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MOVIMENTO DA MATEMÁTICA MODERNA E O CONCEITO DE NÚMERO NATURAL SOARES, Elenir Terezinha Paluch – SEED/PR [email protected] Eixo Temático: Educação Matemática Agência Financiadora: Não contou com financiamento Resumo Este texto tem por objetivo apresentar análises preliminares referentes à forma como o conceito de número natural foi apresentado nos livros didáticos no período do Movimento da Matemática Moderna no Brasil , estabelecendo diferenças em relação a períodos anteriores e posteriores a esse movimento, cuja historiografia, de acordo com Pinto (2009), tem constituído o alvo de alguns investigadores da Educação Matemática, que se colocam na posição de aprendizes do ofício de historiador, com a árdua tarefa de desempenhar o relevante fazer histórico. Justifica-se a presente investigação, tendo por base a importância do papel da história das disciplinas escolares, segundo Chervel (1990), não apenas na história da educação mas na história cultural e porque o conceito escolhido para estudo representa, segundo Bourbaki (1972), um dos entes matemáticos que alicerça o desenvolvimento dessa ciência. Para uma maior compreensão do referido movimento, são apresentados conforme Soares (2001), alguns avanços nas pesquisas relacionadas ao Movimento da Matemática Moderna no Brasil, do qual ainda pouco se sabe sobre o alcance e as implicações nas práticas pedagógicas. Para estabelecer as distinções pressupostamente existentes sobre a apresentação do conceito de número natural durante o Movimento da Matemática Moderna no Brasil e nas vizinhanças temporais a ele, tomaram-se como fontes 25 livros didáticos brasileiros, que abordam a apresentação inicial desse conceito escolhido para estudo, dos quais alguns recortes fazem parte do texto, por serem considerados marcas culturais deixadas nas práticas escolares do período histórico analisado, delimitado nesse estudo, a partir da década de 40 até a década de 90 do século XX. Palavras-chave: Movimento da Matemática Moderna. Número natural. Livros didáticos. Introdução Movidos pelo interesse comum em melhor conhecer a educação matemática praticada em épocas passadas, pesquisadores originários de diversos estados brasileiros têm buscado aportes teóricos na vertente histórico-cultural, colocando-se no papel de aprendizes do ofício de historiador da

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MOVIMENTO DA MATEMÁTICA MODERNA E O CONCEITO DE

NÚMERO NATURAL

SOARES, Elenir Terezinha Paluch – SEED/PR [email protected]

Eixo Temático: Educação Matemática

Agência Financiadora: Não contou com financiamento Resumo Este texto tem por objetivo apresentar análises preliminares referentes à forma como o conceito de número natural foi apresentado nos livros didáticos no período do Movimento da Matemática Moderna no Brasil , estabelecendo diferenças em relação a períodos anteriores e posteriores a esse movimento, cuja historiografia, de acordo com Pinto (2009), tem constituído o alvo de alguns investigadores da Educação Matemática, que se colocam na posição de aprendizes do ofício de historiador, com a árdua tarefa de desempenhar o relevante fazer histórico. Justifica-se a presente investigação, tendo por base a importância do papel da história das disciplinas escolares, segundo Chervel (1990), não apenas na história da educação mas na história cultural e porque o conceito escolhido para estudo representa, segundo Bourbaki (1972), um dos entes matemáticos que alicerça o desenvolvimento dessa ciência. Para uma maior compreensão do referido movimento, são apresentados conforme Soares (2001), alguns avanços nas pesquisas relacionadas ao Movimento da Matemática Moderna no Brasil, do qual ainda pouco se sabe sobre o alcance e as implicações nas práticas pedagógicas. Para estabelecer as distinções pressupostamente existentes sobre a apresentação do conceito de número natural durante o Movimento da Matemática Moderna no Brasil e nas vizinhanças temporais a ele, tomaram-se como fontes 25 livros didáticos brasileiros, que abordam a apresentação inicial desse conceito escolhido para estudo, dos quais alguns recortes fazem parte do texto, por serem considerados marcas culturais deixadas nas práticas escolares do período histórico analisado, delimitado nesse estudo, a partir da década de 40 até a década de 90 do século XX. Palavras-chave: Movimento da Matemática Moderna. Número natural. Livros didáticos.

