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XVII Encontro Internacional de Reflexão e Investigação – UTAD, 16 e 17 de abril de 2013 1 XVII Encontro Internacional de Reflexão e Investigação A INTERPRETAÇÃO DO SIGNIFICADO DE PAISAGEM CULTURAL NO CONTEXTO DO PATRIMÓNIO MUNDIAL – O CASO DO ALTO DOURO VINHATEIRO UTAD, 16 e 17 de abril de 2013 Célia Ramos, Chefe de Projeto da Estrutura de Missão da Região Demarcada do Douro Graça Fonseca, colaboradora da Estrutura de Missão da Região Demarcada do Douro Resumo: A Convenção do Património Mundial, Cultural e Natural foi adotada pela UNESCO em 1972 e tem como objetivos garantir o melhor possível a adequada identificação, proteção, conservação, divulgação e transmissão às gerações futuras do património cultural e natural com ‘Valor Universal Excecional’. A categoria de Paisagem Cultural foi adotada pelo Comité do Património Mundial em 1992. O Valor Universal Excecional (VUE) assenta em três pilares: 1) os critérios para a sua inscrição, 2) a sua condição – noções de autenticidade e integridade e 3) a conservação e gestão. Os critérios explicam a razões pelas quais o bem foi inscrito, justificam a sua importância global. Propomos-mos interpretar e examinar o significado da paisagem cultural evolutiva e viva do Alto Douro Vinhateiro com base nos atributos patrimoniais que lhe são próprios, assim como das componente que lhe conferem distinção, considerando os critérios com base nos quais foi inscrito na Lista do Património Mundial, procurando construir um referencial tangível que permita uma mais objetiva compreensão da sua identidade. A Declaração de Valor Universal Excecional do ADV sintetiza e consubstancia esse referencial. Por fim, reforçaremos o papel fundamental de ‘traduzir’ a Declaração de VUE em mensagens claras, capazes de captar o valor do Sítio e de o comunicar e transmitir, proporcionando o reforço identitário e apelando à participação, ao exercício de cidadania. Para além da relevância intrínseca trata-se de uma temática muito acarinhada pelo Centro do Património Mundial especialmente este ano, em que se dedica o dia Internacional dos Monumentos e Sítios ao tema “Património + Educação = Identidade”.

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XVII Encontro Internacional de Reflexão e Investigação – UTAD, 16 e 17 de abril de 2013

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XVII Encontro Internacional de Reflexão e Investigação

A INTERPRETAÇÃO DO SIGNIFICADO DE PAISAGEM CULTURAL NO CONTEXTO DO

PATRIMÓNIO MUNDIAL – O CASO DO ALTO DOURO VINHATEIRO

UTAD, 16 e 17 de abril de 2013

Célia Ramos, Chefe de Projeto da Estrutura de Missão da Região Demarcada do Douro

Graça Fonseca, colaboradora da Estrutura de Missão da Região Demarcada do Douro

Resumo:

A Convenção do Património Mundial, Cultural e Natural foi adotada pela UNESCO em 1972 e

tem como objetivos garantir o melhor possível a adequada identificação, proteção,

conservação, divulgação e transmissão às gerações futuras do património cultural e natural

com ‘Valor Universal Excecional’. A categoria de Paisagem Cultural foi adotada pelo Comité do

Património Mundial em 1992.

O Valor Universal Excecional (VUE) assenta em três pilares: 1) os critérios para a sua inscrição,

2) a sua condição – noções de autenticidade e integridade e 3) a conservação e gestão. Os

critérios explicam a razões pelas quais o bem foi inscrito, justificam a sua importância global.

Propomos-mos interpretar e examinar o significado da paisagem cultural evolutiva e viva do

Alto Douro Vinhateiro com base nos atributos patrimoniais que lhe são próprios, assim como

das componente que lhe conferem distinção, considerando os critérios com base nos quais foi

inscrito na Lista do Património Mundial, procurando construir um referencial tangível que

permita uma mais objetiva compreensão da sua identidade. A Declaração de Valor Universal

Excecional do ADV sintetiza e consubstancia esse referencial.

Por fim, reforçaremos o papel fundamental de ‘traduzir’ a Declaração de VUE em mensagens

claras, capazes de captar o valor do Sítio e de o comunicar e transmitir, proporcionando o

reforço identitário e apelando à participação, ao exercício de cidadania. Para além da

relevância intrínseca trata-se de uma temática muito acarinhada pelo Centro do Património

Mundial especialmente este ano, em que se dedica o dia Internacional dos Monumentos e

Sítios ao tema “Património + Educação = Identidade”.

