chervel, andré. história das disciplinas escolares

Upload: regina-ribeiro

Post on 07-Jul-2015

2.721 views

Category:

Documents


8 download

DESCRIPTION

CHERVEL, André. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa inTeoria & Educação. N. 2. Porto Alegre: Pannonica, 1990. Tradução de CHERVEL, André.L’histoire des disciplines scolaires: réflexions sur un domaine de recherche in Histoire del’education. N. 38. Paris: INRP, 1988

TRANSCRIPT

,. da noo inglesa de subject, que est na base de uma nova tendncia da histria da educao de Alm-Mancha, e da qual a definio se d pela acumulao e associao de partes constitutivas.' Retoma ento ao historiador a tarefa de definir a noo de disciplina ao mesmo tempo em que faz a sua histria. A histria da palavra disciplina (escolar) e as condies nas quais ela se imps aps a Primeira Guerra Mundial colocam contudo em plena luz a importncia deste conceito, e no permitem confundi-Io com os termos vizinhos. No seu uso escolar, o termo "disciplina" e a expresso "disciplina escolar" no designam, at o fim do sculo XIX mais do que a vigilncia dos estabelecimen_ tos, a represso das condutas prejudiciais sua boa ordem e aquela parte da educao dos alunos que contribui para isso. ~No sentido que nos interessa aqui, de "contedos do ensino", o termo est ausente de todos os dicionrios do sculo XIX, e mesmo do Dictionnaire de l'Academie de 1932. Como se designavam, antes dessa poca, as diferentes ordens de ensino? Que tftulo geral se dava s rubricas dos diferentes cursos?

J ..I

:1.:1:11 I;'

Nos textos, oficiais ou no, um grande nmero de frmulas confusas manifesta a ausncia e a necessidade de um termo genrico. Eis trs exemplos: "Foi publicado, este ano, em cada academia, uma brochura dando (, .. ) a lista dos cursos agrupados por analogia de ensino"; 7 "no se tinham ainda criado os inspetores gerais de todos os graus e de todos os tipos";' "No segundo ciclo, quatro agrupamentos de cursos principais so oferecidos opo dos alunos". 9 Os equivalentes mais freqentes no sculo XIX so as expresses "objetos", "partes", "ramos", ou ainda "matrias de ensino"," Lembremos igualmente aqui um termo que, ainda que tenha totalmente desaparecido neste sentido ao final do sculo XIX, designa, entretanto, ordinariamente, desde o sculo XVIII, as diferentes disciplinas, ou, mais precisamente, as composies dos alunos nessas disciplinas: a palavra "faculdade", Assim, o ministro Vill~main fez-se remeter os melhores exemplares "de cada uma das faculdades seguidas pelos alunos de filosofia, matemtica especial, retrica, etc.".!' E ainda, em todos os ltimos anos do sculo: "O aluno que, numa classe, obteve Uma meno no concurso geral de um ano anterior, no pode concorrer na mesma faculdade a no ser para uma meno no mnimo igual" .11 A apario, durante os primeiros decnios do sculo XX, do termo "disciplina" em seu novo sentido vai, certamente, preencher Uma lacuna lexil6gica, j que se tem necessidade de um termo genrico. Ela vai sobretudo pr em evidncia, antes da banalizao da palavra, as novas tendncias profundas do ensino, tanto primrio quanto secundrio. Descartemos primeiramente a informao falaciosa l1 dos dicionrios etimolgicos que atribuem a Oresme, no comeo do sculo XIV a primeira utilizao da palavra no sentido de "contedo de ensino". Dever-se-ia acrescentar ainda que ela parece desaparecer totalmente a 'seguir do uso para ressurgir no fim do sculo XIX, onde objeto de uma nova criao. ~ um emprstimo do latim disciplina, que designa "8 instruo que o aluno recebe do 178 Teoria & Educado, 2, 1990

