cidade & alma | perspectivas

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1 atas do colóquio cidade & alma | perspectivas cidade & alma | perspectivas atas do colóquio de 20 de outubro de 2017 Organizadores Acací de Alcântara / Arthur S. C. Cabral / Catharina P. C. S. Lima / Gustavo Barcellos / Vladimir Bartalini FAUUSP| 2018

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atas do colóquio cidade & alma | perspectivas

cidade & alma | perspectivas atas do colóquio de 20 de outubro de 2017 Organizadores Acací de Alcântara / Arthur S. C. Cabral / Catharina P. C. S. Lima / Gustavo Barcellos / Vladimir Bartalini FAUUSP| 2018

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ColóquioCidade& Alma: perspectivas ( São Paulo, 2017) Atas do ColóquioCidades&[e] Alma : perspectivas / organização de Acací de Alcântara et al… - São Paulo: FAUUSP, 2018. 322p. ISBN: 978-85-8089-151-5 DOI: 10.11606/9788580891515 1. Cidades2. Psicologia3. Paisagem Urbana4. Hillman, James, 1926-2011. I. Alcântara, Acací, org.II.Título

CDD 370.76

Serviço Técnico de Biblioteca da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP

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atas do colóquio cidade & alma | perspectivas

cidade & alma | perspectivas atas do colóquio 20 | outubro | 2017 FAUUSP

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atas do colóquio cidade & alma | perspectivas

Se a psicologia pertence às cidades, as cidades

pertencem à psicologia. Por muitos anos, James

Hillman, originador da psicologia arquetípica pós-

junguiana, ocupou-se em levar a reflexão psicológica

para além dos limites dos consultórios e mesmo da

pessoa humana. Essa reflexão está reunida nos ensaios

de seu livro Cidade e Alma. Toda a psicanálise, como a

conhecemos e a praticamos desde o século passado a

partir de Freud e Jung, nasceu em cidades, como Viena

e Zurique, e em alguma medida se confunde com elas:

uma atividade urbana para cidadãos urbanos.

O enlace de psyché e polis já está dado desde o

início. Hoje o inconsciente não está mais onde estava

nas épocas de Freud e Jung. E sabemos que devemos

buscá-lo, via de regra, onde nos sentimos mais

oprimidos: é hoje nas cidades, na esfera pública onde

parece estarmos mais à mostra em nossa necessidade

de consciência: lazer maníaco, instituições opressoras,

burocracia esquizóide, linguagem convencional,

ambientes urbanos hostis, enormidades delirantes,

cifras deprimidas e uma constante repressão da beleza,

para não dizer, da alma. Hoje não só a alma do homem,

mas principalmente a alma das cidades está doente, e

são seus os sintomas que mais nos atingem, afligem e

agridem. Prédios, parques e avenidas no divã?

A Comissão Organizadora

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A alma na cidade Gustavo Barcellos .............................................................................................................................. 9

Imaginar

A alma úmida de São Paulo Vladimir Bartalini ........................................................................................................................... .. 19

Entrelaçar as paisagens na cidade: reflexões sobre corpo e alma a partir da obra de James Hillman Sandra Maria Patricio Ribeiro; Dirk Michael Hennrich; Giancarlo de Aguiar .................. 36

Imaginação da matéria e experiência de paisagem: entrelaçamentos entre cidade e alma Arthur Simões Caetano Cabral .................................................................................................... 47

Ver a paisagem na metrópole: interioridade, movimento e linguagem do visível Francisco Horta de Albuquerque Maranhão ............................................................................ 58

Luigi Ghirri - Fotografia e experiência da paisagem cotidiana Fernando Lacerda Silva Oliveira ................................................................................................. 73

Sobre a fisionomia da metrópole: Expressões e impressões do fenômeno metropolitano Roberto Rusche ............................................................................................................................... 89

