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Causos da Campina MICHELE CALLIARI MARCHESE Coletânea - Volume I - Helena Frenzel Ed.

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Causos da Campina

M I C H E L E C A L L I A R I M A R C H E S E

Coletânea - Volume I - Helena Frenzel Ed.

Créditos

Causos da Campina, Coletânea, Volume I, 1a. Edição, outubro 2013.

© 2013 Todos os direitos sobre os causos estão reservados à autora: Michele Calliari Marchese, Xanxerê, SC, Brasil. (www.recantodasletras.com.br/autores/michelecm)

Imagem da capa: Angelin, ilustração de Roberta Modesti Presotto, aqui usada com permissão.

Edição: Helena Frenzel

Nota da editora:

A editora optou por interferir minimamente nos textos desta coletânea, limitando-se a realizar apenas um ou outro reparo gramatical de modo a não descaracterizar ritmo, estilo narrativo e marcas de fala regionais. Os personagens e as situações dos causos desta coletânea existem, unicamente, no universo da ficção; não se referem a pessoas e/ou fatos concretos, e sobre eles não emitem juízo ou opinião.

© 2013 - Todos os direitos sobre esta edição estão reservados à editora: Helena Frenzel, St Ingbert, Alemanha ([email protected])

Todos os textos e imagem usados com permissão das autoras. Esta edição pode ser livremente distribuída sob uma Licença Creative Commons - Atribuição - Uso não comercial - Vedada a criação de obras derivadas 2.5 Brasil, desde que na íntegra e com o devido crédito de autoria. Não é permitido de modo algum comercializá-la, alterá-la e/ou usá-la no todo ou em parte para gerar obras derivadas.

Obra disponível para baixar em: quintextos.blogspot.com

i

Sobre o Volume

Série

Causos da Campina

Coletânea, Volume I

Causos de Michele Calliari Marchese

Edição: Helena Frenzel

Outubro de 2013

Esta publicação é parte do site Quintextos

(quintextos.blogspot.com)

Venda proibida

ii

Sumário

Créditos (i) Sobre o Volume (ii), Dedicatórias (iv) Prólogo (v) Pra Começo de Causo (vi) Causos da Campina (viii) O Causo da Ritinha (9) O Causo do Coronel Cesário (12) O Causo da Dona Lúcia (15) O Causo do Tio Antero (18) A Novena (21) O Causo do Alcides (24) O Causo do Angelin (26) O Causo do Romeu (28) Às Sete Horas (30) Ultimate Diluvium* (33) O Encontro (36) Firmino e o Fim do Mundo (38) A Procissão dos Vivos (41) Um Causo Muito Estranho (44) O Incrível Causo do Milho Deitado (47) A Reunião (50) Um Bom Causo (53) Hirsuto Entre as Cobertas (56) Recorrências (59) As Rosas (64) O Causo do Homem (67) O Preferido (69) Sobre a Autora (72)

iii

Ao povo de Xanxerê

(Michele Calliari Marchese)

A Michele e sua família

(Helena Frenzel)

iv

Prólogo

Ai, a Campina da Cascavel...

Parece que foi “ontonte mermo, isturdia” quando dei de cara com o primeiro causo da Campina da Cascavel que a Comadre Michele publicou lá no Recanto (1): O Causo da Ritinha, muito parecido aliás com as histórias que eu, quando criança, costumava ouvir uma velha tia contar. E quando penso em causos, penso numa cultura por muitos desconhecida: o hábito de agrupar-se à roda de quem gosta de contar histórias e casos absurdos, ficar ali cultivando ouvido e prosa até a hora de “ir caçar serviço” ou ir dormir. Minha tia Helena era mestre nisto: encantar histórias; e por isso nunca esqueci o bom que é se deixar levar pelos causos antigos, alguns até mesmo com fundo real.

Parece que foi ontem mesmo que eu, movida pelos mistérios da Campina da Cascavel, propus à Comadre Michele reunir os causos num blog, o Sem Vergonha de Contar. Agora veio o Ebook e, antes dele, o jornal. Assim como eu, Comadre Michele escreve pelo prazer da escrita, também para não esquecer as histórias que imagina e que são fruto da inevitável mistura de tudo o que já se ouviu contar. Suas narrativas cativam pelo humor e simplicidade, além de terem “ritmo, lirismo e serem muito criativas“, como alguém no Recanto bem já observou e eu endosso, destacando o ritmo e um jeito próprio e vivo de narrar.

O importante é não deixar as histórias estancarem, registrá-las das mais variadas formas possíveis e deixá-las seguir seu caminho, livres, por entre bocas e gerações. Com vocês, então, um pouco deste universo singular da Campina da Cascavel, pelos índios traduzida: “Xanxerê”.

Helena Frenzel.

(1) Recanto das Letras: www.recantodasletras.com.br/autores/michelecm

v

Pra Começo de Causo...

Nunca prefaciei nada em minha vida e acredito que os prefácios sejam algo parecido com discursos. Esta coletânea de causos, que acabou surgindo em vista de uma grandiosa obra de minha cidade empacar e continuar empacando por diversos anos, que eu tive o “clic” do que seria a minha primeira escrita sobre as coisas que acontecem aqui e não acontecem em nenhum outro lugar, que foi “O Causo da Ritinha”, abocanhada cruelmente pelo demo, em carne, ossos e brilhantina.

Muitos dos causos eu escutei em minha infância e precisava urgentemente criar alguns dos personagens que fariam parte constante neles, como o intrépido delegado, o frio barbeiro, o jagunço Angelin — minha paixão platônica — e claro, o mais importante de todos: o Padre Dimas.

O Padre Dimas foi o grande batizador de crianças em Xanxerê nas décadas de 1920-1930, na tradução livre do Kaigangue: Campina da Cascavel, a gloriosa Campina da Cascavel. Ele existiu de fato, mas não como Padre e sim como Frei.

Todos os causos se interligam em algum momento, seja para sugerir “o próprio amor chegando” na pele do meu idolatrado jagunço Angelin, seja para contar que as rosas que o Cristóvão via em “Recorrências” são do jardim do General Euzébio no causo “As Rosas”.

Tem muitos causos, frutos de algum dia vivido de minha existência, como em “Às Sete Horas”, cuja alucinação coletiva daquele dia foi o estopim para escrevê-lo. Ou de quando participava incontinente das novenas que minha mãe organizava em família, foi que saiu do forno e com pitadas de horror “A Novena”.

Adoro histórias e estórias de tesouros, assombrações e o raio que o parta. Dessa paixão surgiu o incrível “Causo do Tio Antero”, que mexeu com minhas bichas por anos a fio porque achei que poderia encontrar todo aquele ouro na panela, mas não tive coragem de enfrentar espíritos; e “A Reunião”, que é assombrado por si só — assim penso —, porque nunca mais li depois de tê-lo escrito.

vi

Prefaciar ou discursar requer imenso sacrifício mental, mesmo porque os causos desta coletânea são meus mesmo, e é pior você falar sobre si ou sobre algo seu do que dos outros.

Portanto, deixo aqui meus mais sinceros agradecimentos a quem vier a ler, indicar, se assustar, ou a quem disser: “Que absurdo! Essas coisas não acontecem”.

Acontecem! Só que ainda não aconteceram com você, mas um dia irão acontecer!

Boa leitura.

Michele Calliari Marchese.

vii

Causos da Campina

Esses causos aconteceram na Campina da Cascavel, deveras distante de tudo, poderia-se dizer que é um Universo único, dada a quantidade de causos sem explicação e misteriosos que

acontecem por essas bandas.

viii

1

O Causo da Ritinha

Aconteceu na Quaresma, e todo mundo sabe que durante a Quaresma o diabo anda solto por aí arrebatando almas para o inferno e é prudente que não se saia de casa nesse período que é dedicado às orações. O Padre Dimas vinha falando nisso todo dia durante a novena.

Só que o pessoal lá do interior do Pesqueiro se atrapalhou com as datas e promoveu um baile para o dia 18 de março — bem na Quaresma. O baile ia ser dedicado ao Carnaval que eles não sabiam bem certo em que data já tinha caído ou que iria cair e demorava muito alguém disposto ir até a igreja da cidade para saber do calendário das festas. De qualquer forma resolveram pedir para a Ritinha escrever uma carta ao Padre, solicitando a presença para uma missa e para o baile. Mandaram a carta seguir com a carroça do leite, tudo bem explicadinho e tinha que entregar a missiva na mão do Padre e esperar a resposta.

O carroceiro guardou a carta no bolso, calçou os tamancos e subiu na carroça, olhou para trás para ver se a esposa estava olhando e parou na casa da Dona Amália, que subiu às pressas com um véu cobrindo o rosto. A mulher do carroceiro, que espiava pela janela, viu tudo. Correu na casa do compadre e pediu ajuda para ir atrás do marido dali uns quinze minutos, que, calculou ela, era o tempo para encostar a carroça em algum mato e pegar os dois com a boca na botija.

Dito e feito.

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Naquela semana houve muitos rumores, inclusive na cidade, de que o carroceiro havia sofrido um acidente e perdido todo o leite da entrega. Da Dona Amália não se soube muita coisa, só que havia fugido do marido e se encontrava em lugar incerto.

Acontece que a carta se perdeu no entrevero e todo mundo esqueceu da dita, preparando a capela para a missa e o galpão para o baile. Os músicos ensaiavam as marchinhas e as mulheres faziam galinha assada para ser servida depois da missa. Foi escolhido o melhor vinho da vizinhança e os barris foram sendo transportados para o galpão. As mocinhas casadoiras passaram o dia penteando e perfumando os cabelos, lustrando tamancos e costurando as saias. Era um dia muito feliz e o único que não participaria era o carroceiro, devido ao seu delicado estado de saúde.

Quando chegou perto do horário da missa, a capelinha ficou lotada e nada do Padre Dimas aparecer. Depois de duas horas, o povo resolveu desistir da missa, pois devia ter acontecido alguma coisa para o Padre não aparecer. Mas o que importava mesmo era o baile. Um primor de beleza naquele galpão todo colorido com os músicos dando os acordes iniciais para o começo do Baile de Carnaval.

Era Quaresma, não esqueçam.

Depois de muita música, vinho e comilança, apareceu no baile um rapaz muito lindo, vestido com o que havia de novidade na capital — assim pensavam as mocinhas — uma elegância sem tamanho. “Deve estar perdido, o coitado”, disse a Ritinha com os olhos grudados no moço. Seus olhares não passaram despercebidos pelo rapaz, que logo a tirou para dançar.

Ritinha estava atordoada. “Eu! Ele me escolheu!”, pensava ela sem pedir nada para o dançarino que tampouco falou alguma coisa. Rodopiaram, beberam, dançaram, suaram. Ritinha era a mais feliz de todas.

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A mulher do carroceiro foi quem percebeu o cheiro de enxofre, cutucando as comadres a fazerem cochichos. Tanto falaram que começaram a fazer as contas. “Peraí”, disse uma, “que vou buscar as minhas tabelinhas lá em casa”.

Quando voltou, pálida e esbaforida, contou às demais que nas contas dela e das tabelinhas, aquele período era de Quaresma e que, portanto, o cheiro do enxofre era do belzebu. Para ligarem o cheiro ao moçoilo elegante foi um estalar de dedos e a balbúrdia teve início.

Homens, mulheres e crianças correram para suas casas a rezar e acender velas na capelinha; foi uma confusão dos diabos, já que o próprio estava por lá.

“Mas e cadê a Ritinha?” Lembrou alguém.

A Ritinha tinha sumido.

“E o rapaz, quero dizer, o demo?” Lembrou outro.

O rapaz — quero dizer — o demo, também tinha sumido.

Demorou quase um mês, até a Sexta-Feira Santa, para que os homens fossem ao galpão fazer as averiguações e lá, além da bagunça da escapada em massa, encontraram o piso de madeira queimado no formato de patas de bode, o cheiro do enxofre que ainda persistia e o sumiço da Ritinha.

Cruz Credo.

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2

O Causo do Coronel Cesário

Aos oriundos do Oeste Bravio de Santa Catarina

Aconteceu no inverno. O inverno mais frio de que se tinha notícia, tinha geada todo dia e que durava o dia todo; para pegar água no rio tinha que levar o martelo junto para quebrar a crosta de gelo que se formava em cima. A roupa lavada ficava dura em cima das pedras, e já as lavadeiras não iam mais lavar as roupas porque se quebravam todas com o frio. Tiveram que guardar os bichos dentro dos galpões e fechar as portas porque senão morriam todos congelados. O que não tinha era ovelha.  Já tinham usado todas para confeccionar as botas e roupas para suportarem o inverno rigoroso e a gordura para animarem o fogo do fogão e dos ferros de passar. Quase ninguém saía de casa.

Só o Laudemir.

