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A COMUNIDADE NEGRA DE BOM JESUS: um estudo*
C.D.U: 301.185.12(812.1=96)
Car10s Benedito Rodrigues da Silva (1)
RESUMO
A realização do proj eto se deu através de convênio firmado entre a UFMAe o CNPq, envolvendo inicialmente profissionais das áreas de Ciências Sociais,Biologia, Saúde Pública e Direito, contando, ainda, a equipe, com técnicos de nivel superior em Pedagogia e Serviço Social. Os objetivos traçados visavam ao e~tudo e atuação no sentido de entender, analisar e vivenciar a experiência de ca~poneses que se apresentam como urna alternativa e urna possibilidade de respostaàs contradições geradas pelo confronto entre camponeses que lutam pela resistênciada sua unidade produtiva familiar e os grandes capitalistas corno agentes do processo de expropriação e concentração da terra: nossa preocupação enquanto antropólogo sempre foi no sentido de compreender os mecanismos de reprodução da identidade étnica entre os moradores de Bom Jesus, que embora sendo um grupo de camp~neses que vêm lutando ao longo de várias décadas para garantir a posse da terra,constitui-se como um povoado formado basicamente por negros descendentes de escravos, que herdaram a terra após a abolição.
1 INTRODUçAo
o contato com o projeto
Bom Jesus dos Negros nos pareceu
urna oportunidade extremamente i~
portante,no sentido de conhecer
um pouco da realidade que envol
ve as formas de resistência de
"comunidades rurais"no Maranhão,
frente ao processo de expropri~
ção determinado pelo avanço do
grande capital nas areas de do
mínio de trabalho campones de
base estritamente familiar.
Nosso interesse com re
lação a um trabalho de coorde~a
ção deste projeto sempre foi pr~
curando conhecer de perto as fo~
mas de reprodução da própr ia
identidade étnica entre os mora
dores de Bom Jesus, que, embora
sendo um grupo de camponeses que
vem lutando ao longo de várias
décadas para garantir a posse de
suas terras, constitui-se corno
um povoado basicamente de negros
(*) A realização deste projeto só foi possível graças ao trabalho de campo desenvolvido pelas técnicas Marilene Silva (Serviço Social), Maria Clotilde CostaMedeiros e Rosemery Ferreira da Silva (Pedadogia).
(1) Professor Auxiliar do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Maranhão.
Cad. Pesq. são Luís, 4 (1) 5 - 20, jan./jun. 1988 5
descendentes de escravos queherdaram as terras após a aboliçao.
Mesmo considerando queas propostas iniciais do projetonão visavam especificamente aesses aspectos, insistimos que aidentificação de mecanismos dereafirmação da identidade étnicaseria de fundamental importãnciapara o conhecimento da históriade vida dessa população que, aonosso ver, vive cotidianamenteuma dupla identidade, enquantocamponesa e enquanto negra.
A realização do Projetodeu-se através de convênio firmado entre a UFMA e o CNPq, e.!!.volvendo inicialmente profissiQnais das áreas de Antropologia,Biologia, Saúde e Direito, contando, ainda,com técnicos de nível superior em Pedagogia e Serviço Social.
Os objetivos traçados Vl
savam ao estudo e atuação no se.!!.tido de entender, analisar e vivenciar experiéncia de campQneses,que se apresenta como umaalternativa e uma possibilidadede resposta as contradições g~radas pelo confronto travado entre pequenos produtores, que lutam pela resistência de sua unidade produtiva familiar, e osgrandes grupos capitalistas,que
se constituíram em agentes doprocesso de expropriação e concentração da terra.
Para atingir tais objetivos,delineou-se um roteiro detrabalho visando a:
a) estudar as condições sociaise econômicas de sobrevivênciae de reprodução da vida da PQpulação que habita o território de Bom Jesus dos Negros,suas formas de produção e decomercialização e sua organização a nível político;
b) estudar o significado e Lmpo r
tãncia da manutenção do usocomunal da terra e as possjbilidades jurídicas de efetivar esse tipo de relação, doponto de vista legal, assimcomo de garantir de f i.ni.t.i.vamente a terra como propried~de do grupo;
c) estudar as condições de saude e os meios de tratamentodas doenças utilizados pelapopulação, visando a umaorientação na utilização tanto de recursos próprios,comono uso das instituições a quetem acesso;
d) verificar quais são os valoreseducacionais (formais e info.E.mais)que orientam a organiz~ção social do grupo,e, a pa.E.