XVII Encontro Internacional de Reflexão e Investigação – UTAD, 16 e 17 de abril de 2013

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1. Enquadramento

A Convenção do Património Mundial, Cultural e Natural, foi adotada pela UNESCO em 1972 e

tem como objetivos garantir a adequada identificação, proteção, conservação, divulgação e

transmissão às gerações futuras do património cultural e natural com ‘Valor Universal

Excecional’.

Só 20 anos depois foi adotada, pelo Comité do Património Mundial, a categoria de Paisagem

Cultural (1992) em consequência da necessidade de distinguir o património que resulta da

“obra combinada (interação) entre o homem e a natureza”, e que traduz as interligações entre

a diversidade biológica e cultural, especificamente associada às formas tradicionais de

utilização das terras.

Não foi por acaso que esta nova categoria de património cultural surge em 1992, ano em que

se realiza a primeira Conferência das Nações Unidas sobre Ambiente e Desenvolvimento no

Rio de Janeiro, onde ficou claramente assumido o conceito de desenvolvimento sustentável

enquanto processo de desenvolvimento económico que procura assegurar a preservação do

meio ambiente e dos recursos naturais, na dupla perspetiva espacial e temporal.

Existem três tipologias de Paisagens Culturais: a Intencionalmente Concebida pelo Homem, a

Essencialmente Evolutiva e a Associativa. As Paisagens Culturais Evolutivas podem ainda

configurar as figuras de “Relíquia ou Fóssil” e de “Evolutiva e Viva”.

O Alto Douro Vinhateiro encontra-se classificado como Paisagem Cultural Evolutiva e Viva.

A inscrição do ADV na Lista do Património Mundial da UNESCO, como ato voluntário do Estado

Português, comporta em si mesmo um alcance: um bem que é do Mundo; um objetivo: a

excelência; uma ambição: a qualidade e uma exigência: a durabilidade.

2. O Significado da Paisagem Cultural Evolutiva e Viva do Alto Douro Vinhateiro

A classificação de um bem não é um título intocável e pode não ser para sempre. Existem

diversos processos que correm no Centro do Património Mundial da UNESCO, de bens que

entram na lista de “bens em perigo” cuja resolução segue as orientações estabelecidas na já

citada Convenção do Património Mundial, Cultural e Natural.

XVII Encontro Internacional de Reflexão e Investigação – UTAD, 16 e 17 de abril de 2013

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O estatuto de Património Mundial não é, portanto, um dado adquirido, um status ganho e

inalterável.

A classificação do ADV não é, deste modo, uma marca irremovível, perpétua, e o ano de 2012

– com toda a problemática gerada em torno da construção do Aproveitamento Hidroelétrico

de Foz Tua, ajudou a compreender e a ganhar consciência dessa realidade.

O estatuto do ADV é um símbolo, que se materializa num território a preservar, a cuidar, a

construir, para as pessoas e com as pessoas que nele vivem, que nele querem passar a viver e

que o visitam.

Esta circunstância remete-nos para a necessidade de compreender e interpretar esse símbolo,

materializado nos atributos, na autenticidade e na integridade do ADV e de o traduzirmos num

significado amigável, capaz de ser comunicado e de ser apropriado por todos quantos vivem

no ADV e por todos quantos vivem do ADV.

Estamos em crer que o processo de consciencialização desse significado, a sua transformação

em informação e em conhecimento, bem como a sua apropriação por todos quantos nele e

dele vivem muito contribuirá para a salvaguarda e promoção do ADV, e desse modo, para o

seu desenvolvimento duradouro.

Importa então, criar as condições, abrir as portas para um caminho que a região há de

continuar a percorrer nas próximas décadas assegurando o estatuto de Património Mundial

que a todos deve estimular e mobilizar.

Essa tarefa alicerça-se no sistema de gestão da paisagem cultural que, no caso do ADV,

compreende uma entidade gestora -a Estrutura de Missão para a Região Demarcada do Douro,

um plano de gestão -o Plano Intermunicipal de Ordenamento do Território do Alto Douro

Vinhateiro- e uma associação promotora envolvendo a sociedade civil -a Liga dos Amigos do

Douro Património Mundial.