mestre"?" Seria uma hiptese plausvel se a palavra francesa tivesse aparecido ou reaparecido no sculo XVI ou XVII, numa poca onde a pedagogia se escreve correntemente em lngua latina:" mas este no o caso. Um emprstimo ao alemo" deve tambm ser descartado, no obstante a influncia dos pedagogos de Alm-Reno no fim do sculo XIX. Na realidade, essa nova acepo da palavra trazida por uma larga corrente de pensamento pedaggico que se manifesta, na segunda metade do sculo XIX, em estreita ligao com a renovao das finalidades do ensino secundrio e do ensino primrio. Ela faz par com o verbo disciplinar, e se propaga primeiro como um sinnimo de ginstica imeleaual, novo conceito recentemente introduzido no debate. ~ durante a dcada de 1850, que marca o comeo da crise dos estudos clssicos, que os partidrios das lnguas antigas comeam a defender a idia de que, na falta de uma cultura, o latim traz ao menos uma "ginstica intelectual", indispensvel ao homem cultivado, 17 Paralelamente, a confuso dos objetivos do ensino primrio durante a dcada de 1870 leva a repensar em profundidade a natureza da formao dada ao aluno. At a, inculcava-se. Deseja-se, de agora em diante, disciplinar: "Disciplinar a inteligncia das crianas, isto constitui o objeto de urna cincia especial que se chama pedagogia", escreve, no rastro de Michel Bral, o lingista Frdric Baudry .11 E Clestin Hippeau, depois de ter criticado a "opinio que considera este estudo [das lnguas antigas] como mais coaveaente para desenvolver, para exercitar, disciplinar o esprito do que toda outra cincia", afirma que "por essas palavras de disciplina intelectual, de ginstica dO esprito, segundo a expresso consagrada, entende-se o desenvolvimento do julgamento, da razo, da faculdade de combinao e de inveno". 19 . . Neste novo sentido de exerccio intelectual, primeiro com o materldtico filsofo Antoine Coumot que a palavra aparece.' Mas sobretudo com Flix Pcaut," e com os artesos da renovao pedaggica de 1880 que ela se deve propagar como um dos temas fundamentais da nova instruo primria. n Faltamlhe duas etapas a vencer para chegar at ns. Num primeiro momento, ela passa do geral ao particular, e passa significar uma "matria de ensino suscetvel de servir de exerccio intelectual". Parece que essa evoluo no se produz antes dos primeiros anos do sculo XX. POde-se falar doravante, no plural, de diferentes disciplinas. Assim, o ministro Steeg, em 1911: "A Universidade fica em harmonia com seu tempo. Das disciplinas passadas, ela se empenha em preservar o melhor, dando todo o seu esforo para criar as novidades, impostas pela evoluo da sociedade"." ~ surpreendente ver a palavra aparecer to tardiamente no ensino secundrio, o qual jamais escondeu sua vocao em formar os espritos pelo exerccio intelectual. A razo desse atraso simples. At 1880, mesmo at 1902, para a Universidade no h seno um modo de formar os espritos, no mais do que uma "disciplina", no sentido forte do termo: as humanidades cl4ssicas. Uma educao que fosse fundamentalmente matemtica ou cientfica no deveria ser,

e

.1

1 :1

~

) I~i\

'I"

,i

\

f Jr-

\

Teoria & Educao, 2, 1990

179

I

I

.r-

1antes do comeo do sculo XX, plenamente reconhecida como uma verdadeira formao do esprito. ~ somente quando a evoluo da sociedade e dos espiritos permite contrapor 1& disciplina literria uma disciplina cientfica que se faz sentir a necessidade de um termo genrico. Logo aps a I Guerra Mundial, enfim, o termo "disciplina" vai perder a fora que o caracterizava at ento. Toma-se uma pura e simples rubrica que classifica as matrias de ensino, fora de qualquer referncia s exigncias da formao do esprito." Basta dizer o quanto recente o termo que utilizamos atualmente: no mximo uns sessenta anos. Mas, ainda que esteja enfraquecido na linguagem atual, ele no deixou de se conservar e trazer 1& lngua um valor especfico ao qual, n6s, queiramos ou no, fazemos inevitavelmente apelo quando o empregamos. Com ele, os contedos de ensino so concebidos como entidades sui generis, pr6prios da classe escolar, independentes, numa certa medida, de toda realidade cultural exterior 1& escola, e desfrutando de uma organizao, de uma economia interna e de uma eficcia que elas no parecem dever a nada alm delas mesmas, quer dizer 1& prpria histria. Alm do mais, no tendo sido rompido sua o contato com o verbo disciplinar, o valor forte do termo est sempre disponvel. Urna "disciplina", igualmente, para ns, em qualquer campo que se a encontre, um modo de disciplinar o esprito, quer dizer de lhe dar os mtodos e as regras para abordar os diferentes domnios do pensamento, do conhecimento e da arte.

