christophe dejours trabalho vivo balho e emancipação · e o que mobilizadesde pronto freud é a...

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lienação, suicídio: sabemos, desde a publicação de seu livro A banalização da injustiça social, que o trabalho é capaz de produzir o que há de pior. Ainda assim, tem também a faculdade de fomentar o melhor. Sua competência de propiciar a realização de si mesmo e a emancipação, isso deixa muita gente incrédula, e este é o caminho empreendido nestes dois tomos, que propõem, ao estabelecer uma nova teoria do trabalho, pensar politicamente a organização deste. 0 primeiro tomo analisa as relações entre trabalho, corpo e sexualidade e evidencia que o trabalho de produção é uma avaliação para a subjetividade como um todo, de onde podem surgir novas habilidades, isso a partir do instante que esta avaliação seja complementada por um segundo trabalho, de si sobre si, ou de transformação de si. 0 segundo tomo mostra que as incidências da organização do trabalho ultrapassam em muito as fronteiras de seu universo. No trabalho pode-se certamente aprender o respeito pelo outro, o discernimento, a solidariedade, a determinação, os princípios fundadores da democracia; pode-se ainda descobrir a instrumentalização do outro, a dissimulação, a deslealdade, o cada-um-por- si, a covardia, o mutismo. Assim, a organização do trabalho apresenta-se também como locus de prendizagem do engajamento ou da deserção dos espaços políticos... A Christophe Dejours Trabalho Vivo balho e emancipação Paralelo 15

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Page 1: Christophe Dejours Trabalho Vivo balho e emancipação · E o que mobilizadesde pronto Freud é a hipótese de uma “pulsão social”, hipótese que abandonará em seguida: “a

lienação, suicídio: sabemos, desde a

publicação de seu livro A banalização

da injustiça social, que o trabalho é

capaz de produzir o que há de pior. Ainda

assim, tem também a faculdade de fomentar

o melhor. Sua competência de propiciar a

realização de si mesmo e a emancipação, isso

deixa muita gente incrédula, e este é o

caminho empreendido nestes dois tomos,

que propõem, ao estabelecer uma nova

teoria do trabalho, pensar politicamente a

organização deste.

0 primeiro tomo analisa as relações entre

trabalho, corpo e sexualidade e evidencia que

o trabalho de produção é uma avaliação para

a subjetividade como um todo, de onde

podem surgir novas habilidades, isso a partir

do instante que esta avaliação seja

complementada por um segundo trabalho, de

si sobre si, ou de transformação de si.

0 segundo tomo mostra que as incidências da

organização do trabalho ultrapassam em

muito as fronteiras de seu universo. No

trabalho pode-se certamente aprender o

respeito pelo outro, o discernimento, a

solidariedade, a determinação, os princípios

fundadores da democracia; pode-se ainda

descobrir a instrumentalização do outro, a

dissimulação, a deslealdade, o cada-um-por-

si, a covardia, o mutismo. Assim, a

organização do trabalho apresenta-se

também como locus de prendizagem do

engajamento ou da deserção dos espaços

políticos...

A

Christophe Dejours

Trabalho Vivo balho e emancipação

Paralelo 15

Page 2: Christophe Dejours Trabalho Vivo balho e emancipação · E o que mobilizadesde pronto Freud é a hipótese de uma “pulsão social”, hipótese que abandonará em seguida: “a

Christophe Dejo urs

Notas do tradutor

a “Qualificações

tácitas”, baseadas mais

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na habilidade pessoal do

que no conhecimento

transmitido. b Neologismo formado

pela fusão de “corpo” e

“apropriação”,“corpspo

priation” no original.

Cf. nota Jdo primeiro

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capítulo do tomo I,p.

54. c Grèue du zèle

(greve do zelo) no

original. Cf. nota a do

primeiro capítulo do

tomo I, p. 56.

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A psicologia das massas sob a perspectiva da clínica do trabalho

reud publicou “Psicologia das massas e análise do Eu” em 1921.

Seu objetivo é, primeiramente, a análise dos diferentes processos

de adesão de um sujeito a uma massa — razão de figurar no próprio

título a menção “... e análise do Eu”. Depois, propõe a análise do efeito de

retorno dessà integração dè uma massa sobre o funcionamento do “aparelho

da alma” individual. Por fim, há um terceiro objetivo: produzir uma teoria da

massa ou, de forma mais limitada, uma teoria dos processos em causa na

formação de uma massa a partir dos indivíduos.

Com “O futuro de uma ilusão” (1927) e“0 mal-estar na civilização”

(1930), com “Considerações atuais sobre a guerra e a morte” (1915) e “Por

que a guerra?” (1932),“Psicologia das massas e análise do Eu” faz parte de

um conjunto de escritos referenciados sempre que, em psicanálise, se reabre

o dossiê dos progressos e das regressões da condição moral e cultural da

humanidade.

Sobressai neste conjunto que Freud era bastante reservado quanto à

possibilidade de um progresso moral e político da humanidade. Pois, se a

sexualidade é, como vimos, o viés pelo qual o ser humano pode emancipar-

se das determinações biológicas que são exercidas em seu corpo, ela também

é o que limita as possibilidades de conjurar a violência e a guerra entre os

humanos e, talvez seja o que traz de volta

o ser humano, de maneira inelutável, à embriaguez de participar à repetição

do que há de pior.

Mesmo se a cultura é suscetível de um progresso e se, em seu seio, está

sedimentado o que há de melhor no gênio humano, não é certo que o

F

Trabalho e emancipação

progresso cultural — o progresso do conhecimento, da ciência, das técnicas

e das artes — traga consigo um progresso moral e político da humanidade,

ou possa testemunhar tal progresso.

Se devemos nos consagrar à leitura deste texto de Freud é em função de

seu diagnóstico pessimista não estar assentado só na teoria do i sujeito

humano, mas na concepção que tem da sociedade. Não se pode 1 considerar Freud apenas como teórico do aparelho da alma individual.

Malgrado as críticas formuladas pelos sociólogos e etnólogos sobre os textos

ditos “sociológicos” de Freud, acusados de impregnação exces- ; siva de

psicologismo, deve-se reconhecer que Freud apresenta de fato | uma teoria

das relações entre os seres humanos e, para retomar uma expressão que já

encontramos a propósito da filosofia de Maine de Biran, uma teoria dos

“princípios” que permitem aos seres humanos o viver junto. Esta teoria sobre

o que está no princípio da vida em sociedade deve ser examinada em seus

fundamentos, pois ela está coerente com a teoria freudiana do sujeito.

Coerente, não apenas congruente episte- mologicamente, mas também

suscetível de ser ainda “necessária” à coerência da metapsxcologia como um

todo. Necessária, ao se lhe acordar, junto com a teoria da centralidade da

sexualidade, a gênese dos comportamentos humanos. Coerente e necessária,

isso significa que uma teoria social, para ser admissível, depois da

descoberta da sexualidade infantil e de suas consequências sobre o resto da

vida de todo ser humano, deveria pela lógica ser capaz de elucidar o que

implica para a sociedade,

o fato de o ser humano, antes de ser adulto,foi anteriormente uma criança..

Ninguém duvida que a sociedade e as instituições, da mesma forma que para

as línguas e as culturas, sejam produtos do ser humano. Cumpre assim a cada

teoria social oferecer do ser humano individual urna teoria que é explicitada

de forma diferente, em consonância com os pressupostos de cada autor. Ao

inverso, toda teoria do sujeito deveria poder; ;l elucidar suas consequências

sobre a teoria da sociedade.

Considerar, assim como o faço aqui, o primado do corpo erógeno para a

ideação, a inteligência e o trabalho é introduzir a sexualidade no

4 6

princípio de todas as produções humanas, por conseguinte da cultura, mas também

das instituições e da sociedade. Quais são as incidências da sexualidade e de suas

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vicissitudes sobre a formação e a evolução das sociedades, esse é um tema sobre o

qual não pode se furtar à análise, a partir da teoria psicanalítica.

Freud tem uma teoria dos princípios societários, cuja formulação está contida

em “Psicologia das massas e análise do Eu”. Examinaremos seu conteúdo de um

ponto de vista particular: esta teoria de Freud_ estaria compatível com uma

concepção da condição humana que faz referência não apenas ao primado do corpo

na ordem individual, mas à centralidade do trabalho na ordem sociológica e

política?