Tal não dispensa o envolvimento e a participação dos demais parceiros institucionais

relevantes mas especialmente e muito em particular da sociedade civil.

Nos próximos pontos propomo-nos interpretar e examinar o significado da paisagem cultural

evolutiva e viva do Alto Douro Vinhateiro com base nos atributos patrimoniais que lhe são

próprios, assim como nas componentes que lhe conferem distinção, considerando os critérios

com base nos quais foi inscrito na Lista do Património Mundial.

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2.1. Atributos

O significado de uma paisagem cultural está diretamente relacionado com os atributos

(tangíveis e intangíveis) que lhe conferem VUE – cada um de per si e ao nível das interligações

que estabelecem-, com os atributos significativos aplicáveis à autenticidade, bem como os

critérios de integridade que permitam apreciar o estado do tecido físico do bem, a

manutenção das relações e as funções dinâmicas presentes.

No Alto Douro Vinhateiro Património Mundial identificam-se, como atributos mais expressivos:

- os Valores Naturais – a geomorfologia complexa, a escassez de solo fértil e de água, as

vertentes abruptas, a gradação climática atlântico-mediterrânica, a vegetação e culturas

mediterrânicas, a diversidade do património genético vitícola, a diversidade de habitats, a luz,

as cores, os odores, o rio Douro e seus afluentes e,

-os Valores Culturais – a dominância da vinha alternando com matos mediterrânicos, os

povoados, as quintas e casais, os terraços e os muros em xisto, as vias de acesso e rodovias, o

caminho de ferro e a navegabilidade do douro, as diferentes tipologias de plantio da vinha, os

antrossolos e a conservação da água, o padrão da paisagem.

Os sistemas de armação dos terrenos com recurso a muros de xisto, os sistemas de drenagem

tradicionais, os caminhos murados, as escadas de salta cão, os cardenhos, que foram

construídos com fins utilitários e despretensiosos acabam por ser, eles mesmos, reconhecidos

como elementos patrimoniais.

E a excecionalidade da paisagem do ADV manifesta-se essencialmente nas obras do homem

anónimo que modelou o terreno e construiu estruturas para suster o solo e reter a água ao

longo de séculos, com o objetivo de tornar uma região inóspita produtiva e assim, ganhar o

seu sustento.

No mosaico paisagístico formado pelas vinhas e por outras culturas mediterrânicas como o

olival e amendoal, pelos mortórios, pelos matos e matas mediterrânicas, pelas bordaduras,

pela vegetação associada às linhas de água, pontuam quintas e casais, povoados, locais de

culto e miradouros, armazéns e adegas, o caminho-de-ferro, enfim, todos os elementos

essenciais à cultura da vinha, à produção do vinho e à vida quotidiana das populações.

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2.2. As componentes de Distinção

São três as componentes de distinção que contribuem para a autenticidade e integridade do

Alto Douro Vinhateiro: A antiguidade da região; Os terraços; O cruzamento de culturas.

A Região Demarcada do Douro é a mais antiga região vitícola demarcada e regulamentada do

mundo, desde as primeiras demarcações em 1757 e 1761, na sequência de legislação

regulamentadora produzida pelo Estado desde 1756. Essas são conhecidas como demarcações

pombalinas, uma referência ao marquês de Pombal, o Primeiro-Ministro da época, e delas

subsistem na região vestígios significativos (marcos pombalinos). Contrariamente ao que

aconteceu com outras anteriores demarcações de regiões vitícolas (Chianti, 1716; Tokaj, 1737),

a demarcação do Alto Douro foi acompanhada por ampla legislação regulamentadora

(pioneira, em muitos aspetos, da moderna legislação vitivinícola seguida em muitos países

produtores), por um sistema de classificação e qualificação de vinhos, baseado num cadastro

de propriedades e em mecanismos de controlo de qualidade. Além disso, as demarcações do

séc. XVIII, independentemente da variação dos respetivos limites, assumiram uma

continuidade temporal até aos nossos dias e mantiveram sempre uma forte carga simbólica,

sendo interiorizadas pelas populações locais como um elemento-chave da sua identidade.

