centro de ciÊncias humanas, letras e artes · 2010-05-07 · ocorrências de poren no século xv...

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS (MESTRADO) ADEL FERNANDA LOURENZI FRANCO ROSA O item porem em contextos diversos nos séculos XIII-XV: análise de condicionantes morfossintáticos para sua gramaticalização Maringá 2010

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  • UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARING

    CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS (MESTRADO)

    ADEL FERNANDA LOURENZI FRANCO ROSA

    O item porem em contextos diversos nos sculos XIII-XV: anlise de

    condicionantes morfossintticos para sua gramaticalizao

    Maring

    2010

  • ADEL FERNANDA LOURENZI FRANCO ROSA

    O item porem em contextos diversos nos sculos XIII-XV: anlise de

    condicionantes morfossintticos para sua gramaticalizao

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Letras (Mestrado), da

    Universidade Estadual de Maring, como

    requisito parcial para obteno do grau de Mestre

    em Letras, rea de concentrao: Estudos

    Lingusticos.

    Orientadora: Prof. Dr.

    MARIA REGINA PANTE

    MARING

    2010

  • ADEL FERNANDA LOURENZI FRANCO ROSA

    O item porem em contextos diversos nos sculos XIII-XV: anlise de

    condicionantes morfossintticos para sua gramaticalizao

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Letras (Mestrado), da

    Universidade Estadual de Maring, como

    requisito parcial para obteno do grau de

    Mestre em Letras, rea de concentrao:

    Estudos Lingusticos.

    BANCA EXAMINADORA

    Prof. Dr. MARIA REGINA PANTE

    Universidade Estadual de Maring - UEM

    - Presidente

    Profa Dr. ANA CRISTINA JAEGER HINTZE

    Universidade Estadual de Maring UEM

    Profa Dr. VANDERCI DE ANDRADE AGUILERA

    Universidade Estadual de Londrina UEL/Londrina-PR

  • AGRADECIMENTOS

    A Deus, por me dar foras em todos os momentos e por ter permitido que eu vencesse mais

    uma etapa de minha vida;

    Aos meus pais, Francisco e Cyntia, que sempre me incentivaram e apoiaram na busca pelo

    conhecimento e, s minhas irms, Tatiana e Cassia, que me ajudaram a perceber que

    conseguiria vencer os desafios;

    Aos meus sogros Jos e Denair e, a minha cunhada, Eliane, pelo apoio e incentivo em todas as

    situaes;

    Ao meu marido Jean, que compreendeu os meus momentos de ausncia e que acreditou em

    mim;

    Prof. Dr. Maria Regina Pante, pela dedicao, pela pacincia e pela disponibilidade como

    orientadora, e tambm pela generosidade em compartilhar comigo seus estudos e

    conhecimentos;

    Prof. Dr. Ana Cristina J. Hintze, pelo carinho e pelas leituras e sugestes apontadas no

    exame de qualificao;

    Prof. Dr. Vanda de Oliveira Bittencourt, pelas crticas pertinentes e pelas observaes

    sugeridas no exame de qualificao;

    Prof. Dr. Vanderci de Andrade Aguilera, pelas observaes sugeridas na defesa;

    amiga Adriana dos Santos Souza, que sempre se mostrou disposta a ajudar;

    A todos da Escola Municipal Victor Beloti, em especial, a Neuza Gomes Cazeta e a Amlia

    Bovolin, pela torcida;

    Andrea Previati, pelas conversas e esclarecimentos.

  • "No me importa a palavra, esta corriqueira.

    Quero o esplndido caos de onde emerge a sintaxe;

    os stios escuros onde nasce o de, o alis,

    o o, o porm e o que, esta incompreensvel

    muleta que me apia.

    Quem entender a linguagem entende Deus

    cujo Filho o Verbo. Morre quem entender.

    A palavra disfarce de uma coisa mais grave, surda-

    muda, foi inventada para ser calada.

    Em momentos de graa, infreqentssimos,

    se poder apanh-la: um peixe vivo com a mo.

    Puro susto e terror."

    (Adlia Prado)

  • RESUMO. Esta pesquisa examinou o percurso de mudana lingustica do item porem, em

    textos dos sculos XIII, XV e XV, e observou, mediante levantamento exaustivo do item em

    quatro obras (Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacence (sc. XIII-XIV), Virgeu de

    Consolaon (final do sc. XIV e incio do XV), Orto do Esposo (fim do sc. XV) e Leal

    Conselheiro (sc. XV)), quais fatores puderam ser apontados como gatilhos para essa

    mudana. Ou seja, o item porem, originariamente advrbio, com valores semntico-textuais

    de por isso, por esse motivo, por essa razo, por causa disso, provenientes de seu

    timo latino, passa a exercer o valor hoje utilizado, de conjuno, com valor adversativo. A

    fim de identificar o perodo em que isso pode ter ocorrido, adotamos a anlise de frequncia,

    apontada por Bybee, que se divide em frequncia token, referente ao nmero de ocorrncias

    do item nos corpora, e a frequncia type, que aponta as funes exercidas pelo item em

    estudo. Os objetivos especficos foram: a) estudar o item porem em relao s frequncias

    token (nmero de ocorrncias) e type (quais as funes que o item apresentou nas obras

    selecionadas; b) investigar quais os fatores que possivelmente representaram o gatilho da

    gramaticalizao do item porem; c) analisar o estgio de gramaticalizao no qual o item se

    encontrava at o sculo XV. Concluda a pesquisa, identificamos que, embora o valor

    explicativo ainda fosse o valor predominante nas sincronias pesquisadas, houve um nmero

    considervel de contextos negativos (o item negativo antecedia o item porem, negando-o),

    bem como contextos nos quais o item porem sucedia clusulas causais, adversativas e

    concessivas, o que passou a favorecer, de fato, uma interpretao adversativa para o item.

    Palavras-chave: item porem; gramaticalizao; frequncias token e type.

  • ABSTRACT. The present research examined the linguistic change path of the item

    porm from the Brazilian Portuguese language in texts from the 13th, 14

    th and 15

    th centuries

    and observed which factors could have been pointed out as triggers to this change. In order to

    achieve this goal, the item porm was exhaustively scanned in four pieces of written texts

    that were: Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacence 13th-15

    th centuries; Virgeu de

    Consolaon 14th century end and 15

    th century beginning; Orto do Esposo 15

    th century end;

    and Leal Conselheiro 15th century. The item porm was originally used as an adverb with

    the textual-semantic values coming from its Latin etymon of this way, for this reason,

    because of that and has started to exercise the value of conjunction with an adverse meaning

    as it is used nowadays. In order to identify the period of time in which that change might have

    happened, we adopted the analysis of frequency studied by Bybee that is divided into token

    frequency the one that refers to the number of occurrences of the item researched in the

    corpora and the type frequency the one that points out the functions exercised by the item

    studied. The specific objectives of this study were: a) studying the item porem in relation to

    the token and type frequencies (respectively the number of occurrences and what were the

    functions presented by the item into the selected texts); b) investigating the factors that have

    possibly represented the triggers for the gramaticalization of the item porm; c) analyzing the

    gramaticalization stage in which the item was until the 15th century. When the research was

    concluded, we observed that even though the explanatory value was predominant in the

    synchronies studied there was a significant number of negative contexts in which the negative

    item came before the item porm negating it, and contexts in which the item porem came after

    the causative, adversative and concessive clauses as well, and that was what favored an

    adversative interpretation for the studied item.

    KEY-WORDS: item porem; gramaticalization; token and type frequency.

  • LISTA DE QUADROS

    Quadro 1. Ocorrncias de poren nas Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacense (sculo

    XIII~XIV)

    Quadro 2. Ocorrncias de poren no Virgeu de Consolaon (sculo XIV~XV)

    Quadro 3. Ocorrncias de poren nOrto do Esposo (sculo XV)

    Quadro 4. Ocorrncias de poren no Leal Conselheiro (sculo XV)

    Quadro 5. Ocorrncias de poren nos sculos XIII~XIV

    Quadro 6. Ocorrncias de poren nos sculos XIV~XV

    Quadro 7. Ocorrncias de poren no sculo XV

    Quadro 8. Dados totais de ocorrncias de poren nos sculos XIII, XIV e XV

  • SUMRIO

    INTRODUO ......................................................................................................................... 1

    1. GRAMATICALIZAO .................................................................................................... 4

    1.1 Breve histrico ................................................................................................................ 4

    1.2 Conceitos de gramaticalizao ..................................................................................... 5

    1.3 Princpios, processos, mecanismos e parmetros ....................................................... 10

    1.4 Gramatizalizao de conjunes ................................................................................. 13

    1.5 O item porem: etimologia e definies ........................................................................ 17

    2. MATERIAL E METODOLOGIA ..................................................................................... 23

    2. 1 Material ........................................................................................................................ 23

    2. 2 Metodologia .................................................................................................................. 23

    3. ANLISE ............................................................................................................................ 31

    3.1 Anlise sincrnica: token e type .................................................................................... 31

    3.2 Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacence ......................................................... 31

    3.3 Virgeu de Consolaon ................................................................................................... 34

    3.4 Orto do Esposo ............................................................................................................. 42

    3.5 Leal Conselheiro ........................................................................................................... 56

    3.6 Aplicao dos princpios de Hopper ........................................................................... 63

    3.7 Discusso dos dados ..................................................................................................... 64

    CONSIDERAES FINAIS .................................................................................................. 69

    REFERNCIAS ..................................................................................................................... 71

    ANEXO .................................................................................................................................. 77