Anima mundi em tintas: o valor psíquico da pixação em São Paulo Guilherme Scandiucci .................................................................................................................. 100

As entranhas da minha cidade: da geologia à psicologia arquetípica, um diálogo com Hillman a partir da leitura de "Cidade & Alma" Cyntia Helena Ravena Pinheiro ................................................................................................. 115

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Projetar

Mediações na construção do sentido social do lugar: Por uma perspectiva humanista da urbanidade Cilene Gomes .................................................................................................................. ................ 126

Reflexões sobre cidade e alma Priscila Valente Alonso ................................................................................................................. 138

Cidade, alma & urbanismo Gilberto Alves da Cunha ............................................................................................................... 147

Relação cidade e natureza: interface entre Saneamento Básico e Paisagem Urbana Taís D´Aquino Benicio .................................................................................................................. 158

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Lembrar

A restauração da alma das cidades em tempos líquidos globais Edgard de Assis Carvalho ............................................................................................................ 170

Embrechados nos coruchéus das igrejas: arte decorativa integrada à paisagem arquitetônica no recôncavo da Bahia Cidália de Jesus Ferreira dos Santos Neta .............................................................................. 182

Cidades: Os modos de produção e a imaginação do trabalho em James Hillman Wilane Souza dos Santos ........................................................................................... ................. 195

Do interior para o exterior: o exílio de Hestia e o lugar do coração na cidade Angelita Corrêa Scardua ............................................................................................................. 207

Herança de Caim – Reflexão e construção da alma na cidade Karam Valdo; Thâmara Oliveira Ulle Valdo ........................................................................... 217

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Praticar

Profundidades na cultura dos territórios Denise Jorge ............................................................................................................................. ...... 226

A alma institucional e seus contornos: uma leitura arquetípica Raul Alves Barreto Lima .............................................................................................................. 236

As periferias da cidade e da alma: relato de uma experiência Nathalia Carballeira Pereira ....................................................................................................... 248

A alma na favela: uma leitura hillmaniana sobre a vida na comunidade Giovana Cataldi ............................................................................................................................. 257

Sob a neblina, os sentidos da paisagem Catharina Lima, Elaine Albuquerque, Gustavo Seraphim, Hulda Wehmann, Mônica Bertoldi, Paula Vicente, Tatiana Reis, Vânia Bartalini ........................................................ 269

O caminhar e a errância na cidade Berta de Oliveira Melo ................................................................................................ ................. 285

A errância e as cidades em Dom Quixote Gabriel Pedrosa ............................................................................................................................ 294

Experiência e mal-estar psíquico na cidade de São Paulo: literatura urbana contemporânea, imaginário e psicologia arquetípica Rinaldo Miorim ................................................................................................................ ............. 305

Suicídio: reflexões arquetípicas sobre a epidemia contemporânea Rebeca Moreira Nalia .................................................................................................................... 315

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Entrelaçar as paisagens na cidade: reflexões sobre corpo e alma a partir da obra de James Hillman

Sandra Maria Patricio Ribeiro; Dirk Michael Hennrich; Giancarlo de Aguiar

Sandra Patrício é docente do Depto. de Psicologia Social e do Trabalho do IPUSP e vice coordenadora do Laboratório de Psicologia Socioambiental e Intervenção (LAPSI); é colaboradora do CFUL e seus temas centrais de pesquisa são a mitopoética da cidade e o ethos contemporâneo.

Dirk Michael Hennrich (CFUL/FCT) é bolsista de Pós-Doutoramento da FCT/Portugal, concluiu o seu doutoramento na Universidade de Lisboa em 2014 e é colaborador estrangeiro do Lapsi-USP e atua principalmente na área da Filosofia da Paisagem.

Giancarlo de Aguiar é pós-doutorando vinculado ao Lapsi no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – IPUSP. É membro do CFUL. Mestre em Filosofia da Natureza e do Ambiente, Doutor em Filosofia da Cultura pela Universidade de Lisboa.