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tir dai, elaborar, juntamentecom este, uma proposta educa
cional;
e) verificar quais as culturasagricolas existentes e as fOEmas de trabalho utilizadas,
visando a uma orientação, p~ra a utilização mais efetivados recursos disponíveis, etentar o estabelecimento denovas culturas agrícolas quepossam ajudar a população amanter melhores ou diferentesalternativas para a soluçãodos problemas a Li.me r.t ar es , desaúde e de comercialização.
2 ÂREAS DE ATUAÇAo,FORMASDE PARTICIPAÇAo E METQDOLOGIA.
A atuação junto à pcpuLa
çao de BomJesus visava ao desenvol vimento de um trabalho integrado das áreas social,educaciQnaL, jurídica, agronômica e desaúde. Para tanto, alguns aspe~tos foram considerados necessarios, como:
a) levantamento das instituiçõesque mantêmou deveriam mantercontatos com a população nessas várias áreas;
b) levantamento das necessidadesda população nessas areas edas formas de atendimento queas instituições têm realizadq
c) identificação das formas tradicionais com as quais a PQpuLa ç âo responde as suas necessidades;
d) uma vez identificados os prQblemas, desenvolver uma ação
no sentido de transformaçãodas condições que os geraram,juntamente com a população erespeitando sua própria exp~riência e visão;
e) discussão com a população sobre suas condições de vida;
f) conhecimento e discussão dasreivindicaçôes da populaçãoe suas formas de encaminhamento;
g) elaboração de material informativo, a ser discutido comos moradores, sobre os váriosaspectos que abrangem o prQjeto e seu desenvolvimento;
h) treinamento de membros da prQpria população'de BomJesus p~ra a atuação nas di versasáreas propostas e outras quepudessem surgir no decorrerdos trabalhos.
o desenvolvimento dasatividades na área social refere-se ao conhecimento da realidademais ampla de BomJesus e suasarticulações comos demais gruposda sociedade externa. Este conhecimento serviria àe base e
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apoio para a atuação nas demais
areas. Pretendia-se, com isso,
orientar todo o trabalho levando
em conta as dimensões sociais di
versas determinantes ou que in
ter ferem na caracterização da si
tuação em causa, assim como re~
peitar e utilizar dinamicamente
as elaborações do próprio grupo,
no que diz respeito às suas creg
ças, valores e formas concretas
de produção de sua subsistência.
Optamos pelo método de
pesquisa participante, por coE.
siderá-lo um instrumento funda
mental para umenvolvimento mais
eficaz e concreto com a realidade
de vida daquela comunidade, e
participar mais efetivamente do
processo de educação e conscien
tização, facilitando, inclusive,
o encaminhamento de trabalhos
nas demais áreas de abrangência
do projeto.
Baseado nesta metodolo
gia, foram previstas inicialmente
algumas etapas de trabalho tais
como:
a) levantamento censi tário con
tendo alguns dados básicos p~
ra a caracterização da pop~
laçãoi
b) escolha e aprofundamento da
pesquisa junto a pessoas que
pudessem contribuir de forma
significativa sobre a his
tória do grupo, suas estra
tégias de vida é represent~
çoes;
c) contatos e entrevistas com pe~
soas que mantêm algum tipo de
relação com os moradores de
Bom Jesus e representantes de
instituições locais (interm~
diários, fazendeiros, s í.nd í.c a
to,prefeitura, igreja, etc):
d) elaboração e devolução à PQ
pulação dos dados coletados
e analisados tanto pelos pe~
quisadores profissionais, cQ
mopelos pesquisadores locais.
A participação dos edu
cadores seria pautada pelo priE.
cípio de se tornarem não apenas
meros transmissores de um conhe
cimento acabado, mas, inseridos
na própria dinâmica de vida da
comunidade e mantendo uma fideli
dade às propostas metodológicas
já mencionadas anteriormente, s~
riam catalizadores do saber que
o próprio grupo produz e elabora
na prática cotidiana. Nossa prQ
posta foi de definir a educação
popular como um processo no qual
estejam envolvidos plenamente
educadores e educandos, num prQ
grama para cuja elaboração nao
se pode prever nem receitar fór
mulas, mas se torne um produto
da dinâmica de interação entre
os atores envolvidos e a realida
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de.