Para cultivar a vinha na encostas íngremes e pedregosas do Douro foi necessário produzir solo

e construir terraços (socalcos) amparados, tradicionalmente, por muros de xisto, que se

combinam hoje com novas formas de armação do terreno. A paisagem vitícola do Douro é,

assim, uma arquitetura complexa, onde se misturam diferentes formas de sistematização dos

terrenos para o cultivo da vinha: socalcos antigos pré-filoxéricos, socalcos pós- filoxéricos,

patamares, vinhas “ao alto” e ainda vinhas plantadas sem armação do terreno.

O Alto Douro encerra uma história milenar, com vestígios arqueológicos abundantes da

intensa ocupação humana desde tempos pré-históricos. Apesar da irregularidade do caudal do

rio e das dificuldades de navegação, o vale do Douro constitui um corredor de povos e cultura,

que aqui se cruzaram e misturaram, durante milénios, em vagas sucessivas. A romanização a

partir do séc. I veio substituir a cultura castreja de Celtas, Iberos, Celtiberos e lusitanos,

redefinindo em todo o vale do Douro as linhas de ocupação do território e as atividades

económicas. O vale do Douro foi, depois, dominado sucessivamente por suevos (séc. V),

visigodos (séc. VI), entretanto unidos e cristianizados, e muçulmanos (séc. VIII-XI), seguindo-se

a reconquista Cristã. Em finais da Idade Média, o povoamento intensifica-se e, ao mesmo

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tempo, fixam-se e crescem diversas comunidades religiosas, destacando-se, desde meados do

séc. XII, pelo seu papel económico e cultural, os monges da Ordem de Cister, que fundaram

diversas quintas nas encostas do Douro, muitas delas ainda existentes, nas melhores zonas de

produção vitícola. O vale do Douro, e a oferta de trabalho sazonal proporcionada pelo cultivo

da vinha, desde sempre atraíram as populações das montanhas beirãs e transmontanas, bem

como muitos Galegos, em especial para os trabalhos de surriba e modelação dos terrenos e

plantações. Os arrais e marinheiros das povoações ribeirinhas desenvolveram técnicas de

transporte do vinho no rio Douro, até ao Porto, nos barcos rabelos. Finalmente, os negociantes

e exportadores, portugueses e estrangeiros (ingleses, flamengos, alemães), que

desenvolveram técnicas de armazenamento e lotação do vinho do Porto, que o

comercializaram e adaptaram ao gosto dos mercados consumidores e lhe granjearam fama

mundial.

2.3. Critérios

O Alto Douro Vinhateiro (ADV) foi inscrito na Lista do Património Mundial da UNESCO na

categoria de Paisagem Cultural Evolutiva e Viva, no dia 14 de Dezembro de 2001, na 25.ª

sessão do Comité do Património Mundial, realizada em Helsínquia, com base nos critérios iii),

iv) e v):

(iii) constituir um testemunho único ou pelo menos excecional de uma tradição

cultural ou de uma civilização viva ou desaparecida

(iv) representar um exemplo excecional de um tipo de construção ou de conjunto

arquitetónico ou tecnológico, ou de paisagem que ilustre um ou mais períodos

significativos da história humana

(v) ser um exemplo excecional de povoamento humano tradicional, da utilização

tradicional do território ou do mar, que seja representativo de uma cultura (ou

culturas), ou da interação humana com o meio ambiente, especialmente quando este

último se tornou vulnerável sob o impacto de alterações irreversíveis

[Orientações Técnicas para Aplicação da Convenção do Património Mundial, §77]

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O Alto Douro Vinhateiro responde aos três critérios acima mencionados, que se encontram

assim interpretados:

(iii) O ADV produz vinho desde há cerca de dois mil anos e a sua paisagem foi moldada pelas

atividades humanas.

O ADV fornece um testemunho excecional de uma tradição cultural viva, associada à produção

do vinho, com evidentes marcas históricas na paisagem.

(iv) As componentes da paisagem do ADV são representativas do completo leque de

atividades associadas à produção vitivinícola - terraços, quintas, aglomerados, capelas e

estradas e caminhos.

A paisagem do ADV apresenta uma diversidade de tipologias de implantação dos vinhedos,

rede de caminhos, e muros de xisto, que se traduzem num paisagem tecnológica singular e

excecional.

(v) A paisagem cultural do ADV constitui um excecional exemplo de uma região vitivinícola

tradicional europeia, refletindo a evolução desta atividade humana através do tempo.