Laudemir era chofer de caminhão, o único fenemê da região, orgulho dele. Carregava a madeira que era tirada e levava até o Rio Uruguai para seguir de balsa até a Argentina. Para fazer o caminhão pegar, ele já estacionava dentro do galpão, e depois acendia uma fogueira próxima para esquentar e não deixar o óleo congelar. Quando pegava, deixava uns bons minutos ligado e carregava a cabine com cobertores de pena de ganso para pôr em cima das pernas.

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Já estava na metade do caminho, entre a Campina e o Rio Uruguai, quando se deparou com um velório. Era uma exéquia muito triste de se ver, todos estavam de luto e lamentavam muito a morte do morto, proferindo orações e rezando o terço, devia ter perto de umas cem pessoas seguindo o caixão. Um padre encabeçava o féretro, dando sequencia à esposa, aos filhos varões e às filhas; depois a umas gentes ora simples, ora de posses. E estava muito frio.

Laudemir já estava atrás do enterro umas duas horas, e não passava uma viva alma por ali, até que resolveu ver onde é que ficava o cemitério e quem sabe, levar o morto para aliviar a carga dos quatro carregadores. Informaram que ainda tinha mais ou menos uns três quilômetros para caminharem e se ele estava mesmo disposto a levar o esquife, seria um alívio. Foi o que ele fez. Amarrou o caixão junto com as toras, bem amarradinho e ainda deu carona para a viúva, que, muito triste, preferia não falar. Parecia não sentir o frio, por causa decerto de tanta tristeza. Colocou os cobertores nas pernas dela e seguiu em frente.

Soube que o morto se chamava Coronel Cesário Soares Lopes da Silva e que tinha morrido dos males do coração. Tinha lutado muitas batalhas e fora condecorado com muitas medalhas do Império. Era um homem muito bom e todos o queriam muito bem. Mas que, no leito de morte, tinha exigido ser enterrado junto com os índios, lá no meio do mato. E é para lá que estavam indo.

Laudemir teve que sair da estrada geral e entrar no meio da mata, e andou até onde que foi possível andar de caminhão. Quando não pôde mais seguir adiante, o enterro seguiu mata adentro, a pé. Laudemir deu as condolências e pêsames para as pessoas que ajudaram a tirar o Coronel de cima das toras e voltou para a estrada.

Estava impressionado.

Quando chegou ao Rio Uruguai, os amigos perguntaram como tinha sido a viagem e Laudemir contou o que tinha acontecido.

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Todos ficaram muito interessados até que um senhor já de idade que estava passando por ali ouviu sobre o Coronel e disse: “Sinhô, esse coroné já morreu há muitos e muitos anos, eu inda era bacuri e sempre escuito que algum chofer acompanha o enterro até o meio dos mato. O coroné tá enterrado no sumitério da Campina das Cascavé, deferente do que tinha pedido na morte, e eu acho que é por isso que o coroné qué que continuem a enterrar ele lá com os índio. Vai lá vê.”

Foi o que Laudemir fez quando voltou para casa. Não precisou andar muito para encontrar a tumba do Coronel e ao lado da foto dele, uma foto muito velha e gasta da viúva, coberta pela geada intermitente. Além do arrepio que não passava e do suor gelado que corria pela testa e ali ficava, percebeu que a esposa havia morrido dez anos antes do marido, justamente aquela a quem dera carona para enterrar o marido.

Algum tempo depois o governador do Estado resolveu por bem fechar a estrada geral, pois tinha passado um susto muito grande quando de visita ao Coronel Bormann em Chapecó. Ninguém nunca soube o que tinha acontecido.

Só o Laudemir.

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3

O Causo da Dona Lúcia

A Dona Lúcia era conhecida na comunidade pela sua beleza deveras extasiante, tinha os cabelos pretos, lisos e compridos caindo pela cintura e que balançavam ao menor movimento da cabeça. Não tinha namorado e nem queria um “porque ainda estava no ovo o galo que iria tirar ela de casa”.

O pai de Dona Lúcia não aguentava mais despachar os candidatos mediante a negativa da moça, até que foram espaçando os pedidos de namoro, casamento e, pasmem, até de ajuntamento, por um moço casado de Faxinal. Foi a gota d’água que faltava para que se fechasse de vez o coração da bela Lúcia.

Numa tarde de julho, voltando da mercearia, Dona Lúcia sentiu uma soneira dos diabos e correu de volta para casa para dormir um tico, pois tinha seus afazeres e não costumava deixar a mãe sozinha na luta doméstica. Chegou em casa, deitou na cama e dormiu.

Quando foi a noitinha o pai deu pela falta da menina, perguntou e chamou para que ela fosse à mesa jantar. “Tá dormindo, a coitada” disse a mãe toda prestimosa. “Deve ter se cansado, deixe dormir, se ela sentir fome ela come depois”. Jantaram os pais e os oito irmãos todos varões. A mãe ficou lidando com a louça na cozinha e reclamando que o sabão estava no fim.

Na manhã do dia seguinte, com a geada cobrindo tudo, foram se levantando um a um, mas nada da Dona Lúcia acordar. Quando chegou a hora de tirar o leite das vacas e tratar as galinhas, a Dona Lúcia ainda estava dormindo e mesmo depois de muitos chacoalhões ela continuava em seu sono. A mãe começou a ficar assustada e a gritar convulsivamente.

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“Ela está morta?”, pediram.

“Não, veja, ela tá quentinha da silva”, disse a mãe entre soluços.

“E por que ela não acorda?”, disse o quinto irmão.

“Deve estar com algum mal”, o pai intercedeu. “Vou chamar o protético”.

“Chame um médico, homem, o que vai fazer aqui um protético?”, disse a mãe.

“O médico não vem mais nesse mês”, disse o primeiro filho varão.

A mãe angustiada resolveu esperar o protético e até que ele não chegasse, resolveu chamar as benzedeiras que chegaram rápido e em conluio e muito cochicho chegaram à conclusão que o mal da Dona Lúcia, benzedeira nenhuma curava. Fizeram uma corrente, acenderam algumas velas e entregaram nas mãos do protético, dando graças que assim, os maridos não teriam mais a quem olhar a não serem elas mesmas.

O protético chegou e começou o exame. Mal ousou abrir o botão do casaco para auscultar-lhe o peito com os ouvidos e enfim diagnosticou: “Está morta, mas esperem até amanhã que o corpo estará frio para enterrá-la” e virando para o pai choroso disse: “São duas galinhas, senhor”.

O Padre Dimas, que chegou em seguida, não acreditava no que via e perguntou então há quanto tempo ela estava daquele jeito. “Cinco dias hoje, seu padre, e não esfria.” O Padre resolveu dar um fim naquele invelório e mandou chamar o barbeiro para buscar a moça, não sem antes dar a Extrema Unção.

Então veio o dia que a Dona Lúcia seria enterrada. O povo fez fila para dar o último adeus e tocar em suas mãos para sentir se ela já tinha esfriado.

Dona Lúcia estava quente, como viva, como uma morta viva.

O povo então saiu da casa para comer os assados que a mãe tinha feito e tomar o vinho do vizinho, até que o barbeiro desse os retoques finais na morta para dar início ao féretro.

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O caixão baixando na terra foi a visão mais triste que se teve notícia desde então e quando encostou na terra fria e gelada ouviu-se um “toc toc”. Todo mundo empalideceu e emudeceu e alguém lá no fim da fila desmaiou.

“Toc Toc”

“Toc Toc”

O coveiro agitado e nervoso já estava subindo e se agarrando pela terra do buraco.

“Abre aí”, disse o pai do alto do buraco.

“Eu não abro não senhor”, disse o coveiro patinando no buraco e se agarrando nas pernas das pessoas que estavam na beirada para escutar melhor.

“Toc toc”

“Pois eu abro”, disse o pai se enchendo de coragem e esperança de que a filha estivesse ainda viva dentro do caixão. A maioria já tinha escapado do cemitério. As beatas ficaram abanando o rosto da mãe que desfaleceria a qualquer momento.

Quando o pai e os oito irmãos conseguiram abrir o esquife, foi uma exclamação generalizada. O que estava no caixão era um amontoado de roupas, pedras e objetos de peso, mas nada da morta. E o “toc toc” continuava, até que por fim descobriram que o autor das batidas era o marceneiro que morava em frente ao cemitério. A mãe e as beatas acabaram por desmaiar e o pai desolado jazia de ataque cardíaco; não aguentou o tranco e por fim usou o ataúde da filha para seu próprio, e a confusão de coisas e sentimentos levou o prefeito a decretar luto civil por três dias. Até o governador veio para a Campina para dar o desaparecimento por verídico.

Depois de muitos anos enfim, soube-se a verdade quando o barbeiro morreu. Ele já estava na casa dos sessenta anos e há muito, doente de sífilis. Encontraram o corpo dele estendido na cama, nu.

Ao lado dele um caixão com tampa de vidro e a Dona Lúcia dentro, em perfeito estado de conservação, também nua e ainda quente.

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O Causo do Tio Antero

Aconteceu num domingo, quando o tio Antero e os compadres voltaram do acampamento de pescaria que fizeram lá pelas bandas de Abelardo Luz. Voltaram galopando muito descontentes e sem nenhum peixe no bornal. Logo apearam, chamaram os vizinhos e contaram a história muito verídica que tinha acontecido com eles naquele final de semana.

“Quando nós chegamos nos matos do Abelardo, já era de tardezinha, quase noitinha, eu ia por último na fila e Juvêncio por primeiro, porque nós estava armados. Eu ia por último na fila quando senti uma mão que me segurava pelo queixo me desequilibrando do cavalo, quase me fazendo cair. Não chamei os outros pois achei que não fosse nada e porque não tinha caído do cavalo.

Escureceu bem depressa e mais adiante aquela mão me pegou no queixo de novo, e se não sou rápido caía do cavalo. Mas fui forte e segui de perto o Ataíde que tava na minha frente. Controlei o cavalo que tinha se assustado e seguimos adiante até chegarmos ao acampamento. Os lampião estavam acesos e só precisava descarregar as sacolas para a gente ir pescar. Quando desceu a noite e tudo ficou preto, sem nenhuma estrela no céu, fomos para o rio com os lampião, as garrucha e os bornal. Minhoca e gafanhoto tinha bastante na beirada do barranco. Já tava lá o Nilson, com as vara e os anzol.

Preparei tudo, e entrei no rio com a vara e o lampião. Joguei o anzol muitas vezes e todas as vezes voltou vazio. Nunca tinha acontecido um troço

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desses porque é de noite que os peixes vem comer no anzol e lá tinha muito peixe.

Joguei de novo e o anzol pegou um peixão grande, preto e muito pesado. Mas não arrebentou a linha. Consegui puxar aquele bitelão um pouco para fora e como era preto taquei o lampião perto para alumiá e sabem o que era?

Pesquei um padre Jesuíta e quase perdi o lampião no susto.

Sim, um padre Jesuíta, que me disse que o nome dele era Bernardo de Armenta e que tinha participado numa expedição de um tal de Alonso Cabrera há muitos, mas muitos anos atrás. E nós, então, nos reunimos ao redor do padre Jesuíta, sem ter coragem de tirar o homem da água e escutamos o que ele dizia, que era para nós desenterrar um tesouro que estava enterrado debaixo de uma bracatinga próxima de nosso acampamento e ao redor tinha muito pé de marcela, acharíamos como certo pois não tinha mais pés de marcela por lá a não ser aqueles.

Perguntamos ao padre Jesuíta por que não tinha desenterrado ele mesmo o tesouro, ao que me respondeu que já estava morto há muito, e perguntamos por que escolheu a gente ao que respondeu que não aparecia gentes por lá e que nós tinha que desenterrar o tesouro e usar ele como bem aprouvesse, e perguntamos também por que não tinha falado antes, ao que respondeu que tinha me puxado no cavalo várias vezes naquela tardinha e eu não tinha entendido.

Eu já tava cansado de segurar o homem no anzol e quando fomos fazer mais perguntas ele tirou o anzol do capuz e entrou na água de novo sumindo de nossas vista.

Ficamos um bom tempo olhando um para a cara do outro. E sem dizer uma palavra recolhemos as varas de pescar, os lampião, os bornal e fomos à cata da dita bracatinga com marcela.

Encontramos.

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Tivemos que buscar pá e pedaço de pau e tudo de pontudo que pudesse ajudar na escavação. Fomos tudo junto para que nenhum sozinho desenterrasse o tesouro.

Voltamos, começamos a cavar e encontramos o tesouro.

Era uma baita duma panela, cheia de moeda de ouro que chegava a reluzir na luz do lampião. Só que toda a vez que a gente tirava a panela do buraco, uma força muito grande, descomunal até, trazia a panela de volta para o buraco.

Tentamos de tudo, corda, rampa, cavalo e nada da panela sair de lá.

Resolvemos fechar o buraco e voltar para casa, pois nós já estava a três dias luitando com a panela, sem comer nem beber um gole de água.

Com as força do desconhecido nós não conseguimos luitar.”

