celio bermann - o projeto da usina hidrelétrica de belo monte a autocracia energética como...

Upload: luiz-adriano-moretti

Post on 01-Mar-2018

219 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/26/2019 Celio Bermann - O Projeto Da Usina Hidreltrica de Belo Monte a Autocracia Energtica Como Paradigma NOVOS

    1/20

    Resumo

    Apesar do esforo intelectual de vrioscientistas que condenaram a megaobrada Hidreltrica de Belo Monte, e domovimento social de resistncia ao projeto,

    que reuniu as populaes atingidas peloempreendimento (povos indgenas er ibe i r inhos) , com apoio nac iona le internacional, o governo brasileirodeu incio s obras de sua construo.Este artigo contextualiza o projeto deBelo Monte como um paradigma para oprocesso de expanso da hidreletricidadena regio amaznica, refutando as

    premissas econmicas utilizadas parajustific-lo, analisando de forma crticaseus fundamentos tcnicos e apontandoas consequncias socioambientais para aspopulaes tradicionais da regio.

    Abstract

    Despite the intellectual effort of severalscientists who have condemned the BeloMonte hydroelectric dam, and the socialmovement of resistance to the project, which

    brought together the populations affectedby the project (indigenous peoples andpeasant communities), with internationaland national support, the BrazilianGovernment started its construction. Thisarticle contextualize the Belo Monte projectas a paradigm for the expansion processof hydroelectricity in the Amazon region,refuting the economic assumptions used

    to justify it, analyzing critically its technicalfoundations and pointing out the socialand environmental consequences for thetraditional populations of the region.

    Novos Cadernos NAEA

    v. 15, n. 1, p. 5-23, jun. 2012, ISSN 1516-6481

    O projeto da Usina Hidreltrica Belo Monte: a autocraciaenergtica como paradigma

    The Belo Monte hydropower plant project: the energy autocracy asa paradigmClio Bermann - Doutor em Engenharia Mecnica pela Unicamp (1991); professor associado doInstituto de Eletrotcnica da USP. E-mail: [email protected].

    Keywords

    Hydropower. Amazon. Energy policy. Energyand environment. Energy and society.

    Palavra-chave

    Hidreletricidade. Amaznia. Poltica energtica.Energia e meio Ambiente. Energia e sociedade.

  • 7/26/2019 Celio Bermann - O Projeto Da Usina Hidreltrica de Belo Monte a Autocracia Energtica Como Paradigma NOVOS

    2/20

    Clio Bermann

    6

    INTRODUO

    O Brasil possui 26 usinas hidreltricas planejadas e em construo na

    Amaznia nos prximos dez anos. No Peru, seis usinas hidreltricas so previstasna regio para iniciar a gerao em 2015, a partir de um acordo energtico Peru-Brasil. J a Bolvia possui duas usinas hidreltricas planejadas na bacia do rioMadeira. No Equador, esto previstas duas usinas hidreltricas na encosta orientalda Cordilheira dos Andes, na regio amaznica. Outras tantas esto planejadas naColmbia, na Venezuela, no Suriname e nas Guaianas.

    Todas essas obras tm pontos em comum: so propostas sob o estigmada segurana energtica em cada um dos pases envolvidos nesses projetos. E

    todos os projetos so apresentados com a participao direta ou indireta comempresas e bancos brasileiros.

    Nos anos recentes, esta dimenso tem sido apresentada como projetos deintegrao energtica elaborados dentro da Iniciativa para a Integrao da InfraestruturaRegional Sul-Americana (IIRSA).1

    A presente reflexo apresenta uma contextualizao da emergncia deaproveitamentos hidreltricos na bacia amaznica, a partir da perspectiva de

    uma diviso internacional da explorao dos recursos naturais. O planejamentoe construo de projetos de hidreltricos na regio amaznica deixaram de serapenas uma questo nacional e vm adquirindo um carter regional.

    Foi no perodo do ps-Segunda Guerra Mundial que ficou definido o papelque os pases do Terceiro Mundo teriam no cenrio econmico internacional.Organismos financeiros internacionais como o Banco Mundial e o FundoMonetrio Internacional foram criados para fomentar um novo padro deacumulao do capitalismo em escala mundial, baseado em investimentos em

    projetos de infraestrutura nestes pases, permitindo assim a expanso da produoindustrial. No continente latino-americano, este processo ficou conhecido comode substituio de importaes e foi saudado como um indicador de progressoe desenvolvimento econmico. Os governos de cada pas foram identificadoscomo agentes deste processo, e passaram a receber recursos do capital financeirointernacional, avalizados pelos organismos multilaterais. A partir dos anos 50 dosculo passado, vrios pases do continente passaram a receber investimentos para

    consolidar esse processo.

    1 Ver, a respeito do IIRSA, a anlise crtica elaborada por Elisangela Soldatelli Paim: IIRSA- esta a integrao que ns queremos?. NAT-Ncleo Amigos da Terra/Brasil, dezembrode 2003. Disponvel em:http://www.natbrasil.org.br/Docs/instituicoes_financeiras/iirsa%202003.pdf

  • 7/26/2019 Celio Bermann - O Projeto Da Usina Hidreltrica de Belo Monte a Autocracia Energtica Como Paradigma NOVOS

    3/20

    7

    O projeto da Usina Hidreltrica Belo Monte: a autocracia energtica como paradigma

    Por sua vez, no territrio amaznico se intensificou o processo deapropriao dos recursos naturais bens minerais para exportao. Minrioscomo a bauxita foram identificados no Brasil, no Suriname e na Venezuela;ferro no Brasil e na Venezuela; mangans, nquel e silcio no Brasil; cobre, zinco,tungstnio e molibdnio no Peru; gipsita na Colmbia. Alm, claro, dos metaispreciosos como ouro no Peru, Colmbia, Suriname, Guiana, Venezuela e Brasil;e prata no Peru.

    E a bacia hidrogrfica amaznica passou a ser identificada nica eexclusivamente pelo seu potencial hidreltrico. Estavam dadas as pr-condies paraa apropriao dos recursos naturais na Amaznia: por um lado, a disponibilidade

    de minrios, e, por outro, os recursos hdricos monopolizados para a produode energia eltrica.

    Dessa forma, a regio se insere no sistema capitalista de produoglobalizado como fornecedora de bens primrios de origem mineral (notadamenteminrio de ferro, bauxita, mangans, zinco, cobre e chumbo), exportados na formabruta ou transformados em metais primrios (lingotes de alumnio, ligas de ferro eao), produtos de alto contedo energtico, baixo valor agregado e degradadoresdo meio ambiente.

    Dizer que o continente latino-americano vive nos dias atuais a plenitudeda democracia, um grande erro. Este artigo indica os limites polticos de umdebate desejado, mas inexistente, dos projetos e do processo de tomada de decisocom respeito s megaobras na regio amaznica, a partir do exemplo da usinahidreltrica de Belo Monte, projetada no rio Xingu, no estado do Par.

