cecília meireles - olhinhos de gato (txt)(rev)

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CECLIA MEIRELES Capa: foto de Eduardo SantaliestraOlhinhos de Gato Coleo VeredasCoordenao editorial: Maristela Petrili de Almeida Leite Preparao de texto: Regina G imenez Capa: foto de Eduardo Santaliestra para edio em brochuras no Brasil da Editora Moderna Ltda. para qualquer outra forma de edio ou reproduo j conhecida ou que a tecnologia venha a descobrir no futuro, das herdeiras da Autora. CIP-Brasil. Catalogao-na-Fonte Cmara Brasileira do Livro, SP _____________________________________________________________________ Meireles, Ceclia, 1901-1964. M4530 Olhinhos de Gato / Ceclia Meireles. - 3.ed. 3.ed. - - So Paulo : Ed. Moderna, 1983. 1. Fico brasileira 80-1102 D-028.5 -869.935 _____________________________________________________________________ ndices para catlogo sistemtico: 1. Fico : Sculo 20 : Literatura brasileira 869.935 2. Literatura infanto-juvenil 028.5 3. Literatura juvenil 028.5 4. Sculo 20 : Fico : Literatura brasileira 869.935 Todos os direitos reservados EDITORA MODERNA LTDA. Rua Afonso Brs, 431 Tel.: 531-5099 Brasil CEP 04511 - So Paulo - SP 1987 Impresso no Brasil 2. Literatura infanto-juvenil I. Ttulo. CDNOTAPublicado inicialmente em captulos na revista Ocidente, de Lisboa, durante os anos de 1939 e 1940, Olhinhos de Gato constitui uma potica narrativa autobiog rfica de Ceclia Meireles. As personagens principais, pessoas que conviveram com a menina Ceclia, so c arinhosamente evocadas por cognomes. Por exemplo, a av Jacinta, com quem viveu de pois da morte dos pais, Boquinha de Doce; a ama chamada de Dentinho de Arroz; Ol hinhos de Gato, por sua vez, a prpria autora. O texto desta primeira edio em livro foi cotejado com a publicao em captulos, revistos pela autora. Permitimo-nos atualizar apenas as convenes ortogrficas. O EDITORhttp://groups.google.com/group/digitalsource 1 O SUSPIRAR do vento matinal por aquela alta folhagem. . . E as mil coisas que comeava a desenhar, sobre o cu transparente, o seu suss urrante suspiro: lua crescente, branca e sem luz, esquecida no ar da manh. . . fl ocos de cores das nuvens, com fios de ouro pelo meio. . . giro dos pombos, para longe, para longe, como para dar volta ao mundo, arqueando as asas. . . cigarras de bronze e cristal sonoramente aderindo ao galho rugoso. . . e o piar dos pass arinhos goelas vermelhas contra a luz, e vidas, vidas. . . teias de aranha estende ndo redes de prata pela laranjeira. . . moscas verdes zumbindo. . . duros besour os rolios. . . liblulas vestidas de vidro. . . formigas deslizando num interminvel cortejo pela goiabeira abaixo. . . abelhas rodando em volta da rsea flor toda abe rta. . . lagartixas correndo pelos tijolos do muro. . . falas de bem-te-vi... pi os de sabi. . . pingo da torneira do tanque abrindo n'gua trmulos crculos sucessivos ... o gato amarelo caminhando cuidadoso pela beira do telhado... e no alto da ce rca o velho galo de curvos espores endireitando o corpo para cantar. . . (Depois, ele abanava a cabea, agitando as barbas e os brincos, moles e vermelhos, e punha -se a cacarejar c para baixo, conversando com a famlia. . .) E o pintinho tremendo pri-pri-pri-pri-pri. . . e esquivando-se todo diante de uma pobre minhoca. . . e um fiozinho de gua perdendo-se abandonado pela terra adiante, numa interminvel lg rima. . . e o vento levantando as folhas secas do cho, virando-as, pousando-as, c arregando-as, deixando-as, o vento, aquele vento caricioso, subindo outra vez pe la rvore acima, jogando fora as flores pequenas e os frutinhos murchos, e fugindo pelo cu, perseguindo pssaros e empurrando nuvens... OLHINHOS DE GATO! Voltou os olhos, fatigada. A mo, robusta e morna, pousou-lhe na testa, depois no pescoo, depois pelos braos, at o pulso. No, j no tem febre. . . Os dedos passaram-lhe entre os cachos: Deixe-me ver a lngua.. . No. . : OLHINHOS DE GATO no gostava de mostrar a lngua. . . Mas contou que a noite inteira levara vendo coisas pelas paredes: uns bales vermelhos que inchava m, inchavam, saam uns de dentro dos outros, boiavam. . . Quanto mais se olhavam, mais fugiam. . . Quem os trazia? Quem os levava?Era a febre. . . Era a febre. . . Sentava-se na cama, e abria a boca, pegajosa, amarga, quente, esperando a colher de remdio que lhe vinha chegando devagarinho, devagarinho. . . Cuidado! para no pingar no cobertor. . . E OLHINHOS DE GATO ficava olhando: cobertor vermelho, to grosso, peludo co mo o couro de um bicho. . . Peludo e lustroso. E, de lado a lado, um leo enorme c aminhando. (Haveria lees vermelhos? Seria aquele cobertor uma pele de leo?) Escorregava de novo por entre os lenis. Deixava pender a cabecinha para o l ado. O sorriso em sua boca era uma flor emurchecendo, vergada. Unidos ao corpo, de um lado e de outro, por cima da roupa, os bracinhos longos e finos. Um anelzi nho de ouro no dedo. Cabelo imvel. Todas as pregas da cama no mesmo lugar. S os olhos azuis-verdes-cinzentos comeavam a viajar: resvalavam pela rstia d o sol, buliam nos puxadores das gavetas (l dentro estavam bem dobrados os lenis e a s fronhas cheirando a ma e a malva. . .), seguiam pelo mrmore, paravam nas flores p intadas na loua azul ramos to finos sobre a antiga porcelana, com cachos de flores vermelhas, como os "brincos-de-rainha" que oscilavam l fora na cerca... A bacia pousava num pano de renda. Havia a saboneteira. Uma caixa redonda de cristal, co m p-de-arroz. Um copo facetado, com letras de ouro. Uma caixa de jias, anis, cordes de ouro, broches quebrados, santinhas de esmalte. . . Na prateleira estava o porta-relgio, que abria e fechava suas duas grandes conchas de ncar. Estava tambm o termmetro, armado num suporte difcil, com roxos cac hos de pequeninas uvas, e retorcidos pmpanos dourados. De onde viera tanta coisa? Onde estavam os donos daquilo? Do relgio fechad o ali dentro, dos vestidos guardados naquele armrio? Do imenso leque de tartaruga que um dia vira na gaveta? Os olhos azuis-verdes-cinzentos paravam no ar, e recordavam outras coisas , subitamente: um par de luvas brancas, de homem. . . uns sapatinhos de bico fin o e pompom to pequeninos que quase lhe ficavam justos no p. . . E aquela mesma voz ali do quarto, dizendo s vezes, a olhar para as nuvens: "Minha querida filha!" c om duas lgrimas grossas, descendo. . . OLHINHOS DE GATO pousava ento a vista no espelho, procurando, procurando. Todos aqueles rostos deviam ter passado por ali. . . Mas o espelho ainda mais infiel do que a memria humana. . . Trapinho de seda branca. . . Pedao de fita. . . Resto de renda... Queres fazer um vestidinho para tua boneca? No. OLHINHOS DE GATO prefere ficar vendo, apenas, todas aquelas sobras de pano, retorcidas, amassadas, de onde se exala um estranho cheiro, que no vem dos fios, que no vem das cores, nem dos desenhos, nem da gaveta. . . mas de muito ant igamente, de um tempo desconhecido, onde havia outras casas, outras pessoas, out ro viver, outras modas. Esta chita de argolinhas! Ainda ficou um pedacinho disto! H quanto tempo. . . H quanto tempo! OLHINHOS DE GATO vai alisando os pedacinhos de pano: o de trevo de quatro folhas (havia trevos daquele tamanho, entre as malvas e as violetas. E tinham u m gostinho azedo, mas bom), o de aneizinhos entrelaados (quem os pudesse arrancar dali com a ponta do dedo!), o de quadradinhos de duas cores... o de salpicos. . . Telas entretecidas de fios de seda. . . gorgores hirtos, de um brilho de bronz e. . . Cores que j no se encontram: tons de madeira, de vinhos, de pssaros, de vidr o. . . E negro, negro, negro, negro. OLHINHOS DE GATO mergulha as mos nos crepes franzidos, para tocar os vidri lhos sobre o cetim e a gaze. Crepes pretos, vidrilhos pretos, cetim preto, gaze preta. . . Negro, negro, negro, negro. . . Levanta os olhos, ao retirar os borda dos de palhetas e miangas, que mal cintilam naquela treva. E o olhar que se en contra com o seu est dizendo l longe, onde o olhar ainda pensamento: "Luto, luto, luto, luto..." Suas mos sobre aquele mundo so pssaros cados, arrastando-se tristemente: sonh o magoado... perdida direo . . . Acontece chamarem-na: "OLHINHOS DE GATO!" Volta-se para a porta, com as mos cheias dos seus trapos de todas as cores. As visitas olham-na docemente, caminham para ela, brincam-lhe com os cabelos. Depois, uns dedos enluvados pegam-lhe no queixo, para lhe levantarem o rosto: "M as o retrato da me!" ME. Deixa-se estar com o rosto assim levantado, segurando bem os trapos, sobre o peito. Da posio? Da luz que lhe bate na vista? Da expresso com que a esto mirando? S eus olhos ardem como se os incendiassem. Ardem, dilatam-se, crescem, transbordam . Por qu? Vm duas mos enxugar-lhe o rosto brandamente. E j est de novo com os seus trapos, conversando com as cores, os fios, os d esenhos, as contas. Um dia, no meio dos outros, aparece um pedao grande, que se recusa a sair facilmente. Pe-se de p, para poder puxar melhor. Arranca-o de dentro daquela multi do de chitas e sedas. E em suas mos surpreendidas aparece um vestido inteiro, um v estido cor de abacaxi, com finas listas paralelas, em relevo, enfeites de renda amarelada, muitas barbatanas, e muitos, muitos colchetes. Mete-se dentro dele, a botoa-se como pode, e sai pela casa correndo. OLHINHOS DE GATO! OLHINHOS DE GATO! Ela est como as princesas q ue lhe mostraram nos livros: para andar, arregaa a frente da saia; para trs, a cauda, espalhando -se. E da gola muito larga e mal abotoada, surge o seu rosto plido, de riso singu lar. Um riso que certos germens de pensamento perturbam e estremecem. No rasgues! Tem cuidado! OLHINHOS DE GATO v-se no lustro dos mveis como num espelho. E a voz continua: To bem que lhe ficava! Era a moda dos vestidos "princesa"?. . . Depois, havia um silncio. OLHINHOS DE GATO, parada, esperava, mostrando-se . Minha querida filha! Ento, ia despindo lentamente aquela roupa que cheirava a flor murcha. Deix ava-a cair do corpo, e saltava de dentro dela como quem pula de um tmulo. Certa vez, encontrou tambm uma blusa cinzenta, com rendas pretas, gola alt a, mangas duplas. De bruos, no cho, ps-se a viajar pelos caminhos das rendas pretas , que eram s flor sobre flor... de repente de dentro das mangas? de dentro do pei tilho? de onde? caiu perto dela um pequeno leno de seda branca bordado de roxo. A lisou-o com as duas mos, estendeu-o no assoalho at ficar bem quadrado. E assim fic ou. E olhava, olhava. E no era mais ali. No sabia onde. Num canto de uma casa, um dia, perto de uma parede. . . Muita gente. Um cheiro diverso. . . Um ar diverso sobre as coisas. Uma pressa. Levantaram-na nos braos, como tirando-a de dentro do cho. Desviaram um leno igual, igual quele! "Beije a mame!" E beijou um rosto duro e frio. Perto havia uma porta. Onde estava esse lencinho? Ela ergueu os olhos, para explicar. Disseram para longe: "No gosto de a ver brincando tanto com aquelas coisas ." Em que dia se puseram a abrir malas, barricas, bas? Enxotavam-na docemente para longe: "Tem tanta poeira!" Mas a lmpida ignornc ia de seus olhos nem estremecia. "Faz muito mal! Tem doenas!" Palavras sem sentid o. . . As caixas abriam-se de repente, e, das tbuas levantadas, escapavam grossos livros com lombadas douradas, que, ao escorregar, entreabriam-se, mostrando e e