que vem das mangueiras instaladas pelos moradores que se juntaram para compr-las e fazer as ligaes clandestinas. Mas a histria do abastecimento de gua da comunidade, direito que eles conseguiram e, de certa forma, perderam nos quase trs anos em que esto l apenas uma como a de tantas outras lutas que foram travadas.

o direito mnimoArt. 150 - Compete ao Poder Pblico formular e executar a poltica e os planos plurianuais de saneamento bsico, assegurando: I - o abastecimento de gua, compatvel com os padres de higiene, conforto e potabilidade, independentemente da regularidade do parcelamento do solo ou da edificao;60

Esse da ficou at surdo, depois que adoeceu no tem condies de sair, s sai comigo, agora fica por minha conta[...]", Anlia61

Mateus Coutinho

Aprovada em 2007, essa emenda Lei Orgnica de Belo Horizonte ajudou a garantir um direito humano essencial a todos aqueles que residem, em um terreno regularizado ou no, no municpio. E foi graas a ela que os moradores da Dandara tiveram uma importante conquistaram em meio a sua luta por moradia. Nos primeiros dias contamos com a ajuda dos vizinhos, e at chegamos a pedir gua e luz para a Copasa e a Cemig, que se negaram a fornecer, a fizemos ligaes clandestinas, conta Joviano Mayer. Por um perodo chegaram at a utilizar um manancial que havia nos fundos do terreno, contudo, depois de um tempo descobriram que aquela gua recebia o esgoto dos moradores do bairro Cu Azul. E assim, sem acesso a gua e com a Copasa desligando os gatos que foram sendo denunciados, os moradores fizeram protestos at que conseguiram um acordo com a empresa estatal para ela fornecer caminhes pipa para as famlias. Contudo, os caminhes que iam l uma ou duas vezes por dia no eram suficientes. A Copasa, por sua vez, alegou possuir um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado com o Ministrio Pblico Estadual (MPE), que a probe de instalar hidrmetros em loteamentos irregulares deixando a empresa sujeita a multa diria de R$ 5 mil reais caso coloque o equipamento em locais como a Dandara. Contudo, os moradores junto com os apoiadores foram at o MPE para fazer valer a lei municipal: Fomos ao Ministrio Pblico que abriu exceo do TAC. Inclusive alegamos que o TAC era ilegal porque a Lei Orgnica do municpio, que a maior lei da cidade e est acima de qualquer Termo de Ajustamento de Conduta, assegura a prestao dos servios de gua, esgoto e saneamento independente da natureza da posse. O MP anuiu com isso e a Copasa foi obrigada a fazer a ligao, conta Joviano que, aps a instalao do hidrmetro no final daquele mesmo ano, passou a ser o responsvel pela conta de gua da Comunidade que chegava em seu nome.62

Com isso, ele assinou vrias declaraes atestando que as pessoas da comunidade que apresentavam as contas como comprovante de residncia moravam no terreno. Mas, se por um lado a instalao do hidrmetro representava uma conquista, por outro ela ainda mostrava como havia problemas a serem resolvidos. Como explica Joviano, um hidrmetro apenas no possua a vazo suficiente para atender a todas as mil famlias do terreno: s vezes a gua chegava mais fraca e em quantidade insuficiente, principalmente para as famlias que moravam mais longe e acabavam no ajudando a pagar a conta por causa disso. Os coordenadores chegaram a se reunir com os dirigentes da Copasa para reivindicar a instalao de um hidrmetro por grupo de forma a tornar o abastecimento mais eficaz, contribuindo assim para a arrecadao da empresa. A Copasa ficou de avaliar a proposta, mas nunca instalou os outros hidrmetros. O pagamento da conta era dividido pelos grupos de forma que as lideranas de cada grupo recolhiam uma quantia das famlias para, ao final, conseguir somar o valor total da conta. Mas nem sempre a populao colaborava e alguns moradores chegaram at a fazer gatos com o hidrmetro, se recusando a ajudar no pagamento da gua. O povo aqui meio complicado sabe?, conta ngela sem revelar o motivo das dificuldades em arrecadar dinheiro para a conta. Uma conta centralizada estava criando dificuldades de recolher, s vezes um grupo arrecadava e outro no, no ms seguinte aquele grupo que tinha arrecadado antes no conseguia arrecadar, explica Joviano. A advogada e apoiadora Maria do Rosrio tambm acompanhou as lutas da comunidade desde o incio e ressalta que a obrigao de arrecadar deveria ser da Copasa: o hidrmetro deu muito problema para arrecadar, o povo estava fazendo um trabalho que era para ser da Copasa, de cobrar dos moradores e cuidar das inadimplncias. Eles estavam fazendo um servio gratuito e tendo que enfrentar todo tipo de conflito, isso no uma atribuio dos moradores63