Esforcei-me, no primeiro tomo deste livro, para mostrar que na esfera da teoria

do sujeito a centralidade do trabalho é compatível com a centralidade da

sexualidade, sob reserva de admitir o lugar que cabe à formação do corpo subjetivo

como condição sine qua non tanto da sexualidade como do pensamento; e de

considerar, com todo o rigor de suas implicações antropológicas, a definição da

pulsão como “exigência de trabalho”.

Contudo, é de se observar que na teoria dos princípios do social, Freud, como

veremos, segue uma via que, a partir da pulsão, retém sobretudo desta última o que

sobressai ao infantil e ao amor, mas não

o que advém da exigência de trabalho imposta ao psiquismo. Esta orientação

epistêmica de Freud estaria compatível com uma teoria social que acordaria, como

estamos empenhados em propor aqui, um lugar crucial à dimensão do Arbeit no

âmbito da subjetividade e do trabalho -poiesis no domínio das relações sociais?0 texto âe Freud

Ao retomar o livro de Gustave Le Bon, Freud examina o que este autor

considera sob o título de Psicologia das multidões.1 O trabalho tem por objeto a influência exercida simultaneamente sobre o indivíduo por um grande número de pessoas

com. as quais mantém algum tipo de ligação, outras, no entanto, que lhe são completamente

estranhas. A psicologia das massas; jtrata assim do homem tomado de forma isolada enquanto

membro de! uma tribo, de um povo, de uma classe, de um Estado, de uma instituição: ou

como parte constitutiva de uma aglomeração humana que se organiza como massa em um

dado momento para um fim determinado (p. 6).2

E o que mobilizadesde pronto Freud é a hipótese de uma “pulsão social”,

hipótese que abandonará em seguida: “a ‘pulsão social’ não é primordial, não é

1 Gustave Le Bonr Psychologie des foules, Paris, Presses Universitaires de France, 2002. 2 As indicações de página entre parênteses remetem à edição de “Psychologie des masses et

analyses du moi”, in Sigmund Freud, Œuvres complètes, tomo XVI, Paris, Presses

Universitaires de France, 1991 [1921].°

Trabalho e emancipação

49

indivisível e sua origem pode ser encontrada em um círculo mais estreito que a

massa, por exemplo na família” (p. 6).4 Ele anuncia desta forma o objetivo

principal de seu trabalho: o ! que estabelece ligações entre os seres para que

formem uma massa, ; senão a pulsão social? Antes de explicitar sua análise das

características do elo, ele adianta três questões: □ O que é uma massa?

□ Mediante o que a massa adquire a capacidade de influenciar a vida da alma?

□ Em que consiste a modificação anímica imposta pela massa ao indivíduo?

Freud parte de questões sobre a massa como entidade para isolar- lhe suas

principais propriedades. A resposta a essas questões depende, com certeza,

daqueia conferida à primeira delas: o que é uma massa? Em realidade, Freud

responderá apenas muito adiante em seu texto: É provável que foram reunidas sob o termo de “massa” formações muito jdiversas que

ensejam uma distinção. As asserções de Sighele, Le Bon e outros se reportam às massas de

um gênero efêmero (p. 21),'

conjunto este que Freud designará alhures sob o nome de “massa natural”.

Mas há outras espécies de massas, “massas ou associações : estáveis nas

quais os homens passam toda a vida e que tomam corpo nas instituições da

sociedade” (p. 22).d

Freud toma assim o partido de estender o campo de sua psicologia social

aos limites das instituições. Seti campo de pesquisa cobre aquele

tradicionalmente explorado pela sociologia. Ao conservar o termo de massa,

ele fala neste caso de “massas organizadas” (em contraposição às “massas

não organizadas ou naturais”).

Os primeiros capítulos são consagrados ao estudo das propriedades da

“massa não organizada”. O modelo fenomenológico dessa última é tomado

emprestado a Le Bon. A multidão psicológica é um ser: provisório. No

indivíduo integrado à massa, a vida do espírito se esvai em benefício de uma

“alma coletiva”. Aparecem novas propriedades do funcionamento individual

que despontaria da formação de um; sentimento de potência invencível:

desaparece o sentimento da responsabilidade (que Freud atribui à suspensão

dos recalques, deixando manifestar-se tudo o que há de ruim na alma humana

e que está contido no inconsciente); fenômeno de contágio mental (indo até

ao sacrifício do interesse pessoal em prol do interesse do conjunto) que

poderia vincular-se ao fenômeno da ordem hipnótica; sugestionabili- dade e

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perda de consciência de seus atos, descida de vários degraus na escala da

civilização (retorno ao instinto, à barbárie, espontaneidade, violência,

ferocidade, entusiasmos e heroísmos dos seres primitivos); recurso ao

pensamento por imagens; simplismo e exageros dos sentimentos alcançando

extremos.

Desta lista, reteremos para a discussão sobre a emancipação, segundo Le

Bon e Freud, que a formação de uma massa não organizada leva a um

desgaste ou a uma regressão do pensamento racional — ou conceituai — para

um pensamento por imagens (p. 14) e ao emprego mágico das palavras (p.l7).e

Em contrapartida, na massa organizada, os indivíduos preservam suas

qualidades primeiras (intelectuais e morais) e, segundo McDou- gall citado por

Freud, há lugar para “tradições, costumes e disposições, em particular os que

dizem respeito à relação dos membros uns com os outros” (p. 25)/E Freud, após

estabelecer a hipótese segundo a qual nas massas (organizadas ou não) são

“relações de amor (ou ligações de sentimentos) que constituem [...] a essência da

alma da massa”, ataca o estudo da natureza da ligação nas “massas altamen— te

organizadas, duradouras, artificiais: a Igreja e as forças armadas”. Mesmo se ele

propõe o recurso ao conceito de Eros para substituir a noção de organização de

McDougall, isso não erradica as hesitações: as massas altamente organizadas —

artificiais — estariam protegidas, explica, da dissociação por constrangimentos

externos (perseguições ou punições em caso de tentativa de debandar da massa).

Em outro trecho ele diz e repete que o que impede às ligações de associação de

se romperem é a ligação libidinal em relação ao líder que asseguraria a coesão da

massa.

A sequência do texto abandona a contribuição das punições e das represálias

para a manutenção da unidade da massa,para centrar a análise à ligação libidinal,

como cimento desta unidade.

Diferentes formas de ligações libidinais são então observadas:

□ As ligações dessexualizadas ou inibidas quanto ao objetivo, que relevam do

amor.

□ A identificação (que é para Freud a oportunidade de introduzir uma

discussão sobre o ideal do Eu, a consciência moral e o narcisismo

originário).

□ O estado amoroso com, em seu centro, uma idealização do objeto do amor,

Trabalho e emancipação

51

idealização que seria aqui deslocada sobre o líder (nas massas não

organizadas, particularmente) e que explicaria, via a fascinação, o

surgimento de uma sugestionabílidade comparável àquela que se observa na

hipnose.

□ A ativação de um resto filogenético do homem primordial que explica sua

predisposição para viver em hordas.

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Quando, por fim, a partir dessas análises sobre as relações entre a |massa e

o Eu e sobre a natureza da ligação produtora deste fenômenos das massas,

Freud propõe um desenvolvimento teórico sobre a ; formação do Eu, considera

as diferentes formas de assimilação e de emancipação do Eu em relação à

massa. Cada indivíduo — diz ele — [...] participa da alma de diferentes massas, aquelas de sua

raça, da classe, da comunidade de credo, de pertencimento , a um Estado etc., e pode

ademais elevar-se até uma parcela de autonomia ; e de originalidade [a emancipação?] .*

Significa dizer que, para Freud, se as pulsões sexuais inibidas quanto à

meta é o que permite a perenidade de uma relação amorosa, tanto como a

estabilidade das ligações no interior de uma massa, ele também tem a ideia,

menos explícita, que as ligações assim constituídas são tão fortes que é bem

difícil um indivíduo livrar-se delas. Ao final do texto, Freud reafirma que a

formação de massas repousa nas pulsões sexuais inibidas quanto à meta,

diferentemente das pul- ! sões sexuais (não inibidas) que seriam, essas,

antiagregadoras, e mesmo : antissociais. Retoma-se assim aqui o dualismo

ligação - desagregação’ transposto no dualismo Eros-“Sexual”, que não apenas

está no cora- cão da sexualidade, mas que teria desempenho similar tanto na

esfera do indivíduo como no domínio da massa, tanto em nível de massa

natural como artificial.