Resumo

Partindo das ideias de James Hillman a respeito da alma, do caminhar e do

cosmos, este ensaio busca discutir como se poderia ampliar o entrelaçamento de

alma e cidade. Destaca-se o quanto Hillman, mormente pelas imagens que

emprega, reporta a alma ao corpo: o corpo do homem; o corpo do mundo. A partir

destas imagens, os autores propõem reflexões sobre o caráter estético mas

também necessariamente cinético da experiência da paisagem, e da cidade como

paisagem. Questiona-se, todavia, o fato de que, hoje, cidade e paisagem

encontram-se excessivamente apartadas: haveria uma ação anti-natura na

condição humana? Qual seria o modo ou meio de reintegrar o estatuto da pessoa

humana no habitat original? Nas paisagens naturais, na cidade ou na aldeia? A

reaproximação, defende-se, depende da restauração de possibilidades de

experienciar a cidade (antes de mais, de caminhar por ela), e de repensá-la em

termos dos atributos arquetípicos transpessoais expressos na natureza.

Palavras-chave: Alma; Experiência; Arquétipos.

Desejamos contribuir para o propósito de discutir e ampliar o

entrelaçamento de alma e cidade a partir do pensamento de James Hillman e,

nesta direção, procuramos comunicar nas páginas seguintes algumas

ressonâncias que suas ideias sobre a alma, o caminhar e o cosmos provocam em

nós, autores. Talvez não seja supérfluo sublinhar que “comunicar algumas

ressonâncias” não é o mesmo que parafrasear Hillman, ou aderir inteiramente

ao seu modo de pensar – bem diferente disto, aproximamo-nos de Hillman de

modo ambivalente, embora sincero. Não nos parece pertinente nenhum outro

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modo de discussão de um pensamento como o de Hillman: trata-se de um tal

modo de pensar e falar que, ou bem produz ressonâncias e então adquire vigor

em quem o escuta, ou bem não as produz, e então é inócuo – ou mesmo objeto

de duras renegações (como ele próprio ressentia). Aplica-se ao pensamento e à

obra de Hillman, talvez ainda melhor que ao seu contexto original, a famosa frase

com que Wittgenstein inicia seu Tractatus Logico- Philosophicus: “Este livro

talvez seja entendido apenas por quem já tenha alguma vez pensado por si

próprio o que nele vem expresso – ou, pelo menos, algo semelhante”.

(WITTGENSTEIN, 2008, p. 131) Assim, parece-nos que escutar Hillman e deixá-

lo ressoar em nós (em tudo o que somos e sabemos, ou julgamos ser e saber)

vem a ser o único modo de seguir cultivando a ampliação do entrelaçamento de

alma e cidade – tema deste nosso colóquio – que ele, tão enfaticamente,

ressaltou e defendeu.

Nosso ponto de partida será a consideração de três imagens propostas em

O mito da análise: três ensaios de psicologia arquetípica: a alma como

“substância vaporosa”, como “esponja” e como “enredamentos”. Diz o autor:

... a alma pode ser muito melhor imaginada, como na Grécia

antiga, como um fator relativamente autônomo formado de

substância vaporosa. Podemos então concebê-la como sendo

dependente e vulneravelmente porosa. (...) O campo emocional,

imaginário e interior da psique, a metáfora radicante do analista,

é fluido por natureza e não pode ser limitado a um “eu” ou “meu”.

