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 106  ENCRENQUEIRO Não é plausível a afirmação de Jean Paul Sartre de que tudo compreender é tudo perdoar . Nos assuntos humanos a distinção entre saber e avaliar (e, pois, julgar) nada tem de fácil, mas devemos agir como se ela tivesse ao nosso alcance para que possamos, ao menos, nos aproximar da idéia desta diferença fundamental. CONFINS CONSOLIDANDO OS DA CONFEDERAÇÃO IMPERIAL C E S A R G U I M A R Ã E S CIENTISTA POLÍTICO Esta generalidade de sabor kantiano não vem a pequeno propósito — pois é invocada à luz de um horror premeditado. Os responsáveis pelos atentados de 11 de setembro em Nova Iorque e Washington devem responder por seus atos — julgados. Mas julgar compele a compreender o que é isto — este terror . INTELIGÊNCIA I N S I G H T

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Ciência política.

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  • 106 ENCRENQUEIRO

    No plausvel a afirmao de Jean Paul Sartre deque tudo compreender tudo perdoar. Nos assuntos

    humanos a distino entre saber e avaliar (e, pois,

    julgar) nada tem de fcil, mas devemos agir como se ela

    tivesse ao nosso alcance para que possamos, ao menos,

    nos aproximar da idia desta diferena fundamental.

    CONFINSCONSOLIDANDO OS

    DA CONFEDERAOIMPERIAL

    C E S A R G U I M A R E SC I E N T I S TA P O L T I C O

    Esta generalidade de sabor kantiano no vem apequeno propsito pois invocada luz de um horror

    premeditado. Os responsveis pelos atentados de 11 de

    setembro em Nova Iorque e Washington devem

    responder por seus atos julgados. Mas julgar compele

    a compreender o que isto este terror.

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    Compreender, desde logo, em nada seassemelha ao repulsivo argumento deque, nesta matria, os Estados Uni-dos so responsveis por no peque-na lista de horrores, antes, durante edepois da Guerra Fria, da se seguin-do a justificativa deste ato de terror

    com base em idias de vendetta, da lei de Talio. precisocultivar a esperana de que tais noes no repliquem, nonovo sculo, as misrias do que se encerrou h pouco.

    A esperana tem nome. A criao de tribunal internacio-nal para ajuizar crimes contra a humanidade (o terror, o ge-nocdio...), uma corte realmente internacional e a no desteou daquele pas ou apenas europia por que isto arro-gante e ilegtimo negociao em curso h muito tempo,mas no se conclui. Conta com a oposio de duas potncias:a China e os Estados Unidos, estranhos parceiros. Ou talvez,no caso, nem tanto.

    Enquanto no temos o imprio da lei, ficamos merc dalei do Imprio. O governo americano resolveu-se pela guer-ra ao terror, a comear pelo Afeganisto, a fim de liquidarcom o regime Talib, com al-Quaida e, principalmente, comOsama Bin Laden presumveis autores do crime, num con-texto em que indcios se tornam provas que no so dadas apblico salvo a governos amigos, solidrios ou assustados.

    A guerra ao terror que pe em moda o conceito de con-flito assimtrico apenas comeou. O embate ocorre, nestemomento, no Afeganisto, mas pode ser conduzido ali ondeestejam outros terroristas, ou onde haja governos que osapiem vale dizer, no se situando geograficamente emlugar definido, o terror pode estar em todo o lugar. Ter apoio,por exemplo, na trplice fronteira entre o Brasil, a Argentinae o Paraguai. Ou na Colmbia. E obviamente nos rogues sta-tes da definio americana: o Iraque, claro, a Lbia, a Co-ria do Norte... a lista modificvel ao sabor das necessida-des imperiais.

    Se a histria de violncias externas dos Estados Unidosno justifica ou sugere perdo brutalidade de que foramvtimas, esta ltima no pode servir de pretexto para que apotncia mundial hegemnica imponha a sua justia, o seuarbtrio. O ex-amigo Bin Laden repugna a humanidade eno s por eventual culpa pelos mais recentes atos de terror mas seus recursos so poucos. Violncias maiores poderoser cometidas em nome da lei. de lembrar Rousseau: ali

    onde impera a fora desnecessrio aludir ao Direito. Mas asuposta lei s persiste enquanto a fora durar. Como se sabetudo que nasce est fadado a perecer.

