causas, efeitos e alternativas por

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IDÉIAS ACESAS IDÉIAS ACESAS Jornal da Unicamp traz na últi- ma página desta edição especial enfocando a crise energética no Brasil, a história de uma família de Malacacheta (MG), que acen- deu uma lâmpada por apenas três meses na vida. São personagens que cozinham no fogão a lenha, pas- sam roupa com ferro a carvão e que, à luz da lamparina, contam histórias so- bre cobras traiçoeiras e morcegos vam- piros. Histórias aparentemen- te mal-assombradas e que afe- tariam o imaginário dos cida- dãos das cidades, se narradas na penumbra que se vislum- bra para o País. Em 28 páginas, convidamos professores notó- rios de todas as áreas da Unicamp, fon- tes obrigatórias para o governo e a im- prensa, a acender suas idéias frente à crise energética que nos atemoriza. ANDRÉ FURTADO CARLOS LUENGO CÉSAR PAGAN DENIS SCHIOZER ENNIO PERES FÉLIX FELFLI FERNANDO DE TACCA FRANCISCA PIRES FRANCISCO DOS SANTOS GERALDO CAVAGNARI GILBERTO JANUZZI ISAÍAS MACEDO IVAN CHAMBOULEYRON JOSÉ ANTENOR POMÍLIO LAYMERT DOS SANTOS LUIZ CORTEZ MARCIO POCHMANN MAURÍCIO KNOBEL MOHAMED HABIB OCTAVIO IANNI OTAVIANO CANUTO PAULO DALGALARRONDO ROBERTO ROMANO SECUNDINO SOARES Fº SÉRGIO BAJAY OSCAR BRAUNBECK OSWALDO SEVÁ WILSON CANO CAUSAS, EFEITOS E ALTERNATIVAS POR: EDIÇÃO ESPECIAL SOBRE A CRISE ENERGÉTICA EDIÇÃO ESPECIAL SOBRE A CRISE ENERGÉTICA O O CAUSAS, EFEITOS E ALTERNATIVAS POR: Foto: Fernando De Tacca Campinas, julho de 2001 – ANO XV – Nº 164 – DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

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IDÉIAS ACESASIDÉIAS ACESAS

Jornal da Unicamp traz na últi-ma página desta edição especialenfocando a crise energética noBrasil, a história de uma famíliade Malacacheta (MG), que acen-deu uma lâmpada por apenas trêsmeses na vida. São personagensque cozinham no fogão a lenha, pas-sam roupa com ferro a carvão e que, àluz da lamparina, contam histórias so-bre cobras traiçoeiras e morcegos vam-

piros. Histórias aparentemen-te mal-assombradas e que afe-tariam o imaginário dos cida-dãos das cidades, se narradasna penumbra que se vislum-bra para o País. Em 28 páginas,convidamos professores notó-

rios de todas as áreas da Unicamp, fon-tes obrigatórias para o governo e a im-prensa, a acender suas idéias frente àcrise energética que nos atemoriza.

ANDRÉ FURTADOCARLOS LUENGOCÉSAR PAGANDENIS SCHIOZERENNIO PERESFÉLIX FELFLIFERNANDO DE TACCA

FRANCISCA PIRESFRANCISCO DOS SANTOSGERALDO CAVAGNARIGILBERTO JANUZZIISAÍAS MACEDOIVAN CHAMBOULEYRONJOSÉ ANTENOR POMÍLIO

LAYMERT DOS SANTOSLUIZ CORTEZMARCIO POCHMANNMAURÍCIO KNOBELMOHAMED HABIBOCTAVIO IANNIOTAVIANO CANUTO

PAULO DALGALARRONDOROBERTO ROMANOSECUNDINO SOARES FºSÉRGIO BAJAYOSCAR BRAUNBECKOSWALDO SEVÁWILSON CANO

CAUSAS, EFEITOS E ALTERNATIVAS POR:

EDIÇÃO ESPECIAL SOBRE A CRISE ENERGÉTICAEDIÇÃO ESPECIAL SOBRE A CRISE ENERGÉTICA

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CAUSAS, EFEITOS E ALTERNATIVAS POR:

Foto: Fernando De Tacca

Campinas, julho de 2001 – ANO XV – Nº 164 – DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

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TATIANA FÁ[email protected]

desaceleração das atividadeseconômicas por conta da cri-se energética implicará, ini-cialmente, na queda de cres-

cimento do PIB brasileiro dos 4,5%estimados para algo entre 2% e 3%,sob uma ótica otimista. De acordo como professor do Instituto de Economia(IE) da Unicamp e pesquisador doCentro de Estudos de Economia Sin-dical e do T rabalho, MarcioPochmann, isto significa dizer que odrama social pode ser agravado como corte de 600 mil postos de traba-lho, por conta do racionamento deenergia.

São esperados outros dois impac-tos sobre o mercado de trabalho, deacordo com Pochmann, que atual-mente está à frente da Coordenadoriade Projetos Sociais da Prefeitura deSão Paulo e engrossa o coro comoutros economistas. O primeiro é apossibilidade de postergação ou can-celamento de investimentos previstospara este ano, especialmente no se-gundo semestre. “Não haverá energiapara suportar a ampliação da capaci-dade instalada no Brasil. Declaraçõesde grandes empresários demonstramque, se porventura não se viabilizarrapidamente a questão energética noBrasil, os recursos poderão ser inje-tados em outros países”, afirma.

O professor alerta para a repercus-são que a postergação ou ausência deinvestimentos pode ter sobre os pos-tos de trabalho: a cada ano, aproxima-damente 1,5 milhão de pessoas ingres-sam no mercado; sem novos investi-mentos e sem ampliação do númerode postos, pode ser congelada portempo indeterminado a política de ge-ração de empregos no país.

O Banco Central já trabalha com ahipótese do segundo efeito aguarda-do por especialistas sobre a economiabrasileira: a alta da inflação neste ano,devido ao choque decorrente da ele-vação do valor pago pela energia elé-trica. Mais uma vez, quem arcará comas conseqüências é a população. “Aenergia elétrica é uma matriz de vári-os custos e, portanto, vai haver repas-se desse impacto nos preços para ainflação. Certamente, quem perde sãoos trabalhadores, pois não há legisla-

ção que garanta o repasse automáticoda inflação para os salários. Se os sin-dicatos não conseguirem pressionarpara que os salários acompanhem a in-flação, os trabalhadores terão menorpoder aquisitivo e isso refletirá sobresetores de alimentação e vestuário.Isso é sinônimo de impacto negativosobre o emprego”, avisa Pochmann.