    Configuraes%20locais/Temporary%20Internet%20Files/Content.IE5/QSGAUNWU/Devalcir2/atualizada%20com%20marcaoI.doc#_Toc198631908#_Toc198631908Configuraes%20locais/Temporary%20Internet%20Files/Content.IE5/QSGAUNWU/Devalcir2/atualizada%20com%20marcaoI.doc#_Toc198631909#_Toc198631909Configuraes%20locais/Temporary%20Internet%20Files/Content.IE5/QSGAUNWU/Devalcir2/atualizada%20com%20marcaoI.doc#_Toc198631911#_Toc198631911Configuraes%20locais/Temporary%20Internet%20Files/Content.IE5/QSGAUNWU/Devalcir2/atualizada%20com%20marcaoI.doc#_Toc198631912#_Toc198631912Configuraes%20locais/Temporary%20Internet%20Files/Content.IE5/QSGAUNWU/Devalcir2/atualizada%20com%20marcaoI.doc#_Toc198631913#_Toc198631913Configuraes%20locais/Temporary%20Internet%20Files/Content.IE5/QSGAUNWU/Devalcir2/atualizada%20com%20marcaoI.doc#_Toc198631913#_Toc198631913Configuraes%20locais/Temporary%20Internet%20Files/Content.IE5/QSGAUNWU/Devalcir2/atualizada%20com%20marcaoI.doc#_Toc198631913#_Toc198631913Configuraes%20locais/Temporary%20Internet%20Files/Content.IE5/QSGAUNWU/Devalcir2/atualizada%20com%20marcaoI.doc#_Toc198631913#_Toc198631913Configuraes%20locais/Temporary%20Internet%20Files/Content.IE5/QSGAUNWU/Devalcir2/atualizada%20com%20marcaoI.doc#_Toc198631914#_Toc198631914Configuraes%20locais/Temporary%20Internet%20Files/Content.IE5/QSGAUNWU/Devalcir2/atualizada%20com%20marcaoI.doc#_Toc198631919#_Toc198631919Configuraes%20locais/Temporary%20Internet%20Files/Content.IE5/QSGAUNWU/Devalcir2/atualizada%20com%20marcaoI.doc#_Toc198631920#_Toc198631920Configuraes%20locais/Temporary%20Internet%20Files/Content.IE5/QSGAUNWU/Devalcir2/atualizada%20com%20marcaoI.doc#_Toc198631914#_Toc198631914Configuraes%20locais/Temporary%20Internet%20Files/Content.IE5/QSGAUNWU/Devalcir2/atualizada%20com%20marcaoI.doc#_Toc198631911#_Toc198631911Configuraes%20locais/Temporary%20Internet%20Files/Content.IE5/QSGAUNWU/Devalcir2/atualizada%20com%20marcaoI.doc#_Toc198631912#_Toc198631912Configuraes%20locais/Temporary%20Internet%20Files/Content.IE5/QSGAUNWU/Devalcir2/atualizada%20com%20marcaoI.doc#_Toc198631913#_Toc198631913Configuraes%20locais/Temporary%20Internet%20Files/Content.IE5/QSGAUNWU/Devalcir2/atualizada%20com%20marcaoI.doc#_Toc198631913#_Toc198631913Configuraes%20locais/Temporary%20Internet%20Files/Content.IE5/QSGAUNWU/Devalcir2/atualizada%20com%20marcaoI.doc#_Toc198631913#_Toc198631913Configuraes%20locais/Temporary%20Internet%20Files/Content.IE5/QSGAUNWU/Devalcir2/atualizada%20com%20marcaoI.doc#_Toc198631913#_Toc198631913file:///D:/Meus%20arquivos%20recebidos/Meus%20arquivos%20recebidos/MESTRADO/Devalcir2/atualizada%20com%20marcaoI.doc%23_Toc198631913%23_Toc198631913Configuraes%20locais/Temporary%20Internet%20Files/Content.IE5/QSGAUNWU/Devalcir2/atualizada%20com%20marcaoI.doc#_Toc198631923#_Toc198631923Configuraes%20locais/Temporary%20Internet%20Files/Content.IE5/QSGAUNWU/Devalcir2/atualizada%20com%20marcaoI.doc#_Toc198631924#_Toc198631924Configuraes%20locais/Temporary%20Internet%20Files/Content.IE5/QSGAUNWU/Devalcir2/atualizada%20com%20marcaoI.doc#_Toc198631924#_Toc198631924
  • INTRODUO

    Os estudos que abordam a histria da Lngua Portuguesa se tornaram frequentes a

    partir do fim do sculo XIX e se estende at os dias de hoje. No apenas em Portugal, mas

    tambm no Brasil, inmeros estudos tm trazido riqussimas contribuies para o

    conhecimento e a observao do processo de constituio histrica da lngua, de suas

    transformaes morfolgicas, semnticas, sintticas e pragmticas, que ocorreram do perodo

    arcaico at o portugus contemporneo.

    No Brasil, o trabalho pioneiro da prof Dr Rosa Virgnia Mattos e Silva, que deu

    incio a esses estudos, com a publicao de Estruturas trecentistas: elementos para uma

    gramtica do portugus arcaico, em 1989. Em fins de 1990, iniciou o Programa para a

    Histria da Lngua Portuguesa (Prohpor), grupo de pesquisa vinculado ao Departamento de

    Letras Vernculas do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia, integrado linha

    de pesquisa Constituio Histrica da Lngua Portuguesa do Programa de Ps-Graduao em

    Lngua e Cultura, do qual coordenadora at o momento. Este grupo estuda a lngua

    portuguesa desde suas origens at meados do sculo XVI, perodo arcaico, e, a partir da,

    aborda questes para a histria do portugus brasileiro.

    H outros linguistas que vm dedicando suas pesquisas ao estudo de nosso idioma, a

    saber: o Grupo de Estudos Funcionalistas (GREF) da Pontifcia Universidade Catlica de

    Minas Gerais, no interior do qual a Prof. Dr. Vanda de Oliveira Bittencourt coordena o

    projeto Histria do Portugus: uma abordagem lingustica e sociocultural, que descreve

    nossa lngua em suas variaes brasileira e europia.

    Alm desses trabalhos, citamos o grupo Discurso & Gramtica, que se distribui em trs

    sedes: Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Federal do Rio Grande do

    Norte (UFRN) e Universidade Federal Fluminense (UFF), de que fazem parte, entre outros,

    Maringela Rios de Oliveira, Maria Luiza Braga, Sebastio Josu Votre, Maria Anglica

    Furtado da Cunha, Mrio Martelotta, Maria Maura Cezrio, grupo de So Jos do Rio

    Preto/SP: Sebastio Carlos Leite Gonalves, Sanderlia Roberta Longhin-Thomazi, Maria

    Clia Lima-Hernandes, Vnia Cristina Casseb-Galvo, da Universidade de So Paulo Ataliba

    Teixeira Castilho, dentre outros linguistas renomados em todo o pas.

    Um dos interesses desses grupos de estudo a investigao histrica das mudanas e

    dos fatos lingusticos. Dentre essas mudanas, uma ainda pouco estudada o percurso do item

  • 2

    porem, que apresenta estatuto gramatical que tangencia entre as categorias de advrbio e

    conjuno. A esse respeito, citamos dois trabalhos significativos divulgados em forma de

    artigo: o de Mattos e Silva, publicado j h algum em tempo em Portugal, e o de Longhin-

    Thomazi, ambos com referncias completas no final desta dissertao.

    Com a finalidade de verificar e explicar essas mudanas lingusticas, optamos por

    empregar os estudos sobre gramaticalizao, pelo fato de ter se apresentado como um dos

    mecanismos mais contemplados, uma vez que a lngua est em constante processo de

    mudana. A gramaticalizao constitui um tipo especial de mudana que explicita como

    unidades ou construes de base lexical, em certos contextos lingusticos, passam a apresentar

    funes gramaticais e, se j gramaticalizadas, podem vir a demonstrar funes ainda mais

    gramaticais.

    Nesta pesquisa, tivemos como objetivo geral investigar a ocorrncia do item porem em

    trs sincronias do portugus com o intuito de identificar em quais contextos era possvel

    apontar interpretaes semnticas diversas daquelas apontadas pela sua etimologia. Para

    tanto, examinamos textos na ntegra de trs sincronias do portugus. Trata-de se de obras de

    carter religioso, como as Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacence (sc. XIII-XIV), o

    Virgeu de Consolaon (final do sc. XIV e incio do XV) e o Orto do Esposo (1380-1390 ou

    fim fim do sc. XV) e/ou moralizante, como o caso do Leal Conselheiro (1428-1435 ou sc.

    XV). Os objetivos especficos foram:

    1. estudar o item porem em relao frequncias token (nmero de ocorrncias) e a type

    (quais as funes que o item apresenta) nas obras selecionadas;

    2. investigar quais os fatores que podem representar o gatilho da gramaticalizao do

    item porem;

    3. analisar o estgio de gramaticalizao em que o item se encontrava at o sculo XV.

    Utiliza-se, para tanto, pressupostos de base funcionalista, mais especificamente os

    princpios de Hopper (1991), para a investigao do estgio de gramaticalizao do item e,

    ainda, os trabalhos de Bybee (2003, 2001 e 1994) sobre os tipos de frequncia token e type.

    O trabalho se divide em 3 captulos, assim distribudos:

    Captulo 1: conceitos, princpios, processos, mecanismos e parmetros que norteiam o

    processo de gramaticalizao, os quais foram suporte para anlise, especialmente, por meio

    dos princpios de Hopper.

  • 3

    Captulo 2: procedimentos metodolgicos empregados na elaborao e realizao da

    pesquisa.

    Captulo 3: comentrios aos gneros textuais para justificarmos a escolha dos corpora

    selecionados para nossa pesquisa anlise dos corpora e discusso dos resultados obtidos.

    Nas consideraes finais, retomamos os objetivos gerais e especficos propostos e a

    perspectiva para novos estudos.

  • CAPTULO 1. GRAMATICALIZAO

    1. 1 Breve histrico

    Ao verificarmos que o sistema lingustico est em constante renovao, que novas

    funes e formas surgem at mesmo para algumas j existentes, nota-se que a preocupao e

    o interesse de alguns linguistas tm se voltado para a emergncia dessas alteraes

    lingusticas. Um dos mecanismos de estudo a gramaticalizao (doravante GR).

    A gramaticalizao inicialmente considerada a partir do momento em que uma

    unidade lingustica comea a adquirir propriedades de formas gramaticais e, caso j tenha o

    estatuto gramatical, esta amplia sua gramaticalidade.

    O estudo do processo de GR tem como um dos seus norteadores o Funcionalismo, que

    reflete a influncia do sistema gramatical do funcionamento discursivo, ou seja, explica a

    interao entre as motivaes internas ao sistema e as motivaes externas a ele, chegando a

    postular que a GR um fator de equilbrio entre tais foras em competio, equilbrio esse

    que permite a prpria existncia da gramtica (DUBOIS, 1985).

    Alm disso, o panorama funcionalista de anlise de fenmenos lingusticos tem se

    estabelecido como um importante paradigma para estudos que investigam o conhecimento de

    fenmenos ligados ao uso da lngua, abrangendo aspectos evidentes, tais como: a variao, a

    mudana, a emergncia das funes e a organicidade das formas que as realizam.

    Ao se falar em GR, alguns pontos causam controvrsias, que acabam por classificar,

    de certa forma, os estudiosos do assunto, de acordo com o tipo de trabalho ou metodologia

    que adotam em seus estudos. Para alguns, a GR dita processo, para outros, paradigma; para

    uns pode ser um fenmeno diacrnico, para outros, sincrnico.

    Os linguistas que tratam a GR como processo abordam a identificao e a anlise de

    itens que se tornam mais gramaticais. Os que a consideram paradigma se centram no modo

    como as formas gramaticais e construes surgem e como so usadas. Tambm podem adotar

    as perspectivas diacrnica e sincrnica, a primeira volta-se para a explicao do surgimento e

    desenvolvimento na lngua de formas gramaticais e a segunda busca em uma forma lingustica

    seus graus de gramaticalidade a partir dos deslizamentos funcionais que so atribudos a ela,

    por meio do uso. H ainda uma terceira possibilidade de anlise: a pancrnica, que abrange as

    duas perspectivas anteriores.

  • 5

    Ao adotarem uma ou outra abordagem, os estudiosos apontam muitas formas de tratar

    a GR, desde os que a restringem mudana de itens lexicais at os que preferem abord-la

    acima do nvel da palavra; e, ainda, h as diferenas de conceitos, definies, estgios,

    princpios, mecanismos e motivaes, que contriburam e contribuem para a fixao de um

    estatuto terico.