Neste texto pois, Freud propõe uma teoria dos princípios dos rea-

grupamentos humanos. E, no curso da demonstração de sua tese, ele é levado a

fazer alguns desenvolvimentos sobre a metapsicologia individual: o Eu, o ideal

do Eu, a identificação, a idealização, o estado

i amoroso, são objeto de análise cuja validade não depende diretamente da tese

sociológica.

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Nova apreciação sobre

os dois tipos de massas

Voltemos à “tese sociológica”. Do ponto de vista que mais nos interessa,

este texto é importante porque Freud propõe por seu intermédio uma

discussão sobre dois tipos de massas ou de reagrupa- mentos humanos que ele

distingue com clareza. Ao sair das massas no sentido que lhes foi atribuído

por Le Bon — as massas naturais, primárias ou não organizadas —, ele é

levado a realizar uma diferenciação essencial entre as massas artificiais ou

organizadas que são, por exemplo, a Igreja e as forças armadas e que indicam,

ademais, um movimento em direção às formas sociais muito organizadas que

são as instituições e o Estado. Nesses dois tipos de massas, ele aponta uma

diferença fenomenológica essencial: as massas naturais são instáveis e; de

curta duração; as massas artificiais podem, ao contrário, conhecer uma longa

duração.

Mas se Freud estabelece claramente a distinção entre duas entidades bem

diferentes, ele trata da ligação entre os humanos nos dois casos, como se

fossem de mesma natureza. A partir do momento em que Freud desenvolve

sua teoria da ligação, que os pós-freudianos retomam de forma incansável sob

o termo genérico de “ligação social”, tudo ocorre como se ele não estivesse

interessado na distinção que antes estabelecera entre os dos tipos de

“aglomerações humanas”. Freud certamente está aqui animado pela ambição

de produzir uma teoria dos princípios do reagrupamento humano, ou seja, uma

teoria universal que se poderia encontrar no processo de formação de todas as

formas de massas ou de associações humanas. Ele formula a questão das

relações entre os dois tipos de massas de forma ateórica, recorrendo a uma

metáfora: entre massas com características efêmeras, segundo os dados de

Sighele, Le Bon e outros (p. 21), e massas ou associações estáveis (p. 22), a

articulação é anunciada da forma que segue: “As massas do primeiro gênero

são de alguma maneira sobrepostas a essas últimas como as ondas curtas,

porém altas, sobre enormes vagalhões” (p. 22).h

Ora, o problema que nos preocupa aqui é precisamente o das relações

entre esses dois tipos de massas ou de associações que não funcionam da

mesma forma, tanto em nível das massas elas mesmas, como em nível da

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psicologia individual de cada um de seus membros. A demarcação é nítida

desde o momento em que Freud entra no passo marcado por Le Bon. O que

está descrito sobre a massa natural ou não organizada é, em suma, um quadro

bastante tenebroso do que pode ser reconhecido como figuras cardiais da

barbárie, ou seja, como formas constituintes em oposição à cultura, sobre uma

base explícita que não é nada além do fracasso do pensamento, a abolição do

que Freud designa alhures como Kulturarbeit (trabalho de cultura). Quando os

indivíduos se integram em uma massa natu- \ ral, as mudanças de seu

funcionamento psíquico são traduzidos pelas características que seguem:

□ eliminação da vida do espírito;

□ sentimento de potência invencível;

□ desaparecimento do sentimento de responsabilidade;

□ manifestação de tudo o que de ruim abriga a alma humana;

□ contágio mental;

□ sugestionabilidade;

□ queda de muitos níveis na escala da civilização;

□ volta ao instinto, à barbárie, à espontaneidade, à violência, à ferocidade,

aos entusiasmos e aos heroísmos dos seres primitivos;

□ recurso ao pensamento por imagem;

□ queda do rendimento intelectual;

□ simplificação e exagero dos sentimento, atingindo extremos;

□ disposição em estado de latência das características habituais do

pensamento e da personalidade em funcionamento como autômato, uma

vez que sua vontade tornou-se impotente para o comando.

Em detrimento desta lista, Freud pontua, seguindo os passos de Le Bon:

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[...] as massas são Igualmente capazes, sob influência da sugestão, de elevadas demonstrações

de renúncia, desinteresse, devotamento a um ideal. Enquanto para o indivíduo isolado a

vantagem pessoal talvez seja

o único móvel, para as massas predomina muito raramente. Pode-se falar ; de uma

moralização do indivíduo pela massa. Enquanto o rendimento intelectual da massa situa-se

sempre muito abaixo daquele do indivíduo, seu comportamento ético pode tanto situar-se bem

acima como descer muito abaixo desse (pp. 16-17).'

Algumas páginas antes, Freud, citando Le Bom, escreveu: As propriedades aparentemente novas [do indivíduo] são justamente as manifestações desse

inconsciente, no qual está contido, em predisposição, tudo de ruim da alma humana. [E prossegue:] a

defecção da consciência 1 ‘ moral ou do sentimento de responsabilidade não oferece nenhuma difi-

culdade à nossa compreensão (p. 10)/

Não apenas Freud deixa de comentar essa contradição como, acerca da

moralização do indivíduo pela massa, não será mais questão no texto, assim

como do desempenho sob influência da sugestão. Contudo, ele precisa na

sequência: “Já há muito afirmamos que o núcleo do que se denomina

consciência moral é ‘angústia social’”. Esse ponto será retomado e confirmado

posteriormente em “O mal- -estar na civilização”. Eis portanto que a sociedade é

a um só tempo: ; responsável pela “angústia social”, que é o núcleo da

consciência ; moral, e responsável por seu “desaparecimento”. Quais são então

as | condições que agem sobre a sociedade em um sentido como no ou- \tro?

Esta questão Freud não trata e sequer a menciona. Qualquer que seja o

tratamento reservado ao poder moralizador da massa, parece — tal como o

admitem os principais exegetas do texto — que Freud não dá grande crédito

moral às obras humanas, sequer às maiores entre essas. E segundo a opinião de

autores como Laurence Kahn, é razoável seguir o caminho proposto por Freud

nessa afirmação.3

3 Laurence Kahnr Faêre parler le destin, Paris, Klincksieck, 2005.

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Observações sobre a emancipação

Assim seja! Mas, assim mesmo! Que o progresso do gênero humano seja

mera ilusão, há argumentos suficientes em favor dessa tese para que se a

recuse. Mas teria sido uma ilusão, a ilusão de emancipa-; ção, sem dúvida

uma preocupação permanente entre os pensadores.. Emancipação e progresso

não são sinônimos. A ideia de emancipação releva na essência a consciência

individual, e assim cabe à psicanálise elucidar-lhe os móVèis "subjetivos;

bem como à psicologia social, ou melhor, à sociologia, precisar-lhe as

condições capazes de autorizar ou arruinar o esforço de emancipação

individual.

A emancipação, a partir de tal perspectiva, conota um esforço pessoal e

repousa antes sobre o poder de pensar, sem prejulgar o poder do indivíduo

em atribuir o comportamento ou a ação sobre o pensamento, em razão

justamente desta outra limitação, bem diferente do obstáculo sociopolítico

que constitui a resistência do inconsciente.

A emancipação concebida como esforço pessoal pode requerer uma ,

passagem pela junção de muitos esforços individuais, o que nós trataremos

adiante sob o termo de cooperação. Que a articulação comum dos esforços de

emancipação não seja vã é o que sugere o conceito platônico de comunidade

de iguais, retomada por Montaigne e La Boétie, e mesmo por Hannah

Arendt. Mas é necessário admitir que, ainda sob a forma de cooperação —

sobre a qual também falaremos adiante —, a convergência dos esforços de

emancipação se chocam ; no registro axiológico com limites — que

detalharemos na sequência I

— em que se condensam as razões de duvidar de um progresso da hu-

manidade. Nada impede! Os esforços de emancipação merecem nossa

atenção porque expressam com frequência uma exigência bastante forte para

ser capaz de organizar as formas de vida e de fruição que rompem com o

risco de alienação pela massa.