Os equívocos – O aspecto mais gra-ve da crise energética, segundo o pes-quisador, está na constatação da au-sência de investimentos nos últimos

anos. “Até o final da década de 70, ataxa de crescimento era de 7% ao ano.Nas duas últimas décadas, de 80 e 90,a questão energética ficou em segun-do plano, a despeito dos problemasde racionamento que estavam previs-tos”, recorda Pochmann.

Vários equívocos foram cometidos.Um dos principais, na opinião do eco-nomista, é o governo ter optado pelaprivatização do patrimônio existentee não dos investimentos. “O Brasil po-deria ter privatizado novas hidroe-létricas e não a distribuição”, acusa opesquisador. Inúmeros especialistastambém chamaram a atenção do go-verno para os baixos índices de inves-timento na área de infra-estrutura. Sãofatos: o governo, algemado pelo Fun-do Monetário Internacional (FMI), nãoinvestiu. E o país só não apagou antesporque a expansão econômica foipífia. Basta dizer que, de 1981 até oano 2000, o Brasil cresceu em média2,1% ao ano. “É um crescimento mui-to pequeno”, avalia Pochmann.

De acordo com o professor daUnicamp, o breque do Brasil foi acio-nado, basicamente, pelo formato doacordo com o FMI. “Esse acordo visaà geração de superávit primário, isto

Crise pode cortar 600mil postos de trabalho

A

é, a garantia de que o gasto opera-cional do poder público seja inferioràs suas receitas. A repercussão imedi-ata significou contenção do nível deinvestimentos. E, conjunturalmente,a escassez de água terminouafunilando para o que estamos viven-do hoje, que é um problema, a meujuízo, estrutural, para o qual não hásaída imediata”, conclui.

2ª revolução – A expectativa é deque o governo passe pelo menos umano no encalço de investidores. Paraconquistá-los será preciso, sobretudo,viabilizar um cenário favorável. Difí-cil, diante da contradição mundanaamargada pelo país e providencial-mente lembrada por MarcioPochmann: “Enquanto o mundo vivea experiência da terceira revoluçãotecnológica – diante dos computado-res, da microeletrônica –, o Brasil temum problema que se enquadra na se-gunda revolução, quando foi desco-berta a energia elétrica, há mais deum século”. Para o economista, é purademonstração de que o governo per-deu a capacidade de planejar as maisdiferentes áreas da atividade econô-mica. Se é que um dia a teve.

Fotos: Antoninho Perri

UNICAMP – Universidade Estadual de CampinasReitor Hermano Tavares. Vice-reitor Fernando Galembeck.Pró-reitor de Desenvolvimento Universitário Jurandir Fernandes Ribeiro Fernandes. Pró-reitor de Extensão eAssuntos Comunitários Roberto

Teixeira Mendes. Pró-reitor de Pesquisa Ivan Emílio Chambouleyron. Pró-reitor de Pós-Graduação José Cláudio Geromel. Pró-reitor de Graduação Angelo Luiz Cortelazzo.

Elaborado pelaAssessoria de Imprensa da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Periodicidade mensal. Correspondência e sugestões Cidade Universitária “ZeferinoVaz”, CEP 13081-970, Campinas-SP. Telefones (0xx19) 3788-7865, 3788-7183, 3788-8404. Fax (0xx19) 3289-3848. Homepage http://www.unicamp.br/imprensa. E-mail

[email protected]. Editores Luiz Sugimoto, Álvaro Kassab e ManuelAlves Filho. Redatores Raquel do Carmo Santos, Roberto Costa,Antônio Roberto Fava, Isabel Gardenal e MariaAlice da Cruz.Fotografia Antoninho Perri, Neldo Cantanti e Dário Crispim. Edição deArte Oséas de Magalhães. Diagramação Dário Mendes Crispim. Colaboradores nesta edição Carlos Lemes Pereira, Carlos Tidei, TatianaFávaro, João Maurício da Rosa, Wandar Jorge, Paulo César Nascimento. Ilustrações Félix e Luís Carlos Paulo Silva. Serviços Técnicos Clara Eli de Mello, Dulcinéia B. de Souza e Edison Lara de Almeida.Impressão R. Vieira Gráfica e Editora Ltda.: (19) 3229-9900. Publicidade JCPR Publicidade e Propaganda: (19) 3239-0962

Garçom trabalha em bar iluminado por lampião em Campinas: sem energia para suportar a ampliação da capacidade instalada

Pochmann: impacto negativo sobre o emprego

Marcio Pochmann avalia risco de congelamento da geração de empregos

Universidade Estadual de CampinasJulho de 2001

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TATIANA FÁ[email protected]

mesmo governo que vinha ignorando, havia no mínimodois anos, o alerta de economistas e técnicos em planeja-mento energ ético sobre uma crise iminente no setor, cla-ma agora pelo auxíl io desses especial istas para t entar

ti rar o país das trevas. Buscar a geração de energia – e, para tanto,investimentos – é t arefa árdua. Principalmente d iante de outranecessidade, considerada imediatista por uns e fundamental pelaequipe designada para gerenciar a crise: é preciso reduzi r compul -soriamente o consumo.

Na tentativa de remodelar uma estrutura de planejamentoenergético que, na opinião dos economistas, foi desmontada emfunção da submissão do país à pol íti ca monetária internacional , ogoverno tem arrebanhado e xperts como o professor Sergio Bajay.Licenciado do Departamento de Energia da Faculdade de Engenha-ria Mecânica (FEM) da Unicamp, Bajay assumiu a diretoria doDepartamento Nacional de Po líticas Energéticas do Ministério deMinas e Energia com a preocupação de, entre outras medidas,inibi r os custos demasiadamente al tos da chamada “energia nova”.

O pesquisador e consul tor do Núcleo Interdiscipl inar de Planeja-mento Energético (Nipe) da Unicamp afirma que é preciso impedira abertura indiscipl inada para as novas fontes de energia, mesmodiante da cri se. Até porque o ônus do aumento do custo da energiano país, em um f uturo não t ão d istante, s erá r epassado para oconsumidor, inevitavelmente.