Introdução

Movidos pelo interesse comum em melhor conhecer a educação matemática praticada em

épocas passadas, pesquisadores originários de diversos estados brasileiros têm buscado aportes

teóricos na vertente histórico-cultural, colocando-se no papel de aprendizes do ofício de historiador da

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educação e tendo que superar desafios impostos pela abrangência dessa árdua empreitada que envolve

conhecimentos do fazer educativo, do fazer matemático e do fazer histórico.

Segundo Pinto (2009),

Há cinco anos, o GHEMAT1 investiga o Movimento da Matemática Moderna (MMM) no Brasil, tendo como desafio a escrita da história de uma grande reforma que, em meados do século passado, revolucionou a matemática escolar de vários países. Essa investigação, de caráter amplo e coletivo, tem oportunizado a cada participante do grupo fazer sua iniciação na prática historiográfica da educação matemática (PINTO, 2009, p. 1) 2 .

Ao explicar a operação historiográfica, essa autora, apoiada em Certeau (1982),

identifica e esclarece três fases dessa operação científica: a “documental’, voltada para a

busca de indícios, a “explicativo-compreensiva” que busca explicar os significados e a

compreensão do sentido, e a “escrituraria” , voltada para o processo de elaboração do relato

(grifos nossos)”.

A partir de tais contribuições metodológicas para o fazer historiográfico e outras que a

autora fornece através da análise dos estudos já desenvolvidos, sob sua orientação, sobre o

MMM realizados no Paraná, desenvolveu-se a investigação ora apresentada, utilizando-se

também o aporte teórico fornecido por Chervel (1990), que justifica tal empreendimento.

Na perspectiva desse autor, mais recentemente tem-se manifestado entre os docentes

um interesse acentuado pela história das disciplinas escolares, não apenas pela evolução

histórica dos programas oficiais e seus conteúdos de ensino, mas pela realidade concreta do

ensino nos estabelecimentos, onde, com maior densidade, se encontram produtos da cultura

escolar3. Para ele,

Desde que se reconheça que uma disciplina escolar comporta não somente as práticas docentes em sala de aula, mas também, as grandes finalidades que presidiram sua constituição e o fenômeno de aculturação de massa que ela determina, então a história das disciplinas escolares pode desempenhar um papel importante não somente na história da educação como na história cultural.(...) E

1 GHEMAT – Grupo de Pesquisa da História da Educação Matemática, coordenado por Wagner Rodrigues Valente – UNIFESP/SP. 2 Comunicação apresentada em Anais do VII Seminário Temático A Matemática Moderna nas escolas do Brasil

e Portugal: estudos históricos comparativos, realizado pelo GHEMAT, em Florianópolis, de 28 a 30/06/2009. Em: < www.smmmfloripa.ufsc.br/cultura.html>. Acesso em 01/07/2009. 3 Cultura escolar entendida, assim como Julia (2001,p.10), como um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e práticas que permitem transmitir esses conhecimentos e incorporar esses comportamentos.

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porque o sistema escolar é detentor de um poder criativo insuficientemente valorizado até aqui é que ele desempenha na sociedade um papel o qual não se percebeu que era duplo: de fato ele forma não somente os indivíduos, mas também uma cultura que vem por sua vez penetrar, moldar, modificar a cultura da sociedade global” (CHERVEL, 1990, p. 184).

Visto dessa forma, ou seja, entendendo-se que a escola intervém não apenas na

formação individual, mas, que através de seus múltiplos dispositivos para tornar possível o

ensino interfere na formação cultural da sociedade, a história das disciplinas escolares parece

ser um significativo componente da história cultural, cujo estudo objetiva conduzir o homem

a uma maior compreensão de si mesmo e de suas relações com outros homens.

Colocando a história dos conteúdos de ensino no centro do processo histórico das

disciplinas, Chervel (1990) considera que “a tarefa primeira do historiador das disciplinas

escolares é estudar os conteúdos explícitos do ensino disciplinar” (CHERVEL, 1990, p. 203),

argumentando que para esse estudo há abundante documentação á disposição do historiador,

constituída à base de cursos manuscritos, manuais e periódicos pedagógicos.