    A usina de Belo Monte o paradigma para o processo de expanso dafronteira hidreltrica na bacia amaznica. Um paradigma marcado pela negao

    da democracia e pela desconsiderao s populaes tradicionais da regio.

    1 AS USINAS HIDRELTRICAS NA AMAZNIA BRASILEIRAE O PROJETO BELO MONTE

    Maior obra do Programa de Acelerao do Crescimento (PAC), aimplantao da UHE Belo Monte vem sendo objeto de polmica h mais de 25anos, a partir dos Estudos de Inventrio hidroeltrico do rio Xingu, elaborado

    a partir de 1975, pela empresa de consultoria CNEC (pertencente ao grupo daconstrutora Camargo Correa) e apresentado pela empresa Eletronorte em 1980. importante lembrar que em fevereiro de 1989, por ocasio do 1 Encontro

    dos Indgenas do Xingu, em Altamira (Par), o projeto foi rejeitado por um amplomovimento social que reuniu os povos indgenas da bacia do rio Xingu, ativistas

  • 7/26/2019 Celio Bermann - O Projeto Da Usina Hidreltrica de Belo Monte a Autocracia Energtica Como Paradigma NOVOS

    4/20

    Clio Bermann

    8

    ambientais, polticos da oposio ao governo brasileiro e figuras de visibilidadeinternacional, como o cantor ingls Sting. O governo abandonou o projeto que,entretanto, foi retomado em julho de 2005, com algumas modificaes em relao sua concepo original.

    Com a retomada do projeto Belo Monte, no debate est em jogo a orientaoda poltica energtica do pas, bem como o futuro da ocupao amaznica.

    Os rios amaznicos (Madeira, Tocantins, Araguaia, Xingu e Tapajs)respondem por cerca de 63% do assim chamado potencial hidreltrico noaproveitado no Brasil, ou quase dois teros desse total, estimado em 243.362 MW(SIPOT/ELB, 2010).

    O Plano Decenal de Energia 2011-2020 (MME/EPE, 2011) indica ainteno do governo brasileiro de construo de 12 usinas, resultando numapotncia de 22.287 MW, que representa 65% do total que o governo pretendeinstalar no pas at 2016 (34.268 MW). Alm destas, outras 10 usinas com umapotncia total de 15.506 MW esto planejadas e o governo deseja viabilizar aslicenas para sua construo at 2020. Por sua vez, o Plano Nacional de Energia2030 (MME/EPE, 2007) indica um total de 14.000 MW na bacia amaznica,com a pretenso de serem instalados at 2015, e mais 43.700 MW at o ano 2030,

    quando o governo pretende atingir um total 156.300 MW de energia hidreltricainstalada, dobrando a capacidade atual de energia hidreltrica no Brasil (78.200MW, em dezembro de 2011).

    Verifica-se que efetivamente o territrio amaznico que vai sofrer a pressodo capital internacional para transformar seus rios em jazidas de megawatts.

    Neste contexto, a usina de Belo Monte est projetada para ser construda norio Xingu, a 40 km rio abaixo, aps a cidade de Altamira, com canais estendendo-

    se por mais 10 km, na localidade designada como stio Pimentel, no sudoestedo estado do Par, a 1.000 km da capital Belm. A potncia instalada prevista de 11.233 MW, tendo sido estimada, operacionalmente, a mdia assegurada deapenas 39%, correspondente a 4.428 MW mdios2. O lago da usina abranger uma

    2 Valor encontrado no LinkedInda empresa Norte Energia, consrcio construtor da UHE BeloMonte. (Disponvel em: http://www.linkedin.com/company/norte-energia-s.a.). Oficialmente,a empresa indica o valor de 4.571 MW de garantia fsica, conforme os dados elaborados pelaEmpresa de Pesquisa Energtica-EPE, que foram utilizados por ocasio da licitao da obra.A este respeito, existe uma controvrsia sobre o modelo utilizado para o clculo. Enquanto oGoverno utilizou o modelo MSUI (Modelo de Simulao de Centrais Isoladas), considerandoa interconexo da usina ao Sistema Interligado Nacional, um grupo de pesquisadores daUNICAMP, coordenado pelo Prof. Secundino Soares Filho, com a participao de MarceloAugusto Cicogna, utilizou o modelo Hydro Sim LP para chegar ao clculo de 1.172 MW deenergia firme, considerando a usina isolada e no interconectada ao sistema nacional. Estadiferena pode ser explicada por tratar-se de um clculo que se baseia nos valores das vazesmdias naturais mnimas verificadas no ms de outubro, em todos os anos a partir de 1931.

  • 7/26/2019 Celio Bermann - O Projeto Da Usina Hidreltrica de Belo Monte a Autocracia Energtica Como Paradigma NOVOS

    5/20

    9

    O projeto da Usina Hidreltrica Belo Monte: a autocracia energtica como paradigma

    rea de 668 km (conforme o edital de licitao), embora o EIA/Rima indicasse516 km. A Figura 1 indica a localizao da megaobra de Belo Monte:

    Figura 1. Localizao do projeto da Usina Hidreltrica de Belo Monte.

    Fonte: http://www.socioambiental.org/esp/bm/hist.asp

    O projeto prev a construo de cinco barragens, dois vertedouros e 30diques de conteno de comprimento variando de 40 a 1.940 m de extenso ealtura variando de 4 a 59 m. Est prevista a construo de 52 quilmetros de canais,com largura variando entre 160 e 400 m. Seriam realizadas escavaes comunsda ordem de 150,7 milhes de m3e 50 milhes de m3de rochas, superiores

    escavao realizada para construo do Canal do Panam, com a utilizao aindade 4,2 milhes de m3de concreto. O projeto inclui o desvio da maior parte dofluxo de gua do rio Xingu, em um trecho de aproximadamente cem quilmetros,conhecido como Volta Grande do Xingu, para um trecho que atualmente ocupado por florestas e assentamentos de pequenos agricultores, entrecortadospor diversos travesses da rodovia Transamaznica, por meio da construo dedois canais de derivao ao norte da Terra Indgena Juruna do Paquiamba, projeto

    posteriormente revisado para a construo de um nico canal de derivao, a ttulode otimizao do projeto (ENGEVIX, 2010). A Figura 2 mostra esta ltimamodificao, com um nico canal de derivao.

  • 7/26/2019 Celio Bermann - O Projeto Da Usina Hidreltrica de Belo Monte a Autocracia Energtica Como Paradigma NOVOS

    6/20

    Clio Bermann

    10

    Figura 2. Projeto Bsico de Engenharia.

    Fonte: Engevix, 2010.

    O artifcio utilizado na concepo do projeto de Belo Monte, ao reduzira rea de inundao inicialmente prevista do reservatrio, dos 1.200 km2para516 km, foi o de no inundar as duas reas indgenas localizadas na regio: aTerra Indgena Juruna do Paquiamba e a Terra Indgena Arara da Volta Grande.