(...) Não um diamante, mas uma esponja, não uma chama

particular, mas uma participação fluente, uma entrelaçada

complexidade de fios cujos enredamentos também são “teus” e

“deles”. (HILLMAN, 1984, pp. 31-32)

A imaginação da alma como uma substância vaporosa talvez seja, deveras,

a mais arcaica. O vocábulo grego psiqué, donde deriva psicologia1, significou

originariamente sôpro ou alento. Do ponto de vista da etimologia, verifica-se que

o vocábulo psiqué, tal como alma e espírito, provêem todos de raízes do indo-

europeu que exprimem a idéia de “soprar”, “respirar”. Assim, por exemplo, os

substantivos latinos anima (= “hálito, alma”) e animus (= “ânimo, brio, coragem”)

1 Ao que tudo indica, a palavra “psicologia” foi cunhada no século XVI, ou às suas vésperas, pelo poeta Marko Marulic (1450-1524). Vide: KRSTIC, 1964.

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derivam do substantivo grego ánemos (= “vento”); o substantivo latino spiritus

(= “vento, hálito”) relaciona-se com o verbo spirare (= “soprar”); o sânscrito

atmán (= “respiração”, e daí “alma”) (BESSELAAR, 1994, pp. 277- 290); do

ponto de vista filológico, psiqué relacionou-se, ao longo das eras, tanto à

substância etérea que se exalaria no último suspiro, deixando o corpo, antes vivo

e ativo, reduzido à condição de cadáver inerte quanto, por extensão, aos

princípios ou causas finais de todas as manifestações da vida2. O Dicionário de

Termos e Nomes Filosóficos de Garth Kemerling apresenta um conciso relato

deste percurso, que vale a pena transcrever:

ψυχη [psiquê] – termo grego para a alma como princípio essencial

da vida e locus da consciência. Embora utilizado pré-

filosoficamente apenas em referência ao “sôpro vital”, o termo foi

associado pelos filósofos pré-socráticos, inclusive especialmente

por Anaxágoras, como um princípio explicativo. O pensamento

pitagórico propôs que a psique fosse compreendida como o

elemento persistente na vida de um indivíduo. Platão ampliou

essa visão fazendo um relato detalhado da alma tripartite, e das

virtudes associadas a cada parte, e argumentando sobre a

imortalidade de seu componente racional. Aristóteles restaurou o

sentido amplo do termo, usando-o para as diversas funções

características dos seres vivos em geral. Pensadores

neoplatônicos fizeram da psique o princípio cósmico de todo o

movimento. (KEMERLING, 2012)

É, de fato, interessante contemplar pausadamente os significados

atribuídos à palavra psiqué ao longo dos séculos – infelizmente, não o

poderíamos retratar aqui; apenas gostaríamos de destacar que, desde a

antiguidade, concepções físicas e metafísicas da alma coexistiram, e mesmo

mesclaram-se, em diversos pensadores3. O que caberá agora é sublinhar o

caráter fisicalista das imagens aplicadas por Hillman à alma na passagem

supracitada: “substância vaporosa”, “esponja”, “enredamentos” – cada uma

2 No verbete que dedica à palavra psiqué em seu Dicionário Mítico-Etimológico, Junito Brandão acompanha alguns de seus sentidos míticos e filosóficos mais remotos, indiciados por figurações da alma ainda na Idade do Bronze, passando pelos grandes poemas homéricos, até a época helenística (BRANDÃO, 2010). 3 Encontra-se uma exposição particularmente sintética e clara desta coexistência (e mescla) em ROSENFELD (1984).

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delas reporta a alma ao corpo – o corpo do homem; o corpo do mundo – e dá,

por si mesma, muito em que pensar.

O vapor, para começar, desde os alquimistas e ainda para os químicos e

físicos nossos contemporâneos, é percebido como um corpo sui generis, cujo

peculiar estado sustenta-se num equilíbrio delicado entre a densidade dos

líquidos e sólidos e a sutileza impalpável dos gases – um estado ambíguo (mas,

é importante frisar, sempre material), às vezes espontâneo e natural, às vezes

alcançado apenas sob condições estritas. De qualquer modo, um estado sempre

no horizonte de possibilidades de todas as coisas, vivas e não vivas. Também a

esponja pode simbolizar esta composição ambígua: corpo denso e poroso (como

a terra) que, por isto mesmo, pode absorver e conter em si (e, em algum momento

e sob certas condições, expelir de si) todos os elementos mais sutis – novamente:

