cidadania mundial: a base da paz

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A cidadania mundial é um conceito tão desafiador e dinâmico quanto as oportunidades que a comunidade mundial enfrenta. A sabedoria exige que nós, os povos e nações do mundo, corajosamente adotemos seus princípios, os quais neste livro é apresentado expondo o pensamento de expoentes da sociedade brasileira. 118 pgs.

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CIDADANIA MUNDIAL

A BASE DA

PAZ

CIDADANIA MUNDIAL

A BASE DA

PAZ Realização da Comunidade Bahá'í do Brasil

Organização: Marilene de Freitas

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©2000 Direitos Reservados:

Jr

Editora Planeta Paz CP 198

13800-970 - Moai Mirim - SP

ISBN: 85.85690.24.0

Primeira Edição: 2000

Composto em: Times New Roman -11,5/ Modcrn -18

Organização: Marilenc de Freitas

Capa: Gustavo Pallone de Figueiredo

Impressão: R. Vieira Gráfica e Editora Ltda Campinas - SP

ÍNDICE Apresentação

A Cidadania Mundial Uma ética global para o desenvolvimento sustentável Comunidade Internacional Bahá'í

Reflexões dos Cidadãos do Mundo - 1995/1999

Cidadania: A prática dos direitos humanos 21 Anton Verwey Renato Zerbini Ribeiro Leão Allo-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados

Libertação através dos direitos humanos 29 Antônio Augusto Cançado Trindade Presidente da Corte IiUeramericana de Direitos Humanos

Reflexões sobre cidadania 37 Benedita da Silva Vice-Governadora do Estado do Rio de Janeiro

Geisa da rocinha 43 Celina Vargas do Amaral Diretora do Sebrae/RJ

Por uma cultura de paz 45 Daniel John Vaillancourt Diretor Executivo da Escola das Nações, Brasília

Cidadania: construir a paz ou aceitar a violência? 51 Feizi Milani Presidente do Instituto Nacional de Educação para a Paz e os Direitos Humanos

59 Os direitos de cada cidadão Hélio Bicudo Presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos

Paz: fraternidade e tolerância Henry Sobcl Presidente do Rabinato da Congregação Israelita Paulista

O imenso quebra-cabeças da unidade 67 Ivone Amando Bezerra Educadora Ambiental

Um processo sem fim 69 Jorge Wcrthcin Representante da UNESCO no Brasil

Direitos humanos, direitos de todos 77 José Grcgori Ministro da Justiça

Desafios etico-ecológicos: atitudes novas face à uma realidade nova 81 Leonardo Boff Teólogo

A promoção da cidadania mundial através da educação §7 Lúcia Araújo Diretora do Canal Futura

Manifesto pró-natureza e pela ética ambiental Miguel Serediuk Milano Diretor da Fundação O Boticário de Proteção à Nature/ü

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Direitos Humanos e cidadania mundial OlmarKlich Presidente do Movimento Nacional dos Direitos Humanos

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As crianças, bases para Paz Rciko Niimi Representante do UNICEF no Brasil

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Um avanço em nosso destino Sônia Shafa Enfermeira

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Um testemunho de vida Ti/uka Yamazaki Cineasta

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Notas 106

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Por essas idéias muitos lutaram e muitos tombaram.Profetas do passado tiveram visões sobre um tempo em que

o “leão e o cordeiro beberiam água da mesma fonte”. Poetasescreveram inspirados poemas e odes louvando o tema dafraternidade humana. Também por essa idéia muitos continuamdedicando suas vidas à missão de dar corpo ao conceito queenseja a visão de um novo mundo, sem fronteiras, sem discrimi-nações, sem sectarismos, sem forças excludentes dos processosde transformação da sociedade.

Temos nesta obra o pensamento vivo – e que não quer calar- de uma parcela significativa de expoentes da sociedade brasi-leira que desde 1995 foram agraciados com o Prêmio CidadaniaMundial. Este Prêmio, inspirado nas palavras de Bahá’u’lláh, ofundador da Fé Bahá’í, de que “a Terra é um só país e os sereshumanos seus cidadãos”, é outorgado anualmente aos indivíduose instituições que se destacam na defesa dos direitos humanos,na promoção da condição da mulher, na eliminação do racismo,na proteção do meio-ambiente, e é uma sinalização da sociedadecivil para o fato de que há muito tempo a cidadania mundial dei-xou de ser uma idéia e um conceito para ser uma experiência devida, compartilhada pelos mais diversos líderes do pensamentoem nossa sociedade que avança para o século XXI.

A seguir, uma breve menção sobre cada uma dessas oportu-nas reflexões:

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O Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refu-giados (ACNUR), destaca que a cidadania como fundamentoda paz é uma realidade que a cada dia agiganta-se à frente da-queles que pensam e constróem a doutrina e a prática dos direi-tos humanos.

Antônio Augusto Cançado Trindade, presidente da CorteInteramericana de Direitos Humanos, afirma categoricamenteque paz, justiça social e direitos humanos são indivisíveis e que acidadania mundial, como base da paz, está presente nas própriasorigens do Direitos Internacional, sendo que este constitui nãoapenas um instrumental jurídico de regulação mas também delibertação.

Benedita da Silva, Vice-Governadora do Estado do Rio deJaneiro, observa que a Declaração Universal dos Direitos huma-nos é o marco decisivo na conquista da cidadania por todos ospovos, com o estabelecimento da liberdade, da justiça e da eqüi-dade para garantir a paz mundial.

Celina Vargas do Amaral, Diretora do Sebrae/RJ, expres-sa o anseio de que desejamos viver em uma sociedade forte earticulada, conviver com instituições representativas, comprome-tidas e engajadas na missão de transformar uma realidade soci-almente injusta e cruel.

Daniel John Vaillancourt, Diretor Executivo da Escola dasNações, Brasília, afirma que o mundo carece de adultos consci-entes... que nossos futuros cidadãos mundiais são, hoje, osfreqüentadores de nossas escolas primárias e secundárias e quedevemos dar a eles a visão, a esperança, a capacidade e a cora-gem necessárias para que criem uma cultura de paz nesta Pla-neta que chamamos, nosso lar.

Feizi Milani, Presidente da Instituto Nacional de Educação

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para a Paz e os Direitos Humanos (INPAZ), discorre que fazero bem é algo infinitamente maior do que não fazer o mal e quenão praticar atos violentos é o mínimo que se espera de qualquerpessoa que pretenda viver em sociedade e vai além ao afirmarque praticar a paz é viver, construir e ensinar a paz, pois ela sóserá alcançada se cada cidadão, família, organização e comuni-dade se engajar ativamente na construção de relações baseadasno respeito, na unidade, na diversidade e na empatia.

Hélio Bicudo, Presidente da Comissão Interamericana deDireitos Humanos, enfatiza que enquanto o direito da populaçãoà saúde, à educação, ao emprego, à justiça e à liberdade de in-formação e expressão não forem inscritos em nossos corações ementes, não poderemos, então, proclamar a cidadania mundial.

Henry Sobel, Presidente do Rabinato da CongregaçãoIsraelita Paulista, afirma que hoje, mais do que nunca, temos queespalhar a mensagem de fraternidade e tolerância, temos queressaltar que somos todos filhos de um mesmo Deus e, portanto,somos todos irmãos, temos que tentar conscientizar a sociedadede que só atingiremos nossos objetivos se nos empenharmos,com determinação, pelo entendimento mútuo.

Ivone Amâncio Bezerra, Educadora Ambiental, destaca quepelo menos duas afirmativas deixaram sua marca impressa naconsciência de milhões de pessoas no Século XX: “a Terra é umsó país e os seres humanos seus cidadãos” e que “a Terra é umsó organismo e cada ser vivo é parte dele.”

Jorge Werthein, Representante da UNESCO no Brasil, écategórico ao afirmar que a cultura de paz é uma iniciativa delongo prazo que deve levar em conta os contextos histórico, po-lítico, econômico, social e cultural de cada ser humano e que énecessário aprendê-la, desenvolvê-la e colocá-la em prática nodia-a-dia familiar, regional ou nacional... é um processo sem fim!

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José Gregori, Ministro da Justiça, afirma que a plena cons-ciência dos direitos humanos universais, entendida comomundialização dos direitos fundamentais, implica, também na cri-ação das condições necessárias para que se desenvolva a cons-ciência, em cada um de nós, das obrigações universais e enfatizaque direitos Humanos é o único caminho seguro para a paz.

Leonardo Boff, Teólogo, afirma que devemos deixar nascerem nós o homem/mulher novos, diferentes, complementares, so-lidários e unidos na construção de um destino comum para nossopaís e para o nosso planeta. Não somos chamados a sermosgalinhas, mas águias. A águia está escondida dentro de cadaanseio e de cada sonho de crescimento e de libertação que fer-menta na mente e incendeia o coração. Importa dar asas à águia.Seu habitat é o céu, as alturas e o espaço aberto e não o rastejarpelo chão. Cumpre erguer vôo e arrastar outros na mesma aven-tura da liberdade e da libertação. Nesse processo se fará a revo-lução para um novo paradigma civilizacional que permitirá a con-tinuação do experimento homo num sentido mais profundo emelhor do que aquele vivido até o momento.

Lúcia Araújo, Diretora do Canal Futura, enfatiza que é pre-ciso que se cuide, principalmente, das crianças e dos adolescen-tes, para que a paz se concretize e a consciência de cidadaniaseja sedimentada. Para tanto, é necessário implementar, urgen-temente, ao lado dos projetos voltados para a educação conven-cional, um projeto de educação para os valores, cujo objetivoseja lutar pela construção de uma infância e uma adolescênciamais digna para os pequenos cidadãos e que contribua para aconsolidação de uma cultura da tolerância e da cooperação.

Miguel Serediuk Milano, Diretor da Fundação O Boticá-rio de Proteção à Natureza, destaca que a cidadania mundialrequer respeito entre os homens e a paz; respeito este que sóserá verdadeiro quando estiver pautado em amor e fraternidade;

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paz esta que será, então, apenas uma conseqüência desse res-peito e não motivo da busca.

Olmar Klich, Presidente do Movimento Nacional dos Direi-tos Humanos (MNDH), discorre que a caminhada pelos direitoshumanos é a própria luta do nosso povo oprimido, através de umprocesso histórico que se inicia durante a colonização e que con-tinua, hoje, na busca de uma sociedade justa, livre, igualitária,culturalmente diferenciada e sem classes.

Reiko Niimi, Representante do UNICEF no Brasil, refleteque todos os países do mundo, com exceção de apenas dois,disseram “sim” a um belo projeto de mundo: a Convenção sobreos Direitos da Criança. Afirma que as meninas e os meninos têmdireito a uma escola que respeita suas individualidades e sua cul-tura... além disso, as crianças cidadãs deste mundo devem terrespeitados seus direitos ao pensamento e à religião.

Sônia Shafa, enfermeira, recomenda que a concepção deestrangeiro deve ser abolida. Somos estranhos em quê? Na re-alidade somos todos idênticos nos nossos sonhos e nos nossosdesejos de Paz. (...) Vivemos num mundo de desafio, onde aadoção da cidadania mundial dentro de nós mesmos e aplicadana nossa vida cotidiana nos levará a um avanço no nosso destino:a prática da verdadeira humanidade.

Tizuka Yamazaki, cineasta, testemunha que o preconceitoracial não se explica, se sente medo... e muita gente sabe disso eusa do abuso de poder para humilhar o ser humano, humilhado ecom medo, o segregado está sem defesa para sobreviver. Con-clui afirmando que através da aceitação das diferenças e do amorperdemos o medo e transformamos nossas diferenças em armasa serem usada no caminho que leva a paz.

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Fica patente após a leitura destes luminosos textos que a es-trada que aponta para a cidadania mundial está ao alcance destageração. Uma estrada onde podemos encontrar referenciais que,de certa forma, têm uma influencia direta sobre o comportamen-to humano em sua experiência de viver em sociedade. Dentreestes referenciais, destacamos os seguintes:

• A confiança inabalável na unidade do gênero humano.• A eliminação dos preconceitos de raça, cor, credo naciona-

lidade, crença religiosa, classe.• A igualdade de direitos e oportunidades para o homem e a

mulher.• A harmonia entre a religião, a ciência e a razão.• A implementação da Declaração Universal dos Direitos

Humanos.

Comunidade Bahá’í do Brasil

Ilustração da CapaTítulo: Cidadão do MundoTécnica: pintura em seda - 0,70x1,00 m.Artista plástica: Ita Andrade

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No espírito da Agenda 21, como um “programa dinâmi-co” destinado a “evoluir ao longo do tempo à luz das neces-sidades e circunstâncias em constante transformação”(1), aComunidade Internacional Bahá’í oferece a seguinte pro-posta: As campanhas de educação e conscientização reco-mendadas na Agenda 21 deveriam cultivar o conceito deCIDADANIA MUNDIAL para, assim, inspirar os povos domundo a promoverem o desenvolvimento sustentável.

A Visão da Cidadania Mundial

O maior desafio que a comunidade mundial enfrenta namobilização para implementar a Agenda 21 é o de liberar osenormes recursos financeiros, técnicos, humanos e morais ne-cessários ao desenvolvimento sustentável. Tais recursos somen-te serão liberados na medida em que os povos do mundo desen-volvam um profundo senso de responsabilidade pelo destino doplaneta e pelo bem-estar da inteira família humana.

Este senso de responsabilidade somente poderá emergir daaceitação da unidade da humanidade, e somente será sustentadopor uma visão unificadora de uma sociedade mundial pacífica epróspera. Sem esse tipo de ética global, as pessoas não poderãose tornar participantes ativos e construtivos no processo mundialde desenvolvimento sustentável. (2)

Ainda que a Agenda 21 forneça arcabouço indispensável deconhecimento científico e “know-how” técnico para a

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implementação do desenvolvimento sustentável, ela não inspiraum compromisso pessoal a uma ética global. Isso não significaque a ética e os valores tenham sido desconsiderados durante oprocesso da Conferência das Nações Unidas sobre o MeioAmbiente e o Desenvolvimento (UNCED). A chamada por va-lores unificadores foi levantada durante todo aquele processo,por Chefes de Estado, oficiais da ONU, representantes de orga-nizações não-governamentais (ONG’s) e cidadãos individuais.Em particular, os conceitos de “nossa humanidade comum”, “cida-dania mundial” e “unidade na diversidade” foram invocados como osustento ético para a Agenda 21 e a Declaração do Rio.(3)

Assim, a comunidade mundial já chegou a um acordo básicosobre a necessidade de uma ética global para revitalizar a Agen-da 21. Sugerimos que a expressão, cidadania mundial, sejaadotada para englobar o conjunto dos princípios, valores, atitudese comportamentos que os povos do mundo devem adotar para arealização do desenvolvimento sustentável.

A cidadania mundial começa com a aceitação da unidadeda família humana e a interconexão das nações da “Terra, nossolar”.(4) Ao mesmo tempo que incentiva um patriotismo são e legí-timo, ela insiste também numa lealdade mais ampla, um amor àhumanidade como um todo. Na implica, entretanto, no abandonode lealdades legítimas, na supressão da diversidade cultural, naabolição da autonomia nacional ou na imposição da uniformida-de. Ela é caracterizada pela “unidade na diversidade”. A cidada-nia mundial engloba os princípios de justiça social e econômica,entre as nações e dentro das mesmas; a tomada de decisões demaneira cooperativa em todos os níveis da sociedade; a igualda-de dos sexos; a harmonia racial, étnica, nacional e religiosa; e, adisposição de sacrificar-se pelo bem comum. Outras facetas dacidadania mundial – todas as quais promovem a honra e adignidade humanas, a compreensão, a amizade, a cooperação, aconfiabilidade, a compaixão e o desejo de servir – podem serdeduzidas daquelas já mencionadas. Alguns destes princípios(5)

têm sido articulados na Agenda 21; entretanto, a maioria chama

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a atenção pela sua ausência. Outrossim, não foi fornecido ne-nhum arcabouço conceitual sob o qual eles pudessem ser har-monizados e promulgados.

Fomentar a cidadania mundial é uma estratégia pratica parapromover o desenvolvimento sustentável. Enquanto a desunião,o antagonismo e o provincialismo caracterizarem as relaçõessociais, políticas e econômicas dentro e entre as nações, um pa-drão global e sustentável de desenvolvimento não poderá serestabelecido.(6) Há mais de um século, Bahá’u’lláh advertiu: “Obem-estar da humanidade, sua paz e segurança, são inatingíveis,a não ser e até que se estabeleça firmemente sua unidade”. Umasociedade global sustentável somente poderá ser construída so-bre o alicerce de unidade, harmonia e compreensão genuínasentre os diversos povos e nações do mundo

Portanto, recomendamos que a cidadania mundial seja ensi-nada em todas as escolas e que a unidade da humanidade – oprincípio que fundamenta a cidadania mundial – seja constan-temente declarado em cada nação.

O conceito de cidadania mundial não é novo para a comu-nidade mundial. Ele está implícito e explícito em muitos docu-mentos, cartas e acordos da ONU, inclusive nas primeiras pala-vras da própria Carta da ONU: “Nós, os povos das Nações Uni-das...”, e já está sendo promovido ao redor do mundo em todasas culturas por diversas ONG’s, acadêmicos, grupos de cida-dãos, artistas, programas educativos e pela mídia. Tais esforçossão significativos, mas precisam ser largamente ampliados. Umacampanha de longo prazo, cuidadosamente planejada e orques-trada, e envolvendo todos os setores da sociedade em nível local,nacional e internacional, precisa ser iniciada para fomentar a ci-dadania mundial. A mesma deve ser prosseguida com todo ovigor, coragem moral e convicção que as Nações Unidas, seusEstados membros e todos os parceiros que estiverem dispostos acolaborar, possam reunir.

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A Promoção da Cidadania Mundial

A seguinte proposta de uma campanha para promover a ci-dadania mundial(7) cabe naturalmente dentro do arcabouço paraa reorientação a educação, conscientização e capacitação vi-sando o desenvolvimento sustentável, conforme apresentado noCapitulo 36 da Agenda 21.

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A educação – formal, não-formal e informal – é sem dúvida,a maneira mais eficaz de moldar os valores, atitudes, comporta-mentos e habilidades que capacitarão os povos do mundo a agi-rem de acordo com os interesses de longo prazo do planeta e dahumanidade como um todo.(8) As Nações Unidas, os governos eas agências educacionais deveriam procurar tornar o princípio dacidadania mundial parte integrante da educação de cada criança.

Os detalhes dos programas e atividades educativas incor-porando tal princípio irão variar muito entre as nações e dentrodas mesmas. Entretanto, para que a cidadania mundial sejaconsiderada um princípio universal, todos os programas deverãoter certos aspectos em comum. Baseados no princípio da unida-de da raça humana, eles deveriam cultivar a tolerância e afraternidade, fomentando uma apreciação pela riqueza e impor-tância dos diversos sistemas culturais, religiosos e sociais do mundoe fortalecendo aquelas tradições que contribuem para uma civi-lização mundial sustentável. Eles deveriam ensinar o princípio da“unidade na diversidade” como a chave para o poder e a riqueza,tanto para as nações quanto para a comunidade mundial. Deve-riam fomentar uma ética de serviço ao bem comum e incutiruma compreensão dos direitos e responsabilidades da cidadaniamundial. Tais programas e atividades deveriam partir dos esfor-ços positivos do país e realçar seus sucessos tangíveis, incluindomodelos de unidade racial, religiosa, nacional e étnica. Deveriamenfatizar a importância da ONU na promoção de cooperação e

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compreensão globais; suas metas, objetivos e programas univer-sais; sua relevância imediata aos povos e nações do mundo; e opapel que ela deve continuamente assumir em nosso mundo cadavez mais interconectado.

