chatô, o rei do brasil - uniforjornal.files.wordpress.com · transportado para a elegante clínica...

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  • CHAT, O REI DO BRASILFernando Morais

    (c) 1994

  • Para Marina

  • Andr Malraux alimentava a iluso de escrever a biografia do Chiquinho Matarazzo, mas euconsegui demov-lo dessa rematada besteira. Acho que, como vingana, tentou escrever um livrosobre a minha vida, mas acabou desistindo. Depois foi a vez do padre Dutra, que cercavaparentes meus pelas esquinas, em busca de informaes para compor um romance sobre a minhavida. Quem tambm andou bisbilhotando as minhas misrias, com planos de imortalizar-me empapel, foi a princesa Bibescu, da Romnia, editora e escritora. Os trs fracassaram, mas a todoseu havia feito uma modesta exigncia: a obra teria que comear descrevendo a cena em que eu eminha filha Teresa aparecamos nus, sentados na foz do rio Coruripe, comendo bisposportugueses, tal como fizeram meus ancestrais caets, quatro sculos atrs. O deslumbrantepiquenique, que j povoou alguns delirios meus, seria a forma ideal de divulgar a origem do meusangue amerindio na Europa.

    Assis Chateaubriand

  • Captulo 1

    Inteiramente nus e com os corpos cuidadosamente pintados de vermelho e azul, AssisChateaubriand e sua filha Teresa estavam sentados no cho, mastigando pedaos de carnehumana. Um enorme cocar de penas azuis de arara cobria os cabelos grisalhos dele e caa sobresuas costas, como uma trana. O excesso de gordura em volta dos mamilos e a barriga flcida,escondendo o sexo, davam ao jornalista, a distncia, a aparncia de uma velha ndia gorda. Pai efilha comiam com voracidade os restos do bispo Pero Fernandes Sardinha, cujo barco adernaraali perto, na foz do rio Coruripe, quando o religioso se preparava para retornar ptriaportuguesa. Quem apurasse o ouvido poderia jurar que ouvia, vindos no se sabe de onde,acordes do Parsifal, de Wagner. No cho, em meio aos despojos de outros nufragos,Chateaubriand viu um exemplar do Dirio da Noite, em cujo cabealho era possvel ler a data dofestim canibal:15 de junho de 1556. De repente o dia escureceu completamente e ele sentiu algomido e frio encostado em seu pescoo.

    O delrio fora interrompido pelo gesto do enfermeiro que esfregava um chumao de algodoembebido em iodo na garganta do paciente. Ao lado, o cirurgio duvidara que aquele homem - ointerno nmero 4695 - tivesse 67 anos, como informava a ficha do hospital. A pele alva era lisa,quase feminina, sem rugas nem estrias, contrastando com o pescoo pequeno e grosso, tpico denordestino. Atravs da janela de dez por dez centmetros cortada no centro do lenol cirrgicoque cobria o corpo da cabea aos ps, s era possvel ver, alm do pescoo, as pontas salientesdas clavculas. O rosto estava inteiramente oculto pelo lenol, sob o qual se desenhava o formatoda mscara de baquelita que envolvia o nariz e a boca do paciente, dando ao perfil a aparnciade um focinho. O tecido branco cobria parte de um tubo de borracha sanfonada que estava ligadoa um tambor de ao, de cujo interior o nico pulmo vivo do doente tentava desesperadamentesugar oxignio para manter o organismo funcionando. A respirao estava ficando crtica, e se acnula da traqueostomia no fosse introduzida logo, as chances de sobrevivncia do pacienteseriam nulas. O indicador e o polegar esquerdos do mdico esticaram a pele abaixo do pomo deAdo, escolhendo o anel da traqueia que seria secionado pela inciso. Estendida para o lado,num gesto mecnico, a mo direita recebeu o bisturi, cuja lmina em forma de meia-lua brilhava luz forte do refletor preso no teto. Quando o cirurgio encostou o aguado fio de navalha nagarganta do doente, acabou a luz do hospital e a sala foi tomada por completa escurido.

    - Puta que pariu! - o mdico levantou a mo direita num solavanco, como se tivesse levado umchoque. - Mais um segundo e eu degolava o homem!

    Indiferente ao palavro, uma enfermeira saiu pela sala cirrgica tateando o ar em busca damaaneta da porta:

    - Vou mandar ligar o gerador de emergncia, doutor.Antes que ela conseguisse sair, a luz voltou junto com o rudo de um gerador que comeava a

    funcionar no poro da clnica. Mal-humorado, o mdico dava ordens:- Esterilizem os instrumentos de novo. Enfermeiro, me d mais iodo, vamos comear tudo

    outra vez.No houve tempo para comear nada. O gerador engasgou uma, duas vezes, a luz piscou e

    apagou de novo. O mdico desabafou, a voz filtrada pela mscara de linho que cobria metade doseu rosto:

  • - No possvel! Algum rogou praga neste sujeito. Se ele escapar desta, no morre nuncamais.

    Inerte sobre a mesa de operao, imerso em coma profundo, jazia o jornalista Francisco deAssis Chateaubriand Bandeira de Melo, um dos homens mais poderosos do Brasil. Ele foratransportado para a elegante clnica Doutor Eiras, no bairro de Botafogo, Zona Sul do Rio deJaneiro, na manh do dia anterior, 26 de fevereiro de 1960, sob a falsa suspeita de estar sofrendoum infarto. O diagnstico errado levou-o diretamente ao pronto-socorro cardiolgico. Ao tentarreanim-lo, um jovem mdico de planto comprimiulhe com tal fora o trax que uma dascostelas trincou. Chateaubriand no reagiu agresso, nem deu qualquer sinal de que fosserecobrar os sentidos.

    Assustado com a responsabilidade de ter nas mos a vida de algum to importante, oestagirio pediu que chamassem com urgncia o prprio dono do hospital. Meia hora depoischegaria um homem alto, magro, de nariz comprido, aparncia melanclica e ombros curvados -o mdico Abraho Ackerman, um dos scios da clnica e o mais famoso e festejadoneurocirurgio brasileiro.

    Ackerman cruzou cabisbaixo a pequena multido de reprteres, polticos e mulheres elegantesque se amontoavam nos jardins em busca de notcias do ilustre moribundo.

    Atravessou sozinho a recepo, sumiu em uma porta e minutos depois reapareceu vestido deguarda-p branco, levando na mo direita uma maleta de couro negro.

    Caminhou at o setor de cardiolo gia e j encontrou Chateaubriand cercado por uma dzia demdicos e enfermeiros. Sem cumprimentar ningum, ordenou:

    - Tirem a roupa dele.Enquanto os enfermeiros se esforavam para mover aquele corpo inerte e despi-lo do terno de

    linho branco, Ackerman tirou da malinha um pequeno instrumento de metal brilhante, como umacolher de caf de cabo desproporcionalmente longo. Deu dois passos at a cama e iniciou umexame clnico sumrio. Ao abrir as plpebras do doente, deparou com duas pupilas baas quepareciam anunciar que aqueles olhos jamais veriam de novo o que quer que fosse. Mexeu aprpria cabea alguns centmetros para o lado, para permitir a incidncia da luz do refletor sobreos olhos opacos,arregalados por seus dedos. Os cantos da boca de Ackerman caram, dando atenta e silenciosa plateia o primeiro indcio de que a coisa ali no ia bem. Deu um passo, paroudiante dos joelhos de Chateaubriand e martelou de leve sob cada uma das rtulas com oinstrumento de metal, testando os reflexos: nada. Nenhum msculo se movia, nada respondia aoestmulo. Tirou um estetoscpio da maleta, fechou os olhos como se aquilo o ajudasse a ouvirmelhor e auscultou o peito plido do jornalista em vrios lugares. Voltou mesa lateral e olhouradiografias e papis com resultados de exames. Com o ar cada vez mais preocupado, agachoudiante da sola dos ps do doente e passou a dar batidas suaves na juno dos dedos com a plantados ps, horizontalmente, na expectativa de que, como acontece com os macacos e os bebsrecm-nascidos, os dedos agarrassem instintivamente o estilete rolio. Tentou em vo uma, duas,vrias vezes, ora num p, ora no outro.

    Derrotado pela inrcia do corpo, Ackerman ps-se de p e, grave, anunciou o diagnstico:- Infelizmente no foi um infarto. Ele apresenta sinal de Babinski nos dois ps. Isso significa

    que o doutor Assis Chateaubriand sofreu uma leso neurolgica grave, provavelmente umatrombose dupla, que afetou seu crebro bilateralmente. Tudo indica que ele esteja tetraplgico. Oedema parece ter provocado tambm um distrbio respiratrio profundo: um dos pulmes j no

  • funciona. Ele no vai sobreviver.Os raros amigos ntimos e os auxiliares mais prximos de Chateaubriand j suspeitavam, nos

    ltimos meses de 1959, que sua sade no ia bem.Exmio remador e nadador, avesso bebida e aos cigarros - que detestava -, gabava-se s

    gargalhadas de ter uma "sade muar ". Em setembro daquele ano, no entanto, ele surpreendera atodos com um gesto que pareceu um pressgio do que lhe aconteceria cinco meses depois: paraespanto generalizado, assinou uma escritura pblica doando a 22 empregados 49% do controleacionrio do maior imprio de comunicaes jamais visto na Amrica Latina, os Dirios eEmissoras Associados. A imprensa internacional noticiou que um "milionrio excntrico" haviadado um conglomerado de noventa empresas de presente a trabalhadores: dezenas de jornais, asprincipais estaes de televiso, 28 estaes de rdio, as duas mais importantes revistas paraadultos do pas, doze revistas infantis, agncias de notcias, agncias de propaganda, um castelona Normandia, nove fazendas produtivas espalhadas por quatro estados brasileiros, indstriasqumicas e laboratrios farmacuticos, estes encabeados pelo poderoso Schering. Dias antes doanncio da partilha ele, que nove anos antes tinha sido o pioneiro na instalao da televiso naAmrica Latina, inaugurara a Tv Piratini, em Porto Alegre, a sexta de sua cadeia e a primeira doCone Sul. A colossal rede de comunicaes se estendia do alto do rio Madeira, nos confins daselva amaznica, at Santa Maria da Boca do Monte, nas vizinhanas do Uruguai. Para alguns, adoao de um patrimnio to valioso a empregados era "mais uma loucura do Chat", como eraconhecido. Outros imaginavam que, vendo a morte se aproximar, Chateaubriand decidira seantecipar ao destino e resolver em vida o problema da sucesso nas suas empresas.

    Embora ele jamais admitisse ter qualquer problema de sade, os amigos comentavamdiscretamente, entre si, que os sintomas de distrbios se tornavam cada vez mais frequentes. Nocomeo de fevereiro o jornalista Carlos Castello Branco, colunista de sua revista O Cruzeiro,cruzou com o patro na antessala da diretoria do Banco Nacional de Minas Gerais e ouviu ocomentrio do dono do banco, o mineiro Jos de Magalhes Pinto:

    - Est acontecendo alguma coisa com o Chateaubriand. Ele engordou muito ultimamente e estcom um ar meio aparvalhado. Na idade dele, isso pode ser um mau sinal.