Para tanto, o conhecimento deve brotar da percepçãoda realidade e das possibilid~des de transformaçãq e todos osconteúdos serão retirados destaação prática, inserindo os requisi tos da chamadaeducação fo!:mal no contexto da experiênciasocial do grupo.
A atuação na area do Direito, visa, sobretudo, à d í scus
são da situação jurídica dos caE!poneses comrelação à terra. Aquise apresentam duas questões deimediato:
a) a discussão das formas de encaminhamento que garantissem
o direito da população à te!:ra na qual habitam há tantosanos;
b) a discussão das formas deacesso à terra e das relaçõesque com ela se estabelece.
são questões consideradas de extrema importáncia,poisdizem respeito a situações que seconstituem obstáculos objetivosa sobrevivência da comunidade.
Nãose pode esquecer, PQrém,que o nível jurídico-políticoque envolve as relações dos p.§.
quenos produtores locais entresi e com outros grupos sociaisé 'bem mais amplo e deveria se levar em conta a necessidade de
discussão de outras questões pe!:tinentes à situação vivida, questões estas que vão surgindo, semdúvida, a partir da própria discussão sobre o problema da terrae do trabalho camponês.
Ficou estabelecido que otrabalho no setor da agronomiaconstituir-se-ia a partir do conhecimento das práticas agricolas da população local e dasimplicações desta prática nasformas de organização da unidadedoméstica e produtiva.
Pensou-se, apos essaetapa,em tentar a introdução denovos cultivos e práticas quepudessem beneficiar a população,e é claro que para isso tinha-se a necessidade de discussão eadequação aos modos de vida econdições materiais do grupo.
Nossa preocupação era emnao desvincular a agriculturados problemas de saúde, visandoa uma orientação comrelação aoshábi tos alimentares, por coris í
derar este um caminho efetivopara a introdução de novos cultivos, diversificando a agricu!tura local.
Naárea da saúde, a equipeprocurou estabelecer as discussões a partir de determinanteseconômico-sociais e implicações
políticas. Para tanto, seria ne
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cessário:
a) estudar as condições de saúde
da populaçáo e sua relação
com as condições sociais que
lhes dão origem, tanto ao ní
vel mais amplo, quanto das coE.dições mais imediatas da re
gião;
b) verificar de que forma as con
dições sanitárias de moradia
e de alimentação, o tipo de
assistência médica e serviços
de saúde,etc. determinam uma
si tuação coletiva de ausência
de saúde;
c) observar como a população
avalia suas condições de saúde
e quais as alternativas e
reivindicações propostas;
d) elaborar material informa
ti vo, que possa servir como
instrumento de conhecimento e
de prática.
Estes objetivos foram es
tabelecidos como forma de criar
condi çõe s j un to à própr ia popu
lação para produzir respostas e
reivindicar o direito à saúde e
à melhoria de suas condições de
vida e trabalho. Desta forma, o
levantamento sobre as doenças
existentes e as formas de trata
mento utilizados funcionaria ne
cessariamente como um instrumen
to educa ti vo de autoconhecimen
to, na medida em que fosse reali
zado pela própria população l~
cal, após debates e treinamentos.
Seguindo a metodologia
de observação participante, a
equipe traçou um roteiro de tr~
balho, através de visitas às di
versas povoações que compõem o
terri tório de Bom Jesus dos Ne
gros, principalmente nas local~
dades onde o acesso era mais fá
cil por questões de distância,
como Parada de Bom Jesus, Sop~
pinho, são Francisco e Salvador.
Mantendo ainda contatos com as
lideranças locais e visitas as
escolas, houve a preocupação de
ouvir as "histórias" contadas
pelo mais velho e observar o com
portamento da população no co
tidiano, acompanhando os carr,p~
neses aos locais de trabalho (r~
ças, pastagens, sítios,etc.) vi
sando, assim, a compreender as
formas como as pessoas se rela
cionam entre si e com a socieda
de envolvente. A partir daí, r~
pensar a sua própria história ,
criando condições de atuar como
agentes de transformação dessa
realidade.