Antes que seja iniciada uma campanha para promover acidadania mundial, será preciso desenvolver uma compreen-são comum do conceito e alcançar um consenso do mesmo. AComissão para o Desenvolvimento Sustentável poderia desen-volver um comitê especial ou grupo de trabalho para começar adesenvolver diretrizes para a cidadania mundial e propostaspara a incorporação deste princípio nos programas existentes deeducação formal e não-formal. Alternativamente, a Comissãopoderia buscar a ajuda do Conselho Assessor de Alto Nível parao Desenvolvimento Sustentável. O Secretariado da ONU pode-ria estabelecer um Centro para a Cidadania Mundial, semelhan-te ao antigo Centro de Estudos da Paz, para desenvolver taisdiretrizes e coordenar a implementação em todo o sistema daeducação para a cidadania mundial. Qualquer que seja o ca-minho escolhido, esta tarefa terá que receber alta prioridade.

A cidadania mundial poderia facilmente ser incorpora-da em todas as atividades sugeridas no Capítulo 36.5. da Agen-da 21, para reorientar a educação na direção do desenvolvimen-to sustentável. Alguns exemplos são ilustrativos:

• As assessorias nacionais/mesas redondas (36.5.c) deve-riam facilitar a incorporação da cidadania mundial nos progra-mas educacionais dentro do país.

• Os programas de treinamento e aperfeiçoamento para to-dos os professores, administradores, planejadores educacionaise educadores não-formais (36.5.d) deveriam incluir o princípioda cidadania mundial nas suas programações.

• Os materiais educativos sobre o desenvolvimento susten-tável produzidos pelas agências da ONU, bem como os materi-ais educativos sobe as Nações Unidas, deveriam incentivar acidadania mundial (36.5.g).

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• A Agenda 21 recomenda “o desenvolvimento de uma redeinternacional” para apoiar os esforços globais de educação parao desenvolvimento sustentável (36.5.k). Tal rede poderia incenti-var as agências das Nações Unidas e ONG’s afiliadas a criaremmateriais baseados nas diretrizes para a cidadania mundial e pro-videnciarem os meios de compartilhá-los.

• Os governos e as autoridades educacionais já foram ins-tados a “eliminar os estereótipos baseados em gênero nos currí-culos”, como um meio de promover o desenvolvimento sustentá-vel (36.5.m). Recomendamos que, dentro do espírito de cidada-nia mundial, os estereótipos baseados em religião, cultura, raça,classe, nacionalidade e etnicidade sejam também eliminados.

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As pessoas precisam considerar-se cidadãos do mundo eentender sua responsabilidade de promoverem o desenvolvimentosustentável.(9) As campanhas de conscientização dos desafiosda cidadania mundial devem aproveitar toda a mídia e as artes,inclusive a televisão, vídeo, cinema, rádio, redes eletrônicas, li-vros, revistas, cartazes, panfletos, teatro e música. Tais campa-nhas deveriam envolver as indústrias de publicidade e entreteni-mento, os meios tradicionais e não tradicionais de comunicação,o sistema inteiro das Nações Unidas, todos os Estados membros,as ONG’s e personalidades populares. Elas deveriam alcançar olar, o local de trabalho, as áreas públicas e as escolas. As diretri-zes para a cidadania mundial, cujo estabelecimento foi recomen-dado acima devem ser adequadas para uso em tais campanhasde conscientização, e devem servir como uma referência básicapara toda a programação para a mídia.

A cidadania mundial poderia ser incluída nas atividadesapresentadas no capítulo 36.10. da Agenda 21, para aumentar aconsciência e a sensibilidade do público em relação ao desenvol-vimento sustentável. Os seguintes exemplos são ilustrativos:

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• Conselhos assessores nacionais e internacionais (36.10.a)poderiam incentivar os diversos meios de comunicação a adota-rem as diretrizes para a cidadania mundial. A mídia tem feitomuito para conscientizar o público sobre a interdependência glo-bal e os enormes desafios que a comunidade mundial enfrenta.Tem, também, realçado as diferenças aparentemente insuperá-veis que nos dividem.

A mídia tem a responsabilidade de ajudar as pessoas a enten-derem que a diversidade não precisa ser uma fonte de conflito;antes, a diversidade pode, e agora deve, servir como um recursopara o desenvolvimento sustentável. A mídia poderá alcançaresta meta, focalizando os empreendimentos construtivos,unificadores e cooperativos que comprovam a capacidade dahumanidade de trabalhar junto para vencer os enormes desafiosque ela enfrenta.

• Ao promover “um relacionamento cooperativo com amídia” (36.10.e), a ONU deve corajosamente definir sua própriaidentidade e a promessa que ela oferece à comunidade mundial.A Organização das Nações Unidas foi estabelecida com eleva-dos ideais e uma visão de um mundo pacífico e progressivo. For-necendo um arcabouço para a comunicação e a cooperação einiciando inúmeros projetos construtivos, ela tem contribuído sig-nificativamente para a compreensão, esperança e boa vontadedo mundo. Contudo, suas realizações são pouco conhecidas pelahumanidade em geral.

Usando o conceito de cidadania mundial como temaintegrador, as Nações Unidas deveriam divulgar seus ideais, ati-vidades e metas, para que as pessoas venham a entender o papelúnico e vital que a ONU desempenha no mundo e, portanto, nassuas vidas. Semelhantemente, a ONU deveria promover a cida-dania mundial em todas as suas atividades públicas, inclusivenas comemorações do qüinquagésimo aniversário das NaçõesUnidas e n os passeios pela Sede da ONU. Cada documento daONU que trata do desenvolvimento sustentável, a começar pelopreâmbulo da proposta Carta da Terra, deveria também incluir

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esse princípio. A cidadania mundial deve-se tornar o ponto dereferência ético mais importante em todas as atividades da ONU.

• Os serviços da indústria da publicidade (36.10.e) devemser recrutados para a promoção da cidadania mundial. Cam-panhas poderiam ser organizadas ao redor de temas tais como:

Nós, os Povos das Nações Unidas:Celebrando a Unidade na Diversidade.

Um Planeta, Um só Povo.

Em Toda Nossa Diversidade,Nós Somos uma Só Família Humana.

Nosso Futuro Comum: A Unidade na Diversidade.• Concursos deveriam ser realizados e prêmios concedidos

pela promoção da cidadania mundial (36.10.e).• Enquanto conscientiza o público “sobre os impactos da

violência na sociedade” (36.10.1), a mídia pode gerar um com-promisso para com a cidadania mundial, realçando exemplosde empreendimentos construtivos e unificadores que mostram opoder da unidade e de uma visão comum.

Cada país deveria ser encorajado a alocar recursos para apromoção da cidadania mundial. Também deve-se considerarincluir nos propostos “indicadores do desenvolvimento sustentá-vel” (40.6.) a promoção deste princípio. Por exemplo, os paísespoderiam ser incentivados a relatarem os esforços para promo-ver o respeito e a apreciação das outras culturas, a igualdade dossexos e o conceito de uma única família humana, através doscurrículos escolares, do entretenimento e da mídia.

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O Desafio da Cidadania Mundial

Em conclusão, a cidadania mundial é um conceito tão de-safiador e dinâmico quanto as oportunidades que a comunidademundial enfrenta. A sabedoria exige que nós, os povos e naçõesdo mundo, corajosamente adotemos seus princípios subjacentese nos guiemos por eles em todos os aspectos das nossas vidas –nas nossas relações pessoais e comunitárias e nos assuntos na-cionais e internacionais; nas nossas escolas, locais de trabalho emídia e nas nossas instituições jurídicas, sociais e políticas. Nós,portanto, instamos a Comissão a encorajar o sistema inteiro dasNações Unidas a incorporar o princípio da cidadania mundialem todos seus programas e atividades.

A Comunidade Internacional Bahá’í, que há mais de um sé-culo vem promovendo a cidadania mundial, aceitaria de bomgrado ajudar a Comissão, os Governos, as ONG’s e outros aampliarem os conceitos contidos neste documento; fornecermodelos práticos de unidade racial, religiosa, nacional e étnicapara o desenvolvimento sustentável; e participar de consultassobre esta questão crucial. Como uma comunidade global queabarca a diversidade da humanidade e compartilha uma visãocomum, a Comunidade Internacional Bahá’í continuará a pro-mover o desenvolvimento sustentável, encorajando as pessoas aconsiderarem cidadãos de um só mundo e construtores de umacivilização mundial justa e próspera.

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Anton VerweyDiretor Regional do ACNUR no Escritório Regional para o Sul da América

Latina.

Renato Zerbini Ribeiro LeãoCoordenador-Geral do Centro de Proteção Internacional de Direitos Humanos

(CPIDH). Consultor Jurídico no Brasil do Escritório Regional para o Sul da

América Latina do ACNUR.

Introdução

Para o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refu-giados (ACNUR) é uma honra e um privilégio estar contribuindocom a obra “Cidadania Mundial: A base da Paz”, publicação quereúne todos os agraciados com o Prêmio Cidadania Mundial ofe-recido pela Comunidade Bahaí do Brasil, instituição que desem-penha um papel fundamental na propagação dos fundamentosdos direitos humanos ao longo do planeta.

O tema escolhido, a cidadania como fundamento para a paz,é uma realidade que cada dia agiganta-se à frente daqueles quepensam e constroem a doutrina e a prática dos direitos humanos.

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Uma parte significativa dos pensadores da matéria concordamque o conceito de cidadania está estreitamente vinculado com odireito a ter direitos, daí o esforço do Direito Internacional Públi-co de tutelar os direitos dos “não-cidadãos”, no contexto maisamplo do princípio de proteção internacional.

A realidade da problemática dos refugiados e refugiadas en-caixa-se nessa noção de cidadania. Dados estatísticos apontamque no mundo atual, cerca de 50 milhões de pessoas podem,legitimamente ser vítimas de deslocamentos forçados. Os movi-mentos de refugiados e outras formas de deslocamento forçadoconstituem um importante instrumento para medir a segurançae/ou insegurança humana. Geralmente, as pessoas não abando-nam seus lares ou fogem de seu próprio país a não ser quandosentem sua vida, sua liberdade ameaçadas e seus direitoscompletamentes renegados.

Hoje em dia, por volta de 22 millões de pessoas estão sob aproteção do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Re-fugiados (ACNUR) e a maioria delas provêem de países pobres.Muitos são obrigados a viver em imensos campos de refugiadosou acampamentos provisórios, aguardando retornar a seus laresde maneira segura para poder retomar una vida normal.

O ACNUR, criado pela Resolução 319 (IV) da AssembléiaGeral das Nações Unidas com data de 3 de dezembro de 1949,inicia suas atividades em 1º de janeiro de 1951. O Estatuto doACNUR foi aprovado pela Assembléa Geral, em 14 de dezem-bro de 1950, conforme Anexo da Resolução 428 (V). NessaResolução, a Assembléia apelava aos Governos para quecooperassen com o Alto Comissariado no desempenho de suasfunções relativas aos refugiados amparados pela competênciade seu Comissariado. De acordo com seu Estatuto, o trabalho doAlto Comissariado terá carácter inteiramente apolítico e será denatureza humanitária e social.

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O ACNUR no Brasil e na região

Uma das principais estratégias do ACNUR no Cone Sul é aconstrução e o fortalecimento de uma estrutura tripartite (Go-verno, Sociedade Civil e ACNUR) sólida. Nesse sentido, um deseus objetivos principais é dotar e capacitar a sociedade civilenvolvida com a temática das/os refugiadas/os dos diferentespaíses que conformam a região (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile,Paraguai e Uruguai) no trabalho de políticas públicas, proteção eintegração local. Nesse modelo ideal, o Brasil é um país chavena região, pois possui a estrutura mais próxima a essa realidade.

A história da presença do ACNUR no Brasil remonta-se aoano de 1977, quando essa instituição da ONU instalou uma sedelocal na cidade do Rio de Janeiro, que se encontrava sob a su-pervisão da Oficina Regional para o Sul de América Latina, comsede em Buenos Aires, Argentina. Naquela época o país come-çava a receber seus primeiros fluxos importantes de refugiados,provenientes justamente de países da América do Sul como conse-qüência das crises institucionais que afetaram os países da região,recebendo assim a uruguaios, argentinos, paraguaios e chilenos.

No ano de 1989, a missão do ACNUR no Rio de Janeirotransfere-se para Brasília, pois aí estão os órgãos federais detomada de decisão na matéria. Mas recentemente, com a apro-vação da Lei 9474, em 22 de julho de 1997, o Brasil incorpora demaneira oficial a seu ordenamento jurídico e político, tanto aConvenção de 1951 como o Protocolo de 1967 relativos ao Estatutodos Refugiados, convertendo-se no primeiro país da região em ela-borar uma legislação compreensiva e progressista na matéria.

Em dezembro de 1998, dentro de um contexto de diminuiçãode recursos e permeado por uma significativa crise financeira,conseqüência das limitações orçamentárias observadas na insti-tuição em escala mundial, o ACNUR toma a difícil decisão defechar sua representação local no país, pois considera que o Brasiljá iniciava e assumia por seus próprios meios o exame criterioso

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e profissional do tema em busca de soluções duradouras para osrefugiados e refugiadas em seu território. Portanto, os poucosrecursos disponíveis deveriam ser direcionados para as regiões esituações de emergência nos distintos continentes. O Brasil se-ria, então, coberto pelo Escritório Regional de Buenos Aires.

O ACNUR, no entanto, não saia muito preocupado do Brasil,pois esse país aprovara uma das leis mais modernas sobre refu-giados e refugiadas e possuía uma estrutura tripartite (Governo,Sociedade Civil e ACNUR) em um processo ascendente eexitoso de consolidação, conformando um país chave na região.A Lei Nº 9.474, de 22 de julho de 1997, define os mecanismospara a implementação da Convenção sobre o Estatuto dos Refu-giados de 1951 no Brasil, e determina outras providências comoa criação do Comitê Nacional para os Refugiados –CONARE-atuando como marco para o tratamento das solicitações do Esta-tuto de Refugiado e a busca de soluções duradouras para osrefugiados e refugiadas que procuram a proteção internacionalem seu território. Ademais, o ACNUR buscava intensificar suapresença na temática de refugiados no país, além da supervisãointernacional desde o Escritório Regional de Argentina, através deassociações com distintas organizações (Cáritas, OAB, IBRI eCPIDH) que, de diversas formas, podem contribuir e somar seusesforços de trabalho em prol dos refugiados e refugiadas no Brasil.

Em busca de uma harmonização legislativa regional

No árduo caminho que tem sido percorrido desde a criaçãodo ACNUR e a entrada em vigor da Convenção de 1951 e seuProtocolo de 1967, não se pode perder de vista que as situaçõesque vem originando os grandes fluxos de refugiados e refugiadasao longo das décadas têm tido sua origem nas complexas rela-ções internacionais surgidas em conseqüência do final da Segun-da Grande Guerra. Os movimentos de libertação nacional, o res-surgir de certas formas extremas de nacionalismo, o separatis-mo étnico, o aumento de conflitos armados internos, o desmoro-

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namento de grandes bloques ideológicos e o surgimento de no-vos grupos econômicos de influência, contribuiram para uma ins-tabilidade na qual situações de violação de direitos humanos en-contram campo fértil.

Em um mundo onde as relações entre os Estados estão cadavez mais vinculadas à realização de objetivos supranacionais eonde os efeitos de uma medida política em um país afeta cadavez mais a situação de seu vizinho, o caminho da coordenaçãode políticas sociais, econômicas e de desenvolvimento como ins-trumento de progresso regional é inevitável. Os exemplos maisclaros dos beneficios e percalços da integração ou harmonizaçãoregional estão dados nos anos de esforços necessários àconcretização da União Européia e o incipiente desenvolvimentoda comunidade do Mercosul.

No campo dos direitos humanos e nele tratando do tema dosrefugiados e refugiadas, a identificação das causas dos movi-mentos irregulares de pessoas que originam os fluxos massivosem busca de proteção internacional é de importância fundamen-tal para a prevenção destas situações. Neste sentido, durante a2ª Conferência Mundial de Direitos Humanos em Viena em 1993,em sua intervenção, a Alta Comissariada das Nações Unidaspara os Refugiados, Sra. Sadako Ogata, destacou a prevençãode situações futuras geradoras de refugiados e refugiadas e ins-tou à Conferência a reafirmar o direito dos refugiados e das re-fugiadas a buscar asilo e a disfrutá-lo, o princípio da não-devolu-ção e o direito de retornar ao lar com segurança e dignidade.Direitos esses que requerem a garantia do respeito aos direitoshumanos e um enfoque integral dos mesmos, recobrando assim,certamente, a cidadania dessas pessoas. Os princípios de direi-tos humanos permanecem de importância vital para o trabajo doACNUR em favor dos refugiados e das refugiadas como ele-mento base da admissão e proteção eficaz dessas pessoas nopaís de asilo. A melhoria na situação de direitos humanos no paísde origem é a melhor maneira de prevenir as condições que, deoutro modo, poderiam forçar às pessoas a tornaram-se refugia-

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dos e refugiadas. Cada um deses aspectos do problema dos re-fugiados e das refugiadas pode ser visto desde uma perspectivadiferente de direitos humanos, entretanto, encontrar uma respos-ta que possa resolvê-los satisfatoriamente, devolvendo a essaspessoas uma perspectiva cidadã, somente através da visão inte-gral e indivisível dos direitos humanos.

No marco destas apreciações gerais dos desafíos da temáticade refugiados e refugiadas a nivel internacional encontramos aregião do Cone Sul em uma etapa de relativa estabilidadeinstitucional, de estabelecimento dos primeros fundamentosnormativos na matéria e com perspectivas muito estimulantescomo região de acolhida de pessoas necessitadas de proteção.Com este primeiro passo dado por Brasil com a Lei 9.474 e coma exitosa experiência de parceria tripartita (Governo, SociedadeCivil e ACNUR) alcançada, traça-se um rumo a seguir no qualos demais países da região terão a possibilidade de espelhar-secom o intuito de obterem beneficios mútuos.

Todos os países da nossa região são signatários da Conven-ção de 1951 e de seu Protocolo de 1967, tendo adotado em maiorou menor grau medidas para o efetivo cumprimento de suas dis-posições. O desafío agora será de aproveitar os instrumentosregionais já existentes, para lograr esta harmonização legislativatão sonhada. Os problemas criados pela mobilidade geográficadevem ser enfrentados, de acordo às realidades dos países queconformam a região, com normas comunitárias e políticas regionaiscomuns. Harmonização supõe a adoção de diretrizes comuns em de-terminados aspectos básicos, mas sempre procurando manter as pe-culiaridades de cada legislação nacional e a análise concreta e indivi-dual de cada uma das solicitações de refúgio em estudo.

Assim, com a firma do Tratado de Assunção em 1991 e, posterior-mente, do Protocolo de Ouro Preto em 1994, os países que integram oMercosul dão os primeiros passos para atender as novas necessida-des geradas no processo de integração em marcha; principalmentecom a criação da Comissão Parlamentar Conjunta como órgão cujoobjetivo é facilitar o caminho às metas propostas por meio de sua

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função consultiva, deliberativa e de formulação de propostas. EstaComissão, cuja presidência corresponde semestralmente a cada umdos países fundadores do Mercosul, tem entre suas funções as derealizar os estudos necessários tendentes a harmonizar as legislaçõesdos Estados Parte, propor normas de direito comunitário referidas aoprocesso de integração e fazer com que as conclusões cheguem aosParlamentos Nacionais.

O Mercosul deve, então, ser a primera via de contato a explorareste caminho que se iniciou há 50 anos na visão daquelas pessoas quepensavam que a construção de um futuro melhor depende do esforçode todos.