    A amiga paulista Maria da Penha Miiller Carioba chamou a ateno do jornalista mais de umavez para o inchao no rosto, os esquecimentos imperdoveis em algum de memria to atilada ea repetio desconcertante de um antigo cacoete: os cochilos em pblico. Ao longo da vida,espetculos teatrais e discursos solenes sempre funcionaram como sonfero infalvel paraChateaubriand, que costumava deixar de sobreaviso Irany, o fiel secretrio particular que elearrastava para onde fosse, a fim de evitar vexame maior:

    - Enquanto for apenas um cochilo, deixe-me dormir em paz que eu acordo logo.Quando eu comear a roncar muito alto, chute minha canela sob a mesa.Agora, entretanto, ele ressonava ao despachar com auxiliares, cochilava durante a assinatura

    de contratos importantes, j dormira at no meio de uma audincia com o presidente daRepblica. Interrompia grosseiras descomposturas nos subalternos com o queixo enfiado nopeito, olhos fechados, roncando - sua frente, surpreso, o funcionrio no sabia se ia embora ouse esperava de p at que o patro acordasse para encerrar o sermo. Depois vieram asvertigens. Em ambientes abertos ele andava normalmente, mas os espaos fechados, estreitos,faziam-no caminhar como um bbado. Para vencer os quinze metros que iam do seu caticogabinete ao elevador do prdio de O Jornal, na rua Sacadura Cabral, no centro do Rio de

  • Janeiro, perdia o prumo e camboleava, quase trombando nas paredes. Os que suspeitavam deproblemas circulatrios ou vasculares e se atreveram a aconselhar uma visita ao mdico tiveramo desprazer de ver um bicho raivoso. Nesses momentos ele se transtornava. Rangia os dentescom tal violncia que o rudo chegava a incomodar o interlocutor; sapateava os pequenos ps nocho e berrava palavras metralhadas com um sotaque nordestino to carregado que poucosentendiam o que dizia. A tambm era possvel conhecer outro sestro peculiar - quando queriaagradar, adoar, o tratamento era "vosmec".

    Para ofender, "senhor" ou "senhora", sempre:- O senhor se meta com a sua vida. No preciso de mdicos e muito menos de conselhos.Reconhecia a grosseria e recuava s gargalhadas:- Estou muito bem, imagine. Quem pode atestar minha boa sade so as mulheres. As

    mulheres! No se preocupe, eu vou morrer no ar, vou explodir dentro de um avio, em pleno ar!Indiferente s advertncias, seguia como se nada o ameaasse. Dividia o tempo entre a

    embaixada do Brasil em Londres - cargo para o qual havia sido nomeado pelo presidenteJuscelino Kubitschek no final de 1957 - e o comando de seus negcios no Rio e em So Paulo.Para desconforto do ministro das Relaes Exteriores, seu velho amigo Horcio Lafer, o tempoque passava no Brasil era infinitamente maior que o dedicado embaixada. Altos funcionrios decarreira do Itamaraty, inconformados com a entrega de um dos mais importantes postos daChancelaria a um estranho corporao, eram os primeiros a ironizar seu desempenho:

    - Quem somar os dias que Chateaubriand passou em Londres nesses trs anos descobrir quena verdade ele embaixador do Brasil na Inglaterra h apenas trs meses - debochavam -, mas oForeign Office prefere assim. Estando no Brasil ele causa menos constrangimentos Chancelariabritnica.

    Sua impacincia em permanecer na Inglaterra o tempo exigido pelo cargo fez com que, sendoele o embaixador de direito, o posto fosse exercido de fato pelo ministro-conselheiro AntnioBorges Leal Castello Branco, irregularidade freqentemente denunciada pelos jornais que lhefaziam oposio.

    Chateaubriand dedicava a estas e outras crticas o mais olmpico desprezo.No mximo, repetia o clich:- Isso coisa de comunistas, de ndios botocudos. Gentinha atrasada, esses jornalistas

    brasileiros. Pensam como africanos...Por mais tentadores que fossem os encantos da "Corte de Saint James", como ele se referia

    Inglaterra, era a seduo exercida pela poltica brasileira que o atraa permanentemente para oeixo Rio-So Paulo. Sobretudo naquele final de 1959: no ano seguinte haveria eleiespresidenciais e em poucos meses seria inaugurada a chamada "obra do sculo "- Braslia, a novacapital brasileira, uma cidade nascida do nada, construda no meio do mato em trs anos porKubitschek. Mesmo sendo devedor ao presidente por sua nomeao para um dos mais cobiadosempregos do Brasil, Chateaubriand tornou-se um adversrio pblico da mudana da capital.Ainda que permitisse a seus jornais cobertura jornalstica simptica ao empreendimento, elepessoalmente, em artigos assinados, era implacvel nas crticas ao presidente, a quem chamavade "o fara Kubitschek". Alheio ingratido, Juscelino mantinha-o em Londres.

    Era um jogo que interessava a ambos: ter como embaixador na Inglaterra um cido crtico desua obra mais importante somava pontos imagem que Kubitschek cultivava com carinhoespecial - o presidente queria passar histria como um democrata, um estadista generoso, que

  • no guardava ressentimentos pessoais. Chateaubriand, por seu lado, alimentava o mito de queseus jornais podiam defender posies opostas s do dono - muito embora essa aparenteliberalidade editorial escondesse uma velha ttica que ele adotava com habilidade havia meiosculo: acender uma vela para cada santo e, assim, garantir ao seu imprio sempre uma portaaberta em cada lado.

    Mesmo tendo jurado, de maneira teatral, jamais pr os ps na futura capital do Brasil, medida que se aproximava a data da inaugurao ele foi mudando de posio, argumentando queo mal maior - a construo - j estava feito e agora no restava outra alternativa seno ocupar acidade. No fim do ano j era um defensor de Braslia. Na noite de Natal, enquanto vestia osmoking para ir a um jantar da alta sociedade carioca, brigou com seu amigo e principal reprter,David Nasser, exatamente porque o jornalista atacara a nova capital em artigos publicados narevista O Cruzeiro:

    - Todo mundo j reconhece a grandeza de Braslia, de Furnas, de Trs Marias. S voc insisteem ser contra, turco maldito. S voc, com esse seu eterno pessimismo. Por qu?

    Por que no muda de ideia, como eu mudei?- Porque tenho a minha opinio.- Opinio? Se voc quer ter opinio, compre uma revista.- Se o senhor est precisando de um jornalista sem opinio, compre um de salrio mnimo. Eu

    me demito.Chateaubriand largou sobre a cama a camisa nova, da qual catava alfinetes, e bateu

    carinhosamente no ombro do empregado:- No faa uma coisa dessas. Um louco como o Juscelino no merece o fim da nossa amizade.

    Estou lhe pedindo, por favor.Nasser sabia que aquela conversa era uma espcie de jogo no combinado entre os dois. Ele

    se gabava de ter sido anti-Dutra quando o patro era dutrista, anti-Vargas quando Chateaubrianddefendia a permanncia de Vargas, e agora atacava Kubitschek em pleno idlio do chefe comJuscelino.

    David Nasser ficou. Semanas depois Chateaubriand sairia a pblico para defender opresidente da "campanha pertinaz" que lhe movia O Estado de S. Paulo, que ele passara a chamarironicamente de "o porta-voz do esquerdismo udenista" :

    - O Estado agora deu de negar tudo o que a administrao Kubitschek tem promovido peloprogresso do Brasil. Se algum nesta terra tomasse a srio os vaticnios desse jornal, o abismo jhaveria tragado este pas. A sorte que os leitores olham os articulistas do Estado como umafauna delirante, recrutada entre o que o paroxismo partidrio tem de mais doentio.

    Se Assis Chateaubriand estava mal, como suspeitavam seus amigos, isso no transparecia emseus escritos e muito menos em sua febril atividade poltica. Quando foi nomeado embaixador emLondres, tentou em vo manter a cadeira de senador pelo estado do Maranho, embora aConstituio fosse clara quanto ilegalidade de algum ocupar simultaneamente os dois cargos.Assumiu em Londres sem ter renunciado ao mandato parlamentar, que acabou sendo extinto pelaMesa do Senado. Mas continuou fazendo poltica como se ainda fosse senador. O mesmoKubitschek que ele defendera semanas antes era insultado nos primeiros dias de 1960 naspginas de seus jornais. "Em vez de perturbar a vida da Brazilian Traction, que tanto tem feitopor este pas", escreveu, "o presidente deveria se dedicar a arranjar titica de galinha para adubarnossos cafezais.

  • Trabalhe duro, forte e feio em titica de galinha, presidente, que o melhor que pode haver emmatria de esterco para a recuperao dos nossos cafezais." As vsperas da trombose, chamavaKubitschek de "pateta alvar ' porque o presidente prometera pr fim condio do Brasil defornecedor de matrias-primas para os pases industrializados:

    - Nesse ponto, minhas divergncias com o presidente Kubitschek sempre foram as maiores emais profundas. Por toda parte, na Inglaterra, me apresento com orgulho como produtor dealgodo, caf, milho, arroz e mamona. Se depender de mim, o Brasil continuar por mais trintaanos como produtor preferencial de matrias-primas.

    Exageradamente elegante, Kubitschek responderia ao artigo malcriado com um convite para ojornalista ir a Braslia, ainda no inaugurada, participar da recepo que o governo ofereceria noPalcio da Alvorada ao presidente dos Estados Unidos, Dwight Eisenhower, que ali iniciariauma viagem oficial de quatro dias pelo Brasil. A deferncia era completa: na manh de tera-feira, 23 de fevereiro, Chateaubriand embarcou no avio presidencial em companhia daprimeira-dama, Sarah Kubitschek, com destino futura capital. No avio ia tambm um velhoamigo seu, o banqueiro Walther Moreira Salles, ento embaixador do Brasil em Washington.Dias antes, ao chegar ao Brasil para preparar a viagem de Eisenhower, Moreira Salles lera umanotinha em O Jornal, certamente escrita por Chateaubriand, em que era citado como "dono dasegunda fortuna do Brasil". Mineiro discreto, avesso a coisas desse tipo, ele aproveitou a viagempara cobrar do amigo a referncia provocadora:

    - Chateaubriand, por que voc escreveu aquela bobagem? Voc sabe que nem verdade esabe tambm que eu no gosto dessas coisas...

    Ele admitiu o crime e, sem risos, revelou que a causa era a informao que chegara a seusouvidos de que o Moreira Salles, o slido banco do embaixador, andara arranjando dinheiropara o jornal ltima Hora, de seu arquinimigo Samuel Wainer:

    - Foi s uma advertncia, Walther. Voc sabe que neste pas h dois homens de quem eu tenhocimes como se fossem mulheres: voc e o Eugnio Gudin. E voc anda me corneando com oSamuel Wainer.

    Ao chegarem a Braslia, um aguaceiro desabava sobre a cidade - e foi com a barra das calassalpicada de lama que Chateaubriand almoou com o presidente e o general Juraci Magalhes,governador da Bahia. s duas da tarde, Kubitschek convidou os dois para o acompanharem nasaudao que faria pelo rdio do helicptero presidencial a Eisenhower, cujo avio j seaproximava da cidade. O presidente estava extremamente cordial:

    - Chat, apesar da chuva o voo vai permitir que voc veja o lago em toda a sua extenso, e lhedar uma boa perspectiva da cidade. Venha conosco.

    No ptio externo do palcio o coronel-aviador Mcio Scorzelli, piloto do helicptero,informou que um dos dois convidados teria de ficar em terra, pois o aparelho no comportavaquatro passageiros. Kubitschek discordou:, - Se s dois podem embarcar, coronel, leve o Juracie o Chat. Eu sigo de carro para a base area e aguardo o presidente Eisenhower l.

    E dirigindo-se a Chateaubriand:- Voc ser o primeiro brasileiro a cumprimentar o presidente dos Estados Unidos.Sade-o em meu nome.Chateaubriand cumpriu emocionado - num ingls com forte acento paraibano - a misso que

    lhe fora atribuda pelo presidente e, de quebra, foi colocado na primeira fila das autoridades quereceberam Eisenhower na base area. Passou o resto da tarde na casa de Israel Pinheiro, diretor

  • da Novacap, a estatal encarregada da construo da cidade, deliciando-se com um de seuspassatempos prediletos, uma criao de beija-flores em cativeiro. Saiu de l e visitou os doisprdios que suas empresas construam em Braslia para a instalao do Correio Braziliense e daTv Braslia. noitinha foi ao hotel, tomou banho e vestiu-se com o apuro que a recepo exigia:apesar do calor infernal que fazia no Planalto Central, vestiu um terno preto de l inglesa, enfiouna cabea um chapu gelot e tocou para o Palcio da Alvorada. Tendo recusado o carro oficialque Kubitschek pusera sua disposio, passou o dia montado em um estropiado jipe dareportagem dos Associados, o mesmo que agora o levava para jantar com o presidente dosEstados Unidos.