3 SITUAÇ1\.O GEOGRÂFrcA DAÂREA
BomJesus dos Negros e a
denominação dada as terras si
tuadas a margem da rodovia MA-
122, distante 7 Km da cidade de
,"
10 Cad. Pesq. são Luís, 4 (1): 5 - 20, jan./jun. i98'8
Lima Campos, de cujo municípiosão integrantes 12 Krnda cidadede Pedreiras, req.i.ao do ·MédioMearim,e 253 Km da capital, sãoLuís.
o território possui urnaárea aproximada de 7.700 hectaresde terra, com uma população e~timada em 4.500 habitantes, quese agrupam em pequenos centrospopulacionais,espalhados por t~da a área, quais sejam: Paradade Bom Jesus, Bom Jesus, são Domingos, Sopapinho, Barriguda, Arraial, Gancho, Oleria, Bode,SãoFrancisco, Baixão, Centrinho,Centro de João Felix,Jurema,sãoBenedi to, Rocinha, Vale ,Matinha,Morada Nova, Ponte e Salvador.
A população desses centros e constituída, em suamaioria, de negros descendentesde escravos outrora trabalhadores da Fazenda são Francisco,de propriedade do então senhorde escravos Francisco Marques R~drigues, que lhes deu as terrasa título de herança.
Tanto os negros, quantoos outros moradores que ocupamterrenos com a sua permissão, vi:.vem da lavoura ,mas, também, pr~ticam a pesca à época de inverno,nas águas do igarapé Insono, afluente do Rio Mearim,que banhaas povoaçoes de são Domingos e
Barriguda.
4 HISTÓRIA DOS NEGROS DEBOM JESUS
A origem do povoado deBom Jesus dos Negros nos remeteà época da escravidão. Contadapor seus moradores, a históriacomeça com a louvação do senhorde escravo Francisco Marques R~drigues,que "era muito bom e ju~to, não batia nem deixava queninguém batesse em seus escravos,que chamava de filhos". Quandoos escravos ficaram livres, elemandou um mensageiro trazer anotícia e ordenou que matassemum boi para comemorar o evento.
Foi então que o dono daFazenda são Francisco, nome quehoje dá lugar a Bom Jesus dos N~gros,tentou transferir os ex-escravos para out res terras de suapropriedade i porém, os negros serecusaram a ir porque "era muitolonge, era o medo da escravidãode novo".
Embora nao nos tenhamsido explicitados os motivos,estatentativa de transferência con
)
trasta com o caráter de benevolência atribuído anteriormenteao senhor de escravos. Libertaros escravos simplesmente seriadesfazer-se de uma parte de suapropriedade ,portanto, transferi-
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los para outras terras seria menos dispendioso, pois poderiasubmetê-los à mesma vigilância ,mantendo-os supostamente livres,mas sob seu controle.
Por outro lado, a recusados negros revela que o escravosempre se manteve alerta quantoàs boas intenções dos senhores,que poderiam, mesmo apos a abolição legalizada, exercer um domínio sobre eles.
Diante da recusa dos escravos, o proprietário resolveudar a fazenda para os negros, po.!:.que não poderia mantê-Ia sem ostrabalhadores.
Essa versão,embora tenhasido narrada por um morador 10cal, é contestada por outros moradores,que não são descendentesde escravos, principalmente porpessoas vindas de outras regiõespara morar em BomJesus.
De qualquer forma, o PQvoado de BomJesus se constituihoje como uma amostra da situaçãoque envolve a grande maioria dospovoados negros que se formaramno território rural brasileiro,determinado por alguns fatoresimportantes, que provocaram alterações na formação econõmicae social do Brasil.
Comparados a essa região,existem vários povoados negros
no Maranhão que se formaram apartir da desagregação da economia colonial, quando as transformações econõmicas determinaram o surgimento de novas formasde organização social no campo;com a fragmentação das "plantations" , por revol tas de escravos,antes mesmoda abolição;ou ainda,pelas doações de terras pelospróprios fazendeiros, como uma
maneira de manter a produtivid~de, o trabalhador barato na terra e o próprio poder econõmicoapós a abolição.
Este é o caso, por exe~pIo, de BomJesus dos Negros.
Após a abolição, o f azeri
deiro Francisco Marques Rodrigues abandonou a região, deixando a fazenda e os escravosentregues à sua própria sorte.
Alguns anos mais tarde,BomJesus sofre a primeira tent~tiva de grilagem. As terras foram invadidas por jagunços queexpulsaram os negros.Babaçu conseguiu fugir para outras terrase de lá foi para são Luís falarcom a filha do fazendeiro, quereafirmou a propriedade das terras como sendo dos negros. Seumarido, que era dono do Cartório,foi quem fez os documentos queBabaçu guardou até a morte.