São essas as premissas que norteam o trabalho do Escritório Re-gional do ACNUR para o Sul da América Latina em prol da efetivaçãode uma cidadania digna na região, em primeiro lugar, e depois queesse esforço possa servir como um bom exemplo e influenciar asdemais regiões do planeta, colaborando assim com a construção deuma cidadania mundial.

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Antônio Augusto Cançado TrindadePresidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos

A concepção de cidadania mundial, como base da paz, pode,efetivamente, ser considerada de ângulos distintos. Proponho-me,em breves palavras, abordá-la a partir do prisma de minha área dereflexão e atuação, a do Direito Internacional dos Direitos Huma-nos. Preliminarmente, devo deixar consignada minha convicçãona existência de uma consciência jurídica universal, assim comona inviabilidade da paz sem justiça social, pressupondo esta últimaa plena vigência da totalidade dos direitos humanos (civis, políti-cos, econômicos, sociais e culturais). Todos os direitos para to-dos, é o único caminho seguro a seguir. Paz, justiça social edireitos humanos são, em suma, indivisíveis. E o Direito Inter-nacional, tal como o tenho sempre concebido, constitui uminstrumental jurídico já não só de regulação, mas sobretudode libertação1.

A concepção de cidadania mundial, como base da paz,marca presença nas próprias origens do Direito Internacional (comohoje o conhecemos). O ideal da civitas maxima gentium foipropugnado e cultivado nos escritos dos chamados fundadores doDireito Internacional, - quase esquecidos em nossos dias. É signi-

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ficativa a contribuição dos teólogos espanhóis Francisco de Vitoriae Francisco Suárez nesse sentido. Vitoria deu uma contribuiçãopioneira e decisiva para a noção da prevalência do Estado deDireito: foi ele quem sustentou, com rara lucidez, em suas céle-bres Relecciones Teológicas (1538-1539), sobretudo a De Indis- Relectio Prior, que o ordenamento jurídico obriga a todos (go-vernados e governantes), e a comunidade internacional (totusorbis) prima sobre o arbítrio de cada Estado individual.

Para o grande mestre de Salamanca, o direito das gentes re-gula uma comunidade internacional constituída de seres huma-nos organizados socialmente em Estados e coextensiva com aprópria humanidade. Decorridos mais de quatro séculos e meio,a mensagem de Francisco de Vitoria, - de incidência direta naconcepção de cidadania mundial, - retém uma notável atuali-dade. Para Suárez (autor do tratado De Legibus ac DeoLegislatore, 1612), o direito das gentes revela a unidade e uni-versalidade do gênero humano, sendo os Estados membros dasociedade universal.

Na concepção do jus gentium de Hugo Grotius (autor dacélebre obra De Jure Belli ac Pacis, 1625), o Estado não é umfim em si mesmo, mas um meio para assegurar o ordenamentosocial e aperfeiçoar a sociedade comum que abarca toda a hu-manidade. Ainda antes de Grotius, Alberico Gentili (autor de DeJure Belli, 1598) sustentava que é o Direito que regula a convi-vência entre os membros da societas gentium universal. SamuelPufendorf (autor de De Jure Naturae et Gentium, 1672), a seuturno, sustentou a sujeição do legislador à “lei da razão”. Por suavez, Christian Wolff (autor de Jus Gentium Methodo ScientificaPertractatum, 1749), ponderava que assim como os indivíduosdevem promover o bem comum, a seu turno o Estado tem odever correlativo de buscar sua perfeição.

Lamentavelmente, estas reflexões visionárias, que concebi-am o Direito Internacional nascente como um sistema verdadei-ramente universal, vieram a ser suplantadas pela emergênciado positivismo jurídico, que personificou o Estado dotando-o de

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“vontade própria”, reduzindo os direitos dos seres humanos aosque o Estado a estes “concedia”. O consentimento ou a vontadedos Estados (o positivismo voluntarista) tornou-se o critério pre-dominante no Direito Internacional, que se mostrou incapaz deimpedir sucessivas atrocidades perpetradas contra os seres hu-manos, destinatários últimos de toda norma jurídica.

A personificação do Estado todo-poderoso, inspirada na filo-sofia do direito de Hegel, teve uma influência nefasta na evolu-ção do Direito Internacional (reduzido a um direito inter-estatal)em fins do século XIX e nas primeiras décadas do século XX.Esta corrente doutrinária resistiu com todas as forças ao ideal deemancipação do ser humano da tutela absoluta do Estado, e aoreconhecimento do indivíduo como sujeito do Direito Internacio-nal. No passado, os positivistas se gabavam da importância poreles próprios atribuída ao método da observação (negligenciadopor outras correntes de pensamento), o que contrasta, porém,com sua total incapacidade de apresentar diretrizes, linhas mes-tras de análise, e sobretudo princípios gerais orientadores. Noplano normativo, o positivismo se mostrou subserviente à ordemlegal estabelecida, e convalidou os abusos praticados contra osseres humanos em nome de tal ordem.

Mas já em meados do século XX, a doutrinajusinternacionalista mais esclarecida se distanciava definitivamen-te da formulação hegeliana e neo-hegeliana do Estado como su-posto repositório final da liberdade e responsabilidade dos indiví-duos que o compunham. O desencadeamento do movimento uni-versal em prol dos direitos humanos, nas cinco últimas décadas,contribuiu decisivamente para o resgate histórico do ser humanocomo sujeito do Direito Internacional, - evolução esta que consi-dero o legado mais precioso do desenvolvimento da ciência jurí-dica no século XX.

Poder-se-ia argumentar que o mundo contemporâneo é intei-ramente distinto do da época dos chamados fundadores do direi-to internacional (supra), que propugnaram por uma civitasmaxima regida pelo direito das gentes. Mas ainda que se trate de

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dois cenários mundiais diferentes (ninguém o negaria), a aspira-ção humana é a mesma, qual seja, a da construção de umordenamento internacional aplicável tanto aos Estados (e organi-zações internacionais) quanto aos seres humanos (o direito dasgentes), consoante certos padrões universais de justiça, sem aobservância dos quais não pode haver paz.

Neste sentido, visualizo em nossos dias, neste limiar do séculoXXI, um grande esforço, por parte da doutrina jurídica mais lúcida,de retorno às origens, no que diz respeito à disciplina que meconcerne, a do Direito Internacional. O atual processo histórico dehumanização do Direito Internacional, ao qual tenho buscado con-tribuir ao longo dos anos em minha atuação profissional, manifes-ta-se, a meu ver, em capítulos os mais diversos da disciplina. Nocapítulo de suas fontes, por exemplo, destaca-se o papel da opiniojuris2, graças à atuação libertária, nos foros internacionais, dospaíses mais fracos e oprimidos.

Recorde-se, a propósito, que a codificação do capítulo da su-cessão de Estados (a respeito de tratados, e de matérias outrasque tratados)3 só foi possível após o exercício efetivo do direitode autodeterminação dos povos, por estes últimos4. E o capí-tulo do reconhecimento, - outrora de Estados e governos, - como tempo expandiu-se, abarcando também a beligerância, ilustra-da, a partir de meados do século XX, também pela emergênciados movimentos de libertação nacional.

No capítulo dos sujeitos do Direito Internacional, a par dosEstados e organizações internacionais, figuram hoje também osindivíduos, a pessoa humana. Ora, se o Direito Internacional con-temporâneo reconhece direitos aos indivíduos e grupos de parti-culares, - como o ilustram os múltiplos instrumentos internacio-nais de direitos humanos de nossos dias, - não há como negar-lhes personalidade jurídica internacional, sem a qual não pode-ria dar-se aquele reconhecimento. O próprio Direito Internacio-nal, ao proclamar direitos inerentes a todo ser humano, - pordefinição anteriores e superiores ao Estado, - desautoriza o ar-caico dogma positivista que pretendia autoritariamente reduzir

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tais direitos aos “concedidos” pelo Estado.O reconhecimento dos indivíduos como sujeitos tanto do direito

interno como do Direito Internacional representa uma verdadei-ra revolução jurídica, à qual temos o dever de contribuir. Per-mito-me aqui evocar a inspirada reflexão de um dos maioresescritores do século XX, para quem “na nossa provação diária, arevolta desempenha o mesmo papel que o cogito na ordem dopensamento: ela é a primeira evidência. Mas essa evidência tirao indivíduo de sua solidão. Ela é um território comum que funda-menta o primeiro valor dos homens”5. Trata-se, em última análi-se, de capacitar cada ser humano para enfrentar por si mesmo aopressão e as injustiças da ordem estabelecida e construir assimum mundo melhor para seus descendentes, as gerações futuras.

Esta revolução jurídica vem enfim dar um conteúdo ético àsnormas tanto do direito público interno como do Direito Interna-cional. O próximo passo reside na consolidação da capacidadejurídica internacional dos indivíduos, para mover, por conta pró-pria, uma ação internacional por violação de seus direitos atémesmo contra seu próprio Estado, diretamente ante os tribunaisinternacionais (Cortes Européia e Interamericana) de direitoshumanos. O que já é uma realidade sob a Convenção Européiade Direitos Humanos (recentemente emendada pelo Protocolon. 11), ainda é um ideal a ser alcançado em relação à ConvençãoAmericana sobre Direitos Humanos, pelo qual há tantos anosvenho lutando.

No que diz respeito ao capítulo da responsabilidade interna-cional, a par da dos Estados e organizações internacionais afir-ma-se hoje também a dos indivíduos. Exemplificam-no a criaçãodos dois Tribunais Internacionais ad hoc das Nações Unidas,para a ex-Iugoslávia e para Ruanda (em 1993 e 1994, respecti-vamente), assim como a adoção em 1998 do Estatuto do Tribu-nal Penal Internacional. A subjetividade internacional dos indiví-duos passa, assim, a vincular-se inelutavelmente à temática daresponsabilidade internacional (outrora limitada à dos Estados).

Em relação ao capítulo das imunidades dos agentes dos Es-

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tados, a consagração do princípio da jurisdição universal emalguns instrumentos internacionais, como, e.g., a Convenção dasNações Unidas contra a Tortura (1984), acarreta profundas impli-cações. Tal como demonstrado por eventos recentes, mesmo naatual pendência da entrada em vigor do mencionado Estatuto doTribunal Penal Internacional, torna-se virtualmente impossível a qual-quer agente estatal tentar hoje se prevalecer de imunidade, quandoresponsável pela prática de tortura como política de Estado.

No tocante à regulamentação dos espaços, a antiga liberda-de dos mares, por exemplo, cede terreno ao conceito de patrimôniocomum da humanidade (os fundos oceânicos), consagrado naConvenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (1982). Omesmo conceito passa, a partir dos anos sessenta, a ter aplicaçãotambém no âmbito do capítulo do direito do espaço exterior. E odireito ambiental internacional contemporâneo passa a cunhar umanova expressão, a do interesse comum da humanidade (commonconcern of mankind), de que dão testemunho os preâmbulosdas Convenções sobre o Clima, e sobre a Biodiversidade (1992)6.

E os exemplos se multiplicam, refletindo, efetivamente, emdistintos capítulos do domínio específico do Direito Internacionalcontemporâneo, o ideal da civitas maxima gentium, ou seja, acidadania mundial, como base da paz, vinculada esta - comoem uma tríade indissociável - à justiça social e à observância dosdireitos humanos. Os avanços até hoje logrados, comoexemplificado pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos7,se devem, em grande parte, à mobilização da sociedade civil contratodas as manifestações do poder arbitrário, nos planos tanto na-cional como internacional.

O movimento universal em prol dos direitos humanos éirreversível, não admite retrocessos. Tem sua mística própria.Resta, no entanto, um longo caminho a percorrer. Há que equi-par os mecanismos internacionais de proteção para enfrentarnovas formas de violação dos direitos humanos e combater aimpunidade. Há que lograr em definitivo a justiciabilidade dosdireitos econômicos, sociais e culturais, negligenciados até o pre-

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sente. Há que fomentar a aceitação integral (sem reservas), pe-los Estados, dos tratados de direitos humanos, e assegurar aaplicabilidade direta de suas normas no plano do direito inter-no dos Estados. Há que consolidar o acesso direto dos indivídu-os à justiça no plano internacional, tese pela qual venho me ba-tendo há tanto tempo. Há que desenvolver as obrigações ergaomnes de proteção do ser humano, tomando seus direitos funda-mentais como parte integrante do jus cogens. E há que dissemi-nar o papel da sociedade civil na construção de uma culturauniversal de observância dos direitos humanos8.

Ao concluir, permito-me referir-me a um derradeiro aspectoda questão aqui abordada, a da concepção de cidadania mun-dial como base da paz, sob a ótica do Direito Internacional.

O grande ciclo das Conferências Mundiais das Nações Uni-das da última década do século XX (Meio Ambiente e Desen-volvimento, Rio de Janeiro, 1992; Direitos Humanos, Viena, 1993;População e Desenvolvimento, Cairo, 1994; DesenvolvimentoSocial, Copenhagen, 1995; Direitos da Mulher, Beijing, 1995;Assentamentos Humanos - Habitat-II, Istambul, 1996) desper-tou a consciência jurídica universal para a necessidade dereconceituar as próprias bases do ordenamento internacional.

Revelou, como denominador comum, a atenção especial dis-pensada às condições de vida da população (particularmentedos grupos vulneráveis, em necessidade especial de proteção).Daí resultaram o reconhecimento universal da necessidade desituar os seres humanos de modo definitivo no centro de todoprocesso de desenvolvimento9, assim como o reconhecimentoda legitimidade da preocupação de toda a comunidade interna-cional com a situação real de todos os seres humanos em todaparte. O referido ciclo de Conferências Mundiais do final doséculo XX alertou, em suma, para a premente necessidade doatendimento às necessidades básicas e aspirações da popula-ção mundial.

O diálogo e concerto, em escala verdadeiramente universal,por tais Conferências ensejados, terminaram por conformar a

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agenda internacional do século XXI em torno do tratamento equ-ânime das questões que afetam a humanidade como um todo. Oatual reconhecimento da centralidade, nesta agenda do novo sé-culo, das condições de vida de todos os seres humanos, em todosos recantos do mundo, corresponde a um novo ethos de nossostempos, e é, em meu entender, da própria essência da concepçãode cidadania mundial como base da paz. Tal concepção, porsua vez, corresponde, em nossos dias, à busca continuada darealização do ideal da civitas maxima gentium, visualizado ecultivado pelos fundadores do Direito Internacional.

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Benedita da SilvaVice-Governadora do Estado do Rio de Janeiro

A 10 de dezembro de 1948 a Assembléia Geral das NaçõesUnidas reuniu-se para aprovar a Declaração Universal dos Di-reitos Humanos, marco decisivo na conquista da cidadania portodos os povos, com o estabelecimento da liberdade, da justiça eda eqüidade para garantir a paz mundial.

A Declaração Universal salienta o direito à vida e à liberda-de; condena a escravidão, a tortura, a perseguição política; ga-rante o direito de propriedade, o direito de reunião e associação,o direito ao trabalho e à educação, entre outros.

Foi, inegavelmente, uma grande conquista para os povos que,oprimidos pelas barbaridades da guerra, procuravam soluçõespacíficas para os seus problemas. A sua importância foi tão gran-de que, hoje, o seu conteúdo é reconhecido como direito costu-meiro de todos os povos. Ela passou a ser uma norma comum deaplicação no que se refere à dignidade inerente e aos direitosinalienáveis da pessoa humana.

Apesar do sucesso em alguns pontos, ainda não vivemos nomundo prometido pela Declaração Universal. Um mundo de igual-dades, sem as violações dos direitos humanos, sem as atrocida-

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des cometidas pelos governos e, até mesmo, sem os genocídios,como os praticados em Ruanda e no Zaire.

Acreditamos que os compromissos da Declaração Universalsejam sempre mais fortalecidos pela comunidade internacional,mostrando o que tem sido feito e procurando trabalhar em cimado que ainda há por fazer. Mais do que nunca, nesta época deglobalização, é premente garantir a realização e a universalidadedos direitos humanos para todas as pessoas, especialmente, paraas mulheres.

É preciso que as promessas feitas na Declaração Universal sai-am do papel e passem a existir no mundo real. A reafirmação dospropósitos de então, mais adaptados ao mundo moderno, poderá sera forma mais pragmática de se alcançar tal finalidade. Muitos go-vernos, por motivos políticos, desrespeitam os direitos dos cidadãose mantêm privilégios para uma minoria. Mais de um bilhão e meio depessoas lutam para sobreviver à fome e à miséria.

São complexas as relações de gênero, discutidas em âmbitonacional e internacional. Há inúmeras pessoas, mulheres e crian-ças em particular, numa situação vulnerável, sujeitas à tensão e àsprivações. Em alguns países, a violência física, psicológica e sexu-al contra a mulher virou praticamente rotina. E em outros junta-sea mesma violência à etnia. A Anistia Internacional verificou queas principais vítimas são as de origem humilde ou habitantes decomunidades indígenas. E a impunidade continua. Dificilmente éidentificado ou preso o autor ou autores de tais atrocidades.

Mais mulheres do que homens vivem em pobreza absoluta eo desequilíbrio continua crescendo com graves conseqüênciaspara a mulher e seus filhos. Podemos falar em feminização dapobreza, pois a mulher acaba sendo, em última instância, areprodutora da miséria.

Devemos lembrar que a miséria aumenta a violência de gê-nero, em que as mulheres são sempre as maiores vítimas. Ape-sar de todos os avanços do mundo moderno, a diferença entrehomem e mulher ainda é uma realidade, num contexto de exclu-são social e de subordinação das mulheres. Na perspectiva de

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gênero para o desenvolvimento, a mulher precisa lutar pela cida-dania, integrar-se no espaço político, a fim de que possa, definiti-vamente, eliminar as desigualdades geradas pelo processo patri-arcal e racista.

A perspectiva de gênero procura alcançar a igualdade entrehomens e mulheres e aumentar a participação da mulher na vidapolítica, civil, econômica, social e cultural. Procura, também, es-tabelecer a eqüidade entre as mulheres das zonas rurais e urba-nas. Tenta acabar com todas as discriminações que ainda pai-ram sobre o sexo feminino, evitando formulação de reservas eluta para aumentar o poder decisório da mulher.

Quanto à perspectiva da etnia, é preciso garantir que gruposdesfavorecidos e vulneráveis sejam incluídos no desenvolvimentosocial; que todos, independentemente de raça, sejam participantesativos das sociedades às quais pertençam. A paz, a justiça e odesenvolvimento social devem contribuir para que as diferençasde etnia e gênero terminem para que todos possam participar emigualdade de direitos da vida social e política de seus países.

É imperioso enfrentar o problema para aprimoramento dahumanidade. As políticas públicas modernas sob a ótica do gê-nero e da etnia devem visar à melhoria das condições de vida detodos, bem como da mulheres e das minorias raciais.

O artigo 2 da Declaração Universal reza: “Todo o homemtem capacidade de gozar os direitos e liberdades estabeleci-dos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie,seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política oude outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nas-cimento ou qualquer outra condição”.

Esperamos que nesta passagem para um novo milênio os pa-íses membros da ONU sejam mais incisivos e procurem adotarmedidas objetivas para acabar com as injustiças que ainda asso-lam a humanidade.

No Brasil, em particular, infelizmente, a realidade é a mesma.Quem nunca ouviu falar que o Brasil é a maior democracia

racial do mundo? Essa expressão serviu para as nossas elites

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dominantes justificarem a existência de uma perfeita igualdadeentre as etnias e que não existe preconceito ou discriminaçãoétnica entra nós. No entanto, as experiências cotidianas mos-tram exatamente o contrário: é evidente a desigualdade social eracial em nosso país.