Ninguém conseguiu dormir naquela noite, só pensando no ouro enterrado. Inclusive o Padre Dilso veio dar uma benção nos pescadores com medo que eles pudessem ter trazido alguma coisa ruim com eles. Mas não tinham trazido coisa ruim não, porque por um golpe de sorte o tio Antero herdou de um parente muito distante e desconhecido uma baita fazenda no Mato Grosso, e que precisava de um mês inteirinho para conhecer toda a terra da fazenda e cheio de boi e vaca em cima, ele ficou rico de uma hora para outra e nós muito felizes.

E o ouro está lá enterrado ainda, debaixo das marcelas e da bracatinga.

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A Novena

Foi tão assustador e verídico, que foi contado aos filhos dos filhos da Campina. Noventa anos se passaram e ainda causa arrepios. Credo!

Aconteceu na semana de Finados, quando o Padre Dimas começou a novena no dia 25, uma sexta-feira.

Como todo mundo sabe, a novena é dividida em nove dias, e naquele primeiro dia apareceu na igreja uma gente estranha que não era conhecida de ninguém. Ficaram em pé na entrada, vestiam roupas muito simples e tinham as cabeças baixas. Ninguém conseguia ver os rostos. E o Padre Dimas começou:

“Hoje, traze-me a humanidade inteira...”

E o povo que estava lá, olhou imediatamente para trás, pois parecia que as pessoas estranhas na entrada eram a própria humanidade inteira proferida pelo Padre.

“... especialmente todos os pecadores...”

Olharam para trás de novo.

“...e mergulha-os no oceano da Minha misericórdia. Com isso Me consolarás na amarga tristeza em que Me afunda a perda das almas.”

A Dona Iraci imediatamente ajoelhou-se e começou a rezar seguida das outras mulheres, dos homens e das crianças da Campina. Havia certa comoção, certo alerta durante toda a novena, e o Padre ficou feliz em ver

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todas as almas tão compenetradas, mesmo aquelas estranhas. Quando terminou a novena ninguém mais viu aquela gente que estava lá.

Durante todos os dias da novena, apareceram crianças sem pais, velhos, doentes e toda a sorte de pessoas desconhecidas, simples e cabisbaixas. E sempre à porta da entrada.

No quinto dia da novena, no dia 29, o Padre Dimas começou:

“Hoje, traze-Me as almas dos cristãos separadas da unidade da Igreja e mergulha-as no mar da Minha misericórdia.”

Em vez do habitual “Amém”, ouviu-se Dona Iraci chorando na primeira cadeira, em frente ao Padre. É que ela tinha a certeza absoluta de conhecer uma das gentes que estavam na entrada. “Parecia-lhe alguém, alguém a quem amou”.

Naquele dia muitos choraram a lembrar de seus mortos e o Padre Dimas encerrou a novena, comovido.

E assim sucedeu até o oitavo dia da novena, quando a Dona Irma e o Seu Olice, que chegaram um pouco atrasados, juraram ter visto o jagunço Angelin — já morto — na entrada da igreja com a sua habitual capa preta.

“Hoje, traze-Me as almas que se encontram na prisão do Purgatório e mergulha-as no abismo da Minha misericórdia.”

Como o Seu Olice já tinha comentado com os outros sobre as suas impressões na entrada da igreja, todo mundo tratou de olhar para trás logo que o Padre começou a novena, mas o que viram foi um vulto fugido, como o tinha sido Angelin em vida.

Ninguém mais queria ficar na igreja e todos pediram ao Padre Dimas que trocasse de novena, pois que esta estava atraindo almas do outro mundo, ao que o Padre respondeu que só tinha conhecimento daquela, mas não teve negociação, todos foram para casa assustados e arrepiados, alguns correndo e esquecendo seus cavalos.

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No nono e último dia da novena que seria realizada no cemitério às oito horas da manhã em honra ao Dia de Finados, o Padre tinha sérias dúvidas quanto ao aparecimento do povo por lá, mas surpreso, encontrou as beatas encasacadas a acender as velas na Cruz Mestra e uma multidão que vinha aparecendo pela estrada.

O Padre, que de cabeça baixa, já a rezar, postou-se em frente à Cruz Mestra e de olhos fechados disse:

“Hoje, traze-Me as almas tíbias e mergulha-as no abismo da Minha misericórdia.”

Finda a novena, o Padre abriu os olhos e não viu ninguém.

Nem o povo tão seu conhecido, tampouco as gentes que estavam por lá e aquelas que estavam chegando. Olhou para a Cruz Mestra e não encontrou nenhuma vela acesa e nenhuma das beatas.

Ficou muito assustado, começou a rezar, acender velas e a benzer as tumbas quando viu chegarem pessoas tão suas conhecidas: o povo da Campina!

E o Padre não entendeu nada e perguntou por que não tinham aparecido às 8 horas para a missa e a novena e o povo respondeu como num pacto com o além:

“Mas ainda nem é oito horas, seu padre.”

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6

O Causo do Alcides

Sempre se fala de causo de cemitério e todas essas coisas relacionadas com os mortos. Acontece que ninguém dá muito crédito para essas histórias, mas elas são verídicas porque

foram contadas para os filhos e aos filhos dos filhos.

Esses causos aconteceram um de cada vez em intervalos de alguns anos, e é por isso que não se deve ir ao cemitério sozinho de noite, ou com a cabeça já cheia de medo e pensando

bobagem quando se entra lá.

O primeiro causo aconteceu com o Alcides.

O Alcides tinha saído de manhãzinha numa sexta-feira para ajudar o vizinho arar as terras para plantar milho e mandioca. Passaram o dia na lida e o vizinho convidou o Alcides para jantar por lá mesmo, antes de ele ir para casa. Ele aceitou e depois da janta foram para o porão jogar canastra e experimentar o vinho tinto que o vizinho tinha feito.

Estavam lá, do lado dos mastel quando o Alcides se deu conta da hora e foi embora cambaleando.

Acontece que para chegar à casa do Alcides, é necessário passar pelo cemitério, e bem na hora que ele estava passando, caiu uma tormenta do cão. Não pôde fazer nada a não ser entrar no cemitério para se proteger da chuva.

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Andou no escuro até que encontrou uma tumba aberta no lado, e se enfiou lá dentro.

Alcides dormiu.

Na manhã seguinte — sábado de Finados — as beatas do apostolado da Campina, resolveram ir mais cedo ao cemitério para acender as velas da Cruz Mestra e esperar o padre. Enquanto acendiam as velas elas começaram a rezar a ladainha de Nossa Senhora. E estavam muito compenetradas no serviço.

Alcides — que estava dentro da tumba que era próxima à Cruz Mestra — acordou com o zumzumzum da reza e do risc-risc dos fósforos. Viu que era de manhã e que tinha parado de chover. Saiu do túmulo com os pés por primeiro e foi se arrastando para fora. Quando estava quase todo o corpo para o lado de fora, as beatas o viram e acharam que se tratava de algum morto porque então começaram a gritar e a ter ânsias de desmaio.

Elas saíram correndo muito rápido com as saias enroscando nos calcanhares, perderam os tamancos de tão desesperadas que estavam, e quando Alcides gritou pela terceira vez “espera”, a Dona Elsa teve um infarto fulminante.

O Padre Dilso que estava vindo, encontrou com as beatas vivas no caminho, imediatamente mandou chamar o barbeiro para carregar a morta (ninguém ainda sabia da Dona Lúcia) e o delegado para prender o Alcides.

E no sermão daquele dia, o Padre disse mais uma vez que não é para ninguém ir sozinho no cemitério, porque se não morria, podia matar alguém.

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O Causo do Angelin

O segundo causo aconteceu com o Angelin.

O Angelin era jagunço do Paraná que vinha para a Campina visitar a segunda família. Vinha todo dia 15 de cada mês e ficava até o dia 30, quando então voltava para o Paraná, para a primeira família. Nenhuma das famílias sabia da outra e achavam que os 15 dias passados fora de cada casa era por motivo de trabalho, como ele mesmo dizia. Nunca se soube do que vivia, mas relacionavam a chegada dele com alguma morte que acontecia na região.

Aconteceu num inverno, Angelin vinha de viagem para a Campina e estava usando uma daquelas capas pretas que cobrem as ancas do cavalo até quase o chão. É uma visão horrível de se ver, e vinha ele todo contente e faceiro com presentes para as crianças quando desabou uma tremenda tormenta. Ventava muito, ele teve que tirar o chapéu da cabeça para que não voasse longe e resolveu procurar um abrigo.

Como estava perto do cemitério, entrou. Não queria abandonar o cavalo e procurou uma árvore frondosa em que estariam protegidos. O Angelin não tinha medo das coisas do outro mundo e nem de ninguém e andava sempre com o facão nas costas e a garrucha na sela do cavalo, de modo que ficar no cemitério ou na prefeitura era a mesma coisa.

Num determinado momento o cavalo se assustou com alguma coisa e a ponta da capa do Angelin se prendeu entre um túmulo e sua tampa. Quando

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a chuva acalmou, Angelin resolveu partir e deu uma esporeada de leve no cavalo que logo iniciou sua marcha, mas alguma coisa segurava o Angelin, que parou o cavalo imediatamente pois não conseguia se soltar.

Não olhou para trás em nenhum momento com medo das forças ocultas que o Padre Dilso diz que tem no cemitério quando se entra lá sozinho de noite ou de dia. De tanto puxar a capa, foi ficando nervoso, cada vez mais agitado, exasperado com a situação, que pulou do cavalo de vereda e tentou travar uma luta corporal com o inexplicável, sem olhar para trás. Mas a ânsia foi tão grande, o coração martelando no peito, o desespero tão alucinante que Angelin quedou ali infartado. Foi fulminante.

No dia seguinte, a viúva da Campina veio fazendo o caminho de volta, pois lá havia chegado o cavalo sem o dono, e o encontrou dentro do cemitério, debaixo de uma árvore, jazido ali mesmo do lado da sepultura de um polícia, o Angelin, todo enrolado na sua capa e morto.

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O Causo do Romeu

O terceiro causo aconteceu com o Romeu.

O Romeu era homem muito temente a Deus e deveras alto. Devia medir uns bons dois metros de altura e todo mundo enxergava ele, onde quer que fosse.

Já contava com 50 anos de idade e começou a ficar preocupado porque não tinha ainda terreno no cemitério para fazer a tumba da família. Falou com as autoridades competentes no assunto, e acabou comprando por um preço baratinho, do coveiro, um belíssimo pedaço de terra, na segunda esquina com a Cruz Mestra. Levou toda a família lá para ver o investimento.

Contratou um pedreiro para fazer o esquife da família e deixou claro o tamanho do féretro para que não houvesse problemas na hora de enterrá-lo, já que era alto.

Dali dois meses o serviço ficou pronto e o Romeu, antes de pagar o pedreiro, quis conferir se a coisa tinha ficado boa e comprida. Como ele morava no Peral, mesmo a cavalo demorava muito para chegar ao cemitério, e só valia a pena se tinha alguma coisa para fazer na cidade, pois teria que passar o dia lá e só voltar no dia seguinte para casa.

Como ele tinha um filho nascido três meses atrás para registrar no tabelião aproveitou a viagem e foi verificar se a cripta estava pronta.

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Chegando lá no cemitério, Romeu duvidou do tamanho e resolveu entrar para ver se cabia lá dentro, só que, por um acontecimento misterioso ele infartou fulminantemente dentro da sepultura.

Acontece que a viúva só foi dar pela falta do Romeu uma semana depois do ocorrido e chamou os vizinhos para que fossem à Campina procurar pelo marido. E disse que ele ia ao tabelião e depois ao cemitério, mas que fossem procurar também na casa da Dona Isabelita, já que ele tinha pendões para os rabos de saia alheios.

Os vizinhos não tiveram que procurar muito, pois foram por primeiro no cemitério e lá encontraram o dito-cujo morto, duro e numa posição de joelhos dobrados e poupança para cima que seria difícil a remoção do corpo.

Demorou mais uns três dias até que a viúva chegou para resolver o impasse. Mandou que cortassem as calças do falecido para tirar o que tivesse nos bolsos e mandou fechar. Assim. Sem mais nem menos, sem velório, sem Extrema Unção, sem nem mesmo uma vela acesa.

O Padre Dilso bem que tentou fazer uma oração, mas a viúva foi embora dali registrar o filho no tabelião e ninguém mais viu ela.

Quem chora no túmulo do morto em dias de Finados é a Dona Isabelita.

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Às Sete Horas

Esse causo é muito verídico e ainda assombra a cabeça dos envolvidos. Aconteceu num dia muito bonito em que o povo da Campina festejava o Dia de Nossa Senhora.

As mesas arrumadas, as mulheres conversando, os homens assando a carne e as crianças brincando.

O pessoal montou meio às pressas várias patentes(1) para o uso durante o dia. Eram feitas de madeira, tiradas dali mesmo do meio do mato. Algumas estavam apenas amarradas e outras tinham pregos para susterem-se no chão de terra batida. Fizeram três para cada, masculino e feminino.