e por fim acabou no dando certo, explica. O fato que em julho de 2010, devido s dvidas que se acumularam em mais de R$ 40 mil, o fornecimento de gua foi cortado e os moradores voltaram para os gatos. Atualmente o hidrmetro est quebrado, o que, segundo Joviano, ocorreu devido a um acidente com um caminho de materiais de construo que manobrava no terreno e acabou batendo no equipamento. Foi feito contato com a Copasa que at o fechamento do livro no respondeu as perguntas sobre como se deu o fornecimento de gua na Dandara. Se a luta pelo fornecimento de gua teve seus altos e baixos, as tentativas de acesso eletricidade sequer atingiram algum sucesso. Tal qual a Copasa, a Cemig possui um Termo de Ajustamento de Conduta firmado com o Ministrio Pblico de Minas Gerais que probe a empresa de fazer instalaes eltricas nas residncias e mesmo colocar postes nas ruas do terreno. Diferente do abastecimento de gua, a lei municipal no possibilita que as instalaes eltricas sejam feitas em ocupaes irregulares. Diante disso, cada grupo foi, a sua maneira, dividindo os custos para comprar os fios e fazer as ligaes eltricas com os postes do bairro do entorno.

o cUsto da sade Enquanto iam se virando para conseguir gua e luz, um outro direito essencial vinha sendo negligenciado, e as conseqncias disso foram muito piores do que um emaranhado de gatos eltricos e de gua. Na madrugada de domingo, dia 16 de maio de 2010, por volta das 4 horas da manh um acontecimento incomum movimenta a Rua das Flores. Maria Eni dos Santos, esposa de Manoel Barbosa Torres Neto e me de64

trs filhos comea a passar mal. Seu marido, ao perceber que ela parecia estar desmaiada, pediu ajuda aos vizinhos e logo Simone Mendes dos Santos, na poca uma das lideranas junto com ngela, procura saber o que est acontecendo e vai ajudar o morador. Por volta das 5 horas da manh ela aciona o SAMU que alegou no ter condies de atender a chamada devido a falta de um endereo ou referncia do local. Simone insistiu e tambm ligou para a polcia militar, corpo de bombeiros e polcia civil. s 6 horas da manh uma viatura da Polcia Militar esteve presente no local e os policiais afirmaram que Maria estava morta e se retiraram. Como as ligaes para o SAMU no adiantavam, Simone ligou para Maria do Rosrio e pediu para ela tentar contatar a ambulncia. Contudo, como no estava prxima da vtima, o pedido de Maria do Rosrio no podia ser atendido pelo SAMU. A advogada ento ligou para Simone e falou para ela continuar insistindo nas ligaes. Com o passar do tempo a populao foi ficando agitada e chegaram a queimar pneus na rua de frente para a parte mais baixa da ocupao, o que acabou gerando tumulto com a polcia militar no local. Por volta das 9 horas da manh a ambulncia chegou e constatou o bito de Maria do Rosrio. O episdio foi um dos mais marcantes para a comunidade que, h tempos, vinha reclamando do mau atendimento que recebia nos postos de sade da regio. Depois deste caso, foi montada a equipe de sade e fomos atrs dos polticos e conseguimos ser atendidos, no como a gente queria, porque queramos todo mundo no mesmo posto. Mas como muita gente teve que ser dividido e tivemos que entender tambm, ficou dividido em um posto do Cu Azul e um posto do Itamarati, conta ngela que est no grupo da sade desde o incio e admite, assim como tantos outros moradores, que hoje o atendimento da prefeitura melhor. Antes o posto no atendia de jeito nenhum, foi com muita luta que conseguimos o que temos hoje, destaca Simone, que tambm65

faz parte do grupo da sade e, mesmo achando que o atendimento pode melhorar, no deixa de reconhecer a melhoria. E se hoje muitos moradores admitem receber um atendimento normal, at cerca de um ano atrs, as reclamaes de discriminao nos postos contra as pessoas da comunidade eram muitas. Em uma audincia pblica realizada em setembro de 2010 na Cmara Municipal essas reclamaes ficaram registradas em ata:Geiusa contou que, quando residia no Bairro Cu Azul, era prontamente atendida no respectivo posto de sade, mas, com a ida para a Comunidade Dandara, no conseguiu mais ser atendida. Hoje ela tem presso alta, depresso e problema nos rins, e no consegue atendimento mdico. Quando se dirige ao posto de sade os atendentes pedem que volte outro dia; b) Rosena contou que, ao se dirigir a um dos postos de sade, o servidor lhe disse para ir ao outro, e neste pediram lhe que retomasse ao primeiro. lndagou a Secretaria Municipal Adjunta de Sade como que foi feito o cadastro de distribuio dos atendimentos para os dois postos de sade; c) Uma moradora da Comunidade Dandara, presente na discusso, reclamou do mau atendimento por parte dos servidores do posto de sade Itamarati, que deixaram de realizar curativo em seu marido, que teve o dedo amputado. Contou que foi preciso pedir ajuda a familiares e amigos para comprar o material para o curativo.