O ADV, no contexto das regiões vitícolas europeias de montanha é a maior, a mais histórica, a

mais continua e aquela que possui a maior diversidade biológica de vinhos. A paisagem

expressa as soluções decorrentes das alterações tecnológicas num contexto evolutivo de

relação do homem com a natureza.

3. Os conceitos de Autenticidade e de Integridade da Paisagem

Apreender o significado da Paisagem Cultural Evolutiva e Viva do Alto Douro Vinhateiro

pressupõe assimilar também os conceitos de autenticidade e de integridade da sua paisagem.

3.1. Autenticidade

As condições de Autenticidade do Bem revelam-se pela forma genuína e autêntica, com base

em fontes de informação fidedignas, com que o ADV representa os seus valores e atributos.

Os valores e atributos mais relevantes, não são os usualmente associados a monumentos e

património no sentido mais tradicional.

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No ADV, os povoados, os edifícios das quintas, os logradouros e construções religiosas, não

possuem a “grandeza” correspondente à opulência da paisagem. O património vernacular mais

representativo encontra-se nas vertentes ingremes, nos patamares, nos terraços sustentados

pelos muros de xisto, no solo cultivável construído pelo homem, na rede de caminhos e

acessos, na variedade biológica e tipológica das vinhas e no padrão de paisagem.

Nos atributos referidos, há que reconhecer a sua importância, o testemunho das diferentes

épocas, as suas vulnerabilidades e eventuais necessidades de restauro ou reabilitação.

A autenticidade deve, também, englobar o contexto da atualidade e da obra nova.

3.2. Integridade

O ADV possui todos os valores e atributos que exprimem o seu VUE. Estão presentes na

totalidade de área, mantendo o carácter intacto, com a dimensão que permite a

representação completa das características e processos que transmitem a sua importância

enquanto região vinhateira e paisagem tecnológica singular. O uso do solo, as tipologias de

implantação dos vinhedos, o padrão da paisagem, os povoados, as quintas, os muros de xisto,

a rede de acessibilidades e a morfologia complexa do ADV manifestam-se nos seus limites com

a expressão mais representativa e preservada da Região Demarcada do Douro, refletindo bem

as relações e as funções dinâmicas da paisagem cultural evolutiva viva.

O tecido físico do ADV e as suas características significativas encontram-se em bom estado, e

os processos que podem gerar efeitos adversos encontram-se controlados, espelhando, assim,

as condições de Integridade Bem.

4. Noção de Valor Universal Excecional

Após a anterior referência aos atributos do ADV, das suas componentes de distinção e bem

assim dos critérios que presidiram à sua inscrição na lista das Paisagens Culturais Mundiais

impõe-se, em jeito de síntese, a explicitação da noção de Valor Universal Excecional (VUE)

enquanto pressuposto, ou fundamento, de qualquer bem inscrito na Lista do Património

Mundial.

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O VUE assenta em três pilares:

- os critérios para a inscrição do bem,

- a sua condição – conceitos de autenticidade e integridade e,

- a conservação e gestão.

Como já se expressou, os critérios explicam a razões pelas quais o bem foi inscrito e justificam

a sua importância global.

A autenticidade, que se aplica apenas aos bens culturais, indica que o valor é expresso de

forma correta e com base em fontes credíveis através de atributos (elementos-chave) como a

forma, design, materiais, função, tradições, configuração, linguagem e o “espírito do lugar”.

O património natural e cultural também deve satisfazer a condição de integridade

relativamente à totalidade do sítio, devendo ser suficientemente representativo para incluir

todas as suas características-chave, resiliente para enfrentar as mudanças que ocorrerão ao

longo do tempo, e apresentar bom estado de conservação.

Nos pontos anteriores procuramos materializar o símbolo que traduz o estatuto do ADV e

construir um referencial tangível que permita uma mais objetiva compreensão da sua

identidade.

A Declaração de Valor Universal Excecional do ADV sintetiza e consubstancia esse referencial.

Vejamos então:

O ADV é a realidade mais representativa e melhor conservada da Região Demarcada do Douro

(RDD). A RDD é a mais antiga região vitícola demarcada e regulamentada do mundo. A

superfície do ADV compreende 24.600ha, cerca de um décimo do total da RDD com 250.000ha.

O ADV desenvolve-se ao longo das encostas do rio Douro e da parte terminal dos seus

afluentes.