Dentre essa vasta documentação, o livro didático tem sido muito utilizado pelos

pesquisadores, que procuram nas materialidades da cultura escolar vestígios do ensino

praticado em diferentes épocas, tendo em vista a já comprovada influência que o mesmo

exerce nos ensinos escolares.

Embora alertados por Julia (2001, p. 34), de que a análise de um manual didático sem

o uso que dele foi feito não agrega valores aos estudos históricos, justificamos sua utilização

nessa investigação, pois entendemos como Certeau (1982), que cada resultado individual

obtido em pesquisa “se inscreve numa rede cujos elementos dependem estritamente uns dos

outros, e cuja combinação dinâmica forma a história num momento dado” (p. 72); por outro

lado, o objetivo deste estudo, é analisar em que aspectos a forma de apresentação do conceito

de número natural em livros didáticos editado durante o MMM no Brasil se diferencia das

apresentações em didáticos editados nas vizinhanças temporais a esse movimento, visto que

estudos já concluídos por Pinto (2005) e Soares (2008) fornecem indícios significativos de

que o livro didático foi um dos mais relevantes veiculadores das idéias atreladas ao

Movimento da Matemática Moderna nas escolas brasileiras.

Justifica-se a escolha do conceito de número natural como categoria de análise , por se

tratar de um dos alicerces do estudo da matemática, tanto como disciplina escolar como

ciência. Também, porque, esse conceito é abordado tradicionalmente em livros didáticos.

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Apresentam-se referências aos conteúdos de estudo priorizados em tempos de

Matemática Moderna, segundo a pesquisa realizada por Soares (2001), buscando-se

explicações para tal ocorrência em Bourbaki (1972), visto ser um grupo de matemáticos

formado na França, que se envolveu decisivamente com o movimento em âmbito

internacional, tendo influenciado o MMM no Brasil, segundo Fiorentini (1995), através de

professores dos cursos de licenciatura em matemática.

Finalmente, são apresentados recortes de livros didáticos, cuja análise forneceu

indícios que provavelmente contribuirão para uma maior compreensão da trajetória desse

movimento nas práticas escolares.

O Movimento da Matemática Moderna e a Teoria dos Conjuntos

Segundo Pinto,

Nas décadas de 1960 e 1970, um acontecimento que marcou a história da Educação Matemática provocando mudanças significativas nas práticas escolares foi o Movimento da Matemática Moderna. Desencadeado em âmbito internacional, esse movimento atingiu não somente as finalidades do ensino, como também os conteúdos tradicionais da Matemática (PINTO, 2005, p. 25) .

Esse movimento que revolucionou o ensino da Matemática nos anos 60 e boa parte

dos anos 70 do século passado, tem sido associado, até nossos dias, por atores e expectadores

das mudanças dele advindas nas práticas escolares de Matemática, à incorporação de estudos

da Teoria dos Conjuntos ao programa tradicionalmente desenvolvido até a chegada desse

movimento.

Os estudos realizados por Soares (2002) indicam que

Talvez o conceito matemático central da reforma – pelo menos aquele que foi dada maior ênfase e ao qual o Movimento da Matemática Moderna tenha ficado mais associado foi a noção de conjunto. Pretendia-se que a teoria dos conjuntos fosse ensinada aos alunos de todos os níveis de escolaridade, desde o ensino primário até a universidade. A ênfase nos conjuntos era fundamentada no fato de ser um conceito básico da Matemática, além de uma poderosa ferramenta para a unificação da disciplina (...) (SOARES, 2001, p. 48).

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Outro vestígio da larga atenção dada à Teoria dos Conjuntos em tempos do

Movimento da Matemática Moderna, é a obra Elementos de Teoria dos Conjuntos, de

Benedito Castrucci, através do GEEM – Grupo de Estudos do Ensino de Matemática _ um

dos grupos disseminadores das idéias modernizadoras da Matemática, do qual era membro

atuante. Segundo esse professor e matemático, a idéia de conjunto, embora existente no

pensamento comum e na Matemática, só teve um tratamento formal pela primeira vez, em

fins do século XIX

Para Castrucci,

O crescimento da ciência matemática de 1900 até nossos dias deu à teoria um papel proeminente. É ela hoje base para todos os ramos da Matemática;(...) É uma teoria unificadora, na linguagem e na Matemática. É o que se observa na notável obra do grupo que trabalha sob o pseudônimo de Nicolas Bourbaki, a qual começa precisamente pela Teoria dos Conjuntos (...) Diante da orientação moderna do ensino, que tem como objetivo mostrar a unidade da Matemática, o estudo da Teoria dos Conjuntos e o das Estruturas são relevantes e devem estar em primeira plana. Estas noções básicas devem começar a aparecer desde os cursos mais elementares da Matemática (CASTRUCCI, 1967, introdução).