O desafio de ser negro, especialmente mulher, no Brasil nes-te final de milênio é muito estimulante. É aceitar ser emblema dacapacidade de vencer barreiras; é saber transformar em gran-des vitória os pequenos ganhos cotidianos na luta pela sobrevi-vência; é saber usar o conhecimento que lhe foi passado pelosantepassados; é saber chorar as perdas sem transformá-las emderrotas e enfrentar com tranqüilidade as agressões, as injusti-ças e as provocações.

Ser mulher, negra e moradora de favela sempre me impulsio-nou a galgar novos degraus, a estabelecer novas metas. Mãe,profissional competente, adepta da educação continuada, mili-tante política são elementos de um projeto de vida que venhoconstruindo. O ideal de liberdade é um legado que herdei de meusancestrais e que tenho dividido com companheiros e companhei-ras que estão na luta por toda diáspora negra. Minha trajetória éa da mulher e do homem negros, que rejeitam um destino pré-traçado que lhes reserva um futuro de subalternidade, eredirecionam.

Tenho muito orgulho de ter aceito este desafio. E quero dizerque as dificuldades que se apresentam no meu caminho, me aju-dam a construir a certeza de que é necessário avançar sempre.Tenho a certeza de que cada superação de obstáculos estabele-ce novas metas a serem alcançadas e que é possível tornar rea-lidade a utopia de que as desigualdades serão vencidas. Este é osonho da nação e do mundo inteiro. O caminho está aberto: nãoé fácil, não é curto, mas é possível.

Esta certeza é que torna possível o surgimento da esperançade novos dias nas relações entre os povos. Uma das tarefasmais importantes para os negros que, como Zumbi dos Palmares,descumpriram o roteiro do papel que lhes destinou a sociedade,

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saíram do tom e reescreveram o seu texto, bem como todas asminorias discriminadas, é mostrar para os outros que viver é to-mar o futuro nas mãos, é tornar-se sujeito da história, afirmar eprovar que é possível ser igual, afirmando as diferenças. Resga-tando e estabelecendo a cidadania em seu aspecto maior.

Eu quero contribuir sempre e cada vez mais para que todasas iniciativas em prol da valorização humana sejam concretiza-das. E que este trabalho seja um grande impulso na escaladapelos Direitos Humanos, pela Cidadania Mundial, real e concre-ta e com valorização da vida, melhor distribuição de renda echances de acessos para todos.

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Celina Vargas do AmaralSocióloga e Diretora do Sebrae-RJ

A tragédia do Jardim Botânico chamou atenção para negli-gência da sociedade e do poder público em relação a violênciaurbana. Revela, acima de tudo, o quanto temos sido incompeten-tes em vencer o desafio da inclusão social. Como diretora deuma instituição como o Sebrae/RJ, tenho lidado cotidianamentecom este desafio. A entidade está começando a desenvolverprogramas de maior amplitude com o objetivo de oferecer me-lhores perspectivas de inserção social, sobretudo aos mais jo-vens. Por coincidência, a jovem morta na última segunda-feira,Geisa Firmo Gonçalves, estava participando, como instrutora deartesanato, de um programa do Sebrae, o Poder Comunitário.Ela já vinha trabalhando na Rocinha como professora do ProjetoCurumim, Idealizado pela FIA e pela PUC-Rio, com o objetivo decomplementar o ensino escolar para crianças e adolescentes pormeio de atividades recreativas e geradoras de trabalho e renda.

Ou seja, Geisa trabalhava para que jovens de uma comunida-de carente se vissem providos de oportunidades reais de inser-ção social. Por uma dessas estranhas trapaças do destino, foimorta justamente por outro jovem, com identidade desconhecidae sobrevivente da chacina da Candelária, que não teve diante desi, provavelmente, a oportunidade de fazer parte de um progra-

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ma de recuperação e de capacitação profissional. De certo modo,é como se essa característica da biografia de Geisa nos direcionassepara algo que está a nosso alcance realizar para evitar novos epi-sódios como o de segunda-feira e impedir a morte de novas Geisas.

Uma instituição como o Sebrae é também portadora dessa missãosocial. Foi-se o tempo em poderíamos esperamos que o Estado se in-cumbisse integralmente de promover o bem-estar social. Instituiçõescomo Sebrae, Firjan, CNI, CNC,CNA, e demais entidades de repre-sentação empresarial, que compõem o chamado Sistema “S”, têm aobrigação e o dever de colaborar para a transformação social que todosesperamos.

Para dar início a uma estratégia de redução de violência em nossacidade, em nosso estado e em nosso país, precisamos associar a partici-pação do setor público e de todas as formas de representação da soci-edade em torno de um projeto democrático e solidário para a reduçãoda miséria – uma governança não com propostas meramenteassistencialistas, mas capacitadoras e gerenciadoras de trabalho e ren-da. Desejamos viver em uma sociedade forte e articulada, convivercom instituições representativas, comprometidas e engajadas na missãode transformar uma realidade socialmente injusta e cruel.

Isso vale para todos – para os pequenos e microempresários, acomunidade acadêmica, os profissionais liberais, os grandes empresári-os, as ONGs, os partidos políticos e demais entidades representativas.

Como já foi dito, Geisa vinha participando das oficinas de artesanatoda Rocinha. Ela utilizava jornais usados para confeccionar canudinhos,com os quais ensinava a fazer cestas que eram pintadas ou envernizadaspara comercialização. Em uma de minhas visitas à comunidade, tive oprivilégio de receber uma cestinha de presente de uma das instrutorasque trabalhavam no projeto. Não sei se a recebi das mãos de Geisa.Não importa. Guardo esta cesta na certeza de que ela me lembrarásempre dessa tragédia. E de que simboliza, também, uma atividadetransformadora que deveria ser multiplicada em nosso país.

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Daniel John VaillancourtDiretor Executivo da Escola das Nações (Brasília – Brasil), uma escola interna-cional bilíngue, com 500 alunos representado 38 nacionalidades, voltada àeducação dos cidadãos do mundo.

Ao nos aproximarmos do século XXI, torna-se cada vez maisclaro que estamos entrando em um mundo nunca antes imagina-do pelos nossos antepassados. A civilização avança, às vezesde forma impiedosa e, novas descobertas no campo da ciência,tecnologia e medicina estão permitindo, na maior parte do mun-do, que pessoas tenham longevidade maior e uma vida mais sau-dável. Apesar das atrocidades cometidas entre grupos isolados epaíses lutando por estabelecer sua identidade, cada vez mais te-mos a indicação de que o nosso planeta está tornando-se menor,de que nações estão tão interdependentes que é impossível igno-rar o fato de que precisamos uns dos outros para sobreviver.

Tanto no contexto econômico, político, tecnológico, ambiental,na comunicação ou na saúde, estamos vivenciando uma grandecolaboração entre facções anteriormente antagônicas. Diaria-mente, simpósios e conferências internacionais, acordos econô-micos, empreendimentos globais e projetos multinacionais estãoempenhados em encontrar soluções para dificuldades, facilitan-do assim a comunicação e a interação entre os povos, promo-vendo desenvolvimento em áreas onde problemas tornaram-se

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complexos demais para serem resolvidos apenas por uma únicaorganização ou nação. Estamos aprendendo, penosamente, quecompetição tem suas limitações.

Mas o que está acontecendo no campo da educação? Comoestamos preparando nossas crianças para enfrentar as exigênci-as da nova ordem mundial emergente? Qual o papel que as es-colas desempenham para formar cidadãos mundiais os quais se-rão capazes de tirar suas próprias contribuições para a constru-ção de uma sociedade pacificadora?

Primeiramente, devemos examinar a questão “O que signifi-ca ser cidadão do mundo?” Como educador, creio que cidadãodo mundo é uma pessoa que tem facilidade de interagir comoutras pessoas, independente de sua raça, cor, nacionalidade,crença religiosa ou status social. Um cidadão do mundo acreditaque todos foram criados do mesmo pó e que ninguém é superiora ninguém e, por conseguinte, deve ser respeitado. Significaser alguém sensitivo e receptivo aos desafortunados, que abomi-na injustiça e exploração, defende o fraco e tem senso deresponsabilidade pelo planeta e por aqueles que o habitam, e optapor ações em vez de palavras para se definir. Um cidadão domundo compreende e promove o conceito de unidade na diversi-dade, celebrando diferenças ao invés de temer ou de vir a serrepelido por elas.

Nossas escolas precisam de mudanças. Não podemos sim-plesmente ser fábricas automáticas distribuidoras de informa-ções e, ao longo dos 12 anos de escolaridade da educação debase, produzir uma sombra seriada e pré-moldada de jovens,que entraram em nossas instituições inocentes e ingênuos, depo-sitando sua confiança incondicional neste processo. Como edu-cadores, temos a oportunidade e a obrigação de auxiliar nossascrianças a se tornarem amantes da humanidade e solucionadorasde problemas porque vêem com seus próprios olhos, ouvemcom seus próprios ouvidos, e trabalham com suas próprias mãos.Nossas escolas deverão ser um local transformador onde ascrianças deverão ser encorajadas a enxergar o que há de melhor

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em si e nos outros, serem valorizadas não pelo que têm, masprimeiramente pelo que são e, depois, pelo que fazem.

Será que não é chegada a hora de desenvolver e implementarum currículo universal, base para todas as escolas em todas aspartes do mundo? Penso que sim. Acredito que existem temascomuns, concepções, informações e habilidades que toda a cri-ança precisa aprender. Por exemplo, existe maneira melhor deaprender a reconhecer as diferenças e celebrar igualdades doque incluir no programa de estudos sociais uma perspectiva nahistória mundial, na qual estaremos olhando a história não comoseqüências de várias guerras e conquistas, mas como um desdo-bramento da civilização, em que cada cultura e nação têm suaparcela de contribuição no progresso da humanidade? Que nos-sas crianças entendam que as numerosas guerras que mancha-ram nosso passado foram nossos erros, que cada crise foi segui-da de uma vitória e que essas vitórias têm constantemente nosimpulsionado adiante.

Comunicação é, sem dúvida, um dos grandes talentos quedistingue o homem de outros animais. Precisamos dar ênfaseem nossas escolas na expressão pessoal, tanto através da línguabem como das artes. Nossos alunos precisam de oportunidadespara adquirir habilidades na escrita, na oratória, nas artes cêni-cas e nas plásticas e na música para que descubram suas vozese possam expressar seus próprios pensamentos e sentimentos.Eles precisam experimentar o mundo em sua volta e responderde sua própria maneira. E, para aumentar o significado na co-municação verbal, nossos alunos têm que aprender a usar outraslinguagens com nível de fluência, a fim de que possam compre-ender e serem compreendidos pelos outros com sucesso. Quantomais cedo começar, melhor.

Por que não dar a mesma importância ao nosso currículomundial para a formação do caráter, que é dada ao currículoacadêmico formal? Nossos alunos precisam saber que valores,virtudes, moral e ética são importantes para o seu desenvolvi-mento como seres humanos. Precisamos dar-lhes a oportunida-

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de para adquirir e exercer qualidades positivas e receber umfeedback honesto sobre seu crescimento pessoal.

O atual interesse de estudos em educação está centrado na“Inteligência emocional”, demonstrando que a sociedade final-mente está chegando a uma conscientização de que não somossomente mente e corpo, mas que também possuímos sentimen-tos e emoções que são fatores determinantes para termos ounão sucesso na vida. E a “inteligência espiritual”? Seremos osprimeiros a despertar o mundo para o fato de que possuímosuma alma, e que a mesma precisa ser nutrida? Não deveríamosensinar o valor da oração, da meditação e da reflexão? É chega-da a hora de nos certificarmos de que nossas crianças entendamque todas as religiões majoritárias do mundo como o Judaísmo,Budismo, Hinduísmo, Zoroastrismo, Cristianismo, Islamismo e aFé Bahá’í são todas parte de uma única revelação progressivavinda de Deus, baseadas numa mesma verdade fundamental:chamado “amor ao próximo”?

Que nossas crianças aprendam a resolver problemas de for-ma cooperativa, para que assim, possam desfrutar dos benefíci-os gerados pela resolução pacífica de seus conflitos. Ao traba-lhar com vários projetos de matemática, ciência e estudos soci-ais, eles compreenderão que a mesma habilidade usada em umaatividade dentro de sala poderá ser aplicada no mundo que oscercam. Ao contextualizar o que seria ajudar os menos afortu-nados na comunidade, eles terão a sensação que de, quando adul-tos, poderão fazer o mesmo.

Uma grave característica na presente sociedade é a grandedisparidade que existe entre rico e pobre. Nossas crianças nãopodem ser afastadas dessa realidade nem ser insensíveis a essaexistência. Elas têm que ser auxiliadas para compreender queaqueles mais afortunados devem saber dividir com os que nãotêm. Devemos, por meio de um minucioso programa coordena-do, propiciar condições para que nossas crianças aprendam so-bre o sofrimento alheio e a respondê-lo com atos humanitários e

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de compaixão. Projetos de serviços comunitários devem fazerparte integrante do nosso currículo.

Nosso currículo de cidadania mundial deve proporcionar aosnossos alunos uma leitura onde direitos humanos são dádivasdivinas e que nada justifica a exploração, a dominação ou abusode um indivíduo sobre o outro. Quando o aluno examina as cau-sas e os efeitos destrutivos de doenças sociais tais como racis-mo, sexismo, fanatismo religioso, nacionalismo desenfreado emultiplicidades de “ismos” que suja nosso pano social, talvez eledescubra novos remédios. Talvez compreender com profundi-dade que ser humano significa ser consciente.

O mundo carece de adultos conscientes. Nossos futuros ci-dadãos mundiais são, hoje, os freqüentadores de nossas escolasprimárias e secundárias. Devemos dar a eles a visão, a esperan-ça, a capacidade e a coragem necessárias para que criem umacultura de paz neste Planeta que chamamos, nosso lar.

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Feizi M. MilaniMédico hebeatra, doutorando do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade

Federal da Bahia e diretor-presidente do INPAZ (Instituto Nacional de Educa-

ção para a Paz e os Direitos Humanos)

Nesta virada de milênio, o clamor pela paz chegou às ruas.Não por acaso, 2000 é o Ano Internacional da Cultura de Paz.Freqüentemente temos testemunhado manifestações em proldesta causa, pessoas desconhecidas e famosas, lado a lado, bra-dando contra a violência. Angustiadas com o clima de medo queimpera nos centros urbanos do Brasil, elas se questionam o pôrque dessa situação e aonde vai nos levar. A paz deixou de serum ideal abstrato nutrido por um punhado de sonhadores e poe-tas; tornou-se uma necessidade concreta para a maioria da po-pulação e meta prioritária para os governantes.

Esse quadro de mobilização social difere bastante da situa-ção que vivenciei quinze anos atrás. Recordo-me que às véspe-ras do Ano Internacional da Paz (1986), era divulgado, em todospaíses, o documento A Promessa da Paz Mundial.10 Tenho aimpressão de que, naquela época, a maioria das pessoas não foi

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capaz de perceber a importância e urgência do que a obra pro-punha. A questão da paz parecia ser algo tão distante da realida-de brasileira. Participei de vários eventos nos quais seu rico teorfoi debatido – em universidades, seminários, audiências com au-toridades e líderes do pensamento, palestras públicas, exibiçõesartísticas – e presenciei comentários do tipo “O Brasil é um paíspacífico, nunca se envolveu em guerras”, “Mesmo que haja umaguerra nuclear, estamos a salvo”, “Temos tantos problemas soci-ais pra resolver... para que essa preocupação toda com a paz?”,“Eu já faço a minha parte: medito diariamente”, dentre outros.

O tempo demonstrou que, tal qual todos os povos, nós, brasi-leiros, precisamos aprender a construir a paz, uma vez quepaz é muito mais do que a mera ausência de guerra. Demonstroutambém que a nossa lentidão nesse aprendizado já custou a vida,a saúde ou o bem-estar de milhares de vítimas, uma vez queviolência não se restringe a homicídios e agressões físicas. Aviolência pode assumir inúmeras roupagens: fome, racismo, ex-clusão, abusos verbais, morais ou sexuais, falta de acesso à saú-de, à educação e à justiça, opressão contra a mulher e desigual-dade de oportunidades, dentre outras.

Imagine se tivéssemos aproveitado a oportunidade oferecidapelo Ano da Paz e os princípios delineados no referido documen-to... teríamos implantado programas educativos direcionados aosvalores da paz em todas escolas! Assim, a geração infanto-juve-nil de hoje seria a garantia e a certeza de que este país se trans-formará numa sociedade mais justa e solidária. No entanto, nos-sa escolha foi a omissão e as conseqüências disto nos horrori-zam a cada dia – crianças e adolescentes assassinando e sendoassassinados, gente com medo de gente etc.

Encontramo-nos agora diante de um grave dilema – tantocomo coletividade quanto como indivíduos: permitiremos que ascoisas continuem como estão ou assumiremos a responsabilida-de que cabe a cada um de nós na concretização de profundasmudanças que garantirão a tão desejada paz?

Se escolhermos dar uma chance à paz, creio que há alguns

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passos fundamentais que precisamos dar. É necessário que re-futemos a crença de que o ser humano é inerentemente violento.Apesar de carecer de qualquer fundamento científico, trata-sede um pressuposto implícito em algumas abordagens ouposicionamentos. A Dra. Minayo sintetiza a questão afirmandoque “é, hoje, praticamente unânime (...) a idéia de que a violên-cia não faz parte da natureza humana e que a mesma não temraízes biológicas”. 11

A Promessa da Paz demonstra que essa crença gera uma“contradição paralisante nos afazeres humanos”: por um lado, aspessoas dizem querer a paz e estar dispostas a estabelecê-la.Por outro lado, elas se permitem acreditar que “os seres huma-nos são incorrigivelmente egoístas e agressivos”. Como é possí-vel “erigir um sistema social (...) progressivo e pacífico, dinâmi-co e harmonioso” tendo essa premissa como verdadeira? 12

A agressão e o egoísmo não são impulsos intrínsecos eincontroláveis, mas sim sinais de estágios menos maduros daevolução humana – tanto em nível individual como coletivo. Bas-ta observar o desenvolvimento infantil: o bebê não admite parti-lhar seus brinquedos; a criança aceita emprestar o seu brinquedoa outra, desde que haja uma permuta; a criança maior já é capazde participar em esportes coletivos; e o adolescente busca ativa-mente engajar-se em algum grupo e sente prazer na partilha. Oamadurecimento se dá em direção a relações de cooperação,reciprocidade e interdependência.

Um segundo passo consiste em redefinir o conceito de cida-dania. Enquanto entendermos cidadania apenas como cobrar di-reitos e exigir que o governo resolva os problemas que afetam asociedade, estaremos nos restringindo a uma cidadania reativa.Enquanto se propagar uma cidadania reducionista que se limita a“não jogar lixo no chão”, “não furar a fila” e “não ultrapassar osinal vermelho”, não estaremos contribuindo para a transforma-ção social. A conquista da paz só será possível quando exercer-mos uma cidadania proativa, que defino como uma postura devida do indivíduo caracterizada pelo exercício consciente de seus

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direitos e deveres, pela participação ativa nos processos de bus-ca de melhorias coletivas13, e pela responsabilidade para comtudo aquilo que afeta a sua vida e/ou as vidas de outras pessoas.

Decorre desse conceito a noção de que ser um cidadão depaz é muito mais do que não ser um indivíduo violento. Fazero bem é algo infinitamente maior do que não fazer o mal. Nãopraticar atos violentos é o mínimo que se espera de qualquerpessoa que pretenda viver em sociedade. Praticar a paz é viver,construir e ensinar a paz, pois ela só será alcançada se cadacidadão, família, organização e comunidade se engajar ativamentena construção de relações baseadas no respeito, na unidade, nadiversidade e na empatia.