scondendo figuras. . . Olha que te faz mal! As malas imensas custavam a ceder nos fechos. Por fim, levantavam as curv as tampas. E havia coisas to apertadas, to amassadas, que se tornavam irreconhecvei s. Era preciso desdobr-las, uma a uma. Viam-se, ento, cortinados de renda muitos, muitos roupas de banho de mar, de l, com cadaros brancos e ncoras, capas de viagem, de uma seda que sussurrava com o movimento, fantasias de domin, lantejoulas, gale s de ouro, esfiapando-se, fitas e guizos. . . Uma dizia: "Eu no quero ficar perto disso!" Outra respondia: "Ora, que que tem? Eu no acredito nessas coisas!" Certas peas tiravam com o maior cuidado: colchas de renda, camisoles de sed a. Erguia-se aquilo nos braos como um corpo de criana. Murmurava-se: "Um enxoval tobonito! Mal empregado! Que pena!" Analisava-se: "Estas rendas de crivo!. . . Es tes bordados!..." Acrescentava-se mais baixo, e lentamente: "Tinha umas mos de pr ata!" Tudo era como nos sonhos. Traziam-se, levavam-se aquelas coisas. Mas pare ce que ningum sabia nem pensava por qu. Entre os cetins cor de marfim e de rosa, cintilavam traas, rapidamente. De sdobravam-se as roupas ao sol. A parreira desenhava sobre elas o recorte clssico de suas folhas, cuja nitidez a brisa s vezes perturbava. Quanto tempo se passou assim? Dias e dias seguidos. Os gaios cantavam, os pssaros faziam uma algazarra pelas rvores, passavam os burros do carvo, vinha o pe ixeiro de brincos de prata, subia o mascate, ouvia-se o prego dos pretos do melad o e das bananas, dormitava o gato embaixo da mesa. D. Sinh cachimbava na sua rede , comeavam a aparecer crianas lavadas pelas portas, chegavam os negrinhos das bala s, do puxa-puxa, dos roletes de cana, a rua enchia-se de cantigas de roda, de co rridas, de gritos, de gargalhadas, os homens voltavam do emprego (to cansados, me u Deus!), acendiam-se os bicos de gs nasciam claras estrelas e todo esse tempo an davam a revolver essas coisas vindas de longe, a escolh-las, a separ-las, a sacudi -las, a estend-las ao sol ou a deit-las para o lado: "Isto no serve mais... Isto ta mbm no..." No serviriam tambm mais os domins com seus guizos, e as roupas de banho com as suas ncoras? E por que se guardavam as camisas de seda to leves, to moles, com suas preg uinhas muito finas e suas rendas de suaves rosas? Quem viria uma noite vestir aq uela roupa linda, que parecia das pessoas impossveis das histrias? Esperariam mesm o algum? E por isso que se abriam ao sol, com tanto carinho, os lenis rendados e as colchas brilhantes? De que imenso caixote tiraram um dia os frascos? Eram tantos, tantos, que ningum sabia onde os arrumar, nem que fazer daquilo. Apareceram assim: de todos os tamanhos, de todas as cores, mas principalmente uns pequeninos, amarelos e az uis. Que poro! Que poro! Diziam: "Pra que serviu tudo isto?". E olhava-se para eles, que no respon diam. Encheu-se uma mesa inteira, duas mesas, e diziam que ainda havia mais, e c ontinuavam a aparecer s mos-cheias, fechados, abertos, cheios, vazios, muitos s com algumas ltimas gotas no fundo. s vezes, partiam-se. Eram muito finos. E deixavam na pele um cheiro acre e uma; frescura de lcool evaporando-se. Ardiam na lngua. Ti nham nomes to difceis que se desistia de aprender. Que iam fazer daquilo? Mesmo os que ainda estavam fechados, com um papelz no serv inho pregueado por cima da rolha, mesmo aqueles todos estavam convencidos iam para nada. . . Que pena! Passavam de mo em mo... e todos concordavam. Mas para onde atir-los todos? Procurando uma soluo, punham-se a separar os mais novos. "Que m sabe l. . .? hein?" E olhavam para a criana. "Deus no h de permitir que seja preci so!" E conversavam: "Ningum vai antes da sua hora! Quando ela tem de vir, vem mes mo..." "Cala-te da!", o rumor dos vidros entrechocados abafava o resto da convers a. Cortava-se algum dedo, s vezes. E s vezes aparecia, entre tantos frascos, algum a linda colherzinha redonda, to pequenina como as de brinquedo, ou mais. OLHINHOS DE GATO estendia a mo, procurando-a. Mas afastavam-na. "No seja teimosa! V-se embo ra! No ouviu dizer j que faz mal?" Fazia mal, muito mal. "Deus te livre!" E sobre os seus olhos ignorantes e tranqilos, deixavam cair um aviso srio, em voz surda: "A Morte!" Havia tambm as barricas. Primeiro, tiravam apenas palhas. Mas depois comeav am a aparecer coisas encantadoras: jarrinhas de tantos feitios, de tantas cores, to enfeitadas de ouro! Uma, s de amores-perfeitos! E os prncipes. . . E as princes as. . . Quem pousou no limiar da porta o imenso jarro azul, to liso, to igual, meu D eus! Caminhava-se, caminhava-se com os olhos e com as mos por cima dele e s se pis ava cor, aquela cor uniforme, certa, densa: tudo cu, tudo cu! Nenhuma esperana de n ada mais, naquela estranhamente serena superfcie, que dispensava todas as figuras , que altivamente dispensava todos os desenhos, todas as outras cores que, entretodas as outras coisas, variadas e promscuas, se bastava com a sua harmoniosa co ncentrao. Diferente dela, a terrina, larga e acachapada, como uma barca, oferecia e m seus flancos perspectivas para demoradas cismas: entre flores cinzentas, trs ve ados olhavam, inquietos. Era a margem de um lago. Do outro lado, um castelo reta ngular prometia surpresas. Para alm comeava a floresta, e perdia-se em nuvens tnues . Diante daquela superfcie, arqueada como uma saia sobre um ventre, a criana via o jogo confuso de suas lembranas, tranando-se e destranando-se: "O veado qu fugi! O c achorro qu pega!" Gritos estridentes saam de dentro da loua plcida. E entre o castel o e a floresta o rosto cego do eco tontamente clamava: "Oh!. . . Ah!..." E pousaram em redor as louas. O som dos cristais fazia o prprio gato franzir a testa, apreensivo. Os fio s do bigode punham-se-lhe mais hirtos. E pousavam os quadros. . . OLHINHOS DE GATO debruava-se sobre eles. Figura s desconhecidas, cenas incompreensveis. O vidro era um muro transparente entre do is mundos. . . Mas, de tanto olhar para ele, o que ficava, pouco a pouco, meio r evelada, meio encoberta, era apenas uma cara silenciosa de criana, de caracis alou rados, e o princpio de um vestidinho preto e branco.. .O assoalho, que os outros pisam indiferentes, tem, no entanto, suas paisa gens secretas. porque ningum contempla muito as linhas e cores da madeira. Alguma s, na verdade, so lisas, da mesma cor, em tons de pele humana amareladas, rseas, m orenas. Outras, porm, encerram desenhos tais que, olhando-se para dentro delas, p oder-se-ia dispensar qualquer outro lugar do mundo. A princpio parecem apenas ris cos, sem nenhuma significao. Mas pouco a pouco se observa que h ondulaes de guas, prai as, montanhas, um estremecimento de pssaros, florestas densas, que escurecem logo , um sbito jorro de estrelas e de luas, borboletas infinitas adelgaam as asas riqus simas, e santos de mos postas pairam por cima de encrespadas nuvens. . . H um outr o mundo, no assoalho que se pisa indiferente. E os grossos ps ignorantes andam so bre essas maravilhosas coisas, sobre os palcios e as flores, sobre os peixes e os olhos dos santos. . . H outros mundos, tambm, noutras coisas esquecidas; nas cores do tapete, que ora se escondem ora reaparecem, caminhando por direes secretas. As pessoas de p, o lhando de longe e de cima, pensam que tudo so flores, grinaldas de flores... flor es... Mas OLHINHOS DE GATO bem sabe que ali h noites, dias, portas, jardins, coli nas, plantas e gente encantada, indo e vindo, e virando o rosto para lhe respond er, quando ela chama.. . Por isso to bom andar pelo cho, como os gatos e as formigas. Por baixo das mesas e das cadeiras reina uma frescura que a madeira conserva como a sombra que projetou no tempo em que foi rvore. E desse lado que se pode ver como certas coi sas so feitas: recortes, parafusos, encaixes, pedaos de cola. . . desse lado que a s coisas so naturais e verdadeiras, como ns, quando nos despimos. O avesso dos panos uma revelao: que estranhos caminhos tem de seguir cada f io para, em sentido contrrio, formar os desenhos que todos admiram! Nas noites de luar, olhando-se bem, vem-se princesas de vestido verde, pas seando pelos jardins que h dentro da lua. E a terra, que ningum observa muito, igualmente um espantoso mundo repleto de maravilhas aparentes e ocultas. Ningum d conta dos filamentos de erva que uma s gota de orvalho, s vezes, prostra. Ningum se lembra da solitria cintilao de um gro d areia. Ningum v que o mido caracol e a raiva formiga cumprem seu inexplicvel destin o expostos miseramente ao risco dos imensos ps distrados que passam. . . Que gosto de longe mas de um outro longe - h em cada objeto, em cada animal , em cada criatura! E que pacincia de obedecer a um secreto compromisso! To srias, as coisas! To srios, os animais e as plantas! Muito mais srios que as pessoas. Envo ltos num sonho espesso. Andando, comendo, crescendo - mas sempre dormindo. Viajan do como ns todos para a morte, mas ainda mais indefesos. E tudo morre! Tudo? O palhao branco fez uma cabriola, com a palma da mo na calada. Sua cara cor de cal dava-lhe um ar de fora do mundo. De cada lado, e no queixo e na testa, trazia pintado um naipe encarnado. A cabriola que fez no perturbou a cartolinha bic uda que trazia de banda. Tirou do bolso uma rosa vermelha, e estendeu-a para Den tinho de Arroz: O paiao o que ? ladro de mui!. . . Oh! os ladres... os ladres. . . Nesse tempo, o mundo era povoado de ladres: paravam pelas esquinas, rondav am as casas, vinham buscar de noite as crianas que choram e as que no querem ir do rmir. . . Ladres. . . Certamente, por isso que tudo ali dava aquela impresso deser ta. Por baixo das rvores no passeava ningum. Ningum tirava das caixas nem as mantilh as nem os chapus de pluma, ningum usava mais anis, ningum calava os sapatinhos de bic o fino, ningum vinha dormir naquelas sedas lindas, que esperavam, guardadas. . . Foram ladres que levaram tudo. . . ah! Ladres. . . ? No. . . A Morte. Dentinho de Arroz sorriu, abraando-a: Oh! o palhao no a levaria, no. Mas OLHINHOS DE GATO sentiu como se lhe puxassem o corao para fora do peito . Uma certeza sbita prendeu-a num crculo de sombra. Dentinho de Arroz iria tambm. I ria uma noite dessas, quando ela estivesse dormindo, talvez. Tudo vai. . . tudo vai. Aperta-se com o dedo a gua na pedra, e ela est fugindo, fugindo e continuando seu rumo... Consegue-se prender mansamente na mo um pssaro macio, e ele desliza p ara o seu vo, e s se sente a leveza que deixam, quando j no esto mais... De noite, mi steriosamente, aparecem em nossos braos bonecas imensas, que falam e movem os olh os. . . e embaixo dos dedos acordam teclados to sensveis que basta pensar-se para que executem a msica pensada.. . Quando se vai prender cada coisa, tudo se conver te em nvoa, muda de forma, some-se. . . O paiao que ? S lhe resta fechar os olhos e aceitar. Mas di, aceitar! Os olhos incham de lgrimas. No entanto, depois, por dentro delas, nasce um espao maior que o cu, mais alto que as montanhas, um espao que sempre mais longe, mais fundo, mais imenso. L para dentro dos olhos, que lugar aquele? Um lugar sem casas, sem ruas, sem ningum . To silencioso. To escuro. Mas onde tudo desponta. . . No te ponhas a pensar nessas coisas... Isso sono. . . E sono. . . Encosta -se aqui... ... ... ... . . . Uma