Além de Castrucci, outros autores, tais como Fiorentini (1995), Soares (2001) e

Guimarães (2007), também fazem referências às idéias bourbakistas e sua significativa

representação em encontros internacionais que impulsionaram o Movimento da Matemática

Moderna, bem como às marcas deixadas no meio acadêmico matemático brasileiro.

De acordo com Bourbaki (1972), o estudo do que costuma chamar-se os fundamentos

das matemáticas, que vem sendo realizado ininterruptamente desde o princípio do século

XIX, não pode levar-se a cabo sem um esforço paralelo de sistematização da Lógica, ao

menos naquelas suas partes que regem o encadeamento das proposições matemáticas e

tampouco pode separar-se da história da Teoria dos Conjuntos.

Na perspectiva bourbakista, não parece que antes do século XIX se tivesse tentado

definir verdades matemáticas como, por exemplo, operações com números naturais (adição e

multiplicação), de outro modo que não fosse recorrendo à intuição. Somente, em 1888 quando

Dedekind4 apresenta um sistema completo de axiomas para a aritmética, que continha em

particular uma formulação precisa do princípio da indução, é que a axiomatização parecia

4 Richard Dedekind – Matemático alemão foi uma figura chave no surgimento da matemática conjuntista e estrutural do século XX. Deixou marcas muito importantes nos elementos da Matemática,com suas contribuições nas definições sobre número natural e real., com grandes contribuições no terreno da Álgebra.

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haver alcançado os fundamentos definitivos das matemáticas. Segundo a narrativa

bourbakista,

De fato, no mesmo instante em que se formulavam claramente os axiomas da aritmética, ela deixava de ser para muitos matemáticos - começando por Dedekind e Peano – a ciência primordial, em favor da mais recente das teorias matemáticas, a teoria dos conjuntos; e as controvérsias que iam ter lugar acerca da noção de número inteiro não podem separar-se da grande crise de fundamentos dos anos 1900-1930 (BOURBAKI, 1972, p. 43).

Para Bourbaki (1972, p.47), no sentido que lhe é dado atualmente (década de 70), essa

teoria se deve ao gênio Georg Cantor5, que após inúmeras investigações com famílias de

conjuntos e comparações de coleções infinitas , reconheceu a propriedade fundamental de

conjuntos infinitos, construindo por correspondência biunívoca, uma hierarquia desses

conjuntos de acordo com suas potências.

Quase ao mesmo tempo em que a teoria começava a influenciar outros ramos da

matemática, surgiram várias contradições nomeadas como paradoxos, e a teoria axiomática de

conjuntos foi então desenvolvida para responder esses problemas, e por ter efeito restrito na

matemática ordinária, entende-se que uma noção elementar dessa teoria na educação básica

seja suficiente para auxiliar o desenvolvimento de ferramentas matemáticas e motivar para a

compreensão da teoria axiomática.

O matemático Dedekind que acompanhou com interesse as investigações de Cantor

desde o começo, apoiado em suas próprias reflexões sobre a noção de número, mostra como

“a noção de inteiro natural, na qual se apóia toda a matemática clássica, podia também ser

obtida a partir das noções fundamentais da Teoria dos Conjuntos” (BOURBAKI, 1972, p.49).

As conquistas obtidas a partir da teoria de Cantor parecem ser vistas por Bourbaki

como um grande diferencial na ciência matemática praticada antes e depois dessa teoria; e a

conquista da definição de número natural como propriedade comum de conjuntos entre os

quais é possível estabelecer correspondência biunívoca, segundo esse autor, possibilitou entre

outros progressos na matemática, o de prescindir do uso de intuição geométrica e da

utilização de grandezas para definir os números reais, como era feito até parte do século XIX.