Mais ainda: se vivemos num mundo globalizado, interligadoinstantaneamente pelas tecnologias da informação e comunica-ção e interdependente economicamente, é preciso que aprenda-mos a ser cidadãos do mundo. Bahá’u’lláh já havia proclama-do essa nova visão há mais de cem anos: “A Terra é um só paíse os seres humanos, seus cidadãos”.14 É impossível estabelecera paz enquanto as pessoas estiverem classificando e dividindo omundo entre “nós” e “eles”. Nós – (quer seja) esta família, oumoradores desta rua, ou torcedores deste time, ou seguidoresdesta igreja, ou membros desta raça, ou cidadãos deste país etc.– contra eles, os que são diferentes. Essa separação é comple-tamente falsa e ilusória. Ser diferente não comporta qualquerjuízo de valor, portanto, não tem nenhuma relação com ser supe-rior ou inferior, correto ou equivocado, melhor ou pior.

Além disto, não é difícil constatar que todos os seres huma-nos compartilham das mesmas necessidades essenciais – por-tanto, somos absolutamente semelhantes em nossa essência. Aúnica possibilidade de haver paz no mundo, no país ou no bairro éreconhecermos essa unidade essencial e vivermos de acordo comela. Pois essa compreensão nos faz aceitar o outro (por maisdiferente que seja), respeitar as suas necessidades e direitos, ebuscar os meios de estabelecer a verdadeira justiça. “A ordemmundial só pode ser estabelecida sobre uma consciência inaba-

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lável da unidade da humanidade, uma verdade espiritual que to-das as ciências humanas confirmam. (...) O reconhecimento destaverdade requer o abandono (...) de tudo o que faz com que aspessoas se sintam superiores umas às outras. (...) A aceitaçãouniversal deste princípio espiritual é a essência do êxitode qualquer tentativa de se estabelecer a paz mundial.”15

Unidade gera reciprocidade, justiça e liberdade;consequentemente, gera a paz. Viver essa consciência é a baseda paz. Exercer a cidadania mundial é compreender, praticare promover a unidade do gênero humano, condição sine quanon da paz.

Outro passo fundamental na caminhada rumo à paz consisteem questionar como lidar com o problema da violência. É possí-vel agrupar, grosso modo, três paradigmas distintos que implícitaou explicitamente estão presentes nas discussões sobre esse tema– o da repressão, o estrutural e o da cultura de paz. Parece-meapropriado analisar os pressupostos e impactos de cada um des-ses modelos de pensamento.

O modelo baseado na repressão preconiza, como solução parao problema da violência, medidas de força tais como: o aumentodo policiamento, o endurecimento das leis e a construção de maispresídios. Esta perspectiva possui uma deficiência grave: falhaem reconhecer as mazelas estruturais e as injustiças sócio-eco-nômicas do país. Apesar disto, é a mais popular pois, aparente-mente dá resultados rápidos e contribui para uma sensação abs-trata (mas fundamental) de segurança e de que os crimes serãopunidos. Sem dúvida, o Brasil necessita de reformas que permi-tam maior eficiência na aplicação universal das leis, que estabe-leçam mecanismos de controle social sobre o poder judiciário, eque reduzam drasticamente a corrupção e impunidade. São tam-bém prementes mudanças no sistema policial, colocando-o a ser-viço da coletividade, capacitando-o, e expurgando o banditismode seu seio. Apesar de necessárias, essas transformações sãoinsuficientes para se alcançar resultados efetivos e duradouros.

O segundo paradigma afirma que a causa da violência reside

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na estrutura social e no modelo econômico. Consequentemente,se a exclusão e as injustiças não forem sanadas, não há muito oque se fazer para evitar a violência. Apesar de bem intencionadoao propor mudanças que culminem numa sociedade mais justa,esse modelo termina por gerar, a curto prazo, sentimentos deimpotência. Ao vincular a solução de um problema que afeta aspessoas de forma imediata e concreta – violência – a questõescomplexas e demoradas que se situam fora da possibilidade deintervenção dos indivíduos – desemprego, miséria etc. – o resul-tado, em geral, é o desânimo e a desistência. Ao gerar imobilismo,esse modelo contribui para o estado coletivo de medo e paranóiaque é, por sua vez, um dos fatores que retroalimenta a violência.

É importante evidenciar a violência estrutural, pois ela encon-tra-se incorporada ao cotidiano da sociedade brasileira. Buscaocultar-se sob as máscaras da naturalidade ou da inevitabilidade,mas está na raiz de outras formas de violência, mais fáceis deserem identificadas e denunciadas. Não obstante, é essencialque sejam dados passos concretos nos aspectos da realidadeque estão ao nosso alcance, ao mesmo tempo em que se luta pormudanças nos sistemas econômico, político e jurídico. A batalhapor transformações nos níveis macro e micro não são excludentes;ao contrário, são complementares.

O terceiro é o paradigma da cultura de paz, que propõe mu-danças de consciência e comportamento tanto de parte de indiví-duos como de instituições, inspiradas em valores de paz. Os de-fensores desta perspectiva não deixam de reconhecer que asoutras, acima descritas, também têm sua contribuição a ofere-cer. Mas enfatizam a necessidade, a urgência e a viabilidade dese reduzir os níveis de violência através de intervenções integra-das e multi-estratégicas fundamentadas na Educação, na Saúde,na Ética, na participação cidadã e na melhoria da qualidade devida. Trata-se de um modelo que valoriza a prevenção, colocan-do ênfase em valores universais como a paz, a diversidade, orespeito e a empatia.

Este enfoque difere dos demais tanto em sua proposta quanto

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em seus desdobramentos. O paradigma da repressão tende ainterpretar a violência como uma expressão exclusivamente in-dividual de pessoas más ou incapacitadas para o convívio social,enquanto o paradigma estrutural tende a considerar o indivíduoviolento ou criminoso como vítima da sociedade. No modelo dacultura de paz, a violência é entendida como uma enfermidadecoletiva que pode manifestar-se tanto por expressões individu-ais, grupais ou institucionais. A cura dessa enfermidade exigirámudanças – culturais, espirituais, sociais – de parte de todos.Creio ser oportuno salientar que a “cultura” materialista, voltadapara o consumo e o prazer imediato, que impera na sociedadeocidental contemporânea (afetando em especial, a juventude),têm uma relação de causalidade com o estado de violência queestamos vivenciando.

A desconstrução desse estado de violência exige oenvolvimento dos sujeitos, das instituições e da sociedade, emsuas multidimensionalidades – física, mental, emocional, ética,espiritual, econômica, jurídica, política etc. O sistema educacio-nal tem uma responsabilidade especial nesse processo. Se, porum lado, é fundamental não ceder à tentação de colocar a res-ponsabilidade pela transformação da sociedade nos ombros daeducação ou de considerar que as injustiças sócio-econômicaspoderão ser solucionadas por um ensino de qualidade, por outrolado, é inegável o papel crucial que a escola desempenha naformação intelectual e moral das novas gerações.

Construir a paz ou aceitar a violência é uma escolha da qualnão podemos nos omitir. De nossa decisão dependerá a qualida-de da vida que nós e nossos filhos experimentaremos daqui aquinze, trinta ou cinqüenta anos. Aceitar a paz e desconstruir aviolência são o desafio que se coloca perante cada um – em suavida pessoal, relações familiares, papel profissional e participa-ção cívica. Oxalá possamos nos orgulhar de nossa escolha.

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Hélio BicudoPresidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos

O tema “Cidadania Mundial: a Base da Paz” traz, em si, omais amplo conceito de cidadania, a abranger homens, mulheres,crianças e jovens que vivem no planeta terra.

É na verdade, um ideal a ser atingido, em especial nos paísesdo chamado terceiro mundo, nos quais apenas uma minoria des-fruta dos benefícios da cidadania: saúde educação, como base anecessária para alcançar-se o pleno desenvolvimento da pessoahumana, dentro do qual se inserem outros desafios que buscam orespeito à vida e à integridade pessoal, o direito ao acesso àJustiça e a quaisquer outro, sobretudo, o direito à liberdade deinformação e de expressão. Melhor dizendo, os abrangentes di-reitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais.

Esses direitos, indivisíveis e interdependentes, como advertiua Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Vie-na, em 1993, e outros que deles derivam, que se constituem nofundamento mesmo do Estado de Direito, não nos são outorga-dos, mas são e serão o resultado de uma luta de todos os dias ede todos nós. Basta lembrar, como já se disse algures, que aDemocracia é uma conquista que se faz e refaz e que nunca se

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esgota, pois existe sempre uma dificuldade a ser superada e umnovo horizonte a ser desvendado.

No caso particular do Brasil, é preciso prestar atenção a pro-blemas que vêm sendo subestimados pelos representantes dostrês poderes da República.

Quero me referir, antes de mais nada, à questão da criança edo adolescente. Temos um estatuto da criança e do adolescenteque nada fica a dever às legislações mais avançada sobre amatéria. Entretanto, na prática, nada ou quase nada se faz; de-pois de dez anos de vigência dessa lei é quase nula a participa-ção popular no sistema reabilitador previsto pelo Estatuto, umavez que não se organizam, nos limites ali indicados, os Conselhosprevistos, órgãos chaves na implementação da política que sedeseja concretizar, para que os menores não encontrem, nas ruasdas nossas cidades, o apelo que ali se concentra ao consumo dedrogas, à exploração sexual e à violência em geral.

Hoje, no Brasil, as crianças e jovens com problemas de con-duta, são tratados como delinqüentes comuns, encerrados emestabelecimentos de contenção, onde a tônica é a corrupção e aviolência. Chega-se, mesmo, num lamentável desconhecimentode nosso sistemas constitucional que fixa a idade de responsabi-lidade penal aos 18 anos (artigo 228, da Constituição Brasileira),e que se constitui, ex vi do artigo 5º, parágrafo 2º, da ConstituiçãoFederal, em uma cláusula pétrea, que não pode ser alterada se-quer mediante emenda, a qual pretende-se o rebaixamento des-sa idade, numa atitude inconseqüente em face da realidade dalei, da falência do sistema prisional e com absoluto desprezo paracom os princípios que devem reger uma política de verdadeiroatendimento à infância e à juventude.

Por outro lado, continua-se a negar o acesso do povo à Justi-ça e prossegue-se na instituição e permanência de justiçascorporativas, como são as justiças de polícias militares, respon-sáveis pelos altíssimos índices de impunidade nos crimes pratica-dos por milicianos contra civis, circunstância que,indubitavelmente, convida à violência.

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Somente em São Paulo, nos últimos dez anos, foram elimina-das cerca de seis mil e quinhentas pessoas pela Polícia Militar,fato que não mereceu a devida consideração da justiça corporativaque as acoroçoa.

Insiste-se, por igual, num modelo policial hoje inteiramenteesgotado, elaborado pela ditadura militar para proteger o Estadoe repudiam-se projetos que procuram estruturar uma nova polí-cia, com novas concepções do que deva ser a atividade policial,na função precípua de atuar na defesa da segurança das pesso-as, inclusive se for o caso, contra a própria ação do Estado.

São fatos que decorrem de uma concepção de Estado que omodelo neoliberal intenta implantar e que aumentou, nos paísesdo terceiro mundo, as pautas de miséria e sujeitou a saúde e aeducação aos patamares mais baixos da atuação desse mesmoEstado.

Enquanto, pois, não erigirmos a saúde, a educação, o empre-go, a justiça e a liberdade de informação e expressão em funda-mentos do Estado de Direito, como aliás impõe a Constituição de1988, com razão chamada “cidadã”, quando dispõe que a Repú-blica Federativa do Brasil tem como um de seus fundamentos acidadania e a dignidade da pessoa humana (artigo 1º ); comoobjetivos fundamentais, dentre outros, o de erradicar a pobreza ea marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais,bem como promover o bem de todos, sem preconceitos de ori-gem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discri-minação (artigo 3º ); e rege-se nas suas relações internacionaispela prevalência dos direitos humanos (artigo 4º ); não podere-mos deixar de lutar para que esses direitos não fiquem à margemda lei, mas sobretudo, que se inscrevam em nossos corações e men-tes, para que, então, possamos proclamar a cidadania mundial.

Todos somos irmãos, portanto, solidários nos bens da vida.

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Rabino Henry l. Sobel Presidente do Rabinato da Congregação Israelita Paulista

Era uma vez um rapaz que estava tão inspirado que resolveumudar o mundo. Ele estava plenamente convencido de que seussonhos e suas idéias podiam revolucionar o universo. Mas, quan-do tentou implementá-los, percebeu que o mundo era grandedemais para uma pessoa mudá-lo sozinha. Então, resolveu mu-dar seu país. Mas logo viu que isso também era uma tarefa gran-de demais para uma única pessoa. Daí, decidiu mudar sua comu-nidade. Mas logo percebeu que até isso era difícil demais paraele. Então, resolveu mudar a si mesmo. E, quando começou aser compreensivo para com os outros e passou a se comportarcorretamente ele foi contagiando todos ao seu redor. E sua co-munidade ficou melhor, seu país ficou melhor, o mundo ficoumelhor.

Conto essa história porque acredito realmente que, se quere-mos construir a paz em nossa sociedade, temos que começarcom nós mesmos. Cada um em seu próprio pequeno mundo, de-sarmado o espírito, conscientizando a si mesmo, conscientizando

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aquele ao seu redor, conscientizando seus filhos.A cidadania mundial tem que ser cultivada desde a infância.

É na infância que a criança deve ser conscientizada de que exis-te outras idéias além das suas, outros credos além do seu, outrasraças além da sua, que existem diferenças entre as diversas re-ligiões e etnias, mas todas são igualmente válidas e nenhuma ésuperior às outras. Dois ensinamentos bíblicos podem servir deponto de partida neste sentido. O primeiro: “Vayvra Elohim etha’adam be’tzelem Elhim” - “O homem foi criado à imagem deDeus”. Este princípio implica que cada ser humano é digno derespeito e consideração, pois ele traz dentro de si uma centelhadivina do Criador. Outro ensinamento de fundamental importân-cia é que toda raça humana provém de um único homem, Adão.Ao aprender isto, a criança capta o conceito da igualdade entretodas as pessoas e aprende, ao mesmo tempo, a rejeitar qualqueridéia de superioridade.

A história já nos deu provas suficientes de que o preconceitoreligioso, o triunfalismo ideológico e a discriminação étnica sãoas maiores barreiras ao progresso humano. Quando uma minoriaqualquer é atacada, a sociedade como um todo torna-se umavítima em potencial. Quantas estratégias precisaremos suportarpara aprender essa antiga lição? Já é tempo de percebermos quejulgar um ser humano em termos do seu credo religioso, dassuas convicções políticas, da cor de sua pele, é mais do que umerro. É uma cegueira do espírito, é um câncer da alma.

O erro mais trágico e persistente do pensamento humano é oconceito de que as idéias são mutuamente exclusivas. Foi esse oengano fatal que, não apenas no século XX, mas em todos otempos, fez falhar o ideal da fraternidade universal. Em cadaindivíduo, em cada povo, em cada cultura, existe algo que é rele-vante para os demais, por mais diferentes que sejam entre si.Enquanto cada grupo pretender ser o dono exclusivo da verdade,enquanto perdurar esta estreiteza de visão, a cidadania mundialpermanecerá um sonho inatingível.

O ingrediente básico para a construção da paz em nossa so-

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ciedade é a humildade. Um pouquinho de humildade já é bastan-te para reconhecer que a verdade não é o monopólio da nossaprópria religião, tradição ou nacionalidade. Temos que aprendera ser mais tolerantes uns para com os outros. Na verdade, tole-rância não é suficiente. Tolerância implica uma falta de opção: éa obrigação de tolerar o mais forte, ou então a condescendênciade tolerar o mais fraco. O que se faz necessário não é tolerância,e sim um espírito de reverência, reverência pela diversidade, re-verência pelas crenças alheias. É somente esta reverência, esteprofundo respeito mútuo, que pode conduzir-nos à paz.

A paz não virá por obra e graça de um grande líder, nemmesmo por Providência Divina. A paz virá somente quando cadaum de nós se conscientizar da sua responsabilidade individualperante a sociedade em que vive.

Temos que permanecer, todos nós, enraizados em nossas res-pectivas tradições, sem jamais violar aquilo que é sagrado paracada um de nós. Mas, ao mesmo tempo, temos que reconhecer asantidade do credo e das tradições alheias.

Em nosso dias, quando nos tornamos uma “aldeia global”,numa época em que somos interdependentes, quando não pode-mos mais suportar aquele triunfalismo separatista no qual cadaum se sente superior ao outro e não reconhece a santidade dooutro, convém relembrar cinco grandes homens, cada um pro-fundamente enraizado em sua tradição e, no entanto, capaz dese aproximar de outros para abraçá-los com amor e, assim, apa-gar séculos de hostilidade e ódio.

Houve Ghandi, um hinduísta devoto, estendendo-se aos seusirmãos muçulmanos na Índia; Anwar Sadat, um muçulmano de-voto, estendendo-se aos judeus em Jerusalém; Martin Luther King,batista devoto e negro, orgulhoso de sua negritude, estendendo-se aos brancos, abraçando-os e, com aquele abraço, derrubandobarreiras e promovendo a fraternidade; o Papa João Paulo XXIII,um papa maravilhoso, que abriu as janelas da Igrejas para sereconciliar com seus irmãos judeus; e Abraham Joshua Heschel,um judeu, um rabino, que batalhou pelos direitos civis dos seus

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irmãos negros e “ousou” dialogar com os cristãos, quando ne-nhum judeu o fazia.

Todos eles são provas de que podemos nos amar e abraçaruns aos outros, não importa quais sejam suas diferenças. Todoseles são provas de que a cidadania mundial não é mero slogan;é algo que pode se tornar uma realidade.

Hoje, mais do que nunca, temos que espalhar a mensagem defraternidade e tolerância. Temos que ressaltar que somos todosfilhos de um mesmo Deus e, portanto, somos todos irmãos. Te-mos que tentar conscientizar a sociedade de que só atingiremosnossos objetivos se nos empenharmos, com determinação, peloentendimento mútuo.

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Ivone Amâncio BezerraEducadora Ambiental

Pelo menos duas afirmativas deixaram sua marca impressana consciência de milhões de pessoas no Século XX: “ A Terraé um só país e cada ser humano seu cidadão” e “A Terra éum só organismo e cada ser vivo parte dele”. Uma decaráter humanista e a outra ecossistêmica foram formuladas emépocas completamente diferentes, porém são complementaresem essência e significado. Uma abriu o século e a outra fortale-ceu os debates ambientais que coroam este final de milênio.

A primeira, de ‘Abdu’l-Bahá, busca desenvolver nas pesso-as o senso de fraternidade entre os diversos povos, conduzindo-os a um único parlatório, onde todos, tendo acesso à expressãode viver, possam se tornar plenos e comungar, enfim, com ummundo mais justo, fraterno e unido.

A segunda, pressuposto básico da Hipótese Gaia, evidenciao sentimento e a compreensão de que todos nós temos uma úni-ca Terra-mãe, que nos abriga, acolhe e suporta, mesmo quandolhe somos incômodos.

De acordo com ‘Abdu’l-Bahá, somos companheiros de jor-

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nada de nossos semelhantes, que, assim como nós, buscam seutipo de realização, num sistema social dinâmico e ainda desequi-librado. Pela compreensão da Hipótese Gaia, comungamos com osanimais e os vegetais um destino bio-físico-químico, numa co-respon-sabilidade atávica em colaborar para o equilíbrio dinâmico do Planeta.

A compreensão e a prática sincronizada de ambas as afirmativastornam-se cada vez mais necessárias num mundo ainda fragmentado,onde o cenário que nos sustenta assusta, com sua dimensão finita.