líquidos e gasosos. Ambas as imagens, aliás, ligam-se ao movimento e à

interação com outros corpos: o vapor expande-se e ascende e, assim, pode

empurrar ou ser empurrado, contido, por outrem; a esponja expande-se e se

comprime (movida por si mesma, ou por outrem) e, assim, pode absorver e

expelir. Esta justaposição de imagens relativamente densas, delimitáveis,

sensíveis, compressíveis, corpóreas – o vapor e a esponja – reforçam as menções

à corporeidade da alma, dispersas por toda a obra de Hillman. Para finalizar este

tópico, um breve comentário sobre a imagem do enredamento de fios: note-se

que não se trata de trançamento, enovelamento ou tecido, que indicariam uma

ordem visível; o enredamento, embora não descarte a possibilidade de uma

ordem oculta, sugere uma aparente desordem que dificulta discernir um fio do

outro e determina que todos eles se movam conjuntamente – ao mesmo tempo,

faz ressaltar o fato de que, embora emaranhados, os fios se mantém

individualizados, não se desfazem uns nos outros (o que poderia ser indicado,

por exemplo, pela imagem do amálgama). A imagem do enredamento de fios é,

sem dúvida, utilizada como alegoria das coletividades humanas e, igualmente,

das interações dos homens, entre si e também com todas as coisas vivas e não-

vivas, naturais e construídas, presentes em seu ambiente. Mais uma vez, pode-se

depreender desta imagem o fundamento corpóreo da alma do homem e da alma

do mundo, ambas entremeadas. É, a nosso ver, uma reiteração imagética da

afirmação de Jung: a alma é, ao mesmo tempo, “reflexo do mundo e do homem”

e em seguida, na mesma página, que a alma é “o único fenômeno imediato [do]

mundo percebido por nós, e por isto mesmo a condição indispensável de toda

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experiência em relação ao mundo”. (JUNG, 1984, p. 83). É sob a inspiração de

tais imagens que tomamos em consideração as proximidades que Hillman

estabelece entre a alma, o mundo e o caminhar – em especial, em: Anima mundi.

O retorno da alma ao mundo (1980/1981), e Caminhar (1980)4.

Pensar a alma como reflexo do mundo e do homem, como plena

possibilidade, e neste caso essencialmente como abertura, remete também à uma

definição neo-platónica da alma como horizonte, como linha (infinita) entre céu

e terra. Uma questão central da Filosofia da Paisagem acerca da essência do

pensar, discorda com a ideia do pensar como um ato meramente psíquico,

porque ressalta a importância da relação entre pensar e viajar, entre a experiência

física e a experiência psíquica. Ambos os conceitos, pensar e viajar, se fundem no

gesto de caminhar compreendido como uma experiência progressiva do

movimento do corpo que perpassa o espaço e que sintetiza perpetuamente todos

os possíveis dados percebidos. O conceito de experiência no sentido do termo

latim ex-periri com o significado de tentar e provar mas também no sentido da

viagem, que e ainda mais nitidamente expresso no termo alemão Erfahrung, e

um termo fundamental para a experiência moderna. Mas, como ressalta Hillman

em Caminhar, o humano que apenas sobrevive nas cidades modernas perdeu a

sua relação com o corpo, em prol das novas formas de mobilidade. As cidades

poderiam ser experimentadas e perpassadas como uma paisagem, mas o que

ocorre é que as cidades, sobretudo as grandes metrópoles como São Paulo, se

transformaram em meras aglomerações dominadas pelo trânsito incansável e

exaustivo dos carros. Fazer da cidade uma paisagem significaria, antes de mais,

a restituição da cidade para o pedestre, para o caminhante, abrindo caminhos

livres do trânsito massivo, criando lugares de repouso ao corpo e abertura ao

olhar (praças, parques, mirantes). Significaria desprender a cidade do negócio e

da ideia de perda do tempo, e, ainda mais, do espírito de caça e de sobrevivência,

para retribuir à cidade o ócio; significaria projetar e viver, como escreve Hillman,

“[...] a cidade como um lugar da alma, porque permite às nossas almas suas

pernas, às nossas cabeças suas faces, e aos nossos corpos seus estilos animais.”