Após a morte de Babaçu,
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houve umperíodo de tranq1'lilidade
com o documento sendo guardado
pelos seus sucessores até o seu
extravio.
Segundo os relatos, os
documentos que estavam de ~osse
da mulher de Babaçu foram con
fiados a um dos irmãos do mesmo,
que os guardou num "cofo" até
que "os cupins comeram a metade
dos papéis".
"A nega Esmera (mulherde Babaçu) era madrinha deHenrique Souza,achou melhordizê prá ele levá os pedaçodos documento prá fazê outro.Aí ele se aproveitou e fezuns papel aí de uma légua deterra no nome dele, prá tiráempréstimo no banco e os dQcumento ficara lá até hoje".
De posse do documento de
doação das terras, os filhos de
Henrique Souza resolveram vendê-
las, nflo ao todo, mas loteadas
para as pessoas de Bom Jesus e
adjacências.
Neste momento aparece a
figura de seu Edésio, irmão de
Henrique Souza, líder atual da
comunidade, que diante da si
tuação partiu para a capital em
busca de auxílio jurídico ou me..ê.
mode alguns familiares do antigo
doador. Sua intenção seria g~
rantir a posse da terra de forma
coletiva, pois acreditava, e ~
credita ainda hoje, que somente
Cad. Pesq. são Luís, 4 (1)
a indivisibilidade da terra de
terminaria a permanência dos seus
moradores como legítimos donos,
e conseq1'lente união contra as
constantes ameaças de dnvasies~
Seu Edésio assumiu a li
derança nummomento de crise, onde
as opiniões entre os moradores
oscilavam entre manter a terra
em forma de propriedade coletiva,
de uso comunal, e a sua divisão
em lotes onde cada proprietário
pudesse utilizá-la da forma que
lhe conviesse,até mesmo vendê-Ia
se lhe interessasse sair do lu
gar.
Portanto, era fundamen
tal encontrar um apoio legal que
impedisse a divisão das terras,
mesmo porque, com a divisão, os
moradores herdeiros teriam pr~
juízo em relação aos "de fora",
que, através do loteamento e ba
seados no Usucapião Especial, PQ
deriam se tornar proprietários.
imediatos, ignorando o fato de
nao serem herdeiros. Além do que,
segundo o líder,nem todos resi~
tiriam às ofertas dos grandes c~
pitalistas, que já demonstravam
interesse em comprar as terras
de Bom Jesus e mandar os negros
embora.
Através de amigos de
igreja, seu Edésio conseguiu 10calizar parentes do ex+pr-opr i.e
tário da fazenda,que residiam em
5 - 2O, j an . / j un . 198 8 13
Paris. Através de correspondê~cias, descobriu que havia,no Bra
. sil,um bisneto de Francisco Marques Rodrigues, morando no Rio
de Janeiro e que mais tarde setransferiu para Belém do Pará.
Entra então na históriade BomJesus dos Negros, o Almirante Eugênio Marques RodriguesFrazão, que passa a atuar em alguns momentoscomointermediárioentre o líder e algumas instituições e pessoas de influência quepudessem contribuir para a leg~lização definitiva das terras dacomunidade.
Segundo constatamos em
um dos contatos com seu Edésio,o Almirante se referiu a algumashistórias que ouvia quando criança, sobre umas terras que haviamsido doadas a alguns escravospor alguém da família, como provade gratidão pelos trabalhos pre~
••tados. Mas, apesar disso, estavaimpossibili tado de reafirmar aposse através de documentos.
Paralelo a isso, o líder
da comunidade procurou assistê~cia jurídica e,recorrendo ao Supremo Tribunal Federal, apos varios meses de espera, váriasviagens ao Rio de Janeiro, Brasília e até entrevista com o então Ministro da Justiça Pet.r ôni.o
Portela, conseguiu a suspensao
dos atos de compra e venda dastp.rras de BomJesus •
Apósumalonga ausência,seu Edésio retornou a BomJesuscom a notícia e foi aclamado como herói pelos moradores, poisos boatos que corriam eram deque ele estaria morto ou teriaaceito alguma proposta de venderas terras traindo seus comp~nheiros, pois somente ele tinhaacesso às informações jurídicase a maioria das pessoas da com~nidade não tinha hotícias de seuparadeiro, nem das lutas que estavam sendo travadas.
Embargadas as possibilidades de negociação, a próximaetapa de luta seria pela legalizaçao definitiva das terras.