    Um inusitado contingente de policiais brasileiros e americanos havia sido mobilizado paragarantir a segurana de Eisenhower no Brasil. No Rio de Janeiro temiam-se hostilidades porparte da Unio Nacional dos Estudantes, a uNE, em apoio revoluo cubana. O governopaulista, por sua vez, anunciara que 7 mil policiais civis e militares estariam de prontido nasruas da cidade no dia 25 para manter a ordem durante as seis horas em que o presidenteEisenhower permanecesse em So Paulo, onde s o governador e mais ningum - jornalistasinclusive - poderia chegar a menos de quinze metros do visitante. Nem a futura capital federal -na realidade apenas um gigantesco canteiro de obras - ficou a salvo do rigor imposto pelasegurana norte-americana. A caminho do palcio Chateaubriand pde ver soldados e policiais paisana espalhados por prdios em obras, escondidos sob viadutos inacabados, falando emradiocomunicadores portteis atrs de moitas de capim. No porto onde terminava a alta gradede arame que cercava o palcio havia soldados do Exrcito armados de metralhadoras, fuzileirosnavais norte-americanos, policiais espalhados por todos os cantos. O jipe no pde passar. Umpolicial brasileiro aproximou-se e ordenou que Chateaubriand descesse e exibisse suacredencial. Sem capa ou guarda-chuva que o protegesse, ele j saiu do veculo indignado:

    - Eu nunca carreguei um documento em toda minha vida! Sou o Assis Chateaubriand,embaixador do Brasil na Inglaterra e diretor dos Dirios Associados!

    Um agente americano que ouvia a conversa se intrometeu:- Imprensa? No entra. Este um jantar privativo. Retire-se.Colrico, o que piorava ainda mais seu ingls, Chateaubriand berrava:- No se atreva, seu moleque, no se atreva! Sou convidado do presidente da Repblica. Fui o

    primeiro brasileiro a saudar o presidente Eisenhower hoje. Me d licena que vou entrar. Tenhopressa.

    Podia ser quem fosse, mas sem identificao no entrava. Chateaubriand perdeu a pacincia.Gritou palavres ininteligveis em portugus e ingls e decidiu ir embora dali.

    Quando subia no jipe algum veio do palcio em seu socorro. Era o seu velho amigo coronelVernon Walters, membro do staff militar de Eisenhower, acompanhado do chefe da Casa Civil daPresidncia da Repblica, Jos Sette Cmara. A notcia do tumulto na portaria chegara aosouvidos de Juscelino e os dois estavam ali para desfazer o equvoco.

    Contrafeito, Chateaubriand aceitou entrar apenas para cumprimentar os dois presidentes.Inventou uma desculpa para recusar o jantar, deixou ra pidamente o salo palaciano, subiu no

    jipe e tocou para o aeroporto. Embirrado com a desfeita, nem sequer passou no hotel para pegara mala e decidiu no retornar ao Rio no Viscount presidencial. No improvisado balco da Panairretirou um dos dois bilhetes que estavam sempre reservados em seu nome em todos os voos daempresa - domsticos e internacionais - e embarcou de volta para o Rio. Minutos aps a

  • decolagem do Constellation, perguntou aeromoa em que ponto da viagem j se encontravam.Ao ouvir a resposta, pediu folhas de papel, baixou a mesa do encosto do banco dianteiro, enfiouos dedos no bolsinho superior do palet, tirou um toco de lpis, lambeu a ponta do grafite einiciou, pela ltima vez, um ritual dirio que j durava meio sculo - escrever mo o artigo dodia seguinte, datando-o do local onde se encontrasse: "Bordo do Bandeirante da Panair do Brasil(entre Braslia e Dores do Indai, Minas Gerais) - 23 de fevereiro"., A luz voltou definitivamenteao hospital logo depois dos dois blecautes e a cirurgia pde ser concluda com xito - quer dizer,a cnula foi introduzida sem maiores problemas na traqueia, embora o paciente permanecesse emcoma. Desde o dia anterior os mdicos ocultavam da opinio pblica a gravidade do quadrodivulgando boletins oficiais que falavam apenas em "crise hipertensiva" , mas j se sabia queChateaubriand estava condenado.

    Para manter as aparncias, sua rede de jornais havia publicado, depois do texto escrito noavio, dois artigos velhos, localizados em gavetas da redao: "A juriti de Mayfair ', escrito emsetembro do ano anterior, e "A revoluo da gua no Mxico e na ndia", feito dez dias antes emsua fazenda Rio Corrente, no interior de So Paulo. Apesar do sigilo, notcias de seu estado realcirculavam por todo canto. A clnica Doutor Eiras, um vasto conjunto de casares de doispavimentos cercados por palmeiras e rvores frondosas, tornara-se pequena para receber tantagente. A informao bateu em Londres, e a primeira visita ilustre a aparecer na clnica foi oembaixador britnico no Brasil, Geoffrey Wallinger, trazendo duas mensagens. A primeira era dosecretrio de Estado para Assuntos Estrangeiros, Selwyn Lloyd. Embora a diplomacia britnicavisse com alvio a perspectiva de que Chateaubriand deixasse a embaixada em Londres,Wallinger simulou emoo ao chegar ao hospital e, britanicamente, transmitiu "sinceros votos deque sua sade possa ser recuperada brevemente". A outra mensagem, disse o embaixador aosreprteres, vinha "de minha graciosa soberana, a rainha Elizabeth II".

    Preocupada com as notcias que recebera em Buckingham, sua majestade enviava aoembaixador brasileiro, "em meu nome e no do povo da Comunidade Britnica, votos do maispronto restabelecimento". Para produzir to escassas palavras, o gabinete real pedira embaixada britnica no Rio que enviasse um informe ao Foreign Office com um resumo dasituao em que Chateaubriand se encontrava. No extenso documento que Londres recebeu,redigido e assinado pessoalmente por Wallinger, o embaixador britnico ressaltava aimportncia poltica do doente, que era tratado, com surpreendente intimidade, por "Chateau":

    Sua enfermidade tem sido estampada nas manchetes de todos os jornais e veiculada em todasas emissoras de rdio do pas, e o interesse geral que o seu estado de sade desperta d umamedida da influncia colossal que ele exerce no Brasil. Conversei com muitas pessoas a respeitode Chateau - com seus amigos e com seus implacveis inimigos -, e o denominador comum entreos seus comentrios foi que, se ele fosse afastado do panorama brasileiro, esse panoramainevitavelmente sofreria enormes transformaes. Um industrial muito influente fez os seguintescomentrios, os quais correspondem a uma espcie de avaliao racional do homem: - Chateau respeitado, mas com o tipo de respeito engendrado pelo medo e no pela afeio.

    No decorrer dos ltimos anos, parte de sua antiga impetuosidade em questes polticas foiatenuada, e sua influncia na poltica local tem sido, de modo geral, salutar.

    Nem o presidente nem a oposio podem ignor-lo, e se hoje temos pessoas como HorcioLafer e Sebastio Paes de Almeida no governo, e um homem como Walther Moreira Salles comoembaixador em Washington, a responsabilidade cabe a Chateau.

  • Esses no so os homens que Juscelino e Augusto Frederico Schmidt gostariam de havercolocado nesses postos; porm, fazer de Chateau um inimigo teria sido por demais perigoso, atmesmo para o governo de fato no poder. A desapario deste personagem deve, por conseguinte,causar um enorme impacto no pas.

    O presidente Juscelino Kubitschek aparecera em pessoa no fim da tarde, aps determinar quesua mulher, Sarah, e o vice-presidente da Repblica, Joo Goulart, fizessem visitas dirias emseu nome. Dois funcionrios dos Dirios Associados foram encarregados de receber etransformar em notcia os 5 mil telegramas que haviam chegado at ento de todas as partes domundo com votos de pesar pela tragdia que se abatera sobre o jornalista.

    Um grupo de elegantes senhores com aparncia de estrangeiros apareceu tarde e foiimediatamente cercado pelos reprteres que imaginavam tratarse de mdicos vindos do exteriorpara assistir o doente, ou membros da comitiva de Eisenhower. Houve certa decepo quando seidentificaram: era a diretoria do Centro Europa Livre, uma associao anticomunista de antigosdirigentes polticos do Leste europeu apeados do poder pelos socialistas depois da guerra: JanReisser, ex-ministro tcheco; Alexandre Nicolaef, exministro da Bulgria; Peter Olins, ex-ministroda Letnia; Frikas Meiras, exministro da Litunia; e Tadeus Skowronski, ex-ministro da Polnia.A pouca familiaridade com a lngua portuguesa - ou apenas um ato falholevou Reisser, opresidente do Centro, a cometer uma gafe com os jornalistas: na sada do hospital, disse queestava ali "para apresentar os psames famlia desse gigante da luta anticomunista". Oseuropeus eram espiados a distncia por um grupo de desafetos: a direo da Associao dosCarregadores de Malas do Aeroporto de Congonhas, de So Paulo, ligada aos comunistas, quefora ao Rio visitar o passageiro que durante longos anos lhes garantira as mais generosasgorjetas. O governador de Nova York, Nelson Rockefeller, telefonara duas vezes aos mdicospe.dindo notcias do amigo doente. Telegramas vindos de cmaras municipais de todo o pasanunciavam sesses solenes em homenagem ao enfermo e a aprovao de leis dando o nome delea ruas e praas. Antecipando-se morte, algumas cidades comunicavam ter dado a AssisChateaubriand "o ttulo pstumo de cidado honorrio". A inspirao para tais iniciativas podeter partido de seus prprios empregados. Em Belo Horizonte, por exemplo, o diretor geral dosAssociados, Pedro Aguinaldo Fulgncio, j havia recebido e cumprido a ordem vinda do Rio demandar as duas emissoras locais, as rdios Guarani e Mineira, tocar apenas msica clssicadurante todo o dia. Em pleno sbado de Carnaval.

    As listas de registro de visitantes espalhadas pelos jardins e salas de espera da clnicaexibiam, no fim do dia, centenas de nomes de ex-presidentes da Repblica, deputados,intelectuais, banqueiros, industriais, militares, diplomatas, jornalistas e, em nmero muitosuperior ao de homens, mulheres, muitas mulheres. Mulheres de todas as idades e origenssociais, mulheres belssimas e mulheres decrpitas queriam saber se ele ia sobreviver. Cobertasde joias, elegantes mulheres do society vindas de vrias capitais brasileiras e at do exterior nodisfaravam o cime com que olhavam para atrizes, coristas, ex-misses, cantoras, bailarinas eprostitutas de luxo do Rio e de So Paulo que circulavam desenvoltas pelos jardins do hospital.Mais que os homens, as mulheres pareciam sinceramente abaladas com o desastre que ameaavao homenzinho que agonizava num quarto atrs daquelas paredes amarelas. Mesmo sabendo quenenhum rudo perturba algum em estado de coma, aps a traqueostomia os mdicos, por fora dohbito, transferiram Chateaubriand para um anexo da clnica mais afastado e tranquilo, chamado"Chal Olind". Ali, onde imaginavam que ele estaria a salvo do burburinho provocado por

  • visitantes e reprteres, instalaram uma tenda de oxignio e equipamentos de emergncia noquarto amplo, com vista para um bosque de jequitibs.