    Dada a complexidade do estudo do processo de GR, pela diversidade de estudiosos, de

    conceitos e de princpios, a fim de contemplar os objetivos deste trabalho, sero abordados

    alguns pontos pertinentes GR, a saber: conceitos, princpios, processos, mecanismos e

    parmetros.

    1.2 Conceitos de gramaticalizao

    H diversos conceitos de GR na literatura pertinente ao assunto, da a dificuldade em

    apresentar uma nica forma de definir esse fenmeno. Dessa forma, sero apresentadas as

    mais difundidas.

    A obra de Meillet (1912) referncia praticamente obrigatria em qualquer trabalho

    que se dedique GR, especialmente por ser a primeira a enfocar claramente esse processo,

    retomando, como ponto de partida, a perspectiva diacrnica. Em seus estudos, o autor

    estabelece trs classes de palavras as principais, as acessrias e as gramaticais e prope

    haver entre elas uma transio gradual. As palavras gramaticais seriam resultado de um

    processo originado sobre as principais. A esse processo, Meillet se referiu com o rtulo de

    GR, que seria, ento, a atribuio de um carter gramatical a um termo anteriormente

    autnomo. (Meillet, 1912, p. 131)

    Em sua obra de 1912, Linguistique Historique et Linguistique Gnrale, Meillet

    apresentou o que mais se aproxima da concepo atualmente aceita do processo de GR:

    processo de mudana lingustica pelo qual itens lexicais, com referentes extralingusticos, vo

    gradativamente assumindo sentidos e funes intralingusticas, at que, aps percorrer um

    pressuposto continuum de conceptualizaes e de funes lingusticas, paralelamente ao

    desgaste fnico, podem vir a desaparecer enquanto formas. Meillet cunhou a denominao

    Gramaticalizao e a focalizou, no motivado pela tipologia lingustica, e sim pelos estudos

    de Lingustica Histrica, visto que a aplicava a fatos da histria do indo-europeu. Outra

    contribuio de Meillet foi o estabelecimento de distines importantes entre os conceitos de

  • 6

    renovao e de analogia, alm de ter ampliado o sentido de gramtica ao incorporar-lhe a

    questo da ordem das palavras nas frases.

    Meillet (1975), ao citar a analogia como processo de criao de formas, retoma

    Hermann Paul (1889), o qual j havia tecido reflexes acerca desse tipo de mudana,

    observada principalmente na linguagem infantil. Para Paul (1889),

    uma forma j existente, com significao idntica, no desaparece

    subitamente com o aparecimento do neologismo anlogo. No

    concebvel que a primeira empalidea simultaneamente em todos os

    indivduos, de forma que a palavra formada por analogia possa impor-

    se sem obstculos. Muito mais frequentemente acontece que alguns

    indivduos conservam sempre a velha frmula enquanto outros se

    servem j do neologismo. Mas continuando a haver entre uns e outros

    um convvio constante, acabar por dar-se um ajustamento. Portanto

    ambas as formas tm de tornar-se correntes para um nmero maior ou

    menor de indivduos. S depois de longa luta entre ambas as formas

    que o neologismo pode reinar sozinho. (PAUL, 1889, pp.125-126)

    Para Meillet (1975), o segundo procedimento, a GR, o mais importante, pois pode

    mudar o sistema lingustico, ao criar formas que substituem as existentes ou introduzir

    categorias para as quais no havia expresso lingustica antes. (Apud LONGHIN, 2003, p.

    9)

    Para o pesquisador, o processo considerado principalmente diacrnico e gradual e

    haveria trs classes de palavras: palavras principais (um verbo locativo, por exemplo),

    palavras acessrias (um verbo de ligao) e palavras gramaticais (um verbo auxiliar), entre

    as quais h uma transio gradual que estaria relacionada ao esvaimento de sentido e de

    forma. Essa transio decorre da unidirecionalidade do processo. Dessa maneira, do ponto de

    partida da GR, haveria um item lexical e, no ponto de chegada, um item gramatical.

    Os estudos sobre GR foram esquecidos por dcadas, mesmo com os trabalhos de

    Meillet, devido publicao da obra de Saussure, Curso de Lingustica Geral (Cours de

    Linguistique Gnrale), publicada em 1915.

    Apenas a partir na dcada de 70 o princpio de GR foi retomado por outros linguistas

    que fizeram surgir novas pesquisas sobre o tema. Entre eles citamos, principalmente, os

    alemes Lehman, Heine, Claudi, Hunnemeyer, os norte-americanos Givn, Hopper, Traugott,

    Bybee, Pagliuca. Esses autores fazem uso de diferentes perspectivas e de nomenclaturas

    http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Curso_de_Lingu%C3%ADstica_Geral&action=edit&redlink=1
  • 7

    distintas para conceituar esse processo. Por isso, so encontradas designaes diversas, tais

    como: gramaticalizao, gramaticizao, descoramento semntico, sintaticizao,

    enfraquecimento semntico, desvanecimento semntico, condensao e reanlise. Optamos

    por adotar o termo GR, por ser o mais recorrente.

    Ao lado da definio clssica de Meillet (1975), est a de Kurylowicz, tambm

    assumida por Lehmann (1995):

    processo em que se verifica a ampliao dos limites de um morfema,

    cujo estatuto gramatical avana do lxico para a gramtica, ou de um

    nvel menos gramatical para mais gramatical, isto , de formante derivatio para formante flexional. (apud NEVES, 2004, p.115)

    Heine adota essa mesma linha para definir o processo de GR:

    [a gramaticalizao consiste n]o crescimento dos limites de um

    morfema que avana de um item lexical para um valor gramatical ou

    do menos para o mais gramatical, i.e., de um formante derivatio para

    formante flexional. (Heine et al. (1991a, p. 3)

    Diante disso, pode-se dizer que, nessa fase, a GR era tida, como afirmam Heine et al.

    (1991, p. 2),

    um processo que pode ser encontrado em todas as lnguas conhecidas

    e que pode envolver qualquer tipo de funo gramatical, quando uma unidade ou estrutura lexical assume uma funo gramatical, ou

    quando uma unidade gramatical assume uma funo ainda mais

    gramatical.

    As definies at ento apresentadas tinham como base a de Meillet (1912), no

    entanto, os estudos de GR passaram a examinar fenmenos at ento no-discutidos, como o

    caminho percorrido por certas formas lingusticas e tambm as construes gramaticais

    emergentes. Dessa forma, o alcance do termo GR se expandiu e novas definies foram

    necessrias.

  • 8

    Podemos dividir os novos estudos de GR a partir do enfoque dado na anlise dos

    fenmenos: o recorte temporal, a direo de mudana e o discurso.

    No primeiro ponto, o recorte temporal: diacronia, sincronia e pancronia, autores como

    Traugott & Heine (1991) defendem que a GR remete a um processo lingustico diacrnico e

    sincrnico (o primeiro volta-se para a explicao do surgimento e desenvolvimento na lngua

    de formas gramaticais e o segundo busca em uma forma lingustica seus graus de

    gramaticalidade a partir dos deslizamentos funcionais que so atribudos a ela, por meio do

    uso); anteriormente os estudos se voltavam apenas para a diacronia.

    Quanto direo da mudana, os estudos de GR partem do discurso para a sintaxe.

    Temos nos estudos de Givn (1979), adotados por Genetti (1991), Haiman (1994), Herring

    (1991), Hook (1991), Hopper (1991), Lichtenberk (1991) e Shibatani (1991), a apresentao

    de um processo cclico: discurso > sintaxe > morfologia > morfofonmica > zero.

    Votre (1999) prope uma nova concepo:

    Processo de regularizao que se verifica num fenmeno qualquer,

    medida que a generalizao progressiva do uso vai fazendo com que ele passe do nvel do discurso, em que h ampla liberdade de

    variao, para o nvel da gramtica, em que se regulariza e em que

    diminui ou cessa a liberdade de variao. O conceito aplica-se

    tambm aos itens j presentes na gramtica, que evoluem para uma conformao ainda mais gramatical, se admitimos que os itens da

    gramtica no so entidades discretas, e sim plos de um contnuo,

    em que certas classes de itens esto mais prximas do lxico, enquanto outras ocupam diferentes posies no continuum da

    gramtica. (VOTRE, 1999)

    Passando para uma nova fase, a GR vinculada aos estudos da lingustica descritiva e

    histrica, indo a investigao para alm do lxico e da morfologia. Givn (1979) quem

    primeiro apresenta em suas anlises o discurso, aqui entendido como macrossintaxe, e no no

    sentido de interao, ao utilizar a frase de Hodge (1970) a morfologia de hoje a sintaxe de

    ontem, afirmando que a sintaxe de hoje o discurso pragmtico de ontem.

    A partir dos trabalhos de Givn, um campo de pesquisa foi aberto, surgindo os estudos

    de Bybee (1994), que trata das categorias de tempo e aspecto, de Hopper & Traugott (1993),

    que consideram a coordenao e a subordinao.

  • 9

    Um dos conceitos imprescindveis para o estudo relacionado ao processo de GR a

    possibilidade de um elemento lexical, que assumia uma determinada classificao, passar a ter

    um atributo gramatical diferenciado - recategorizao.

    Na recategorizao de categorias lexicais, Hopper & Traugott (1993, p. 104)

    observam o seguinte continuum:

    Categoria maior Categoria mediana Categoria menor

    [Nome, Verbo, Pronome] [Adjetivo, Advrbio] [Preposio, Conjuno]

    No Brasil, muitos estudos sobre GR tm sido realizados, dentre os quais citamos os de

    Martelota (1996), Cunha, Costa e Cezario (2003).,

    Martelotta (1996, p.59) define a gramaticalizao como

    um processo de mudana unidirecional, segundo o qual elementos

    lexicais e construes passam a desempenhar funes gramaticais,

    tendendo, com a continuidade do processo, a assumir novas funes

    gramaticais. Com a gramaticalizao, o elemento tende a se tornar

    mais regular e previsvel em termos de uso, pois perde a liberdade

    sinttica caracterstica dos itens lexicais, quando penetra na

    estrutura tipicamente restritiva da gramtica. (MARTELOTTA,

    1996, p. 59).

    O processo de GR singulariza, segundo Furtado, Costa e Cezario (2003, p. 51), a

    trajetria

    a) dos elementos lingusticos do lxico gramtica (ex.: verbo pleno > verbo auxiliar: o

    verbo ir pleno no sentido de movimento, passa a verbo auxiliar em construes como vou

    fazer, em vez de farei);

    b) de categorias menos gramaticais para categorias mais gramaticais, como o de categorias

    invariveis para categorias flexionais (ex.: menos > menas).

    Como apontado anteriormente, os estudos sobre GR continuam sendo de interesse

    para muitos linguistas, da o alargamento do campo dos fenmenos que tm sido analisados.

  • 10

    Embora ainda haja dificuldade em se apresentar um nico conceito para GR, os estudos atuais

    comprovam que muito se tem a ser explorado nessa rea de conhecimento.

    1.3 Princpios, processos, mecanismos e parmetros

    Assim como a definio, os princpios, os processos, os mecanismos e os parmetros

    da GR no so ainda apresentados com exatido e clareza pelos autores.