5 Georg Cantor – matemático russo (1845 – 1918). Muito atraído pela Análise e pela idéia de infinito. O reconhecimento de suas realizações mereceu a famosa exclamação do influente matemático Hilbert: “Ninguém nos expulsará do paraíso que Cantor criou para nós”.

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Conceito de número natural em livros didáticos editados desde os anos 40 até os anos 90

De acordo com Bittencourt (2004), o livro didático vem despertando o interesse de

muitos pesquisadores, que têm identificado a importância desse instrumento de comunicação,

de produção e transmissão de conhecimentos, integrando a tradição escolar há, pelo menos,

dois séculos e por representar “um objeto cultural contraditório que gera intensas polêmicas e

críticas de muitos setores, mas tem sido sempre considerado como um instrumento

fundamental no processo de escolarização” (BITTENCOURT, 2004, p. 1).

Esta também é a perspectiva de Chervel (1990), quando afirma que “dos diversos

componentes de uma disciplina escolar, o primeiro na ordem cronológica, senão na ordem de

importância, é a exposição pelo professor ou pelo manual de um conteúdo de conhecimentos”

(CHERVEL, 1990, p. 202), e que cabe ao historiador das disciplinas, “se não pode examinar

minuciosamente o conjunto da produção editorial, determinar um corpus suficientemente

representativo de seus diferentes aspectos (...)” (CHERVEL, 1990, p. 203).

Considerando como Bittencourt o potencial dos livros didáticos, e as indicações de

Chervel, foi separado e analisado um corpus significativo desses manuais, dentre aqueles que

contemplam uma abordagem do conceito e ou definição de número natural, com a finalidade

de encontrar indícios de diferenças existentes no tratamento desse conceito durante a vigência

do MMM no Brasil, quando comparados a edições de duas décadas anteriores a sua

disseminação (1940-1950) e de duas décadas posteriores ao seu enfraquecimento (1980-

1990).

A ilustração 1, fornece indícios que parecem corroborar as indicações de Bourbaki

(1972) quanto à utilização de medidas de grandezas utilizada pelos autores para definir

número natural.

Ilustração 1 - Abordagem de número natural em livro didático editado em 1953.

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Fonte: THIRÊ, Cécil. Aritmética Prática. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1953, p. 5-6.

Na ilustração 2, extraída de um livro didático que não apresenta o ano de publicação, mas

que se supõe ser da década de 40 ou no máximo publicado em 1950, pois apresenta uma referência à

Portaria Ministerial de 11 de julho de 19426, é possível notar que o autor não se utiliza de medidas

de grandezas para definir número natural, parecendo querer relacionar esse conceito como

alguma coisa comum entre diferentes coleções (laranjas, meninos e pedras). No entanto,

parece faltar-lhe ou não ter familiaridade com um vocabulário apropriado para expressar o

que deseja evidenciar.

Ilustração 2 - Abordagem de número natural em livro didático editado na década de 40.

Fonte: GALANTE, Carlos; SANTOS, Oswaldo Marcondes. Matemática - 1ª série Ginasial, p. 71-72.

No parágrafo em que o autor diz : “Essa alguma cousa de comum entre as 3 coleções é

o que se chama número natural”, nos reporta a outras colocações similares feitas por diversos

autores, duas décadas adiante, durante o Movimento da Matemática Moderna ao dizerem:

“Essa propriedade comum entre os conjuntos (possuir a mesma quantidade de elementos) é o

que se chama número natural”. (grifos nossos). É como esse autor quisesse definir número

natural à maneira da Teoria dos Conjuntos, mas sem utilizar as expressões correspondentes

que ficaram corriqueiras a partir do MMM. Ou, apenas querendo dar um caráter mais intuitivo

a esse conceito, sem fazer referência às medidas de grandezas, como parece ter sido usado por

outros autores nesse período.

De acordo com o corpus de livros analisados, supõe-se que a abordagem de número

natural nos livros didáticos brasileiros com base na Teoria dos Conjuntos, tornou-se comum

6 Relação de Portarias que regulavam os programas (conteúdos a serem contemplados) e as orientações metodológicas para o seu desenvolvimento: Portaria Ministerial de 18 de abril de 1931; Portaria Ministerial de 11 de julho de 1942, Portaria Ministerial de 02 de outubro de 1951 e Portaria Ministerial de 14 de dezembro de 1951. Ver STAVALE, Jacomo. Elementos de Matemática - segunda série do curso ginasial. V.2.São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1954, p. apresentação.