    Todos passaram a aguardar o desfecho final.J era noite fechada quando os cinco mdicos contratados pelos Dirios Associados se

    reuniram mais uma vez em volta do leito do moribundo. Ao cabo de um exame demorado eminucioso, Ackerman, que funcionava como chefe da equipe, pediu que chamassem ao quarto aalta direo dos Associados. Na realidade, a "alta direo" do imprio sempre fora uma nicapessoa, o prprio doente. Na ausncia dele, e por uma espcie de direito adquirido, pois nadaformalizava esse status, trs homens de sua confiana respondiam pela cadeia: seu primo LeoGondim de Oliveira, diretor da revista O Cruzeiro e dos Laboratrios Schering, Joo Calmon,responsvel pela praa do Rio de Janeiro e por um feudo que ia dessa cidade at a fronteira nortedo pas, pulava o Centro-Sul e englobava o Rio Grande do Sul, e Edmundo Monteiro, que dirigiaSo Paulo, Paran e Santa Catarina, embora detivesse o ttulo de "diretor geral" dos Associados.A chamada dos mdicos revelou que a luta pelo poder comeara com o rei ainda vivo. A rigor,apenas os trs deveriam subir, mas a sala foi tomada por diretores de outras reas, reprteressem cargos de direo mas amigos do chefe, colegas de Chateaubriand na Academia Brasileirade Letras. Alm deles, a maioria dos 22 beneficiados com a doao das aes feita cinco mesesantes tambm se sentiam donose surgiram de todos os pontos do pas para garantir que fossecumprida a ltima vontade do imperador. Quem no conseguiu chegar a tempo mandou avisar queestava a caminho. Um silncio excitado e ansioso tomou a sala quando um dos mdicos, instrudopor Ackerman, ps-se a ler a "observao mdica" oficial que, por um lapso, acrescentara umano idade real do paciente:

    - Paciente: Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo, branco, 68 anos, desquitado.O exame neurolgico comprovou a ocorrncia de acidente vascular enceflico, que provocoucoma, tetraplegia, miose intensa, paralisia do vu e das cordas vocais. Foi identificado sinal deBabinski bilateral. A angiografia revelou leso do tronco cerebral e comprometimento da poroinicial da basilar e do ramo espinhal anterior.

    Radiografias indicam a existncia de enfisema pulmonar, bronquiectasias e secreomucopurulenta abundante. Exames para localizao do bacilo de Koch revelaram resultadosnegativos.

    Ningum ali precisava saber o que significava bronquiectasia ou Babinski bilateral paraentender o que tinha acontecido: o Velho Capito, como os bajuladores gostavam de trat-lo,estava indo embora. Delicado, Ackerman traduziu para um portugus mais inteligvel o que foralido por seu assistente:

    - O doutor Assis sofreu uma trombose cerebral dupla. Os recursos mais modernos damedicina foram utilizados para apurar a extenso do quadro. Ele est completamente paralticodo pescoo para baixo, perdeu o paladar e a voz. Um pulmo ficou inteiramente inutilizado.Lamento informar aos senhores que o estado dele crtico. Vou retirar-me para redigir umboletim mdico tornando pblica a traqueostomia de urgncia a que ele foi submetido hoje.

    Na sada Ackerman pegou Edmundo Monteiro pelo brao. O mdico sabia que oficialmenteChateaubriand tivera trs mulheres, de quem tinha se separado e com as quais no se dava mais.Os filhos brigavam entre si e estavam, em graus diferentes, rompidos com o pai. Na dvida sobrecom quem tratar da questo mais delicada, decidiu recorrer formalidade - e formalmenteEdmundo Monteiro era o diretor geral. Ackerman levou-o para outra sala e, com o ar ainda mais

  • melanclico, anunciou:- Doutor Edmundo, os mdicos que assistem o doutor Assis so unnimes: ele est

    sobrevivendo vegetativamente. um milagre que tenha resistido at agora. Quero informar-lheque ele tem poucas horas de vida. Como dirigente das empresas, o senhor pode providenciar osfunerais.

    Monteiro achou natural que coubesse a si a honra de enterrar o chefe.Tirando Austregsilo de Athayde - que afinal no tinha cargo de direo no imprio -, o

    amigo mais antigo de Chateaubriand era ele. Quantos, como ele - a includos o presidente daRepblica, as amantes, os filhos, os Rockefeller, a rainha Elizabeth -, quantos puderam tratar odoutor Assis de "Chat" sem ouvir um palavro como resposta?

    Aquele era um privilgio que tinha custado caro. S ele sabia o que vivera desde a longnquavspera da Revoluo de 30, quando, menino de treze anos, fora redao dos Dirios, em SoPaulo, pedir um emprego de contnuo. Nada mais natural, portanto, que o dr. Ackerman ochamasse para enterrar Assis Chateaubriand.

    Cabelos lisos e glostorados grudados na cabea, bigodinho fino sobre os lbios, o pequeninoEdmundo Monteiro - que conseguia ser ainda menor que o chefe que morria parecia um giganteao entrar no quarto onde estava Chateaubriand. O tom com que pediu para que a maioria dospresentes se retirasse dava ideia de quem que estava mandando. Juntos, ele, Joo Calmon, LeoGondim e Austregsilo de Athayde comearam a acertar os detalhes do enterro. Edmundodefendia que o corpo fosse velado no plenrio do Senado Federal, de onde o funeral sairia parao Cemitrio So Joo Batista.

    Athayde foi contra:- Ele era um imortal, tem que ser velado na Academia Brasileira de Letras, isso uma

    tradio. O Salo dos Poetas Romnticos j est preparado para receber o corpo. Alm disso,ele j no era mais senador, deixou o Senado h trs anos para assumir a embaixada em Londres.

    Algum telefonou ao vice-presidente da Repblica, Joo Goulart, que era tambm opresidente do Senado, e descobriu-se que o regimento interno da casa previa situaes comoaquela: o privilgio de ser velado no plenrio da Cmara Alta era extensivo aos ex-senadores.quela altura o grupo j tinha de novo se ampliado, a cama do doente estava outra vez cercadapor uma dzia de pessoas. A referncia embaixada em Londres fez surgir outra alternativa,proposta no se sabe por quem:

    - Se ele morreu como embaixador do Brasil, o enterro no tem que sair nem do Senado nemda Academia, mas do Itamaraty.

    Um reprter poltico tomou a iniciativa de procurar o prefeito do ainda Distrito Federal, SFreire Alvim, e pedir um caminho do Corpo de Bombeiros para transportar o atade.

    O prefeito respondeu que no, que um homem como Chateaubriand precisava ser levado "sua ltima morada" num blindado militar, que ele prprio se encarregaria de conseguir com omarechal Odlio Denys, que tinha assumido o Ministrio da Guerra duas semanas antes. Aquesto do local do velrio, no entanto, ainda no estava resolvida. Optou-se afinal, por umasoluo salomnica: o corpo seria velado no Senado, mas para que a Academia e o Ministriodas Relaes Exteriores no fossem esquecidos, ele seria sepultado com o fardo de imortal e ofretro passaria pela porta do Itamaraty antes de seguir para o cemitrio. Todos estavam deacordo at que algum lembrou que, tendo ingressado na imortalidade cinco anos antes,Chateaubriand havia engordado bastante:

  • - Vamos precisar tomar emprestado o fardo de outro acadmico. O dele no entra mais nocorpo.

    Agora ele j no era mais Chateaubriand, dr. Assis ou embaixador, mas "o corpo", emboraclinicamente ainda estivesse vivo. E todas as providncias para que o corpo chegassegloriosamente ao Cemitrio So Joo Batista tiveram de ser revistas quando Edmundo Monteirochamou a ateno dos demais para o bvio: era sbado de Carnaval e o enterro ia ser realizadono Rio de Janeiro. Como que um cortejo aberto por um blindado militar levando um mortoilustre poderia atravessar a cidade sem trombar com escolas de samba, blocos de sujos, bbadossambando pelas ruas? No haveria o risco de acontecer uma provocao? E se os foliesdecidissem acompanhar o enterro como se seguissem um bloco carnavalesco? Foi preciso refazertodo o roteiro para evitar que o carter solene do funeral fosse comprometido pela orgia.

    Foi a que Chateaubriand voltou a ouvir. No se tratava de um milagre, mas sem que ningumpercebesse ele viveu por alguns minutos um fenmeno mdico conhecido como"superficializao do nvel de conscincia", que costuma ocorrer em pacientes submetidos aanestesia geral e em vtimas de acidentes violentos. Sem que a pessoa saia totalmente do coma,um de seus sentidos - em geral a audio - volta a funcionar por instantes. Mesmo embriagadopelo efeito dos remdios e pelo choque da trombose, Chateaubriand comeou a escutar tudo oque se dizia sua volta. Podia identificar perfeitamente a voz de Athayde anunciando que ia paracasa preparar o discurso fnebre. "No dia em que nos conhecemos", dizia ele, "Chateaubriand eeu combinamos que o primeiro que morresse seria saudado pelo outro na beira da cova." Aoperceber que o sepultamento de que falavam era o seu, realidade, delrio e fantasia semisturaram, deixando-o aterrorizado. Funeral, que funeral? Ser que aqueles imbecis nopercebiam que ele estava vivo? J ia mand-los de volta aos estbulos, como fizera milhares devezes ao longo da vida, quando percebeu que no tinha voz. Quis mexer os braos, mas nada semovia. Os olhos! Bastaria um olhar severo e eles perceberiam na hora a besteira que estavamfazendo. Nada, o negrume tomava conta de tudo. Nem mesmo os pensamentos ele conseguiaorganizar direito. Longe de trazer luz, cada tentativa de abrir os olhos custava um esforo brutal es aumentava a terrvel sensao de vertigem, em que ele parecia rolar no vcuo de uma espiralnegra, sem fim. Nem a memria se agarrava ao que quer que fosse. A cena da antropofagia, emque ele e a filha comiam o bispo Sardinha, se confundia com outra, onde aparecia um meninoplido e magro como uma lagartixa, sentado sozinho sobre uma pedra grande, no meio dacaatinga. O menino tentava falar, mas a voz no saa, cortada por uma gagueira atroz. Em seguidavoltavam a vertigem, os pedaos do bispo, a espiral, o negrume. Desistiu de tentar entender ondeestava e o que lhe acontecera.

    sua volta as pessoas continuavam falando. Reconheceu a voz de seu querido amigo AntnioSanchez Galdeano contando alguma coisa sobre asfixia e pulmo de ao. Algum comentava amaior tragdia area no Brasil at ento, ocorrida dois dias antes na baa da Guanabara: um Dc-6da Marinha dos EuA, que transportava a banda dos fuzileiros navais americanos (que tocariadurante a visita de Eisenhower), chocou-se no ar com um Dc-3 da Real Aerovias, matando 67pessoas, entre elas todos os msicos da banda. A voz de Galdeano e a referncia a fuzileirosamericanos reavivaram alguma coisa perdida no fundo da memria de Chateaubriand. Resolveutentar de novo recapitular o que lhe acontecera antes da escurido, mas era constantementeinterrompido por mais escurido, pela fantasia do bispo portugus e pela imagem do meninogago, sozinho e tentando falar. Fuzileiros! Ele tinha batido boca com fuzileiros navais na porta do

  • Palcio da Alvorada! Mas quando tinha sido aquilo? Usou o que lhe restava de energia paralivrar-se da escurido e do menino gago e conseguiu reconstituir fragmentos da cena recuperadapela lembrana. Depois da humilhao na porta do palcio, atravessara o gramado com VernonWalters e Sette Cmara. Ouvira pedidos de desculpas do chefe do Cerimonial e caminharaemburrado, a passos rpidos, at a mesa principal, onde se encontravam Kubitschek eEisenhower. A memria guiava-o em direo cara sardenta e sorridente do presidenteamericano quando, no meio do salo, algum o tomara pelo brao, tentando saud-lo. Era ogeneral pernambucano Dantas Barreto, que o metera no xadrez em 1911, em Recife. Nesseinstante uma nuvem de horror tomou conta dos pensamentos de Chateaubriand. Dantas Barreto?Mas Dantas morrera em 1931! Um defunto de trinta anos, fardado e bebendo vinho com Juscelinoe Eisenhower? Mas ento, meu Deus, aquela gente que conversava sua volta tinha razo: eletinha morrido mesmo. Ali devia estar apenas sua alma, ou que nome tivesse o que restara de seuesprito ainda no desencarnado. O choque provocado pela certeza da prpria morte levava-o devolta ao coma total. A audio comeou a desaparecer outra vez, o negrume estava tomandoconta de tudo. Ele ainda conseguiu identificar outra voz que chegara era o mdico Antnio daSilva Mello, seu colega de Academia, o irnico amigo de infncia que entrava na sala da clnica.Calvo, enor mes suas sob as orelhas, pincen pendurado na ponta do nariz, Silva Mello olhou ocorpo por alguns minutos e dirigiu um solene pedido aos presentes:

    - Antes de enterr-lo, no se esqueam de mandar cortar os culhes e do-los AcademiaNacional de Medicina para pesquisas. Talvez a cincia consiga explicar o que que as mulheresviam de to especial nesse sujeito.