    Ao no inundar diretamente os territrios indgenas, o projeto se adequa

    concepo dos projetos hidreltricos em voga, de desconsiderar as consequnciassociais e ambientais das populaes no inundadas ou afogadas pela formaodos reservatrios.

    Este artifcio permitiu que o projeto no se sujeitasse ao disposto nospragrafos 3 e 5 do Artigo 231 da Constituio Federal, que impede a remoodas populaes indgenas sem consulta prvia e exiginmdo a aprovao peloCongresso Nacional.

    Comofi

    cou evidenciado por Antonio Carlos Magalhes (2009), antroplogoe indigenista do Instituto Humanitas, que:

    [...] a regio da Volta Grande considerada pelo empreendedor como reaDiretamente Afetada (ADA). No entanto, os povos indgenas Juruna doPaquiamba, Arara da Volta Grande e as famlias indgenas Xipaya, Kuruaya,

    Juruna, Arara, Kayap etc., como tambm a populao ribeirinha em geral, que

  • 7/26/2019 Celio Bermann - O Projeto Da Usina Hidreltrica de Belo Monte a Autocracia Energtica Como Paradigma NOVOS

    7/20

    11

    O projeto da Usina Hidreltrica Belo Monte: a autocracia energtica como paradigma

    habita em localidades diversas (Garimpo do Galo, Ilha da Fazenda, Ressaca etc.),no so consideradas como diretamente afetadas, mas apenas localizadas na reade Influncia Direta. (MAGALHES, A.C. UHE Belo Monte - Anlise do Estudo

    de Impacto Ambiental: Povos Indgenas, 2009).

    O fato que a regio da Volta Grande do Xingu sofrer uma severadiminuio dos nveis de gua no trecho seccionado do rio. A garantia de umavazo ecolgica de 700 m3/s uma fico e no permite populao (incluindo ascomunidades indgenas Paquiamba e Arara) que ficar na regio, gua suficientepara suas necessidades (transporte e alimentao base de pesca). possvelacreditar em uma fiscalizao independente da Agncia Nacional de guas (ANA),

    que monitore regularmente as vazes, de forma a impedir que no se turbine asguas necessrias para a gerao nas pocas de hidrologia reduzida?

    O resultado que as populaes indgenas e as populaes ribeirinhastradicionais foram deliberadamente colocadas margem do processo de discussoda obra. O processo de consulta nas audincias pblicas para o licenciamentoambiental da usina de Belo Monte foram obras de fico. Os indgenas sofreramtoda sorte de constrangimentos para participar dos debates, as comunidades noforam consultadas, e as crticas levantadas acabaram desconsideradas de forma

    sistemtica por um Painel de Especialistas constitudo por cientistas e professoresde importantes universidades brasileiras.

    Uma anlise independente sobre o Estudo e o Relatrio de ImpactoAmbiental de Belo Monte, elaborada por um grupo de 40 cientistas, reconhecidoem nvel nacional e internacional (MAGALHES; HERNANDEZ, 2009),demonstra que os impactos de Belo Monte so muito maiores do que aqueleslevantados pelo EIA e em muitos aspectos so irreversveis e no passveis de

    serem compensados pelos programas e medidas condicionantes propostas.Eis alguns dos problemas destacados pelo corpo cientfico independente: a)Subdimensionamento da populao atingida e rea afetada; b) Risco de proliferaode doenas endmicas; c) Ausncia de estudo sobre ndios isolados; d) Hidrogramaecolgico no baseado nas necessidades dos ecossistemas; e) Subdimensionamentodas emisses de metano; f) Ameaa de extino de espcies endmicas, no Trechode Vazo Reduzida; g) Ausncia de anlise de impacto de eclusas; h) Perdairreversvel de biodiversidade; i) Ausncia de anlise de impactos a jusante da usina;

    j) Anlise insuficiente sobre impacto da migrao sobre desmatamento e terrasindgenas; k) Ausncia de anlise sobre impactos associados ao assoreamento noreservatrio principal.

    Apesar de todas as crticas levantadas de forma sistemtica pelos cientistasdo Painel Independente, estas no foram consideradas pelo governo, nem

  • 7/26/2019 Celio Bermann - O Projeto Da Usina Hidreltrica de Belo Monte a Autocracia Energtica Como Paradigma NOVOS

    8/20

    Clio Bermann

    12

    tampouco as questes levantadas por ocasio das audincias pblicas. O governobrasileiro se negou ao necessrio debate, mantendo sua deciso de prosseguircom o projeto.

    A licena ambiental prvia (LP) foi concedida pelo Instituto Brasileiro doMeio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis (IBAMA), em fevereiro de2010, o que permitiu a licitao para a construo da megaobra, que teve lugarem abril de 2010.

    importante assinalar que a realizao da licitao a partir da obteno daLP contraria o Art. 4 da Resoluo CONAMA 06, de 16 de setembro de 1987,que indica que:

    Na hiptese dos empreendimentos de aproveitamento hidroeltrico, respeitadasas peculiaridades de cada caso, a Licena Prvia (LP) dever ser requerida no inciodo estudo de viabilidade da Usina; a Licena de Instalao (LI) dever ser obtidaantes da realizao da Licitao para construo do empreendimento e a Licenade Operao (LO) dever ser obtida antes do fechamento da barragem.

    Ou seja, a obrigatoriedade da Licena Ambiental Prvia, saudada pelogoverno Lula, em 2004, como um avano para o encaminhamento dos projetosde usinas hidreltricas no pas, no segue a legislao ambiental, que, alis, vemsendo seguidamente desrespeitada em vrios outros aspectos.

    2 OS PROBLEMAS TCNICOS E ECONMICO-FINANCEIROSDO PROJETO DE BELO MONTE

    A usina de Belo Monte foi superdimensionada. A capacidade de11,2 mil MW s estar disponvel durante trs meses do ano. Nos meses desetembro e outubro, quando o rio Xingu fica naturalmente mais seco, a capacidade

    instalada aproveitvel da hidreltrica no ser maior do que 1.172 MW. Ou seja,90% da usina ficar parada.

    Esta esdrxula situao, sob o ponto de vista tcnico, foi determinada pelastentativas de reduzir as consequncias socioambientais da obra, com a operaoa fio dgua, isto , sem um grande reservatrio capaz de regularizar a vazo. Estefator de capacidade, de 39% ao longo do ano, muito baixo, em relao mdiadas hidreltricas brasileiras, de 55%. Pelo contrrio, ele condena o projeto porque

    a tarifa definida de forma fictcia no leilo, de R$ 78/MWh, no vai remunerar oinvestimento necessrio para a construo da usina.

    Por ocasio da licitao, o consrcio vencedor do leilo foi a Norte Energia(NESSA), formado pelas seguintes empresas: Chesf (49,98%), Queiroz Galvo(10,02%), Galvo Engenharia (3,75%), Mendes Jr. (3,75%), Serveng-Civilsan

  • 7/26/2019 Celio Bermann - O Projeto Da Usina Hidreltrica de Belo Monte a Autocracia Energtica Como Paradigma NOVOS

    9/20

    13

    O projeto da Usina Hidreltrica Belo Monte: a autocracia energtica como paradigma

    (3,75%), J. Malucelli (9,98%), Contem Const. (3,75%), Cetenco (5%) e Gaia

    Energia (10,02%).