.J\

todos os desvios entre umas e outros so ento atribuidos lL necessidade de simplificar, na verdade vulgarizar, para um pblico jovem, os conhecimentos que no se lhe podem apresentar na sua pureza e integridade. A tarefa dos pedagogos, supe-se, consiste em arranjar os mtodos de modo que eles permitam que os alunos assimilem o mais rpido e o melhor possvel a maior poro possvel da cincia de referncia. As disciplinas reduzem-se, nessa hiptese, s "metodologias": tal na verdade, de resto, o termo que designa, na Blgica, e mesmo s vezes na Frana, a pedagogia. Ao lado da disciplina-vulgarizao imposta a imagem da pedagogia-lubrificante, encarregada de lubrificar os mecanismos e de fazer girar a mquina. Esse esquema, largamente aceito pelos pedagogos, os didticos e os historiadores, no deixa nenhum espao existncia autnoma das "disciplinas": elas no so mais do que combinaes de saberes e de mtodos pedaggicos. A histria cultural de um lado, a hist6ria 'da pedagogia de outro, tm, at o presente, ocupado e esgotado a totalidade do campo. de uma ou de outra que a histria das disciplinas escolares tributria. De um lado, histria das cincias, dos saberes, da lngua, da arte, ela pede emprestada toda a parte relevante do seu ensino. histria da pedagogia, ela solicita tudo o que parte integrante dos processos de. aquisio, fazendo constantemente a separao entre as intenes anunciadas ou as grandes idias pedaggicas e as prticas reais. Diante dessas duas correntes bem instaladas, ela se encarrega de estabelecer que a escola no se define por uma funo de transmisso dos saberes, ou de iniciao s cincias de referncia. O que, apresentado nesses termos abruptos, parece levar a um paradoxo. O exemplo da histria da gramtica escolar mostra, contudo, que a prova pode ser fornecida. A escola ensina, sob esse nome, um sistema, ou melhor, uma combinao de conceitos mais ou menos encadeados entre si. Mas trs resultados da anlise histrica impedem defmitivamente que se considere essa matria como uma vulgarizao cientfica. Ela mostra, primeiro, que contrariamente ao que se teria podido acreditar, a "teoria" gramatical ensinada na escola no a expresso das cincias ditas, ou presumidas "de referncia", mas que ela foi historicamente criada pela prpria escola, na escola e para a escola. O que j bastaria para distingui-Ia de uma vulgarizao. Em segundo lugar, o conhecimento da gramtica escolar no faz parte - com exceo de alguns conceitos gerais como o nome, o adjetivo ou o eptet~ - da cultura do homem cultivado. isto que o ministro da Instruo pblica dizia j em 1866: '" As crianas de dez a onze anos falam de verbos transitivos e intransitivos, de atributos simples e complexos, de proposies incidentes explicativas ou determinativas, de complementos circunstanciais, etc., etc. ~ necessrio no ter nenhuma idia do esprito das crianas, que contrrio s abstraes e As generalidades, para acreditar que elas compreendem tais expresses, que vs e eu, Senhor Reitor, nos esquecemos desde181

Il, As disciplinas escolares, as cincias de referncia e a pedagogiaEstas consideraes lexicolgicas por certo no pesam, no debate, seno o peso das palavras. Em todo caso permitem atrair imediatamente a ateno sobre a natureza prpria da entidade "disciplinar". Pois prevalece, no domnio dos contedos de ensino, um consenso que, em geral, mesmo os historiadores do ensino partilham, e que no f~i recolocado em questo a no ser a partir de uns quinze anos para c pelos especialistas de certas disciplinas.P Estima-se ordinariamente, de fato, que os contedos de ensino so impostos como tais 1& escola pela sociedade que a rodeia e pela cultura na qual ela se banha. Na opinio comum, a escola ensina as cincias, as quais fizeram suas comprovaes em outro local. Ela ensina a gramtica porque a gramtica, criao secular dos lingistas, expressa a verdade da lngua; ela ensina as cincias exatas, como a matemtica, e, quando ela se envolve com a matemtica moderna , pensa-se, porque acaba de ocorrer uma revoluo na cincia matemtica; ela ensina a histria dos historiadores, a civilizao e a cultura latinas da Roma antiga, a filosofia dos grandes filsofos, o ingls que se fala na Inglaterra ou nos Estados Unidos, e o francs de todo o mundo. ~ a essa concepo dos ensinos escolares que est diretamente ligada a imagem que geralmente se faz da "pedagogia". Se se ligam diretamente as disciplinas escolares s cincias, aos saberes, aos savoir-faire correntes na sociedade global,

180

Teoria & Educao, 2, 1990

Teoria & Educao. 2. 1990

,~ muito; um puro esforo de memria em prol de inutilidades".27 Enfim, a

1iI

'.

prpria gnese dessa gramtica escolar no deixa nenhuma dvida sobre SUa finalidade real. A criao de seus diferentes conceitos tem constantemente coincidido no tempo com seu ensino, assim como com o ensino da ortografia, dentro de um vasto projeto pedaggico, que o da escola primria desde a Restaurao~ e que traz, nos programas e nos planos de estudo do sculo XIX, um ttulo que no faz referncia nem ortografia nem gramtica: "os elementos da lngua francesa". Na sua realidade didtica cotidiana, como nas suas finalidades, a gramtica escolar francesa embarcou, de fato, na grande empresa nacional de aprendizagem da ortografia, empresa que no tem nada a ver Com qualquer vulgarizao. Poder-se-ia demonstrar, da mesma forma, que os "mtodos pedaggicos" postos em ao nas aprendizagens so muito menos manifestao de uma cincia pedag6gica que operaria sobre uma matria exterior do que de alguns dos cbmponentes internos dos ensinos. A prpria gramtica escolar no mais do que um mtodo pedaggico de aquisio da ortografia; a anlise gramatical no passaria de um mtodo pedaggico de assimilao da gramtica, e assim por diante. Excluir a pedagogia do estudo dos contedos, condenar-se a nada compreender do funcionamento real dos ensinos. A pedagogia, longe de ser um lubrificante espalhado sobre.