Para voltar ao tema dos diferentes tipos de massas, diria que a me-

tamorfose freudiana das marolas e dos vagalhões para o ajuntamento de

massas não organizadas e de massas organizadas pode bem eximir um dos

problemas maiores da filosofia política e da teoria social, quando não o seu

problema central: o da oposição entre barbárie e civilização. O que está no

Christophe Dejo urs

56

princípio da “organização” de uma massa artificial constitui o objeto mesmo

da sociologia ou mais exatamente da teoria social.

Freud não discute com a sociologia. Nem neste texto essencial ou em “O

mal-estar na civilização”. Além de Le Bon, ele cita em “Psicologia das massas

e análise do Eu” alguns sociólogos: Sighele, McDougall,Trotter,Tarde,

Brugeilles, Kaskovic. Nenhuma palavra sobre Dilthey, Durkheím, Simmel,

Weber, Dewey, Mauss, contemporâneos seus, ou aos anteriores, Montesquieu,

Comte, Marx,Tocqueville, Saint Simon ou Spencer.

Da obra desses autores sobressaem, mais do que a fundação das sociedades

— o que assegura a associação entre os humanos para compor uma “massa

organizada” —, os acordos, as normas, as regras e os valores. Toda sociologia

assenta-se em uma teoria da ética. Mesmo se, tal como insiste Paul Ladrière,

distingue-se entre “concepção imperativa; da moral [que] prioriza o justo

sobre o bem e a concepção atrativa [que] prioriza o bem sobre o justo”, e caso

se admita “no primeiro,

o problema é o da exatidão da norma, no segundo, o problema é o do que

seria a vida boa, o objetivo de uma vida realizada”.4 A segunda das duas

concepções — ditas concepções atrativas —,não poderia ser conduzida ao

princípio dos reagrupamentos humanos que Freud propõe: libido, amor ou

Eros. Essas noções freudianas (libido e Eros) não podem ser consideradas

como propulsores psicológicos de toda função social, ou seja, como o

“princípio dos princípios”. Observaremos adiante que a clínica do trabalho

pleiteia antes pela disjunção entre os'móveis psíquicos e os móveis éticos do

viver junto.

Assim, Freud dispensa a teoria social e dispensa apenas uma atenção casual

ao trabalho. Escreve: A experiência mostrou que, em casos de trabalho conjunto, são instauradas comumente

ligações libidinais entre os camaradas, que prolongam e fixam a relação entre eles para além do

que é meramente vantajoso [...]. A libido apoia-se na satisfação das grande^ necessidades vitais

e escolhe como seus primeiros objetos as pessoas que nela participam. No indivíduo, assim

como na evolução da humanidade como um todo, é apenas o amor que atua como fator de

cultura, no sentido de uma reviravolta do egoísmo em altruísmo (p. 41) .fe

4 Paul Ladrière, verbete “Sociologie”, in Monique Canto Sperber (dir), Dictionnaire d’éthique

et de philosophie morale, Paris, Presses Universitaires de France , 2004, tomo 2, p. 1.813.

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Mesmo se de forma marginal, este excerto mostra bem a direção que toma o

pensamento de Freud sobre a natureza das ligações que são estabelecidas entre os

humanos, por ocasião do trabalho. Será necessário confrontar essa indicação

freudiana com a clínica do trabalho stricto sensu, pois ela atesta um postulado que

para nós ocupa um lugar essencial: a cooperação-

A decomposição da

“ligação social”

Se concedermos à teoria social dos sociólogos mais crédito do que o fez

Freud, somos levados a retomar a questão — mesmo se, de maneira inversa à

empreendida por Freud — sobre o que desagrega as ligações que associam uma

massa organizada ou artificial para dar à luz uma “massa não organizada” ou

“natural”.

Enquanto Freud procura estabelecer uma teoria do que proporciona a ligação,

de nosso lado procuramos compreender o que dissolve essas ligações entre os

componentes de uma massa “organizada”, ou seja, em uma massa que, para

apresentar certa estabilidade pressupõe — por parte dos indivíduos associados —

um sentido moral que não se resume à “angústia social” (dito de outra forma, o

temor de represálias, de “perseguições ou de punições severas”) contra o in-

divíduo que tentaria afastar-se da massa, mas passa pela mobilização de

competências morais específicas, as mesmas evocadas sem sequer explicitá-las

Freud: A alma da massa (não organizada) também é capaz de criações geniais do I espírito, como

inicialmente a própria língua demonstra, e ainda o canto popular, o folclore, entre outros

(p. 21).1

Ora, essas produções citadas por Freud nada possuem de natural e não se

poderia imputar seus méritos à alma da massa não organizada. Elas

procedem de fato de uma atividade normativa extremamente complexa.

Basta apenas o exame da evolução de uma língua e se observará o quanto

encerra de lutas para ija_ dominação simbólica, de compromissos, de

arbitragens e de acordos normativos sem a estabilização das quais nenhuma

intercompreensão seria possível ante um processo de babelísmo

generalizado.

Christophe Dejo urs

58

Para se ter a exata noção da formação de uma massa não organizada (a

partir de uma massa organizada), talvez seja necessário procurar inicialmente

do lado das forças suscetíveis de desestruturação das ligações de civilidade

que associavam, até então, os indivíduos em uma massa artificial, apoiando-

nos em uma teoria do sujeito, do trabalho e das ligações que os humanos

estabelecem por ocasião do trabalho.

O trabalho ordinário é a oportunidade de formação, entre os membros de

um coletivo, dos elos que não são apenas de regulação quanto à eficiência do

trabalho, mas presidem também à estruturação do viver junto e da

comunicação orientada rumo ao entendimento.

Contudo, mesmo em uma conjuntura favorável à cooperação e ao agir

racional em relação às normas e aos valores, não é sempre possível

I evitar que se desenvolvam, de forma simultânea, processos coletivos | muito

mais ambíguos no plano axiológico. É o caso específico da

i situação em que o trabalho implica riscos para a integridade física: riscos de

acidente, por exemplo, ou riscos de intoxicação profissional, de

insalubridade. Pois essa dimensão do trabalho — o risco — introduz na

situação de trabalho uma dimensão específica: o medo.

O medo gera formas qualificadas de “cooperação defensiva” ou ainda de

“estratégias coletivas de defesa”, em alguns casos definidas como “ideologia

defensiva”. O medo no trabalho catalisa a formação j de tipos de coletivo que

não são os mesmos que aqueles fundados! sobre a referência de uma obra

comum.

É importante retrocedermos brevemente sobre a clínica das estratégias de

defesa para mostrar que toda atividade normativa capaz de produzir acordos e

ligações entre os membros de um coletivo, mesmo para o trabalho, não

desemboca sempre em resultados neutros, sob uma perspectiva ética.

O caso das situações de trabalho com risco

O trabalho, às vezes, implica enfrentar constrangimentos deletérios para a

saúde física e mental. O marceneiro expõe-se às inalações de pó de serragem,

correndo riscos de pneumopatias, ao barulho das máquinas que levam à surdez; o

piloto de caça corre o risco de acidentes;

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Trabalho e emancipação

59

o comediante de humilhação pelo público; o veterinário pode ser constrangido a

matar;5 a enfermeira a contrair uma doença letal;6 o delegado sindical aos efeitos

deletérios do sofrimento dos trabalhadores;7 a acompanhante de pessoas

portadoras de necessidades especiais a uma organização do trabalho pouco

edificante;8 o psicólogo a constrangimentos antideontológicos;9 o policial a

espetáculos de horror;10

as prostitutas à violência de seus clientes;11 pessoas pertencentes a minorias

ao racismo;12 os pecuaristas e demais criadores às condições infames

infligidas aos animais criados para o abate...13

Prudência e prevenção pressupõem habilidade e engenhosidade. Para

tanto, os riscos não são, em geral, administrados em sua integra- lidade.

Alguns nem mesmo podem sê-lo, pois a situação de trabalho implica, de

facto, a inalação de vapores tóxicos, por exemplo, ou a vibrações deletérias.

Esses malefícios irredutíveis e inerentes à tarefa, além dos efeitos diretos

produzidos sobre o corpo, apresentam incidências indiretas sobre o

funcionamento psíquico. O medo do acidente, da mutilação ou da doença

5 Lise Gaignard 8c Alain Charon,“Gestion de crise et traumatisme: Les effets collatéraux de la

‘vache folle’. De l’angoisse singulière à l’embarras collectif”, Travailler,n. 14,2005.