    Posteriormente, em julho de 2010, o consrcio Norte Energia criou uma

    Sociedade de Propsito Especfico (SPE) para atender a atual legislao brasileira,

    que estabelece esta pr-condio para que a empresa receba a concesso para

    a construo e explorao e esteja habilitada para receber o financiamento do

    BNDES, em forma de Project Finance.

    A SPE criada foi formada por 18 empresas, com a seguinte participao

    acionria: as empresas pblicas Eletrobrs (15%); Chesf (15%) e Eletronorte

    (19,98%); o Fundo de Penso da Petrobrs-Petros (10%); o Fundo de Penso da

    Caixa Econmica Federal-Funcef (2,5%); os Fundos de Investimento Caixa FI

    Cevix (parceria da Funcef com a empresa de engenharia Engevix, com 5%); e

    a empresa Bolzano Participaes (formada pelo Fundo de Penso Previ-Banco

    do Brasil e a empresa Iberdrola, com 10%); alm da J. Malucelli Energia (0,25%)

    e das empresas autoprodutoras de energia Gaia (9%) e Sinobrs (1%); e com

    participaes menores das empresas de construo Queiroz Galvo, OAS,

    Contern, Cetenco. J. Malucelli, Mendes Jnior e Serveng.

    Mais recentemente, em abril de 2011, a participao da empresa Gaia (9%)

    foi adquirida pela empresa Vale e, em outubro de 2011, vrias empresas deixaram

    a SPE, que atualmente conta com a participao das empresas de energia Cemig

    e Light (9,77%) e a empresa Neoenergia, atravs da Belo Monte Participaes,

    com 10%.

    Todavia, este jogo de sucessivos rearranjos de capital, que parece ainda

    no se esgotar to cedo, teve uma manobra decisiva, em maio de 2011, com

    a contratao do consrcio construtor Belo Monte (CCBM), sob a liderana

    da empreiteira Andrade Gutierrez, com a participao de outras duas grandes

    empreiteiras Camargo Correa e Norberto Odebrecht, e outras oito empresas

    de construo, muitas delas participantes da SPE at aquele momento. Em agosto

    de 2011, o CCBM conseguiu fechar com a Norte Energia um contrato para a

    execuo de obras civis em um montante de R$ 13,8 bilhes.

    Esta manobra pode ser facilmente explicada. Este um valor que vai ser

    apropriado por este grupo de empresas em um curto espao de tempo, uma vezque o cronograma das obras civis do projeto no superior a cinco anos. Da se

    deduz que o objetivo da construo da Usina Hidreltrica de Belo Monte no se

    limita gerao de energia. Trata-se de compensar as empresas que, no por mera

  • 7/26/2019 Celio Bermann - O Projeto Da Usina Hidreltrica de Belo Monte a Autocracia Energtica Como Paradigma NOVOS

    10/20

    Clio Bermann

    14

    coincidncia, foram, junto com os bancos, os principais contribuintes para o fundode campanha da ento candidata Presidncia da Repblica, Dilma Rousseff.3

    Para compreender o jogo financeiro que envolve a construo destamegaobra, necessrio lembrar que o custo do projeto passou dos iniciaisR$ 4,5 bilhes em 2005, quando o projeto foi retomado pelo governo brasileiro,a R$ 19 bilhes, custo estabelecido por ocasio do leilo, e que recentemente foisubmetido a uma reviso levando em conta a inflao, medida pelo ndice Nacionalde Preos ao Consumidor Amplo (IPCA ndice oficial do governo federal paramedir a inflao), que definiu o montante total de R$ 28 bilhes, muito emboraas empresas envolvidas com as obras de construo e as empresas fabricantes de

    equipamentos (turbinas e geradores) estimem um custo mnimo de R$ 30 bilhes,podendo chegar a R$ 32 bilhes.

    O BNDES se disps a financiar 80% do custo. Para que o banco aprovasseinicialmente essa participao, foi necessrio que a Eletrobras garantisse a comprade 20% da energia a ser produzida (a parte definida para o assim chamadomercado livre, constitudo pelas grandes empresas consumidoras de energiaeltrica) a um preo de R$ 130/MWh, cerca de 70% superior tarifa definida noleilo. Ao mesmo tempo, o banco espera uma nova capitalizao do Tesouro para

    assegurar essa participao. Assiste-se a um exerccio de engenharia financeira paraviabilizar a obra, com toda sorte de renncia fiscal e isenes que traro aumentodesproporcional da dvida pblica.

    H que se acrescentar que em julho de 2010, pouco depois da contrataodo consrcio construtor Belo Monte (CCBM), foi feito um pr-contrato com asempresas multinacionais fabricantes de equipamentos Alstom, Andritz e VoithSiemens, e com a empresa argentina Impsa para o fornecimento de 14 grandes

    turbinas (611 MW cada uma) das 18 previstas no projeto, e de seis pequenasturbinas (39 MW cada uma). Com isso, vai se fechando o leque de empresasenvolvidas na construo da megaobra de Belo Monte, abrangendo tanto as obrascivis como a montagem eletromecnica.

    Por fim, importante assinalar que a usina de Belo Monte no vir sozinha.Para regularizar a vazo e tornar vivel sua operao, bem como assegurar o retorno

    3 Conforme J. R. Toledo, reprter do jornal O Estado de So Paulo, em artigo publicadoem 02/12/2010, nas eleies presidenciais de 2010, empreiteiras e empresas de construo

    doaram para a campanha da candidata Dilma Rousseff os seguintes valores: Camargo Correa(R$ 8 milhes); Andrade Gutierrez (R$ 5,1 milhes); OAS (R$ 3 milhes); Serveng Civilsan(R$ 2 milhes); Galvo Engenharia (R$ 2 milhes); Queiroz Galvo (R$ 2 milhes); NorbertoOdebrecht (R$ 1 milho) e Mendes Jnior (R$ 1 milho). De acordo com o relatrio, estasempresas fizeram doaes semelhantes ao outro candidato Presidncia da Repblica, JosSerra. O relatrio tambm indica que todas as doaes foram legais e registradas no TribunalSuperior Eleitoral (TSE). Disponvel em: http://blogs.estadao.com.br/vox-publica/tag/financiamento-de-campanha/.

  • 7/26/2019 Celio Bermann - O Projeto Da Usina Hidreltrica de Belo Monte a Autocracia Energtica Como Paradigma NOVOS

    11/20

    15

    O projeto da Usina Hidreltrica Belo Monte: a autocracia energtica como paradigma

    do investimento, ser necessria a construo de, ao menos, outras trs usinas rio

    acima (Altamira, Pombal e So Flix)4. E o conjunto de usinas projetadas naquele

    rio, fatalmente significar a impossibilidade da manuteno das condies de

    existncia e de reproduo das 19 etnias indgenas reconhecidamente existentes

    na regio.