rosa. . . um palhao... pianos tocando em surdina, suavemente... E as figuras dos retratos sorrindo, abanando os leques, saindo dos seus lugares, pousando-lhe a mo nos cabelos: "OLHINHOS DE GATO!" Mas tambm a mo levantando um leno de seda. Um rosto, duro e frio, abrindo os olhos. Depois, flores. E as outras coisas sucedendo-se... Imenso, o guarda-vestidos: como uma casa. Quem pudesse morar ali! Quem pu desse ficar entre aqueles vestidos de seda que ningum veste, remexer naquelas cai xas misteriosas, onde h plumas to mansas: um sopro, nada mais que um sopro e aquel e cheiro antigo de rosa seca e de cinza. . . Num canto, entre as sedas, sente-se a guitarra encostada. Dlom. . . dlem. . . H uma corda frouxa, burlando o toque: fl. . . Da ponta dos dedos sobe uma angstia pelo brao acima. Oh! aquele contato spe ro da corda frouxa. . . E era como a ressonncia do som, na madeira do instrumento , quando a corda tensa fazia: dlom. . . OLHINHOS DE GATO! A seda das roupas farfalhava e emudecia. OLHINHOS DE GATO! Farfalhava de novo a seda das roupas, rodava a porta, num gemido, e a car inha amarela aparecia, sorrindo. Quando vier o ladro, me escondo aqui dentro. .. Pulava para o cho, contand o coisas atrapalhadas. O relgio apagava e acendia o relevo dourado da pndula. Santo Antnio, bordado a veludo sobre um suave cetim azul, sorria para o menino sentado em seu brao, so bre um livro, e com a outra mo sustentava uma palma de flores. ("To bem que bordav a! Mos de prata!") O espelho vertical repetia a porcelana azul do jarro e pedaos d e claridade da porta. Sobre o mrmore escuro, panos de renda desenhavam extraordinrias flores redondas. Entre os mveis havia umas zonas de sombra onde o silncio parecia ter folhas e flores. Alguma rstia de luz descia, obliquamente, a certas horas mas no chegava at a. Via-se ento, nessa lmina de luz, acordar um pequenssimo e no entanto infinito universo, com astros bailando e brilhando, numa lei incomunicvel, e com habitante s invisveis. O prncipe de porcelana sorria eternamente para esses mistrios. E o prprio Sa nto Antnio se entretinha nessas contemplaes, dividido entre o cuidado de sustentar ao colo o menino e na mo a sua palma de flores, que o vento no desmanchava, que o sol no queimava, mas que alguma sinuosa traa mordia s vezes numa folha, numa ptala, num pistilo. H tantas coisas prodigiosas para ver e escutar! Aquele Santo Cristo que es t ali de capinha amarela, cercado de flores de pena e de frutinhas de massa, mora em terra distante, numa igreja muito antiga, de onde, em certas ocasies, o levam a passeio, entre cnticos e luzes, sobre andores forrados de seda. Mora l, coberto de ouro, silencioso e quieto, mas vivo e atento ao destino dos homens. Ele que livra de peste, fome, naufrgios, trovoadas e tentaes do Demnio. Suas unhas crescem, embora as mos estejam imveis. Se uma flor distrada o espeta com algum espinho, logo sua presena responde: sua vida vem superfcie, sua carne sangra. H pessoas que sabem dessas histrias que parecem mentira. Por isso ela gosta tanto de ver as negrinhas que sentam com tamanha graa nos velhos bancos de ps em W, para comerem com a mo carne-seca assada na brasa e piro de mandioca. Passam por ali, lembram-se de entrar para o almoo, contam uma poro de coisas, e vo-se embora: "At outro dia!" Tm cabelo de carrapicho, brinquinhos de ouro, colarzinho de coral muito vermelho, no pescoo preto. Gostam de melado com farinha, de pamonha e de ca ldo de cana. Recortam com muito jeito os bicos de papel para as prateleiras dos armrios. Sabem assoviar e trepar nas rvores. Riem de maneira particular, desfranzi ndo uns lbios repolhudos e rodando os olhos, brancos e pretos, redondos e luzidio s como bolas de gude. So um pouco pssaro, so um pouco gente. So mais bicho do que ge nte. V-se pelo cheiro. V-se tambm pelo modo por que falam dos outros bichos: dos ma cacos, das onas, dos tatus, dos gambs. E, alm disso, dos lobisomens e das mulas-sem -cabea. A prpria quantidade humana que possuem , por sua vez, encantada: vm surgir o s mortos, ouvem almas de escravos arrastando correntes, encontram nas encruzilha das a sombra do demnio, que costuma at espantar os cavalos. Entendem de agouros, d e ces que uivam, de urubus que esvoaam, de corujas que grasnam, de arapongas que g emem. Sem falar nas borboletas douradas e pretas que querem dizer morte, nas mos cas que zumbem e querem dizer visita, nos sapos mortos, que chamam chuva, nas ar anhas que conforme a hora em que aparecem querem dizer uma coisa especial. Tudo tem um poder que necessrio dominar. A orelha vermelha, conforme o lad o, revela que falam bem ou mal de ns. A mo que comicha anuncia dinheiro. Se a faca se enterra de ponta no cho, se a comida nos escapa da boca.. . Por isso tudo que se traz ao pescoo, alm do colarzinho vermelho, um fio de linha, que se esconde por dentro da roupa, e onde h breves amarrados, oraes medidas de santos, sementes, ps, que vencem todas as surpresas do Mal espalhado neste mu ndo para desabar sobre os desprevenidos. A prpria C, muito menos preta do que essas negrinhas, sabe de coisas bem es pantosas: "Naquela tarde que a menina chorava, chorava, j ningum sabia o que fazer com ela. E resolveram rezar. Pois foi nessa tarde que, depois da reza, quando e la se virou assim para o lado, viu... com aqueles olhos que a terra h de comer! v iu o morto, com aquele seu ar de sempre, bondoso e simples, parado perto da meni na, e por sinal com uma roupa velha com que gostava de andar em casa, e de que t odos se riam, porque tinha os cotovelos furados." Boquinha de Doce ajunta, vagarosa, erguendo as fortes sobrancelhas ainda negras: "E eu? E eu no vi o Meu passar de repente de uma sala para a outra? E no soltei um grito. . .? E no fui atrs dele. . . ? E no vi diante de mim, ali perto, a li perto, desfazer-se o pedao de sua perna, com a cala azul-marinho, com o vinco e tudo. . .?" Vinha uma pausa, como quem empurra uma porta sobre uma sala onde se passam graves cenas. Depois, a mesma voz murmurava, incerta, abafada e sozinha: "No. . . ningum sabe nada. . . Tudo assim uma sombra pela vista. . . Talvez sejatudo sombra. . ." E at Maria Maruca, que no preta, mas avermelhada e de cabelos ruivos, acred ita em tudo isso. Faz uma cruz por cima da boca, ao bocejar, diz que no se deve r ogar pragas, porque os anjinhos do cu esto sempre dizendo AMM e se acertar o Amm com a praga, a desgraa acontece mesmo e enquanto esfrega a roupa na tina, recita par a OLHINHOS DE GATO, que a observa em silncio: "Padre Nosso pequenino, quando Deus era menino, sete anjinhos a rezar, sete demnios a tentar, o Senhor meu padrinho, a Senhora minha madrinha, que me ps a mo na testa, pra que o pecado no me empea." Aprendeste? perguntava depois. Ela continuava escutando. . . Por detrs daquele firme azul do cu, andavam o s anjos e os demnios, ocupados com os homens. Deus escrevia num livro enorme o qu e se fazia neste mundo. No dia da morte, abria-se uma pgina certeira. Punham-se o bem e o mal numa balana. Conforme o que pesasse mais, a alma seguia o seu destin o: no cu, era s msica, anjos de asas brancas, santos com coroas de ouro. No inferno eram os demnios pulando no meio do fogo. E as chamas danavam sobre as almas sem n unca as consumir. "Para todo o sempre, por seculum seculorum, amm Jesus." Um beijo na ponta dos dedos selava a boca sobre as palavras santas. O mes mo beijo que ela depunha no po que lhe casse aos ps, apanhando-o pressurosa, e expl icando, como ofendida: " a face de Deus! A FACE DIVINA!" E era como se algum mas q uem? de um outro lugar, lhe ensinasse umas obscuras coisas.2 NEM todas as visitas so como aquelas senhoras de luvas de pelica e chapus d e plumas, que levantam o vu at a altura da boca e em pequeninos sorvos tomam uma p equenina xcara de caf. H, por exemplo, aquela velha suja, pobre, mas bela que no sabe entrar em ca sa, que no se sabe sentar em cadeiras agacha-se nas pedras da escada, e enrodilha -se numas imensas saias, grossas e escuras. Pousa nos joelhos as grandes mos, de unhas foscas e espessas como as dos gaios, e fala, fala coisas tristes, meneando a cabea morena, por onde escorrega um leno preto sobre umas velhas trancas, grisa lhas e gordurosas. E uns brincos longos, em forma de corao, balanam-se nas suas lon gas orelhas mas no cintilam, porque o ouro e os aljofres esto muito forrados de p. Fala a pobre mulher. Mal se entende o que diz. Porque suas palavras, s ela as usa, e ainda vm afogadas em suspiros. Mas algumas se desenham solitrias no cho cinzento de cimento, no ar azulado do dia: desgraa, loucura, fome. Nesses momento s, procura por entre o franzido da saia a abertura de um bolso, de onde retira u m leno sujo e enovelado, que passa pela cara, num gesto errante, virando para o cu uns grandes olhos nublados. Uns grandes olhos que algum lhe est arrancando, porqu e h risco de sangue por entre as suas lgrimas. OLHINHOS DE GATO perde a vontade de ouvir, e vai andando para longe, com os seus cacos de vidro e os seus pedaos de concha. E a mulher, vendo-a passar, interrompe sua dor, e murmura: "Como est cresc idinha! Graas a Deus que escapou! Deus lhe d boa sorte!" e pe-se de novo a chorar. Tambm costuma vir aquele homem risonho, de grandes olhos cor de folha, cuj a mo, passando pela face de OLHINHOS DE GATO, deixa sobre ela, exatamente, a mesm a aspereza e o mesmo cheiro dos tijolos, das pedras e dos troncos de rvore. De um misterioso lugar, que descreve sorrindo, traz macios cravos crespos, de sufocant e perfume, e jasmins-do-cabo, que se cheiram de longe, para no murchar, e malvas veludosas, para guardar nos armrios de roupa; e gernios que magoam a vista, de to v ermelhos, e uma poro de cravinas, florzinha -toa, que nem brilha nem cheira, parececoisa de papel ou de chita, mas tem sempre uma novidade nas ptalas multicores, s obre as quais descem as cismas da menina e os seus monlogos. Junto com tanta flor, vm os cachos de nsperas, e umas tangerinas muito pequ eninas, muito amarelas, muito azedas; e frutas-de-conde que se esborracham todas dentro do embrulho... Ningum sabe por qu, o homem traz tambm folhas de laranja-da-terra, de guaco e erva-de-santa-maria. Ele, porm, explica: "A menina podia estar doente. Lembreime de trazer estas coisas, que so um santo remdio..." Mas antes assim, que no estav a doente. Aquela parece que escapava, mesmo! Suas palavras vinham com laos de ale gria. Depois, contava outras coisas: estrias de terras, escrituras, procuraes. Mas pelo meio dessas conversas difceis passavam raios coloridos, descries de flores e f rutas, focinhos de bichos engraados porcos, coelhos, cabritos e os canteiros fica vam to vivos, e as guas to animadas, que se sentiam as couves abertas sob a chuva d a rega, e, no fundo dos tanques, os cgados parados dentro da sua casca. Havia tambm a mulata gorda e lenta, de mantilha de renda e travessas nos b andos. Subia a escada gemendo, enxugando o suor da testa, e deixava-se cair sufo cada na cadeira, com as mos papudas em cima da carteira, do leque e do leno. Uf! Se agora me pusessem a mo na boca, eu morria. Essa no falava de bichos nem de flores. Falava de gente. De D. Sinh, de D. Nenm, de D. Marocas. Falava de lugares: de Mata-Porcos, d e Paquet, de Cachambi. E de doenas: varola, febre amarela, tsica