    Segundos antes de mergulhar de novo na escurido eterna, Chateaubriand viu pela ltima vezo menino branquelo lutando contra a gagueira.

    S ento percebeu que o garoto era ele mesmo, aos sete anos. Sentiu uma profunda piedade desi prprio e entendeu a imagem como sua derradeira despedida do mundo dos vivos. Sua horafinalmente tinha chegado.

  • Captulo 2

    A gagueira no tinha sido a nica mazela a infernizar a infncia do menino que assombrou os

    resqucios de memria de Chateaubriand. Alm de gago ele era feio, raqutico, amarelo eopilado. A cor da pele - a "palidez goianense" - denunciava os trs sculos da malria ancestralque desfigurava a populao de Goiana, pequena cidade da Zona da Mata pernambucana de ondeviera todo o seu ramo materno. Ele prprio tinha nascido alguns quilmetros acima, na margemparaibana do aude que separava os dois estados nordestinos. No lado sul da represa estava BomJardim, em Pernambuco, e na parte de cima, j na Paraba do Norte, ficava a cidade deUmbuzeiro, nome do modesto conjunto de casas onde ele nascera. Com o correr do tempo,Umbuzeiro carregaria duas glrias e um inslito orgulho: era a terra natal de Chateaubriand e deEpitcio Pessoa e produzira um povo que se gabava de primeiro matar, depois discutir. Os maispacatos diziam com candura que no era bem assim. Ali ningum matava ningum pura esimplesmente. Quando entendia necessrio, Deus Nosso Senhor quem decidia eliminar algunsgalhos decrpitos da espcie humana. Como procuravam viver em comunho com o cu, osumbuzeirenses se encarregavam de cumprir a vontade divina e abatiam esses galhos. Mas quasesempre era sem dor e com misericrdia.

    Os pais de Chateaubriand, Francisco Jos e Maria Carmem, tinham se casado muito jovens,pouco antes da proclamao da Repblica. No dia em que ele nasceu, 4 de outubro de 1892 - Diados Animais e de so Francisco de Assis -, o casal j havia tido o primognito, Jorge. A devooda me ao padroeiro do dia facilitou a escolha do nome do beb, um nome comum como ascentenas de nomes de santos dados a meninos do Nordeste. O sobrenome - ChateaubriandBandeira de Melo -, no entanto, alm de lhe emprestar uma opulncia familiar que a seca e asvicissitudes haviam devastado dcadas antes, ocultava a raiz do tronco materno, Guedes Gondim,e exibia extravagncia europeia pouco comum naqueles confins no final do sculo xix. Esquisitoe impronuncivel para a maioria das pessoas do lugar, o Chateaubriand de seu nome nascerasingelamente de um gosto do av paterno. Admirador do poeta e pensador francs, o fazendeiro eplantador de algodo Jos Bandeira de Melo comprara em meados do sculo uma escola naregio de So Joo do Cariri, na Paraba, e batizara o estabelecimento com o sonoro nome deColgio Franois Ren Chateaubriand. Custou pouco para que ele ficasse conhecido como "o seuJos do Chateaubriand". E menos ainda para a corruptela popular se encarregar de comer acontrao e ele virar apenas Jos Chateaubriand. Apesar de difcil, o nome se incorporou aodono com tal fora que ao nascer-lhe o primeiro filho, Francisco Jos, ele no hesitou emregistr-lo com o sobrenome francs. Com o segundo foi mais simples: ele batizou-o nada menosque com o nome de Chateaubriand Bandeira de Melo.

    A natureza das coisas indicava que Francisco de Assis nasceria em casa abastada.Pelo lado do pai ele teria a contabilizar nomes como o de Joo Capistrano Bandeira de Melo,

    conselheiro do Imprio, governador do Cear e de Minas Gerais. Herculano Bandeira de Melo,primo de seu pai que se apresentava como "o nico cavalheiro sado dos canaviais do matopernambucano", tinha larga folha de servios prestados Coroa.

    Depois de ter sido senador imperial, foi ele quem iniciou, como governador de Pernambucoou"presidente de estado", como eram denominados os governadores estaduais at 1930 -, adragagem e modernizao do porto de Recife e a construo dos servios de esgotos da cidade.

  • O sangue materno vinha dos Marinho Falco, dos Correia de Oliveira e dos Guedes Gondim,poderosos sobrenomes de senhores de engenho cuja pronncia revelava a propriedade deincalculveis populaes de escravos e de latifndios que atravessavam estados. Mas a vida quisque fosse diferente. Ao arrasar os algodoais do Cariri, a seca de 1877 decretou a falncia dosBandeira de Melo. Neto e bisneto de donos de muita terra e muito dinheiro, o advogadoFrancisco Jos Chateaubriand Bandeira de Melo era um modesto juiz municipal em Umbuzeiroem outubro de 1892, quando nasceu Francisco de Assis, seu segundo filho.

    Um rgido orgulho o impedia de aceitar ajuda do sogro Urbano Gondim, capito da GuardaNacional e prspero fazendeiro em Timbaba, do lado de l da divisa pernambucana. O mximoa que consentiu foi receber um favor do conselheiro Joo Alfredo no incio de sua carreira.Festejado nacionalmente como lder da abolio da escravatura, o pernambucano Joo Alfredoocupava pela segunda vez a presidncia do Conselho do Imprio, em 1888, ano em que o pai deChateaubriand se formou em direito.

    Maria Carmem Gondim havia sido criada por uma irm do conselheiro. Ao conhecer o jovemFrancisco Jos, ainda estudante, Joo Alfredo entendeu que era a hora de juntar de novo osBandeira de Melo com os Guedes Gondim-Correia de Oliveira, razes que j haviam se cruzadogeraes antes. Ao promover o casamento dos dois, Joo Alfredo cedeu ao nepotismo e ofereceuao rapaz um dos mais cobiados presentes com que poderia sonhar um recmformado bacharelnordestino: o cargo de promotor pblico em Goiana, terra da noiva e do prprio conselheiro.Mas o emprego duraria pouco - o tem peramento difcil e a vocao nmade de Francisco Joslogo o tirariam de l.

    Aprovado em concurso, deixou Goiana e ingressou na magistratura. A carncia de comarcasna Paraiba fazia dele uma espcie de juiz itinerante, que exercia a profisso assinando sentenasem lombos de burros e balces de farmcias pelo interior do estado.

    Assim, o filho mal chegaria a conhecer Umbuzeiro. Chateaubriand nem havia feito o primeiroaniversrio, em meados de 1893, quando o pai foi destacado para ssumir o juizado municipal deIng do Bacamarte, meia dzia de lguas ao norte de sua cidade natal. Ali ele viveu at 1896.

    O menino custou a comear a falar, e a dificuldade que tinha para pronunciar uma frase inteiraprovocava risos nos adultos e em Jorge, o irmo mais velho. Demorou para a famlia descobrirque aquilo no era um encanto comum s crianas de sua idade: ele j estava beirando os trsanos quando os pais entenderam que o menino era gago. Se a feiura e a magreza no o faziamdiferente dos amigos - ali quase todos eram feios e magros -, a gagueira da infncia otransformaria num tmido incurvel, arredio e envergonhado. Foi nessa poca que o pai, cansadodas dificuldades e da vida de cigano que o cargo lhe impunha, decidiu mudar-se com a famliapara Recife.

    Tentando demov-lo da ideia, o Partido Republicano ofereceu-lhe uma cadeira de deputadofederal pela Paraba. O surpreendente Francisco Jos rejeitou o presente alegando que preferiacriar vacas leiteiras numa pequena chcara que alugara nas redondezas da capital. Cedeu omandato parlamentar para o irmo mais moo, Chateaubriand, argumentando que, embora ocaula fosse mdico e no tivesse qualquer vocao para a poltica, "era o melhor orador dafamlia". Juntou a mulher e os dois filhos e tocou para a cidade grande.

    Foi no sobrado de azulejos da rua da Aurora, em Recife, onde moravam, que nasceram seusdois outros filhos, Oswaldo e Urbano Ganot. A famlia vivia com dificuldades, mas ningum selembra de algum dia ter faltado comida em casa ou escola para as crianas. Mesmo transformado

  • em criador e vendedor de leite, o pai preservava o refinamento intelectual dos antepassados. Osquatro filhos cresceram ouvindo noite, em casa, saraus de msica e de poesia. Um barulhometlico acordava Assis Chateaubriand toda madrugada. Ele j sabia de onde vinha o rudo, massempre repetia o gesto de chegar os olhos beira da janela do quarto para ver o pai, que aindano completara trinta anos, descarregar da carroa os enormes lateschamados garibldis cheiosde leite. Antes de o sol nascer o ex-juiz e quase deputado ia at o stio e trazia para a porta dacasa na cidade, puxando pelo cabresto uma parelha de mulas, a enorme carroa, repleta delates. Ali os distribuidores os recolhiam para entregar o produto aos consumidores, de porta emporta. Na hora do almoo o pai devolvia a carroa ao stio e retornava com a capanga de courorepleta de cdulas midas que desamas sava esticando uma a uma sobre a mesa. Separado porvalores, o mao de dinheiro era entregue religiosamente a d. Maria Carmem, a tesoureira dacasa.

    A agressividade de Recife, os meninos estranhos e o movimento de tanta gente desconhecidas fizeram aumentar ainda mais a timidez de Chateaubriand. Se os irmos Jorge, Oswaldo eGanot podiam ser vistos no meio de bandos de moleques, brigando nas ruas, tomando banho demar e empinando papagaios, o raqutico Francisco de Assis passava os dias agarrado saia dame. J se tinha tentado de tudo para faz-lo engordar um pouco: regimes especiais, canjas, sucoretirado de msculo de boi. Durante meses ele foi obrigado a tomar vidros e mais vidros doenjoativo leite maltado Horlick, "A Nutricious Food-Drink for all Ages", que um marinheirotrazia em caixas no vapor que vinha do Sul, mas nada deu resultado. Os mdicos tranquilizavama famlia: no havia por que se preocupar com a magreza dele, aquilo no era doena. Masquanto gagueira podiam desistir, que a medicina ainda no tinha descoberto a cura para talmolstia. Ele teria de conviver para sempre com a sofreguido de tentar completar cada frase,cada palavra.

    Aconselhados por amigos e parentes, os pais experimentavam mezinhas e tratamentosdomsticos para superar o problema. Punham-no diante de um espelho para que se visse tentandofalar corretamente; apagavam as luzes, noite, para ver se na escurido a voz se animava a saircomo a dos irmos; obrigavam-no a conversar com outros gagos, na esperana de que o dilogopudesse curar um deles. Mas nada dava certo. Ao contrrio, ele ficava mais irritado, emburrava echegava a passar dias sem abrir a boca a fim de no pronunciar nem uma slaba. No dia quetentaram obrig-lo a falar com pequenas pedras sob a lngua - um mtodo infalvel, diziam, que jhavia curado milhares de gagos pelo mundo -, ele comeou a tossir, engasgou e por pouco nomorreu asfixiado.