    Frente a esta evidncia, o governo insiste em afirmar que somente a

    usina Belo Monte ser construda. Para isso, seus representantes lembram que a

    Resoluo no6, do Conselho Nacional de Poltica Energtica (CNPE), de julho

    de 2008, reconhecendo o interesse estratgico do rio Xingu para fins de gerao

    de energia hidreltrica, assegura que o potencial a ser explorado seja somente

    o situado entre a sede urbana do municpio de Altamira e a sua foz ou seja, a

    usina de Belo Monte. como se deliberaes de governo no nosso pas fossem

    ptreas, no passveis de uma reformulao, a gosto das circunstncias polticas,

    sempre apresentadas como razes tcnicas.

    Sob o ponto de vista socioambiental, o governo brasileiro atropela a tudo

    e a todos, utilizando mtodos que lembram a poca da ditadura militar, que

    acreditvamos, no teria mais retorno.

    3 A NATUREZA DO PLANEJAMENTO ENERGTICO DO PAS

    A tendncia crescente de anncios de construo de usinas hidreltricas

    geralmente se ampara na ideia sempre iminente de uma crise de suprimento

    anunciada para um futuro prximo.

    recorrente o argumento do apago para justificar essas megaobras. A

    ele, sempre vem acompanhada a alegao de que nosso pas precisa de energia

    para crescer e que essas usinas vo trazer a energia que o pas precisa, ou que nossa

    populao consome pouca energia e que usinas como Belo Monte so necessrias

    4 Conforme o mais recente estudo de inventrio do rio Xingu (2007), foram tambm estudadosoutros trs aproveitamentos hidreltricos: Altamira (1.848 MW), Pombal (600 MW) e So Flix(906 MW).

    Obs: Esta nova partio de queda substitui o estudo de inventrio hidreltrico original(concludo pela empresa de consultoria CNEC e apresentado Eletronorte em 1980), queprevia mais cinco centrais hidreltricas no rio Xingu: Babaquara (6.300 MW e reservatrio

    com rea estimada de 2.560-6.140 km2

    ); Iriri (770 MW e reservatrio com rea estimada de1;710-4.060 km2); Ipixuma (1.704 MW e reservatrio com rea estimada de 2.020-3.270 km2);Kokraimoro (1.490 MW e reservatrio com rea estimada de 940-1.770 km2); e Jarina (620 MWe reservatrio com rea estimada de 1.168-1.900 km2). As diferenas nas reas estimadas emcada um dos reservatrios refletem as cotas mnimas e mximas consideradas nos estudos deinventrio de 1980, para a definio das potncias de cada usina hidreltrica estudada (Fontedos dados: SEV FILHO, A.O. (Org.). Tenot-M: alertas sobre as consequncias dosprojetos no rio Xingu. So Paulo: IRN, 2005).

  • 7/26/2019 Celio Bermann - O Projeto Da Usina Hidreltrica de Belo Monte a Autocracia Energtica Como Paradigma NOVOS

    12/20

    16

    Clio Bermann

    para assegurar a qualidade de vida para todos os brasileiros. Este discurso ilusrioe falacioso, construdo a partir de uma apregoada existncia de um interesse geralque o governo brasileiro tem como misso garantir.

    O aumento futuro da oferta energtica presente vem acompanhando demaneira combinada com as projees de aumento do PIB brasileiro. ConformeBermann (2011), a anlise do perfil industrial eletrointensivo do pas, indica que30% da energia eltrica consumida no Brasil em 2009 foi consumida por apenasseis ramos industriais cimento, ferro-gusa e ao (siderurgia), ferro-ligas, noferrosos (alumnio), qumica, papel e celulose.5Devido a este perfil do consumode eletricidade, para cada incremento de uma unidade do PIB so necessrios 1,3

    unidades de energia eltrica (relao PIB/Consumo denominada Elasticidade-Renda da Demanda de Eletricidade). Por seu turno, os pases desenvolvidosapresentam uma relao inversa, com uma Elasticidade-Renda da Demanda deEletricidade de 0,9 nos EUA ou 0,8 no Japo.

    Os Planos Decenais de Energia que se sucedem ano a ano, restringem-se viso ofertista sem entrar no mrito do necessrio questionamento desuas previses de demanda. Utilizando o jargo dos planejadores, isto poderiaser chamado de planejamento do lado da oferta, mas que na realidade o

    atendimento das cargas futuras projetadas.Sob influncia do capital financeiro internacional, e sob influncia da Dam

    Industry,o Brasil construiu seu sistema eltrico priorizando a gerao hidreltrica,estimulou sub-setores industriais e atendeu o suprimento a determinados setoresem detrimento de outros.

    Por este desenvolvimento histrico, criou-se um emaranhado deinteresses que no nos permite afirmar que possa existir uma capacidade

    previsvel de planejamento. Pelo contrrio, apenas um atendimento de cargasfuturas, multiplicando o cenrio presente para o futuro muito incerto, diante dacomplexidade do arranjo de interesses que esto em jogo. Dentro deste campoesto empreiteiras, indstrias de equipamentos, geradoras, comercializadoras,agncias reguladoras, grupos polticos e econmicos que conflitam entre si, edisputam com governos a utilizao do discurso da energia para angariar votos.

    O atendimento ao suprimento ocorrer, ou no, at onde a limitao materialpermitir, se a natureza permitir; no nos esqueamos disso. Assim se desenha

    cada Plano Decenal de Energia, como uma tentativa de costura no atendimentodesse mosaico de interesses em que a oferta corre atrs das cargas projetadas:alguns querem vender energia e outros tantos iro comprar, em um arranjo no

    5 Cf. BERMANN, C. Notas sobre la energa incorporada en la exportacin de bienes primariosen Brasil. Revista Energia y Equidad, Santa Fe, v. 1, p. 31-38., feb. 2011.

  • 7/26/2019 Celio Bermann - O Projeto Da Usina Hidreltrica de Belo Monte a Autocracia Energtica Como Paradigma NOVOS

    13/20

    17

    O projeto da Usina Hidreltrica Belo Monte: a autocracia energtica como paradigma

    qual a Dam Industryaperfeioa mtodos de sua influncia poltica sobre espaosde poder do Estado, atua sobre os processos de licenciamento ambiental, sobreos mecanismos de financiamento e, de maneira ramificada, influencia propostasde reforma do Estado e alteraes de papis institucionais no Ministrio Pblico.

    O atendimento da demanda atravs da fonte hdrica apregoado comouma vantagem comparativa brasileira que, em tese, poderia ser estendida atravsde conexes fsicas a outros pases, por intercmbios nos quais os sentidos detransmisso de energia poderiam se alternar. neste contexto que se insere oAcuerdo entre el gobierno de la Repblica Federativa del Brasil y el gobierno dela Repblica del Per para el suministro de electricidad al Per y exportacin de

    excedentes al Brasil, assinado pelos dois pases, em 16 de junho de 2010.6

    Onde se posiciona o discurso genrico que tenta legitimar a expanso?