6 Marie-Claire Carpentier-Roy, Corps et âme (psychopathologie du travail infirmier), Montreal,

Liber, 1991.

7 Marie-Claire Carpentier-Roy, Micheline Saint-Jean, Louise Saint-Arnaud 8c Marc-André

Gilbert,“Le travail du conseiller syndical: Ne pas mourir mais mourir presque’7, in Marie-Claire

Carpentier-Roy 8c MichelVezina, Le travail et ses malentendus,Toulouse, Octarès, 2000.

8 Marie Grenier-Pezé, “Chroniques de la violence ordinaire. Organisation psychique individuelle,

organisation du travail, organisation du système de soins”, Travailler, n. 4, 2000; Isabelle Gernet

8c Florence Chekroun, “Travail et genèse de la violence: A propos des soins aux personnes

âgées”, Travailler, n. 20,2008.

9 Nicole Roelens,“Intoxication productiviste et déshumanisation des rapports humains. Une

psychologue du travail analyse les causes de son épuisement professionnel”, Travailler, n.

4,2000.

10 Jean-Michel Chaumont, “Vulnérabilité”, in Christophe Dejours (dir), Conjurer la violence.

Travail, violence et santé, Paris, Payot, 2007.

11 Jean-Michel Chaumont,“Stratégie de défense et prostitution: Un enjeu personnel et f politique”,

Travailler, n. 10,2003. 12 Valérie Ganem,“Un processus d’assignation psychologique peut en cacher un autre.

À propos de la couleur de peau en Guadeloupe”, Travailler, n. 16,2006. 13 Jocelyne Porcher, Eleveurs et animaux, réinventer le lien, Paris, Presses Universitaires de

France - Le Monde, 2002 ;Jocelyne Porcher,La mort n’est pas notre métier, La Tour

d’Aigues, L’Aube, 2003.

Christophe Dejo urs

60

profissional, o receio de não estar à altura do exercício da tarefa ou das

responsabilidades, a exasperação diante do absurdo de tarefas repetitivas

suscitam conflitos intrapsíqui- cos que demandam, por sua vez, a construção

e implementação de estratégias de defesa que não podem ser

comprovadamente ajustadas às necessidades específicas do impacto

psíquico que determina cada um dos prejuízos em causa. A investigação

clínica dessas estratégias de' defesa implementadas caso a caso para conter o

sofrimento psíquico no trabalho leva a uma discussão metapsicológica

embaraçosa em muitos aspectos, uma vez que sugere:

□ tendencialmente, essas defesas atravancam os poderes do pensamento;

□ essas defesas desempenham um papel importante como propulsores

subjetivos da servidão e da dominação;

□ essas defesas podem contribuir de forma significativa à formação da

violência coletiva e até da violência de massa.

Na medida em que se trabalha, não se trata apenas de produzir, mas

também de proteger-se contra os riscos do trabalho. As estratégias de defesa

que se deve construir podem avariar em profundidade ; a mobilização da

inteligência individual e entrar em concorrência com a inteligência coletiva.

Para maior clareza, interessa uma lembrança sumária dos principais dados

clínicos relativos às estratégias de defesa contra o sofrimento no trabalho.

Estratégias individuais de defesa

Diante do trabalho repetitivo sob o constrangimento do tempo, como em

uma linha de montagem, os trabalhadores desenvolvem com frequência

estratégias de defesa destinadas a lutar contra o aborrecimento, em primeiro

lugar, contra a angústia de se sentir transformado em um verdadeiro robô,

em seguida (ou seja, de sentir sua capacidade de pensar não apenas

congelada, mas progressivamente deteriorada), contra o medo de não

conseguir segurar a cadência da linha. A injunção em não pensar, em

comportar-se como executor disciplinado não é tarefa fácil de ser respeitada.

Os estudos clínicos mostram que o pensamento espontâneo pode, por si

mesmo, ser fonte de sofrimento suplementar. Pensar nessas circunstância

não é pensar

o trabalho, pois os espaços abertos à engenhosidade e à habilidade são

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Trabalho e emancipação

demasiado restritos. Esses espaços são de antemão investidos pela

preocupação de procurar os caminhos e os modos operatórios que permitem

a economia de esforços, de uma parte, de conjurar o cansaço e as dores, de

outra. E de imediato não haverá nada mais a ganhar sobre os espaços abertos

para os remanejamentos rapidamente esgo-

i tados. Pensar consiste então voltar ou refletir sobre a sua própria con-

i dição. O que o leva a tomar a dolorosa consciência de sua condição de

“animal laborans” (para aqui retomar a expressão de Hannah Arendt em A

condição humana). Pensar a ameaça de ser despossuído de si pelo trabalho

repetitivo é uma fonte suplementar de sofrimento. Com ou sem a injunção

organizacional de não pensar, aquele ou aquela que se esforça em assumir a

situação de trabalho, no longo prazo é tomado pelo desejo de não mais

pensar... sente a necessidade de pôr um basta

6l

j ao sofrimento e à angústia que implica a consciência clara da situação

vivenciada.

Mas não mais pensar não é coisa fácil. Para espantar um pensa- ; mento,

deve-se eventualmente procurar desviá-lo sobre um objeto substitutivo

mobilizador de investimento afetivo. Na situação aqui em perspectiva, essa

estratégia é obliqua, e mesmo impossível. Apenas os mais dotados entre os

operários ou empregados, quando ainda jovens, alcançam o objetivo:

evadem-se pelo devaneio. Os outros não conse- >guem porque a atividade

repetitiva sob o constrangimento do tempo bloqueia de fato o livre curso do

pensamento que busca livrar-se da situação. Gostaria de deixar levar-se pela

imaginação, mas é alcançado pela tarefa, de forma inexorável.

Outra estratégia pode, como último recurso, ser experimentada. Ela

consiste em apoiar sobre a atividade repetitiva prescrita e acelerada o maior

desempenho possível. É então necessário concentrar toda a sua atenção tão

só na cadência. Esta estratégia toma geralmente a forma de autoaceleração.

Elevado a um ritmo desenfreado, o pensamento simplifica-se e aos poucos se

embota. Após um determinado tempo de ativismo exacerbado, é possível

reduzir a cadência, a em- botadura do pensamento persiste. E uma espécie de

hipoestesia ou mesmo de anestesia plena obtida pelo viés de uma

hiperatividade sensório-motora.

Muitos operários e operárias encontram, cada qual por conta própria, a

via de autoaceleração como estratégia de defesa que leva à mais completa

Trabalho e emancipação

63

confusão do pensamento e com isso permite sofrer menos com esta sua

condição de animal laborans.

Essa estratégia de defesa pela autoaceleração que acalma a angústia

esgota as forças, essa estratégia de defesa traz consequências importan- ; tes

na economia psíquica como um todo. Em razão do esforço físico j que

demanda, ela se torna preciosa. Fora do trabalho é melhor evitar ; muita

distância em relação ao que implica a camisa de força psíquica, tão

duramente adquirida. Pois, à experimentar demais o prazer de pensar

livremente e de se encontrar a si, seria necessário, ao retornar à linha de

montagem, recomeçar o ciclo infernal da autoaceleração ne-

S!\ cessário para atingir o embrutecimento adaptativo. O melhor continua sendo

manter a defesa fora do trabalho e não mais soltar as rédeas da imaginação. O

lazer, caso exista, será destinado a atividades que esgotam, de maneira a não

deixar lugar, em caso de calmaria, senão à vontade de dormir.

Pudemos mostrar em outra publicação que a sobrecarga de trabalho

imposta a alguns executivos, em particular no setor de comércio, chegava ao

mesmo resultado psíquico que nos operários: a embota- dura do pensamento e

da afetividade pode ser obtida pelo ativismo, mesmo em tarefas

essencialmente cognitivas e relacionais.

Este funcionamento psíquico, no qual o poder de ideação está mais ou

menos gravemente ancilosado pela estratégia de defesa, tem igual- mente

consequência nos relacionamentos do espaço privado. A falta , ;de

flexibilidade psíquica é afetiva, a intolerância, e a inaptidão para a fantasia

podem pesar na economia das relações amorosas e eróticas com incidências

sérias sobre o desenvolvimento psicoafetivo das

i crianças (devido à pobreza da comunicação que estas esperam estabe-

lecer com o adulto que, de seu lado, se esforça em não se deixar levar : pela

criança ao afastamento de seus comportamentos defensivos).