e gangrena. Quando estava muito bem disposta, que dava gargalhadas, tapando a boca com a mo, ocupava -se de coisas mais insignificantes, como sarampo, coqueluche, catapora, enxaquec a. . . E a menina vai andando, hein? perguntava, meio admirada de no haver notcia s ruins. Quem havia de dizer que se salvava! verdade... Com o ritmo da fala, moviam-se-lhe por baixo do queixo duas pelancas mais moles e finas que as orelhas dos gatos. Parecia impossvel que se pudesse estar v ivo com aquele pescoo. OLHINHOS DE GATO pensava que era alguma doena, e mirava-a c om muito medo e muita pena do seu observatrio, que era o prprio cho, onde se debruav a como os bichos e as esfinges. Mas o seu medo e a sua pena aumentaram muito quando lhe disseram que aqui lo no era doena nem defeito, mas velhice. Ah! Boquinha de Doce iria, ento, ficar tambm assim? No. Boquinha de Doce conta-lhe muitas estrias prodigiosas. Conta-lhe que, n o tempo em que Deus andava no mundo, um moo, que perdera sua me, foi pedir-lhe, ch orando, para a botar de novo viva. Ento, Deus disse-lhe: "Traze-me tua me." E mete u a morta na atafona, e deu-lhe uma volta, e ela ficou de novo no apenas viva, ma s outra vez moa, e seu filho j no chorava ria-se, ria-se de contentamento! Aconteceu, porm, que outro homem, que no queria saber de Deus, exclamou, zo mbando: "Grande milagre! Eu sei fazer a mesma coisa!" E meteu sua prpria me na ata fona, para que ficasse outra vez moa, e deu-lhe uma volta, e ela morreu, e ningum a ressuscitou. Uma grande esperana pousa sobre a menina. Ela ir procurar Deus, quando for preciso. Se algum dia for preciso... Talvez Boquinha de Doce permanea para sempre assim. De um lado e de outro da testa, seu cabelo j est todo prateado. Mas na parte de trs, negro como uma caixa de piano. As pessoas que chegam, dizem: "Est muito bem conservada!" E ela responde: "Ah! no sei como ainda tenho estes olhos na cara!" Os outr os replicam: "Mas mesmo! Quanta coisa! E tudo assim ao mesmo tempo!" Ela sacudia a cabea, com os olhos midos. "Ficar assim sem nada, de uma hora para a outra!" E suas mos abriam-se como no meio de um deserto. " verdade! tornavam E s a meninazinh a ficou!" Olhavam para a criana, faziam-lhe festas. E murmuravam: "Benza-a Deus! Est bem gordinha! Ela no tem uma figuinha no cordo?" Depois, falavam outras coisas, OLHINHOS DE GATO sumia-se, andava para umlado e para o outro, com os bichos, as plantas, os desenhos das madeiras, as cor es dos vidros. Talvez Boquinha de Doce permanea mesmo assim. Sua mo um pouco rugosa, mas d eve ser de trabalhar. janela, balana-se a gaiola redonda. O canrio vira o olhinho de mianga para o ar azul do dia. O enorme cu adere naquele pequenino ponto de luz. E canta, o canr io. pequenino, magrinho como um brinquedo do tamanho da flor da trepadeira. A ru a inteira, porm, ouve o seu canto. Seu canto tem sinos, assovios, flautas, e perf ura o silncio com parafusos de cristal. O canrio solta o seu canto gravemente, com o os sapateiros pregando solas, e os amoladores afiando as facas. Depois, experi menta a vibrao que ficou em redor de si, e vai fazer outra coisa. Pula do poleiro, leve, leve. Parece que ainda no cantou. Debica o alpiste. Parece que no cantou nu nca, em sua vida. Debica o alpiste, puxa os fios da couve. Vira a cabea para o la do. Observa. E de novo preludia. Incha as pluminhas do pescoo com o seu canto, ma ior do que ele, maior que a janela, e a casa, e a rua. V-se bem que s para cantar que ele foi criado. Mas depois se distrai de novo, e brinca com o bico na gua. No entanto, um dia, aparece frio, seco, de lado na areia. Na cabecinha mo le, nas asas rgidas, no hirto bico amarelo, no h um vestgio de som. E sabia-se que e le era s msica. Isso d uma certa melancolia. Os gatos sobem o muro: veludo frouxo, pluma, elstico. Um raio de sol queim a-lhes os bigodes de vidro. Piscam de olhos ofuscados, arreganham a boca num mia do untuoso. s vezes, levantam a pata hesitante para uma borboleta que se inclina. Depois, saltam cautelosos, sem se magoarem nas pedras, sem amassarem as flores, e reclinam-se numa sombra, e sonham com o tempo em que eram tigres. Dias depois, aparecem estendidos no fundo do quintal, com muitas moscas p or cima, e formigas em volta. Seu plo no brilha mais como um fino veludo. Tudo por que a mo de um menino arrojou uma pedra: tm a cabea amassada, e um olho para fora. O balano range, mas o ramo no verga. O rosto passa, ora na sombra, ora no s ol. Um cheiro de umidade e de luz. Orvalho por cima das violetas. Lesmas por bai xo das folhas. Fogem lagartixas pelos tijolos. Uma cigarra desabrocha fogo, de r epente, sobre a resina dos cajueiros. Passam borboletas brancas, em grupos: ramo s de flores voando. E, de longe, cansadinho e calado, chega o burro do carvo, chega o burro da gua.. . O aguadeiro sopra na buzina de chifre. O animal espera. Ningum compra? Des cem pela outra rua, com a pipa sacudida pelo declive do caminho. O carvoeiro grita umas duas vezes com a sua voz do mato: "Eh! carvo!... Ca rvoeiro?" As criadinhas chamam por ele, risonhas, das varandas. E o burro espera , amarrado numa rvore, mascando um capinzinho dali de perto, ou sacudindo a campa inha do pescoo com um ar to discreto que no se sabe se ela lhe agrada ou desagrada. s vezes, pem-lhe flores de papel encarnado e cor-de-rosa nas orelhas. Talvez no d ia de aniversrio. . . OLHINHOS DE GATO tem vontade de beij-lo, de passar-lhe a mo p elo focinho. Os olhos so mansos e bonitos. Mas os dentes so to grandes, to grandes, e a narina se move de um modo to singular! O cavalo do soldado tambm passa por ali de vez em quando, com a cauda amar rada, e o plo lustroso. Mas o burrinho outra coisa. O burrinho v-se logo que gente encantada. Mesmo assim como burro, parece-se imensamente com uma menina de tran cinhas duras, com fitas vermelhas, que pula corda todas as tardes embaixo da man gueira. Parece-se com a Edwiges, que engoma roupa de noite, num poro vazio, com u m candeeiro de querosene. Parece-se com a Paulina, que amassa os pastis, em dias de festa, e com a Lusa, que quem sabe mais histrias de lobisomem e almas do outro mundo. Ah! o burrinho, mesmo sem as flores, muito mais bonito que o cavalo, e ma is bondoso. Se no fossem tantos arreios, certamente se sentaria para contar histri as. O cavalo para voar para longe, por cima das casas e das montanhas. Para leva r os noivos e os mortos. Os cascos dos cavalos quase no pousam no cho. E quando po usam, fazem fogo. E os burrinhos morrero tambm? tarde, o papagaio d para falar. "D c o p, meu louro?" Depois, entusiasma-se: "Papagaio real, para Portugal, quem passa, meu louro? o rei que vai caa. Toca a trombeta e passa: T-t-r-t.....t-t!" Seus olhos encarnados alargam-se e encolhem-se. Vira para um lado, vira p ara o outro, morde as vasilhas de lata, sacode a corrente do p, roa o bico no pole iro, roda a cabea para mirar as pessoas, e faz-se de engraado: "Currupaco, papaco, a mulher do macaco caiu no buraco! Papagaio?" Fica num p s. Fecha os olhos. Ensaia todas as variaes da sua pobre vida. Nem para dormir sai dali. Sempre naquele pedacinho de poleiro. Triste coisa. De repe nte, deve sentir-se aborrecido: grita para longe: Rrrrrrrr........! Rrrrrrrr........! Por quem que ele chama, coitado? Que que ele quer? Onde que est? Do-lhe gua fresca. Engrola umas outras coisas. Mergulha o bico pontudo no c omedouro. Corvoca, dentro do bico, a sua grossa lngua preta, como um bicho. Para distra-lo, a menina inventa lev-lo a passeio no dedo. Anda com ele a p asseio at em cima do ombro. S ela. E todo o mundo se assombra daquilo. Parece que at o prprio papagaio. . . E ela, tambm. No jardim do doutor, os paves soltam longas exclamaes melanclicas, sopros de cinza nos lugares dourados da tarde. Depois, as pombas fartas voam com as lisas penas cheias de segredo e graa. Pousam na bola azul do telhado, murmuram, escondem-se. Vo para um mundo de ternu ra. Todos os beijos esto dentro de suas asas. Ouve-se de longe seu rumor de fonte veludosa: to morno, to manso! Um pouco de vento sobe tambm, para dormir nas rvores. As folhas deixam-no p assar. As cigarras estremecem. Os passarinhos abrem ainda os olhos. Os grandes ce s da chcara ladram para os muros, para os portes, para as janelas, para a lua. Est aro vendo os mortos? Sua voz de pedra. De oco de pedra. De escurido. Os grilos sacodem campainhas de ouro por dentro das paredes. Esta cama j est ficando muito pequena. Faz mal dormir assim de pernas encol hidas. . . Puxam o filo do cortinado. Um mosquito fica zunindo, do lado de fora, ras gando fios de ar com as asas. Quase adormecido, o dedo da menina caminha pela parede assim: Ela mesma no sabe como foi: ela descobriu com surpresa uma coisa que no ac aba. E dorme tranqila, com esse descobrimento. A vida pobre, o tempo triste, mas a msica embala os dias, desde manh at a no ite. Maria Maruca escorre o caf e de palha, mas ela gosta de soprar palha cinza. Abre a torneira em cima Os passarinhos piam com fome. ferve o leite no fogareiro de carvo. H um abano com a boca; incha as bochechas lustrosas e es da loua, arruma as colheres nos pires. Piam os pintinhos. H um alvoroo no galinheiro. Boquinha de Doce cuida dessas coisas. E Maria Maruca, assim to cedo, j cantarola : "Eu tenho uma namorada que mesmo uma papa-fina, l na praa do mercado digo logo: preta-mina!" E botando a mesa, requebra-se: "Laranja, banana, ma, cambuc, eu tenho de graa, que a preta me d!" Ameaa OLHINHOS DE GATO com um cabo de colher: "E Acugel! E Acubab!" Depois diz sem msica: Minha rica brasileirinha, tu andas muito amarela. Queres po com queijo? Q ueres po com banana? Queres mingau de fosfatina? Precisas comer, se no bates a bot a, como os outros! E adeus, minhas encomendas! Na verdade, a menina sentava-se mesa com indiferena. Boquinha de Doce dizi a-lhe: Vou fazer-te sopinhas de po! to bom, to bom! To branquinho! Vem ver! Cortava o po, espalhava o acar, derramava o leite. To difcil que era comer aqu ilo, meu Deus! Maria Maruca j estava lavando roupa l fora, com outra cantiga: "Eu no sei o que te diga, rapariga, quando vejo o teu olhar... Tua boca escancarada, perfumada, tem perfumes de matar! Assim, como te adoro, como te choro, na minha dor, contigo viver quisera, primavera do meu amor!" E como a menina aparecia, perguntava-lhe: Ento, j comeste? Comeste tudo? E em sinal de contentamento, bailava descala, com os ps vermelhos no cimento molhado : "Olha o bailarino, baila quem quiser! Quem no esfolha milho nunca tem mulher!" Por entre essas msicas e cantigas, passam os gatos, os pintos, as galinhas , as bonecas quebradas, os tamancos, os pianos mudos, e a cara admirada de OLHIN HOS DE GATO, mastigando um resto de po. Passam tambm outras msicas. Dentinho de Arroz, com voz baixinha, uma voz forrada de flanela, murmura limpando os mveis: "Si j vivamos todo' na 'pulncia, temo' ago' a mais esta vantag'...d'spera' no pont' da pacienc' paga' 's trezento' da passag'... Duzento' rs quanto cust' uma passag'... A portinhola dos bilhete' semp' aberta..." Quanto a Boquinha de Doce, sua tesoura range o dia inteiro por cima da me sa, cortando corpinhos, blusas, aventais. Os olhos da menina ficam rentinhos ao pano. O cheiro do morim, as figuras coloridas que vm coladas s peas, andam pertinho do