“Independentemente da tecnologia – novas hidrelétricas, novastermelétricas a gás, novas térmicas a carvão, nucleares, eól icas, oque for –, os custos de geração vão ser superiores aos da chamada‘energia velha’ . A parti r de 2003, quando começarão a caducar oscontratos iniciais, o custo da ‘energia nova’ passará a ser transferidopara as tari fas. Esta energia vai ser mais cara, o que não se podeevitar” , antecipa Bajay. “É necessário procurar uma mistura detecnologias que implique no aumento tarifário mínimo. O custoserá maior, mas não poderá ser mui to al to”, aval ia.

Segundo o professor, o mal maior virá se, para garantir a geraçãode energia elétrica o mais rapidamente possível , o governo se ren-der ao l obby de empreendedores poderosos e suas respectivastecnologias. Como resul tado teremos a aprovação de obras caras e odesencadeamento de uma nova crise social. Apesar de agora fazerparte da equipe que assessora o governo, o pesquisador mantémsuas críti cas e revela alguns receios: “O governo não é homogêneo,é consti tuído de várias áreas, cada uma com seus próprios interes-ses. O setor de Políticas Energéticas, aqui do Ministério, está tendoo cuidado de sinal izar aos demais setores do governo sobre a neces-sidade de barr ar al ternativas tecnológicas que possam contribui r,num primeiro momento, para acabar com o déficit de energia, masem seguida com um grande impacto sobre o défi ci t tari fário”.

O recém-empossado di retor de Políticas Energéticas não nega quefaltou ao governo Fernando Henrique uma pol ítica de investimentos nosetor de energia elétrica, que esta falha contribuiu decisivamente paraa crise atual, que o país amarga as seqüelas da privatização no setor.Nem poderia negar, porque como professor da Unicamp sempre cri ti -

cou a mudança de um modelo quase que completamente estatal, paraoutro que visual iza a participação privada quase absoluta.

“Mesmo como colaborador, mantenho as críticas. Este governofoi extremamente ousado e irrealista na maneira de conduzir ascoisas. Tanto é que, na prática, há um modelo misto, mas a con-vivência entre os dois ‘parcei ros’ não é contemplada por um siste-

Governo pede socorroa técnicos que ignorouSergio Bajay, da Unicamp, assume direçãode Políticas Energéticas e sustenta suas críticas

Acotacompenalidadesparaquemnãoatin-gir ameta de racionamento de energia elétricaestabelecidapelogoverno,osbônusparaquemconseguir reduzir o consumoemmais de 20%e a possibilidade de cortes no fornecimentosão, para o professor Sergio Bajay, “naturais”.“Os cortes ficam como segunda e pior instân-cia, porque há mais efeitos negativos associa-dos a eles do que ao outro sistema”, afirma. Eacrescenta que outras discussões – tais comolevar em conta os problemas sociais, pensarnos consumidores de baixa renda e estudar aflexibilidade desse sistema de cotas para osetor industrial a fim de não diminuir tanto onúmero de empregos – “são detalhes”.

Maisumaspecto, sobanálisedaCâmaradeGestão da Crise Energética (CGCE) e desta-cadopelopesquisadorcomosoluçãoalternativaparaacrise,éanecessidadede tornarobrigató-rio para fabricantesdeequipamentoselétricos,

O

eletrodomésticos e, eventualmente, de algunsequipamentos a gás, o cumprimento de umaeficiência mínima. O Congresso Nacional as-sistiu à apresentação de um projeto de lei quepermitiriaa imposiçãodessasnormas, iniciativado próprio presidente Fernando Henrique, naépoca ocupando uma cadeira no Senado. Omesmopresidentequehádoismesesdissenãoestar ciente da situação caótica emque se en-contravao setor deenergia.

Finalmente,Bajayapontaoaumentodaofer-tadeenergiacomonecessidadeparaopaíssairda crise. E condiciona isso a duas possibilida-des: emcurto prazoe comcusto relativamenteelevado, épossível optar pelautilizaçãodemo-toresadieselacopladosemgeradoreselétricose motores a diesel ou turbinas a gás operandoemciclo aberto, paraaumentar a co-geração.

“Em momentos de emergência, isso é umrazoável quebra-galho.No longoprazo, a idéia

é viabilizar térmicas e hidroelétricas. Levando-se em conta que a tábua de salvação não ésomente a implementação de termelétricas agás, porque o gás se tornou caro, e que gran-deshidroelétricasrequereminvestimentosmuitoaltos, com o agravante de que o Estado nãotem hoje o mesmo acesso a financiamentosdas décadas de 70 e 80 para alavancar essasenormes obras.Além disso, a iniciativa priva-da tem restriçõesquantoa investir no setor, porse tratar de um empreendimento de capital in-tensivo edematuração longa.Portanto, imagi-nar as hidroelétricas comosalvação e seguir atendênciadopassado, tambémnãoéalgo rea-lista”, avalia Bajay.

“Defendo o investimento em matrizesdiversificadas para suprimento de energia elé-trica. E concordo que haja um potencial demelhoria operacional do sistemaaser explora-do”, acrescenta.

ma regulador”, observa. “É, inclusive, um dos desafios que estouencarando: modificar o modelo para prever formalmente essaconvivência e buscar uma relação que faça com que as duasformas de capital se completem. Os riscos detectados são gran-des. Esta análise será aprofundada em um relatório que chegaráao presidente”, adianta Bajay.

As alternativas em estudo

Vista área de hidroelétrica, maior fonte de energia no Brasil: saída é buscar mistura de tecnologias com aumento tarifário mínimo

Bajay, da FEM: um crítico gerenciando a crise

Foto: Neldo Cantanti

Foto: Antoninho Perri

Universidade Estadual de CampinasJulho de 2001

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ÁLVARO [email protected]

engenheiro mecânico Secundino Soares Filho, um dos mai-ores especial istas em energia elétrica do país, não t em dúvi-das: a falta de investimento e as trapalhadas do governoforam duas das principais causas que alimentaram a crise

que atinge o setor. Professor da Faculdade de Engenharia Elétrica e deComputação (FEEC) da Unicamp, Secundino desenvolve com sua equipesoftwares para otimização e gerenciamento da produção de hidroelétricas.Na entrevista que s egue, o engenhei ro d iz que o s istema é projetadopara o desperdício, i senta São Pedro ao provar que as v azões r egistradasem I taipu f oram acima da média nos ú l timos anos, e prega a c riação decargas i nterruptíveis para os grandes c onsumidores.