E tudo transcorria bem, até que o sino da igreja badalou sete vezes anunciando as sete horas da noite. O Padre Dimas ficou preocupado, pois que era só ele que tinha as chaves para chegar até o sino. Resolveu correr até lá e ver quem tinha badalado e constatou muito a contragosto que a porta de acesso estava trancada e com o cadeado exatamente do jeito que ele tinha deixado há algum tempo atrás.

Foi quando escutou muitos gritos e todos vinham correndo em sua direção. Diziam coisas sem nexo e uma das mulheres enquanto corria erguia a camisa para mostrar alguns arranhões vermelhos em sua barriga. Chorava muito essa mulher e estava visivelmente transtornada dizendo que tinha alguém ou alguma coisa que a agrediu na patente.

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O Padre tentava a todo custo acalmar a mulher quando ouviram um barulho muito forte vindo de lá e muitos gritos.

“É o tinhoso, é o demo”, gritavam e mais apavorados ficavam os que ouviam e não tinham coragem de acudir.

Muitos homens armaram-se de paus e pedras para defender a pobre gente, mas não tinham brio de sair de perto do Padre. Quem teve presença de espírito para ver o que estava acontecendo foi o barbeiro, que, com a sua contumaz frieza pegou um pedaço de pau, enrolou sua camisa nele e tacou fogo.

Dirigia-se ao local enquanto escutava atento o povo dizendo que tinha visto o belzebu. Com certeza absoluta! Alguns tinham visto em detalhes e outros tinham sentido até o cheiro.

O Padre colocou todo mundo dentro da igreja e puseram-se a rezar e a acender velas e lampiões. As crianças choravam um choro estridente e gritado, deixando a coisa mais assustadora ainda.

O barbeiro que não acreditava que o “coisa ruim” apareceria na Campina, foi pé ante pé, num silêncio muito seu, e estacou em frente às patentes. Rezou uma reza que sua ama de leite tinha-lhe ensinado na infância e abriu uma a uma das portinhas. Fora a fetidez típica do local, não viu nada além de alguns tamancos esquecidos na pressa da fuga.

Botou uma pedra de encalço em cada portinha e ficou ali de tocaia, olhando o nada e sentindo o cheiro nauseabundo da fossa.

Foi quando todos ouviram o sino badalar mais uma vez as sete vezes; e quem estava dentro da igreja tratou de fugir desesperadamente para as suas casas e o Padre para o meio do mato, atrás do barbeiro.

O barbeiro achando tratar-se do Padre a badalar, como um sinal que ele pensou ser um aviso, resolveu por conta atear fogo nas patentes. E assim o fez.

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O Padre quando viu o fogo alto vindo da direção do barbeiro e das patentes, deu meia volta e correu para a primeira casa que apareceu na sua frente. Muito assustado e quase tendo uma síncope, ajoelhou-se com a família da casa ali mesmo no chão da varanda e começou a rezar uma reza em favor dos mortos, pois que não vinha nada na sua cabeça a não ser isso.

Estavam muito compenetrados, quando o barbeiro apontou à vista da casa, sem a tocha e muito enegrecido de fuligem. E todos desabalaram em correria, pois acharam tratar-se do próprio diabo aparecendo em corpo, alma e calças compridas.

Teve que ter grito do barbeiro dizendo quem era para que a turba aquietasse os ânimos, e quando todos chegaram perto o barbeiro disse que ao sinal do Padre — aquelas sete badaladas — tinha tacado fogo nas patentes e que jurava por todos os santos que conhecia que não tinha nada por lá. Que era invencionice do povo.

O povo se ofendeu e mais ainda a mulher arranhada que não se conformou com o veredito do barbeiro. Este disse a todos que havia alguns pregos mal pregados e possivelmente ela havia se arranhado ali.

“E quem badalou o sino?” Perguntaram. “Foi o Padre.” Respondeu o barbeiro.

E o Padre, olhando para a igreja e em seguida para o barbeiro e depois para o povo disse:

“Eu não badalei o sino, vamos todos lá ver.” E foram todos atrás do Padre que tirava de dentro do bolso da batina um molho de chaves que não serviu nenhuma no cadeado e que o vizinho arrebentou a machadadas. Subiram às cegas e lá não encontraram nada além do sino inerte e do vento que assobiava em algum lugar por ali.

(1) Nota da editora: patente é designação comum no Sul do Brasil para vaso sanitário ou latrina.

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Ultimate Diluvium*

(O Bígamo Naufragado)

Oras, todo mundo sabe da catastrófica localização geográfica da Campina da Cascavel, de modo que não seria novidade alguma o grande aguaceiro acontecido no início do século passado.

Começou quando a Dona Sílvia estendia as roupas brancas do marido no varal de bambu. Fazia um calor dos diabos e não tinha vento.

Era um mormaço que vinha de baixo, da terra, e que não dava tréguas ao suor que escorria pelas pernas, cuja saia estava feita em um nó próximo aos joelhos para suportar o calor da lavação. Estava tão cansada e traída que acabou tendo uma vertigem e caiu de costas no chão quente. A luminosidade não permitia que abrisse os olhos, mas com as mãos postas no rosto, pôde vislumbrar as nuvens escuras e grossas que avizinhavam.

Levantou num ímpeto, desamarrou a saia e saiu correndo para pegar a ramagem benta pelo padre e queimá-la na frente da futura tormenta.

Toda vez que saía da casa tinha que acender a chama na ramagem no fogão a lenha — um vento tépido lhe soprava e apagava o fogo. Assim foram repetidas vezes, tantas que não percebeu que os ramos bentos já se tinham extinguido durante o entra e sai. Bufou e foi recolher a roupa do marido que estava seca.

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As nuvens carregadas e ameaçadoras estavam cada vez mais perto e ela não tinha mais com o que benzer, mas decerto que alguma vizinha já estava fazendo o que ela não conseguira fazer. Tranquilizou-se e notou a falta de um dos tamancos do marido. Onde estaria? E começou um vento que ventava metade para baixo quente e metade para cima, frio. Não sabia que sensação agradável — porém doída nas orelhas — era aquela que experimentava naquele momento. Sentiu uma precipitação dentro de si, uma vontade de largar tudo e ir com o vento, mas lembrou-se do tamanco desaparecido e voltou a si. O marido precisaria do sapato, pois só tinha aquele.

Agachou-se para procurar, em vão. Além das saias que levantavam com o vento, as roupas secas insistiam em sair dos braços e seus cabelos já estavam desgrenhados a ponto de Dona Sílvia não saber mais em que pensar: se na traição, se no sumiço do tamanco, se no desembaraçar dos cabelos ou na tormenta que estava prestes a cair.

Pior mesmo era a desaparição do tamanco do marido.

O homem era um atormentado. Era exigente demais, chato demais, e ainda por cima o dito era bígamo. Bígamo. Foi a comadre que contou num sussurro e Dona Sílvia levou quase um mês para saber o que “bígamo” significava, e quando soube levou um susto tão grande que não quis nem saber quem era a outra. Ficou pensando e pensando e pensando e agora com o tamanco sumido, poderia lhe atirar na cara a bigamia. Que tivesse perdido o tamanco na casa da outra e voltara com um pé no limpo. Que fosse lá e que ficasse em definitivo.

Mas não. Voltou com os dois pés, sujos, dentro dos dois tamancos, também sujos, para que ela e não a outra lavasse os bandidos. Resolveu jogar o par limpo fora, no rio, naquela parte bem funda. Mas o maldito boiou e veio tal qual terneiro a mamar na teta, devagarzinho que dava ódio.

Resolveu cavar um buraco e enterrar o calçado. Largou as roupas, que saíram voando em redemoinho. Tentou agarrá-las, mas o buraco era mais importante.

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Enterrou o tamanco do bígamo o mais fundo que pôde e foi para casa, suja, com poeira a lhe arder os olhos e com a alma lavada. Sentia que podia tudo, até com a borrasca que desabaria em seguida. As nuvens estavam bem acima de sua cabeça e havia anoitecido sem ela perceber. Só notou que os cabelos caíram em seus ombros como uma assombração; o vento tinha parado.

Justamente nessa hora o marido chegou a reclamar dos tamancos. Ela deu uma última espiada para o tempo e disse ao marido que os sapatos estavam secando em cima das pedras do rio e que ele podia pegá-los se quisesse, pois que ela estava atrapalhada com as roupas.

No mesmo instante que os dois cruzaram a porta, ela quando entrou e ele quando saiu, ele percebeu que não havia roupa alguma nos braços da mulher, mas duvidou, porque naquele exato momento a porta se fechou a tranco e a tempestade desabou. Não via nada nem a um palmo do nariz. Era desesperador.

Dona Sílvia exclamava prazerosamente em cada janela que fechava: “Enfim, o dilúvio”. E o bígamo que corria naufragando e cego pela chuva sempre atrasado a chegar às janelas, sufocava com a água que caía ininterruptamente tentando dizer “me deixe entrar”.

*Do latim: “finalmente, o dilúvio”.

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O Encontro

Esse causo aconteceu quando a Dona Maria reencontrou uma pessoa há muito tempo esquecida. No início ficou contente que essa pessoa a reconheceu depois de quase quarenta anos, mas depois foi entristecendo de tal forma que a despedida foi um alívio.

A Dona Maria era uma mulher muito feliz e extrovertida, e quando retornou para casa, depois daquele fatídico encontro improvável, tudo mudou; inclusive a forma leve que ela via e vivia a vida transformou-se de tal forma que seu sorriso raramente era visto.

Não podia simplesmente culpar o ocorrido pelo que sentia dentro de sua alma, lá no fundo do peito ela achava que era uma confusão passageira e que essa tristeza era a soma de todos os dias de sua vida. Passaria, decerto.

Porém, não passou.

Daquela infelicidade que brotou durante os cinco minutos de conversa — o que pareceu uma eternidade — veio a incapacidade de levar a vida adiante. Nem o marido que tanto amava e os filhos queridos conseguiam transpor a tristeza com a vivacidade familiar.

Dona Maria, taciturna e paradoxalmente leve, pediu ao Padre Dimas que a ouvisse em confissão, para ver se alentava o coração e voltava a ser como era antes, mas o Padre Dimas nada podia fazer diante do desabafo e sugeriu que esquecesse de uma vez por todas do encontro e daquela pessoa. E isso só poderia acontecer por vontade própria, por luta interior.

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Aconteceu que a Dona Maria acabou gostando de não ter que lutar contra nada e decidiu deixar que as águas rolassem, assim como suas lágrimas, calmamente e sem desejos. Engolia com sofreguidão cada uma que escorria pela face indo cair nos cantos de sua boca.

Pensava nesses momentos que aqueles cinco minutos poderiam ter sido de beijos, aqueles beijos roubados e escondidos que tinham o sabor da juventude e da maciez carnuda, deixados para trás sem eira nem beira. Passava em seguida a mão pela boca, para afugentar tais pensamentos e limpar possíveis resquícios do que sobrou daqueles beijos. Sentia ainda a urgência dos cinco minutos. Foram mesmo cinco minutos?

Deitou em sua cama com o sol a pino, sob os olhares atentos da família. Trancou a porta. Passou a mão direita pelo pescoço e tirou uma corrente de ouro, colocando sobre a mesinha. Refez o ritual e tirou os brincos, colocando-os ao lado do colar. Fechou os olhos.

O sutiã apertava e o ar estava lhe faltando. Resolveu ficar nua.

Tirou o esmalte vermelho das unhas, tomou um banho e tornou a deitar. Agora sim. Estava nua de fato, nua na carne e nua na alma.

No quarto de um casamento de quase 45 anos, Dona Maria dormiu.

Sonhou com o encontro que nunca deveria ter acontecido, sonhou com as roupas espalhadas no chão, suas e dele. Olhou atentamente e não reconheceu as vestes do marido. Eram do outro. Aquele do encontro, aquele dos beijos. Aquele que veio com o verão e se foi com o outono. Aquele que impossivelmente seria o pai do seu primeiro filho. E sonhou também com um rompimento que fazia doer-lhe o coração. Rompeu com a vida.

Acordou com as batidas insistentes na porta e o marido, visivelmente preocupado, estava chorando. Vestiu-se sem pressa, destrancou a porta e deixou o amor entrar.

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Firmino e o Fim do Mundo

Esse causo aconteceu quando o Firmino ainda era menino de seus 14 anos, e fez um rebuliço danado por causo de um sonho que teve. Saiu gritando porta afora, seguido de sua prestimosa mãe que tentava a todo custo calar-lhe a boca. Chorou e gritou tanto que o povo da Campina da Cascavel se aglomerou em volta do rapaz a perguntar-lhe o que havia acontecido, e o Firmino com voz chorosa disse que tinha sonhado com um andor, carregado por seis pessoas que tinham a catástrofe em seus olhos e mais seis visionários.

Algumas mulheres que estavam por ali se olharam assustadas e o Padre Dimas fazia o sinal da cruz de cabeça baixa e muito preocupado.