A paisagem cultural do ADV é uma obra multissecular, de adaptação de técnicas e saberes

específicos de cultivo da vinha para a produção de vinhos mundialmente reconhecidos,

correspondentes às denominações de origem “Porto” e “Douro”. É uma paisagem centrada na

vitivinicultura e desenvolvida em condições morfológicas e ambientais extremas, que, através

do aperfeiçoamento das técnicas de valorização do espaço agrário, possibilitaram o cultivo da

vinha em vertentes ingremes e pedregosas, recorrendo à construção de socalcos suportados

por muros de xisto.

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A paisagem do ADV testemunha modos de organização da vinha de diferentes épocas

históricas e que refletem saberes, técnicas, costumes, rituais e crenças tradicionais. Economia –

Cultura – Paisagem constituem, no ADV, uma unidade inequívoca que a população construiu e

interiorizou ao longo de séculos.

O esforço coletivo, “sobre-humano” e monumental, é traduzido sensorialmente numa

paisagem inconfundível, uma obra-prima de autor anónimo.

[Declaração de Valor Universal Excecional retrospetiva].

5. Comunicação do VUE do ADV e reforço da Identidade

A tipologia do Sítio ADV – Paisagem Cultural Evolutiva e Viva – é a mais complexa das

tipologias de património cultural. Impõe a integração da componente patrimonial na

paisagem, bem como da paisagem na componente património, num território vivo, com uma

economia centrada na vinha e no vinho, continuamente desafiado pela necessidade de

encontrar melhores soluções tecnológicas e influenciado pelas variações do mercado.

Obriga a uma assimilação do significado da paisagem cultural na multiplicidade de atributos

presentes, o que requer uma abordagem multi e interdisciplinar, tanto mais complexa quanto

se trata de um território vasto e diversificado.

Acresce que, sendo a paisagem cultural “evolutiva e viva”, é condição essencial para a sua

conservação, divulgação e transmissão às gerações futuras a manutenção das atividades

humanas, essencialmente as práticas agrícolas e, em particular, as vitivinícolas, em harmoniosa

integração com o meio natural que lhe serve de suporte.

É essa interação que lhe confere valor identitário, valor esse que tem de ser apropriado pelas

populações locais e percecionado pelos visitantes.

É inegável que o Douro - Património Mundial, é elemento distintivo e qualificador da Região.

Contribuir para reforçar o conhecimento e a compreensão do Valor Universal Excecional do

ADV junto das populações locais, das instituições e dos cidadãos em geral, passará

designadamente:

Em primeiro lugar, deve desde logo ser dada a conhecer a história da ocupação do vasto

território da região do Douro, da labuta de séculos que permitiu que o homem fabricasse solo

e plantasse vinha em condições extremamente adversas.

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As escolas, o serviço educativo dos Museus do Território, as associações locais, as autarquias,

os serviços da Administração, todos têm um papel relevante e complementar na

descodificação / interpretação / tradução /significação / explicação dos valores presentes no

ADV no sentido de reforçar a sua Identidade.

Por outro lado, deve ser promovida a sensibilização para o valor cénico da paisagem, para o

belo inigualável que a paisagem cultural do Alto Douro abarca, reflexo da evolução

tecnológica, social e económica, e que constitui atualmente um ativo valioso incorporado nos

produtos endógenos e em serviços, de que é exemplo o turismo.

Mas a comunicação dos valores do ADV e o reforço da sua identidade não tem apenas esta

dimensão. Tão ou mais importante que o valor que lhe é atribuído pelas “instâncias

exteriores”, é o significado, as emoções que o ADV desperta nos Durienses. Considera-se,

assim, essencial inquirir e conhecer qual o significado do ADV para as comunidades que nele

vivem, de que forma se estabelece como elemento identitário, motivo de orgulho, e de

autoestima. Em suma, perceber como se encontra o ADV apropriado por todos os seus

habitantes.

A compreensão partilhada por todos os envolvidos, quer dos valores presentes, quer das

respetivas responsabilidades, é essencial para a tomada de decisão sobre as intervenções

relativas ao ADV, para um desenvolvimento duradouro tendo presente que manter o VUE do

sítio é a finalidade de todas as medidas de conservação e de desenvolvimento, bem como a

base para a sua apresentação e promoção.