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aproximadamente 80 anos após o surgimento e divulgação dessa teoria, fazendo-se notar

fortemente a partir do Movimento da Matemática Moderna.

Segundo Chervel,

A história das disciplinas se dá frequentemente por alternância de patamares e de mudanças importantes (...). Os períodos de estabilidade são separados pelos períodos ‘transitórios’, ou de ‘crise’ , em que a doutrina ensinada é submetida a turbulências. O antigo sistema ainda continua lá, ao mesmo tempo em que o novo se instaura: períodos de maior diversidade, onde o antigo e o novo coabitam, em proporções variáveis. Mas pouco a pouco, um manual mais audacioso, ou mais sistemático, ou mais simples do que os outros, destaca-se do conjunto, fixa os ‘novos métodos’, ganha gradualmente os setores mais recuados do território, e se impõe. É a ele que doravante se imita, é ao redor dele que se constitui a nova vulgata (CHERVEL, 1990, p. 204).

O Movimento da Matemática Moderna parece representar um forte exemplo do que

nos diz Chervel e pode ser percebido a partir das mudanças ocorridas nos livros didáticos

editados nas décadas de 60 e 70.

A publicação que parece ter sido referência no contexto do MMM no Brasil foi o

volume I da Coleção Matemática – Curso Moderno, para os ginásios, publicada em São

Paulo, pela Companhia Editora Nacional em janeiro de 1964, do Professor autor Osvaldo

Sangiorgi, considerado o líder desse movimento no país.

Ilustração 3 – Abordagem de número natural em livro didático editado em 1969.

Fonte: SANGIORGI, Osvaldo. Matemática – Curso Moderno - para os ginásios. 13.ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969, p. 35.

Na ilustração 3 é visível a utilização da linguagem matemática decorrente da Teoria

dos Conjuntos na abordagem de número natural, apresentada pelo autor. Os conceitos

expressos por conjuntos equipotentes e por correspondência biunívoca passaram, a partir

dessa obra, a fazer parte da apresentação de número natural, em praticamente todos os

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didáticos editados nos vinte anos seguintes ao lançamento desse livro de Osvaldo Sangiorgi

(grifos do autor).

No final da década de 60 e em grande parte da década de 70, e a proliferação de livros

didáticos contendo em seu título os adjetivos moderno, novo ou renovado, encheu as

prateleiras das livrarias, e nesses manuais, a abordagem de número natural apresentava mais

ou menos as mesmas características observadas na ilustração 3, ou seja, a conceituação ou

definição de número natural utilizava a nomenclatura decorrente da Teoria dos Conjuntos,

identificando o número natural como a propriedade comum de conjuntos equipotentes ou em

correspondência biunívoca, como é possível perceber na ilustração 4.

Ilustração 4 - Abordagem de número natural em livro didático editado em 1979.

Fonte: AGUIAR, Hélio B.; ABREU, Leo de; MARQUES, Wilson L Matemática – 1º.Grau: 5ª. Série .Belo Horizonte: Editora Lê, 1979, p. 35.

Chervel interpreta esse fenômeno da semelhança entre os livros didáticos e a

proximidade entre as abordagens de conteúdos, ao qual ele denomina ‘vulgata’, explicando

que

Em cada época, o ensino dispensado pelos professores é, grosso modo, idêntico, para a mesma disciplina e para o mesmo nível. Todos os manuais ou quase todos dizem a mesma coisa, ou quase isso. Os conceitos ensinados, a terminologia adotada, a coleção de rubricas e capítulos, a organização do corpus de conhecimentos, mesmo os exemplos utilizados ou os tipos de exercícios praticados são idênticos, com variações aproximadas (...). A descrição e a análise dessa vulgata são a tarefa fundamental do historiador de uma disciplina escolar. (CHERVEL, 1990, p. 203)

No final da década de 70 e durante a década de 80, quando o MMM já havia

arrefecido, após ter recebido muitas críticas em função de vários fatores, sendo um deles, a

atenção além da necessária à Teoria dos Conjuntos em detrimento de outros conteúdos

considerados fundamentais no ensino de Matemática, os adjetivos moderna, nova ou renovada

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aplicados ä Matemática foram desaparecendo dos títulos dos livros didáticos, bem como a

formalização com que era definido número natural.