Firmino contou mais, contou que não conhecia a santa que seguia em cima do andor e que carregava um manto envolto na cabeça com uma frase que lhe pegava de um lado ao outro e que dizia: “O fim do mundo está próximo”. E quando terminou de lembrar sobre essas palavras apocalípticas, voltou a chorar com todas as suas forças.

A grande maioria das pessoas que estavam em volta de Firmino começou a caminhar lentamente em passinhos silenciosos e febris em direção à igreja e levaram o rapaz que, sem saber como e nem por que, encontrava-se dentro do átrio com o Padre Dimas a encabeçar a turba. Logo, todos se sentaram e Firmino continuou em pé.

Tinha que dizer algo, porque as pessoas que estavam ali careciam de respostas. Virou a cabeça e olhou todas as pessoas e então ele se arrependeu

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amargamente de ter contado o sonho e num relance viu as proporções que seu rompante havia atingido. Agora era tarde demais e viu o olhar de sua mãe, num canto da capela a auscultar-lhe o coração, infligindo mais culpa ainda em sua pobre alma assustada.

Fechou os olhos e começou a rememorar o sonho. Contou de novo e com mais detalhes sobre o andor e sua santa, contou sobre as doze pessoas que o carregavam e seus olhos assustadores. Contou sobre o manto. E lembrou que também estava escrito alguma coisa a mais e que não era no manto, mas que estava em algum outro lugar por ali, como se fosse uma data.

A data para o fim do mundo?

O Padre Dimas que tinha a cabeça baixa a escutar o rapaz, levantou de sobressalto e procurou fazer com que Firmino não continuasse em suas premonições, pois que aconteceria outra catástrofe, e pior que aquela que estava sendo anunciada.

Mas a população curiosa e interesseira não permitiu que o Firmino saísse de lá sem dizer quando, onde e por quê. Até o Padre em seu íntimo tinha uma vontade incontrolável de saber quando aconteceria o fim do mundo. Só a mãe do rapaz que saiu da igreja sem mais nem menos, porque não queria saber de nada, porque queria seu filho de volta em casa, são e salvo e sabia também que dependendo do que ele responderia, poderia ficar com uma fama para o bem ou para o mal para o resto da vida e sofreria decerto com as muitas maledicências.

Mas o Firmino não arredou pé da igreja, nem quando a mãe num gesto muito rápido pediu a ele que fosse junto com ela para casa. E ele continuou com seu sonho premonitório dizendo a uma população assustada que naquele dia fatídico, aquele do fim do mundo, todos saberiam quando seria porque seria o dia em que todos reconheceriam de peito aberto a morte, escutaríamos as estrelas suspirando, a Lua dando cria e um portal de luz sendo aberto para visitarmos nossos outros eus em outras esferas. E que no dia vinte e um de dezembro de 2012 aconteceria tudo isso e todo mundo saberia em seu íntimo

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todos os segredos do céu e da terra e conheceria finalmente o Criador, que vinha pilotando uma máquina voadora gigantesca para nos dizer coisas sobre a água. E Firmino não parou mais.

Não se soube se foi o verbo empregado no discurso, ou se pelos absurdos de outros “eus”, mas o fato é que Firmino ficou sozinho na igreja.

Ele não foi taxado de nada como sua mãe tinha suspeitado, muito pelo contrário, elogiavam a criatividade do garoto e pediam vez ou outra se ele tinha mais histórias a contar. E Firmino seguiu a sua vida sem esquecer nunca do sonho que tivera.

Hoje, com 96 anos, conta os dias com um frenesi de louco porque todos os que escutaram seu relato há 82 anos estão mortos.

E espera sozinho o fim do mundo, porque todas as noites ele escuta as estrelas suspirando e isso o irrita.

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A Procissão dos Vivos

Já fazia uma semana que o Padre Dimas vinha falando na organização da procissão de Corpus Christi para a Quinta-Feira Santa. As mulheres da Campina seguiam de casa em casa para pegarem tudo o que podiam para fazerem os tapetes por onde passaria a procissão.

Estavam todos empenhados e esperando a vinda do Bispo Dom Joaquim, da capital, que prometera a visita uns dez anos antes e que tinha confirmado por carta no Natal do ano passado, deixando a população em polvorosa.

A Dona Lídia, que era auxiliar na catequese dos pequenos, sabia que em dia de Quinta-Feira Santa o Bispo, ou seja, nenhum Bispo podia sair de sua Diocese, e aqui na Campina e na região, mesmo em Palmas, não tinha nenhuma Prelazia autorizada pela Igreja. A Dona Lídia insistia que o Bispo não poderia vir, pois poderia acontecer alguma desgraça. Aqui ou lá.

O Padre Dimas não deu atenção, mas deveria ter dado.

Na quarta-feira, dia 18 de junho, o Padre verificou se os tapetes estavam prontos e viu a coisa mais linda que nunca tinha visto em dias de procissões, pois estava tudo muito colorido, muito vivo e de uma criatividade sem tamanho e chamou o fotógrafo para bater algumas chapas. As mulheres que estavam por ali abriam e fechavam as bocas diante de tão belo espetáculo que seria pisado no dia seguinte.

Todos ficaram esperando o Bispo chegar, mas como a noite ia avançando e estavam todos cansados, desistiram da recepção e foram dormir.

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No dia seguinte, o Padre badalou para a santa missa e ficou um pouco decepcionado com a ausência da visita ilustre, mas mesmo assim continuou. Quando saíram para dar início à procissão, encontraram o Bispo em cima do tapete, vestindo as vestes propícias, com seu manto escarlate e seu turbante branco; rezava de cabeça baixa com as mãos cruzadas em seu peito.

O Padre Dimas ficou felicíssimo e foi lá dar as boas vindas ao Bispo que dizia chamar-se Dom José Joaquim e vinha em substituição àquele que viria, mas que não veio porque nenhum Bispo podia ausentar-se de sua Diocese.

E assim, seguidos de toda a população da Campina, teve início as estações da procissão. A Dona Lídia ficou bem para trás porque tinha um pressentimento dentro de si que não soube explicar às comadres. Um pressentimento ruim.

Foi quando acendeu a sua vela na do marido e o vento fez com que o véu que usava caísse no chão. Estava pisando no tapete, mas assim que trocava o passo, todo aquele colorido que ficava para trás transformava-se num pó escuro que se misturava com a estrada de chão batido. Mostrou ao marido e resolveram andar mais rápido e ver a coisa de lado. E viram que o tapete ia sumindo assim que a última pessoa passava por ele e ficaram muito assustados e sem coragem de contar às pessoas o que viam e resolveram comunicar ao Padre Dimas e ao Bispo o que estava acontecendo.

Quando conseguiram chegar lá na frente e ficar perto do Padre foi num momento de oração e tiveram que ajoelhar para acompanhar a procissão e não assustarem os outros. O Padre ouviu atento sob os olhos curiosos das beatas prostradas atrás dele e pediu que esperassem o Bispo terminar a última estação. Estavam quase apavorados, porque viam o tapete desaparecer diante de seus olhos e o cheiro das velas era insuportável.

O Bispo, visivelmente emocionado, encerrou a procissão. A população que queria beijar a mão do Bispo logo se aglomerou em torno do Padre e pediam onde estava o Bispo e o Padre dizia que ele estava por ali e a Dona Lídia pediu que Bispo era aquele que não tinha participado da missa, ao que o

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Padre respondeu que era o Dom José Joaquim, mas aí um susto perpassou pelos seus olhos e percebeu o que deveria ter lembrado antes, que a visita ilustre estava morta há mais de cem anos.

E todos ouviram isso e em seguida viram que o Padre olhava para o chão a procurar alguma coisa e também olharam para o chão e então perceberam assustados que não havia tapete algum por ali.

Havia só a terra batida. As mulheres compreenderam tudo, porque quando foram preparar os tapetes deram de cara com eles prontos e todas achavam que as outras tinham feito. E o Padre pediu ao fotógrafo que revelasse as fotos imediatamente.

Um mês depois aparecia um fotógrafo assustado na igreja a mostrar as fotos tiradas na quarta-feira que antecedera a procissão.

Apareciam nelas o Padre Dimas, algumas crianças que não estavam lá na hora das fotos, e o Bispo ajoelhado na estrada, com a mão estendida como a colocar alguma coisa ali.

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Um Causo Muito Estranho

Esse causo aconteceu há muito tempo e causa certa estranheza de sentimentos quando é contado novamente aos filhos e aos filhos dos filhos.

Aconteceu quando a Dona Lurdes que era casada com o Dirceu caiu num poço a descoberto; foi por descuido quando ela estava estendendo as roupas no varal. Caiu e não foi mais vista. Como o poço era de terra, o marido tinha esperanças de que a Dona Lurdes estivesse viva porque poderia ter se agarrado em alguma raiz que teria por ali.

Mas nada, nem gritos foram respondidos e tampouco alguma vara encostou o fundo. Deveria ter mais de 10 metros de profundidade e nesse caso, não haveria como prestar algum tipo de socorro, mas mesmo assim o pessoal tentou de tudo, corda, vara, escada; mas como não encontravam o fundo, ficavam com medo de tentar entrar mais.

Deu-se por morta a Dona Lurdes e o poço recebeu uma tampa de dormentes.

Fizeram o velório e o enterro sem o corpo. Foi muito triste.

Aconteceu quando o vizinho do viúvo teve que ir para Chapecó e durante a espera de um determinado assunto, ele viu a Dona Lurdes passando. Passava assim, normalmente, como se nunca tivesse caído no poço. Ficou tão amedrontado que o primeiro chamamento não passou de um grunhido. No segundo chamado ela já ia longe e provavelmente não escutou. O vizinho mal podia levantar-se de onde estava e não foi possível ir atrás dela.

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Quando voltou à Campina da Cascavel não encontrava uma forma de contar ao viúvo que ele não era mais viúvo e que a suposta morta estava em Chapecó, bela e formosa. Não, não diria isso porque pareceria sarcasmo diante da desgraça do homem. Criou coragem e foi lá, contou tudo e explicou que a surpresa foi tamanha que não conseguiu ir atrás da Dona Lurdes.

Pois o Dirceu então se bandeou para Chapecó, de mala, e ficaria no hotel até que encontrasse a Dona Lurdes. Não passou muito tempo para o Dirceu encontrar a falecida na missa de domingo. Abordou-a cheio de perguntas e a Dona Lurdes, que não era mais Dona Lurdes e sim Cláudia, disse não conhecê-lo jamais e que não ficava bem a uma moça de família ficar conversando com um desconhecido. E foi embora. Dirceu foi atrás dela e não acreditava no que ouvira e tampouco acreditava nos olhos perplexos que ela tinha.

No segundo encontro — pois o Dirceu não se conformava com a situação — disse que era o marido dela e então a Cláudia deu uma risadinha envergonhada como a apaixonar-se. Dirceu sentiu que sua esposa era uma completa estranha e que para que ela voltasse para casa teria que recomeçar tudo de novo, tudo o que já tinha acontecido há dez anos.

Então Dirceu parou no meio de uma frase, deixando Cláudia à espera de alguma palavra, qualquer coisa, mas aí ele franziu o queixo, olhou para o nada, deu meia volta e foi embora. Passou no hotel, pagou a conta e pegou suas coisas. Deixou a Cláudia lá, apaixonada e sem entender patavina.

Acontece que o Dirceu, de um momento, se sentiu livre. Não precisava fazer tudo aquilo por sua esposa morta agora viva, já que possivelmente nem seria a mesma, apesar de que ficou com sérias dúvidas quando viu os quadris a mexer por debaixo das saias quando trocava o pé de apoio no chão. Era Lurdes sim, com certeza.

Mas que diabos! Pensou. E se ela tinha fugido? Não, ele a vira caindo no poço num passo em falso. Era outra, era Cláudia como ela lhe dissera. Mas e o rosto, os quadris, tudo igualzinho, inclusive o mesmo brilho apaixonado nos

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olhos. Não, não pensaria mais nisso, e súbito sentiu uma saudade de fazer amor com a Lurdes e pensou que o amor da Cláudia fosse diferente e então voltou para Chapecó.

Encontrou a Cláudia na saída da missa e lhe fez a proposta indecorosa. “Só casando”. Disse-lhe a moça. E não houve dizer isso ou aquilo e mostrar a aliança em seu dedo — o que piorou a situação — e dizer a data e como ela estava vestida no dia do casamento. A Cláudia, extremamente ofendida, saiu do pátio da igreja chorando. E todo mundo que estava ali olhou para ele.

Foi embora pensando que tinha feito amor com a Lurdes por dez anos de sua vida. Daria lugar para outros amores. Sabia que o vizinho, com a palavra de que não era a Lurdes e sim a Cláudia, não tornaria a falar no assunto e foi então que teve uma ideia: E se tivesse acontecido que a Lurdes caiu no poço, se agarrou em alguma raiz e fugiu enquanto ele estava em busca de socorro?