Os limites geográficos, políticos, religiosos e econômicos, asnações e seus povos, os diversos idiomas e as inúmeras modali-dades de preconceito compõem as peças de um imenso quebra-cabeças ainda embaralhadas e que precisam ser ligadas, persis-tentemente, dia após dia. A Humanidade busca, então, cada uma seu modo, significado e compreensão, para poder montar oimenso quebra-cabeças da Unicidade do gênero humano. E estaUnicidade só será atingível se cada um de nós se conscientizarde que somos cidadãos do mesmo Mundo.

Muitos preconizam que, numa sociedade em conflito, o gran-de entrave para se desenvolver o senso de cidadania é a falta dePaz. Com isto se acomodam, tornando-se um peso inerte e ne-gativo no lento caminhar da Humanidade.

Outros já compreenderam que, na verdade, o senso de cida-dania precisa ser desenvolvido, independente do cenário que nosrodeia, pois, a essência da Paz deve brotar do fundo do coração,alicerçada na prática de deveres e direitos com relação a si pró-prio e aos outros, independente da alteridade de cada um.

Ora, se o exercício de deveres e direitos constitui o pressu-posto da cidadania, esta se revela, então, como a base para seatingir a Paz. E esta base só será sólida e duradoura, se forrejuntada com uma mistura de idealismo, fé, respeito, amor, ho-nestidade de propósitos, solidariedade, ausência de preconceitos,e fixada sobre uma nova ordem social.

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Jorge WertheinRepresentante da UNESCO no Brasil

Cinqüenta anos depois da fundação das Nações Unidas e daUNESCO, o mundo se encontra novamente em posição de trans-formar a cultura predominante de violência em cultura de paz.Hoje, o desafio consiste em encontrar os meios de mudar defini-tivamente as atitudes, os valores e os comportamentos com ofim de promover a paz e a justiça social, a segurança e a soluçãonão violenta dos conflitos.

Para alcançar uma cultura de paz é necessária uma coopera-ção em todos os níveis entre os países e uma coordenação entreas organizações internacionais que dispõem de competência erecursos indispensáveis que podem ajudar aos indivíduos paraque possam ajudar-se a si mesmos.

Esse movimento multidimensional requer o apoio ativo e aparticipação contínua de uma rede sólida de indivíduos e de or-ganizações que atuem em prol da paz e da reconciliação.

Substituir a secular cultura de guerra por uma cultura de pazrequer um esforço educativo prolongado para modificar as rea-ções à adversidade e construir um desenvolvimento sustentávelque possa suprimir as causas de conflito.

O Programa da Cultura de Paz está voltado não apenas paraa prevenção das guerras, podemos até imaginar que as guerras

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são algo distante de nosso cotidiano. Mas estamos falando dasguerras anônimas travadas na violência. Estamos falando emprevenir e combater todo tipo de violência, exploração, cruelda-de, desigualdade e opressão.

Participação siginifica democracia.E falar em cultura de paz é falar dos valores essenciais à vida

democrática: Participação, Igualdade, Respeito aos Direitos Hu-manos, Respeito à diversidade cultural, Justiça, Liberdade, Tole-rância, Diálogo, Reconciliação, Solidariedade, Desenvolvimento,Justiça Social.

Ao falarmos dos valores essenciais à vida democráticaestamos falando dos valores ligados à cidadania em seu conceitomais amplo. Ser cidadão é participar na produção e no usufrutodos bens que uma sociedade produz, é ter acesso aos direitoshumanos e sociais básicos, é ter seus direitos respeitados.

Direitos humanos, democracia, cidadania e desenvolvimentosão interdependentes e reforçam-se mutuamente. Em 1995, osEstados-Membros da UNESCO decidiram que a Organizaçãodeveria canalizar todos os seus esforços e energia em direção àcultura de paz.

A cultura de paz está intrinsecamente relacionada à preven-ção e à resolução não-violenta dos conflitos. É uma cultura ba-seada em tolerância, solidariedade e compartilhamento em basecotidiana, uma cultura que respeita todos os direitos individuais -o princípio do pluralismo, que assegura e sustenta a liberdade deopinião - e que se empenha em prevenir conflitos resolvendo-osem suas fontes, que englobam novas ameaças não-militares paraa paz e para a segurança como exclusão, pobreza extrema edegradação ambiental. A cultura de paz procura resolver os pro-blemas por meio do diálogo, da negociação e da mediação, deforma a tornar a guerra e a violência inviáveis.

Mas como fazer da cultura de paz uma realidade concreta eduradoura? No mundo interativo, tudo é uma questão deconscientização, mobilização, educação, prevenção e informa-ção de todos os níveis sociais em todos os países. A elaboração

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e o estabelecimento de uma cultura de paz requer profunda par-ticipação de todos. Cabe aos cidadãos organizarem-se e assumirsua parcela de responsabilidade. Os países devem cooperar, asorganizações internacionais devem coordenar suas diferentesações e as populações devem participar inteiramente no desen-volvimento de suas sociedades.

Tolerância, democracia e direitos humanos - em outras pala-vras, a observância desses direitos e o respeito pelo próximo -são os valores “sagrados” para a cultura de paz.

A cultura de paz é uma iniciativa de longo prazo que develevar em conta os contextos histórico, político, econômico, sociale cultural de cada ser humano. É necessário aprendê-la,desenvolvê-la e colocá-la em prática no dia-a-dia familiar, regio-nal ou nacional. É um processo sem fim.

A paz não é um processo passivo: a humanidade deve esfor-çar-se por ela, promovê-la e administrá-la.

É esse o desafio que a UNESCO está lançando, construir,em nossa sociedade uma cultura de paz. Trabalhar na educação,na construção solidária de uma nova sociedade mais igual e jus-ta, onde o respeito aos direitos humanos e a diversidade se tradu-zam concretamente na vida de cada cidadão, onde haja espaçopara a pluralidade e a vida possa ser vivida sem violência.

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José GregoriMinistro da Justiça

Os direitos humanos foram objeto de um processo gradual deconcretização e abrangência ao longo da história humana. Inici-aram-se como direitos naturais na Antígona de Sófocles. Eramdireitos universais, mas abstratos. Com o constitucionalismomoderno, saíram do campo das nobres intenções inalcansáveis eforam postos como obrigatórios, caracterizando-se como direi-tos a serem realizados. Nesta passagem ganharam concretude,mas perderam em universalidade, Por fim, a partir da Declara-ção Universal dos Direitos do Homem, que é a síntese destemovimento dialético, os direitos passaram a ser direitos positivose universais, tornando-se concretamente realizáveis.

A universalização atingiu também o próprio Estado. Com o fimdo sistema bipolar de poderes, com a desintegração do regime sovi-ético e a queda do muro de Berlim, marcos da nova configuração dopoder mundial, os movimentos multinacionais ou transnacionais sefortaleceram. Em todos os continentes é possível encontrar associ-ações, comunidades ou mercados transnacionais, que deixaram deser meros ideais ou aspirações para se transformarem em uma re-alidade com efetivos resultados práticos.

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Aspira-se uma “Confederação Multinacional de Nações“ enela somente os direitos humanos podem representar o fatorlegitimante do poder. Esta posição, que já foi ocupada pela Soci-edade e pelo Estado Nacional, hoje cabe aos direitos humanos, namedida em que se universalizarem no respeito de todos os países eregimes.

Além desta mutação do conceito de Estado, com a superaçãoda própria idéia de Soberania, a formação da sociedade global éreforçada pela revolução científica e tecnológica que, através dainformática e dos meios de comunicação, transformaram o mun-do, tornando os limites territoriais dos Estados em meras fronteirasvirtuais.

A expansão tecnológica deve ser vista como um instrumentoeficaz para divulgação dos direitos humanos, bem como um pode-roso instrumento para repressão das violações dos direitos funda-mentais de toda e qualquer criatura humana.

Devemos, pois, defender uma visão cosmopolita como instru-mento para reforçar a existência de direitos universais. O cidadãomundial seria titular de direitos humanos inalienáveis, mas tambémco-responsável pelo respeito aos direitos fundamentais de seusco-cidadãos.

A plena consciência dos direitos humanos universais, entendi-da como mundialização dos direitos fundamentais implica, tam-bém, na criação das condições necessárias para que se desenvol-va a consciência, em cada um de nós, das obrigações universais.Daqueles deveres que todos os homens estão obrigados a respei-tar, até mesmo como condição para que todos possam usufruir osdireitos humanos universais.

Enfim, a universalização dos direitos, a transnacionalização dosEstados e a globalização da tecnologia devem ter como fio condu-tor os direitos humanos.

Como observa BOBBIO, o problema dos direitos humanos nãoé mais de fundamento, e sim de tutela o que significa dizer que oproblema é da prática e promoção desses direitos. Infelizmente naabertura do terceiro milênio, continuam a existir violações aos di-

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reitos humanos, tanto no plano interno quanto no internacional.Isto significa que não chegamos ainda no que está proposto, masnão autoriza a descartar o repúdio que certa violência - lembremosda Bósnia ou do caso Pinochet - tem merecido de todos osquadrantes geográficos do mundo. Em conclusão: não há outraforma de eliminarmos as guerras e convivermos em paz. Direitoshumanos é o único caminho seguro para a paz.

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Leonardo BoffTeólogo

A realidade atual representa uma imensa inversão da relaçãojusta entre os seres humanos e para com a natureza. Precisa-mos de uma nova economia política mundializada, de um novosonho coletivo para a humanidade. Este sonho deve procurarsua realização mínima ao menos nestes seis pontos fulcrais, bá-sicos para uma atitude ética responsável:

Humanização mínima: todo ser humano deve ter o direito mí-nimo de persistir na existência. Isto quer dizer, que deverá podercomer pelo menos uma vez ao dia, morar, ter um cuidado básicode sua saúde garantido. Os sistemas vigentes não colocam apessoa humana em seu centro. Apenas sua força de trabalho(seus músculos, sua cabeça, seus pés de esportista etc). É revo-lucionário hoje afirmar: devemos ter amizade e amor para com apessoa humana para além de qualquer determinação econômica,étnica, religiosa ou cultural. A novidade dos movimentos dos di-reitos humanos no terceiro mundo é afirmá-los principalmente

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para as vítimas e colocar como lema básico de sua luta: “servir àvida a partir das vidas mais ameaçadas”.

Cidadania: tendencialmente a organização social não deveproduzir excluídos, mas potencialmente todos devem se sentircidadãos da Terra, que se acostumam a pensar globalmenteembora atuem localmente em suas nações (com suas raízes cul-turais). A cidadania implica uma atitude democrática, participatóriae a concordância intrínseca com a pluralidade.

Justiça societária: implica a certeza de poder desfrutar debenefícios sociais, certeza também de prevalecer certa correla-ção entre o que o cidadão contribui e o que, em contrapartida,recebe. Pela justiça societária procura-se tornar mais concreto eviável o ideal político da igualdade, que passa a constituir umhorizonte utópico no sentido positivo do termo (uma referênciaque relativiza todas as concretizações e evoca sempre outrasnovas). A solidariedade entre grupos e nações alivia a rudezasdas desigualdades sociais.

Bem-estar humano e ecológico: os melhores projetos, práti-cas e organizações são aquelas que maximalizam não somentea quantidade de bens e serviços mas principalmente a qualidadede vida enquanto humana. Esta deve resultar do funcionamentoglobal da sociedade. Ao bem estar humano pertence a nova ali-ança que se estabelece entre os homens/mulheres e a naturezaem termos de confraternização e veneração. Pertence tambéma espiritualidade como a capacidade de comunicação com a sub-jetividade profunda de si próprio e das pessoas e com as maisdiferentes alteridades inclusive a alteridade absoluta (Deus).Pertence a ela igualmente a expressão pluralista de valores e asinterpretações da vida, da história e do propósito último do universo.

Respeito às diferenças culturais: o ser humano é um ser his-tórico e codificou diferentemente suas respostas às questões sig-nificativas de sua passagem pela Terra. Como existe uma arque-ologia exterior (ecologia ambiental e social) possui também umaarqueologia interior (ecologia profunda): interpreta, valora e so-nha a sua realidade a partir de experiências cumulativas. Todas

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esta diversidade mostra a riqueza do que é a aventura do serhumano. Ela pode ser comunicada e enriquecer a todos. A des-peito do fato de a ciência e a técnica tenderem a homogeneizartudo, pode-se produzir singularidades pela apropriação culturalespecífica que se fazem destes processos. Cada cultura apre-senta uma forma distinta de se viver a solidariedade, de se fes-tejar, de se integrar o trabalho e o lazer, de se articular os gran-des sonhos com a realidade histórica. A ciência e a técnica sãomomentos desta forma de habitar o mundo e de o ser humanosentir-se integrado num todo ecológico maior.

Reciprocidade e complementariedade cultural: não basta oreconhecimento da alteridade; este ato de respeito se ordena aoaprendizado dos valores dos outros, ao desenvolvimento da reci-procidade (troca de experiências e saberes) e dacomplementariedade mútua. Nenhuma cultura expressa a totali-dade do potencial criativo humano. Por isso, uma cultura podecompletar a outra. Todas juntas mostram a versatilidade do mis-tério do ser humano e as distintas formas de realizarmos nossahumanidade. Por isso cada cultura representa uma riqueza ines-timável (língua, filosofia, religião, artes, técnicas, numa palavra,as formas de habitar o mundo), seja as culturas singelas da Ama-zônia ou as culturas assim chamadas modernas científico-técni-cas. Toda essa imensa diversidade cultural não deverá perder-senum processo de mundialização homogeneizador pelo único modode produção capitalista .

Cuidado com a vida e com o planeta TerraCresce a consciência de que temos somente esse planeta

Terra como pátria comum na qual podemos viver. Tanto ele quantoo sistema da vida estão ameaçados pelo princípio de auto-des-truição. Garantir o futuro da Terra e da humanidade constitui agrande centralidade; sem elas nenhum valor acima apontado sesustenta. Por isso é imperativa uma ética do cuidado a ser vividaem todas as instâncias. Ela impõe uma re-educação da humani-dade para que possa ao mesmo satisfazer suas necessidadescom a exuberância da Terra e encontrar uma convivência pací-

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fica com ela. Não somos meros habitantes da Terra. Somos seusfilhos e filhas. Numa perspectiva radical, somos a própria Terraque em seu processo de evolução alcançou através do ser hu-mano a capacidade de sentir, de pensar, de amar e de preocu-par-se consigo mesma.

Conclusão: desafio a cada sujeito ético-ecológico fazer arevolução molecular

A situação mundial para ser superada demanda uma revolu-ção. Tudo indica, porém, que o tempo das grandes revoluçõespassou. Via de regra eram feitas no passado por classes ougrupos de vanguarda. Nem por isso a exigência de uma revolu-ção arrefeceu. Os caminhos são outros. Hoje cada um é chama-do a fazer a sua revolução. Seu estilo será molecular. Comocada molécula inter-age com o meio e garante sua subsistência,assim cada qual deverá operar as mudanças lá onde se encontrae em inter-ação com o meio ao seu alcance. Cada pessoa huma-na representa um feixe imenso de potencialidades que queremse expressar. Os sistemas imperantes tentam submeter seuscidadãos à resignação e à pura acomodação. Por isso devemosser criativos e alternativos lá onde podemos. Devemos deixarnascer em nós o homem/mulher novos, diferentes, complemen-tares, solidários e unidos na construção de um destino comumpara nosso país e para o nosso planeta. Não somos chamados asermos galinhas, mas águias. A águia está escondida dentro decada anseio e de cada sonho de crescimento e de libertação quefermenta na mente e incendeia o coração. Importa dar asas àáguia. Seu habitat é o céu, as alturas e o espaço aberto e não orastejar pelo chão. Cumpre erguer vôo e arrastar outros na mes-ma aventura da liberdade e da libertação. Nesse processo sefará a revolução para um novo paradigma civilizacional que per-mitirá a continuação do experimento homo num sentido mais pro-fundo e melhor do que aquele vivido até o momento.

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Lúcia AraújoDiretora do Canal Futura

Violência e Direitos Humanos

A primeira causa de morte de jovens entre 15 e 19 anos noBrasil é a violência. Cerca de 30% das mortes dos jovens entre10 e 19 anos têm por causa os homicídios. E há ainda outrasviolências que atingem nossas crianças e jovens e que, emboranão lhe tirem a vida, muitas vezes lhe tiram os sonhos, o sentidode viver. Essa violência pode ser expressa na forma de explora-ção econômica, pela prostituição, pelo abandono e pelos maustratos dentro do lar.

Esses dados são do Centro Latino Americano de Estudossobre Violência e Saúde da Fiocruz. E são dados assustadores.Mostram um quadro de guerra urbana onde os jovens, pobres ede baixa escolaridade são a principal vítima. E não é precisodizer sobre como essa perversa realidade tem estreita relaçãocom a profunda desigualdade na distribuição da riqueza social ea crise ética com a qual nos defrontamos. A modernidade tem

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colocado a todos nós, cidadãos do mundo, muitos desafios. Comogerar oportunidades iguais em ambientes altamente competiti-vos? Como fortalecer práticas coletivas e solidárias num contex-to de individualismo exacerbado?

Ao mesmo tempo em que os indicadores de violência subiamassustadoramente desde fins da década de 80 assistimos em 1990a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Hoje,10 anos depois, ao lado das comemorações de aniversário doECA ainda convivemos com as mais variadas formas de violên-cia contra as crianças e adolescentes. Avançamos: temos umadas melhores leis sobre direitos das crianças. Precisamos trans-formar a lei em realidade. E isso envolve não só a garantia dedireitos mas uma mudança de mentalidade. Exige um esforço euma aliança em torno da construção de uma cultura de respeitoe compromisso com os direitos humanos. Exige um projeto deeducação para valores.

Um projeto de Educação para Valores

A lei diz que as oportunidades educacionais devem ser asmesmas para todos. Mas a realidade é outra. Nem todas as cri-anças brasileiras chegam à escola e muitas que chegam não con-seguem concluir sequer o ensino fundamental. A desigualdadena oferta de oportunidades educacionais tem impacto importantesobre a vida de crianças e jovens das camadas mais pobres dapopulação. Elas apresentam uma grande defasagem série/idadeseja pelas dificuldades que retardam seu acesso à escola, sejapela baixa qualidade da escola que lhes é oferecida.

Projetos de grande relevância têm sido implementados no in-tuito de fazer frente a questões como essas. É o exemplo dosprogramas de bolsa escola e aceleração escolar. Garantir o di-reito fundamental de acesso a uma educação de qualidade é umpasso importante para a redução das desigualdades sociais. Masisso não basta. É preciso que se implemente urgentemente umprojeto de educação para valores que contribua para a consoli-

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dação de uma cultura da tolerância e da cooperação. Para ofortalecimento de uma sociedade que se oriente pela ética dapluralidade e da solidariedade humanas.

Somos seres humanos únicos. E se existe a diferença podeexistir o conflito. Afinal, estamos em permanente interação, tro-cando idéias e sentimentos. O conflito faz parte da dinâmica davida social. Muitas vezes é fonte de transformação. No entanto,no jogo de interesses, no confronto entre sujeitos e entre ideolo-gias, a violência é sempre um caminho possível em contraposiçãoà tolerância e ao diálogo. Uma sociedade que não cria mecanis-mos de diálogo e de participação, não cria espaços de negocia-ção e, portanto, de superação pacífica de conflitos.

Desde o V Congresso Mundial de Ciências da Educação em1981 que a necessidade e urgência de um projeto de educaçãopara valores vem sendo proclamada. O relatório que a ComissãoInternacional sobre Educação para o século XXI produziu paraUNESCO destaca que a educação tem que ser cada vez maispluridimensional e voltada para o desenvolvimento de quatro com-petências básicas: a competência pessoal, a social, a produtiva ea cognitiva.