    De acordo com Gonalves et al. (2007), as alteraes sofridas pela gramtica,

    verificadas na GR, ocorrem na fonologia, na morfologia, na semntica e na sintaxe em todas

    as lnguas naturais.

    Lehmann (1995[1982]) o que, primeiramente, melhor simplificou os estgios da

    gramaticalizao, levando em considerao as categorias lexicais: sintatizao,

    morfologizao e desmorfologizao. No primeiro estgio, os itens ou construes passam a

    adquirir propriedades que no as de origem, procedendo a uma recategorizao; no segundo,

    h o surgimento, na lngua, das formas presas, sejam elas afixos flexionais ou derivacionais e,

    no terceiro estgio pode ocorrer o desaparecimento por completo do morfema, sendo sua

    nova funo assumida por outros itens com os quais ele co-ocorre. Segundo Martelotta et al.

    (1996), difcil encontrar um consenso no estabelecimento dos mecanismos referentes ao

    processo de GR. No entanto, pode-se dizer, segundo os autores, que a GR pode ocorrer tanto

    por processos de natureza metafrica quanto de natureza metonmia.

    Quanto GR por meio do processo metafrico, um dos exemplos mais utilizados o

    das mudanas que fazem o percurso ESPAO > (TEMPO) > TEXTO, em que elementos

    designativos de espao passariam a ser usados como organizadores do universo discursivo,

    podendo, em um estgio intermedirio, expressar noo temporal.

    Para Dubois et al. (1978, p. 56), o processo de metonmia ocorre quando

    uma noo designada por um termo diferente do que seria

    necessrio: as duas noes esto ligadas por uma relao de causa e

    efeito (a colheita pode designar o produto da colheita e no a prpria

    ao de colher), por uma relao de matria a objeto ou de continente

    a contedo (beber um copo), por uma relao da parte ao todo (uma

    vela no horizonte).

  • 11

    No que diz respeito fixao de princpios para a GR, Heine e Reh (apud HOPPER e

    TRAUGOTT, 1991) so os primeiros a estabelecer parmetros para estudos posteriores. Os

    estudiosos apresentam sete princpios, a saber:

    a) quanto mais uma unidade lingustica sofre gramaticalizao, mais ela perde em

    complexidade semntica, significncia funcional, e/ou valor expressivo;

    b) quanto mais uma unidade lingustica sofre gramaticalizao, mais ela perde em pragmtica

    e ganha em significncia sinttica;

    c) quanto mais uma unidade lingustica sofre gramaticalizao, mais reduzido o nmero de

    membros que pertencem ao mesmo paradigma morfossinttico;

    d) quanto mais uma unidade lingustica sofre gramaticalizao, mais sua variabilidade

    decresce, isto , sua posio se torna fixa na orao;

    e) quanto mais uma unidade lingustica sofre gramaticalizao, mais seu uso se torna

    obrigatrio em alguns contextos e agramatical em outros;

    f) quanto mais uma unidade lingustica sofre gramaticalizao, mais ela se funde semntica,

    morfossinttica e foneticamente com outras unidades;

    g) quanto mais uma unidade lingustica sofre gramaticalizao, mais ela perde na substncia

    fontica.

    No texto clssico On some principles of gramaticalization (1991), Hopper prope

    outros princpios. O linguista ressalta, ao estabelecer as etapas desse processo de mudana

    lingustica, o seu objetivo em suplementar a caracterizao proposta por Lehmann (apud

    CASTILHO, 1997a), cujas proposies explicam a GR de formas em estgios bem

    avanados, nos quais o reconhecimento do processo inegvel. Para Hopper (1991), os

    princpios devem buscar responder questo do mais ou menos gramaticalizado,

    identificando fases anteriores ao estgio, em que as formas seriam consideradas parte da

    gramtica.

    Hopper (1991) aponta cinco princpios:

    a) estratificao: dentro de um domnio funcional amplo, novas camadas emergem

    continuamente. Quando isso ocorre, as camadas mais antigas no so necessariamente

    descartadas, mas podem continuar a coexistir e a interagir com as camadas mais novas; esse

  • 12

    princpio aponta para a gradualidade do processo e para a polissemia das formas. O autor

    apresenta um exemplo de formas verbais do ingls: take/took (camada mais antiga), em que

    ocorre alternncia das vogais para distinguir presente e passado, que coexiste com a

    alternncia em walk/walked, (camada mais recente), em que ocorre a alternncia /t/ e /d/; ou

    seja, o surgimento de uma camada mais recente no implicou o desaparecimento da camada

    mais antiga;

    b) divergncia: ocorre quando a forma lexical se gramaticaliza em um cltico ou em um afixo

    e a forma lexical original permanece como um elemento autnomo e sofre as mesmas

    mudanas que um item lexical comum. Embora Hopper (1991) mencione que a divergncia

    um caso especial de estratificao, entre ambas h diferentes graus de gramaticalizao: a

    divergncia se aplica aos casos em que um item lexical autnomo torna-se gramaticalizado

    apenas em determinados contextos, ao passo que a estratificao atua nas codificaes de uma

    mesma funo. Ou seja, a divergncia resulta da multiplicidade de funes: duas formas

    idnticas do ponto de vista fonolgico apresentam funes e significados distintos. Exemplos

    de divergncia so o verbo de movimento to go, do ingls, que sofreu o processo de

    gramaticalizao e ganhou o valor semntico de futuro (going to); em portugus, o verbo ir,

    ainda com valor semntico de movimento, gramaticalizou-se, adquirindo tambm o valor

    semntico de futuro: Eu vou sair; no francs, o nome pas (passo) gramaticalizou-se na

    partcula negativa pas e ambas coexistem no francs atual com funes distintas;

    c) especializao: dentro de um domnio funcional, possvel haver, em determinado estgio,

    uma variedade de formas com nuanas semnticas diferentes. Quando a gramaticalizao

    ocorre, estreita-se essa variedade de escolhas formais, e um nmero menor de formas

    selecionadas assume significados semnticos mais gerais; esse princpio, portanto, est

    relacionado restrio de escolhas para uma dada construo, a partir do momento em que

    uma forma gramatical vai se tornando obrigatria em determinados contextos de uso. O

    exemplo do emprego de pas no francs, acima mencionado, exemplifica bem esse princpio:

    inicialmente, pas gramaticalizou-se como partcula negativa de reforo de estrutura com

    verbo de movimento: Il ne va (pas). Posteriormente, estendeu-se a outros tipos de verbos e foi

    reanalisada como partcula obrigatria para construes de negao em geral (ne V pas);

    d) persistncia: quando uma forma se gramaticaliza, passando de uma funo lexical para

    uma funo gramatical, tanto quanto isso seja gramaticalmente vivel, alguns traos do seu

  • 13

    significado lexical original (forma fonte) tendem a aderir nova forma gramatical e detalhes

    de sua histria lexical podem refletir-se na sua distribuio gramatical. Esse princpio auxilia

    na compreenso de alguns traos sinttico-semnticos que persistem da forma fonte na forma

    gramaticalizada. Exemplos desse princpio no portugus so as conjunes coordenativas

    embora e todavia, as quais ainda apresentam mobilidade sinttica, trao de sua origem

    adverbial (em + boa + hora e toda + via);

    e) descategorizao: formas em processo de gramaticalizao tendem a perder ou a

    neutralizar as marcas morfolgicas e as propriedades sintticas das categorias plenas Nome e

    Verbo e a assumir atributos caractersticos das categorias secundrias, tais como: o adjetivo, o

    particpio, a preposio, entre outros.

    Diante desses princpios, pode-se dizer que eles ajudam na compreenso da GR, mas,

    dado o seu carter dinmico e histrico, preciso considerar, ao se analisar um item em

    processo de mudana gramatical, a impossibilidade de assegurar a determinao de uma nica

    fase.

    1.4 Gramaticalizao de conjunes

    Uma das categorias lingusticas que tem sido investigada sob o prisma da

    gramaticalizao a das conjunes, visto que o seu conceito nas gramticas do portugus

    frequentemente esbarra na falta de critrios claros e explcitos de delimitao e na indicao

    de categorias bem definidas.

    Percebe-se que os estudos referentes s conjunes tm prescindido de uma anlise

    calcada no contexto e no processo de interao verbal entre os indivduos para se deter em

    mecanismos que no acrescentam um conhecimento mais amplo ao estudo da lngua

    portuguesa, da a extrema importncia de estudos relacionados a conjunes. Neste trabalho,

    privilegiamos a conjuno porm, por se tratar de interessante fonte de pesquisa, uma vez que

    etimologicamente o item era um advrbio e, que em um dado momento, passou a conjuno.

    O que as gramticas tm feito, salvo raras excees, a exemplo de Said Ali (2001) e

    Bechara (2004), listar uma infinidade de conjunes vinculadas a uma construo

    lgico/semntica. E, quando mencionam as aplicabilidades dessas conjunes, em grande

  • 14

    parte das vezes, valem-se de exemplos cannicos retirados de grandes autores da Literatura ou

    j veiculados em outras gramticas. Poucas so as discusses crticas acerca de certos

    empregos e, at mesmo, a negao de outras possibilidades.

    Um retorno rpido histria do portugus nos permite compreender o porqu dessa

    falta de critrio para classificar essa categoria. Segundo Said Ali (s/d, pp. 255-256),

    Obscura a origem de certas conjunes latinas; porem, a julgar por

    aquellas cujo historico se conhece, a linguagem no teria creado vocabulos especiaes para constituir a nova categoria. Serviram a este

    fim adverbios que, de modestos determinantes de um conceito nico,

    se usaram como determinantes de toda uma sentena; e serviram

    tambem pronomes do typo relativo-interrogativo, ou themas pronominaes accrescidos de novos elementos.

    Da respeitavel serie de conjunes que faziam parte do idioma latino

    muito poucas passaram s linguas romanicas. Em portuguz existem e (et), ou (aut), nem (nec), quando, se (si), como (tem o sentido de quum

    e de quomodo, posto que pelas leis da phonetica s se filie ao segundo

    destes vocabulos), e que, usada no latim vulgar. A substituio de sed,

    autem, por mais (depois mas), do adverbio ma(g)is, data do periodo pre-lusitano.

    A falta das demais particulas supprem-na creaes novas, isto ,

    adverbios, que se adaptaram ao papel de conjuno, assim como o amplo emprego de que, simples, ou combinado com preposies e

    com adverbios ou locues de caracter adverbial, e, ainda, a forma

    verbal quer (em quer...quer..., onde quer que, quando quer que) para expressar o conceito optativo.

    Segundo Meillet (1912), as conjunes tm em sua formao um campo riqussimo de

    estudos, uma vez que estiveram sempre suscetveis renovao. Pesquisas sobre a

    gramaticalizao de conjunes tm favorecido a expanso de formas de observao e a

    reconstruo das mudanas sofridas ou em andamento dessas palavras.

    Entre os trabalhos significativos encontrados na literatura de GR de conjunes,

    destacam-se os de Traugott (1982, 1999), Knig (1984), Sweetser (1988, 1990), Traugott e

    Knig (1991).

    Com relao mudana semntica, esses autores concordam em que as alteraes so

    conduzidas por dois mecanismos: a metonmia, de natureza pragmtica e a metfora, de

    natureza cognitiva.