    O nico e efmero progresso havia sido obtido tempos antes pela pacincia e pelo desvelo dopai. Foi quando se anunciou que o afamado compositor paulista Carlos Gomes estava para chegara Recife. O autor de O guarani chegaria a bordo de um vapor em trnsito para Belm do Par,onde seria empossado como diretor do Conservatrio Musical do Estado - e cidade em que,meses depois, acabaria falecendo. No caminho o navio faria uma escala em Recife, e o maestroseria homenageado com um almoo em Olinda na casa de Eugnio Samico, grande amigo deFrancisco Jos e, como ele, um apaixonado da msica. Encarregado de dar as boas-vindas aovisitante, o pai de Chateaubriand, encheu de elogios meia folha de papel e decidiu que quem fariaa saudao ao maior msico brasileiro seria o filho gago.

    Sem gaguejar. Passou as tardes seguintes lendo o texto para o menino. Lia uma palavra epedia que ele a repetisse. Lia mais uma e esperava at que o garoto pudesse repetir as duas.

  • Trancados num cmodo nos fundos da casa, os dois passaram as tardes naquele maluco exercciode cura e amor. Depois de dez dias de esforo de ambos houve um dia em que o nervosismo dopequeno foi tanto que ele urinou nas calas -, a saudao tinha sido inteiramente decorada. Nodia do almoo, diante da basta cabeleira branca de Carlos Gomes, Chateaubriand no seaterrorizou com a possibilidade de esquecer alguma palavra ou de voltar a gaguejar. Seu nicomedo era urinar na roupa de marinheiro que a me costurara especialmente para a ocasio.

    nica criana no meio de tantos adultos, ele levantou-se a um sinal do pai, caminhou at amesa do maestro e repetiu a mensagem inteira. Sem esquecer, sem gaguejar e sem molhar ascalas. O pai beijou-o emocionado e cochichou no seu ouvido:

    - Quem quase mijou nas calas fui eu, meu filho.Sem saber que tinha acabado de assistir a um milagre, Carlos Gomes levantou-se, beijou a

    fronte do menino e ofereceu-lhe de presente a nica coisa que havia ao alcance da mo: umalaranja-cravo retirada do meio de uma fruteira posta sobre a mesa.

    Guardando absoluto silncio depois de tanto sucesso, Chateaubriand ficou com o pai at o fimda tarde na casa de Samico.

    Juntos acompanharam o cortejo que levou o compositor de volta ao porto e depois tomaram orumo de casa. A notcia da cura j havia chegado rua da Aurora. D. Maria Carmem garantia quea graa alcanada era fruto das novenas que ela e as amigas da Ordem Terceira de So Franciscohaviam feito.

    O santo tinha ouvido suas preces. Quando os dois entraram na casa, a me atirou-se emprantos aos ps do menino. De mos postas ao cu, agradeceu a so Francisco de Assis pelabno. Mas a emoo generalizada durou pouco. Maria Carmem pediu que o filho contasse comsuas prprias palavras como tinha sido a faanha do almoo.

    Chateaubriand tentou falar uma, duas, trs vezes, e desistiu. Continuava to gago quanto antes.A famlia deixou passar alguns meses depois do episdio para voltar a insistir na tcnica da

    memorizao de textos curtos como maneira de curar a gagueira, mas nunca mais teve sucesso.Com o correr do tempo, chegou a hora de enviar o filho escola. No comeo de 1898, como jtivesse quase seis anos, os pais o matricularam em uma escola pblica do bairro.Cuidadosamente recomendado para a professora como uma criana nervosa e problemtica,Chateaubriand nem chegou a completar a primeira semana de aula. Poucos dias aps o incio docurso, um bedel do grupo escolar veio traz-lo de volta me. Vtima de deboches ebrincadeiras dos colegas, ele simplesmente desistiu de falar o que quer que fosse dentro daclasse. De gago ele estava se transformando em mudo.

    Traumatizados com o sofrimento do filho, Francisco Jos e Maria Carmem procuraram outrasescolas, contrataram sucessivas professoras particulares que tentavam alfabetizar o garoto emcasa, mas nada deu certo. Ele se tomava de pnico na presena de estranhos e, alm de nopronunciar uma s palavra, punha-se a chorar. Os pais se renderam. Muito mais grave do que terum filho analfabeto era ter um filho infeliz.

    Quando faltava um ano para virar o sculo, Chateaubriand ganhou uma irm adotiva, Judite,que os pais decidiram criar. Ela se incorporou famlia quando o pai, aborrecido com a vida deprodutor e vendedor de leite, decidiu prestar um concurso federal para o cargo de conferente dealfndega.

    Mais afeito msica e s letras do que s matemticas, Francisco Jos acabou obtendoclassificao to medocre que s lhe restaram duas alternativas igualmente incmodas: assumir

  • a chefia da seo alfandegria em Porto Alegre, no Sul do pas, ou em Belm, no extremo norte.O problema que qualquer uma delas implicaria separar-se temporariamente da famlia, j queseria um desatino mudar-se para to longe com a mulher, os quatro filhos e a filha adotiva.Acabou optando por Belm do Par. Mas antes de partir tomou uma deciso que mudaria a vidado filho complicado: durante o perodo em que o pai ficasse fora, o menino seria criado pelo avmaterno, Urbano Gondim, em Timbaba. Esta, na verdade, era uma antiga prescrio do mdicoda famlia, segundo o qual "a vida selvagem" talvez fosse o melhor remdio tanto para a gagueiraquanto para o raquitismo do garoto.

    Depois de passar um dia inteiro com a cara colada no vidro da janela do trem em queembarcara em Recife, Chateaubriand foi apanhado na estao de Camutanga por Genono,capanga do av, e levado de carroa para Timbaba. As propriedades do capito Urbanocompreendiam um engenho de acar em Sap e outro em Lagoa Cercada, a fazenda Manoel deMatos, de algodo e raras cabeas de gado, no vilarejo de Rosa e Silva, e a fazenda principal,Mocs Velho, toda plantada de cana-de-acar e que ficava em Timbaba, onde ele passaria aviver a partir daquele dia. A rigor, o municpio de Timbaba que tinha sido edificado dentrodas terras do capito. Tudo margeando um e outro lado do rio Capibaribe Mirim.

    As primeiras semanas no mato mostraram que o mdico talvez tivesse razo. Para algum quesofrera tanto com a disciplina, os modos e a gente empertigada de Recife, viver feito bicho eracomo entrar no paraso. Para substituir os almofadinhas que tanto o insultavam na capital, eleadotara como companheiros na fazenda a gente mais simples do mundo: os filhos de colonos,meeiros e modestos empregados do av. No lugar dos emprnados Cavalcanti, Bezerra eMenezes, dos novos amigos ele no sabia sequer o primeiro nome. Eles agora eram o Sirigia, oDedo Mole, o Toinho Venta de Bode, o Juca do Padre e o Canela Preta. Todos, como ele,analfabetos. Antes de o dia clarear Chateaubriand saa da casa-grande carregado de bolas degude e pipas - que l se chamavam bisarronas - e s voltava noite. Frequentemente chegava emcasa com a cara e as pernas escalavradas por brigas ferozes com quem insistisse em rir dagagueira que nem ali o abandonara., Um dia o capito Urbano chamou-o a um canto e, com o arsevero de quem ia anunciar algo muito importante, sentenciou:

    - Gagueira vergonha. Quanto mais vergonha de falar voc tiver, mais gago voc vai ficando.O nico jeito de curar isso falar sozinho. Falar at cansar, at secar a saliva, mas sozinho. Dehoje em diante voc vai passar algumas horas do dia sentado na pedra Preta, na beira do rio,falando consigo mesmo. Se isso no o curar, pode desistir que porque Deus quis que vocficasse desse jeito para o resto da vida.

    No princpio ele de fato sentia muita vergonha, mas era de ficar ali conversando comningum. Falava baixo, com receio de que o vissem e espalhassem que o neto do capito tinhaficado doido. Mas acabou se acostumando. Pa ssou a inventar interlocutores imaginrios, comquem tentava falar sem engasgar. Conversava com o pai, com os amigos ausentes, com a me,com a av Jesuna, com os irmos, com as filhas do capito, suas tias. Mas esses exercciosvocais dirios no o importunavam tanto. Afinal, aquilo era a nica disciplina a que tinha sidoobrigado, e que acabaria resultando eficaz.

    No mais era perambular com aqueles que o av chamava de "a canalha do engenho", os seusnovos amigos. Apanhavam canrios-da-terra e os treinavam para as selvagens rinhas, jogavambola de gude, nadavam, pescavam.

    E provocavam os adultos. Na porta da venda de Pedro Salvador, o bando declamava em coro,

  • para depois fugir s carreiras: Tengo, terengo,tengoMaraviaPedro pelou a meNa gua fria Contra os desafetos os versos beiravam a obscenidade. Benedito Sinfrnio era o dono do

    mais cobiado mangueiral de Timbaba, que ele guardava empunhando uma rudimentarespingarda de sal. Cada investida dos moleques contra as rvores carregadas de frutos erarespondida com tiros certeiros que costumavam deixar as costas e as pernas em carne viva porsemanas. Para ele havia uma cantiga especial: Calango, tango Do calango da lacraia A mulherdo Benedito Foi peidar, cagou na saia Autoritrio e rabugento, o av se preocupava cada vezmais com a metamorfose do neto. Quando o menino chegou a Timbaba ele tinha a certeza deestar diante de um santo. Mas em muito pouco tempo as ms companhias e a absoluta falta defreios o haviam transfigurado. Puxando os pelos da prpria barba, o capito Urbano rosnava pelacasa, o dedo acusador apontado em sua direo:, - Isto nunca ser um homem de verdade! DeusNosso Senhor se apiede de minha filha, que botou no mundo um canalhinha destes, para vergonhae maldio da famlia!

    Onde j se viu um Guedes Gondim desmoralizar a casa-grande, envergonhar sua gente?Os domingos comeavam com o av o obrigando, a poder de cascudos, a acompanh-lo

    igreja:- Anda, capeta. Hoje voc vai pedir perdo a Deus por viver to prximo de Satans. noite, ao levar as trs ltimas filhas solteiras ao baile dominical, era o velho quem ditava

    que ritmos poderiam ser executados pelos msicos. Para irritao das filhas - e das demaisfrequentadoras dos bailes, que nada tinham a ver com o moralismo do capito -, ele j chegavaavisando:

    - Baile frequentado por uma Guedes Gondim s pode ter quadrilha e lanceiro.Figurado, nem pensar.O problema que o chamado "figurado" - os schottisch, as polcas e os pas-de-quatre - era

    exatamente o ritmo que permitia aos pares danar de mos dadas e, num descuido dos pais,arriscar um beijo. Mesmo sabendo que ningum, nem os msicos nem qualquer convidado, seatreveria a desobedecer suas ordens, os bailes deixavam o capito Urbano inquieto. Vigilantecom as filhas, quando perdia o neto de vista j sabia onde encontr-lo.

    Dava a volta nos fundos da casa onde sempre se realizavam aquelas festas para flagr-lotrepado no telhado de um curral de cabras, espiando pelo alto da janela as moas de ccoras nobanheiro, fazendo xixi. Toda vez que isso acontecia, ele era levado para casa arrastado pelaorelha. A av Jesuna era a nica a se compadecer da sorte do neto:

    - Urbano, um dia voc ainda vai matar o Francisquinho. Ele muito fraquinho, no comedireito, no pode suportar castigos to violentos.