seu rosto. Boquinha de Doce est sempre com medo de espet-la com a tesoura. "Ti ra-me esses olhinhos da!" E continua a cantar, mas baixinho e triste: "Quisera amar-te, mas no posso, Elvira, porque gelado sinto o peito meu, no me crimines, que no sou culpado, amor no mundo para mim morreu." Com uma outra msica tambm vagarosa e melanclica costumava cantar, cosendo: "Meu arvoredo sombrio, no digas que eu aqui vim, no quero que o meu bem saiba partes nem novas de mim..." A agulha entra e sai do pano, e faz um tlic-tlic no dedal. Se a mquina rod a, ento o rumor do pedal amassa a msica e as palavras da cantiga. Assim se passam os dias. Amanhece. Entardece. A vida pobre, o tempo trist e. . . Conforme a lua, deitam-se galinhas, e num dia previsto e infalvel, nascem pintos que Boquinha de Doce ajuda a retirar das cascas, formas midas e moles, enr oladas em si mesmas, e que ela facilmente desenrola e anima, falando num sorriso : "Vamos nascer que j hora!" E eles dizem que sim, com um claro biquinho novo, co r de milho tenro, e da a dias povoam a rea, querem descer pela escada, piam de med o, fazem intervir a galinha raivosa que ameaa as folhas duras, as formigas, os ca racis... O galo marcha de perneiras e chapu de galo. As outras galinhas passeiam di stradas, cantarolando tambm suas cantigas. . . Escurece. Dentinho de Arroz senta-se na esteira, conta histrias menina, ou tras vezes canta: " sombra frondosa de enorme mangueira, coberta de flores, da tarde ao cair. . ." to bonito, meu Deus! Vem-se os vaga-lumes passar pelas rvores. Todos esto mui to cansados. Deitam-se cedo. Alta noite, porm, acontece passarem cantores que acordam a rua toda. Abrem -se janelas. Gente apressada vem para o luar ver a serenata. Ouvem-se rir as neg rinhas, mal acordadas. Dentinho de Arroz tambm vai ver. E sossega a menina, que d esperta inquieta: So os violes! Embrulha-a no lenol, e tira-a da cama. Os violes descem a rua, misturando a msica e os passos nas pedras. As janel as fecham-se. O mundo inteiro encanta-se de novo no sono. Mas a menina descobre, maravilhada, que se pode estar acordado no meio da noite, que o mundo no se acab a, enquanto se dorme! V a lua boiando por cima das rvores. Sorri para a frescura d o ar. E torna a inclinar-se sobre o geral esquecimento. Numa noite assim, descobrir nuvens brancas partindo em largas e tnues carav anas de um lado para o outro do cu. Vo apressadas: sente-se o vento bater nelas co mo um fino, mudo, invisvel chicote. Para onde? Para onde? Multido area, multido de gigantes envoltos em seus brancos vestidos cheios de curvas, atravessando as altu ras da noite, por cima das ruas desertas, das casas fechadas, das rvores cujos br aos levantados nada podem fazer, para aquela distncia duros braos, frios, tristes, todos cobertos de flores, e sem poderem socorrer. . . Ah! mas ento nem as nuvens descansam! H uma continuidade de vida por dentro da noite, quando se est de olhos fechados e de corpo insensvel! H fugas, suspiros. . . pode haver lgrimas. Pode haver mortes! Nos dias de chuva, tudo se rene numa intimidade comovente. Recolhe-se a ga iola do pssaro, muda-se o papagaio de lugar. A galinha fica num canto da cozinha, amarrada pelo p, e os pintinhos sobem-lhe e descem-lhe pelas costas. Os gatos de itam-se nas cadeiras, embaixo da mesa, escondem-se por perto do fogo, na sombra e no morno. Todos esses bichos olham-se entre si, olham para as pessoas, como uma s famlia. H uma tal naturalidade no encontro dessas vidas que todos parecem compre endidos e tranqilos. Certamente, por isso que no falam. Quer dizer, o papagaio fal a mas s para brincar. O que ele gostaria mesmo de dizer, ah! no, isso ele no diz. I sso ele engrola baixinho, na lngua, curvando na pata preta a sua cabea verde, com uma luazinha amarela, e outra encarnada. A estrelinha ruiva dos seus olhos palpita docemente, longe, longe meu Deu s! nessa lonjura por onde passam todas as estrelas. . . Tambm por essa lonjura zune o vento, frio e triste. Ali perto, apenas estr emece a franja de uma toalha, algum pano estendido. A chuva contnua sussurra nos telheiros de zinco. Roda a mquina de costura. A coisa mais linda do mundo ver encher a bobina de linha: fffffff..... vai-se enrolando o fio no longo carretel, docemente, doce mente. De sbito, os metais resvalam, ouve-se um fino silvo: zzz. est pronto. A mo recolhe-o com ternura. Parece uma cigarra, um inseto sonoro, de asas fechadas. Maria Maruca anda na cozinha e fala com os pintos. Ouve-se o gluglu da so pa, que ferve, pesada de legumes. Gritam cheiros de alho e cebola. Em cima da me sa esfria o tacho de doce de goiaba. E o vidro das compoteiras brilha e rebrilha , muito lavado, posto a escorrer sobre um pano muito branco. E escurece to cedo! At o papagaio j tem sono, e fecha os olhos, encolhido. O vento d nas luzes, e quase que as apaga, a cada instante. As sombras movem-se pe las paredes, e enchem a casa de muita gente. OLHINHOS DE GATO tem um copinho dourado. Tem um talher pequenino. Tem uma cadeira alta. Devagar com o andoire, que o santo de bidro! Maria Maruca entra com o jan tar. Dentinho de Arroz d-lhe a sopa, corta-lhe a carne. Espalha a comida no pr ato, para esfriar mais depressa. E conta-lhe histrias, para ela comer com mais vo ntade. Quando os prncipes chegam e os anes danam, a menina pra de mastigar. bonito, mesmo! Depois continua a comer. Os cavalos de casco de ouro esto parados porta. O rei com a sua coroa vem saindo do corredor. . . Depois do jantar, distraem-na para que no adormea. Continuam a andar em red or dela personagens extraordinrios: Boquinha de Doce fala-lhe da menina que tinha uma estrela de prata na testa. (Ela passa a mo pela sua. . . No, no ela.) Bate-lhe as mozinhas, uma na outra, murmurando: "Palminhas, meu bem, palminhas, para quando Papai vier. Papai h de dar beijinhos, Mame, sopinhas de mel. ..." Mas, s vezes, h uns silncios que nada enchem. Que se alargam pela casa toda. Boquinha de Doce fica de olhos muito perdidos. Muito longe. Mais longe que a pa rede. Que a escada. Que o quintal. Para onde olha Boquinha de Doce? A menina se levanta, e pe-se diante dela, procurando os seus olhos. Ento, ela os enxuga mansam ente na ponta da blusa. E continuam a brincar. Vem Dentinho de Arroz, leva-a para a esteira. Uma esteira onde h figuras d e santos, costuras, bruxas de pano. . . E que o gato arranha com suas unhas de lua crescente. Brotam as histrias de lobisomem, de saci-perer,de mulas-sem-cabea, de palcios mergulhados no mar. OLHINHOS DE GATO pergunta, a cada instante: "Mas isso verdade mesmo?" , sim. Mas foi h muito tempo. . . Agora, no h mais... Os macacos falavam. . . Todos os animais falavam. . . Eram gente. Nosso Senhor pediu um copo d'gua ao ga to, o gato foi, e cuspiu dentro. Pediu ao cachorro, e o cachorro veio e lavou o copo bem lavadinho, com gua e sabo. . . Por isso o cachorro e o gato ficaram inimi gos. Nosso Senhor brigou com o gato, e ele ficou com sete flegos. Para custar mai s a morrer! Dentinho de Arroz conhece todos os bichos e as suas histrias. O que eles foram antes, e o que vo ser depois. Viu a Arca de No. Era muito grande. Maior que aquela sala? Maior. Maior que o quintal? Maior. Do tamanho da rua? Devia ser do tamanho da rua. Que grande! OLHINHOS DE GATO sente de verdade os animais sarem da palma da sua mo, quan do Dentinho de Arroz pergunta: "Cad o toucinho que estava aqui?" e que ela mesma responde com outra voz: "O gato comeu." "E cad o gato?. . ." "E cad o boi?..." "E cad a galinha?..." OLHINHOS DE GATO sente os bichos correrem dentro dos seus olhos, quando D entinho de Arroz lhe pergunta: "Teu pai foi caa? Diga: Foi." (Foi.) "Que foi que ele caou? Diga: Um veado." (Um veado. . .) "Teve medo? Diga: No." (No...) "fffffff. . ." Haveria algum que no piscasse com aquele sopro nas pestanas? OLHINHOS DE GATO dava uma gargalhada que fazia Boquinha de Doce dizer, l de dentro: "Benza-te Deu s!" Dentinho de Arroz fazia-lhe ccegas pelas costelas. . . E a est: suas mos eram brinquedo, seus olhos eram brinquedo, seus ps eram bri nquedo, tambm: "P de pilo, carne-seca com feijo! Uma, duas angolinhas, finca o p na pampolinha. O rapaz que jogo faz? ............................ " E depois: "P de pilo!..." O calcanhar batia na O ouro dos santos brilhava. criana ria-se, no meio do s oraes, para rir tambm. a toda! esteira: pum, pum. . . Que coisa engraada, meu Deus! . . A chuva era doce. A luz triste. . . "P de pilo!" A mundo. . . E Boquinha de Doce, ao longe, interrompia a Porque nesse tempo era assim: seu riso repercutia pela casPor muito, porm, que haja cantigas, por muito que s vezes se ria, h coisas q ue esto ali, coisas tristes de ver. Na beira do tanque, pousam vasos de barro, com alecrim, manjerico, tinhore s. Orvalham-se diariamente. "De manh e de tarde!" Mas no passam daquilo. "Eu no sei si do sol. . ." resmunga Maria Maruca. "Ser algum bicho que pisa em cima?" Revir a o beio e acrescenta: "Ser o mafarrico?" Na mesma beira de tanque est pousado o vaso com o craveiro. Vaso de folhas hirtas, onde sempre se espera e nunca vem uma flor. A menina olha, pensativa. H brilhos de ouro, no barro de ardente cor. Formigas raivas. E as folhas hirtas. M ais nada. L embaixo despontam, de vez em quando, algumas violetas, num resto duro de canteiro. Mas to pequeninas, to plidas, como se j nascessem murchas. H uma espcie de nvoa sobre o manac, pequeno e ressequido, cujos galhos tortos no aumentam, cuja folhagem no se colore de folhas. Plantado pelo teu av. . . H roseiras. Mas s com espinhos. At as folhas vo minguando, crespas e velhas.Uma videira sobe enlatada, forma um toldo de folhas, moles e largas. Mas no quer frutificar. A casca das goiabeiras desprega-se em lminas, como de papel tostado. As ab elhas e os besouros danam ao sol, por cima dela. As formigas percorrem-na em file iras interminveis. Mas as flores so raras. Desmancham-se toa, com o balanar de um r amo, com a passagem do vento. . . Uma vez ou outra, descobre-se uma fruta, que c usta a crescer. Quando amadurece, enche-se toda de bichos. Os mamoeiros desprendem folhas amarelas e enormes, que caem do alto, ines peradamente, como guarda-sis. Olham para o abacateiro, j bem grande, e dizem: "Tem a sua idade!" Mostram o cajueiro, cuja flor se desfaz nos dedos, cuja resina escorre em lgrimas de mel : "Aqui embaixo, teu av morreu." Os abios rolam podres, franzidos e pardos, do alto dos galhos. E as laranjeiras quem as queimou? Tm uma folhagem dura e cinzenta, uma fol hagem de zinco. S os espinhos prosperam: enormes, pontiagudos, e aduncos como os espores dos gaios. Se uma flor, porm, se aventura, branca e perfumosa, por essa rvo re triste uma festa em redor: abelhas, besouros e borboletas danam com delcia no m eio da devastao. Debruam-se na cerca, rubros e oscilantes, os brincos-de-rainha. Mas a cerc a to velha! Vm as enxurradas, levam os paus. Conserta-se. Tornam a ir. Sempre assi m. Havia ali um pessegueiro murmuram. Olha-se, e apenas se vem pedras, uma r oda de pedras segurando a terra em declive. Por que tudo to triste? Por que mais triste, tudo, de repente? Esto passand o nuvens pelo alto do cu? No. O cu azul, e brilha o sol. Havia aqui uma horta. . . E agora s se encontra algum p de couve, para o passarinho, ou um tomateiro manchado de ferragem, e