É possível retomar metapsicologicamente os elementos constitutivos desta

clínica e mostrar que a estratégia de defesa pela autoace-'; leração funciona

como uma “repressão” (Unterdrückung) que convémj distinguir do recalque

(Verdrängung). Pois se a repressão pulsional passai pela paralisia do

pensamento, o recalque, ao contrário, é a contrapar-' tida de uma atividade do

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Trabalho e emancipação

64

pensamento muito intensa.14

Sem dúvida é importante, para avaliar as consequências políticas da

sobrecarga de trabalho e do que Hannah Arendt descreve sob a denominação

de atarefamento, observar que a condição de animal laborans não diz respeito

apenas aos trabalhadores submetidos ao trabalho repetitivo sob o

constrangimento do tempo, mas atinge,

14 Cf. a teoria da tradutibilídade do recalque em Laplanche: “FondementsiVers la théorie de la

séduction généralisée”, in Jean Laplanche, Nouveaux fondements pour la psychanalyse,

Paris, Presses Universitaires de France, 1987.

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Christophe Dejours

progressivamente, numerosos outros trabalhadores, mesmo em atividade nos

setores serviço e gestão, e pode incidir no seu entorno social imediato, em

especial nas crianças. Esta é a razão da tendência geral ã intensificação do

trabalho sobre a qual Hannah Arendt foca a análise na condição do homem

moderno, para quem, devido ao atarefamento, ao frenesi e ao ativismo no

trabalho, os propulsores mesmos do pensamento político e da ação poderiam

sofrer um processo progressivo de involução.

Estratégias coletivas de defesa

As estratégias coletivas de defesa construídas em uma comunidade de

trabalho reúnem os esforços de todos para a proteção dos efeitos

desestabilizadores, para cada um, do confronto com os riscos que são, em

uma primeira abordagem, os mesmos para todos os membros do coletivo de

trabalho. É o caso para a indústria da construção civil e das grandes obras de

engenharia, para as forças armadas, para as indústrias que envolvem grandes

riscos (química, nuclear, tratamento de resíduos industriais, pesca etc.).

Essas estratégias associam, de modo geral, condutas paradoxais sobre como

assumir os riscos, uma indisciplina em relação às medidas de prevenção e de

segurança, a não manifestação pública de expressão do medo ao sofrimento e

a obrigação de participar de demonstrações ostentatórias de desprezo e

enfrenta- mento quanto ao risco, bem como exibição dos sinais exteriores da

coragem, da resistência ao sofrimento, da força, da invulnerabilidade e da

virilidade.

A estrutura de uma estratégia coletiva de defesa é complexa e exige, para

sua coerência interna, a participação de todos. A análise de cada um de seus

elementos constitutivos mostra que esses compõem vetores constituídos pela

vontade de reverter simbolicamente a posição subjetiva em relação ao risco.

De vítima impotente e passiva exposta ao risco, a posição subjetiva é

revertida pelas atitudes de provação, de provocação e de escárnio pelas quais

se afirma o controle total da situação, com o recurso suplementar de uma

eufemização coletiva da percepção do risco.

6 4

Afinal, a estratégia coletiva de defesa parece colocar em operação uma negação

concertada da coletividade sobre a percepção do risco, um meio eficiente de tornar

possível não pensar nos riscos durante uma atividade perigosa. Pode-se mostrar que

sem essa negação de percepção seria difícil, até mesmo impossível, prosseguir na

Christophe Dejo urs

66

atividade e cumprir a tarefa.

Deve-se admitir ainda que com as estratégias coletivas de defesa contra o medo, tal

como em relação às estratégias individuais de defesa contra a monotonia e a

sobrecarga de tarefas, a relação com o trabalho joga contra o pensamento: fazer de

uma maneira tal que não se pense no que funda uma ameaça para a coesão psíquica. E

realmente o que constitui a espinha dorsal de todas as defesas (negação de percepção

da realidade).

De um lado, é necessário convir sobre a utilidade, o valor “adapta- tivo”, mas de

outro importa observar que a negação dos afunilamentos da capacidade de pensar

apresentam lá seus inconvenientes. Não apenas porque acarretam uma redução da

subjetividade, mas porque ainda engendram a famosa “resistência à mudança”.

Difíceis de serem operacionalizadas, dispendiosas em esforço e em energia, quando

são instaladas e que se mostram eficazes, as defesas devem ser conservadas, mantidas

e protegidas. Assim, as estratégias de defesa participam da perpetuação das situações

sobre as quais, justamente, elas têm por princípio combater os efeitos psíquicos

deletérios.

Os constrangimentos organizacionais patogênicos não decorrem da fatalidade. São

determinados pelas relações de dominação, das quais não podem ser considerados

apenas como á consequência, são ainda o seu instrumento: pois é também pelo viés da

organização do trabalho que as relações sociais se estabelecem.

Ao se considerar esses dados sociológicos sobre a divisão social do trabalho,

importa reconhecer que as estratégias coletivas e individuais de defesa destinadas, em

primeira instância, a proteger a saúde mental, constituem, em segunda instância,

poderosos móveis para a servidão voluntária e para a reprodução da dominação. As ideologias defensivas

Quando as situações axiogênicas agravam-se, quando a ameaça começa a

progredir — sob o efeito, por exemplo, de um endurecimento dos métodos de

gestão ou de uma nova administração no comando na empresa — as defesas

podem revelar-se insuficientes. A ameaça de í dispensa, por exemplo, cria entre

os trabalhadores relações de concor- rência com vistas a fugir da ameaça. A

divulgação de novos contingen- ciamentos orçamentários impõe dificuldades

suplementares na organização concreta do trabalho e leva os diferentes serviços a

conflitos de interesse e a hostilidades. Dessa forma, a ameaça traduz-se, mais

cedo j ou mais tarde, pela perda de confiança e de lealdade, pela desconfiança j

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Trabalho e emancipação

67

e,por fim,pela desestruturação das solidariedades. O coletivo de defesa í corre o

risco de ser ameaçado em sua coesão por essa mesma desconfiança que faz com

que cada um seja mais frágil frente a luta contra o medo. É a partir dessas

condições que se inicia, com trequência, em um clima de grande tensão, um

recurso a uma estratégia última, ás vezes desesperada: tentar salvar a qualquer

preço o coletivo, mesmo se necessário for empreender uma guerra santa contra o

inimigo comum, o que pressupõe proceder à designação do dito inimigo como

responsável pela crise. É então possível que se desenvolvam processos que

conduzam ao estigma de um alvo lançado à desforra coletiva. Sob o império do

medo produzido pela intensificação da ameaça, os que hesitam (aqueles que não

exibem de forma clara os sinais exteriores de adesão às estratégias de defesa

coletiva), tornam-se alvos fáceis, aívos preferenciais. Neste estágio, custe o que

custar, as defesas devem ser protegidas. E em suma necessário defender as

defesas.

A partir desta etapa, quando a defesa passa a ser construída como um fim em

si, torna-se iminente o risco de partir à deriva. A coesão! do coletivo se reforça

sob um regime de denúncias contra o inimigo comum. A violência da exclusão,

das perseguições, do linchamento j já não está muito distante. A radicalização

das posturas defensivas demanda o surgimento de líderes e de bons oradores

capazes de propor palavras de ordem sobre como operar e difundir o

“pensamento de

empréstimo” destinado ao controle do medo, bem como contrapor- se à

defecção do pensamento diante do medo. Não se fala mais então em

estratégias de defesa, mas em ideologias defensivas para qualificar ; aqui a

derrocada do pensamento sob o império do medo. Exemplos significativos

foram objeto de publicações, nestes últimos anos, em psícodinâmica e em

psicopatologia do trabalho.15

Aqui estamos, via as ideologias defensivas, no limiar do que, reto- mando

Gustave Le Bon, Freud descreve a propósito da agregação doUr ' indivíduo em

massa.