    Nesta ideia de que a projeo de aumento da carga no tem sido acompanhadapor um aumento correspondente na capacidade de armazenamento do SistemaInterligado Nacional (SIN). Ao mesmo tempo, a garantia fsica de energia dosprojetos propostos envolveria megaconstrues, com capacidade instalada alta,mesmo que com energia firme baixa. O exemplo mais gritante deste gap entre apotncia e o que os rios efetivamente podem oferecer o projeto de Belo Monte,

    no qual a energia firme corresponde a 39% da capacidade mxima.A usina de Belo Monte, megaobra gigantesca, custos enormes, consequncias

    ambientais e sociais serssimas, ao lado das usinas Jirau e Santo Antonio, no rioMadeira, so exemplos desta obsesso pelo gigantismo e, claro, em detrimentode preocupaes ambientais e sociais. So os trs exemplos de planto da opohidreltrica na Amaznia como panaceia do progresso, da distribuio de renda, docrescer o bolo para depois distribuir, da universalizao do acesso e da redeno das

    comunidades pouco desenvolvidas moradoras de longa data ao longo destes rios.

    4 OS LIMITES DA JUDICIALIZAO E DA MOBILIZAOSOCIAL CONTRRIA OBRA DE BELO MONTE

    As estratgias, esforos e aes de resistncia para parar a megaobra deBelo Monte se mostraram insuficientes.

    Dentre os principais atores da resistncia, o Movimento Xingu Vivo para

    Sempre (MXVPS) rene mais de 250 entidades de dentro e de fora do Brasil, erecebeu adeses internacionais, como a do ator e ex-governador da Califrnia,

    6 Para uma anlise crtica deste acordo energtico, ver RODRIGUES, L. A.; HERNANDEZ, F.M.; BERMANN, C. Produccin de energa hidroelctrica en Amazona: evaluacin del AcuerdoPer Brasil y la internacionalizacin de problemas ambientales. Revista Latinoamericana deDerecho y Polticas Ambientales, Lima, v. 1., p. 253-276. abr. 2011.

  • 7/26/2019 Celio Bermann - O Projeto Da Usina Hidreltrica de Belo Monte a Autocracia Energtica Como Paradigma NOVOS

    14/20

    18

    Arnold Schwarznegger, do cineasta James Cameron e da atriz Sigourmey Weaver.Por meio do Ministrio Pblico Federal, o MXVPS entrou com 12 aes civispblicas no Tribunal Superior Federal. At hoje, apenas uma das aes foi julgadae derrotada.7

    H que se ressaltar que todas as ACPs obtiveram liminar (parcial ou total)pelo Juiz Federal, no julgamento em primeira instncia. Entretanto, todas asliminares foram derrubadas quando chegaram para julgamento do Presidente doTribunal Federal.

    Para o entendimento do andamento processual que tolhe a ao doMinistrio Pblico Federal, preciso referenciar a Lei no8.437, de 30 de junho de

    1992, que dispe sobre a concesso de medidas cautelares contra atos do poderpblico e d outras providncias.

    O Art. 4o desta lei indica que:

    compete ao presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivorecurso, suspender, em despacho fundamentado, a execuo da liminar nas aesmovidas contra o Poder Pblico ou seus agentes, a requerimento do MinistrioPblico ou da pessoa jurdica de direito pblico interessada, em caso de manifestointeresse pblico ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave leso ordem,

    sade, segurana e economia pblicas.

    Ou seja, o juiz que preside o Tribunal pode alegar grave leso economiapblica a interrupo de uma obra, via de regra, mencionando os investimentosj incorridos ou a perda de postos de trabalho em virtude da interrupo.

    Ainda, conforme o 9o do mesmo artigo, a suspenso deferida peloPresidente do Tribunal vigorar at o trnsito em julgado da deciso de mritona ao principal. Cabe salientar que esta clusula foi posteriormente includa

    atravs da Medida Provisria n 2.180-35, de 2001. por fora desta lei, e da sua natureza em privilegiar a tica do empreendedor,que as liminares foram derrubadas, no raro, em menos de 48 horas, sem consideraro mrito de cada ao civil pblica interposta pelo Ministrio Pblico.

    Os esforos no plano internacional tambm no alcanaram o desejadoxito. Em novembro de 2010, o MXVPS, em articulao com outras organizaes,como o Conselho Indigenista Missionrio (CIMI), conseguiu levar o caso deBelo Monte para a Comisso Interamericana de Direitos Humanos (CIDH),

    da Organizao dos Estados Americanos (OEA). Em abril de 2011, a CIDH/OEA apresentou ao governo brasileiro um documento solicitando oficialmente

    7 Os processos judiciais ajuizados pelo MPF/PA, incluindo as 12 ACPs alm de 2 aes porimprobidade, encontram-se disponveis em: http://www.prpa.mpf.gov.br/news/2012/arquivos/Tabela%20de%20 acompanhamento% 20atualizada%20em%2009032012.pdf

    Clio Bermann

  • 7/26/2019 Celio Bermann - O Projeto Da Usina Hidreltrica de Belo Monte a Autocracia Energtica Como Paradigma NOVOS

    15/20

    19

    O projeto da Usina Hidreltrica Belo Monte: a autocracia energtica como paradigma

    a suspenso das obras de Belo Monte. A reao do governo foi surda, ao declararcomo resposta que no haveria nenhuma modificao a ser feita, e que todosas exigncias indicadas no documento j haviam sido cumpridas. Alm disso, ogoverno brasileiro passou a ameaar com a suspenso do apoio financeiro paraa organizao. A ausncia de mecanismos institucionais internacionais tornaramnulos os resultados da iniciativa.

    Mais recentemente, em novembro de 2011, o pas testemunhou umaverdadeira guerra de vdeos. O debate sobre a Hidreltrica de Belo Monte passoua ganhar visibilidade nacional. Isto, em grande medida, graas a um vdeo com aparticipao de vrios atores e atrizes da Rede Globo, principal rede de televiso do

    pas. O vdeo, a Gota D gua + 10 transmitido no Youtube, foi amplamentedivulgado pelas redes sociais, resultando numa petio com mais de um milhode assinaturas, que foi posteriormente enviada para a Presidente Dilma Rousseff.

    No entanto, se por um lado, o vdeo dos atores globais foi muito eficientena divulgao da questo e no recolhimento de assinaturas contra a megaobrade Belo Monte, por outro lado desencadeou uma srie de reaes violentas, naforma de resposta em vdeo produzido por apoiadores da construo da usina. Aausncia de uma maior cooperao entre os produtores do vdeo Gota dgua, que

    continha alguns erros, e o grupo de cientistas contrrios a Belo Monte, permitiucom que a grande imprensa brasileira tomasse a corajosa manifestao dos artistascomo um documento tcnico e acadmico, e passou a desacredit-la, reao quefoi tambm alimentada pelos interesses da Dam Industryno Brasil.