5 POSSE E UTILIZAÇ1í.O DA
TERRAApopulação de BomJesus
e composta de "negros herde;Lros"e de "moradores", como sao chamadas as .pessoas que buscam alium espaço para trabalhar e viver.Em sua maioria, os "moradores"são retirantes do sertão norde~tino ou populações expulsas peloavanço da grilagem em outrasáreas do Maranhão.
Torna-se interessante
perceber como esse grupo de ca~poneses resistiu até hoje a um
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processo violento de grilagem eexpropriação, que vem se abatendo sobre essa região desde osanos 50. As terras desta regiãosão das mais férteis do Estado,conseqllentemente as mais cobiçadas pelos grileiros. Portanto,chama-nos a atenção o fato deesses camponeses negros estaremresistindo a um processo intensode lutas pela defesa de seu território, como "herança revital!zadora de uma dupla identidade".Pois não se pode perder de vistaque existe uma relação concretaentre a abolição da escravidãoe a posse de terra,determinandoque a população descendente dosescravos herdeiros de Bom Jesusviva hoje uma situação peculiarenquanto camponesa e enquantonegra. Sem dúvida, a relação coma terra é um elemento básico deaglutinação do campesinato, masquando se trata de povoados negros,sugerimos que se torna fundamental investigar até que ponto o fator racial e, principal"mente, a sobrevivência de traços culturais próprios revi tal izam o caráter de resistênciaétnica frente as tentativas dedesagregação das unidades prod~tivas familiares.
Esses camponeses formamum grupo singular, que trabalhaindividualmente, através de nu
cleos familiares em suas rpçase sítios.
Existe a terra comunal,que e de todos, ou a "terra emquadro", utilizada para o trab~lho por todos ,mas as benfei toriassão realizadas individualmente.Cada família possui o seu sítioou a sua roça. Há o cuidado emmanter um rodízio permanente naformação das roças, para evitaro desgaste excessivo do solo.
o trabalho na terra geraa produção de arroz, banana, milho e feijão, cultivados de forma artesanal, sem a utilizaçãode defensivos nem implementosagrícolas.
A economia familiar eassentada na produção agrícola,e complementada com a criação deanimais para consumo e venda. Comercializam também amêndoas decoco babaçu em certas é~ocas doano. As f o.rma s de produção variamde uma localidade para outra, e!!tre sítios e roças, bem como acriação de suínos, caprinos, b~vinos e aves. Em povoações comoSopapinho e são Francisco, tantose faz roça como se cria animais,sendo que o maior rebanho bovinoda área localiza-se em Sopapinhoe o caprino 1 em são Francisco.Em Bom Jesus e Parada, há o pr~domínio de roças e sítios, nao
Cad. Pesq .•são Luís, 4 (1): 5 - 20, jan./jun. 1988 15
havendo criações. No Bode, amaior produção é de bananas. Norestante dos povoados, geralmenteos moradores possuem sitios e f~zem roças ,mas não criam animais.Ressalta-se, ainda, o cultivo delaranjas em Sopapinho e a quebrade coco babaçu,que é vendido emlitro ao barraqueiro local, aotérmino de cada dia de trablaho.Essa atividade é praticada essencialmente pelas mulheres e crianças.
Ainda que se considereas suas peculiaridades enquantoherdeiros de terras no contextodo campesinato maranhense, os l~vradores de Bom Jesus não deixamde ser elementos da burocraciacomercial e crediticia que vigora na região. Alguns trabalhadores utilizam o crédito agricola para financiar sua produçãoe passam pelas mesmas dificuldades que os camponeses de outrasareas. Portanto, empenhados nopagamento das dívidas com o banco, ou pela falta mesmo de dinheiro,vendem a produção quandoo preço ainda e muito baixo. Namedida em que a comercializaçãodos produtos é feita sob o controle dos preços externos, naoexiste nenhuma valorização dotrabalho, o que rege a transaçãocomercial e a necessidade de sobrevivência do camponês.
Em que pese sua base essencialmente camponesa, esta p~pulação está inserida no proce~so de exploração da mão-de-obra,determinado pelo sistema capit~lista. Assim,não consegue sobreviver apenas da lavoura e acabase dedicando as mais diversas tarefas com o objetivo de garantirseu sustento.