(HILLMAN, 1993, p. 57)

A experiência de uma paisagem, e da cidade como paisagem, e este tica

mas antes de tudo necessariamente cinética. O pensamento está sempre em

4 Ambos os textos encontram-se incorporados ao livro Cidade & Alma (HILLMAN, 1993).

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movimento, sempre progredindo, embora necessariamente interrompendo o

mero fluxo, para refletir os passos conseguidos. Experiência abrange sempre

inevitavelmente kinesis e aisthesis, constitui-se nao somente no movimento mas

também na interrupção, pois nenhuma experiência se realiza e consciencializa

num progresso ininterrupto, num mero avançar sem pausar. Experiência significa

movimento e a-firmacão porque necessita de reflexão, isto é, intervalo,

distanciamento e revisão. Assim será possível reconhecer, através s da relação

entre experiência [Erfahrung] e aventura [Abenteuer], entre experiência e

progresso, o modo como o corpo perpassa a paisagem e a paisagem da cidade.

A experiência necessita de espaço e distância, necessita de um movimento

progressivo, porém sempre interrompido, para possibilitar a reflexão sobre o

espaço [caminho] já percorrido, para poder sintetizar, e não apenas calcular, as

impressões recolhidas. No entanto surge aqui uma diferenciação entre o conceito

de experiência e o conceito de vivência [Erlebnis] que pode ser exemplificado

através da diferença entre o caminhante e o caçador. O caçador transforma a

paisagem em mato e o seu objetivo e apenas a caça, enquanto o caminhante

torna o mato em paisagem sendo o seu objetivo o caminho. A experiência

ocidental e antes de tudo Abenteuer, que tem a sua origem no francês aventure,

tendo esta palavra a mesma raiz como o português aventura provindo do latim

advenire e significando aquilo que esta a chegar que acontecera, o acontecimento

[Ereignis]. Contudo, a experiência da paisagem no perpasso progressivo não e

mera vivência no seu sentido moderno, criticado por autores como por exemplo

Walter Benjamin. (BENJAMIN, 1991, pp. 962-970) A vivência e nesta crítica

apenas o material bruto da experiência, ou mais precisamente, apenas a

impressão superficial daquilo que a experiência põe a disposição. A experiência e

diluída pela sensação, pela vontade de sensações fortes e passageiras,

encontrados na vivência que corrompe o teor duradouro da experiência. A

aventura tornou-se refém da vivência, embora se deva se tornar outra vez um

acontecimento para recuperar o sentido original da aventura. A aventura

industrializada, como a guerra, o shopping-center, o parque de diversões ou

simplesmente a passagem, num carro de alta velocidade, de um ponto a outro da

cidade, vulgarizou os seus verdadeiros protagonistas, dispensou-se do herói

trágico que lutava contra as quimeras. O progresso físico e a passagem psíquica

sempre inclui colher, ler e sintetizar o experimentado. A experiência e assim por

um lado a síntese daquilo que e aparentemente disperso e manifesta-se no facto

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de ver algo diferente e não sempre igual. A experiência progressiva e ambulante

da paisagem e na sua descrição meramente física comparável com as leituras de

um texto, com a leitura de uma história descobrindo página a página as diferentes