A essa dúvida cruel e muito vívida, devido à falsa identidade de Lurdes, sentiu que talvez houvesse alguma coisa no poço que tinha salvado a vida da mulher, e que então ela estaria mentindo descaradamente e sem pudor, inclusive com o disparate de casar duas vezes. Só que com nomes diferentes.

Oras, pegou o cavalo e retirou os dormentes de cima do poço com uma fúria de enganado que dava dó.

Quando apertou os olhos para dentro daquela escuridão, escorregou, mas conseguiu se segurar numa raiz próxima da saída. Escutava somente as batidas de seu coração e então ouviu a voz da esposa chamar-lhe muito baixinho e num tormento de saudades quase se jogou lá para dentro, se não fosse o vizinho a lhe segurar pelo cangote da japona.

Voltou a fechar o poço com os dormentes e partiu para sempre em direção a Chapecó.

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O Incrível Causo do Milho Deitado

Esse causo é muito verídico e até hoje acontece de tempos em tempos, mas naquela época era uma coisa muito sensacional e deveras assustadora.

O Fioravante tinha um bonito pedaço de terra, grande até, em que ele plantava de tudo e que o tinha deixado rico. Estava na safra de milho e várias vezes o homem fora visto com lágrimas nos olhos a contemplar a plantação.

O milho crescia maravilhosamente bem e o clima estava ajudando, seria uma das melhores colheitas na Campina e o preço da bolsa fazia com que o Fioravante cogitasse em comprar um Dodge D11, lindo de morrer.

Aconteceu que num entardecer, o Fioravante saiu da plantação mandando beijos ao vento para que o milho sentisse a sua presença de amor, despedindo-se até o dia seguinte, que seria o dia em que ele passaria algum produto para fortalecer as plantas.

No dia seguinte lá foi o Fioravante com seus funcionários para a lavoura e o que encontraram os deixou muito desconfiados. Muitos pés de milho estavam deitados como se tivessem sido empurrados ao chão com tal força que não era possível eles voltarem ao normal. Constataram que havia um imenso desenho ali, pois foram percorrendo por cima do milho e fizeram um círculo perfeito. Indo ao centro do círculo havia outro tanto de carreiro de milhos em pé e depois novamente uma grande área de plantas deitadas. Teriam que ver de cima para entender a extensão da coisa.

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Subiram num morro longe da área plantada e que Fioravante calculava que daria para ver se não todo, pelo menos parcialmente, o que estava acontecendo. Chegaram lá no dia seguinte depois de praticamente abrir a mata à facão e viram vários desenhos de tamanho descomunal, lindos, perfeitos. Mão alguma faria aquilo daquele jeito e em tão pouco tempo.

Extasiado com a situação e diante de tal espetáculo, ele nem se deu conta que os peões já tinham abandonado o local e provavelmente a comunidade inteira estava sabendo do ocorrido, pois que o vizinho já estava lá embaixo pisando no milho deitado com as mãos na boca. Gritava alucinado, esse vizinho, e então não sobrou alternativa ao Fioravante a não ser ficar por ali e pensar no assunto.

A primeira coisa que pensou foi que o Dodge ficaria para o ano seguinte, se nada mais acontecesse na sua lavoura. Tentou conciliar o sono com o acontecido, mas a balbúrdia era tão grande na plantação que passou a noite em claro.

O acontecido durou mais de uma semana, pois que vinham gentes de todos os lugares. Pisavam em tudo e em pouco tempo não sobrou lavoura de milho em pé para contar a história e para comprar o tão sonhado carro.

Era uma desolação. Aquilo fustigava os nervos do Fioravante até que finalmente se decidiu pôr um fim em tudo. Pensou duas vezes antes de despejar o conteúdo de um lampião no centro do círculo. Andou para lá e para cá e mediu a passos miúdos o desenho central e lá, exatamente lá, iniciou o fogo destruidor.

Mas aconteceu que o fogo não se alastrava e tampouco diminuía, ficava ardendo em chamas — as mesmas chamas — por um tempo que não soube precisar e pensou que talvez aquela não pudesse ter sido uma boa ideia e foi quando ele começou a pisotear o fogo para apagá-lo que apareceu em cima de sua cabeça e por toda a extensão do círculo uma sombra assustadora. Sem mais, nem menos. Achava que eram nuvens de chuva, mas aí perpassou um

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frio pela espinha do homem quando levantou a cabeça e deu de olhos num disco voador.

E o Fioravante não se lembrava de mais nada depois disso. Quando levantou, porque estava deitado no centro do círculo, ficou embasbacado ao constatar que as espigas estavam secas e prontas para a colheita e mais lindas do que antes.

Colheu tudo sozinho numa pressa de louco, primeiro porque os peões abandonaram a lida e segundo porque poderia chover se se atrasasse.

Não pensou mais em círculos, em fogo e em discos voadores, a quantidade de milho que colheu foi o dobro do que esperava e agora toda a comunidade vinha ver quão prolífica tinha ficado a lavoura depois do círculo misterioso e trataram de pedir ao padre que o excomungasse, pois que era sem sombra de dúvidas obra do coisa-ruim.

O Fioravante aceitou a excomunhão com um sorriso nos lábios e os olhos espichados no Dodge D-11 que o esperava na estrada.

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A Reunião

Esse causo aconteceu há muitos anos atrás, quando ainda apareciam na Campina os caboclos fugidos e os soldados desertores da Guerra dos Pelados.

Era um tempo de miséria humana, onde o banditismo era a própria lei; e esses fugidos ou continuavam fugindo ou assentavam domicílio pela região mais apartada possível da guerra.

Conta o Amâncio — caboclo fugido e assentado na Campina — que, quando estava na missa das oito do Frei Gaspar, ele escutou uma conversa de muitas gentes e olhou para trás na tentativa vã de enxergar quem era e o porquê do rebuliço e constatou que não era dentro da igreja e sim fora.

Surpreendeu-se ao saber que somente ele ouviu as conversas.

Esperou o Frei terminar e quando saiu escutou que o som das vozes vinha dos fundos da igreja, de modo que teria que dar a volta para saber o que era. Quando chegou lá, encontrou uma grande mesa posta com uma toalha branca e muita comida. No lugar de cadeiras, havia bancos. Deveria acontecer um grande banquete, pois as pessoas que deveriam estar sentadas lá ainda não haviam chegado, mas deveriam estar por perto, pois escutava a conversa vinda de algum lugar por ali.

Amâncio postou-se meio que escondido entre as árvores que por ali havia, e como era noite, dificilmente seria visto. Tinha um lampião pendurado na parede da igreja que iluminava um pouco, mas dava para ver só a mesa e nada mais.

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E assim foram chegando um a um e sentavam-se nos lugares que lhes eram cabidos e certos. Não se cumprimentaram, mas após sentarem-se entabulavam conversas que Amâncio não pôde compreender naquele momento. Eram pessoas sofridas e tinham no semblante o fulgor da viagem que haviam empreendido até ali.

Amâncio achou que eram padres de outras paróquias vindo cumprimentar o Frei Gaspar por alguma coisa, mas então viu na cinta de um deles um facão de pau de guamirim esculpido em fogo. Eram jagunços rebeldes. Amâncio se abaixou assustado.

Mas o que estariam fazendo ali, atrás da igreja? E onde estava o Frei Gaspar?

Foi então que o Amâncio escutou algumas coisas das conversas e que diziam estar esperando o trem para levarem os feridos, que o exército de São Sebastião estava por vir, a vitória era certa e lamentavam profundamente a morte de alguém, alguém tido como santo entre eles. Iriam fazer outra viagem, dessa vez de retorno. Falaram em rios e em trens novamente. Não tocavam na comida e tampouco bebiam alguma coisa e não havia mais nada na mesa. E foi quando Amâncio escutou que estavam esperando o Deodato, que quase desmaiou de pavor.

O Deodato — Amâncio lembrava bem — morreu de tiro depois de uma perseguição sem trégua por oito meses a fio e foi só quando capturaram o dito que deram a guerra por terminada. Como é que poderiam esperar por um homem morto?

Amâncio resolveu se abaixar mais ainda. Já estava apavorado demais para correr dali e curioso demais para deixar de dar uma última espiada naquele homem que fora líder na guerra em que participara. Baixou a cabeça e esperou.

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Lembrou-se de tudo o quanto tinha acontecido naqueles anos de barbárie e se arrependeu amargamente de ter lutado e de ter fugido. Via os incêndios, as mortes, os levantes; sentiu de novo a ânsia do arrependimento e fugiu.

No dia seguinte, resolveu procurar o padre e contar tudo, inclusive em confissão contou seu verdadeiro nome e todos os seus pecados. O padre pegou na mão de Amâncio e levou-o para os fundos da igreja e mostrou que tudo aquilo não havia passado de alucinação.

Amâncio quis ficar sozinho naquele lugar onde havia tido uma reunião de caboclos rebeldes na noite anterior para despedir-se do seu passado, e foi quando deu a meia volta para sair de lá que encontrou no meio das árvores onde estivera escondido, aquele facão de madeira que ele tinha visto na cinta do jagunço.

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Um Bom Causo

Um bom causo se começa na bodega.

Era o que sempre falava o compadre Rui.

Não acreditava que bons causos se contam do nada, de dentro de casa ou simplesmente da cabeça. Tinha que começar na bodega. Diferentemente do que pensava seu amigo Olavo, escritor e contador de causos que dizia que qualquer tipo de causo, seja ele bom ou ruim, começava no dia a dia e no pensamento; bastava-lhe pouco para que escrevesse qualquer coisa.

O compadre Rui acabava-se de rir com tanta barbaridade que o amigo contava e dizia que era ali, na mesa do bar, que se tinha inspiração para lembrar-se de passados já esquecidos e que aquilo dava o caldo para um conto bom.

O Olavo ficou enfezado e pediu então ao compadre que contasse um causo naquele momento e imediatamente.

“Só depois de dois dedinhos de cachaça.” Disse o compadre com um sorriso sarcástico nos lábios.

Vários dedinhos depois, quando a conversa já versava sobre a dita plantação do Fioravante e de sua excomunhão na frente de todo mundo, que o compadre Rui teve um estalo, de língua e de pensamento. Pediu ao Olavo uns minutinhos para desanuviar a mente e que logo em seguida contaria um causo dos bons, daqueles que se começa numa bodega.

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O escritor se empertigou todo para ouvir, mas o dono do estabelecimento precisava fechar porque no dia seguinte seria o domingo de Páscoa e ele queria acordar cedo para a missa.

O Rui prometeu que contaria em uma próxima oportunidade o tal do “bom causo de bodega”.

O compadre Rui foi para casa — meio torto em cima do seu cavalo — e o Olavo ainda ficou uns bons minutos em frente à bodega fechada, pensando e matutando e por fim decidiu que a conversa que tinham tido é que daria uma boa história. Uma história sobre um causo que deveria ser bom porque tinha nascido ali.

Intempestivamente escreveu e passou a noite acordado escrevendo, apagando, amassando folhas e tendo a ansiedade a lhe ditar as palavras. Pronto. Faltava-lhe um título e este tinha vindo logo no começo daquela conversa com o compadre: “Um bom causo se começa na bodega”. Estava resolvido. Confiante com a obra guardou os rascunhos no bolso da camisa suada e foi dormir, mas a esposa já tinha se levantado para a missa e exigia que o Olavo criasse vergonha na cara e fosse tomar banho que não tardariam em sair.

O Olavo — meio bêbado — jogou a camisa no chão do banheiro, fez tudo o que precisava fazer e saiu com a mulher. Na volta, ela pegou as roupas que estavam no chão, gritou alguns impropérios ao marido, que já dormia no sofá da sala com sapato e chapéu, e foi cuidar da casa e das roupas sujas.

Os dias passaram e os compadres deveriam se encontrar na bodega para jogar “tri sete” naquele dia. O Olavo fez questão de vestir a mesma camisa porque sabia que os rascunhos estavam bem guardados no bolso e sequer percebeu que a camisa estava cheirosa e passada e tampouco se lembrava da história, pois que ela havia sido concebida na bodega e sob os efeitos da noite mal dormida e dos martelinhos tomados durante a discussão. Lembraria-se da história assim que a lesse. Era um conto bom, disso se lembrava.

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Pois apareceu o compadre Rui, todo afobado a arrastar cadeiras e desculpando-se pelo atraso dele no jogo.

Quem começou a conversa foi o Olavo, que lhe perguntou à queima roupa onde estava aquela história do último encontro, e o compadre respondeu que lembrava vagamente do que tinha para contar naquela noite e era mais ou menos assim: “Uma história sobre um causo que deveria ser bom porque tinha nascido ali, e tinha até título: Um bom causo se começa na bodega.”

O Olavo, no instante em que chamava o compadre de plagiador, tirava do bolso da camisa vários papeizinhos rasgados e sem nada escrito e ia depositando-os em cima da mesa com os olhos incrédulos diante da morte do conto.