    Talvez caiba relembrar o passado recente. A Guerra Friadeu um norte poltica externa dos Estados Unidos. Trata-va-se de conteno (containment) do comunismo conceitoque adquiriu caractersticas elsticas para abranger hostili-dades a regimes nacionalistas, esquerdistas, neutralistas...assunto que, por aqui, no Terceiro Mundo, no Sul, no des-conhecido. hoje consenso entre os scholars da comunidadeestratgica americana que se tratou sempre de um bipolari-dade assimtrica. Ou trocando em midos: possuindo o gra-de igualador um arsenal atmico a Unio Soviticadetinha condies de manter a integridade de seu territrio ede sua rea de domnio no Leste Europeu, enquanto os Esta-dos Unidos dispunham de meios superlativamente mais am-plos para influir e intervir no resto do mundo.

    A emergncia da China como Estado comunista no criounenhum Movimento Comunista Internacional ou Bloco Sino-Sovitico fraseologia de paranicos ou propagandistas, masum adversrio. E os arreganhos soviticos para alm do seuquintal geralmente resultaram em derrota a mais humi-lhante exatamente no Afeganisto.

    Guerra Fria finda, hegemonia (militar) inconteste, a con-teno revelou sua verdade uma enorme expanso diplo-mtica, militar, cultural de potncia econmica de alto podercompetitivo. As alegrias da vitria, contudo, foram recupera-das pela incerteza. Unipolaridades so tidas por instveis.Como impedir a emergncia de par competidor (pas ou blo-co)? A Guerra Fria fizera uma parte do servio, pois a prop-sito de conter soviticos, os Estados Unidos mantiveram ocontrole militar na Europa (leia-se principalmente Alema-nha), via OTAN, que por isso persiste, e no Japo. Competi-dores militares futuros entre os atuais aliados, nem pensar.

    Esta poltica persiste no ps-Guerra Fria, com o primeiroBush, Clinton e o segundo Bush. Mas ela precisa de algumalegitimao, pois, afinal, se trata de aliados e do pblico in-terno. A melhor delas a existncia de um inimigo.

    Aqui h variaes. O primeiro Bush pde contar com aONU na guerra que impediu o Iraque de apossar-se de umEstado soberano a desmesura americana veio depois. Clin-ton dedicou seu primeiro mandato diplomacia econmica (acriao da OMC, a tentativa do fast track, as dezenas de acor-

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    dos bilaterais), e ampliou adoutrina de segurana nacionalpara alm da defesa: agorapossvel criar democracias emercados livres: free trade de-mocracies. Paralelamente, re-forou a noo rogue states, de-dicados a produo de armasde destruio em massa, aoterrorismo, ao narcotrfico. Eisa, portanto, uma rea de con-senso entre aliados, comple-mentado por aproximaes comRssia e difceis mas factveisentendimentos com a China.

    Nada disto com o segundoBush. Cercado de uma equipede hard-liners o vice-presi-dente Dick Cheney, o secretrio de Defesa Donald Rums-feld, a assessora para Segurana Nacional, Condolezza Rice perto dos quais o secretrio de Estado, general ColinPowell de enorme leveza sua orientao desde o inciomarcada por notria poltica externa expansionista. A co-munidade estratgica a denominou primacy (primazia),eufemismo acadmico no sem humor. Conseqncias: re-viso de tratados de produo e testes de armas nucleares;novo formato da guerra nas estrelas; repulsa s negocia-es de Kyoto; investimentos garantidos na chamada re-voluo tecnolgica militar. Ms. Rice, em artigo em ForeignAffairs, revela repulsa a normas ilusrias de comportamen-to internacional que prejudicam o interesse nacional.Adeus tambm a outras iluses: a China no strategicpartner, como diria Clinton mas um strategic competitor a conter, portanto.

    Algo, contudo, objeto de continuidade: a ameaa de re-gimes malvolos (rogue) e poderes hostis com seu potencialpara o terrorismo e a produo de armas de destruio emmassa. Essa reafirmao de Ms. Rice e do governo Bush II,vem agora vinculada ao intento de ampliar o inimigo. Poisde onde pode vir o terror? De todo o lugar, mas principalmen-te de civilizaes adversas. Ms. Rice, assim como outrosformuladores das idias de unipolaridade e primazia, muitodeve insistncia do professor Samuel Huntington sobre o

    choque de civilizaes (o primeiro artigo de 1993) que ins-titui o conflito ideolgico como, digamos, fbrica das inimiza-des convenientes.