    O av, no entanto, estava convencido de que chegara a hora de se livrar do estorvo:- Ns somos os nicos responsveis por isto. Minha filha nos entregou um menino civilizado e

    vai receber de volta um tarado, um pequeno bandido.A av discordava. Francisquinho chegara a Mocs Velho doente do corpo e da cabea, e

  • graas aos exerccios de falar sozinho agora era um menino normal:- Hoje ele uma criana como qualquer outra. Se aos nove anos ele no sabe ler nem

    escrever, isso no problema nosso, ele no veio aqui para ser alfabetizado. O que vale queele chegou aqui gago e ser devolvido falando como qualquer mortal. O menino est pronto paraser amansado, mas isso quem tem obrigao de fazer a me dele.

    Curado ou doente, santo ou demnio, isso pouco importava para o av.A verdade que no queria mais a responsabilidade de ter o neto crescendo como um bicho

    sob seus olhos. Genono foi o encarregado de concretizar a expulso do paraso, levando-o devolta a Recife. S ao chegar capital que soube que a famlia trocara a velha casa da rua daAurora, beira do Capibaribe, por outra no bairro de Dois Irmos, nas imediaes do aude domesmo nome e de outro, menor, chamado aude do Prata.

    Casualmente o pai se encontrava em Recife com a famlia, licenciado por uma semana de seutrabalho em Belm. Foi ele quem mais se surpreendeu com a cura da gagueira do menino.Impaciente, querendo sair logo para conhecer as redondezas do lugar onde iria viver,Chateaubriand mal teve tempo de ouvir o pai contar que, alm dos afazeres na alfndega, eletrabalhava na capital paraense como redator do jornal O Noticias, de Alcides Bahia, e que tinhase tornado pessoa de excelentes relaes no Par:

    - Sou amigo ntimo do governador do estado, Augusto Montenegrogabava-se - e frequentadorassduo do palcio.

    Revelou. tambm que, apesar de levar uma vida boa, estava tentando usar a influncia polticados amigos para transferir-se de volta para a alfndega de Recife. O filho recm-chegado estavapouco interessado naquela aborrecida conversa de adultos, queria mesmo era ganhar logo a rua.Ao tentar escapulir, foi impedido pela me. Insistiu, bateu o p, fez birra e s foi impedidoquando ela decidiu aplicar-lhe a primeira surra da vida. A liberdade a que ele se habituara emTimbaba tinha chegado ao fim. Apanhou no primeiro dia, no segundo, no terceiro. Disposto ano se curvar disciplina materna, apanhava uma vez por dia. Mas nu se entregou. A meconcluiu que a nica maneira de conseguir manter o filho em casa era tranc-lo a chave em umcmodo sem janelas.

    Chateaubriand s pensava e s desejava a volta a Timbaba. L, apesar da severidade doav, ele era livre, fazia o que bem entendesse. Em Recife sentia-se um escravo da me, dosirmos, da ama Rosalina. Aquilo no era uma casa, mas um ptio de priso. Nenhum rigor,entretanto, era suficiente para mant-lo longe da rua. Ele logo se incorporou aos bandos depequenos desocupados que passavam os dias enfurnados nas matas em redor do aude DoisIrmos. Nadava, roubava frutas, seviciava pequenos animais domsticos, empinava bisarronas.

    Quando estava de passagem pela cidade, o pai insistia na velha catequese cultural,imaginando que as artes poderiam ter o condo de afast-lo daquela vida delinquente.

    Nesses saraus - que no chegavam a ser exatamente um castigo para ele -, o filho era levado aouvir interminveis declamaes de poesia nas casas dos amigos, sesses de solfejo e atmaantes leituras de originais de trechos de livros que jamais seriam publicados. Nos fins desemana em que Francisco Jos se encontrava em Recife, o filho era lavado, escovado e vestido acarter para acompanhar o pai casa do engenheiro Ernesto Brotherhood, no bairro de Apipucos.Ali juntavam-se, nos sbados noite, comerciantes, industriais, usineiros de cana e simplesbomios que tinham no amor pela msica uma caracterstica comum. Chateaubriand era a nicacriana a ter o privilgio de ouvir e ver funcionando uma modernidade sem similar no Nordeste,

  • que o dono da casa exagerava ao garantir ser a nica do Brasil: uma victorola - nome tirado dofabricante, a Casa Victor inglesa -, inexplicavelmente chamada pelos pernambucanos de"zonofone" e que alguns garantiam chamar-se, na verdade, gramofone. Recmchegados de navio,discos de peras italianas e francesas, de marchas e de sinfonias magnetizavam o grupo at onascer do sol.

    Mas bastava o pai tomar o navio rumo a Belm para o menino se juntar de novo suaquadrilha. Transformado em tpico moleque de rua, ele era o oposto do garoto amedrontado, gagoe encolhido que deixara Recife poucos anos atrs. Num nico ponto ele permanecia o mesmo.Aos dez anos de idade, continuava to analfabeto como antes.

    Assim, Chateaubriand j era quase um rapazinho quando manifestou pela primeira vez alguminteresse pela leitura. Os rudimentos das primeiras letras lhe foram transmitidos por doisparaibanos - Manoel Tvora Cavalcanti e lvaro Rodrigues Campos - e pelo tio AntnioFeliciano Guedes Gondim, que visitavam com frequncia a casa da famlia em Dois Irmos.Exemplares velhos do Dirio de Pernambuco e do Jornal de Recife, abandonados no poro dacasa, foram sua primeira cartilha. Ele passava ao largo dos artigos e notcias para se fartar comos anncios - ou " manteigas " como eram chamados. Carregava no bolso, recortado, o primeiro"manteiga" que conseguiu ler inteiro - um pequeno classificado da agncia funerria Casa Agra,situada no largo do Carmo, de propriedade de Joca Arara, que alm de papa-defunto tambm eraliterato e cronista do jornal, e que teria seu estabelecimento imortalizado em poema de Augustodos Anjos. O "manteiga" era composto de uma nica frase, que dizia: "Ali vai Joca Arara: oscaixes de defuntos na frente e os seus bichos roendo". Quando descobriu, com a ajuda do tio,que os "bichos " do anncio se referiam fauna cadavrica, Chateaubriand passou a exibir opequeno recorte aos amigos, como um trofu ao humor negro.

    A alfabetizao improvisada se processou com surpreendente rapidez para quem at entoparecia alimentar profunda indiferena por qualquer coisa impressa em letra de frma. Em poucotempo j era capaz de ler o jornal inteiro, e da para aprender a escrever e fazer contas foi umpulo. Forados pela alta dos aluguis, os pais decidiram, tempos depois, mudar-se de novo parao outro lado da cidade: desta vez o destino era Olinda. Foi ali que a me resolveu contratar osservios de um vizinho belga, monsieur Alphonse Debrot, que ia todas as manhs casa da ruado Carmo dar aulas de conversao em francs para a famlia. Quando o pai estava em Recife,tambm se incorporava classe. O curso domstico produziu uma situao inslita: oficialmenteanalfabeto, j que nunca tinha posto os ps regularmente em qualquer escola, Chateaubriandpassou a arranhar um francs inusitado para um garoto naquelas circunstncias.

    Mas tanto o curso do professor Alphonse como a passagem por Olinda teriam curta durao.A umidade do litoral e o excesso de trabalho com os filhos acabariam abatendo d. MariaCarmem. Os primeiros sintomas de que algo no ia bem com a sade da me foram as dores nopeito. Logo ela comeou a perder peso, a tossir seco. O pai, preocupado, veio mais uma vez deBelm em socorro da famlia. Uma consulta superficial ao mdico revelou o temido diagnstico:manchas escuras tomavam-lhe os dois pulmes, sinal de que uma tsica brutal se avizinhava. Seela no fosse retirada logo do litoral, seu tempo de vida seria muito curto. Mais eficiente do quequalquer remdio, prescreveu o mdico, o ideal seria lev-la imediatamente para uma regio altae de clima seco.

    Francisco Jos lembrou-se de um lugar belssimo que ele vira algumas vezes nas viagens detrem de Recife para a Paraba.

  • Com a construo da estrada de ferro, em 1888, aquele lugarejo, batizado com o nome de Chde Carpina, ainda no estado de Pernambuco, tinha sido transformado em entroncamento de duaslinhas. Um ramal saa esquerda, em direo a Nazar da Mata e depois Itabaiana. O outro davaem Limoeiro. O que havia no lugar, alm da modesta estao ferroviria, era apenas um pequenocomrcio em volta de um campo desmatado a golpes de foice.

    A grande capoeira que cercava o local, situado a duzentos metros de altitude, garantia climaameno, de baixas temperaturas, exatamente o que o mdico receitara para a cura da esposa. Onico inconveniente do lugar no seria obstculo para o aventureiro Francisco Jos: l no haviasequer uma casa em condies de receber uma famlia de bem. Mas isso era um detalhe semimportncia: com a ajuda de amigos, ele prprio construiria a casa em pouco tempo.

    E assim foi. A mulher, os quatro filhos e a filha adotiva foram instalados provisoriamente nacasa de parentes, em Nazar da Mata, at que a construo ficasse pronta. O modelo da casa, queele chamava de "estilo normando", tinha sido copiado de uma fotografia tirada de uma revistaestrangeira.

    Em volta, Francisco Jos plantou com suas prprias mos um pequeno bosque que impedisseo progresso de violentar o saudvel clima local, tpico da regio da Mata Seca.

    J com a mulher e os filhos morando l, ele conseguiu mais uma licena na alfndega deBelm para realizar um capricho. Tomou um vapor para o Rio de Janeiro e, com a ajuda doconselheiro Joo Alfredo, conseguiu nos viveiros do Jardim Botnico mudas de rvoresfrondosas para o bosque em torno da casa nova. Ao retornar poucos dias depois a Pernambuco,levou no poro de carga do navio sua preciosa bagagem: centenas de pequenos cestos de vimecontendo mudas de sucupira e de martinzia mexicana, que plantou nas imediaes da casa, duasa duas, como uma coluna militar. Ao cavoucar o cho para enfiar as mudas vindas do Rio, Francisco Jos traava, sem o saber, uma alameda que ainda estaria viva na virada do milnio, cemanos depois.

    Nem o governador nem os amigos importantes tiveram fora suficiente para arranjartransferncia de Belm para Recife. Cada vez mais envolvido com o aglomerado que ia nascendoem volta da casa, em Ch de Carpina, ele se tornou ainda mais ausente do trabalho na alfndega.Quando as rvores cresceram e comearam a encher-se de folhas, ele passou a dizer que moravana "floresta dos lees" - uma homenagem a Joo Souto Maior, lder rebelde da Revoluo de1817, apelidado "Leo do Tejucopapo", e a seus seguidores, os "lees", que se haviam refugiadonaquele lugar depois de uma escaramua com as tropas da Metrpole. Como acontecera antescom o seu prprio sobrenome, aos poucos Floresta dos Lees deixou de ser a toponmia apenasda casa de Francisco Jos para se tornar o nome do lugar, como um todo. Ningum mais sereferia a Ch de Carpina, mas apenas a Floresta dos Lees. Para reforar, encheu a vila de leesesculpidos em madeira, bronze, cimento, gesso. Lees de todos os estilos e tamanhos podiam servistos por quem chegasse ali: da estao de trens at a entrada do pequeno cemitrio, nenhumlugar foi esquecido. Apesar dos protestos generalizados contra denominao to esdrxula, eleinsistia em s chamar o vilarejo pelo nome que lhe dera, e brigava com quem se atrevesse a dizerque vivia - ou estava - em Ch de Carpina. Nas pginas do Reaco, jornalzinho que ele criou edirigia, era enorme a confuso dos pequenos anunciantes que dependiam do reembolso postalpara suas vendas: alguns se diziam estabelecidos em Carpina, mas a maioria j imprimia em seusanncios o novo apelido do lugar, mesmo sabendo que Floresta dos Lees era um endereoinexistente, que no constava dos guias do Correio. Em 15 de dezembro de 1901 o persistente

  • Francisco Jos Chateaubriand Bandeira de Melo conseguiu sua grande vitria: naquele dia aprefeitura de Pau d'Alho, municpio ao qual o lugar estava ligado, baixou a lei n 12,transformando Ch de Carpina em distrito e mudando-lhe o nome para Floresta dos Lees. E foicom este nome que o distrito transformou-se em vila, em 1909, e em municpio, em 1928.