P- Por que o país chegou nesse estágio de déficit ener gético?

Secundino Soares Filho - Não há dúvidas de que foi devido à fal ta deinvestimentos em novas usinas e em novas l i nhas de produção, s obre-tudo em novas usinas. As r azões para essa f al ta de i nvestimento é queprecisam ser analisadas com mais profundidade. Acredito em umaconjunção de f atores. O governo r esolveu, s imul taneamente, privatizaro setor elétrico e r eestruturá-lo. Trabalhava de uma maneira e mudoutudo – acabou c om o Departamento Nacional de Águas e Energia Elétri -ca, c riou a Agência Nacional de Energia Elétrica ( Aneel) e o ONS ( Opera-dor Nacional do Sistema Elétrico). Enfim, r emodelou o s etor e privatizouas estatais. Duas c oisas f ei tas ao mesmo t empo e mal i mplementadas.Houve mui to atraso. A privatização do s etor e létrico j á era para t erterminado e, entretanto, s ó f oi executada em nível das distribuidoras, asque primeiro recebem o dinheiro do usuário.

P - Quais foram os efeitos imediatos dessa política?

R - Quando a privatização s e encaminhava para a geração, que era oobjeti vo maior da r eestruturação, t odo mundo no Estado estava acomo-dado. Não havia estímulo para buscar maior eficiência. A privatizaçãotinha por f inal idade c riar um ambiente c ompeti tivo na área da geração.E, para i sso, era preciso d ividi r as empresas, mui to grandes em s uamaioria. A Cesp, por exemplo, foi quebrada em três; Furnas deveriapassar pelo mesmo processo, já que nenhuma empresa de geraçãopodia ter mais que 20% do mercado. A reestruturação parou no meio.Furnas não conseguiu ser privatizada, a oposição em vários setorestornou-se mui to grande. O processo f oi mal executado; não di ria que omodelo estava errado, mesmo porque nem chegou a ser testado.

P - No campo da geração, dá para quantificar o montanteprivatizado?

R - Cerca de 20%. S ão t rês empresas: a Gerasul ( antiga Eletrosul ),a Cesp/Tietê e a Cesp/Paranapanema. Os 80% restantes continuamnas mãos de estatais que estão cheias de dinheiro no cofre e nãoinvestem porque constavam do programa de privatização.

P - O processo foi paralisado?

R - Exatamente. As estatais de geração pararam de expandir porqueestavam na f i la da privatização, que não andou. A única que privatizoumesmo foi a Cesp, que agora também adiou a terceira parcela dolei lão Cesp/Paraná. Nesse c aso, acho que a c ulpa pode s er atribuída àsautoridades da área – o ministro de Minas e Energia e r epresentantesda Aneel . E, no meio dessa confusão, fomos pegos pela crise energética.É complicado saber para onde vai caminhar o processo. Ficar no meiodo caminho, como estamos agora, é a pior das situações.

P - Os críticos das privatizações denunciam que as empre-sas demitiram muito e investiram pouco. O senhor concorda?

R - As empresas de geração f oram as únicas que i nvesti ram. A Duck,por exemplo, que comprou a Paranapanema, está construindo trêstermelétricas; a Gerasul já aumentou sua capacidade de geração, eacredi to que a Cesp/Tietê esteja f azendo o mesmo. O problema não estánas empresas privatizadas, mas nas estatais, para as quais novas obrasnão fazem muito sentido. Quem vai querer comprar uma empresa queestá se comprometendo com dívidas de longo prazo? Ninguém investeem usinas à v enda. Mas não s e pode demorar s eis anos para v endê-las.

P - Poderia precisar quando surgiu a crise?

R - Ela veio lentamente. Num sistema hidráulico como o nosso, oque s e f az é c alcular qual a disponibi l idade de uma usina na s i tuaçãomais c ríti ca de c huvas. O período de maio de 1952 a novembro de 1956registrou a pior s eqüência de v azões do histórico. Então, em c ada novausina, c alcula-se o que e la pode produzi r num período t ão s eco c omoaquele. Chamamos esta c apacidade de ‘ energia f i rme’ . O p lanejamentoprevia ainda que a energia f i rme do s istema deveria atender o c resci -mento da demanda. Para i sso, novas usinas deveriam s er c onstruídas.Logo, a gente sempre trabalhou sem depender de São Pedro. Não voudizer sem depender para sempre, porque pode vir uma seca pior que ade 52. Mas era este o c ri tério de planejamento: s uportar pelo menos aseca mais c ríti ca do histórico. Ocorre que, paulatinamente, quando osinvestimentos de geração f oram s endo atrasados e postergados, a de-manda ul trapassou a oferta de energia f i rme. A parti r desse momento,ficamos dependendo da chuva. E choveu. Choveu bem em 97 e 98; em

99 e 2000 também choveu razoavelmente no Su-deste, acima da média. Mas c omo a f al ta de i nves-timento foi maior do que a chuva que caiu, nãohouve s olução.

P - Era necessário, então, um mínimo de investimentos?

R - Com os investimentos necessários, para continuar no critérioantigo de aumentar a energia firme à medida do crescimento dademanda, não teríamos problemas. O sistema sobreviveu bem dessaforma, desde 1960 a té hoje. O que houve f oi desperdício de energiapor falta de um planejamento mais equilibrado.

P - Como essa energia era desperdiçada?

R - Como o planejamento do s istema é f ei to para esse período c rítico,ele está sempre com sobras, pois normalmente as condições hidrológicassão mais f avoráveis do que em s i tuações mais c ríti cas. Sempre denun-ciamos que não havia – e nunca houve – a preocupação de dar umautilidade econômica para essa energia, que chamamos de secundária.É aquela que vem acima da energia firme, quando as condiçõeshidrológicas são f avoráveis. Essa energia secundária f oi vertida no s iste-ma brasi lei ro. E a gente s empre apontou o c ontra-senso de desperdiçá-la e não de aproveitá-la.

P - Qual seria, nesse caso, o mecanismo a ser utilizado?