camadas e vínculos da paisagem contemplada. Nós lemos o mundo com os

nossos sentidos e não nos restringimos neste caso aos nossos olhos e ao nosso

ouvido. Vivemos, como Hillman aponta em Caminhar (p.55), numa cultura do

olhar e perdemos as múltiplas possibilidades de experienciar as paisagens e as

cidades com todos os nosso sentidos, com o nosso corpo em movimento, com o

nosso corpo compreendido como um corpo de ressonância, ou justamente como

uma “esponja”, porque o nosso corpo em movimento é alma, e a nossa alma

necessita do nosso corpo para se expandir entre os confins do céu e da terra. A

palavra ler refere-se assim, e ao contrário do senso comum, em primeiro lugar a

uma experiência táctil. Lemos com os nossos dedos, na época das colheitas, as

frutas das árvores e assim também lemos tudo o que cresce no mundo – os frutos

do mundo. Somente assim o olhar e o ver se tornam um conceber, e o conceber

um autêntico pensar, sempre referido a uma experiência corporal e não apenas

espiritual. Tudo se inicia com a leitura das paisagens e da cidade enquanto

paisagem; criar conceitos e como colher frutos na beira dos caminhos onde se

abre a floresta dos signos que constitui o cosmos.

Entretanto, o ser humano, nos últimos tempos, de pouco em pouco, foi

perdendo substancialmente a capacidade desta leitura natural do mundo,

ficando portanto sem condições de tecer uma verdadeira e profunda leitura da

paisagem natural; vincula-se então às novas realidades artificiais desenfreadas,

de poluição senso-perceptiva pelos slogans, marcas e demais ícones da realidade

frenética da cidade, que é também corrompida pelo asfalto asfixiante entre

construções de cimento, plástico e vidro. Refletimos sobre a perda da natureza

anímica do cosmos pelo afazer humano em determinadas realidades fabricadas

ao constituir o mundo que se distancia da Natureza. Está implícito na obra Cidade

e Alma de James Hillman que é preciso um retorno da alma ao mundo que perdeu

o seu próprio sentido de vida e existência. Haverá uma ação anti-natura na

condição humana? Qual seria o modo ou meio de reintegrar o estatuto da pessoa

humana no habitat original? Nas paisagens naturais, na cidade ou na aldeia?

Encontramos na obra de Hillman a psicologia profunda juntamente com

a práxis pela ecologia; vemos a importância da presença dos reinos e elementos

da natureza na polis e demais paisagens que compõe os horizontes da cidade,

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que é a base para a vida saudável dos cidadãos que co-criam as diversas

realidades em seus múltiplos cosmos, e vemos as consequências patológicas de

sua ausência; somos defrontados com o fato de que na atualidade o humano vive

na ausência do bíos natural, e se condiciona na vida artificialmente construída,

geradora não somente de uma crise da existência, mas sim a destruição da

própria vida:

“A crise se estende a todos os componentes da vida urbana,

porque a vida urbana é agora uma vida construída: não vivemos

num mundo biológico onde a decomposição, fermentação, a

metamorfose e o catabolismo são equivalentes para o colapso

das coisas construídas.” (HILLMAN, 1993, p. 12)

A ausência de elementos naturais na cidade provoca hiatos

desestruturantes na consciência humana. O retorno da alma ao mundo exige o

entrelaçamento da paisagem e da cidade, o essencial intervalo de elementos da

natureza, presentes em cada um dos cenários que constituem a cidade. Eis a

precisa e renovada presença numinosa da anima mundi no ambiente

cosmológico do humano, como nos esclarece Hillman:

... imaginemos a anima mundi nem acima do mundo que a

circunda, como uma emanação divina e remota do espírito, um

mundo de poderes, arquétipos e princípios transcendentes às

coisas, nem dentro do mundo material como seu princípio de vida

unificador panpsíquico. Em vez disso, imaginemos a anima

mundi como aquele lampejo de alma especial, aquela imagem

seminal que se apresenta por meio de cada coisa em sua forma

visível. (HILLMAN, 1993, p. 14)