Não basta formar para o fazer, ou seja, para a competênciaprodutiva. Ou para o aprender, pela competência cognitiva. Épreciso formar para ser e conviver, dando-se ênfase às compe-tências pessoal e social. Cada vez mais é preciso ter a capacida-de de comunicar-se, de participar e cooperar. De cuidar de si,do outro e do lugar onde se vive. Compreender o outro e ainterdependência entre todos. Valorizar a diferença, decidir emgrupo, gerir conflitos e manter a paz.

Um projeto dessa grandeza está para além dos muros da es-cola. Exige a articulação de todos aqueles que atuam junto ouem favor das crianças e adolescentes. Família, comunidade, edu-cadores, profissionais de saúde, juristas, políticos e, é claro, pro-fissionais de comunicação.

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O Canal Futura

O FUTURA é um canal educativo sem fins lucrativos, resul-tado da parceria de 15 grandes organizações, exclusivamentevoltado para o desenvolvimento da educação e da cultura dopaís. Sua programação tem com público alvo educadores, donasde casa, crianças, trabalhadores e estudantes. Além disso, oCanal mobiliza a comunidade, incentivando empresas, órgãos eassociações a se organizarem para receber, interagir e utilizar aprogramação. Hoje já conta com mais de 7800 instituições ca-dastradas e um público potencial de 30 milhões de telespectadores.Toda a programação do FUTURA está baseada em quatro prin-cípios básicos: ética, pluralismo educacional e cultural, espíritocomunitário e empreendedorismo.

Em seus três anos de existência, o Canal vem desenvolvendoprodutos e apoiando ações especialmente no campo da forma-ção para a cidadania. Programas como “Brava Gente” e “JornalFutura” informam o público sobre ações em defesa dos DireitosHumanos, especialmente aquelas no campo da educação. As-sim nasceu o Dia Temático sobre Direitos Humanos – “DireitosHumanos, faça valer!”. Foram 24 horas de programação sobrea história das conquistas de direitos no trabalho, sobre a realida-de e os direitos de crianças e adolescentes, mulheres, negros eíndios, projetos educativos em escolas e comunidades. E maisações de mobilização em várias capitais do país. Apoiamos even-tos como “Vem ser cidadão” em Faxinal do Céu/Paraná, ondecerca de 450 jovens e 180 educadores estiveram reunidos em 98e 99 para discutir e experimentar sua cidadania.

Enfim, procuramos mostrar como a cultura da paz se faz ematitudes cotidianas de generosidade, compreensão, solidarieda-de, tolerância, rejeição à violência, respeito à vida e preservaçãodo meio ambiente.

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Conclusão

É preciso que arregacemos as mangas, diante de tantas vio-lências cada vez mais presentes em nossos espaços de convívio,em nossas vidas. É preciso dar as mãos para a formação de umarede de solidariedade que construa uma infância e uma adoles-cência mais dignas para o pequeno cidadão brasileiro. É inad-missível que grande parcela dos jovens deste país esteja por es-colher entre o lápis e as armas, e nós fiquemos boquiabertos eimóveis. É preciso romper com a cultura cínica da violência queindividualiza o sujeito e lhe tira a perspectiva de agente social,roubando-lhe a esperança. Nas palavras de Leonardo Boff, tra-ta-se de “Uma atmosfera que não gera vida”. (Boff, 1998)16.

Muitos de nós talvez possamos estar confusos, incrédulos einseguros diante de nossas vidas, como também estão muitos denossos meninos e meninas. Então, que a criança que sempre seesconde dentro de nós possa se manifestar evidenciando o quehá de melhor em cada um de nós e, quem sabe, nos dizer umpouco sobre como fazer este nosso mundo diferente. Que essacriança nos resgate ou mesmo nos mostre velhos/novos ideais.Que possamos reconstruir a utopia. Não utopia em oposição àrealidade, mas como expressão das infinitas possibilidades doexistir.

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Miguel Serediuk MilanoEngenheiro Florestal, Mestre e Doutor em Ciências Florestais. Professor da

Universidade Federal do Paraná e Diretor Técnico da Fundação O Boticário de

Proteção à Natureza (Curitiba – PR)

Honrado pelo convite para compor algumas destas páginas,não sei o real ou imaginário fato que o motivou. Mas ao aceitá-lo,como um verdadeiro desafio, buscarei expressar algumas dasidéias que partilho com pessoas que são verdadeiros cidadãos domundo; pessoas conhecidas e famosas, pessoas simples e des-conhecidas – jovens, idosos, maduros – mas todas muito impor-tantes. Pessoas com quem aprendi e para as quais também ensi-nei; pessoas com quem partilho idéias e sonhos.

Tenho como certo, se é que a relatividade do pensar permitesupor algo realmente certo, que pensar em cidadania é pensar naexistência com ética; na vida com respeito ao próximo, esteja elepróximo ou distante; na vida com respeito a vida, seja ela huma-na ou não. Na vida em comunhão com a natureza, na melhorcomunhão possível. Não imagino cidadania simplesmente comoalgo politicamente conquistável, como freqüentemente se expres-sa no direito. Não imagino cidadania como algo que politicamen-te se concede, como freqüentemente se expressa na própria po-

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lítica. Imagino cidadania como algo que se exercita e que, paraser verdadeira, não pode ter limites nem fronteiras. Não se podeser cidadão aqui, exercendo direitos e assumindo deveres, e logoali, onde a regra do direito e da política não alcançam ou não têmação, não exercitar a mesma cidadania. Não se pode ser cida-dão, explorando, no sentido pleno da palavra, crianças e idosos,pobres e indefesos, e a própria natureza. Observem que não uso“ou” a natureza, mas sim “e” a natureza. Isto porque é para tra-tar do exercício da cidadania (dos homens, obviamente) em rela-ção à natureza que aceitei o desafio para compor estas páginas.

Evoluímos muito. É fácil revisitar, via a própria memória, ouatravés de documentários variados, o comportamento humanovinte, trinta, ... cinqüenta anos atrás, para não regredirmos muitoe mantermo-nos num tempo quando muito do conhecimento ci-entífico de hoje já era disponível – até a bomba atômica já haviafeito sua demonstração em nome de alguma suposta cidadania.Caminhamos hoje já um pouco melhor que no passado recente.Não muito, mas melhor. De qualquer forma, considerando o serhumano coletivamente, como humanidade, ainda não passamosde infratores ignorantes, pelo menos em termos morais e éticos.

Como parte da evolução, parece-nos confortável ver que jáestá estabelecida a regra de julgar as agressões contra a nature-za e, sempre que possível, também puni-las. Assim, num mundoonde o valor econômico sobrepõe-se sobre a outros valores –emocionais, religiosos ou morais – convencionou-se que a me-lhor pena é aquela que atinge o bolso; ou seja, segundo tal regrade valores, onde mais dói. Nessa linha de raciocínio, não poder-se-ia seguir por outro caminho que não a própria monetarizaçãoda natureza, ainda que essa não devesse ser a regra. Busca-seentão saber quanto vale uma espécie qualquer de bactéria oufungo, uma árvore na calçada da rua, um pequeno bosque depinheiros perto da cidade, uma grande formação de savanas, defloresta tropical ou de campos naturais, um manguezal ou ... umrecife de corais. Estimam-se valores monetários antesinimagináveis e também genericamente impagáveis.

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São esses os valores da natureza? São esses os valores deporções dela, se é que pode-se desmembrá-la? Representamesses valores os benefícios que são usufruídos pelo homem ouque, deixando de ser usufruídos, representam prejuízos? Enfim,resolve-se desta forma o problema? Efetivamente, não! Apenascoíbem-se certos abusos em sociedades ditas evoluídas, cultas,desenvolvidas, em estado de direito pleno, ou supostamente ple-no, visto que só sociedades nesse estágio – com todas as neces-sidades humanas convencionadas como básicas atendidas – po-dem-se dar ao “prazer” de julgar atos humanos contra a nature-za. Até que tais necessidades estejam supridas, e mesmofreqüentemente depois disso, não é exatamente assim. Semprehá prioridades humanas. E, afinal, é o homem quem decide.

A primazia do homem sobre a natureza em todas suas ex-pressões, incluindo-se aí todas as formas de vida, todas as espé-cies, é evidente. Ninguém a nega. Todavia, não é lícito nem mes-mo supor que ele – o homem – tenha sido ungido à condição desoberano supremo para reinar sobre a Terra decidindo sobre tudoe sobre todos. Não há evidência qualquer que a ele – o homem –tenha sido concedido o direito superior de julgar as demais espé-cies pela utilidade que lhe possam apresentar ou pela adversida-de que lhe possam trazer e, eventualmente, impor. A natureza,na plenitude das partes que a compõe, vivas ou inertes, tem valorintrínseco, independendo tal valor da utilidade que possa apre-sentar aos propósitos humanos, sendo este um princípio básicoda ética ambiental. Cabe aqui destacar, então, que a vida temvalor próprio, seja ela qual for. E valho-me de pensamentos jáexpressos por outros, cientistas, filósofos, jornalistas, profissio-nais técnicos e pessoas comuns, para argumentar em favor davida qualquer que seja ela. Justifico ainda que o faço por enten-der que o valor à vida é uma questão de ética e de cidadaniaplena.

Para muitos hoje em dia, a extinção de espécies pelo homemjá envolve uma questão moral. Afinal, se a moral e a ética origi-nam-se de leis naturais, onde o direito à vida é um princípio fun-

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damental, pode-se presumir que esse seja um direito de todos osseres vivos, ainda que não humanos. Um direito tão legítimo quantoo nosso. Existindo conseqüências das ações humanas para su-prir suas necessidades, bem como conseqüências do próprio de-senvolvimento humano sobre toda a natureza, moralmente con-siderando-se, não é difícil entender como uma responsabilidadehumana as ações necessárias tanto para proteger a natureza aindanão afetada pelas suas ações como reparar aquela já afetada.Argumenta-se, todavia, que como não é garantida ao homem aimortalidade, não se pode garantir através do próprio homem odireito à existência perpétua para as demais espécies. A extinçãode espécies pelas mais diversas atividades humanas – caça epesca, desmatamento e poluição, introdução de espécies exóti-cas e disseminação de doenças – para muitos já é consideradauma ação humana, mesmo que inconsciente, análoga ao assassi-nato, ao genocídio ou quaisquer outras agressões aos direitoshumanos que tanto procuramos estabelecer e preservar. Sendoassim, uma ética completa e verdadeira, hoje em dia, não podeprescindir de expandir seu contexto para além da esfera pura-mente humana e do seu contexto intrínseco. De forma equiva-lente, a cidadania que buscamos deve ser aquela da integração edo respeito plenos do homem para com a natureza.

É possível, e quase certo, que parte do problema esteja den-tro de nós; que seja parte de nosso inconsciente e uma vez co-nhecido possa ser controlado. Considerando que desde a maisremota antigüidade a imagem das árvores tem sido usada comosímbolo do crescimento interior do ser humano, há mesmo quemdefenda que entre nós e as árvores há uma secreta afinidade.Que somos parecidos e temos a mesma estrutura. Que assimcomo a árvore, que um dia crescerá e traz contida na sementetoda sua potência, nós, seres humanos, carregamos no fundo doinconsciente aquilo que podemos vir a ser. Assim, nossas árvo-res nos refletem, como espelhos; não quanto à aparência exteri-or, mas em termos do desconhecido de nossa alma. As árvorespor nós mesmos mutiladas que nos rodeiam refletem a mutilação

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interior que carregamos e que mal somos capazes de perceber,uma vez que vivemos em desacordo com a natureza na mesmamedida do nosso medo em crescer e atingir a plenitude de nossoser. As árvores sofridas que nos rodeiam denunciam sem disfar-ce a insensata brutalidade e a pobreza interior de homens quefogem de suas próprias almas.

Assim, nossa integração plena, que só pode acontecer a par-tir de nossa real consciência do que somos, é o passo necessáriopara uma vivência com postura de ética integral. Enquanto tiver-mos, como seres humanos, a prepotência de nos imaginarmos enos posicionarmos como superiores a tudo, e entre nós nos ava-liarmos e respeitarmos pelas posses e dotes, não será possívelobtermos cidadania nem mesmo no restrito espaço próprio queocupamos; menos ainda na Terra, como planeta, ou no mundocomo dimensão relativa. A cidadania mundial requer respeitoentre os homens e paz. Respeito este que só será verdadeiroquando estiver pautado em amor e fraternidade. Paz esta queserá, então, apenas uma conseqüência desse respeito e não omotivo da busca. Para isso, todavia, precisamos primeiro apren-der a amar e a respeitar a natureza, que é a base de toda a vidae o valor maior que pode-se buscar manter.

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Olmar KlichPresidente do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH)

“A caminhada pelos direitos humanos é a própria luta do nossopovo oprimido, através de um processo histórico que se inicia duran-te a colonização e que continua, hoje, na busca de uma sociedadejusta, livre, igualitária, culturalmente diferenciada e sem classes”,reconhece o Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH)em sua Carta de Princípios, aprovada em Olinda, em 1986.

Cinco são os princípios basilares da organização do MNDH:“1. Estimular a organização do povo (... a fim de) possibilitar que o homem

torne-se cada vez mais sujeito da transformação das atuais estruturas.2. Lutar, com firmeza, para garantir a plena vigência dos direitos hu-

manos, em qualquer circunstância, defendendo a punição dos responsá-veis pelas violações desses direitos e a justa reparação para as vítimas.

3. Incentivar e garantir a autonomia dos movimentos populares(...) reafirmando a opção fundamental, que é nosso compromissocom os oprimidos.

4. Ter claro o seu papel, suas limitações e potencialidades,

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sua identidade, repudiando qualquer forma de instrumentalizaçãoe se caracterizando como entidade não- governamental.

5. Combater todas as formas de discriminação por confissão reli-giosa, diversidade étnico-cultural, opinião pública, sexo, cor, idade, de-ficiência física e/ou mental, condição econômica e ideológica”.

A Carta é concluída com uma declaração enfática de que“Unidos, lutaremos pela realização desses compromissos, cami-nhando, assim, para construção de uma Nova Sociedade e doHomem Novo, no Brasil, na América Latina e no mundo”.

O MNDH entende que sua tarefa fundamental para a cons-trução da cidadania, no momento atual, está em construir umacultura dos direitos humanos, afirmando-os em sua universalida-de, indivisibilidade e interdependência.

Inúmeras são as possibilidades de ação histórica. Qualquerdelas, no entanto, sempre são articuladas em torno do eixo histó-rico da “Luta pela vida e contra a violência”, entendendo a vidaem seu sentido substantivo fundamental e a violência como aprincipal forma de degradação da vida.

O MNDH prioriza principalmente a formação de agentessociais que tenham capacidade de organização, fortalecimento earticulação das organizações da sociedade civil para a proposi-ção de políticas públicas na perspectiva da construção do espaçopúblico não-estatal; a formulação e proposição de políticas públi-cas que afirmem a cidadania nos mais diversos campos, atuandode modo especial na busca de condições de garantia dos direitoseconômicos, sociais, ambientais, sem se descurar dos direitoscivis e políticos; a participação ativa nas lutas históricas dos ex-cluídos como mobilizador, articulador e interlocutor; a presençaativa nos espaços de ação da sociedade civil nacional e interna-cional, entre outros aspectos, que se traduzem na diversidade daação concreta de suas mais de 300 entidades afiliadas.

Em termos organizativos, o MNDH, desde sua criação, háquase 20 anos (1982), se estende como uma rede de articulaçãode entidades que lutam e atuam na promoção dos direitos huma-nos. Neste sentido, se entende como um ator social com profun-

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da capacidade de articulação da riqueza da diversidade da lutasocial pelos direitos humanos em nosso País.

Fizemos esta rápida apresentação institucional para, a partirdela, extrair a concepção institucional do MNDH sobre cidada-nia mundial e paz.

Ora, se a cidadania implica a construção de uma cultura dosdireitos humanos, reconhecendo-os em sua universalidade,interdependência e indivisibilidade, então está em jogo, para aconstrução da cidadania mundial a garantia efetiva dos direitoshumanos para todos, em todos os lugares. Para o MNDH, ocaminho para fazer esta afirmação está nos seguintes aspectos:

1 - É preciso reconhecer que todos os diretos humanos sãoigualmente exigíveis e justificáveis. Os avanços anunciados emViena (1993) precisam se fazer sentir de modo especial nosdireitos econômicos, sociais e culturais, no sentido da necessida-de de avançar para o reconhecimento de sua exigibilidade,implementando mecanismos concretos para tal.

2 - A agenda social da ONU reconhece os principais proble-mas do mundo, entre eles a fome e a miséria, e indica uma sériede medidas para a sua superação. No entanto, os principais or-ganismos internacionais de fomento e financiamento (FMI, Ban-co Mundial) simplesmente insistem em desconhecer completa-mente os direitos humanos e a recomendar medidas de ajusteestrutural que via de regra comprometemos orçamentos públi-cos da maioria dos países do terceiro mundo com o pagamentode juros da dívida externa. Enquanto boa parte da populaçãomundial estiver comprometida com o pagamento da dívida deseus países não haverá efetivamente condições para superar osgraves problemas sociais que incomodam a humanidade.

3 - Democracia e Desenvolvimento são dois conceitos quereconhecidamente vêm sendo trabalhados como interdependentes.No entanto, ainda há muito a fazer para que a humanidade todaseja governada em modelos democráticos, sobretudo se pensar-mos a democracia em sua forma mais substantiva, que se dáatravés de formas de participação direta dos cidadãos nas deci-

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sões e ações públicas. O Desenvolvimento, ainda em muito en-tendido como crescimento econômico, precisa efetivamente serreconhecido como direito de todos os povos e implementado comodesenvolvimento sustentável.

4 - A comunidade internacional das nações carece de avan-ços significativos, especialmente nos órgãos deliberativos per-manentes, em vista de seu fortalecimento. A superação de umestado natural ao estilo hobbesiano que marca a maior parte dasrelações entre os países do mundo, implica a construção de umnovo pacto mundial, no qual deverá ser redesenhado o papel detodos os organismos internacionais, reconhecendo sempre a au-todeterminação como direito fundamental.

5 - A sociedade civil tem crescido eme importância não sóem vários países, mas especialmente pela sua capacidade deação através de movimentos mundiais, a exemplo de Seattle,Washington e Davos. Este é um dos mais importantes alentos, jáque a ação da sociedade civil mostrou força e capacidade dearticulação, também expressa no Fórum do Milênio, que, pelaprimeira vez, sistematizou uma pauta mundial a ser apresentadaaos chefes dos estados que se reunirão na Cúpula do Milênio.Fortalecer, portanto, a articulação e a ação da sociedade civil éfundamental para que avancem as condições para a construçãoda cidadania mundial.

Enfim, estas são, para o MNDH, algumas das condições bá-sicas, necessárias para que se possa dar passos efetivos na pers-pectiva da construção da cidadania mundial que haverá de resul-tar num novo tempo de paz. Em duas palavras queremos resumiras grandes demandas da humanidade para avançar na perspec-tiva da paz: justiça social e solidariedade. Dessa forma, entende-mos, homens e mulheres poderão reconhecer-se iguais na diver-sidade e exercer solidariamente a liberdade de construir efetiva-mente, um novo homem e uma nova mulher numa sociedadecuja base seja a cidadania mundial.

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Reiko NiimiRepresentante do UNICEF no Brasil

Todos os países do mundo, com exceção de apenas dois, dis-seram “sim” a um belo projeto de mundo. Este projeto se chamaConvenção sobre os Direitos da Criança. É um documento aindanovo, tem apenas 10 anos de aprovação pela Assembléia dasNações Unidas. Mas ali estão as bases para o exercício de cida-dania de toda a família humana, um exercício que começa comcada uma das crianças.

Na Convenção estão descritas os fundamentos para um mundomais justo e democrático para as crianças e adolescentes. Nestemundo sonhado por nós e aceito pelos países, todas as criançastêm direito à vida. Elas são cuidadas durante a gestação e oparto e registradas logo após nascerem.