R - A al ternativa mais adequada s eria c riar c argas i nterruptíveis. Osgrandes consumidores teriam uma garantia de fornecimento maisbaixa que a dos consumidores usuais, mas com uma tarifa tambémmenor. Durante cinco anos de vida útil de um empreendimento –uma produtora de alumínio, por exemplo –, a energia custaria meta-de do preço, porém com energia disponível em 70% ou 80% do perío-do. Ou s eja: por quatro anos, s e f orneceria energia mais barata; porum ano, não se forneceria nada. Com isso, o país formaria ummercado secundário. E, numa crise como a atual, simplesmentesuspenderia o fornecimento para esses grandes consumidores, sobrespaldo de c ontrato. Não adianta s ó c ortar 20%.

P - Esse procedimento não agravaria o quadro de desemprego?

R – Setenta por c ento do preço do a lumínio c orresponde a energiaelétrica. Portanto, a empresa pode até manter o pessoal , que é um c ustomenor, compensando- o c om a t ari fa de eletricidade mais barata.

P - Esse modelo é adotado em outros países?

R – Um exemplo é a Hidro Quebec, no Canadá. É i nteressante que asempresas de alumínio do Maranhão t enham r ecebido i ncentivos t ari fários,sem a c ontrapartida da garantia. Pagam menos pela energia e precisamfazer c omo nós: economizar 20%. Sendo uma e letri cidade mais barata,ela deveria ser i nterruptível. Na hora do contrato, esse aspecto não mere-ceu atenção. A energia hidrául ica que c riaria um mercado s ecundário nãoé nada desprezível. Temos mais ou menos 45 mil megawatts (MW) deenergia f i rme no s istema brasi lei ro e, em média, 10.000 MW de energiaque é vertida.

P - O senhor poderia explicar melhor a energia vertida?

R – É uma água que sai pelo ladrão, quando poderia passar pelaturbina e produzir energia elétrica. Se não existe mercado e o r eserva-tório está mui to c heio, e la passa pelo v ertedouro e s egue r io abaixo.Perde-se a c hance de, naquela usina, produzi r eletricidade. Na usina debaixo, se verter, perde-se mais um pouquinho. Então, t odas as usinasque estão vertendo num determinado momento e que tinham capaci-dade de t urbinar, desperdiçam megawatts. Isso tem sido comum nosistema brasileiro. Tr ata-se de um s istema projetado para o desperdício.

P - Mesmo em épocas de seca?

R - Em época de s eca, evidentemente os r eserva-tórios estão t ão baixos que não s e v erte nenhumdeles. Pode-se verter eventualmente, como agoraem I taipu. Mas, por f al ta de l inha de t ransmissão,

não se pode t razer a energia para a r egião carente, que é a Sudeste.

P - Seria mais uma das conseqüências da falta de investi-mento no setor?

R - Sim. Pelo menos 60% dos i nvestimentos em energia elétrica s ão emgeração; c erca de 20% a 25% em t ransmissão; e o r esto, em distribuição.Fal tou muito na geração e fal tou também na transmissão. Tanto que estamosvertendo no Norte, em Tucuruí, e no Sul , em I taipu, mas não c onseguimostrazer essa energia para a r egião em c rise. As l inhas de t ransmissão ameni-zariam o r acionamento, apesar de i nsuficientes para evitá-lo.

P - A opção por termelétricas como fonte de energia é objetode polêmica. Como o senhor vê isso?

R - A t ermelétrica é uma al ternativa, mas não a i deal . O i deal s eriacontinuarmos com a expansão hidroelétrica, de maneira que, com aenergia f i rme das h idrául i cas, nossa demanda pudesse s er a tendida –com o porém de formarmos um mercado para a energia secundária.Vejo c omo s aída mais econômica a c riação no s etor i ndustrial de proces-sos que trabalhassem tanto com a eletricidade como com outro combus-tível . Uma padaria, por exemplo, pode t er um f orno elétrico e um a gás:com a energia h idrául i ca d isponível , s eu preço no atacado v ai f i carbarato; porém, se a s i tuação nas hidrául icas f or di fíci l , pode-se desl igaro f orno elétrico e acionar o movido a gás. I sso deveria s er f ei to em t odosos processos i ndustriais onde houvesse possibi l idade. Outros países ado-tam o modelo. Na década de 80, quando havia energia sobrando, ogoverno i ncentivou a c hamada e letrotermia – s ubsti tuição de processosque usavam óleo c ombustível e gás no s etor i ndustrial , por eletricidade.

P - E o que aconteceu depois?

R - O governo não f oi i ntel igente. Deixou de f inanciar as i ndústriaspara que mantivessem os equipamentos operacionais antigos. Agoraseria o momento de aprovei tá-los. É i mportante que o país t enha essaflexibilidade. A alternativa da termelétrica também permite essacomplementação, mas e la t ambém precisa s er f l exível . E, pelo j ei to,os contratos de fornecimento do gás não prevêem o desligamentoquando f or necessário; o c ombustível dela v ai estar pago e a usina v aioperar de qualquer j ei to. Se f or para c onstrui r t ermelétri ca v isandofirmar energia secundária, que ela seja efetivamente flexível. Masnão é a solução ideal porque, quando se produz eletricidade para umatermelétri ca, a provei ta-se s ó 30% da energia primária que existe nocombustível.

P - Por que é tão dispendioso?

R - Por c ausa do processo de t ransformação do c alor em eletricidade,há uma perda muito grande, da ordem de 70%. Na transmissão dessaeletricidade, perde-se mais uns 10%. Depois, acaba-se usando outra v eza eletricidade para aquecer a água, fazer um forno, ou seja, paraproduzir c alor. Por i sso, acho preferível que a c omplementação s eja f ei tano processo i ndustrial , l á no c alor; n a f onte, di retamente, em v ez de s eproduzir eletricidade para, depois, usar a energia no processo f inal .

P - Isso é factível no cenário de hoje?

R - Perfei tamente f actível , desde que o governo c rie i ncentivos paraque os industriais mantenham equipamentos nas duas fontes deenergia. O problema é que i sso não s e f az de uma hora para outra. Énecessário defini r um p lano agora, para daqui a c inco anos, t alvez,obter r esul tados.

P - Como o gás supriria a grande indústria?