  • 15

    Traugott (1982, p. 256) destaca o mecanismo da cmetonmia e prope uma tipologia

    das mudanas semntico-pragmticas no processo de GR. Para a autora, a mudana de

    significado se d de maneira unidirecional e pode ser demonstrada pelo cline1, a seguir:

    PROPOSICIONAL > TEXTUAL > EXPRESSIVO

    Entende-se por componente proposicional os recursos da lngua pertencentes ao

    mundo extralingustico, ou seja, dos quais fazem parte elementos relacionados ao discurso,

    por exemplo, os pronomes diticos, de tempo, de pessoa, de espao, relacionados

    localizao e orientao. O componente textual, por seu turno, refere-se a recursos como

    conectivos e elementos anafricos, os quais possibilitam a coeso do discurso. Por sua vez, o

    componente expressivo possibilita a expresso de atitude pessoal sobre o que se pretende ou

    sobre aquilo que se diz no discurso.

    Enquanto Traugott destaca a metonmia, Sweetser considera a metfora a responsvel

    pelas mudanas semntico-pragmticas, pois por meio dela que conseguimos entender algo

    em termos de outro, sem ao menos termos conscincia de que ambos tm a mesma base

    semntica.

    A abordagem de Sweetser (1988 e 1990) cognitiva e envolve trs reas distintas: a

    polissemia, a mudana semntica lexical e a ambiguidade pragmtica, para tratar da mudana

    semntica. Ela afirma que nenhuma mudana semntica ocorre sem haver um estgio de

    polissemia, uma vez que se uma palavra uma vez significou A, e agora significa B, certo que

    houve um momento na histria desse item em que ele significou AB, e o significado primeiro

    foi perdido (SWEETSER, 1991, p. 9).

    Conforme Sweetser (1988), na maioria das vezes a polissemia ocorre devido aos usos

    metafricos, pois nossa cognio e nossa linguagem operam metaforicamente. A metfora nos

    permite compreender uma coisa em termos de outra sem ter a conscincia que elas tm a

    mesma base semntica. Quando um uso, baseado em uma estrutura metafrica, se torna

    conscientizado pelos falantes, essa forma lingustica passa a ter um novo sentido por meio de

    motivaes metafricas.

    A estudiosa prope trs domnios de conceituao, com relao ao desdobramento

    polissmico de uma forma, a saber: o domnio de contedo (sociofsico), o epistmico

    1 Cline: (item lexical > item gramatical > cltico > afixo) defendido por aqueles que acreditam em um canal

    unidirecional dos mecanismos de mudana sinttica, tidos por estes como previsveis (Hopper e Traugott, 1993).

  • 16

    (raciocnio lgico), e o conversacional (ato de fala). Entende-se os domnios cognitivos,

    epistmico e atos de fala, pelo menos em parte, em termos do domnio externo, fsico e social.

    Alm disso, os falantes usam os mesmos termos, em muitos casos, para expressar relaes no

    ato de fala e no mundo epistmico, assim como para expressar relaes paralelas no domnio

    do contedo. Segundo Sweetser (1990), a relao entre esses domnios cognitiva, e eles

    influenciam na polissemia, na mudana semntica e na interpretao de uma orao.

    De acordo com a autora, a fora atuante nesses trs domnios de natureza metafrica,

    ou seja, h uma conexo entre eles, com base na metfora, que faz que o falante,

    inconscientemente, reconhea essa relao entre os domnios, da mesma forma que ele, de

    certa forma, reconhece a relao entre o conhecimento e a viso entre o tempo e o espao e

    recorra a um para falar do outro.

    Sweetser (1988) se preocupa em definir quais os significados que so perdidos e quais

    so preservados em GR, uma vez que na transferncia de sentidos algumas caractersticas

    semnticas so preservadas da fonte, e outras so acrescentadas ao domnio alvo.

    A proposta de Sweetser (1988) amplia os estudos sobre GR de conjunes quando

    sugere que devem ser levados em considerao tanto os significados que so perdidos quanto

    os que so preservados no processo de GR.

    Para Traugott e Knig (1991),

    a metfora est largamente correlacionada com mudanas de

    significados localizados na situao descrita externa para

    significados referentes a situaes avaliativas, perceptivas e

    cognitivas, e para significados fundados na marcao textual. A

    metonmia, por sua vez, est amplamente correlacionada com as

    mudanas de significados centrados na crena ou atitude subjetiva

    dos falantes, em direo situao, incluindo a lingustica.

    (TRAUGOTT e KNIG, 1991, p.213)

    Feitas as consideraes sobre a gramaticalizao de conjunes, de um modo geral,

    analisar-se- a etimologia e as definies de gramticas e dicionrios sobre o item de interesse

    deste trabalho, o porm.

  • 17

    1.5 O item porm: etimologia e definies

    O perodo arcaico apresenta um conjunto de caractersticas lingusticas, representadas

    na documentao escrita remanescente, que o faz diferir do portugus moderno. A questo

    que nos interessa identificar o momento em que essas caractersticas que tipificam o perodo

    arcaico deixam de ocorrer na documentao escrita.

    Para Mattos e Silva (1989),

    a histria das lnguas no acompanha a par e passo a histria scio-

    poltica das sociedades que usam essas lnguas. Seus ritmos so

    distintos. Se um evento histrico significativo pode ser tomado como

    um marco delimitador de um perodo histrico para a histria de uma

    sociedade, a lngua dessa sociedade continuar o seu ritmo

    constitutivo e pode disso sofrer o efeito com o passar do tempo.

    Decorre desse desemparelhamento entre a histria da sociedade e a

    histria da lngua dessa sociedade o fato de no encontrarmos

    consenso, nos estudos pertinentes, na delimitao dos finais do

    perodo arcaico e dos incios do perodo moderno da lngua

    portuguesa.

    Segundo Hopper e Traugott (1991), no se pode reconstruir nenhuma regra ou

    gramtica para uma lngua morta que no seja atestada em lngua viva. H razes, portanto,

    para se postular que a GR ocorreu em lnguas faladas h 10 mil anos de modo bastante

    semelhante ao que se verifica hoje.

    Silva Neto (1970, p. 52) afirma que

    a histria de uma lngua no um esquema rigorosamente

    preestabelecido, no um problema algbrico. No se pode partir do

    latim e chegar diretamente aos dias de hoje, saltando por sobre vrios

    sculos de palpitante vida.

    A evoluo complexa e melindrosa, relacionada com mil e um

    acidentes, cruzada, recruzada e entrecruzada porque no representa

    a evoluo de uma coisa feita e acabada, mas as vicissitudes de uma

    atividade em perptuo movimento.

  • 18

    Etimologicamente, segundo Cunha (1997), o item porm proveniente de por + ende

    (< lat. nde), frequente no port. med., desde o sculo XIII. XIV, porende XIII, poren XIV etc.

    No dicionrio Houaiss da lngua portuguesa, registra-se a seguinte etimologia: lat. proinde

    'assim, portanto, pois, por conseguinte', pelo arc. por ende; f. hist. sXIII poren, sXIII pore,

    sXIV porem, sXIV por em, 1502-c1536 perem. Segundo o dicionrio Aurlio, porm origina-

    se do lat. proinde, 'por conseguinte', pelo arc. porende, 'por isso', com apcope.

    As gramticas histricas apresentam o item porm e sua variante arcaica porende

    como provenientes de pro nde. Coutinho (1973) em sua Gramtica Histrica,aponta que os

    compostos pero e porende eram sinnimos e significavam por isso. Ele tambm aponta que,

    em certos casos, o em apresenta-se como conjuno concessiva, uma vez que era um vestgio

    do arcaico ende, cuja origem o pronome latino nde.

    Segundo Said Ali (2001), na antiga lngua portuguesa, usam-se as formas porende e

    porm com sentido de por isso, expressando a noo de causa determinante de certo ato.

    O autor afirma que o elemento porm sofre uma transformao semntica na linguagem da

    Renascena: do sentido de por isso, por essa razo, passa a expressar o mesmo que

    mas, apesar disso, contudo , indicando oposio de idias. O primitivo advrbio

    transmuda-se em conjuno adversativa (Said Ali, 2001, p. 143) e permanece at os dias de

    hoje.

    Em Histria e estrutura da lngua portuguesa (1975), Mattoso Cmara Jr. realizou

    pioneiro trabalho entre os estruturalistas: aplicou diacronia do portugus os princpios de

    anlise estrutural, sobretudo nos nveis fonolgico e morfolgico. De acordo com Mattoso, o

    porm, no portugus arcaico, era uma partcula explicativa, equivalente a por isso,

    proveniente da forma latina per nde ou pro nde (nde da). O uso do porm com sentido

    adversativo conjuno coordenativa de oposio desenvolveu-se desde o portugus

    clssico e estava relacionado conjuno adversativa mas.

    Nas gramticas normativas, o porm uma conjuno adversativa. Para Bechara

    (2005), o porm considerado conjuno adversativa por excelncia, juntamente com o mas e

    o seno, uma vez que unem unidades, atribuindo sentido de oposio entre elas. Segundo o

    autor, ao contrrio das conjunes aditivas e alternativas, que podem unir duas ou mais

    unidades, as adversativas se limitam a duas: mas e porm salientam a oposio, e o seno

    acentua a incompatibilidade.

    Pode-se verificar, ainda, o que Neves (2000) esclarece em sua Gramtica de usos do

    portugus: o porm um advrbio juntivo de valor anafrico, indicador de contraste. Para a

  • 19

    autora, o advrbio juntivo adversativo determina a relao de desigualdade entre o segmento

    em que ocorre (enunciado, orao ou sintagma) e um segmento anterior.

    Borba (2002, pp. 1236-1237) apresenta o porm como conjuno coordenativa

    adversativa que pode expressar uma contraposio entre dois elementos de uma mesma

    orao ou entre duas oraes de mesmo gnero, em que o segundo constituinte representa

    uma frustrao de expectativa, um desvio em relao ao que se esperaria; pe em contraste

    duas oraes; todavia; contudo: introduz um argumento que representa uma ressalva ao que se

    disse; entretanto: introduz um argumento que representa um acrscimo ao que se disse antes.

    Alm dessas definies apresentadas acima, oportuno elencar aqui algumas

    definies do item porem em dicionrios para que possamos ter uma viso ampla dos

    significados apresentados pelo item ao longo da histria do portugus, principalmente em

    obras que reportam a esse perodo, como o caso do Vocabulrio histrico-cronolgico do

    portugus medieval, obra publicado em formato digital e que contempla, em sua estrutura, um

    vasto nmero de obras.

    Michaelis. Moderno Dicionrio da Lngua Portuguesa

    po.rm: conj (arc por ende, do lat proinde). Denotativa de oposio, restrio ou diferena e

    equivale a mas, contudo, todavia; apesar disso, no obstante.

    Dicionrio HOUAISS da Lngua Portuguesa

    Porm: conjuno coordenativa. 1. conjuno adversativa: introduz ou finaliza uma orao

    ou um perodo cujo contedo faz oposio ou restrio ao que foi dito na orao anterior;

    mas, contudo, todavia, apesar disso, no obstante. Ex.: . s.m. 2 empecilho, bice, obstculo 3 aspecto negativo; inconveniente, seno ter (os)

    seus p. ter seu seno, seu lado negativo ETIM lat.

    proinde 'assim, portanto, pois, por conseguinte', pelo arc. por ende; f.hist. sXIII poren, sXIII

    pore, sXIV porem, sXIV por em, 1502-c1536 perem PAR porem // (fl.pr).