amarrado nuns espeques. Gordas lagartas rastejam pelos c aules. midos caracis deslizam. quase sem esperana que a gua do regador borrifa essas pequenas coisas. . .Tudo isso lembra, por contraste, um outro tempo, de que se fala em voz ba ixa. As mos do Av andavam por ali, entre folhas e flores. As mos do Av andavam rente terra, dentro das paredes, por cima dos muros. As mos do Avo pousavam no corrimo da escada, enrolavam as trepadeiras nas cercas. Os pssaros comiam nessas mos. Os ce s lambiam-nas. Das mos do Av saam casas, saam rvores. As mos do Av andavam no ar, em t da a roda, tomando conta de tudo. Elas sabiam fazer msica, tambm, nas cordas daque la guitarra, sombra fresca do quintal, perto do tanque verde onde as liblulas bei jam os musgos. Recorda-se disso aquela tremura redonda da gua? Os ps do Av tinham pisado longamente aquela terra. E atrs dele, o grande co, silencioso, parava ou seguia, continuando o seu dono. Um dia, o corpo inteiro do Av deixou-se cair para ali, debaixo do imenso c ajueiro, de onde o vento desprendia doces frutos, cheirosos e moles, e onde as c igarras afiavam seu canto nas cordas de ouro da resina. J no existia mais o co, seu companheiro, que o tocasse, que o sentisse, que anunciasse para longe o sbito acabamento do seu dono. Era um homem sozinho, entre as rvores. E ali ficou. Sozinhos, seus olhos s e fecharam rente s pedras. Suas mos esfriaram, sem ningum, no barro, sobre as folha s secas, perto dos caroos de fruta, das conchas quebradas, das formigas andarilha s que, apenas, talvez, mudaram um pouco o itinerrio. Seu corpo caiu sobre a terra, como rvore dentre as rvores. Sua boca morreu no cho, como fruto dentre os frutos. Como era o rosto dele? a menina perguntava. Mas disseram-lhe que nunca tirara o retrato. (PARA NO MORRER.) Um dia, porm, tudo comeou a mudar. Vinham pessoas. Conversavam por baixo das rvores: "Por aqui, pode passar u m rego-d'gua. Ali, pem-se umas pedras. . . A terra como a gente precisa de trato e de amor." Serraram galhos, pintaram troncos. Cavaram o cho. Revolveram a terra.O homem risonho, de olhos cor de folha e mos grossas de tijolo, chegou sob raando plantas novas. Com que graa ela o via manejar o seu canivete, prender galho s postios nas rvores, e dizer-lhe com umas palavras que cheiravam muito a fumo: "D aqui que vai nascer uma laranjinha doce para voc chupar!" As crianas da rua queriam ver, tambm. Metiam os olhos por entre a cerca, ag arradas s outras... Os vizinhos perguntavam o que havia. Davam idias. "Eu, se foss e a senhora..." Alguns diziam para os homens: "Se eu fosse vossemec..." E contemp lavam. Nessa contemplao, o que havia era, principalmente, expectativa. "Nasceria m esmo alguma coisa? Seria possvel?" Maria Maruca, diante de uma cova aberta, teve uma brusca inspirao. Agarrou a menina, levantou-a nos ares para met-la dentro. " agora! Vou-te enterrar!" Boqui nha de Doce abriu os braos, desesperada. Maria Maruca ria-se: "Ora, eu estava bri ncando!" Mas a voz de Boquinha de Doce tremia, no quintal aberto: "Fazer isso co m a criancinha! Que lembrana! Tanto trabalho para a criar! e, de repente..." Mas a menina, na verdade, achara graa, e, puxando-lhe a saia, pedia a Mari a Maruca: "Me planta. . . Me planta de novo..." Devia ser bom ser plantada naque la terra morna e cheirosa, e ir crescendo, toda verde. . . cheia de flores. . . O cho ficou mais escuro e fofo. Parecia um outro lugar. Como quem estivess e viajando, e encontrasse stios diferentes. . . Andava um cheiro bom, de barro mo lhado, at dentro de casa. Era como depois das tempestades, quando aparece o arco-r is. Naquela quadra de fervor agrcola, a menina semeou tambm caroos de feijo e de milho. E como tinha pressa de verificar o milagre, desenterrava-os todos os dias diziam-lhe. "Essas coisas so segredo." , com o maior carinho. "Olhando, no nasce" Ento, ela percebeu que havia foras ocultas, inviolveis. Era como acontecia com ela, quando se punha a chupar frutas. Maria Maruca exclamava: "Ests te regalando, hei n?" E logo Boquinha de Doce murmurava: "No se deve olhar, nem falar, em certas oc asies. Mesmo sem querer, se d quebranto." E acrescentava-lhe baixinho: "Come, para ficares grande." E os dias passaram. E os caroos enterrados pela menina tomaram estranhas f ormas debaixo do cho. E ela acreditou no mistrio da terra, e deixou-os sozinhos, e viu aparecer, afinal, o corpo sinuoso das plantas, verde e limpo, sado do barro e da gua. E tambm, de certo modo, da sua mo. . . Ficou muito tempo de joelhos, mira ndo pensativa as folhas to leves que at a sua respirao as abanava. . . E esse pequeno milagre se reproduziu largamente: dos troncos rugosos e tr istes, de rvores escuras e secas, brotaram galhos viosos, que causavam estranheza, como braos novos nascendo em ombros de velhos. Com uma grande atividade, subiam e desciam as formigas pelos muros; e as abelhas rondavam, procurando, perguntando, chamando pelas flores. At que as flore s vieram, afinal, entre as folhas envernizadas, que o sol fazia brilhar na sua c or de pintura fresca. Longamente cantaram as cigarras. Os passarinhos instalaram-se nos ramos a ltos. E at morcegos apareceram, ao entardecer. Os vizinhos paravam, de novo, e convenciam-se, admirados. O homem risonho, de olhos de folha, ainda esfarelava, s vezes, a casca de um galho, soprava algum bichinho da ponta de um ramo, calcava a terra com o p, em certos lugares. E ria-se, apontando uma flor que desabrochava. Era de tal espcie , o seu riso, que os seus olhos se enchiam de orvalho. Ento, a menina sentia brisa e sol por dentro de si. Saltava pelas pedras, abraava-se s rvores. Tudo renascera! Tudo renascia! Boquinha de Doce, de mos postas, parava no alto da sacada, olhando. A menina considerava-a de longe, com pensame ntos indeterminados, mas que exprimiam esta emoo: "Ela imortal!" Tiraram o balano, para concertar a goiabeira. E a goiabeira transformou-se toda. Como era torta, sustentaram-na com paus. Como tinha pedaos podres, cortara m-lhe muitos galhos. Como estava com as razes de fora, chegaram-lhe mais terra. E quando as flores surgiram com duras ptalas de mrmore, e no meio uma fina penugem cheia de plen. . . ah! Boquinha de Doce passava a mo pela casca do tronco, alisava alguma folha mais grossa, e amorosamente falava: "Estavas to velhinha. . . to mal tratada. . . Pobre de ti! Mas agora vai ser melhor. Sofreste um pouco, mas vai ser melhor!" E falava para o abacateiro novo: "E tu, quando que dars flor, tambm?" Virava-se para a menina, e acrescentava: " da tua idade." E, embora ela no a fize sse, a menina ouvia o resto da pergunta: "Quando que dars flor, tambm?" Pois at a parreira, com suas hastes ressequidas e suas preguiosas folhas, d esenrolou pmpanos verdes e cidos; e esqueletos de cachos armaram um frgil desenho d e prolas verdes por cima da sebe. Maria Maruca descobriu as primeiras goiabas. "Ah! estas, sim..." Descobri a os cajus nascentes. Descobria os mames, amontoando-se. Os vizinhos queriam comprar frutas. Vinha gente de longe, para busc-las. B atiam palmas. Ia-se ver, e mulheres desconhecidas falavam com Maria Maruca: Queria saber se a moa dava uns cajus daqueles. . . ou vendia. . . Minha i rm passou por aqui, e ficou com um tamanho desejo. Coitada, ela est para cada hora . .. Maria Maruca ia dar, mas voltava de mau humor, e resmungava consigo, toda suada: "Para cada hora. . . Para cada hora. . . No podem ver nada dos outros! Cr uzes! Credo! Que esganao!" Vinha mesmo um velhote de barbicha, vinha de longe, de longe, com um saco embaixo do brao, para comprar abios. Trepava na rvore, enchia-se de fruta, depois descia farto, e com o saco cheio. Enrolava um cigarro de palha. Punha-se a cont ar, formando montes. Contava de dez em dez. Jogava para o lado a fruta estragada . Depois perguntava: "Cad s dona? pr'ela vim conta. . ." Os garotos da rua ficavam pedindo fruta. Metiam por baixo do porto as mos sujas, pretas, mulatas, com unhas lascadas, com perebas nos dedos. "Dou?" perguntava Maria Maruca. Mas perguntava sem carinho. Para acabar com aquela choradeira. E Boquinha de Doce respondia pa ciente: "So crianas, coitadinhos... E so pobres. .. Nunca se recusa a quem pede. .." Maria Maruca ia-se embora, apanhava a fruta, resmungava: "A mim, nunca me der am nada..." Por fim, a rua toda entendia de abastecer-se ali. Faz favor de me dizer se aquele mamoeiro macho ou fmea? L ia Maria Maruca perguntar. No macho, no. Ah! que pena. . . que eu precisava fazer um xarope. . . Quando a velha se retirava, ela abria numa risada: Graas a Deus, que no macho! A qualquer hora da noite ou do dia, batiam palmas, com a maior naturalida de: Faz favor de me dar umas raspas de cajueiro? Faz favor de me dar umas folhinhas de abacate? A senhora tem sabugueiro? tem pitanga? Faz favor de me dar umas folhinhas de laranja-da-terra? A turca do bazar descobriu a parreira viosa, e veio buscar umas folhas par a fazer trouxinhas de arroz. Esses carcamanos tm cada comida! exclamava Maria Maruca. No, na turca ela achava graa. Quando a via subir a rua, dizia assim: "Olha s a perninha torta que ela tem!" Uns vieram procurar tansagem para feridas, outros, erva-de-santa-maria pa ra doenas do peito, galhinhos de arruda para benzer espinhela cada. L num canto, Dentinho de Arroz descobriu caruru. Deu para nascer tambm beld roega. E, pela sombra, havia trevos, muitos trevos, de to linda cor, de to fina se da. . . "Os de quatro folhas do felicidade" dizia Maria Maruca, dizia Dentinho de Arroz, dizia a velha Quinca, parando na subida, com o seu livro de missa na mo. A menina, ajoelhada, procurava o trevo miraculoso, folha por folha, descobrindo as formigas que viajavam sob aquele toldo to suave. Mas, de quatro folhas, nunca encontrou nenhum. Depois de descobrir o nascimento de cada fruta, Maria Maruca fez um mais sensacional descobrimento: a terra estava dando ouro. "Esto pensando que mentira? " Ela foi cavar na barreira, para encher as latas dos craveiros, e encontrou o ouro, saindo toa. Primeiro, nem acreditou. Mas olhou, viu era ouro mesmo! Todos se riam. Ela alargava os olhos, deslumbrada e triste. "Mas era ouro ! Se ela at ficara com medo de bulir! Estava tudo brilhando, l embaixo. . . No quer iam acreditar! Pois ia buscar uns torres!" E desceu a escada a correr. Os outros continuavam rindo-se. OLHINHOS DE GATO, no. OLHINHOS DE GATO foi atrs dela, convencida. Tudo podia ser. OLHINHOS DE GA TO tambm no tinha dvida de que a terra pudesse estar dando ouro. to misteriosa, a te rra! Deviam ser os tesouros dos Reis e dos Feiticeiros de que Dentinho de Arroz tanto falava. Ningum sabia que estavam ali to perto! E, de repente tal qual nas hi strias Maria Maruca, sem querer, o encontrou. . . Foi atrs de Maria Maruca, e estacou diante da barreira de ouro. De ouro, s im. Ouro meio cor-de-rosa, certo. Mas ainda mais maravilhoso. Ouro encantado. Ah ! ela mesma ajudou a destacar, tambm, do duro barro, aquelas palhetas, com a pont a da unha embora machucassem um pouco, finas e cortantes como vidro.. . verdade que, na mo, aquele ouro desfalecia logo: tinha a transparncia das a sas das liblulas, das asas dos cupins, que caam, de noite, em redor da luz. Mas a barreira continuava a faiscar com suas paredes preciosas. . . Maria Maruca foi buscar uma colher de