    Maior que a paixo de Francisco Jos por Floresta dos Lees, entretanto, era seu ferozjacobinismo paraibano. Afastado havia muitos anos da Paraba, radicado em Pernambuco,casado com uma pernambucana e pai de dois filhos nascidos em Recife, ele tratava a Parabacom um bairrismo passional, que chegava ao paroxismo. Freqentemente reclamava com amulher do risco que significava criar os filhos longe daquilo que chamava "o centro de gravidadeparaibano":

    - Mais um pouco e estas crianas vo perder todo o contato com a terra de seus antepassados.Como era impossvel despachar a mulher, os quatro rapazes e Judite para a Paraba, dois anos

    depois de a famlia ter chegado a Floresta elegeu-se Chateaubriand para a repatriao. No foiuma escolha casual: os pais haviam conseguido que ele, que no tinha feito o curso primrio,ingressasse no primeiro ano de ginsio, com a condio de que fosse aprovado em um exame deadmisso. Para Francisco Jos, nada mais adequado para os preparatrios do que uma boa estadana Paraba. Foi assim que no final de 1903 Assis Chateaubriand mudou de endereo mais umavez. Graas a uma gentileza de sir Christopher Raw, engenheiro ingls, embarcou de graa numtrole da Great Western at depois de Itabaiana, onde terminavam os trilhos da ferrovia. No pontofinal das obras da Western j o esperavam o tio e padrinho Chateaubriand Bandeira de Melo,mdico em Campina Grande, um menino com um jumento para carregar as malas e Galante, ocavalo que ia lev-lo.

    Os meses em Campina Grande foram quase todos passados no casaro do tio Chateaubriand.O mdico decidiu encurtar o cabresto do sobrinho, certo de que aquela era a ltima chance queeste teria de se civilizar: se no entrasse no ginsio, estava fadado a morrer chucro. Em poucosmeses o menino precisou assimilar tudo o que deixara de aprender em quatro anos de cursoprimrio abandonado. Ele passava as manhs e as tardes, com a ajuda de uma professora, lendocartilhas e livros de portugus, aritmtica e geografia e cosmografia do Brasil. Ao saber que doexame constaria uma prova de lngua estrangeira opcional - poderia ser francs ou ingls -, elesentiuse vontade para escolher o francs, valendo-se dos rudimentos adquiridos nas aulas demonsier Alphonse. noite sempre havia algum parente para vir tomar-lhe a lio. Quando noera o tio Chateaubriand, vinha sua mulher lai Bandeira de Melo. A familiaridade com as letrastrazia consigo alguns benefcios: antes de dormir, ele j conseguia ler escondido, luz de umcandeeiro de azeite, exemplares ensebados dos versos fesceninos de Bocage e as Palavrascirricas de Albino Forjaz Sampaio.

    O pouco tempo que sobrava da vida de estudante - ou de cascabulho, como se dizia ento -ele aproveitava em novas atividades: inspirado pelo velho Escobar Gallieni, um amigo dafamlia, apaixonou-se por colecionar selos. Sempre que podia, ia casa do amigo idoso para veras novidades vindas de Madagascar, da Europa, da ndia. De l fazia uma visita ao frum paraassistir aos julgamentos presididos por seu primo, o juiz Barnab Gondim, um homem de olhosazuis e enorme carapinha vermelha - um assa, como diziam no Nordeste - que atribua suascaractersticas fsicas a remoto parentesco com invasores holandeses. Pelo frum desfilavadiariamente aos olhos do garoto uma fauna sem igual: desde homens acusados de pequenos furtosat grandes latifundirios defendendo o direito de multiplicao, manu militari, de suas

  • propriedades. E muitos doidos. Toda vez que surgia um acusado cujo comportamento fugia dospachorrentos valores locais, era mais simples classificar o infeliz como louco e conden-lo aohospcio.

    Muitos anos depois um deles, inconformado com a sentena, acabaria assassinando o juizBarnab num acesso de fria. Mas a grande estrela do tribunal era o promotor AscendinoCarneiro da Cunha, grande orador, homem de princpios rgidos e campeo de batalhasjudicirias. Numa regio em que se matava por quase nada, ele era implacvel com qualquertrabuqueiro que tivesse a m sorte de se sentar num banco dos rus sua frente. O promotor era afigura predileta de Chateaubriand. Apesar do calor escaldante do lugar, ele se vestia como umdndi britnico: fraque, calas listradas, cravo na lapela, luvas e polainas. E se dirigia aosmeninos chamando-os de boy. Campina Grande se deliciava com os modos do doutor Ascendino,assim como no entendia os hbitos e os horrios de outro tio de Chateaubriand, o fazendeiroAntnio Guedes Gondim. Para os metdicos camponeses e agricultores que viviam na cidade, eraincompreensvel que o velho Gondim - que se apresentava como descendente de normandos -acordasse todos os dias s nove da manh, tomasse o caf s dez, almoasse s trs da tarde e sfosse jantar s dez da noite. N enorme mesa de refeies de sua casa-grande, em Paraguau,nunca havia menos de 25 convivas. Para facilitar o entendimento das coisas, os campinensesinventaram uma explicao para aquela vida extica. "So costumes espanhis ", diziam.

    Os meses passados em Campina Grande correram rpido. No comeo de novembro eleretornou a Recife e no fim do ms enfrentou a banca de seleo do ginsio da Escola Naval.Chateaubriand teve um desempenho pfio em portugus e aritmtica, recebendo comoclassificao um medocre "Simplesmente ". Com o "Plenamente" obtido em francs, geografia ecosmografia do Brasil, conseguiu mdia suficiente para ser admitido.

    No dia 22 de novembro de 1904, aos doze anos, ele deixava oficialmente de ser analfabeto.

  • Captulo 3

    A qualidade da educao que o filho receberia no era exatamente a principal preocupao deFrancisco Jos. Ele no ocultava de ningum que seu grande temor era "a contaminao domenino pela fraqueza dos brbaros da fronteira meridional" - os pernambucanos. Com a ajuda deparentes e amigos da famlia, Chateaubriand foi encarregado de conseguir uma casa para viverem Recife. Tinha de ser lugar limpo, asseado, frequentado por famlias e nas proximidades dealguma escola. Naturalmente, no podia ser nada caro. Poucos dias depois de iniciar a procuraavisou ao pai que tinha escolhido uma boa penso - para ser mais convincente, usou o termo"irreprochvel", ao descrever o lugar -, de propriedade de Raimundo de Oliveira, chefeaposentado da estao de trens de Cinco Pontas. Rigoroso e moralista, Oliveira seria o guardaexemplar das virtudes de um estudante adolescente. Mas o pai nem o deixou acabar de falar:

    - De forma alguma. No posso deix-lo nas mos de algum que nunca viu Cabaceiras nemconhece Catol do Rocha. Voc ter que ficar sob a curatela de um paraibano.

    O pai decidiu resolver pessoalmente o problema e viajou para Recife.Juntos, foram dar num sobrado senhorial da rua do Imperador, em cujo trreo funcionava a

    empresa Joo Rufino & Cia., um grande armazm de armarinho por atacado.Deu a volta por trs do balco, abraou um dos donos e apresentou-o ao filho:- Este o Jos Pessoa de Queiroz, um paraibano de verdade, com sangue na guelra.Alm de paraibano, teve a ventura de nascer em Umbuzeiro, como voc. com ele que voc

    vai morar.Pessoa de Queiroz era scio de Joo Rufino da Fonseca na loja e morava com a famlia no

    quarto e ltimo andar do prdio. A sem-cerimnia de Francisco Jos foi recebida comnaturalidade pelo amigo:

    - Terezinha e eu receberemos o Francisquinho com muito prazer. O terceiro andar est vazio ens podemos instal-lo hoje mesmo.

    Eram aposentos rgios para um menino. Com grandes janeles dando para a rua, o amplosalo do terceiro andar foi transformado em quarto de dormir e sala de estudo, com uma mesinha,uma cadeira e um candeeiro. Sabendo que o hspede era um matuto, armou ao lado da cama umarede branca, trazida do Maranho. Luxo raro naquela poca, o quarto dispunha tambm de umbanheiro prprio. Para deixar o filho mais vontade, Francisco Jos tomou uma assinatura derefeio para que ele almoasse e jantasse todos os dias no Rio Hotel, perto da casa de Pessoa.E todas as manhs d. Terezinha aparecia no quarto com uma bandeja com caf, leite, beiju,tapioca e angu de milho fresquinhos.

    Ao se recolher, noite, o garoto notava que as rosas do jarro ao lado da cama tinham sidotrocadas.

    Desinteressado do ginsio, Chateaubriand levava uma vida escolar pfia, como se aquilofosse uma obrigao da qual devesse se livrar o mais depressa possvel. Latim, histriauniversal, qumica e geometria no despertavam nenhum apetite nele. Passou a devorar jornais ea frequentar grupos de poetas e literatos mais velhos do que ele. Pela mo de Pessoa de Queiroz,aproximou-se dos frades do Convento de So Francisco, com os quais comeou a aprender asprimeiras noes da lngua alem. Uma noite surpreendeu os amigos declamando, em um alemoincompreensvel, o que supunha ser o passeio de Fausto, de Goethe. Cada vez mais percebia,

  • entretanto, que seria impossvel fazer cursos e frequentar rodas sem dinheiro. Como a escola slhe tomava parte do dia, achou que era hora de arranjar trabalho. Confidenciou o plano a um dospoucos amigos que fizera na escola, Severino Pereira da Silva, um ano mais novo que ele erecmchegado de Taquaritinga do Norte, no serto pernambucano. Como o outro tambmestivesse procura de emprego, decidiram batalhar juntos. Um funcionrio da Joo Rufino &Cia. contou-lhes que um armazm de tecidos prximo dali estava precisando de vendedores. Namanh seguinte os dois j se encontravam a postos atrs do balco da Othon Mendes & Cia., demetro e tesoura na mo, cortando pano. Quando Chateaubriand lhes deu a notcia, em uma de suasvisitas Floresta dos Lees, os pais tentaram demov-lo daquela loucuraafinal, ele tinha apenasdoze anos -, mas nada conseguiram.

    Convencida de que o filho no deixaria o trabalho, a me, ainda doente, aconselhou-o aaplicar direito o salrio e no dissip-lo em bobagens:

    - Faa um curso de msica, que a educao mu.sical imprescindvel.Aprenda a tocar bombardino. Estou organizando uma bandinha familiar e voc poder se

    incorporar a ela em poucotempo. O Jorge e o Oswaldo esto aprendendo flauta, o Ganot j sabetocar tuba, seu pai aprende violino e eu toco piano. Quando voc vier a Floresta, poderemosfazer saraus para os amigos.

    Com seu primeiro salrio comprou o tal bombardino e contratou uma professora para trsaulas semanais de uma hora. No tinha muita queda para a msica, mas no queria fazer umadesfeita me e resolveu tentar. O que lhe interessava de verdade eram as leituras. Jornais,romances, revistas, ensaios, ele lia o que lhe casse nas mos. Alm do curso de alemo, queprogredia com rapidez, retomou as aulas de francs com o mesmo professor Al phonse quefrequentara sua casa na rua do Carmo, em Olinda. E foi da boca dos franciscanos que soube daexistncia, em Recife, de um verdadeiro tesouro abandonado: em um casaro da Magdalena,perto do Prado, jazia uma preciosa biblioteca de livros alemes, que tinha sido deixada por seudono, um desconhecido de quem s se sabia ter morrido em circunstncias misteriosas. Umanoite, jantando com amigos do pai no restaurante do hotel, ouviu um dos participantes da mesacontar que tanto a casa como os livros haviam pertencido a