Secundino Soares contesta governo,Secundino Soares contesta governo,Secundino Soares contesta governo,Secundino Soares contesta governo,Secundino Soares contesta governo,afirmando que nível de chuvasafirmando que nível de chuvasafirmando que nível de chuvasafirmando que nível de chuvasafirmando que nível de chuvas

esteve acima da média e que sistemaesteve acima da média e que sistemaesteve acima da média e que sistemaesteve acima da média e que sistemaesteve acima da média e que sistemahidroelétrico brasileiro é projetadohidroelétrico brasileiro é projetadohidroelétrico brasileiro é projetadohidroelétrico brasileiro é projetadohidroelétrico brasileiro é projetado

para o desperdíciopara o desperdíciopara o desperdíciopara o desperdíciopara o desperdício

O

Secundino Soares, daFEEC: “Estatais de

geração pararam deinvestir porque estavamna fila da privatização”

‘São Pedro nada tem

Fotos: Neldo Cantanti

Universidade Estadual de CampinasJulho de 2001

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Page 5: causas, efeitos e alternativas por

R - Di retamente. No gasoduto se faz rami ficações para as termelétricas.Se f aria o mesmo para l evar o gás às i ndústrias e r esidências. Nasci emSantos e, quando era pequeno, o f ogão a gás de c asa não t inha boti jão.Outro exemplo é o c huvei ro e létrico, um v i lão, que atinge de 8% a 9% doconsumo total no país. E é um consumo concentrado no horário maisnobre, da ponta, que exige mais investimentos. Caso houvesse umacurva de c arga c onstante, bastariam i nvestimentos para atender àquelademanda, com linha de transmissão, geração etc. Quando se tem umacurva com ponta muito acentuada, é necessário reprojetar o sistemapara aquela hora. É necessário t er gerador, l inha de t ransmissão, s iste-ma de d istribuição, t udo d imensionado para a ponta.

P - Qual seria esse horário de ponta?

R - D as 18 às 21 horas, mais ou menos. Esse horário c oncentra a indaalguma c arga i ndustrial r espei tável , a lém da i luminação, c huvei ro elé-trico, as pessoas c hegando em c asa... E outro detalhe do c huveiro: estáse usando mais uma vez energia nobre, de certa forma limpa noconsumo final, para uma finalidade menor, que é a de aquecer água. Ogás poderia s er uma al ternativa i mportante nas r esidências. Ou a ener-gia solar, a inda melhor que o gás, pois não gasta nada c om c ombustível ,apenas com equipamento.

P - Onde mais o gás poderia ser usado?

R - Na climatização de shoppings, por exemplo. Mas recomendoque s e possa operar c om os dois c ombustíveis, para não f i car depen-dendo da chuva. Não está chovendo? Então, coloque-se gás em todolugar. Com isso, cai o consumo de eletricidade e os reserv atóriosganham fôlego. Eles não esvaziam de repente, de um mês para ooutro, mas de um ano para o outro. Numa seqüência de ano, quandose percebe que o r eservatório está c aindo, é na hora de pôr t odas asopções térmicas em jogo.

P - E os índices fluviométricos das vazões das usinas?

R - No caso de Itaipu, as vazões foram acima da média nos últimosquatro anos. O sistema deveria ser suficientemente robusto para,mesmo no período crítico, agüentar o atendimento da demanda, casose houvesse investido normalmente.

P - Culpar São Pedro é uma grande bobagem....

R - Temos uma demonstração líquida e certa de que, pelo menosno Sudeste, a c ulpa não f oi de São Pedro. Derruba-se a t ese. Pode s erque no Nordeste tenha havido uma conjunção com a questão dachuva, mas não possuo dados.

P - Itaipu é responsável por quanto do consumo?

R - Por pelo menos 25% do t otal no País. Na homepage d o ONS,encontra-se a s i tuação das usinas. No boletim de operação é r egistradaa energia armazenada no sistema da região Sudeste. Mostra que, emmaio de 2000, quando os reservatórios tinham de estar cheios, elesoperavam com 60% de sua capacidade.

P - O que isso significa?

R – O fato de o sistema não ter recuperado os níveis de armazenamentoem maio é i ndicati vo de que j á está t rabalhando s ob uma s i tuação deestresse. Seja por c huvas baixas, s eja por expansão da geração aquém dademanda. No Sudeste, c omo as c huvas não f oram baixas, o problema éfal ta de i nvestimento. Em 1999, j á havíamos f ei to um alerta sobre a f al tade i nvestimento e de gerenciamento mais c ri terioso nos r eservatórios.Sentíamos que a coisa estava f icando c rítica.

P - E se as chuvas superassem as expectativas?

R - Em abri l de 99, s e f alassem que f al ta de i nvestimento não s eriaproblema, e se chovesse bem, o buraco passaria despercebido. Porisso, às v ezes, os pol íti cos declaram que o a lerta é manobra de quemquer liberação de recursos para investimentos. Em 1986, aconteceuuma situação semelhante. Os técnicos, já naquela época, alertaramque algo de urgente precisava s er f ei to. O então ministro de Minas eEnergia, Sigeaki Ueki , i mpediu que s e c olocasse as t érmicas a p lenacarga, porque consumiriam US$ 1 milhão por dia de combustível. Elefalava: “ Vamos esperar mais um pouquinho para ver se chove”. Esteé o erro. Mas choveu, passou e ninguém soube desse risco de raciona-mento em 86. Em 1987, no Nordeste, a situação estourou, houveracionamento. O Sudeste escapou porque o Ueki “previu” as chuvas.Na r eal idade, ele t eve mui ta s orte.

P - Hoje acontece a mesma coisa...

R - Sim. Quanto tempo vai durar esse racionamento? Se vier umachuva abundante como a de 1982, em novembro estaremos saindo comvertimento, c om t odos os r eservatórios c heios. Apesar do atraso nos i nves-timentos, o s istema v ai s uportar mais um ou dois anos; i rá c aindo, maisque o normal, mas agüentará mais um tempo. Ta lvez, aí, acelerando asobras de geração, v ol temos à normal idade um pouco mais à f rente.

P - E do contrário?

R - Se vier uma crise como a de 1952 a 1956 – o que não vemacontecendo porque as v azões estão acima da média – , a c oisa r eal -mente vai ficar muito complicada. T eremos racionamento mais vio-lento. Aliás, lembro outro erro: pelo nível de armazenamento dosreservatórios, e pelo desequi l íbrio entre a geração e a demanda, j ádeveria ter sido iniciado um racionamento em 2000, de 5% a 10%.

Não incomodaria ninguém, não aumentaria o desemprego, nãohaveria maior repercussão e surtiria o mesmo efeito que esses20%. Na modelagem do problema, chamamos isso de raciona-mento preventi vo. Os modelos do s etor e létri co brasi lei ro c olo-cam um c usto de défici t mui to a l to.