O compadre ficou nervoso, porque “plagiador” era uma palavra inexistente no seu vocabulário e com certeza significava alguma afronta, pois que tinha sido dita aos gritos. Partiu para cima do Olavo e a briga foi feia.

Quem serenou os ânimos foi o dono do boteco que resolveu as coisas com um facão em riste. Deu de graça um copo de cachaça para cada um e mandou fazerem as pazes. “Onde já se viu gente que é compadre ficar brigando por bobagens.”

Depois das pazes o Olavo e o compadre Rui seguiram bebendo e conversando sobre a morte do marido da Dona Sílvia até que o Rui falou: “Esse é um tipo de causo dos bons, daqueles que nascem na bodega.” E o Olavo tomou todo o conteúdo do copo de um gole só. Desculparia essa afronta, mas só naquele dia.

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Hirsuto Entre as Cobertas

Esse causo aconteceu com a Dona Edite, casada com o tal de Victor Hugo.

O dito era pedante, perdulário e impossível, transformou a vida da mulher num inferno psicológico e numa prisão tenebrosa. Naquela época, o divórcio não era possível, tanto que a separação nem passava pela cabeça da esposa.

Quando morreu de tanto beber naquela noite no bar da Dona Luiza, levou tudo consigo. Para as graças da mulher.

Quando a Edite soube da morte do peçonhento, ficou estática como num sonho. Pediu mais de mil vezes se era verdade e não acreditando em nenhuma das vezes que lhe contaram, foi até o bar para ver com os próprios olhos e com os nervos em frangalhos. Não soube o que fazer naquele momento. Estava tão feliz e livre do Victor Hugo que abandonou o corpo do morto ali mesmo na estrada e foi para a casa que agora era sua. Começou abrindo portas e janelas, ergueu as cadeiras, soltou o cachorro e passou a limpar freneticamente a casa. E o povo a esperar pelo enterro.

O morto ficou ao ar livre, largado no meio do pó, porque ao pó haveria de retornar e nada da mulher aparecer. Por fim, o Padre Dimas mandou que a chamassem para dar início às exéquias.

Acontece que a morte se deu enquanto era noite fresca e ninguém imaginaria que não houvesse um velório imediatamente após o passamento do infeliz e foi quando a catinga tomou conta da cidade que ninguém mais se

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atreveu a encostar um dedo no morto. A Dona Edite, que olhava tudo impavidamente, resolveu tomar as providências muito a contragosto.

Pegou a carroça do vizinho, dois cobertores de casal, pediu ajuda aos transeuntes e levou o maldito sem ninguém saber onde; sem as rezas de fim de vida, sem velas e sem choro.

Só ela em cima da carroça, num galope de asno que parecia um passeio de namorados, ela e o marido hirsuto. A única diferença era que as rédeas tinham trocado de mãos.

Soltou os cabelos e a guia e resolveu entrar num mato que tinha atrás do cemitério. Largou o corpo de chofre e partiu.

Um velho que morava nas cercanias da desova viu tudo e resolveu enterrar o pobre diabo, deixando as cobertas dobradas e arrumadas. Daria destino a elas e avisaria o delegado depois, se lembrasse. Cansado da lida, esqueceu-se delas e do delegado.

No dia seguinte, quando acordou sóbria daquele funesto, deu-se conta de que nada lhe faltava, tampouco o ar quente da manhã. Um arrepio passou pelo seu corpo e resolveu que daria uma última olhada no ex-marido e pensando melhor o enterraria num caixão. Tudo bem certinho, como manda o figurino e para não lhe pesar a consciência.

Foi a pé analisando cada hora passada ao lado do Victor Hugo e a cada passo que dava, maior era a sensação de alívio.

Quando chegou ao lugar encontrou as cobertas dobradas, como era o hábito do falecido, e o corpo tinha desaparecido. Ficou apavorada e uma taquicardia lhe podou os movimentos e o pensamento.

Era vivo o Victor Hugo?

A essa ideia, a visão turvou e sentiu a dormência anterior ao desmaio. Recuperou-se bravamente e torcendo as mãos começou a olhar ao redor,

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esperando que a qualquer momento aparecesse o homem pelo meio do mato rindo sarcasticamente e batendo palmas.

Correu sem direção e não soube como chegou a casa e parando abruptamente na soleira da porta questionou como é que tudo estava aberto se o Victor Hugo não gostava daquilo.

Louca, tratou de fechar tudo e de manter tudo no mesmo lugar de antes e sentou desesperada numa cadeira em frente à porta a esperar o marido que haveria de chegar sem demora.

Muitas coisas fúnebres passaram pela cabeça da Dona Edite que, inconscientemente, começou a balançar-se com as costas na cadeira e a torcer as mãos.

Foi encontrada morta uma semana depois pelos vizinhos preocupados com o claustro e disseram irresponsavelmente a todos que o passamento deu-se pela saudosa e sofrida falta que ela sentia do marido.

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Recorrências

I

"Quem tem medo da morte é porque nunca morreu." Gritou na sua mente enquanto corria ao longo da calçada de pedras irregulares. Quanto mais buscava chegar a algum lugar, mais longe ele tinha a impressão de estar. Seus passos curtos e apertados transformavam a inquietação que sentia numa vertigem a ponto de sentir a bílis na garganta.

"Eu não quero morrer!" E a angústia fez suas pernas estremecerem e num ímpeto quis correr mais e mais, mas alguma coisa deixava-o estático, sem forças, um boneco à mercê da passagem do tempo e das coisas. Suava tanto que seus olhos estavam embaçados.

Finalmente conseguiu o pleno domínio de suas pernas e desatou a correr, corria tanto que não percebia nada à sua volta e quando sem perceber deu um passo em falso, um passo no nada. Não encontrou o chão e caiu. Caiu vertiginosamente numa queda sem fim, num breu palpável. Não teve tempo de gritar, pois o sobressalto e o medo atingiram seu peito violentamente e todo o seu corpo amorteceu, tão forte o choque daquele momento. Desfalecia assim, instantaneamente durante a queda.

II

Passava das sete e meia quando Cristóvão saiu do banho ainda atordoado com o sonho que tinha tido duas noites atrás, era um sonho recorrente, mas não diário e tinha a capacidade de deixá-lo desnorteado por alguns dias.

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Geralmente um café bem quentinho colocava as ideias em ordem, mas dessa vez sentia uma dorzinha na virilha esquerda e ele achava que talvez fosse a tensão do sonho.

O calor era intenso e ele resolveu abrir a sua mercearia antes do normal. Com uma morbidez de morto passou de cesta em cesta para verificar se estavam abastecidas com o feijão, arroz e a erva mate. Ajeitou-se com dificuldade atrás do balcão, ferveu uma água para o chimarrão da manhã e olhou para fora.

Não tinha vento, o ar estava parado como se fosse um enterro, daqueles em que o corpo chega ao cemitério e acontecem de repente as aglomerações em torno do morto para rezar em prol da alma, tudo muito apertado, cada um querendo ver pela última vez a brancura de cera estampada no caixão. Não tinha ninguém nas ruas, sequer o cachorro da Dona Cícera, que vinha todas as manhãs abocanhar as sobras comestíveis da limpeza da mercearia que Cristóvão varria e depositava do ladinho da calçada já pensando no viralatas. Mas, olhando bem, não havia os restinhos da limpeza daquela manhã e o relógio da igreja que ficava em frente à venda não badalou para a missa das oito.

Ao lado da igreja, pomposamente situada em lugar de destaque na cidade, a casa do General Eusébio — reformado na Guerra do Contestado, botica e madeireiro — aparecia a todos os moradores da cidade, fosse de que lado fosse, a casa dele era a primeira que se via. E era a única que tinha roseiras em seus jardins porque sua esposa Dona Adelaide esmerava nos cuidados como se fossem suas filhas e Cristóvão olhava para aquelas roseiras firmando a vista, apertando os olhos e todas elas, inclusive os brotinhos no começo do pé pareciam de plástico. Foi lá cheirar e constatou o que a sua imaginação a algumas horas previra: O mundo parou!

Começou a correr em direção à igreja, ficou extremamente cansado pelo esforço e com um pesar de fantasma viu que não saíra do lugar, corria mas não chegava lá. Tirou a camisa grudada no corpo pelo suor abundante e

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insuportável quando ouviu nitidamente e a alguns passos de sua orelha “Nossa seu Cristóvão, o senhor está passando bem?”

Essa frase tirou-o do torpor em que estava e viu-se na porta da igreja debaixo de um sol escaldante de meio dia cuja hora marcava exata no grande relógio da torre central. Dona Cícera não estranhou o silêncio e começou a caminhar sempre olhando por trás do ombro como a esperar alguma reação absurda. Cristóvão voltou para casa com o rosto e os ombros queimados pelo sol.

III

O ocorrido andou de boca em boca na cidade, mas o Padre quis mesmo assim convidar Cristóvão para cuidar da pesca na Festa do Padroeiro, causando certo desconforto entre as beatas, já que era o acontecimento mais importante da cidade e um “candidato a louco” trabalhando na pesca, como elas diziam, não ficaria bem para a reputação positiva do evento.

Cristóvão aceitou o convite sem saber dos pormenores que envolviam o assunto, e lá foi com muita alegria trabalhar na pesca, vendendo fichas, entregando os prêmios e ajudando as crianças a pescarem os melhores “peixes”. Na hora do almoço, Cristóvão fechou a banca da pesca e quando levantou a tábua do alambrado para sair, tudo recendeu a ontem, ao passado, ao velho e ao esquecido. O cheiro era insuportável e a sensação de ânsia eminente fê-lo cair no piso de terra batido do pavilhão da igreja.

O pior era o cheiro de plástico das rosas.

IV

À falta de vento, às rosas de plástico e à sensação de aglomeração juntava-se uma triste impressão de ver pessoas ao longe, sem definição. Ficou com umas saudades de sabe-se lá o que, ou quem, e começou a chorar. Entremeado pelos gritos de desespero e sofrimento que saiam de seu peito, precisava levantar daquele chão, mas não conseguia. Era como se um peso

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estivesse empurrando seu corpo de encontro à terra e a sensação de solidão invadiu seu pensamento.

Nem sabia que horas eram, pois o mundo tinha parado e o sino não badalava.

Quando serenou, sentiu que lhe davam tapas no rosto e abrindo os olhos viu o botica, a Dona Cícera e o Padre. Cristóvão estava nu, seus pés em carne viva, deitado na relva de um bosque que ele não reconheceu de imediato e ardendo em febre. Todos deram vivas de alegria e explicaram que ele saiu correndo do meio da festa e correu feito um louco, tanto é que fizeram um mutirão para encontrá-lo, pois fazia dois dias que estava desaparecido.

O Padre, Dona Cícera e o General estavam visivelmente preocupados; o primeiro, porque Cristóvão saiu correndo com todo o dinheiro da pesca; a segunda, porque queria aconselhar Cristóvão a se casar — com certeza esses rompantes eram oriundos da falta de mulher — e piscou-lhe o olho pintado de lápis. E o terceiro, porque queria testar em Cristóvão uma nova poção mágica que garantia o pronto restabelecimento das faculdades. As vozes começaram a se misturar em sua cabeça, pedindo que ele comprasse o dito ungüento, os pequeninos assustados com os prêmios da pesca, dizendo sim no altar da igreja enfeitada, a ideia de comprar o dito ungüento, o sim de novo, as juras, o Padre contando quantas notas e moedas tinham-se perdido sem poder encontrar solução para o caso, e esse burburinho de vozes todas juntas, ininteligíveis, uma pressão por respostas imediatas que Cristóvão sentiu aquele cheiro tão seu conhecido; aquela coisa morna, quente e sem vida começou a passar pelas árvores à sua volta como num anel de morte e tudo ficou vazio, silencioso, sem vento e uma vontade imensa e irrefreável de correr formigou suas pernas.

Deixou todos ali, plantados à sua volta, levou consigo os olhares perplexos dos três amigos e correu, correu até que seu fôlego permitiu e corria tanto que não percebia nada à sua volta e quando sem perceber deu um passo em falso, um passo no nada. Não encontrou o chão e caiu. Caiu vertiginosamente

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numa queda razoavelmente curta. Não teve tempo de gritar, pois era o que ele queria. Desfalecia assim, instantaneamente durante a queda.

V

"Que dor de cabeça." Abriu os olhos, mas não pôde conter o grito de dor por tentar levantar os braços. Nem podia fazer algum movimento com eles, parecia que sua pele iria arrebentar e sua cabeça também. Encontrou o General Eusébio aplicando ungüentos em seus ombros e Dona Cícera molhando um paninho e colocando em sua testa para aplacar a febre das queimaduras de sol. Lá fora o dia seguia lindo e as pessoas nos seus afazeres com os barulhos do dia a dia.

E eles perguntaram por que Cristóvão havia ficado tanto tempo debaixo de um sol escaldante do meio dia, sem camisas olhando para a igreja, e Cristóvão assustou-se com tal questionamento porque isso havia acontecido anteontem e pediu sobre a Festa do Padroeiro, e eles responderam quase juntos como numa aliança de morte: “É amanhã”. 