Num Encontro Internacional subordinado à Reflexão e Investigação nos domínios das Ciências

da Linguagem, da Comunicação e da Cultura, e como forma de interpretar também o

significado de paisagem cultural no contexto do património mundial, não resistimos à tentação

de partilhar alguns extratos da obra “Portugal a Terra e o Homem” de Jaime Cortesão:

“A história foi assim: No princípio a montanha era deserta. De Inverno, o gelo e as enxurradas

dilaceravam-lhe os flancos; no Estio, um calor de fornalha rachava as pedras; e nem uma fonte

escassa matava a sede ao mato ralo dos piornos. Como grossas lágrimas, pedregulhos rolavam

dos altos e mergulhavam no pego. Lá em baixo, onde se ouvia o estrépito da queda, muito ao

fundo, apertado entre muralhas negras, o rio, monstro irado, devorava rochas e abria caminho,

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aos galgões, cuspindo lama e espuma lívida. Se acaso, de raro em raro, sopro de vento ali

entrava, logo das arribas xistosas se erguiam e volteavam bulcões pulverulentos, que tornavam

mais lôbrega a paisagem.”

“Ora um dia sucedeu que dois gigantes, um vindo de Trás-os-Montes e o outro da Beira Alta,

mais gigantes na alma que no corpo, galgaram as serras, desceram as encostas e, depois de

olhar os fundões do rio e provar o néctar dos frutos bravos, entenderam que aquela terra e

aquele rio eram, pela sua áspera grandeza, dignos da labuta de gigantes. E resolveram meter o

picão às fragas; reduzi-las a terrunha; amparar os seus “veios” estreitos com “socalcos” de

pedra solta; e plantar sobre as escarpas, que eram sarças de fogo, os primeiros bacelos de

videira. Quando mais tarde voltaram, viram com surpresa que as vides carregavam e as uvas

ressumavam um licor capitoso, que lhes dava leveza aos passos e alegria às almas.”

“Ainda hoje, os netos dos gigantes de outrora continuam a permanente e dura faina de

transformar em oásis o deserto e a rocha em ambrósia; ou acodem, nas “rogas” de Trás-os-

Montes e da Beira para colher a uva e transportá-la, cadenciados pela harmónica, nos grandes

cestos vindimeiros.”

“E tu, regalado turista, que das altas varandas do rio te extasias contemplando o maravilhoso

desdobrar de anfiteatros, debruados de canteiros e alvejantes de casais, considera com quanto

esforço e dor outros homens, teus irmãos, humanizaram e floriram a paisagem selvática de

outrora.”

“O Douro continua a ser o maior cachafundão de Portugal. Álgido e ardente. Desde a boca até

ao fundo escalam-se todos os climas nevados do Marão e as veigas tépidas do Algarve; mas,

regada pelo suor do homem, a fraga desabrochou. Encosta abaixo medra o carvalho negral, o

castanheiro, a oliveira e o sobreiro; e sazonam em frutos incomparáveis as laranjas do Tua, as

vinhas do Roncão, as cerejeiras de Penajóia e as amendoeiras de Freixo de Espada à Cinta.

E foi assim que o Douro se tornou a melhor vinha e o melhor vergel de Portugal; que os homens

roubaram aos deuses, para a oferecer aos mortais de todo o mundo, a ambrósia divina; e que

uma raça de gigantes ergueu o mais belo e doloroso monumento ao trabalho do povo

português.

Esses foram e são os Lusíadas sem Camões.”

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Fontes:

Bianchi de Aguiar, F. e Dias, J (Coord.) (2000). Candidatura do Alto Douro Vinhateiro a Património Mundial. Porto: Fundação Rei Afonso Henriques.

http://whc.unesco.org/en/list/1046 - Alto Douro Wine Region

UNESCO, CPM.11/01, Orientações Técnicas para Aplicação da Convenção do Património Mundial, Edição Lisboa, abril de 2012

ICOMOS, Guidance on Heritage Impact Assessements for Cultural World Heritage Properties, January 2011

Proposta de Declaração de Valor Universal Excecional retrospetiva, EMD/CCDR-N, janeiro de 2012

Andresen, T. e Rebelo, J.(2013). Avaliação do Estado de Conservação do Bem Alto Douro Vinhateiro - Paisagem Cultural Evolutiva Viva, Volume 1 - Relatório de Avaliação. Porto: CCDRN/ESRVR, CIBIO UP/UTAD.

Plano Geral da Paisagem da Zona de Construção do AHFT em Património Mundial – ADV (Landscape Master Plan), Estrutura Missão do Douro, dezembro 2012

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