P - Como assim?

R - No primeiro megawatt-hora que você corta, o custo é de US$300. O que acontece? Os modelos temem o déficit, que é muitocaro, e v ão usando o r eservatório, pegando água onde existi r, paraevitar o racionamento.

P - É um modelo equivocado?

R - Está errado. O racionamento de 1% ou 2% da demanda nãocusta US$ 300 o megawatt-hora, não custa nada. Custa o preço deuma campanha na televisão para pedir que as pessoas economi-zem. O modelo provoca a situação na qual o reservatório vaiesvaziando e ninguém fala em racionar. Até quanto ele agüenta,é um problema de modelagem. Quando chega no nível em que seencontra, estoura e vem o alerta: é preciso racionar 20%. Oimpacto econômico disso é muito grande.

P - Caso não houvesse racionamento, qual seria o cená-rio?

R - As usinas nunca trabalharam num nível tão baixo dearmazenamento. Os próprios técnicos estão muito preocupados:não sabem o que acontece numa usina com o nível de 10%, quala qualidade da água que passa pela turbina. Nunca se operounessa f ai xa. O que s e define c omo v olume úti l é j ustamente a téonde você consegue operar, teoricamente. Os modelos acreditamque é possível operá-la. Mas, na prática, não s e s abe.

P - Quais seriam os riscos dessa operação?

R – A o c onstrui r uma usina e um r eservatório, v ocê pode f azeruma medição topológica bem clara do reservatório, calculandovolume em f unção da c ota. Mas, a parti r do f uncionamento, v em oassoreamento acumulado no rio durante anos. Não se sabe maisqual é a t opologia l á embaixo. Quando o r eservatório c hega ao nívelatual de armazenamento, surgem as preocupações: pode entraralguma coisa na turbina e danificá-la, o equipamento pode nãofuncionar porque a água está mui to s uja, a gente não v ai t er umasurpresa?... Não s e s abe. Se não t ivéssemos esse r acionamento, j áestaríamos batendo no nível mínimo dos reservatórios. Estaría-mos, t alvez, t endo s urpresas desagradáveis.

P - Em que nível estão hoje?

R - Parou de descer, o r acionamento j á c omeçou a f azer efei to.Estamos na ordem de 32% de energia armazenada no sistemaSul/Sudeste e alguma coisa próxima dos 35% no Nordeste. Denovembro para frente, não há perigo, porque os reservatórios sóenchem, as v azões s ão mais f avoráveis. J anei ro, f everei ro e março s ãoos três meses de ouro, quando chove quase 50% da vazão do ano. Porisso, não adianta muito torcer para chover agora. Essa chuva deinverno não tem impacto energético importante. O que pode alterar oquadro é uma chuva boa de novembro em diante. Contudo, se vieruma seca, o racionamento terá de se prolongar por 2002 e 2003.

P - O senhor adota alguma linha de pesquisa nessa área?

R - S im. É j ustamente s obre c omo operar o s istema de f orma a obtero maior rendimento possível. As usinas trabalham com uma vazãomédia. Em Ilha Solteira é de 5.224 metros cúbicos por segundo. Comessa turbinagem, a potência da usina é de 2.199 quilowatts, caso oreservatório encha 100%. Agora, em 16%, a potência despenca. A quedade água da usina é f undamental para a potência produzida; r eduzida aqueda, perde-se potência. A produti vidade da usina, por s ua v ez, émedida em megawatts por metro cúbico por segundo. Ou seja, a produ-tividade de I lha Sol tei ra é de 0,3 megawattz ( 16%) – ou 311 qui lowattspor metro cúbico por segundo. Elevando o reservatório, deixando-ocheio, a produção v ai a 0,4 megawatts.

P - E o que acontece hoje, com os reservatórios vazios?

R - Estamos gastando mais água do que o normal para produzir amesma eletricidade. Nossa equipe trabalha então em como operar osistema, o que envolve o planejamento de longo prazo (alguns anos àfrente), de médio prazo ( o próximo ano) e, por f im, o de c urto prazo,que pode ser a próxima semana ou até definir, hora a hora, quantocada usina deve z erar. O objetivo é economizar o máximo de água parapoder atender a demanda e tornar o sistema, inclusive, mais seguropara s uportar s i tuações de s eca no f uturo.

P - Vocês buscam a otimização da produção?

R - J ustamente. É o gerenciamento dos r eservatórios, da operaçãodas usinas e das turbinas. O rendimento da turbina depende daqueda; s e e la c ai , o r endimento t ambém c ai . Trabalhamos muito comessa parte de otimização f ísica do s istema hidroelétrico.

P - Esses cálculos vêm sendo aplicados nas usinas?

R - A Duck nos c ontratou para otimizar o Paranapanema. São o i tosusinas. Estamos f azendo a otimização e o gerenciamento dos r eservató-rios – t rês em o i to usinas – e c uidando da produção de s uas máquinas

para obter o maior rendimento. Ficaram mui to sati sfei tos, porque usandonosso trabalho já conseguiram uma economia, no despacho das máqui-nas, da ordem de 3%. Com esta c rise energética, o Comi tê de Gestão daCrise c riou uma s érie de f orças-tarefa, uma delas para r ever os procedi-mentos do despacho de máquina. Essa força-tarefa é constituída portodos os agentes: ONS, Aneel , ministérios e empresas. A Duck l evou onosso t rabalho para l á.

P - E os procedimentos estão sendo adotados?

R - S im. Eles procuram aumentar a efi ciência do s istema, t i rar omáximo provei to, o que é urgente dentro dessa c rise. Estamos desenvol -vendo s oftwares e apl icativos que f azem o gerenciamento dos r eservató-rios e a escolha da máquina e da t urbina que devem s er operadas, paraque a maior energia seja produzida com a menor quantidade de água.

P - Dá para ser otimista num cenário como esse?