  • 20

    Dicionrio Aurlio da Lngua Portuguesa

    Porm: [Do lat. proinde, 'por conseguinte', pelo arc. porende, 'por isso', com apcope.]. Conj.

    1. Contudo; mas; todavia. [Corretssimo o emprego da conjuno porm em comeo de

    perodo. fato da lngua, facilmente documentvel desde a fase arcaica (p. ex., Joam Roiz de

    Castel Branco em Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, III, p. 122; e Gomes Eanes de

    Azurara, Crnica do Descobrimento e Conquista de Guin, pp. 3, 38, 70, 80) at os nossos

    dias. S em uma das obras do seiscentista Manuel Bernardes, clssico dos maiores (Nova

    Floresta, 5 vols.), podem encontrar-se mais de 300 exemplos; s vezes vm dois exemplos, e,

    muito raro, trs, numa mesma pgina.]. S. m. 2. Bras. Empecilho, obstculo, bice. 3. Bras.

    Lado mau; aspecto negativo; inconveniente: & [Nesta acep., ger. us. na loc. ter o seu porm

    (como se v no exemplo citado) ou ter os seus porns.] [Cf. porem (), do v. pr.]

    Vocabulrio histrico-cronolgico do portugus medieval

    Porm: conjuno atual: porm sc. XV, TERS, 56.26. 1. Porm, como, per processo de

    tempos, passados muitos annos, ho sobre dito Leodobollo passasse desta vida [...] ho dito

    Numollo abbade [...] achou nos livros [...]. sc. XV, LOPF, P.63; 2. E porm nunca el-rrei hia

    vez algua aa caa que sempre em ella nom houvesse grande sabor e desenfadamento. sc.

    XIV, LOPP, P.40; 3. E porm a justia he muito necessaria, assi no poboo como no rrei,

    porque sem ella nemha cidade nem rreino pode estar em assessego [...]. porm conjuno

    Medieval: por sc. XIV, EUFR, 25 filho meu a tua fae he fremosa aos frades fermos e

    fracos por quero que estes soo em tua ela [...]. Medieval: por em sc. XIV, EGIP, 3; 1. Tal

    era a vida do santo hom que nunca leixava de cuidar e meditar nas santas pallavras e nom

    mguava por em de fazer obras de suas maos. Sc. XIV, EUFR, 20; 2. [...] por em te fige

    tomar affam de viires aca pera conprires o meu desejo [...]. Sc. XIV, PELA, 23; 3. E por em

    te rogo e amoesto que de todo todo n desprezes [...] minha humildade [...]. Medieval: por;

    Sc. XIV, BENT, 23.22; 1. Por o abade nha cousa ctra o comdamto de nostro Senhor

    n deve a ssinar [...]. Sc. XV, ZURG, 13.9; 2. E por sam Tomas [...] diz [...] que toda obra

    se torna naturalmte aa cousa de que primeiramente procede. Sc. XV, SOLI, 13.6; 3. E por

    partirse o hom de ty n he outra cousa sen seer sem carreira e sem verdade e sem vida. Sc.

    XV, IMIT, 19.11; 4. Esforemosnos, empero, quanto podermos, e, ainda que levemente

    desfaleamos em muitas cousas, sempre, por, algua cousa em erto he de propoer [...]. Sc.

    XV, COND, 4c25; 5. [...] e por vos peo por meree que me dees lugar pera em ello cuidar

  • 21

    [...]. Sc. XV, VIRG, V.1987; 6. E por raz he e dereyto que aquel que esto fez seja privado

    da tua muy doce companhia [...]. Sc. XIV, ORTO, 200.9; 7. E como assy seia que o Padre

    celestrial sabe dar boas coussas aos seus filhos, segundo diz o Saluador, por deu elle aos seus

    mais chegados amigos e muyto mais a seu filho Jhesu Christo [...]. Sc. XV, SBER, 47.12; 8.

    [...] (o que tu, por, Ssenhor, per virtude das obras milhor fazes) [...]. Sc. XIV, JERO, 21; 9.

    E por se he algu pequeno seguramente venha a ty [...]. Sc. XIV, BARL, 1.12; 10. E por

    Rey auenir comeou muy grande persigui contra os sanctos homes. Sc. XIV, AVES,

    XXII.22; 11. E por o propheta ensina os fiees de Deus como respd aos ereges [...]. Sc.

    XIII, FLOR, 111; 12. por uos quero dizer destes persoeyros que s ditos en latin

    procuratores. Medieval: porem sc. XV, ZURG, 15.2; 1. Ca s embargo de se em todollos

    Regnos fazer jeeraaes cronicas dos Rex delles / n se leixa porem descreuer apartadamente

    os fectos dalgus [seus] vassallos. Sc. XV, OFIC, 4.3; 2. Porem a mim parece que os outros

    sem este podem trazer pena e doesto. Sc. XV, VIRG, I.260; 3. E porem cpre muito que

    aqueles que tom sanha de amor que n passen os termos da razon [...]. Sc. XIV, BENT,

    42.18; 4. [...] porem ordamos e estabelecemos que [...]. Sc. XIV, SOLI, 31.10; 5. Ca a luz da

    tua vista, que se n muda, n he porem acreentada por tu oolhares ha cousa soo; n he

    mguada por tu veres assadamte muytas cousas e desvayradas sem conto. Sc. XV, ZURD,

    50.1; 6. [...] Jsto porem tenho que [...]. Sc. XV, CATI, 3; 7. E porem nos dha el ha partida

    de que falamos em enxenplo. Sc. XIV, BARL, 1.7; 8. [...] mais c todo esto n leixau

    porem os sanctos monges de preegar a saude e o nome de Jhesu christo a todos abertamte

    [...]. Sc. XV, SBER, 55.20; 9. Este primeiramente duvidou hu pouco, mais logo entendendo

    e cuidando na cousa qual era, deu consintimento aa conversom, asy porem se a sua molher

    proouvese e outorgase. Sc. XV, ANTI, 73.7; 10. Porem te digo que todo o homem [...] pode

    gardar e cumprir e fazer estes mandamente [...]. Sc. XV, CAVA, 2.11; 11. [...] e desy que

    esta manha cada hu per sy a deprende, e porem era scusado sobr'ello screver. Sc. XV,

    LOPJ, II.3.9; 12. [...] mas nunca porem sua praziuell bemquerena reebeo rogos nem prezes

    della aerca dos feitos da justia [...]. Sc. XV, IMIT, 13.16;13. E, porem, he de vigiar

    prinipalmente logo no comeo da tptaom, porque ent mais ligeiramente he venido ho

    imigo [...]. Sc. XIV, ORTO, 42.25; 14. [...] e porem (no ms. A: perem) diz S Paulo: Tomade

    a espada do spiritu, que he a palaura de Deus. Medieval: porm. Sc. XV, TERS, 56.26; 1.

    Porm, como, per processo de tempos, passados muitos annos, ho sobre dito Leodobollo

    passasse desta vida [...] ho dito Numollo abbade [...] achou nos livros [...]. Sc. XV, LOPF,

    P.63; 2 E porm nunca el-rrei hia vez algua aa caa que sempre em ella nom houvesse

    grande sabor e desenfadamento. Sc. XIV, LOPP, P.40; 3. E porm a justia he muito

  • 22

    necessaria, assi no poboo como no rrei, porque sem ella nemha cidade nem rreino pode estar

    em assessego [...]. Medieval: poren Sc. XV, VIRG, I.372; 1. Cobija he raiz de todolos

    maaes [...] e poren devemos a talhar a raiz dos peccados [...]. Sc. XIII, CSM, B.4; 2. Porque

    trobar cousa en que jaz / entendimento, poren queno faz / -o d'aver e de razon assaz.

    Dicionrio AULETE DIGITAL

    (po.rm) conj. 1. Palavra us. para indicar uma restrio ou uma condio para alguma coisa;

    CONTUDO; MAS; TODAVIA: Podem sair, porm voltem s cinco. 2. Palavra tb. us. para

    expressar uma relao de contraste, de oposio entre duas idias, situaes, fatos etc.:

    Chovia, porm fomos praia. sm. 3. Bras. Aspecto ruim ou imprprio de algo, de algum ou

    de uma situao: Sempre encontra um porm nos candidatos. 4. Bras. Impedimento, estorvo,

    obstculo, bice. [Pl.: -rns] [F.: por + ende, freqente no port. medv., desde o sc. XIII.

    Hom./Par.: porm (conj./sm.), porem (fl de pr).]

  • CAPTULO 2. MATERIAL E METODOLOGIA

    2.1 Material

    Segundo Bybee et al. (1994), a importncia da pesquisa diacrnica se deve a quatro

    motivos, a saber: (i) a dimenso diacrnica demonstra como uma forma ou construo passa a

    ter uma determinada funo na lngua; (ii) fatores cognitivos e comunicativos que subjazem

    significados gramaticais so mais claramente revelados, quando verificados em um perodo de

    transio, e no em uma situao esttica; (iii) a dimenso sincrnica no nos permite

    entender e explicar a escala de significado coberta por um item gramatical, uma vez que o

    significado gramatical est em constante mudana; e, (iv) generalizaes diacrnicas

    fornecem indcios mais significativos e mais reveladores sobre a correlao entre

    forma/significado.

    Para tanto, foram utilizados textos integrais de temtica religiosa e/ou moralizante, dos

    sculos XIII/XV e XV, com a finalidade de traar a trajetria de mudana do item porem

    nessas sincronias. Esses textos foram extrados do Corpus Informatizado do Portugus

    Medieval (CIPM), disponvel em http://www.cipm.fcsh.unl.pt, com exceo do Virgeu de

    Consolaon, cuja obra impressa foi consultada manualmente, visto que no consta do acervo

    digitalizado. Tambm consultamos as obras impressas dos corpora, para confirmao de

    leitura, com exceo das Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacence, cuja verso

    impressa no possumos.

    Essas obras, que fazem parte de uma produo escrita em Portugal, do fim do sculo

    XIV e incio do XV, bem como de todo o sculo XV, compreende um perodo de produo

    literria original na histria da literatura portuguesa, que pode ser destacada como a produo

    de uma histria oficial de Portugal.

    Aps a ascenso da dinastia de Avis ao Poder, os livros passaram a ser status de maior

    instrumento de veiculao dos saberes, ainda que com uma circulao que se restringia a reis,

    prncipes e nobres ricos. Entre os livros escritos por membros dessa dinastia, esto quatro

    tratados: O Livro da Montaria, escrito pelo rei Dom Joo; O leal conselheiro e o Livro da

    ensinana de bem cavalgar toda sela, ambos do rei Dom Duarte; e o Livro da Virtuosa

    Bemfeitoria do Infante Dom Pedro.