A passagem progressiva do medo às estratégias coletivas de defesa e às

15 Cf. as “ideologia defensivas do realismo econômico” no pessoal de direção nas novas

formas de gestão e de empreendedorismo in Christophe Dejours, Souffrance en France,

coleção “L’histoire immédiate”, Paris, Seuil, 1998.m

Christophe Dejo urs

68

ideologias defensivas constitui uma clínica que abre o acesso in statu j ,, , nascendi

ao processo em causa na formação dos grupos ou das “massas ! não organizadas”.

Embora no presente caso, este processo repouse em seu princípio não

como o sustenta Freud sobre a formação de ligações operadas , pelo amor ou

a libido, mas ao contrário, sobre a desestruturação das ligações de

cooperação preexistentes, sob o império do medo.

Formação de uma “massa não organizada”

O que sugere a clínica do trabalho é que, no início do processo de

mutação da massa organizada em massa não organizada, há antes de\

qualquer outro propulsor o medo. O medo catalisa a formação de um itipo de

ligações reacionais completamente novas: a coesão coletiva • contra o

inimigo comum podendo alcançar a violência intencional 'contra o alvo

designado no exterior — o inimigo. Ou no interior — o traidor ou mesmo,

em bom número de casos, o bode expiatório.

Esta ligação nova que toma o lugar das regras do viver junto organizando um

coletivo de trabalho é assim alimentada pelos ódios \ v ; individuais.Tais ódios não

levam ao esfacelamento interno enquan- 1

to a massa mantiver coesa em sua determinação de atuar contra

0 outro — o inimigo — externo. Isso nos traz de volta à discussão travada entre

Freud e McDougall a propósito do pânico. Segundo este último, o pânico poderia

desempenhar um papel importante na formação da massa.

A clinica do trabalho pleiteia neste mesmo sentido. Entre os membros de um

grupo (ou de uma massa) unidos por uma ideologia defensiva, ou seja, por uma

defesa contra o medo, a ligação é estabelecida mais a partir de um procedimento que

recorre ao imaginário do que , a uma deliberação racional fundada na

intercompreensão. Reencon- ; tra-se aí o modo de funcionamento do pensamento por

imagens, com 'economia do pensamento stricto sensu, cujo encadeamento é alimenta-

do pelo medo, pela representação caricatural do inimigo comum, pelo ;,ódio e a sede

de vingança.

Freud evoca esta possibilidade de uma ligação dos indivíduos da massa pelo ódio

e não pelo amor: O ódio a uma pessoa ou instituição determinada poderia redundar em uma ação de unificação e

suscitar ligações afetivas análogas àquelas provocadas pela dependência positiva (pp. 38-39).“

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Trabalho e emancipação

69

Mas em seguida abandona este caminho que será substituído por uma “reflexão”

que promete evidenciar o caminho mais curto que são as ligações de libido que

caracteriza uma massa (p. 3 9 ) E vo c a na

1 sequência_a ambivalência amor-hostilidade e confirma a orientação;

principal de sua concepção, a saber que os movimentos hostis “só es—; capam à

percepção após o recalque”. Por fim, ele imputa à eliminaçãoj dos sentimentos de

repulsão entre os membros da massa às restrições do narcisismo [que], segundo nossa perspectiva teórica, só podem ser engendradas por

um fator, pela ligação libidinal a outras pessoas. O amor a si encontra limite apenas no amor ao

outro, no amor aos

: objetos (pp. 40-41)/

Reafirma assim o princípio segundo o qual a ligação está na libido e no amor. Se

Freud evoca a ligação pelo ódio, ele decide simplesmente esquecê-la para resolver a

contradição atribuindo à libido o poder de limitar, e mesmo de dissolver o ódio.

A clínica do trabalho — que permite captar, in statu nascendi, a formação de uma

massa não organizada a partir de uma massa organizada — pleiteia por outra

concepção da ligação que se estabelece aqui. Evidentemente, a contradição relevada

por Freud volta: como

o ódio que deveria de fato dissociar as ligações entre os indivíduos pode, neste caso,

servir de liga? O primeiro argumento explicativo consistiria na evocação — como, por

sinal, já o fizemos anteriormente — da reversão do ódio e da destrutibilidade para o

exterior, contra o inimigo comum, o que livraria a massa das forças de desunião -

desagregação. É um elemento, decerto, da explicação, mas que não é suficiente. Livrar

a massa das forças desagregadoras não constitui dotá-la, em contrapartida, de um

elemento de ligação. E como, ademais, todo processo inicia-se com a desconfiança

entre os membros do coletivo de trabalho, não enxergamos como, a partir de tal

ambiente, poderiam disseminar o amor e desenvolver a libido assegurando a coesão da

massa.

A força de agregação provém com certeza de outro lugar. O que é proposto pelo

lado da ideologia defensiva? Nada menos do que mutação no contrário de sua

experiência efetiva do medo: um sentimento de potência e de força, a embriaguez do

poder que confere

o número ou, para retomar a expressão de Le Bon citada por Freud, “um sentimento

de invencibilidade”. Essa experiência da força é experimentada no modo de coesão

Christophe Dejo urs

70

imaginária de compor apenas um, união total acrescida da força de um gigante. O

imaginário do gigante põe um termo, a um só tempo, ao sentimento de medo e ao

sentimento de solidão (desmoronamento das referências comuns = desolação). Em

outros termos: o que estabeleceria a ligação entre os membros da massa não

organizada, cuja ideologia defensiva é uma das formas clínicas mais comuns, não

seria nem a libido nem o amor, nem Eros, mas antes a virtude reconfortante de um

conluio imaginário capaz: de conjurar as forças de desagregação mobilizadas pelos

ódios individuais, e de reunir graças ao sentimento de todo-poderoso que confere a

cada indivíduo a embriaguez do apelo à violência coletiva contra o inimigo comum.

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Christophe De jours

71

Sob o efeito do medo, uma “massa” organizada até então por acordos normativos

tão difíceis de elaboração pode transformar-se em massa não organizada cuja coesão

depende apenas de um conluio imaginário.

Ligação imaginária, acordos normativos e idealização

As relações estabelecidas entre os membros unidos por causa de uma ideologia

defensiva não estão na ordem das relações interin- dividuais. São relações entre o

indivíduo e a massa como um bloco imaginário. A ligação imaginária, ou

“imaginai”,5 opõe-se aqui à ligação simbólica. Laplanche designa sob o nome de

“ligação especular”, “ligação em massa”, ou ainda em Gestalt esta ligação

imaginária, para distingui-la da ligação de tradutibilidade, passando pelo

pensamento e não pela imagem (ligação simbólica). Esses dois tipos de ligação,

sempre segundo Laplanche, operariam no âmbito do narcisismo. A primeira

alcançando um benefício fálico; a segunda resultando em termos de amor de si.

Desde que se mantenha a referência à ideologia defensiva, como tipo de massa

espontânea, a “restrição do narcisismo” — evocada por Freud a propósito dos

indivíduos que compõem uma massa não organizada (ou espontânea) — deve ser

entendida antes como ajuste das

l diferenças individuais em beneficio do imaginário em bloco. E, para / maior

precisão, seria necessário conceber esta restrição do narcisismo como o primeiro

tempo de um processo: ao enfraquecimento do Eu 'sob o império do medo, ocorreria

um segundo tempo de inflação do Eu por fusão imaginária com a massa. Quanto a

Freud, ele afirmava que a restrição narcísica permitia a eliminação dos sentimentos

de repulsão entre os membros da massa. E essa restrição poderia ocorrer, segundo

ele, apenas em consequência do amor do outro (pp. 40-41)."

No capítulo relativo à identificação, Freud introduz a dimensão específica do

ideal do Eu. O ideal do Eu para o qual são investidas quatro funções: a função de

auto-observação, a consciência moral, a censura do sonho, a influência maior sobre

o recalque.

Na ideologia defensiva, alinham-se ligações que sugerem o estabe-

lecimento de uma jiistinção mais nítida com o que se pode observar na

formação de um coletivo de trabalho stricto sensu. Pode-se identificar aí dois

processos, podendo cada qual conduzir à formação de figuras ideais, a tudo

Christophe Dejours

72-

opostas.

Uma primeira, que levaria à formação de uma “instância moral”

procurando a concordância com o ideal oferecido de fora — os valores da vida

de bem e da cultura — e com a autoridade parental.