Seja produzindo para oautoconsumo,ou vendendo sua força de trabalho a terceiros, reflete a situação. de exploraçãoe expropriação em que vive o homem do campo, principalmente noNordeste brasileiro. A grandemaioria das famílias nao recebenenhum incentivo do Estado parase fixar na terra e alcançar umpreço justo pela sua produção.Logo, os camponeses acabam, namaioria das vezes, cedendo aspressões dos grandes latifundi~rios e abandonando suas ter~aspara viver nas periferias doscentros urbanos,rebaixando aindarna í,s suas já precárias condiçõesde vida e saúde.
Mesmo vivendo essas contradições, eles têm a roça comosua principal atividade econômica. A roça é uma tarefa anualcom épocas determinadas para serfeito o trabalho exigido para oseu desenvolvimento durante oano. Segundo o relato que nos
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foi passado nas conversas com osmoradores,neste ~ um trabalho aque se acostumam os mais novose se acostumaram os mais velhos,a realizar",daí a forma continuarsendo a mesma utilizada pelosseus ancestrais mais distantese nao acreditarem numa outra maneira de trabalhar a terra.
As dificuldades enfrentadas cotidianamente pelas pe..§.soas da comunidade negra de BomJesus determina e desencadeia umprocesso de criação de novas aIternativas de relacionamento coma própria vida, contrariando t~dos os conceitos preest.abeLec í
dos pela sociedade burguesa ocidental com relação ao homem. Cadavez nos parece mais claro,a pa~tir dos contatos com essa comunidade,que não existe nenhum p~drão predeterminado para explicar a vida do homem, pois em cada região da terra o homem seorganiza culturalmente de acordocom suas necessidades e condições,criando alternativas pr~prias para a sua sobrevivênciae reprodução ,mesmo nas situaçõesmais adversas.
Nas várias populações rurais existentes no Brasil,a re~lidade mostra que a compreensãoda diversidade cultural ~ fundamental para compreender a própriaexistência do homem como um ele
Cad. Pesq. são Luís, 4 (1)
mento capaz nao so de se adaptarà natureza,mas de transformá-Iasempre a seu serviço conformesuas necessidades.
Sem acesso a qualquerinformação,as populações ruraisacabam se isolando em suas "comunidades", desenvolvendo suaspróprias formas de vida e trab~lho, que, na maioria das vezes,tornam-se extremamente ásperas ebrutais para o próprio homem. Avida do trabalhador rural, sejaele cOlono,arrendatário, volanteou herdeiro, resume-se no trab~lho como condição primordial desobrevivência,pois ele está submetido a um processo tão violentode exploração que não lhe ~ pe~mitido dispor de seu tempo paramais nada al~m da produção.
Portanto, as precáriascondições de vida, saúde e escolaridade vão se reproduzindo co~tinuamente entre 'as famíliasld~terminando que as várias geraçõesencontradas em cada família semantenham impossibilitadas dealcançar um nível de vida diferente,mas mesmo assim continuamse reproduzindo e procurando tirar algum benefício da sua árduarealidade.
6 CONCLUSÂO
Todas as tentativas de
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desenvolvimento de nosso traba
lho em Bom Jesus esbarram em urna
questão considerada prioritária
por todos os moradores locais.
O problema nais urgente para
aqueles camponeses é a questão
jurídica,ou seja,uma árdua luta
pela conquista definitiva da po~
se da terra.
Para eles, o principal
problema e a indefinição da prQ
priedade da s terras, que se en
contram em litígio devido ao ex
travio dos documentos de doação.
Através desses vários anos de
luta, adquiriram a consciência
de que,para os pobres, todas as
portas estão fechadas e somente
com a ajuda de pessoas "impo!:.
tantes", conseguirão resolver
seus problemas.
"Nós lutamos muito, massó com a ajuda do povo de c~neta, a gente vai conseguir".
Cada grupo ou pe squ í.s a
dor que chega emBom Jesus é vis
to logo corno alguém que veio p~
ra ajudar na questão da Leqa Li.
zação da terra, conforme foi co
locado para o nosso grupo de pe~
quisa.
"A gente conta com vocêsprá ajudar nesse negócio daterra; só assim, com genteimportante, isso vai ter 50
lução".
Esse quadro revela a si
tuação de miséria e desespero em
que se encontra a população da
quela comunidade, situação essa
que extrapola os limites terri tQ
riais do povoado e identifica-se
com a maioria dos pequenos prQ
dutores do campesinato brasilei
ro, principalmente no Nordeste,
que se sen-tem ameaçados con s t an
temente diante das investidas
dos grandes grupos capitalistas
que tentam se apoderar de suas
terras.