Alguns didáticos, apesar de trazerem em sua apresentação, certa censura aos exageros

que estavam sendo cometidos em nome da Teoria dos Conjuntos em prejuízo das

competências de cálculos elementares, continuaram a abordar o conceito de número natural,

definindo-o como a propriedade comum entre conjuntos equipotentes ou entre conjuntos que

apresentavam correspondência biunívoca, como pode ser observado nas ilustrações 4 e 5.

Ilustração 5 - Abordagem de número natural em livro didático editado em 1985.

Fonte: CASTRUCCI, Benedito; GIOVANNI, José Ruy. A conquista da Matemática: Teoria

Aplicação. São Paulo: Editora FTD, 1985, p. 8.

Na década de 90, entre os didáticos analisados, não se define número natural como

propriedade comum aos conjuntos equipotentes ou em correspondência biunívoca com a

mesma ênfase observada até a década de 80. As expressões largamente utilizadas como

“conjuntos equipotentes” e “correspondência biunívoca” foram desaparecendo a partir da

segunda metade da década de 80, permanecendo a idéia de número natural, como número

utilizado naturalmente para contar quantidades e que os números naturais formam um

conjunto numérico indicado pelo símbolo IN, como pode ser observado na ilustração 6.

Ilustração 6 - Abordagem de número natural em livro didático editado em 1992.

Fonte: BONGIOVANNI,Vicenzo; LAUREANO, José L. T.; LEITE, Olímpio R. V. Matemática e Vida – 5ª.

Série- 1º Grau. 5.ed. São Paulo: Editora Ática, 1992, p.17.

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Toda aquela formalização precedente, com estudos indispensáveis sobre equipotência/

correspondência biunívoca entre conjuntos como conhecimentos prévios para definir número

natural foi perdendo espaço nos livros didáticos; e quando muito, permaneceu o uso da

expressão “correspondência um a um” para explicar número como idéia de quantidade.

Há naturalmente as pequenas variações; mas, percebe-se que a partir do final da

década de 80 e na década de 90, não parece existir uma preocupação com a definição formal

de número natural, como aconteceu com maior intensidade, nas décadas de 60 e 70, período

em que o Movimento da Matemática Moderna atingiu seu ápice.

Conforme ilustração 6, a formalidade que parece ser conservada em alguns deles, se

comparado às décadas de 60 e 70, é a identificação do conjunto dos números naturais por IN e

a forma de representação entre chaves

Considerações Finais

Na análise realizada sobre as diferenças pelas quais, a grosso modo, passou a

apresentação do conceito de número natural nos livros didáticos brasileiros investigados,

julga-se perceber indícios de que:

A partir do MMM, a apresentação do conceito de número natural foi associada

hegemonicamente à ação de “contar” e não “medir” como sugeriam parte dos didáticos de

períodos anteriores.

Havia ênfase na linguagem matemática utilizadas para tratar o conceito de número

natural nas décadas de 60 e 70, conformadas à Teoria dos Conjuntos, que acentuava a

formalização dessa disciplina, se comparados aos tratamentos utilizados antes da

disseminação do MMM e depois do seu arrefecimento.

O fenômeno ao qual Chervel identifica por “vulgata” parece ter se concretizado, a

partir do livro Matemática Ensino Moderno, publicado por Osvaldo Sangiorgi, em 1964,

sugerindo que este veiculador do MMM trouxe diferenças na forma de apresentação de

conceitos matemáticos à comunidade escolar, além de movimentar o mercado livreiro.

Após a fase áurea do MMM, a ênfase dada à Teoria dos Conjuntos no que diz respeito

ao tratamento de número natural nos didáticos foi minimizada, mas conservou-se a idéia de

número natural associado às contagens e o conjunto infinito e ordenado dos números naturais

oficializou-se como conjunto IN.

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Como Chervel já havia defendido, a escola não é como muitos pensam, o lugar da

sujeição, do conservadorismo, do imobilismo, da inércia, da rotina. As mudanças

apresentadas, embora lentas, parecem mostrar que “a disciplina, ainda que pareça imune por

todos os lados, não é uma massa amorfa e inerte” (Chervel, 1990, p. 198).

REFERÊNCIAS

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