As crianças não são discriminadas por qualquer motivo e sãocriadas em suas famílias, em ambientes seguros e saudáveis.Tanto o pai quanto a mãe têm a responsabilidade na criação deseus filhos. Neste mundo, os Estados apóiam os pais na tarefade criar seus filhos e se responsabilizam pela criança quando ospais não podem fazê-lo.

As meninas e meninos têm direito a uma escola que respeita

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suas individualidades e sua cultura. Eles podem expressar suasopiniões e são ouvidos e respeitados. Além disso, as crianças cida-dãs deste mundo têm respeitados seus direitos ao pensamento e àreligião. E na escola aprendem o respeito pelos direitos humanos epor seus valores culturais e nacionais e os de outras crianças.

Neste mundo que a família humana escolheu, a mídia é pro-motora da paz porque deve respeitar o ambiente cultural dascrianças e tem o papel disseminar informações às crianças quesejam consistentes com o bem-estar moral, o conhecimento e acompreensão entre os povos.

As crianças são saudáveis e têm acesso a serviços de saúdedo mais alto nível. As meninas e meninos portadores de deficiên-cia recebem cuidados, educação e treinamento especiais paraconseguirem a maior independência possível.

Neste mundo já arquitetado por todos os países do mundo, oEstado protege as crianças do trabalho e garante seu acesso aolazer, à recreação e a participação em atividades culturais. As-sim, as crianças podem crescer longe do abuso de drogas, daexploração sexual e dos conflitos armados.

Este mundo de cidadania não é um sonho. É uma convençãono sentido mais estrito e mais amplo da palavra e um projeto dafamília humana da qual cada um de nós é parte fundamental.

Este nosso desejo de um mundo onde cada ser humano é umcidadão pleno hoje é o documento universalmente mais aceito emtoda a história da humanidade. Até julho do ano 2000, a Conven-ção sobre os Direitos da Criança foi ratificada por quase todos ospaíses do mundo, com exceção dos Estados Unidos e Somália.

Em nosso trabalho no Fundo das Nações Unidas para a In-fância (UNICEF) temos certeza de que devemos a nossas cri-anças o que o mundo tiver de melhor a dar. Fazer valer os direi-tos das crianças será um excelente começo para a cidadaniamundial. Dar uma vida digna e justa a cada uma das meninas emeninos são a base para um mundo de paz.

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Sônia Maria Goes ShafaEnfermeira

Em 1998, em Curitiba, realizando rotineiramente reuniõesBaha’ís sobre sementes da cidadania mundial, fiquei feliz quan-do a Maristela, uma das participantes constantes do grupo, pe-diu-me para falar, na próxima reunião, sobre a visão Baha’í arespeito do tema.

E é relembrando aquela reunião, pequena mas grande no in-tuito de compreender esse conceito, que estudei as EscriturasBaha’ís e apontei aquela visão predita sobre o novo papel do serhumano no planeta a partir do século XIX, quando a expressãocidadão do mundo foi definida pela primeira vez por Baha’u’lláhnas seguintes frases: “Homem verdadeiro é aquele que ama asua espécie” e “A terra é um só país e os seres humanos seuscidadãos”.

Com estas frases um novo conceito de cidadania se criou noplaneta. Aquele anseio de igualdade e cidadania, aspirado e de-sejado por Olympe de Gourge, na Revolução Francesa, que alevou à morte, tinha se cumprido...

Eu não queria discutir cidadania com argumentos humanos, efui buscar inspiração nas Escrituras Sagradas para apresentar a

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base da construção de um cidadão planetário, com o propósitode avançar na compreensão da convivência e do serviço huma-no no planeta.

Comecei a apresentar o tema com a seguinte oração Baha’í:“ Ó Deus, criastes toda a humanidade dos mesmos pais, desejastesque todos pertençam ao mesmo LAR...”

Com estas exortações compreendemos a verdade de nos sen-tirmos membros de uma só família: a família humana. O quetemos em comum vai muito além de nossas diferenças étnicas,sociais, religiosas e culturais. Temos muito mais em comum doque estas diferenças estabelecidas pela compreensão da contin-gência humana.

Sou enfermeira há mais de 30 anos, cuido de pessoas dife-rentes em sua origens e nelas encontro aquelas forças que nostornam iguais, como o amor, a alegria, a tristeza, o sofrimento, oanseio de justiça e liberdade.

A cidadania mundial, para ser base da paz mundial, necessitaser aceita em nosso mundo interior, ou seja, o mundo do coração.O nosso coração necessita liberar este amor mundial por todosos seres do planeta, sejam homens ou mulheres, ricos ou pobres,alfabetizados ou não, de qualquer etnia ou religião.

A concepção de estrangeiro deve ser abolida. Somos estra-nhos em quê? Na realidade, somos todos idênticos nos nossossonhos e nos nossos desejos de paz. É preciso também adotar-mos o sentimento dos povos indígenas de vivermos numa aldeia,ampliando esta grande aldeia que é o mundo, para nele vivermosem paz.

O que acontece numa aldeia? As pessoas convivem umascom as outras, compartilhando seus interesses, seus problemas eseus anseios. Se um não está bem, os outros não ficam bem.Mas se um está alegre, todos também ficam alegres.

Devemos começar a plantar as sementes da cidadania mun-dial. Ou seja, da igualdade entre os povos do mundo, do senso dejustiça, da solidariedade internacional, da cooperação e da reti-dão na família. É a família, segundo a Dr. Danesh, psiquiatra

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membro da Comunidade Internacional Baha’i, a oficina da ci-vilização. O que devemos ensinar, praticar e aprender nestaoficina, junto com os futuros cidadãos do planeta? Devemos en-sinar e adotar a igualdade de direitos entre os sexos, a liberdadede expressão, o exercício do cumprimento dos deveres e da ga-rantia dos direitos humanos e a eliminação dos preconceitos.

Os seres humanos educados desde a infância numa escalade valores que os ajudem a serem futuros cidadãos do mundo,tornar-se-ão os construtores de uma sociedade auto-sustentável,cujo desenvolvimento será baseado na justiça.

É necessário educarmos e prepararmos os futuros membrosdesta civilização mundial para serem líderes a serviço da hu-manidade e que o poder seja de serviço e de interesse pelo bem-estar humano.

Vivemos um momento de desafio, onde a adoção da cidada-nia mundial dentro de nós mesmos e aplicada na nossa vida coti-diana nos levará a um avanço no nosso destino: a prática danossa verdadeira humanidade.

Poderemos ser cidadãos do mundo quando olharmos para ooutro ser humano e sentirmos que ele é parte de nós mesmos e,nesse olhar, visualizarmos o nascimento de uma nova sociedadesolidária e destinada a criar o bem-estar entre todos os povos domundo.

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Tizuka YamazakiCineasta

Quando cheguei no Rio de Janeiro para terminar a faculdadede Cinema, no meio dos anos 70, eu trabalhava como repórter erepórter fotográfica. Nesta época, eu estava encantada com acidade maravilhosa, tão receptiva a todos os que vêm de muitoslugares do Brasil e do mundo.

Um dia saí à procura de artistas de rua, tema da matéria queeu tinha que cobrir. Busquei um artista plástico que na falta demãos pintava com os dedos dos pés, agachado na avenida RioBranco. Interessada naquele pintor, puxei assunto e aos poucospassei a fotografá-lo, abaixada para ficar na altura que ele esta-va. Estávamos apenas nós dois, isolados nos nossos interessescomuns, alheios ao burburinho da cidade grande. Depois de al-gum tempo, as pessoas começaram a parar ao nosso lado, for-mando uma roda. Estavam curiosas, talvez pelo fato de um artis-ta anônimo despertar o interesse de uma reportagem. O artistacontinuava concentrado na sua pintura sem se importar com aplatéia. E eu continuava a fotografar feliz com aquela comu-nhão. Um sujeito que aos olhos do nosso dia possa parecer insig-nificante, mas através das lentes de uma câmara, posteriormen-te projetado numa tela de cinema, que eu vim a experimentarmais tarde ao me tornar diretora de cinema, ele exibirá na tela

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um brilho do olhar, uma beleza escondida, um sonho acalentadono segredo. Aquele poeta marginal, deixa de ser anônimo e saltaà condição de protagonista. Com direito de ser amado ou odiado,mas garantido pelo direito de existir. Subitamente, uma voz iradafeminina começou a gritar:

- Fora!! Ela é estrangeira!! Fora! Essa japonesa tá roubandoas nossas coisas! Volte pro seu país!

Demorei um pouco para registrar e entender que a agressãodaquela mulher tinha o meu endereço. Como eu estava agacha-da, eu via debaixo para cima uma multidão estática, que me davacerteza que queria me linchar. Meus músculos se retesaram e eufiquei paralisada. Não conseguia sequer murmurar qualquer pa-lavra. E a mulher cada vez mais histérica gritava. As pessoasolhavam para ela ao lado e depois canalizavam-se para mim,pequenina, diminuída, com medo. Na perda eu fiquei apavorada.Era a primeira vez que sentia na pele ou na carne uma agressãoracista. E ela gritava me mandando sair do meu país me acusan-do de roubar o que não era meu. Me acusava por fotografar aalegria de um trabalho feito por um artista brasileiro, que meorgulhava em poder divulgá-lo através do jornal onde eu traba-lhava. Eu não conseguia entender o que ela dizia, meu raciocínioempastelava e eu só sentia medo e uma vontade enorme de cho-rar, esperando a multidão se movimentar para me linchar. Instin-tivamente abro minha bolsa e despejo seu conteúdo no chão ten-tando encontra minha carteira de identidade para provar que eunasci neste país. Que eu não era estrangeira. Que eu não estavaroubando, ao contrário, eu estava colaborando com o que eu sa-bia fazer – chamar a atenção para a dignidade de um anônimoartista brasileiro. Agoniada por não conseguir encontrar a cartei-ra, sem saber o que fazer, ouvi uma voz salvadora. Entre ospresentes havia um rapaz, aluno da escola de Belas Artes, queeu havia entrevistado semanas antes. Ele gritou mais alto e meidentificou. Disse meu nome e confirmou minha nacionalidadebrasileira e enxotou a mulher acusando-a de louca. Minhas per-nas pararam de tremer, juntei minhas coisas, me levantei ainda

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abalada com a situação, agradeci o rapaz e me retirei silenciosa-mente enquanto a multidão se dispersava.

Este foi um dia especial na minha vida. Nunca o esquecereiporque eu sofri uma transformação que tem servido de referên-cia para enriquecer toda minha filmografia e minha vida. Enten-di que preconceito racial não se explica, se sente medo. E muitagente sabe disso e usa do abuso de poder para humilhar o serhumano. Humilhado e com medo, o segregado está sem defesapara sobreviver. Tenho certeza que a compreensão da minhadiferença de cor de pele, dos traços fisionômicos, são dados in-trínsecos da minha identidade. Não posso negá-los. Tenho queaceitá-los e valorizá-los para nos amando perdermos o medo efazer das nossas diferenças uma arma para ser usada no cami-nho da busca pela Paz.

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A Cidadania Mundial:Uma ética global para o desenvolvimento sustentável(1) Agenda 21, Capítulo 1.6.

(2) Um dos temas mais freqüentemente repetidos da Agenda 21 é aimportância vital da “ampla participação pública na tomada de deci-sões”; “comprometimento e envolvimento genuíno de todos os grupossociais”; “verdadeira parceria social”; e “novos níveis de cooperaçãoentre Estados, setores chaves da sociedade e pessoas”.

(3) A chamada por uma ética global foi levantada muitas vezes du-rante o processo da UNCED, especialmente na Cúpula da Terra e noFórum global, por Chefes do Estado, oficiais da ONU e Representantesdas ONG’s; através de documentos oficiais da UNCED, tratados deONG’s, oficinas de trabalho, livros e apresentações artísticas. Os se-guintes exemplos são apenas alguns dos muitos:

- Tratados de ONG’s preparados no Fórum Global, inclusive OTratado dos Jovens; A Carta da Terra; A Declaração do Rio de Janei-ro; a Declaração do Povo da Terra; O Tratado de Educação Ambientalpara Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global e O Trata-do de Compromissos Éticos;

- Atividades do Fórum Global, inclusive a Série Noturna do Par-que, referindo “a diversidade cultura da Família Humana, e o Monu-mento à Paz, cuja inscrição reza, “A Terra é um só país, e os sereshumanos seus cidadãos”;

- Declarações e publicações de governos, agências da ONU eONG’s para as diversas Sessões Preparatórias e outros eventos relaci-onados a UNCED, inclusive O Código Universal de Conduta Ambiental(Simpósio ONG/Mídia, outubro de 1990); Em Nossas Mãos as Mulhe-res e as Crianças Primeiro (Relatório do Simpósio UNCED/UNICEF/FNUAP, maio de 1991); A Carta da Terra (Rede de cidadãos dos EUAsobre UNCED, julho de 1991); Comunidade de uma Única Terra (OGrupo de Trabalho das Comunidades Religiosas sobre UNCED, agostode 1991); Uma Carta da Terra (Comitê Internacional de Coordenaçãosobre a Religião e a Terra, 1991); Agenda Xa Wananchi (Raízes doFuturo, dezembro de 1991); Uma Ética Ambiental ou Carta da Terra

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(PNUMA – Comitê Nacional do Reino Unido, fevereiro de 1992); Prin-cípios sobre Direitos e Obrigações Gerais (documento da AssembléiaGeral A/CONF.151/PC/WG.III/L.28, 9 março 1992); Carta da Terra, Ja-pão (Fórum dos Povos, Japão, 1992); Carta para o Conserto da Terra(Fundação para o Conserto da Terra, 1992); e Nosso País, o Planeta(Sur Shridath Ramphal, 1992).

(4) Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento,Preânbulo.

(5) Ver, por exemplo, A Declaração do rio sobre Meio Ambiente eDesenvolvimento, Princípios 5, 8, 2, 25; e Agenda 21, Capítulos 1, 2, 3,23, 24 e 36.

(6) Ver A Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e o Desenvolvi-mento, Princípio 25.

(7) Dentro do contexto da cidadania mundial, este programa deveser “executado pelos agentes conforme as diferentes situações, capaci-dades e prioridades dos países e regiões” (Agenda 21, Capítulo 1.6.).

(8) A Agenda 21, Capítulo 36.3, afirma que “A educação... deveriaser reconhecida como um processo pelo qual os seres humanos e associedades podem alcançar seu mais alto potencial. A educação é fatorcrítico na promoção do desenvolvimento sustentável e na capacitaçãodas pessoas para lidarem com questões de meio ambiente e desenvolvi-mento... Tanto a educação não-formal quanto formal são indispensá-veis para a mudança das atitudes das pessoas... Outrossim, é de funda-mental importância na formação de uma consciência, valores e atitudesecológicas que sejam coerentes com o desenvolvimento sustentável eadequados para a participação efetiva do público na tomada de deci-sões. Para ser eficaz,... a educação... deveria tratar da dinâmica do meioambiente físico/biológico e do meio sócio-econômico, assim como dodesenvolvimento humano (incluindo, o espiritual)”.

(9) A Agenda 21, Capítulo 36.9., chama a atenção à importância dese promover “ampla conscientização pública, como parte essencial deum esforço global de educação para fortalecer as atitudes, valores eações que forem compatíveis com o desenvolvimento sustentável”.

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Reflexões dos Cidadãos do Mundo

Cidadania: A prática dos direitos humanos1 Esse assunto específico poderá ser aprofundado em Celso LAFER,

A Reconstrução dos direitos humanos – um diálogo com o pensamen-to de Hannah Arendt, São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

2 ACNUR, A SITUAÇÃO DOS REFUGIADOS NO MUNDO 1997-98– Um programa humanitário. Alto Comissariado das Nações Uni-das para os Refugiados, Lisboa, Junio de 1998. p. 2.

3 ACNUR, op. cit. p. xiii.4 A Lei 9.474 define mecanismos para a implementação do Estatuto

dos Refugiados de 1951 e determina outras providências.5 O fechamento do Escritório no Brasil não significa a saída definiti-

va do ACNUR do país, pois foram mantido acordos e convênios cominstituições locais para a recepção, acolhida, integração local, suportelegal e apóio técnico ao governo que serão esclarecidos ao longo doartigo. Ademais a supervisão internacional do tema no Brasil, se dáatravés do Escritório Regional da Argentina.

Libertação através dos direitos humanos1 . A.A. Cançado Trindade, “A Emancipação do Ser Humano como

Sujeito do Direito Internacional e os Limites da Razão de Estado”, inQuem Está Escrevendo o Futuro? 25 Textos para o Século XXI, Brasília,Ed. Letraviva, 2000, pp. 99-112.

2 . Como elemento subjetivo do costume internacional.3 . Mediante as Convenções de Viena de 1978 e 1983, respectiva-

mente, sobre este capítulo do Direito Internacional.4 . Ou seja, com a virtual conclusão do processo histórico de descolonização.5 . Albert Camus, “L’homme révolté”, in Essais, Paris, Gallimard,

1965, p. 432.6 . Cf. “Report on the Proceedings of the Meeting, Prepared by Co-

Rapporteurs A.A. Cançado Trindade and D.J. Attard”, in The Meeting ofthe Group of Legal Experts to Examine the Concept of the CommonConcern of Mankind in Relation to Global Environmental Issues (Malta,1990), Nairobi, UNEP, 1991, pp. 19-26; e cf. A.A. Cançado Trindade, Direi-tos Humanos e Meio Ambiente - Paralelo dos Sistemas de Proteção Inter-

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nacional, Porto Alegre, S.A. Fabris Ed., 1993, pp. 23-38 e 213-219.7 . Para uma sistematização deste novo corpus juris, cf. A.A. Cançado

Trindade, Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, vol. I,Porto Alegre, S.A. Fabris Ed., 1997, pp. 7-486; ibid., vol. II, 1999, pp. 7-440.

8 . A.A. Cançado Trindade, “L’interdépendance de tous les droitsde l’homme et leur mise en oeuvre: obstacles et enjeux”, 158 Revueinternationale des sciences sociales - Paris, UNESCO (1998) pp. 571-582.

9 . A promoção do desenvolvimento humano e a realização da tota-lidade dos direitos humanos têm uma motivação comum e convergente;cf. PNUD, Informe sobre Desarrollo Humano 2000, Madrid, Ed. Mundi-Prensa, 2000, pp. 19-26.

Cidadania: construir a paz ou aceitar a violência10 Trata-se de uma mensagem da Casa Universal de Justiça, órgão

supremo da Comunidade Bahá’í, dirigida “aos povos do mundo”. Ain-da hoje é considerado, por renomados especialistas, um dos textosmais importantes e profundos sobre a paz.

11 Minayo, Maria Cecília S. A violência social sob a perspectiva da saúdepública. In: Cadernos de Saúde Pública. Rio de Janeiro, 10 (supl. 1): 07-18, 1994.

12 Casa Universal de Justiça. A Promessa da Paz Mundial. EditoraBahá’í. 4ª ed. 1988. (pag. 3)

13 Essas melhoras coletivas vão se expressar na conquista de novosdireitos e, consequentemente, de novos deveres, num processo de evo-lução social. (Conceito trabalhado in:. Jesus, Rita de Cássia Dias P.Cidadão no papel: a construção da cidadania nas propostas curricularesdas redes de ensino público e privado de Salvador. Dissertação deMestrado. FACED/UFBA. 2000)

14 Citado em A Promessa da Paz Mundial, secção II, p. 1315 Op. Cit., secção III, p. 16

A promoção da cidadania mundial através da educação16 “Pecado” - Palestra proferida no ciclo de debates “Os sete peca-

dos capitais” no CCBB, maio/1998.