Neste sentido,as formas
de trabalho baseadas na sol ida
riedade cuj a estrutura pressupõe
não só a produção e uso comunal
da terra, que certamente emoutros
tempos era a tônica das relações
entre os herdeiros de Bom Jesus,
mas também a contrapartida do
festej ão e do lazer, vão sendo
substituídas pelo trabalho soli
t~rio e desiludido de seus mora
dores.
Conseqlientemente na in
dividualização que o processo de
expropriação lhes impõe, eles re
cortam a terra que possuem en
quanto grupo "num arremedo can
sado de proprietários que se d~
batem contra a rigidez e a atrQ
cidade da lógica imperativa dos
interesses econômicos", na vio
lência imposta aos moradores do
18 Cad. Pesq. são Luís, 4 (1) 5 - 20, jan./jun. 1988
povoado, determinando um clima
de tensão e conflitos, pela in~
tabilidade e insegurança que vêm
enfrentando, na ambição que a
sua terra desperta em "altos e
bons dignatários da sociedade
envolvente". (FRY & VOGT,1983).
Portanto, consideramos
que nossa presença na comunidade
foi importante para tornar conhe
cidos alguns aspectos da reali
dade de vida daquela população.
Temos convicção, por uma série
de motivos já explicitados, que
não medimos esforços para trab~
lhar com coerência e p.rof i s s í o
nalismo suficiente no sentido de
contribuir com o processo de org~
nização dos moradores de Bom Je
sus dos Negros, valorizando a
sua história de vida produtiva
da Nação e reafirmando a impor
tãncia da sua organização social
e política, como a única forma
de reivindicar e conquistar seus
direitos de herdeiros legítimos
daquelas terras.
Com isso, conseguimos
6bter informaç6es importantíssi
mas que podem ser utilizadas na
continuidade desse mesmo traba
lho, ou empesquisas posteriores,
desde que estej arovol tadas para
os interesses da comunidade.
A questão
foi colocada como
jurídica nos
a principal
Cad. Pesq~ são Luís, 4 (1)
meta a ser atingida para so Lu
cionar os problemas daqueles ca~
poneses e, neste sentido, concoE
damos com algumas opini6es de li
deranças locais, de que somente
com o apoio desinteressado de
instituiç6es e pessoas influe~
tes essas metas poderiam ser a
tingidas de modo a assegurar os
direitos dos herdeiros. Então,
esperamos que,a partir desse c2
nhecimento obtido,possamos est~
belecer um amplo debate com os
setores de pesquisa da UFMAe do-
CNPq,no sentido de angariar sub
sídios para continuar esses tra
balhos, visando não só a contri
buir com o conhecimento cientí
fico,mas,através do envolvimento
mais concreto de seus técnicos
e também da criação de recursos
financeiros,constituir uma opoE
tunidade efetiva de criação de
participação que solucione defi
nitivamente os problemas enfre~
tados há cerca de 40 anos pela
comunidade negra de Bom Jesus.
7 SUMMARY
This project has been
realised from an agreenent among
UFMAand CNPqinvolving initially
professionals in the areas of 52
c i a L Sciences, Biology, Public
Health and Low as well as
tecnícians in Pedagogy and So
cial Work. The objective was the
5 - 20, jan./jun. 1988 19
study and practices in order tounderstand, analyse, andoparticipation in the experience of thepeasants. These objective ~epreserit an alternative and atthe same time a possibility ofanswering the contradictionsgenerated by the confront amongpeasants who fight for the "Unidade Produtiva Familiar"and thecapi ta1ists as agents of theprocess of expropriation andconcentration of the landi~ ourpreocupation as anthropo1ogisthas always been to understandthe mechanism of the ethnicidentity reproduction among theinhebitants of Bom Jesus dos Negros. A1though they inheritedthis 1and after the end ofslavery, these negroes descendants of slaves have beenfighting through decades inorder to obtain t~e property.
20
ENDEREÇO DO AUTOR
CARLOS BENEDITO RODRIGUES DA SILVADepartamento de Sociologia e AntropologiaCentro de Estudos BásicosUniversidade Federal do MaranhãoCampus Universitário do BacangaTel. 221-543365.000 - são Luís - Ma.
Cad. Pesq. são Luís, 4 (1) 5 - 2O, j an ./jun. 1988