Em meio a tantas reclamaes muitas lideranas e apoiadores acusaram a prefeitura de se recusar a atender aos moradores da comunidade. Para o vereador Adriano Ventura, apoiador da comunidade e responsvel por solicitar todas as duas audincias pblicas realizadas na Cmara para tratar sobre os direitos humanos na Dandara, no h provas que permitam atestar isso, ainda que ele acredite que havia uma m vontade do poder pblico: hoje eles tm sido atendidos sim, se precisar de ambulncia ela chega l. S66

que como no um bairro formal, no vai aparecer no GPS que a viatura usa, realmente tem essa dificuldade. O que questionamos se no houve m vontade [no caso do SAMU], e eu acredito que houve sim, mas lgico que a prefeitura vai alegar que no houve, destaca. Ainda que a prefeitura no admita isso, a prpria secretria adjunta de sade, Suzana Moreira Rates chega a admitir que o atendimento na regio era precrio, antes mesmo da chegada da Dandara, o que ficou registrado na ata:[A secretria adjunta de sade, Suzana Moreira Rates] Ressaltou que o atendimento sade de muncipes naquela regio, de incumbncia dos postos de sade Cu Azul e Itamarati, j era deficiente em razo de seu elevado numero de moradores. Disse que essa situao agravou-se com a chegada dos moradores da Comunidade Dandara, exemplificando com o caso do posto de sade Cu Azul, que dispunha de seis equipes de atendimento para vinte e um mil pessoas e teve, recentemente, a incluso de metade dos residentes da ocupao Dandara. A Secretria Adjunta props como medida paliativa a oferta de mais uma enfermeira, um mdico clinico e um mdico pediatra para o Programa de Sade da Famlia - PSF. Negou haver qualquer orientao da Secretaria aos postos de sade Ceu Azul e Itamarati para no atender moradores da Comunidade Dandara. Pediu a eles que, havendo dificuldade no atendimento saude, procurem os gerentes dos respectivos postos de sade: Cu Azul, a gerente Rosene, e Itamarati, a gerente Eni. A Secretaria Susana Rates disse, ainda, que, caso no consigam xito no atendimento, dirijam-se Secretaria de Sade do Municpio para apresentar reclamao e exigir o mesmo.

Aps audincias com o poder pblico, protestos e reclamaes junto aos postos de sade, secretaria municipal de sade e regionais Pampulha e Venda Nova (as regionais so unidades administrativas que funcionam como subprefeituras em cada uma das 9 regies nas67

quais o municpio dividido), o atendimento mdico foi normalizado. Pelo menos esta a impresso que os moradores passam ao serem questionados sobre o atendimento nos postos de sade. Hoje as diretorias dos postos dialogam com a comunidade e at avisam a populao quando so realizados exames, foi uma conquista com muito esforo e muita luta dos coletivos de educao e sade, destaca Maria do Rosrio. No posto Cu Azul foi criada uma equipe especfica para o atendimento Dandara que conta com uma auxiliar de enfermagem e uma mdica generalista. As outras seis equipes, que j existiam antes da equipe da Dandara, contam com dois auxiliares de enfermagem, um enfermeiro, um mdico generalista e at quatro agentes comunitrios de sade cada. Para tentar suprir a carncia de agentes de sade a equipe do posto busca sempre manter contato por telefone com os pacientes para agendar consultas e entregar exames e, quando no conseguem entrar em contato algum agente de sade das outras equipes se disponibiliza a ir na comunidade. A organizao do posto Itamarati diferente j que ele possui duas unidades com uma equipe cada. A equipe que ficou responsvel por atender outra metade da Dandara tambm atende a cerca de 10 mil pessoas do bairro Ouro Preto e, desde o dia 15 de agosto, est apenas com uma mdica para atender emergncias que fica l quatro horas por dia. A outra mdica que ficava responsvel pelo atendimento saiu e, desde ento, o posto no conseguiu contratar um mdico para substitu-la. Segundo a gerncia do posto h agentes de sade para a populao do entorno e a dificuldade em encontrar mdicos por causa do salrio oferecido, menor do que de outras regies, da prpria regio onde se encontra o posto, que no valorizada pelos mdicos. Problemas que os moradores de Dandara sabem no ser diferentes do que ocorre em outros hospitais e postos pblicos do pas.68

Pelo direito de lUtar Uma senhora baixinha, de cabelos curtos, sempre carregando no rosto seus culos e um sorriso de bom humor, e no ombro pelo menos uma das tantas bolsas que leva com documentos sobre a Dandara, listas de presena e atas das reunies da coordenao. Essa Maria Conceio Amaral Renan de Menezes, tambm conhecida como Sozinha, colaboradora que teve um papel essencial na luta pelos direitos da comunidade, sobretudo na luta pela educao. Sociloga formada pela UFMG, ela uma das muitas educadoras populares da Rede de Educao Cidad, uma iniciativa do Instituto Paulo Freire que articula diversos atores sociais, entidades e movimentos populares do Brasil para sensibilizar, mobilizar e educar, sobretudo os grupos vulnerveis econmica e socialmente - como indgenas, negros, jovens, LGBT e mulheres. Foi com essa proposta de trazer a educao popular para Dandara, seguindo a metodologia de Paulo