pedreiro: no queria quebrar aquelas lascas muito miudinho. Poderiam duvidar ainda. "Esto rindo dizia. Mas vo ver, s!... " Para convencer absolutamente, foi mesmo buscar uma enxada. Ela queria arranjar um grande bloco brilhante. Mas o ouro quebrava-se facilmente. Ouro prodigioso! Quanto mais se cavava, mais aparecia! Subiram a escada com as mos cheias daquelas palhetas cintilantes. OLHINHOS DE GATO sentia sua existncia ligada s histrias de fadas. No compreendia a estranhez a causada por aquele encontro. Pois no era to natural que o ouro surgisse ali? No c ompreendia, principalmente, que Dentinho de Arroz pudesse tambm ter dvidas. Ela, q ue sabia muito bem como um cavalo vira um prncipe, e sai um palcio do fundo do mar . . . Boquinha de Doce olhou para aquilo com um ar que era, ao mesmo tempo, de pena, de graa, de complacncia: "Isso malacacheta..." Como o nome? "Malacacheta..." OLHINHOS DE GATO olhou para as fascas que estavam na sua mo. "La-ma-ca-cheta!" Nome bonito, mas difcil. Difcil mesmo. "E bota-se fora?" insistia Maria Maruca. "Pois ento.. . re sponderam. "Ah!" Seu aspecto era uma coisa sem descrio. Foi por aqueles dias que apareceu a tia Totinha. Foi dessa vez que lhe le vou um pratinho novo para o mingau: pratinho amarelo, com um prncipe de casaca ro xa e uma princesa de vestido decotado. OLHINHOS DE GATO quis mostrar-lhe a monta nha de ouro para saber a sua opinio. Tia Totinha era muito sbia. Tocava piano e fa zia po-de-l. Ela pegou naquelas fascas com muito cuidado, e disse: "Vou levar, para os meninos brincarem." Ela era muito magra, muito branca, e parecia um pssaro. Em redor de seus o lhos, a pele ficava muito fina, e tornava-se azul. Usava uma gola alta, de barba tanas. Viam-se todos os ossos de suas mos. Mas OLHINHOS DE GATO gostava dela, do seu nariz, que parecia porcelana, do suave movimento do seu corpo muito fino. Levou s uns pedacinhos de malacacheta, mas falou com as raparigas que prec isava de um bocado grande de barro, para tirar manchas de querosene no assoalho. Depois, foi-se embora. Quando chegou esquina, voltou-se, para dizer adeus. Os b abados da sua saia arregaada desapareceram. E Boquinha de Doce murmurava como quem reza: "E esta senhora est to magra.. . to magra... Ir morrer, tambm? Ir tambm atrs dos outros?..." Maria Maruca observava: "Eu no sei por que : os prosas acabam sempre assim s em esqueleto. Acho que porque eles no comem, no ?" OLHINHOS DE GATO escutava uma e outra, olhando o prncipe dentro do prato. E via em redor aquelas mos to brancas e lustrosas, parecidas com as velas e com as teclas dos pianos. Assim polidas. Daquela cor. Maria Maruca no se desencantava do seu descobrimento. Parava diante da barreira, e achava impossvel.. . Queria, mesmo, chamar o homem do chumbo velho, para lhe vender todo aquele ouro. "Ningum acredita... dizia ela ... um dia ho de se ar repender. . ." O mundo era o terrao que a parreira enfeitava de sombras mveis o quintal qu e descia por ali abaixo, carregando suas rvores a rua que passava defronte, sem c asas, reduzida a um muro esboroado e as espessas frondes de mangueiras cor de br onze era o fundo das outras casas, com cordas de roupa, gatos andando e as outra s ruas mais longe telhados, vermelhos ou pretos, com chamins, clarabias, janelas d e stos torres das igrejas trens gasmetros palmeiras pedreiras morros e as mo : primeiro, verdes; depois, roxas; por fim, azuis... E as nuvens... E os pssaros. .. E a luz nascente... E aquele rumor humano que se ouvia, de alto a baixo... E o cu. Para alm de tudo isso, era Deus. Mas no era mais o mundo... Boquinha de Doce estava na sua janela. (As campainhas dos bondes tilinta vam, ao longe. . . Batia um sino, grave. Batia um outro, mais juvenil. . . Ia-se acabando, o sol...) Ora, as nuvenzinhas chegavam-se umas s outras, leves e brancas, franzindose numa espuma frgil. Depois, coloriam-se de ouro e de rosa. Depois desmanchavamse. Boquinha de Doce olhava-as e sorria. "As invenes de Deus!" dizia com ternura. Mas no era s das nuvens que falava: as plantas, as pessoas, as estrelas tudo eram invenes, tambm; outras invenes... Deus inventava, escondia-se. E a gente dava para go star de suas invenes e esquecia-se dele. Ah! mas s ele valia a pena. . . Iam procurlo nos livros, nos altares. . . como se ele pudesse estar num lugar certo.. . E falavam por ele! Como se por ele algum pudesse falar. . . Parava um pouco, ratificando-se: "A no ser, talvez, Jesus..." " Seus olhos cinzentos boiavam no tempo. . . "H quantos anos... Aquelas co isas... Ningum sabe..." Mas, se a lua surgia, considerava-lhe o aspecto e, caso fosse oportuno, p arava no caminho, ou detinha-se no sair da janela, para "salv-la". "Deus te salve, lua nova, no te vi sino agora. Deus te d boa clausura, a mim, boa formosura: que me cresa o meu cabelo at baixo da cintura." E a menina olhava, encantada. Encantada, porque ela dizia "luna". Maria Maruca ajuntava: "Ai quem me dera tambm uma trana bem comprida." E re petia com o nariz vermelho empinado para o cu: "Deus te salve, lua nova. " Mas nem sempre era assim. Vinham dias sem essas nuvens infantis. Sem essa transparente luz, como um partido aro de vidro. Grandes nuvens grossas subiam, subiam, em torno do mundo, e iam fechando-o. "As nuvens bebem gua no mar" explica va Maria Maruca. "Depois, vm regar a terra." E a menina olhava aqueles estranhos animais cinzentos, imensos, enchendo, enchendo seus ventres de numerosas curvas num mar que as casas no deixavam ver. E agora l vinham elas, to cheias que se fundiam umas nas outras, e ocupavam todo o cu, e faziam a escurido. Todos os pssaros voltavam, assustados. E at os pint inhos corriam, piando, procura de asa em que se escondessem. Um enorme susto par ava a respirao de tudo. Depois, l longe, uma onda ruiva se elevava, alta e esparsa, afogando rapidamente as torres. Dobravam-se as palmeiras, molemente, de um lado para o outro. Esfriava. A onda ruiva alastrava-se, acercava-se. J vinha chiando nas folhas secas do cho e nos ltimos ramos das rvores. Batiam portas, voavam latas, caam coisas. As negrinhas corriam a recolher a roupa da corda. E um grosso trovo principiava, enchia-se, rolava como uma pedra num precipcio, abalava o mundo, a casa, estremecia o corpo da gente por dentro. E ficava no ar um tremor de pssaro, um vibrar finssimo de grilos.Era um espetculo tal que a menina no resistia ao desejo de v-lo. Mas o vento lanava-lhe terra nos olhos e na boca. O vento enchia-lhe os ouvidos de um tumult o imenso casas carregadas pelos ares, navios virados, rvores arrancadas ELA MESMA levada por entre essas coisas perdidas para onde? para onde? e sem se poder aga rrar a nada, sem que ningum a puxasse cada para fora do mundo, pela fora do vento. Ento, vinha-lhe um pnico, uma necessidade de no ver, de no ouvir, de no saber que o vento estava ali e de gritar, de gritar muito, pedindo que o detivessem, q ue o parassem, que o mandassem embora. Criana nem homem, nunca ningum sofreu tanto, nunca ningum chorou to convulsam ente, por coisa perdida, por vida acabada como a menina aterrorizada com o poder destruidor do vento. E entre lgrimas, maiores que os seus olhos, viam-se os raios cair, velozes e claros ao longe, sobre as montanhas afogadas na sombra. Por que o cu fica assim preto.. . ? Edwiges interrompeu a reza: Num diga preto, menina. Um home que falo essa palavra, num dia assim, ve io o curisco, pego nele e deixo que nem carvo. (Pruqu preto "ele" o Canhoto. . .) A gente deve de diz: escuro. Outra rajada de vento matava perguntas e respostas. Nem Boquinha de Doce podia nada, no meio daquela estranha desordem? "L se vo as flores das rvores!" murmurou baixinho. "A laranjeirinha nova capaz de quebra r-se, com este vento..." "Os pintinhos recolheram-se todos?" OLHINHOS DE GATO sentia-a vigilante sobre as coisas l fora. S o seu pensame nto parecia ainda coisa firme e segura, no meio daquela confuso. "Pobrezinho de q uem anda em guas do mar..." e a menina sentia que ela no caminhava apenas pelo seu quintal, em pensamento, mas por cima de todas as vidas, como estendendo muitas mos para tudo que se encontrasse em perigo. E abraando a menina, Boquinha de Doce dizia, gravemente: "No chores, ouve: San Jernimo, Santa Brbara Virgem, l no cu est escrito, entre a cruz e a gua benta: Livrai-nos, Senhor, desta tormenta!" Maria Maruca aparecia desgrenhada: "Desta vez, vem o mundo abaixo!" Seria? A menina olhava para Boquinha de Doce. E Boquinha de D oce segredava-lhe: "No nada! Isto passa! No tenhas medo..." Um pingo d'gua no telheiro da cozinha. Outro pingo. Muitos pingos, ntidos, flores, como moedas tinindo. No telheiro da cozinha. No cimento. Nos tijolos do muro. Nos vidros. Na f olhagem. Muitos pingos. Tantos, que j nem se ouvem separadamente. Um cheiro acre de barro novo, de cho regado, de terra mida. Ah! um cheiro de alegria. O ar atravess ado de grossas linhas d'gua, entortadas com o vento. Ainda alguma lufada. O cu clareando. "San Jernimo, Santa Brbara Virgem..." Eu no te dizia? Os troves afastando-se, viajando para outros lugares. . . J se ouviam chiar as panelas de Maria Maruca. Edwiges dizia: "T bom, minha gente, eu j vou indo. . . O vento passo... Eu tinha medo que ele me levasse pelos ares; ou me virasse o guarda-chuva. . . T bom, gente, t tro dia. Cad a nenm? Adeusin ho, nenm. Benza-te Deus!" s vezes, ainda havia tempo para se formar o arco-ris, com todas as suas cor es. Maria Maruca chamava-o de "Arco-da-Velha" e perguntava sempre consigo: "De q ue ser aquilo?" Seu nariz empinado no ar, no conseguia entender nada. Apenas, ela ainda ac rescentava: "Na minha terra tambm havia um, igualzinho, que aparecia de vez em qu ando..." Os grilos, nas noites de chuva, enchem o quarto de uma festa de guizos. Ofilo do cortinado fica to friozinho! E a gua rola pelas pedras to docemente que, navegando-se pelo seu rumor, ch ega-se ao pas do sono sem medo nem dificuldade. Dentinho de Arroz, Dentinho de Arroz. Gente, mesmo? Ou boneca de pano? To macia. . . To silenciosa. . . Seus olhos negros olhos ou miangas? mornos, levemen te vesgos, destilando uma luz oleosa. Nvoa tnue de buo, pelo sorriso. Nvoa menos tnue de mgoa, no olhar. Diante do pequeno espelho, enganchado num prego, seu cabelo se alarga num a densa fronte, eriada e negra. Suas mos finas, da cor do jacarand, vo submetendo, e m calmos movimentos de trana, a espessa massa que o leo de coco ilumina de frisos metlicos. E quando o penteado termina, ento aparecem as pequenas orelhas, muito redo ndas, transpassadas por uma sutil argolinha de ouro. Seu sorriso forma duas covinhas na face. E sobre o lbio estremece um sinal zinho preto. Subir a ladeira sentada no seu ombro uma aventura como um passeio por cim a do vento, sentindo as pedras diminurem, e as estrelas e as nuvens aproximarem-s e. Descobre-se, pela janela gradeada dos pores, um mundo secreto, agitando-se. (U m mundo velhssimo, que ficou esquecido ali.) Descobre-se, na varanda, a ponta dos chinelos do general, na sua cadeira de balano. . . Brincar ao seu lado sair invisvel, e viajar por pases azuis e dourados, ond e os peixes conversam com as princesas, os pssaros puxam carros festivos, e as pa lavras, ditas trs vezes, formam e desfazem as pessoas e as coisas mais impossveis. Ela conhece (pessoalmente) o Rei, a