A outra, que traria antes à superfície a nostalgia de uma época extinta, a do

narcisismo primordial no qual o Eu infantil bastava a si próprio (p. 48)s e

participava da toda poderosa “his majesty the baby”. Este ideal de uma época

extinta (a menos que se trate da ilusão retroativa de um passado fictício que

nunca existiu), que corresponde a uma dilatação do amor-próprio, não tem

muito a ver com o sentido

i moral. Teria algo em comum com o que fala Freud a propósito do estado

amoroso e da idealização do objeto, evoluindo paralelamente a j uma

desvalorização narcísica do Eu?

Na ideologia defensiva, parece que o narcisismo especular se restabelece

invocando um imaginário todo-poderoso a fixar uma espécie de continuidade

entre a megalomania infantil e o imaginário do gigante do qual discorríamos

há pouco. Nesta configuração, seria possível que o objeto — neste caso o

líder, sobre quem Freud insiste muito

— não seja propriamente um objeto “querido”, “amado”. Sua função, como

o sugere Freud, não seria decisiva na formação da massa, o líder podendo com

facilidade ser substituído por uma “ideia-guia”. Ela não seria por isso

contingente: a função do líder consistiria em formular slogans e palavras de

ordem, bem como exaltar as imagens do número, associadas à força e ao

poder, dos quais se alimenta o imaginário

social da massa, ou seja, o modo de pensamento por imagens. A ideia f A ' ........................................................................ ........... ..............■ - da força e da onipotência é fundamentalmente amoral. Orientado

..... / J\ ademais pelo ódio, a violência e a coesão contra o inimigo comum, ele é tudo

menos uma instância moral. O sentido moral pressupõe O: ■ emprego do

pensamento pré-consciente e não do modo regressivo e simplificado do

pensamento por imagens.

A identificação imaginária, ou conluio imaginário, é capaz de restabelecer a

clivagem e, via o imaginário social, de fornecer as racionalizações a justificarem o

emprego da força e da violência que o sentido moral reprova. Esta é a razão da

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Trabalho e emancipação

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fórmula de Freud (p. 54): os indivíduos da massa puseram “um único e mesmo objeto

no lugar de seu ideal do Eu e, em consequência, identificaram-se uns com os outros

em seu Eu”,' operação pela qual certo número de indivíduos estariam aptos a

integrarem a massa primária, e não é admissível apenas se se compreender.como ideal

do Eu a instância imoral objetivando a onipotência, construída de modo imaginário a

partir do conluio dos amores-próprios.

Conclusão

Ao se admitir que Freud reconheceu de fato a distinção entre a massa natural ou

não organizada e a massa artificial ou organizada, a clínica do trabalho sugere

acentuar esta distinção e não criar eufemis- mos, como ele propõe, na intenção de

reuni-los sob um princípio de coesão único: a libido.

A libido, ao amor, a Eros, ao carinho, às pulsões sexuais inibidas quanto à meta, à

dessexualização, à hipnose, à identificação, à ideação í e ao estado amoroso como

variantes do princípio único de coesão da

i massa, seria provavelmente mais justo contrapor uma tese a distinguir jdois

tipos de ligações que tudo separa.

Na massa organizada até as formas complexas que compreendem instituições

complexas, o princípio organizador penderia para as deliberações de cunho racional,

os acordos normativos e a ética, que seria necessário opor aqui, com todo o rigor, à

libido, pois esta ignora a ética.

Na massa não organizada, ou massa primária, o princípio de coesão dos indivíduos

estaria assegurado pela tentativa de transformar a experiência do medo em sentimento

de força invencível, ou mesmo de onipotência.

Do ponto de vista da emancipação, a massa organizada propícia possibilidades a

serem examinadas, em detalhes, a partir da clínica do trabalho. Esta clínica permitirá

a realização de uma análise dos agentes da cooperação e da solidariedade. Em

contrapartida, a massa não organizada, cuja ideologia defensiva contra o medo serviu

de modelo

— e que experimenta, a um só tempo, o fracasso da atividade deôntica e a

derrota do pensamento - só é capaz de produzir destruição, mais ainda, promover a

barbárie.

Por fim, na passagem da coesão (que repousa sobre ligações de civilidade) à coesão

Christophe Dejours

74-

(que repousa na referência do inimigo comum), é necessário considerar dois processos

que são sucessivos, mas independentes: neutralização e desestruturação das ligações

de solidariedade e de cooperação sob efeito do medo, inicialmente; na sequências

edificação de um conluio imaginário. Nenhum mecanismo preside õ encadeamento

desses dois processos. Quando, após o primeiro deles,

o segundo não chega ao seu termo, assiste-se a descompensações psi- copatológicas

frequentes e graves, chegando a extremos tais como o suicídio no local de trabalho.

Em caso de sucesso do segundo processo, as descompensações psicopatológicas são

conjuradas, mas abre-se então a via que leva à destrutibilidade coletiva.

Qual o lugar que se deve atribuir às relações de trabalho na análise desses

processos onde são observados simultaneamente a cultura e o viver junto? A clínica do

trabalho deve ser considerada — assim como as demais clínicas — exemplo capaz de

explicar a formação e a desestruturação das relações sociais? O que ele revela é

contingente? A vida do espírito pode ser teorizada sem referência ao trabalho?

Deve-se admitir que a metapsicologia freudiana, mesmo se abre espaço em um

grande número de ocorrências ao termo Arbeit, não percebe tudo o que, no

funcionamento tanto anímico individual como na psicologia das massas, diz

propriamente respeito ao trabalho.

Nos próximos capítulos, será examinado o sentido no qual a referência à clínica e à

teoria do trabalho permitiria renovar a análise das relações entre sexualidade,

sublimação e cultura, bem como considerar as possibilidades e os limites entre os

quais poderia, consequentemente, ocorrer a dinâmica da emancipação.

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Christophe Dejo urs

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Notas do tradutor

a Para o leitor brasileiro, há a possibilidade de cotejar as edições francesas referenciadas e uma das mais

recentes edições brasileiras deste trabalho de Freud: . “Psicologia das massas e análise do Eu”, in Sigmund

Freud, Obras completas, Vol. 15, São Paulo, Companhia das Letras, 2011. O livro de Gustave Le Bon,

Psicologia das multidões, foi editado em 2008 pela Martins Fontes. b Idem, pp. 15-16. c Ibidem, pp. 33-34. d

Ibidem, p. 34. e Ibidem, pp. 25-26 e p. 29.

/ Ibidem, p. 38. g Ibidem, p. 92.

h Ibidem, pp. 33-34.

i Ibidem, pp. 27-28. j Ibidem, p. 21. k Ibidem, pp. 58-59.

I Ibidem, p. 33.

m Christophe Dejours, A banalização da injustiça social, Rio de Janeiro, Editora Fundação Getúíio Vargas,

2000. n Sigmund Freud,“Psicologia das massas e análise do Eu”, op. cit., p. 55. o Ibidem, p. 56. p Ibidem, p.

58. q Imaginale, no original.

r Sigmund Freud,“Psicologia das massas e análise do Eu”, op. cit.,p. 58. s Idem, p. 48. t Ibidem, p. 76.

Outra forma de civilidade: A cooperação

“Para um conceito crítico do trabalho”

ideia segundo a qual o trabalho pode ser um mediador da emancipação é objeto

de bom número de controvérsia entre os teóricos da Escola de Frankfurt. Da

leitura dos textos de Marx, retém-se sobretudo a ideia inversa, ou seja, o

trabalho pode ser um móvel maior da alienação (no sentido pejorativo do termo).

Conserva-se também a ideia do primado do trabalho sobre o conhe-

i cimento: é a partir da experiência do mundo, à qual se acede devido ao trabalho, que

a verdade do mundo revela-se. Ou, para dizê-lo de outra forma, o trabalho seria uma

condição imanente de lodo conhecimento do mundo.

Mais raros são os autores que retêm de Marx a ideia de que o trabalho possa

também constituir uma provação mediante a qual os poderes do ser humano revelam-

se para ele mesmo, de uma parte; e a ideia de que o “trabalho social” possa constituir-

se no viés essencial da emancipação, de outra.

Em um texto de 1980 a tratar especificamente do trabalho, Axel Honneth retraia a

maneira como o trabalho foi conceituado nas diferentes etapas da teoria crítica. Ele

precisa que Marx jamais justificou a tese-chave segundo a qual a emancipação dos

trabalhadores deve ser explicada a partir das relações imanentes do trabalho alienado.

A