    Em 20 de dezembro de 2011, foi entregue ao governo brasileiro, no gabineteda Presidncia, uma petio com mais de 1 milho e trezentas e cinquenta milassinaturas recolhidas em um ms, solicitando a interrupo imediata das obras

    de Belo Monte e a abertura de um amplo debate que convoque os brasileirospara refletir e opinar sobre que tipo de progresso que estamos dispostos a seguir,conscientes das consequncias das nossas decises. Estavam presentes o ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidncia da Repblica, Gilberto Carvalho; a ministrade Meio Ambiente, Izabela Teixeira; e o ministro de Minas e Energia, EdsonLobo. A resposta do Governo Popular e Democrtico, uma autodenominaoempregada pelo Partido dos Trabalhadores (PT) desde o governo Lula, e agoracom o governo Dilma, foi negativa e definitiva: As obras no sero suspensas,

    em nenhuma hiptese!Verifica-se que o processo de invisibilizao dos movimentos sociais e de

    enfraquecimento da resistncia no parece ser um processo sistemtico no sentidode orquestrao, mas reincidente a cada obra, de acordo com a resistncia quese apresenta na conjuntura, e da disponibilidade do apoio oficial atravs de uma

  • 7/26/2019 Celio Bermann - O Projeto Da Usina Hidreltrica de Belo Monte a Autocracia Energtica Como Paradigma NOVOS

    16/20

    conduta e um conjunto de aes que fazem parte de uma maneira de se tratar osconflitos e assediar os ameaados.

    Entre o fazer e o no fazer uma obra, que em teoria so possibilidades doprocesso de licenciamento, lana-se mo de um dogma: de que a soluo sbiaest no meio destes extremos. Mas o meio j pressupe o incio de uma obra que,em momento subsequente, ter os grupos que dispem mais recursos polticos eeconmicos para modificar, negociar e se desresponsabilizar, com uma vantagemna disputa: o maquinrio em marcha, com a matria-prima no canteiro e com osalojamentos repletos de operrios.

    Entretanto, os ltimos acontecimentos nos canteiros de Belo Monte

    so indicadores de novos desdobramentos do processo poltico de resistncia.Agora, so os prprios trabalhadores recrutados para as obras que assumem umimportante papel neste processo.

    At maio de 2012, houve trs greves nos canteiros de Belo Monte. Naprimeira, em novembro de 2011, os trabalhadores cruzaram os braos em protestopela demisso de quatro operrios, que se negaram a executar tarefas, sob alegaode desvio de funo8. A resposta do Consrcio CCBM a esta primeira mobilizaofoi a demisso de outros 138 operrios, que ocorreu quatro dias aps o incio da

    paralizao.9

    Entre as reivindicaes, os trabalhadores pediam reajuste salarial de30%, para um piso salarial de 900 reais lquidos; o pagamento das horas-extras, que no estavam sendo pagas, especialmente no sbado; e a reduoda baixada, perodo concedido para visita s famlias, que permaneceramnos locais de origem, restrita a nove dias de licena para cada perodo de seismeses de trabalho. Outro aspecto que contribuiu para a ecloso da greve foi

    o fato de que no iria haver recesso no Natal e no Ano Novo. Alm disso,

    8 Segundo depoimento do jornalista Ruy Sposati: No dia 12-11-2011 eles fizeram a primeiragreve por causa da demisso, segundo os trabalhadores, de quatro operrios no dia anterior,11-11-2011. Parece que o encarregado principal do canteiro exigiu que quatro trabalhadoresfizessem o deslocamento de algumas madeiras, que eles chamam de pranches, toras demadeira muito grandes que s podem ser retiradas dos caminhes com mquina ou trator.Esses trabalhadores eram pedreiros, e, de acordo com o contrato de trabalho, no pode haverdesvio de funo. Disponvel em: http://www.ecodebate.com.br/2011/12/07/belo-monte-coercao-nos-canteiros-de-obra-entrevista-com-ruy-sposati/.

    9

    Ainda conforme o jornalista Ruy Sposati: No dia 16-11-2011, uma semana antes do dia 24-11-2011, apareceu uma lista de demisses, com 138 nomes. 40 policiais da Rotam, a polciade elite de Belm, foram ao canteiro de obras e colocaram 137 dos 138 trabalhadores dentrode nibus e mandou todos de volta para o Maranho. As quatro lideranas que estavam nacomisso de trabalhadores ficaram o dia inteiro no canteiro, passando por vrias humilhaes,porque a chefia do canteiro comeou a dizer publicamente que, por causa desses quatro, osoutros tinham sido demitidos. Disponvel em: http://www.ecodebate.com.br/2011/12/07/belo-monte-coercao-nos-canteiros-de-obra-entrevista-com-ruy-sposati/.

    20

    Clio Bermann

  • 7/26/2019 Celio Bermann - O Projeto Da Usina Hidreltrica de Belo Monte a Autocracia Energtica Como Paradigma NOVOS

    17/20

    21

    O projeto da Usina Hidreltrica Belo Monte: a autocracia energtica como paradigma

    foram identificados problemas com a alimentao, que feita em Altamira, ouseja, a 50 km do canteiro de obras. Segundo os trabalhadores, a comida chegapodre nos canteiros.

    A negociao com o Consrcio CCBM foi conduzida pelo Sindicato dosTrabalhadores da Indstria da Construo Pesada do Estado do Par (Sintrapav)e, em 30 de novembro, nove dias aps o incio da paralisao, a greve foi suspensa,sem que a pauta de reivindicaes fosse atendida. Na ocasio, ficou estabelecidoum acordo coletivo com data-base no ms de novembro.

    Nofim de fevereiro de 2012, os operrios da UHE de Belo Monte decidiramapoiar a paralisao dos trabalhadores das usinas que esto sendo erguidas no rio

    Madeira, em Rodnia (Jirau e Santo Antnio).A terceira greve teve incio em 23 de abril de 2012, com a mesma pauta

    de reivindicaes, a partir da constatao de que nenhum dos pontos do acordocoletivo tinha sido atendido. Entretanto, em 26 de abril, o Tribunal Regional doTrabalho da 8 Regio declarou a ilegalidade da paralisao, e o pagamento de multade R$ 200 mil por cada dia parado, o que obrigou os trabalhadores de Belo Montea voltarem ao trabalho no dia 2 de maio de 2012. O motivo alegado pela Justia doTrabalho foi que a greve descumpria a data-base estabelecida pelo acordo coletivo.

    Ou seja, apesar do descumprimento do acordo coletivo por parte daempresa, a justia definiu que os trabalhadores de Belo Monte no poderiamexigir que o acordo coletivo fosse cumprido, a no ser que aguardassem o ms denovembro para voltar a reivindicar seu cumprimento.