A percepção do mundo pela condição humana requer uma nutrição dos

sentidos pelo próprio meio envolvente, da corporalidade da alma que se estende

para além do próprio ser, mantendo a correspondência com o ambiente, a

natureza em seus elementos exteriores. Encontramos em Hillman, fazendo

ressoar pensadores como Jung e Bachelard, a mesma relação entre as funções

psíquicas: o pensar, o sentir, o intuir, a sensação, e os elementos: ar, a água, o

fogo e a terra. Compreendemos o profundo comprometimento desta visão com

uma psicologia ecológica, onde o ser humano encontra o seu sentido ontológico

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pela experiência ambiental, planetária, cósmica. Toda a realidade que se mostra

no seu universo simbólico representa o cosmos experienciado pela condição

humana:

Então, a anima mundi aponta as possibilidades animadas

oferecidas em cada evento como ele é, sua apresentação sensorial

revelando sua imagem interior – em resumo, sua disponibilidade

para a imaginação, sua presença como uma realidade psíquica.

Não apenas animais e plantas almados como na visão romântica,

mas a alma que é dada em cada coisa, as coisas da natureza

dadas por Deus e as coisas da rua feitas pelo homem. (HILLMAN,

1993, p. 14)

Entretanto, recusando o animismo de um Deus Natureza que oferece o

mundo natural de seus reinos e elementos para o humano viver, os homens vêm

construindo um mundo cada vez mais longe da Natureza. A realidade artificial

produzida pelo humano ocasionou na substancial perda de sua própria alma, e

da alma do mundo natural que já não é mais o seu. O humano atual, sobrevivente

num mundo sem alma, procura na ausência de si-mesmo reestabelecer o vínculo

originário com a anima mundi. Ao discorrer sobre Alma e Mito, Hillman afirma a

importância de experimentar a alma na sua expressão mítica: “abrir as questões

da vida à reflexão transpessoal e culturalmente imaginativa.” (HILLMAN, 1983, p.

45). A experiência da imaginação, dos atributos arquetípicos transpessoais

expressos na natureza, de uma cultura voltada para a paisagem natural, do

repensar as ideias de paraíso e cidade, seriam meios ao alcance do homem –

meios em escala humana – para tratar de regenerar a anima mundi. Assim,

Hillman revela a importância da função criativa: “É uma psicologia

deliberadamente ligada às artes, à cultura, e à história das idéias, na forma como

elas florescem da imaginação.” (HILLMAN, 1983, p. 21) Qual será o papel do

cidadão – seus valores, sua conduta – na busca do regenerar da anima mundi?

Parece que, em certa medida, Hillman responde-nos esta questão com a seguinte

afirmação: “A formação será baseada no coração sensitivo e imaginativo:

provocá-lo e educá-lo.” (HILLMAN, 1993, p. 20) Com isto chegar-se-á ao

arquétipo fundamental da alma do mundo expressa no cotidiano da vida

humana, na cidade transformada em paisagens, em cada aldeia, vilas com

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árvores e elementos naturais, nas ruas com intervalos de espaços onde a arte e o

verde possam tecer horizontes de contemplação, experiência e respiração.

Acreditamos que as reflexões acima levantadas apontam para algumas

das problemáticas essenciais das grandes metrópoles como São Paulo:

megalópoles rendidas ao espírito do negócio, da sobrevivência, da caça e do

asfalto, desprovidas das possibilidades do corpo anímico e animal, animado por

uma alma, afastadas e alienadas dos elementos naturais, das paisagens, do

orgânico em geral. Entrelaçar as paisagens na cidade e devolver a cidade ao

caminhante, a uma experiência sensitiva e corporal com os elementos naturais, é

um aspecto fundamental para um reencontro entre corpo e alma e para

incentivar a superação do ódio e do medo perante o natural, que tem dominado

a cultura técnico-industrial.

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Imaginação da matéria e experiência de paisagem: entrelaçamentos entre cidade e alma