Rainha, a Fada, a Bruxa, o Gigante e o Ano. Conhece mesmo muitssimas outras coisas, de que os outros no falam nem parece m ter notcia. Alm disso, sabe para onde voam os palcios, de que lado vm as feras, e em que lugar enterraram os tesouros. ( estranho que no acredite na barreira mgica d e Maria Maruca.) Tambm sabe do Saci-Perer, do Lobisomem e da Mula-sem-cabea. Mas disso quem s abe melhor, na verdade, a negrinha Lusa, que gosta de carne-seca com farofa, e co stuma trazer do subrbio cana-crioula, melado, "mariola de capote", pamonha e, s ve zes, moringuinhas de barro vermelho. Se OLHINHOS DE GATO lhe estende a mo para que lhe corte as unhas, revira o s olhos, e declara: "Hoje, no, que sexta-feira." Todas essas coisas pertencem a um mundo diferente. Mas mesmo neste mundo h coisas que s ela sabe ver e sabe contar. O trenzinho que vai passando ao longe, por exemplo: ela o acompanha com uma voz baixinha: "Tira terra, bota terra, tira terra, bota terra..." ( isso que o trem vai falando. . .) "Quer ver como ele ago E apitava mesmo. Sem estar vendo o trem, ela sabe por on ra vai apitar? : piuim!" de ele passa: "Agora chegou a So Francisco Xavier. . ." "Agora, parou..." "Agora, tornou a andar..." "Agora, a moa chegou janela. . ." "A moa disse adeus. . ." "A moa gosta do foguista." "Tira terra, bota terra... l vai ele. . ." "Quer ver como vai apitar de novo?" E apitava mesmo, outra vez. Algum mais sabia essas coisas, a lm de Dentinho de Arroz! Ningum. O sino, por exemplo. Os outros pensam que o sino bate. Pois no no. O sino canta uma cantiguinha. O sino diz assim: "Quem tem, d. Quem no tem no tem nada que d!" Na noite estrelada, embaixo da laranjeira florida, quando os vaga-lumes c aem na sombra como florezinhas de vidro, balbucia uma cantiga doce e triste: "Senhora SantAna, Senhor So Joaquim, na hora da morte, lembrai-vos de mim!"Como ficam bonitos seus olhos! Parece que esto cheios de flores de laranje ira. Ela veio de um lugar longe. De um lugar com igrejas e procisses. "Os boizinh os vo todos cobertos de rosas de papel. . . As criancinhas vestem-se de anjos: an jinhos pretos, com asas brancas..." Dentro dela h muitos sonhos claros: luas, vel as, vus, toalhas de renda.. . Mas a sua alegria tambm a banda de msica da praa, e os botes reluzentes das f ardas. Arrumando a casa, pergunta de repente: "Sabe como mazurca? assim." E comea a rodar num passinho mido, agarrada vassoura. "E sabe como chotis? " Pega na mo d a menina para trs e para a frente, e modula: "tar-rar-rar. . ." bom dormir sobre o seu peito, diferente dos outros. Uma curva diferente. E um outro cheiro. Encostada a ela, a menina pensa viajar para longe, para a roa, pelo mato, onde moram animais engraados, de nomes esquisitos: gambs, cangurus, ca xinguels que surgem dentre folhas densas, speras e de cheiro acre. Seus dedos tm uma doura boa. Quase no pousam: e a gente fica sentindo-os par a sempre! H o licoreiro azul, da boneca; h o pianinho de dez teclas; h muitas bonecas de celulide, de massa, de pano. Pois aqueles dedos passam por esse mundo como uns finos cavalinhos escuros, levantando as patas com graa, e pisando as flores pint adas nos vidros e nos panos, sem quebrar uma ptala. O quadrado branco do luar como um papel estendido no cho. Sobre esse terri trio claro e frio, ela inventa as histrias das fadas. As tbuas dissolvem-se, pelo s eu poder. O quadrado de luar muda-se em lago, muda-se em jardim, muda-se em paras o. O sono inclina para ele suas plantas, solta sobre ele seus barcos, mergulha n ele seus peixes vagarosos. . . "Pisei na pedra, a pedra balance ou. .. O mundo estava torto, Rainha endireito ou..." 3 E EXISTIA aquela rua! Antiga rua, larga e pobre, escancarada ao sol e s te mpestades. As guas da chuva cortavam-na de regos irregulares. Vinha o sol e arrancava misria daqueles sulcos profundos cheios de latas, papis, vidros, coisas perdidas um manso crescimento cintilante de ervas rasteiras. Alastrava-se o verde pelo ba rro acima. As lavadeiras estendiam ali lenis anilados, roupas numerosas de criana, saias brancas de babado e cadaros. As ceroulas, de pernas abertas, pareciam ainda homens dormindo ao sol. Conversavam vizinhas pelas varandas e pelas janelas. Desciam criadinhas para as compras danantes, nas perninhas finas, com um p ano pela cabea e uma cesta no brao. Chegava o verdureiro, cheirando a plantas e a terra, com as mos e os ps gro ssos e vermelhos, da mesma dura substncia das cenouras e beterrabas. Por entre as couves e as bananas, surgiam molhos de dlias brancas e amarelas e rseas e vermelh as, dlias fortes, carnudas, de onde caa uma sbita chuva de grande orvalho. O peixeiro trazia uma lata de gua para ir molhando os peixes, pelo caminho . (A menina pensava: "Ser que os peixes assim continuam vivos?") Ele era feio, spe ro, escuro, e usava um brinco. Maria Maruca chamava-o "carcamano", com uma risad a de desprezo. Mas o filho, ainda menino, que o acompanhava, tinha uns olhos to b onitos e uma boca to sria! Parecia uma figura dos livros. A pele do seu rosto era a de um pssego: dourada, com manchas incertas de carmim. E uma fina penugem, cont ra o sol. Cheirava, porm, de tal modo a maresia. . . Os gatos da rua miavam lamentosamente em redor dos cestos. H quanto tempo andariam aqueles gatos sem comer, meu Deus? Com uma grande faca na mo, o homem in sistia nos preos. Iria matar algum? s vezes saa sem vender nada. Boquinha de Doce mu rmurava atrs dele, franzindo um pouco as sobrancelhas: "Que grandissssimo teimoso!Tem palavra de rei!" Quanto ao comprador de ferro velho, usava palet de veludo, meio verde, mei o amarelo. Vinha de saco s costas, as pernas arqueadas, e gemia de vez em quando: "Tchumbo, metale, cama velha. . ." Parava, para gemer. Esgaravatava no cho, pens ando que tinha encontrado alguma coisa. Mas no tinha encontrado nada. Olhava para os ramos das rvores, para o vo dos pssaros. E continuava a subir. Suspirava entre os dentes uma cantiguinha. Nunca soube do ouro de Maria Maruca. Desaparecia no cu azul. Todos esses e o lixeiro, e o garrafeiro, e o laranjeira pareciam trabalha r duramente. Subiam a custo com a sua mercadoria ou o seu servio, e soltavam um g rito longo, anunciando-se. Pesado grito. O do amolador vinha da prpria roda de pe dra. Que silvo to alto! To alto, to duro, to veloz e to triste! Outros, porm, cortavam a calma da rua com uma graa arisca de cores e de voz es, e corria-se para v-los mesmo sem se comprar nada, tanto a sua presena era ric a e alegria. Certamente, no andavam por ali para vender o que traziam mas simples mente para enfeitar a vida: para que as crianas parassem de chorar; e os doentes, de sofrer; e os que estivessem cansados descansassem, e os que estivessem amarg urados pudessem, talvez, sorrir. O mascate batia com dois paus na mo. Dizia brandamente: " renda de linho!" e logo se via tremer no ar colorido o fio trmulo das rendas esgarando-se em arabes cos. Mas o dizer ainda no era nada. Trazia s costas, uns sobre os outros, vrios bas azuis, com flores cor-de-rosa. E punha-se a abri-los, pelas portas. Havia "sapan etes" em caixas excessivamente cheirosas, fitas brilhantes, de todas as cores, a lfinetes com cabea de vidro azul, em forma de passarinho; gaitas, assovios, flaut as de lata lustrosa, to lustrosa como o prprio som que desprendiam, e que fazia ap arecer todos os garotos da rua. As cartas de alfinete deixavam desdobrar-se lent amente o seu longo papel amarelo: parecia uma escala, cujos degraus fossem caind o. As negrinhas aspiravam com delcia o vidrinho de extrato; miravam extasiadas os espelhinhos de encostar, com rosas e jasmins pintados no vidro, e enterravam na carapinha s pra expriment as travessas de celulide, com pinturinhas de ouro e de p rata. Boquinha de Doce verificava gravemente os metros de cadaro para as saias e calas; e o nmero de botes para os corpinhos. Escolhia, calada, rendas e bordados, meditando sobre os desenhos. E mostrava a OLHINHOS DE GATO: "Olha a florzinha b onita!" "Olha o elefante com a sua tromba!" Os bordados, as rendas, o ponto russo tinham, para a menina, uma secreta magia. Podiam repetir-se interminavelmente, figura sobre figura. No acabavam nunc a. Sempre, depois de uma flor, podia vir outra flor. Sempre, depois de um elefan te, outro elefante... E ela pensava no nmero com uma intraduzvel esperana. H coisas, ento, que no acabam? H coisas que no morrem. . . Pode ser? o nmero que mata a morte. Sempre que se acrescenta mais um, o que no tinha parado continua. Na verdade, as sim no h fim. Oh! isso j estava no desenho inventado pela sua mo, e que ela repetia com o s lpis nos papis, e a ponta do dedo nas paredes: O moleque da cana e o do puxa-puxa, decididamente, brincavam apenas de ve nder. Um parava na esquina: reco-reco-reco. . . Outro descia a ladeira, saltitan do duas varinhas no ba do doce: tirique-tique, tique-tique, tique-tique. . . Muito longe, o da pamonha gritava molemente, fanhosamente, como um pssaro esquisito: "Eeeeeh. . . pamonha ..." "Oi o pamonheir!..." Mas o moleque das balas, carregado de cartuchos cnicos, com uma etiqueta d e papel lustroso que, pela cor, indicava a natureza do contedo esse, segurando a armao redonda em que os cartuchos se apinhavam, concntricos, ainda cantava, com a o utra mo em concha sobre a boca, requebrando o corpo, por um cruzar e descruzar do s ps: "Bala de ovo, altia, chocolate, hortel-pimenta, iai. . .!"Em certos dias aos domingos, talvez trazia imensas redes de papel fino, v ivamente colorido, cheias de balas enfeitadas de franjas, de crespos trabalhados a tesoura, e com pedacinhos de papel dourado. Que riqueza! As crianas andavam em redor, de mos para trs, deslumbradas com aquele esplendor. Com uma roupa to branca que doa na vista, chegava o angueiro, de cavalete e mbaixo do brao, com um surdo anncio muito grave: "Ongu!" (Trs ou quatro passos, de chinelo arrastado.) "Oi u ongro?" A mercadoria vinha atrs, num tabuleiro, em grandes paneles enrolados em pan os brancos, transportada por um pretinho de olhos msticos, que no dizia nada: dest apava, servia, fechava, ia andando. O outro recebia o dinheiro. Metia-o devagar na bolsa de couro. Sua mo preta, de unhas brancas, desafivelava, fazia o troco, a fivelava independente do seu olhar, que vagava ao longe, e apenas baixava uma ou outra vez, para conferir. Maria Maruca quis provar aquela comida de pretos. "Olhe l. . . Tome cuida do... dizia Dentinho de Arroz. Essa gente sabe muita coisa. .. Podem botar dentro alguma 'porcaria'..." Maria Maruca desdenhava: "Eu l tenho medo de feitios!" Sua cara vermelha br ilhava ao sol. Amontoaram-lhe no prato o piro de milho, e viraram-lhe, ao lado, umas colh eradas do ensopado de bofe e corao. O gato lambia-se. "Bem cheiroso que est!" Disse e passou a lngua pela colher, numa experincia. Provou, provou e animou-se a uma c olher cheia. (A cara de nojo que Dentinho de Arroz fazia, com o seu olhinho estrb ico e o sinalzinho suspenso no sorriso!) "Arre!" Largou o prato em cima da mesa, e saiu soprando, com a boca toda encarnada. "Tem fogo!" E, como se houvesse mes mo um incndio, abriu a boca embaixo da bica. Dentinho de Arroz sacudia a cabea e ria-se baixinho. preciso tomar uma coisa! Vou ficar com as tripas queimadas! E abanava a boca com o avental. E o dia cont