    Alm desses tratados, o sculo XV tambm remete histria da literatura portuguesa

    como um perodo de produo literria original, no qual se destacam obras relacionadas

    http://www.cipm.fcsh.unl.pt/
  • 24

    histria oficial portuguesa as crnicas e aos mistrios da igreja e da f, entre os quais

    figuram O Boosco deleitoso, O Orto do Esposo, A corte Imperial e o Virgeu da Consolaon.

    Apresentamos, a seguir, os dados do material que foi consultado na ntegra para

    efetuarmos o levantamento total do nmero de ocorrncias do item analisado.

    DOCUMENTOS DO SCULO XIII/XIV

    Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacense (Morte de S. Jeronimo)

    FONTE DIGITAL: CIPM (Corpus Informatizado do Portugus Medieval).

    Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacense (Vida de Tarsis)

    FONTE DIGITAL: CIPM (Corpus Informatizado do Portugus Medieval).

    Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacense (Vida de Eufrosina)

    FONTE DIGITAL: CIPM (Corpus Informatizado do Portugus Medieval).

    Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacense (Vida de Santa Pelgia)

    FONTE DIGITAL: CIPM (Corpus Informatizado do Portugus Medieval).

    Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacense (Vida de Santa Maria Egipciaca)

    FONTE DIGITAL: CIPM (Corpus Informatizado do Portugus Medieval).

    Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacense (Viso de Tndalo)

    FONTE DIGITAL: CIPM (Corpus Informatizado do Portugus Medieval).

    DOCUMENTOS DOS SCULOS XIV ~ XV

    Virgeu de Consolaon

    FONTE IMPRESSA: Virgeu de Consolaon. Edio crtica de um texto arcaico indito por

    Albino de Bem Veiga. Porto Alegre: Livraria do Globo S. A. 1958.

    Orto do Esposo

    FONTE DIGITAL: CIPM (Corpus Informatizado do Portugus Medieval).

  • 25

    FONTE IMPRESSA: Orto do Esposo. Texto indito do fim do sculo XIV ou como do

    XV. Edio crtica com introduo, anotaes e glossrio por MALER, B. Rio de Janeiro:

    Instituto Nacional do Livro, 1956.

    DOCUMENTO DO SCULO XV

    Leal Conselheiro:

    FONTE DIGITAL: CIPM (Corpus Informatizado do Portugus Medieval).

    FONTE IMPRESSA DUARTE, D. Leal Conselheiro. Edio crtica, introduo e notas de

    LOPES e CASTRO, M. H. Prefcio de BOTELHO, A. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da

    Moeda, 1998. (Coleo Pensamento Portugus)

    SCULO XIII/XIV: Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacense

    Segundo Massaud Moiss (1978), o termo hagiografia vem do grego hagiografia e

    significa escritos relativos aos santos; sinnimo de hagiologiae serve para designar os

    textos que relatam a vida dos santos - foi utilizada desde a Idade Mdia nos pases catlicos

    ou que receberam influncia da Igreja at o sculo XVIII.

    A literatura hagiogrfica crist teve incio ainda na Igreja Primitiva quando, a partir de

    documentos oficiais romanos ou do relato de testemunhas oculares, eram registrados os

    suplcios dos mrtires. A hagiografia, porm, desenvolveu-se e consolidou-se somente a partir

    da Idade Mdia, com a expanso do cristianismo e com a difuso do culto aos santos. Durante

    a Idade Mdia, foram produzidas muitas obras desse gnero, as quais possuam carter

    privado e foram redigidas, principalmente, pelos eclesisticos.

    Em um primeiro momento, foi utilizada a lngua latina, j que era a lngua dos cultos e

    da igreja e o seu pblico era formado prioritariamente por clrigos regulares e seculares. A

    partir dos sculos XI, XII e XIII, devido a transformaes que ocorreram na Europa ocidental,

    as hagiografias foram sendo escritas, ou traduzidas, nas diversas lnguas vernculas, passando

    a atingir, assim, um pblico maior.

    Verifica-se, dessa forma, que esses textos eram importantes meios para a propagao

    de concepes teolgicas, modelos de comportamento, padres morais e valores. Quanto

    forma, organizao ou processo de construo, as hagiografias medievais no apresentam

    unidade. No s privilegiam aspectos diferenciados da vida dos santos, enfatizando a morte, a

  • 26

    vida, ou os milagres, mas tambm sofrem adaptaes em funo de novos critrios estticos e

    diferentes necessidades literrias. Cabe apontar que muitas obras foram reescritas e adaptadas,

    outras foram compiladas ou traduzidas.

    Pode-se dizer que os traos comuns dos textos hagiogrficos so: as aes realizadas

    em vida pelo santo e que retratam o seu desejo pela santidade, a morte vista como processo de

    aperfeioamento e, por fim, os milagres ps-morte, como indcio de xito e a comprovao da

    santidade almejada pelo santo.

    relevante ressaltar que, para compreendermos e analisarmos uma hagiografia

    medieval, necessrio que nos coloquemos no momento em que o texto era lido, narrado por

    um indivduo e, ao mesmo tempo, ouvido por um ou mais indivduos e registrado na

    memria.

    As seis Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacense estudadas datam do sculo

    XIII/XIV, isto , final do sculo XIII e incio do sculo XIV: vida de Tarsis, vida de Santa

    Pelgia, morte de S. Jeronimo, viso de Tundalo, vida de Eufrosina, vida de Santa Maria

    Egipcaca.

    Sculo XIV ~ XV: Virgeu de Consolaon e Orto do Esposo

    O Virgeu de Consolaon, livro sobre os pecados e as virtudes, tem como argumento

    moralizante o conhecimento sobre os males dos vcios e os proveitos de uma vida virtuosa.

    A obra se divide em cinco partes, distribudas em 78 captulos. As duas primeiras

    comentam sobre os pecados e os vcios. Mais especificamente, na primeira parte, o autor trata

    dos sete pecados capitais, ou seja, da soberba, da inveja, da ira, da preguia, da avareza, da

    gula e da luxria e, na segunda, dos demais pecados que surgem dos pecados capitais, como a

    arrogncia e a hipocrisia, entre outros. As outras trs partes comentam sobre as virtudes: f,

    sabedoria, justia, caridade, temperana etc.

    Com a leitura dessa obra, o leitor conheceria os males, os vcios e as virtudes da vida, e,

    consequentemente, o caminho para a salvao.

    O Orto do Esposo uma obra literria de carter religioso, escrita nos finais do sculo

    XIV ou incio do sculo XV, por um annimo monge portugus. Trata-se de uma importante

    fonte para a compreenso da espiritualidade e do pensamento no Portugal da Idade Mdia.

    uma alegoria originria do Cntico dos Cnticos, de onde provm duas metforas: a de que

    Jesus o esposo de todo cristo e a de que o Paraso das Almas um horto onde as virtudes

    so cultivadas.

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Portugalhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Idade_M%C3%A9dia
  • 27

    O livro defende, do ponto de vista filosfico e espiritual, a renncia aos bens terrenos

    e aos prazeres mundanos, ligados fortuna, com a consequente exaltao contemplao e

    busca pessoal da salvao e da verdade eterna.

    Divide-se em quatro partes: a primeira retrata o poder e a beleza do nome de Jesus

    Cristo, as duas seguintes dizem respeito s Santas Escrituras e a quarta trata da vaidade

    humana. O autor utiliza narrativas exemplares a fim de reforar e tornar mais convincente os

    preceitos cristos que pretende expor.

    SCULO XV: Leal Conselheiro

    O Leal Conselheiro foi escrito por Dom Duarte, provavelmente entre os anos de 1428

    e 1435. Nesse perodo, Portugal iniciava sua expanso martima, e com isso, segundo o

    prprio autor, o livro um verdadeiro "ABC da lealdade", que deveria ser como um manual

    prtico de orientao tica para a monarquia e os demais membros da nobreza. Versava sobre

    temas to diversos como a vida matrimonial e familiar, os pecados, os vcios e como

    aprimorar os sentimentos e as virtudes.

    O ncleo central da obra a lealdade. Inicialmente, entende-se que D. Duarte se

    afirma como um conselheiro que tem na lealdade uma de suas qualidades, da sua obra se

    chamar leal conselheiro. Assim, a lealdade do conselheiro o contedo da obra. Uma

    leitura mais atenta nos permite entender que a metfora , na verdade, um tratado sobre a

    lealdade, atributo principal de um conselheiro.

    A obra apresenta 103 captulos, estruturalmente, com uma srie de reflexes sobre

    ndole moral e tica realizadas pelo rei em vrias ocasies e sobre vrios assuntos, incluindo

    cartas e "conselhos" escritos e dirigidos a membros de sua famlia. Embora apontada como

    uma obra que no apresente uma estrutura rgida, pela falta relativa de unidade de estrutura,

    que acaba por afast-la dos tratados morais tradicionais, ela se destaca pela linguagem

    simples e coloquial, pelo tom intimista e pelo carter profundo dos pensamentos de D. Duarte.

    2.2 Metodologia

    O primeiro critrio de anlise deste trabalho foi a frequncia nos moldes de Bybee et

    al. (1994), Heine et al. (1991) e Bybee (2003). De acordo com esses autores, nos estudos

    lingusticos h dois mtodos relevantes para apurar a frequncia: frequncia token ou textual,

    que diz respeito frequncia de ocorrncia de um item/construo, independentemente da

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Fortuna_(mitologia)
  • 28

    funo; e a frequncia type, que se refere frequncia com que um padro particular ocorre,

    podendo ser avaliada por meio da considerao das diferentes funes assumidas pelo item ou

    construo.

    Segundo os autores, quando h o aumento da frequncia token, tem-se o indcio de que

    o item um forte candidato a sofrer gramaticalizao; quando h o aumento da frequncia

    type, consequncia do primeiro, h indcio da expanso dos contextos em que o item

    apropriado. Conforme Bybee e Hopper (2001), o aumento de frequncia implica os seguintes

    processos:

    (i) enfraquecimento semntico por habituao;

    (ii) reduo fonolgica e fuso de construes gramaticais;

    (iii) condicionamento da autonomia da construo;

    (iv) perda da transparncia semntica;

    (v) preservao de caractersticas morfossintticas mais antigas.

    Bybee, em sua teoria, estabelece a distino entre type frequency e token frequency. A

    primeira (type frequency) a frequncia de um determinado padro na lngua, por exemplo: o

    plural em -s, um padro bastante frequente na lngua portuguesa (livros, meninas, povos), ao

    passo que o plural em -es um pouco menos frequente (mulheres, cartazes, rapazes).

    O segundo tipo de frequncia (token frequency) a frequncia de um item especfico

    na fala de um determinado indivduo: por exemplo, pessoas que tm o hbito de usar a palavra

    coisa com significados amplos; assim, na fala dessas pessoas especficas, essa palavra teria

    alta frequncia de ocorrncia.

    Pode-se dizer que as palavras de alta frequncia no so as mais produtivas pelo fato

    de serem mais autnomas, menos analisadas e por participarem menos de esquemas. Por outro

    lado, as palavras pouco frequentes precisam ser ligadas a um paradigma, o que enriquece as

    redes de palavras e gera maior produtividade. Desse modo, um item frequente no contribui

    para a produtividade da classe da qual faz parte e, por isso, no a frequncia de ocorrncia

    que gera produtividade, mas sim a frequncia de tipo.