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As Rosas

O Eusébio era o homem mais rico da Campina da Cascavel. General reformado da Guerra do Contestado; tinha a maior casa da cidade, construída com esmero e a próprio punho, possuía cinco quartos na esperança de preenchê-los com os filhos que não vieram. Sua esposa, a Dona Adelaide que engravidava mas não paria, fez das roseiras suas filhas e do coração, um inverno rigoroso.

Conseguia uma mudinha de rosa aqui, outra ali e foi plantando conforme que ia perdendo as esperanças e as crianças em seu ventre. E conforme que essas coisas tristes aconteciam, o Eusébio ficava mais e mais avarento.

Ele tinha dentro de si uma tristeza atroz, e por nada tomava amor, a não ser pelo dinheiro e por Dona Adelaide. Tinha que guardar tudo, como a esperar as crianças que um dia usufruiriam do capital.

Com o passar dos anos e da fertilidade, Eusébio foi ficando cada vez mais intratável e mesquinho e da sua avareza não escapavam nem as roseiras de Dona Adelaide. E quando ele via que as rosas ameaçavam murchar, mandava tirar tudo e guardar nos quartos dos pequenos.

Mas como tudo na vida, a Dona Adelaide passou desta vida para outra e o vazio fez companhia duradoura no peito do Eusébio.

Aconteceu no inverno mais rigoroso que se teve notícia. As roseiras em flor exalando um último perfume para as exéquias da Adelaide e depois disso, congelaram-se em botões e flores.

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E continuaram assim, mesmo na entrada da primavera e depois com o verão. Não descongelaram e tampouco nasceram mais flores e o povo começou a estranhar que as rosas do jardim da falecida eram sempre iguais e cheiravam a plástico.

O fato chegou aos ouvidos do Padre Dimas, e para acalmar o povo, resolveu fazer uma visita ao Eusébio, que passava os dias trancado em casa, metido num laboratório a preparar ungüentos. No auge do conforto que a visita do Padre proporcionou, declarou entre soluços que ele podia fazer um remédio que trouxesse a vida eterna, sem as dores da morte. E trabalhava num frenesi, andando de um lado para o outro, chorando e misturando águas coloridas em potes transparentes, deixando o Padre muito comovido que disse numa voz entrecortada pela emoção que tudo o que ele fizesse não traria Dona Adelaide de volta.

E o Eusébio então sentou, colocou as duas mãos no rosto para esconder as grossas lágrimas que corriam pela face e com os cotovelos no joelho ele respondeu com a lástima dos que sofrem a vida inteira que a Dona Adelaide ele não podia mais ter, mas as rosas sim, porque eram fragmentos do amor dos dois. Em cada rosa, dizia ele, ele via um pedaço da vida que eles passaram juntos, pois elas foram plantadas em meio às lágrimas e ao sofrimento da perda.

Iria continuar com os ungüentos e ameaçou por meio do Padre que quem tirasse uma folha sequer das roseiras iria se ver com ele e com toda a raiva que sentia.

O Padre deu o recado numa missa de sábado e então por muitos e muitos anos ninguém mais viu o Eusébio, e todo mundo via as rosas iguais, como no dia do enterro de Dona Adelaide. Já não passavam mais em frente à casa, atravessando a rua para não sentir e não ver tão dolorida imagem.

Foi quando apareceram alguns homens da capital para confiscar os bens de Eusébio que o povo descobriu que ele estava morto e falido. Tiveram muita dificuldade em encontrar o corpo no meio de tantas rosas e espinhos.

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Chamaram o delegado, o Padre Dimas e o barbeiro para dar início ao velório, e conforme iam andando com o caixão pela casa, as rosas iam morrendo, uma a uma como numa passagem magnífica de despedida.

Percorreram o lindo jardim de rosas de plástico que iam se transformando em rosas verdadeiras; seus botões, antes fechados há anos, foram se abrindo e perfumando o caminho que seu dono fazia dentro do ataúde e foram se extinguindo também uma a uma na visão mais triste e desoladora que alguém poderia presenciar.

Foi enterrado ao lado de Dona Adelaide, debaixo de um jardinzinho de rosas que se transformaram em plástico assim que o caixão baixou à terra.

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O Causo do Homem

O homem entrou no pátio da casa e por ali ficou. Foi a Dona Anja quem viu e ficou aguardando os acontecimentos. Estranhou o fato porque ali, naquela casa velha, ninguém entrava havia muitos anos e o mato tomava conta de tudo. Era um completo abandono.

A casa tinha sido do jagunço Angelin e após a morte dele naquele fatídico dia no cemitério a esposa tinha pegado os filhos e deixado tudo para trás. Saiu só com a roupa do corpo, para destino incerto. Ninguém nunca soube dela e das crianças.

Fazia muito tempo que a casa fora abandonada e as trancas enferrujaram, a pintura descascou e ninguém tinha coragem de pôr os pés ali. Talvez porque fosse do Angelin, ou talvez porque fosse que a esposa tinha sumido, enfim, ela tinha uma aura assustadora.

Provavelmente aquele homem, que agora lá estava, não sabia de nada. Nem de jagunço, nem de abandono, nem de nada. Usava uma capa preta, por causa do frio cortante, e um chapéu que lhe cobria o rosto. Deixou o cavalo amarrado na cerca e entrou no pátio como se fosse o próprio dono.

Para a Dona Anja pareceu-lhe o Angelin e um arrepio percorreu sua espinha. Lembrou-se do tempo que ele vinha ver a mulher a cada 15 dias, e nesses dias a vida se renovava naquele lugar. Flores abriam-se, frutas amadureciam, os dias eram ensolarados e as crianças brincavam no pátio mais que nos outros dias. A vinda do Angelin era o próprio amor chegando.

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O homem abriu uma pequena sacola que estava debaixo da capa e pegou uma chave grande, antiga, gasta. Foi para a porta de entrada e lá ficou um bom tempo até que enfim conseguiu abrir e entrou.

A vizinha, que nada perdia e cujo hálito embaciava o vidro, ficou tensa com a invasão. Chamou o marido para que este fosse buscar o delegado e para que tirassem a história a limpo, mas o marido ficou tão arrepiado quanto a Dona Anja. Dizia que se não tivesse visto o Angelin morto, tinha certeza que era o próprio que estava ali, de volta.

Foi quando aconteceu que as flores se abriram em pleno inverno, nas árvores secas e sem cuidados daquela casa havia frutos maduros e então um enlevo de amor fez a Dona Anja e o seu marido escutarem os gritos das crianças de tantos anos atrás. E eles apertaram os olhos, porque foram capazes de vê-las em seus folguedos infantis. E viram também a esposa do Angelin de braços abertos na porta agora aberta por aquele homem.

Tomados de urgente amor juvenil, Dona Anja e o marido fizeram amor ali mesmo e lembraram que quando o jagunço chegava, eles se amavam mais que nos dias que ele não estava. E o verão brotou depois de tantos anos.

Quando terminaram e se abraçaram e se beijaram, lembraram também tudo o que tinha sido deixado para trás. Foram interrompidos pelos soluços que vinham da casa velha, um choro tão doído e sofrido que se ressentiram do que tinham feito e foram para fora ver quem era, conhecer o homem que havia aberto todas as portas e janelas da vida e que reacendeu o amor.

Mas não havia cavalo amarrado na cerca, tampouco as flores abertas e frutas maduras.

Havia um grande vazio e a tranca continuava intacta sem marcas recentes e nem pegadas no pó da varanda.

Não havia nada, como nunca houve.

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O Preferido

Esse causo aconteceu quando as primeiras famílias apareceram para desbravar a Campina da Cascavel, vinham de lugares distantes e também de outros países. Uma dessas famílias era oriunda da Itália e veio o casal com três filhas pequenas.

A mama fazia comidas espetaculares e usava um ingrediente que não existia na região e todos que provavam do petisco queriam saber da receita e do dito “manjericão roxo” que ela usava para deixar tudo mais apetitoso. O condimento acabou virando contrabando e renda principal para a família da mama que enriqueceu de uma hora para outra.

Com o tempo as filhas casaram; a mais nova com o João, a do meio com o José e a mais velha com o Ademir. Nessa ordem, porque a mais nova casou muito cedo em função de uma gravidez de susto. O João que foi o primeiro a entrar para a família ganhou o posto suado de “o preferido”.

Pois que a mama reunia a família todo o domingo para um grande almoço e o preferido ganhava a honra de ter a comida predileta à sua frente. O João comia o que mais gostava e lambia os beiços de satisfação gerando uma espécie de ciumeira entre os concunhados.

O José pouco falava e a mama chamava o pobre de “povereto” e o Ademir, bom, o Ademir questionava se já não era hora de uma troca de genros no posto da predileção da matriarca, ao que ela respondia num vozeirão de poucos amigos que “no! Aspettare il tuo turno” e bem baixinho para o nono

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escutar: “bruta bestia”. E o Ademir que não entendia italiano, mas entendia muito bem a língua escaldada da sogra, comia numa ponta da mesa a remexer-se na cadeira de madeira.

E os domingos eram de festa e de muitos gritos, a cada almoço o nono aparecia com uma cadeira nova para acrescentar à mesa que já estava com uns bons remendos para ficar maior, pois os netos não paravam de chegar — dezoito ao todo. A mama e o nono nunca sabiam que filho era de quem e quando iam chamar algum, diziam: “Quello altre ali”, ou então diziam todos os nomes — quando lembravam — até acertar o nome da criança que queriam chamar. E era um tal de empurra filho daqui e dali que os dezoito apareciam na frente da mama para atender-lhe o pedido.

“Polpetta” de novo, nona? E a mama respondia que “si, era il cibo preferito di João, mangia i cala a boca, impertinente”.

Todos comiam, mas não calados e então aconteceu que uma vizinha apareceu pedindo do dito manjericão roxo, só um tantinho para que ela pudesse fazer a receita de pastel que a mama tinha lhe passado. E a mama foi até a cozinha e trouxe um naquinho de nada do condimento e cobrou à queima roupa na frente de todo mundo: “ Il costo è di trenta mil réis”. A outra quase caiu de costas, mas diante daquele espetáculo minúsculo apertado entre os dedos, resolveu ceder e pagou sem pestanejar com o brilho da cobiça em seus olhos.

Os genros não respiraram quando esticaram o pescoço para ver onde a mama guardava tão rico alimento pois que era escondido à sete chaves e ninguém nem o nono, sabia onde era. Todos aqueles anos eles passaram procurando o manjericão, sem sucesso.

Foi quando aconteceu que o nono apareceu com uma cadeira a mais na mesa e a mama gritou num português gelado que era a hora de parar com os netos, que estavam todos velhos e para que tanta criança se não tinha mais panela para fazer tanta comida e notou que muitas cadeiras estavam vazias e faltavam muitos netos à mesa e que a gritaria havia encerrado. Todos

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explicaram que muitas delas estavam já em faculdades nas capitais e o José, aquele “povereto”, disse numa voz que ninguém até então conhecia, que foram estudar para serem gente de bem e graças à mama que tinha parido as filhas... e a mama não deixou o “povereto” terminar gritando que “Da ora avanti, il mio preferito è Bepin, mio povereto”.

O João se engasgou, mas ao mesmo tempo ficou aliviado porque não teria mais as polpettas no domingo e o Ademir, bom, o Ademir deu uma fungada entre uma garfada e outra e fez as contas que dali uns 20 anos ele poderia ser o preferido se tudo fosse bem. Ficou pensando e lamentando o fato de nunca ter descoberto o esconderijo do manjericão, aquele condimento que lhe abriria muitas portas e janelas e também a independência familiar e lembrou que o José nunca falava e ninguém sabia que comida ele gostava e pediu em voz alta mesmo — já que com toda aquela gritaria dificilmente alguém iria escutá-lo — o que ele faria agora com o posto de preferido e o José respondeu depois de limpar a boca no guardanapo bordado que a hierarquia lhe conferia que era para o Ademir se acalmar que logo tudo se arranjaria pois que tinha visto onde a mama escondia o manjericão roxo.

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Sobre a Autora

MICHELE CALLIARI MARCHESE é catarinense de Xanxerê. Formada em Ciências Contábeis, é contista semanal do Jornal Diário Folha Regional de Xanxerê - SC. Participou em coletâneas publicadas pela Editora Literata de São Paulo, nos Livros UFO-Contos não Identificados (2009) e Espectra (2010) e no Livro dos Prazeres publicado pelo SESC de Santa Catarina em 2008. Teve dois de seus contos selecionados para publicação nas coletâneas em EBook 15 Contos+ Volume I (2012) e Volume II (2013) e tem participações no blog Gandavos. Mantém o blog Sem Vergonha de Contar, em parceria com a escritora Helena Frenzel, e uma escrivaninha no Recanto das Letras, onde publica contos e outros gêneros.

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