    Este conjunto de semiverdades, etnocentrismo, seno ra-cismo, e conhecimento notoriamente superficial da histriano-ocidental, logrou ver o inimigo dentro do pas: no multi-culturalismo e na imigrao para os Estados Unidos. E foradele: na cultura islmica e no Sul em geral. The West ver-sus the Rest. O terror est em todo lugar, mas prefere certosespaos mais propcios...

    Retornando agora Guerra Fria. A poltica externa dosEstados Unidos incentivou com freqncia partidos islmi-cos contra os nacionalistas. No Egito, na Sria, no Iraque (pr-Sadam), por exemplo. Aliou-se fortemente Arbia Saudita o ncleo mais poderoso do Isl poltico. Obviamente, nacivilizao islmica existem partidos religiosos. No Ocidente,onde religio e poltica so esferas funcionalmente diferenci-adas, modernas, existem partidos democrata-cristos. Masenfim... ningum perfeito.

    O nico problema srio com a civilizao islmica deu-se com a Revoluo Iraniana de 1979 coisa de xiitas, fun-damentalistas etc. A propsito: Bin Laden sunita... de ricafamlia da Arbia.

    Alm do mais, o trato de Bush II com a regio tem sidoexcessivamente civilizado: promessas de violncia, utilizao

    O NICO PROBLEMA SRIOCOM A CIVILIZAO ISLMICADEU-SE COM A REVOLUOIRANIANA DE 1979 COISA DEXIITAS, FUNDAMENTALISTAS ETC.A PROPSITO: BIN LADEN SUNITA... DE RICA FAMLIADA ARBIA

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    continuada da expresso ofensiva rogue states e principal-mente o abandono dos palestinos poltica do governo Sha-ron, exacerbao da Catstrofe, para usar expresso corren-te entre os vitimizados.

    Pesquisas de opinio pblica, entre elites e massas, indi-cavam, durante os anos 90, que a insistncia dos governosamericanos na questo do terrorismo conquistou coraes ementes. Oklahoma foi obra de fundamentalista nativo, masainda assim acentuou os temores, sempre incentivados pelasadvertncias governamentais. Elas tinham, alis, algum fun-damento: em declarao recente, o secretrio Rumsfeld reve-lou que o Iraque o terceiro produtor da bactria do Antrax,desenvolvendo tecnologia americana, cedida quando o entoamigo Sadam Hussein fazia guerra ao Ir a origem polti-ca da invaso ao Kuwait... tratava-se de cobrar a conta.

    Tornou-se claro queles que se valem do terror no Ori-ente Mdio e alhures que nada seria mais eficiente paradesmoralizar a potncia que se expressava agora com a lin-guagem do Imprio. A escolha dos alvos, em seu horror, odemonstra.

    A guerra ao terror comeou. Promete ser prolongada,suja e, pior que tudo, preventiva. O terror est l (aqui?), noSul, mas a barbrie est em todo lugar. Vale tudo, portan-to. De momento, as pesquisas de opinio mostram apoio aodesapreo pelo Estado de Direito e pelas liberdades pblicas

    nos Estados Unidos: prises preventivas e secretas, incluin-do tortura, gravaes de conversas sem permisso judicial,controle da minoria mais visada, criao de tribunais milita-res de exceo. Alm, claro, da extenso da guerra ao Ira-que e aonde quer qu.

    Intelectuais, jornalistas, alguns jornais de elite, gruposde direitos civis comeam a protestar, mas no fcil. gran-de e dolorosa a ferida aberta. E, contudo, preciso que o mo-vimento cresa. Tal como se efetiva, o contraterror equivale,no limite, supresso das liberdades democrticas. Equivaletambm a uma enorme ampliao da presena americana,em todas as suas formas, nos mais diversos pases sabi-do que o governo brasileiro e seu hbil quadro diplomticono esto alheios s dificuldades por vir.

    Por outro lado, o terrorismo odioso e antigo recursopoltico tende, sim, a se fazer ouvir com mais freqncia. preciso, pois, defini-lo com clareza, antes que sirva de pre-texto para suprimir qualquer tipo de resistncia opresso. necessria a colaborao internacional, sem dvida, masque fique bem claro que no existe Operao Condor demo-crtica. Se o terror um perigo, perigo maior defini-lo naprtica (ainda que negando-o na retrica) como prprio a estaou aquela civilizao. Ser que o Holocausto nada ensinousobre este (des)respeito?

    e - m a i l : c g u i m a r a e s @ i u p e r j . b r