    A autora prope um modelo de lxico mental no qual as palavras esto organizadas de

    maneira ordenada e agrupadas conforme a identidade ou a similaridade fonolgica ou

    semntica. Essas palavras formam esquemas de interconexes a partir de traos

  • 29

    compartilhados. Um item ser mais ou menos prototpico dentro do esquema de acordo com

    sua frequncia de ocorrncia. Dessa forma, se as propriedades do esquema forem muito

    especficas, ele se aplicar a uma quantidade menor de itens e, em consequncia disso, ser

    menos produtivo; por outro lado, se o esquema for bastante aberto, poder abranger mais

    itens, tornando-se cada vez mais produtivo. Levando-se em considerao a fora do esquema,

    quanto maior a frequncia de determinado padro, maiores as chances de ele se aplicar a

    novos itens.

    O que a autora prope uma concepo de lxico baseada no uso da lngua, pois

    somente por meio dos usos concretos dela que alguns conceitos, como frequncia e

    produtividade, podem ser realmente analisados.

    De acordo com Gonalves (2004, p.2),

    uma propriedade muito notada de construes gramaticalizadas o

    seu aumento em frequncia type. Como consequncia, a frequncia

    token tambm cresce. To importante quanto o crescimento em frequncia type, a alta freqncia token das formas, uma das causas

    de mudanas na sua forma e de diversidade de suas funes.

    Com a finalidade de explicitar o papel da frequncia na gramaticalizao do item

    porm, consideramos suas frequncias de uso, ao longo nos sculos XIII, XIV e XV, tambm

    como um dos parmetros responsveis pelo reconhecimento de construes com significados

    cada vez mais assentados nas atitudes subjetivas do falante.

    O segundo critrio de anlise foi a aplicao dos cinco princpios de Hopper:

    estratificao, divergncia, especializao, persistncia e descategorizao, j apresentados

    no item 1.3, para verificar a fase de GR atingida pelo item no no perodo analisado.

    Hopper (1991) afirma que a gramtica de uma lngua nunca estvel e que todas as

    partes da gramtica esto continuamente sofrendo transformaes, razo pela qual novas

    funes para formas j existentes na lngua esto emergindo.

    Para o linguista, o importante no saber o que faz parte da gramtica da lngua, mas

    sim o processo pelo qual as formas atingem a gramtica, ou a gramaticalizao. Dada essa

    noo de gramtica emergente, o autor afirma que possvel reconhecer quando uma forma

    est mais ou menos gramaticalizada e, para isso, lana mo de alguns critrios que permitem

  • 30

    identificar os primeiros estgios de GR e, por consequncia, a emergncia de novas formas e

    construes gramaticais. Da a escolha desse critrio como um dos parmetros de anlise do

    presente trabalho.

    Fez-se necessria tambm a verificao da coocorrncia do item porm com as

    locues como quer que, ainda que, posto que, de valor concessivo, com o conectivo porque,

    de valor causal, alm da sua ocorrncia com elementos de negao, ou seja, a ocorrncia do

    item em frases negativas, questes apontadas como possveis causas da gramaticalizao do

    item com valor semntico adversativo.

    Dessa forma, os resultados que apresentamos evidenciam a forte correlao entre a

    mudana de estatuto gramatical do item em anlise e suas alteraes morfolgicas e

    semnticas referentes expresso de adversidade.

  • CAPTULO 3. ANLISE

    3.1 Anlise sincrnica: token e type

    A fim de verificar o percurso de mudana semntica do item porm, analisamos, em

    textos dos sculos XIII, XIV e XV, j citados na seo 3.1, as ocorrncias do item com o

    intuito de verificar as etapas dessa mudana no perodo especificado. Ressaltamos que no

    consideramos os sculos posteriores ao XV porque, a gramaticalizao do item j se

    encontrava a ratificada, o que no exclui a possibilidade de que esse elemento ainda

    apresentasse, nesse perodo, valores mais prximos do seu significado fonte.

    Primeiramente, apresentamos ocorrncias por sculo e por tipo, seguidos de suas

    anlises. Em seguida, apresentamos um quadro geral dos dados obtidos.

    Para o levantamento das ocorrncias de porem (e suas variantes grficas2 poren, por

    en, por em, porende), nas obras analisadas, apontamos, para cada sincronia, as frequncias

    token e type. Na frequncia token, verificamos o nmero de vezes que o item apareceu no

    texto e, na frequncia type, observamos o valor semntico-textual e o funcionamento

    gramatical do item.

    3.2 Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacense

    Nos textos dos sculos XIII~XIV, o item se apresenta apenas com valor explicativo

    (por isso, por esse motivo, por essa razo), mas sua funo se divide em advrbio

    juntivo e conjuno coordenativa.

    Como advrbio juntivo, porem est precedido pela conjuno aditiva e na

    coordenao de oraes. Nesse caso, ele caracterizado como advrbio juntivo pelo fato de

    estabelecer relao frica e pela possibilidade de estabelecer relaes de sentido.

    Como a obra analisada de curta extenso, apresentando apenas 10 ocorrncias,

    optamos pela enumerao de todas elas. Os fragmentos de (01) a (09) exemplificam o item

    como advrbio juntivo:

    2 Consideramos como variantes grficas as demais formas de porem que apareceram nos textos

    analisados, a saber: poren, por em, porende, por ende, ende, por.

  • 32

    1. ...o partimento da alma e do corpo non he morte mas he pasar da morte aa vida. E porende

    os que dignamente te receben quando aquy morrem contigo comecam de viver.

    [...pois a partida da alma e do corpo no morte, mas passar da morte para a vida. E por

    isso os que dignamente te recebem quanto aqui morrem contigo comeam a viver.]

    2. ...e non ha hy cousa que possa contradizer aa tua vontade e en ty e de ti e por ty som todalas

    cousas feytas e sem ty non ha hy nenha cousa. E porende tu minha alma fiel alegra-te e nom

    tardes...

    [...e a no h coisa que possa contradize a tua vontade e em ti e de ti e por ti so todas as

    coisas feitas e sem ti a no h coisa alguma. E por isso tu, minha alma fiel, alegra-te e no

    tardes...]

    3. Muytas e grandes graas devemos dar ao Senhor, que nom quer a morte dos pecadores mas

    quer e cobiia que sse convertan e faam penitenia. E por ende ouvide hu millagre que foy

    fecto em nossos dias.

    [Muitas e grandes graas devemos ao Senhor, que no quer a morte dos pecados, mas quer e

    cobia que se convertam e faam penitncia. E por isso oua um milagre que ocorreu em

    nossos dias.]

    4. E porem Senhor nom ey, nen he a myn esperana em meus fectos e obras, mais a minha

    alma e a minha esperana, ssoo esta he, e porende na tua muito e mui grande misericordia e

    piedade...

    [E por isso, Senhor, no tenho, nem a mim esperana em meus feitos e obras, mas a minha

    alma e a minha esperana, sob esta , e por isso na tua e grande misericrdia e piedade...]

    5. ...sen ty non pode nenhuun viver han hora, tu soo ds vida a todalas cousas. E porende oo

    meu senhor e meu coracom ja falece a mynha carne...

    [...sem ti ningum pode viver uma hora, tu s ds vida a todas as coisas. E por isso, meu

    Senhor e meu corao, j falece a minha carne...]

    6. E o bispo sancto Nono a este scripto respondeo asy: - Qual quer que tu es e quem es ao

    Senhor Deos claro, certo e manifesto he. E por em te rogo...

    [E o santo bispo Nono respondeu assim ao que estava escrito: - Quem quer que tu sejas e

    quem s ao Senhor Deus claro, certo e manifesto . E por isso te rogo...]

  • 33

    7. Rrogo-te que ajas b galardom de Deos e folganca com os santos, que nom tardes nen

    negues saude aa minha alma, nem per ventuyra en este spao ho enmiigo cruel me revolva e

    faa husar de meos maaos feitos que ante husava. E porem te demando e rogo que oje en este

    dia...

    [Rogo-te que tenhas boa recompensa e alegria de Deus com os santos, que no tarde nem

    negues sade minha alma, e nem que por ventura o cruel inimigo me revolte e me faa usar

    de meus maus feitos que antes usava. E por isso peo e rogo que hoje, neste dia...]

    8. ...e ella o que prometeo aos homens conprio e fez de toda voontade con gram plazer e

    alegria. E porem Senhor nom ey...

    [...e ela cumpriu o que prometeu aos homens e fez toda a vontade com grande prazer e

    alegria. E por isso, Senhor, no tenho...]

    9. Oo quanto he muy avondante a ta grande largueza ca noon despreas a nenhuun se

    primeyramente non desprear de viir a ty. E poren se he alguun pequeno seguramente venha

    a ty e se receber o teu corpo seera feito grande.

    [, quo abundante tua grandeza, porque no desprezas ningum que vem antes a ti. E por

    isso, seguramente, se algum pequeno e vem a ti e se receber o teu corpo ser feito grande.]

    Como conjuno coordenativa, o item ocupa posio fixa no incio da clusula, aps

    uma pausa, e estabelece relao de sentido com a clusula anterior. Ou seja, ele tem como

    funo articular unidades autnomas do ponto de vista gramatical, ocupando posio inicial e

    fazendo referncia ao contedo que o precede. H, nesse sentido, uma ponderao em relao

    ao contedo precedente e, em seguida, a introduo de uma explicao/concluso (10):

    10. Estas som as riquezas per as quaes me o diaboo por os meos pecados e maldades tragia

    emganada, por em as dou e cometo aa tua santidade e arbitrio.

    [Estas so as riquezas pelas quais o diabo me trazia enganada pelos meus pecados e

    maldades, por isso as dou e coloco sua santidade e escolha.]

  • 34

    Nessa sincronia, no houve registro de ocorrncias do item com outro valor

    semntico-textual, nem de ocorrncias com outra funo que no a de advrbio juntivo ou a

    de conjuno coordenativa. A construo mais frequente foi a de advrbio juntivo com o

    coordenador e, e, em todos os casos, porem apresentou valor explicativo, sentido que

    provm do timo latino. Ainda no h registro desse item como conjuno coordenativa em

    diferentes posies no interior da clusula.

    Quadro. 1: Ocorrncias de poren nas Vidas de Santos de um Manuscrito Alcobacence

    (sculos XIII~XIV)

    Frequncia token Frequncia type

    10 (100%) 03

    Valor Funo Totais

    Explicativo Advrbio juntivo 9 (90%)

    Explicativo Conjuno coordenativa 1 (10%)

    3.3 Virgeu de Consolaon

    Neste texto, que se situa entre os sculos XIV e XV, ainda so frequentes as

    construes do item (e de suas variantes grficas) em funo de advrbio juntivo, precedido

    pela conjuno aditiva e na coordenao de oraes (com ou sem pausa). Ele continua a

    estabelecer relao frica com o contedo precedente (exemplos de (11) a (15)):

    11. Diz san Gregrio: Os que fazen o que non sabem non peccan pelo non saber, mais por

    soberva e porende son cegos que non saben o que fazen.

    [Diz So Gregrio: Os que fazem o que no sabem no