    Por fim, cabe assinalar a existncia de um Projeto de Lei no Senado Federal,PLS no179, de 2009, que prope a criao de Reservas Energticas Nacionais, paradisciplinar o licenciamento ambiental de aproveitamentos de potenciais hidrulicos

    considerados estratgicos.Este PLS, que se encontra atualmente (junho de 2012) em tramitao naComisso de Assuntos Econmicos (CAE), apresenta no seu corpo de justificativaa viso de que a legislao ambiental e as normas aprovadas pelo ConselhoNacional de Meio Ambiente (CONAMA) tm tido o indesejvel efeito de fazercom que cada potencial hidrulico seja examinadoper si, sem viso de conjunto,com prevalncia do interesse local sobre o nacional.

    Ainda de acordo com o texto da propositura:

    O Projeto de Lei tem o objetivo de corrigir essa situao, atribuindo aoPoder Executivo a responsabilidade de selecionar um leque de obras queproduza suficiente energia para o crescimento econmico e ampliao daoferta de empregos, e que produza impacto scio-ambiental mnimo, o que bem diferente de impacto nulo.

  • 7/26/2019 Celio Bermann - O Projeto Da Usina Hidreltrica de Belo Monte a Autocracia Energtica Como Paradigma NOVOS

    18/20

    Clio Bermann

    22

    Para, no final do texto da propositura, assinalar que:

    Se este Projeto de Lei for aprovado, o Presidente da Repblica dispor dosinstrumentos para promover o desenvolvimento sustentvel, evitando queprojetos que tragam benefcios para a maioria da populao possam serbloqueados pela ao de minorias. E o Poder Judicirio ter a certeza de quecabe ao Governo Federal a responsabilidade de licenciar empreendimentosde relevante interesse pblico da Unio, ou de interesse nacional, cujosbenefcios ultrapassem as fronteiras estaduais, como o caso de usinashidroeltricas conectadas ao Sistema Interligado Nacional.10

    Verifica-se, uma vez mais, a inteno de criminalizar a ao de minorias,sob a surrada alegao do relevante interesse pblico. Caso o PLS 179 venha a sertransformado em Lei, estar inexoravelmente aberto o caminho para a implantaode todos os empreendimentos hidreltricos previstos para a regio amaznica, adespeito da fragilidade do seu ecossistema, e contribuindo para o desaparecimentoirreversvel das populaes tradicionais na regio, incluindo os povos indgenas.

    Foi nesta direo que a Medida Provisria 558/2012 foi editada, no dia 6de janeiro de 2012, pela presidente Dilma Rousseff. Com esta MP o governoalterou os limites de sete Unidades de Conservao da Amaznia e retirou delas a

    rea que ser alagada pelos reservatrios das usinas. Boa parte da reduo dessasflorestas protegidas por lei tem o propsito especfico de desobstruir o caminhopara o licenciamento ambiental das duas primeiras hidreltricas previstas para abacia do Tapajs: So Luiz do Tapajs (6.133 MW) e Jatob (2.338 MW).

    Aqui tambm o Ministrio Pblico Federal (MPF), em Braslia, impetrou noSTF uma Ao Direta de Inconstitucionalidade (ADI) contra a MP 558. De acordocom o MPF, at o processamento e julgamento da ao pelo STF, as garantiasconstitucionais para as reas protegidas amaznicas esto seriamente ameaadas.11

    Em suma, este o paradigma que est sendo construdo pela UsinaHidreltrica de Belo Monte. A emergncia de uma autocracia energtica, com anegao da democracia no nosso pas e no continente latino-americano.

    10 Ver a respeito: http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=90953.11 Conforme o procurador Felcio Pontes Jr., do MPF do Par, mexer nos limites de unidades

    de conservao em uma regio sensvel como a Amaznia j complicado, mas faz-lo sem estudos ou consulta pblica, por meio de canetada, autoritrio e bota em risco asgarantias constitucionais da proteo ambiental. Disponvel em: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/509566-povos-do-tapajos-apelam-ao-stf-e-ao-congresso-pela-reprovacao-de-mp-que-diminui-unidades-de-conservacao-no-para.

  • 7/26/2019 Celio Bermann - O Projeto Da Usina Hidreltrica de Belo Monte a Autocracia Energtica Como Paradigma NOVOS

    19/20

    23

    O projeto da Usina Hidreltrica Belo Monte: a autocracia energtica como paradigma

    REFERNCIAS

    BERMANN, C. Notas sobre la energa incorporada en la exportacin de bienesprimarios en Brasil. Revista Energia y Equidad, Santa Fe, v.1, p. 31-38, 2011.

    HERNNDEZ, F. M.; MAGALHES, S. B. Cincia, cientistas e democraciadesfigurada: o caso Belo Monte. Novos Cadernos NAEA, Belm, v.14, n.1, p.79-96, 2011.

    MME/EPE. Plano Nacional de Energia 2030. Rio de Janeiro, 2007.

    MME/EPE. Plano Decenal de Expanso de Energia 2011-2020. Rio deJaneiro, 2011.

    MAGALHES, A. C. UHE Belo Monte - Anlise do Estudo de ImpactoAmbiental: Povos Indgenas. In: MAGALHES, S. B.; HERNNDEZ, F. M.(Orgs.). Painel de Especialistas: anlise crtica do Estudo de Impacto Ambientaldo Aproveitamento Hidreltrico de Belo Monte. Belm: [s.n.], 2009. p. 61-69.

    MAGALHES, S. B.; HERNNDES, F. M. (Orgs.). Painel de Especialistas:

    anlise crtica do Estudo de Impacto Ambiental do Aproveitamento Hidreltricode Belo Monte. Belm: [s.n.], 2009.

    PAIM, E. S. IIRSA - esta a integrao que ns queremos?NAT-NcleoAmigos da Terra/Brasil, dezembro de 2003. Disponvel em: http://www.natbrasil.org.br/Docs/ instituicoes_financeiras/iirsa%202003.pdf

    RODRIGUES, L. A.; HERNANDEZ, F. M.; BERMANN, C. Produccin deenerga hidroelctrica en Amazona: evaluacin del Acuerdo Per Brasil y la

    internacionalizacin de problemas ambientales. Revista Latinoamericana deDerecho y Polticas Ambientales, Lima, v.1, p. 253-276, 2011.

    SEV FILHO, A. O. (Org.). Tenot-M: alertas sobre as conseqncias dosprojetos no rio Xingu. So Paulo: IRN, 2005.

    SEV FILHO, A. O. Estranhas catedrais notas sobre o capital hidreltrico,a natureza e a sociedade. Revista Cincia e Cultura, So Paulo, v. 60, n. 3, p.44-50, 2008.

    SIPOT/ELB-Sistemade Informaes do Potencial Hidreltrico Brasileiro/Eletrobrs, 2010. Disponvel em: http://www.eletrobras.com.br/EM_Atuacao_SIPOT/sipot.

    Texto submetido Revista em 05.02.2012Aceito para publicao em 15.05.2012

  • 7/26/2019 Celio Bermann - O Projeto Da Usina Hidreltrica de Belo Monte a Autocracia Energtica Como Paradigma NOVOS

    20/20