R - Normalmente sou otimista. Ve jo mui tos aspectos posi tivos nes-sa crise. Primeiro: o Procel (Programa de Conservação de EnergiaElétrica), i nsti tuído pelo Ministério de Minas e Energia em 1985, nãofez em 15 anos o que nós vamos fazer, provavelmente, em 5 meses.Ou s eja, a c ri se é mui to r i ca por c riar uma necessidade – que é a mãedas i déias e das i niciati vas – de s ai rmos desse processo mui to maisracionais e e fi cientes. Não s ó no c onsumo r esidencial , mas s obretudono industrial. Aquilo que a curto prazo vai provocar um impactonegativo nas empresas – demissões, principalmente –, a médio elongo prazos v ai t razer um di ferencial posi tivo para a economia brasi -lei ra: mais eficiência do ponto de v ista c ompeti tivo. O próprio s etorelétrico ganhará um rumo em termos de novas fontes e dogerenciamento das que j á d ispõe. Sai remos f ortalecidos e r ediscutindoseriamente a questão da matriz energética nacional.

P - Em que sentido?

R - Precisamos colocar um pouco mais de gás na nossa matrizenergéti ca, mas não necessariamente nas t ermelétri cas. Possivelmenteé mais i nteressante c olocá-lo di retamente no s etor i ndustrial , manten-do a opção da eletricidade. O s istema hidrául ico é v ariável , c omo s afra.Nesse c aso específico, a notícia r uim é que, na f orma de operação dosistema hoje, o desperdício é de 10% em r elação ao que poderia s eraprovei tado usando, por exemplo, o programa que a gente desenvolveu.A boa notícia é que podemos economizar 10% sem gastar um tostão.

a ver com isso’

Universidade Estadual de CampinasJulho de 2001

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TATIANA FÁ[email protected]

ponta de um iceberg. Esta é a imagem quevem à mente do professor Wilson Cano,do Instituto de Economia (IE) da Unicamp,quando o assunto é crise energética. A fal-ta de uma política de investimentos, a sub-missão às normas impostas pelo Fundo Mo-

netário Internacional(FMI) e a aberturadesordenada ao capi-tal estrangeiro são, se-gundo o economista,razões gritantes paranão se acreditar nosurgimento, a curtoou médio prazo, dequalquer fio de luzno fim do túnel.

Cano afirma que odesmonte da estrutu-ra de planejamentoenergético – assimcomo em outros seto-

res vitais – colocou o Brasil frente à exi-gência de redução imediata do consumo,de um plano de racionamento feito a to-que de caixa, sem explicações concretassobre as medidas adotadas, com inevitávelrepasse dos prejuízos ao consumidor euma expectativa de longevidade da crise.

“Essa fase ruim não é passageira, por duasrazões: primeiramente, pelo problema dageração de energia em si; depois, porquesem energia, ninguém investe. Estamosdeixando de receber investimentos neces-sários para aumentar os níveis de produ-ção a partir do ano que vem. E isso vai de-sencadear uma segunda crise: a da capaci-dade de produção do país, o que afeta todaa economia e acaba em derrocada social,com mais desemprego, mais miséria, maisviolência”, prevê.

O professor ironiza a versão oficial queculpa a estiagem pela crise. Embora admitaque a falta de chuva impediu uma melhoranos níveis dos reservatórios, ele lembra queesses níveis estão baixando desde 1997. “Foipreciso muita fé em São Pedro e muito pouca nosmeteorologistas, além de óleo de peroba suficientepara encerar a cara e vir afirmar que a estiagem moti-vou a crise energética”, critica.

Cano salienta que soluções imediatistas não serãosuficientes para tirar o país do breu. Para ele, o planode redução do consumo, concretamente, vai resolvermuito pouco. Em setembro, se os níveis de água nãotiverem voltado ao normal, a população deverá sofrercom um processo de racionamento efetivo. E, esperaraté lá pela graça divina, seria a prova cabal de que,nem diante da crise instalada, o governo busca plane-jar o setor de infra-estrutura.

As perspectivas pouco animadoras fazem Wilson Canoalertar para o inadmissível: que as alternativas de mé-dio prazo, principalmente a instalação de linhas detransmissão de energia, sejam descartadas a pretextode dificuldades financeiras. Ele acha que esta discus-são não tem recebido atenção suficiente. “Num prazode seis meses, ou menos de um ano, não devem serconstruídas as linhas de transmissão necessárias. As tur-binas a gás de algumas termelétricas já estão sofrendoatraso na entrega prevista, de seis meses. Essastermelétricas apresentam elevados custos por kWh, porconta do preço do gás. Portanto, todas as soluções

Ponta de icebergW ilson Cano dirige duras acusações ao governoe alerta população para o que ainda está por vir

possíveis estão passando do critério do médio para ode longo prazo”, observa o economista.

Submissão – De acordo com economistas e cientistaspolíticos de todo o país, as imposições do acordo fir-mado entre o Brasil e o Fundo Monetário Internacional(FMI) – em que também investimentos significam des-pesas – serviram muitas vezes como escora para a faltade vontade política. A submissão a essas normas interna-cionais tem sido o mote preferido para as críticas dessesespecialistas, que ilustram a gravidade da crise energéticacom a contraposição dos investimentos no setor duran-te os anos 70 e a aridez amargada na década de 90.

Cano recorda que os investimentos na décadade 70 eram, pelo menos, condizentes com a de-manda do setor energético. “Nos anos 80, inves-tiu-se pouco diante do que era consumido. Nosanos 90, o governo reduziu ainda mais esse gasto,devido aos cortes de crédito e de investimentopúblico resultantes da política monetária e àsprivatizações, que nada resolveram e encheram dedinheiro o bolso de espanhóis e de empresáriosbrasileiros ‘espertos’ Com isso, a expectativa deinvestimentos no setor elétrico passa a ser de setea dez anos”, afirma.

Para o professor Wilson Cano, o reflexoda falta de planejamento e de investimentono setor energético não vai significarsomente o repasse do prejuízo aoconsumidor, a curto prazo. “Na verdade, apopulação brasileira vai levar outracacetada daqui a dois anos, porque ocusto do kWh estará quase três vezesmaior”, projeta. É preciso, de acordo como economista, retomar a capacidade deinvestimento o mais rápido possível, a fimde tentar colocar o setor de energia elétricanos eixos em uma década.

“De onde virão os recursos financeirospara isso? Da forma como estão operandohoje o governo federal e os governosestaduais, em que as dívidas tomam umpapel preponderante no gasto público, comjuros e amortizações, não há recursos parainvestir. Isso precisa ser rediscutido, dianteda necessidade de se fazer uma opção real:ou pagamos os banqueiros ou construímosplantas de energia elétrica”, adverte.

Mais que enfrentar esta fase negra, debusca de investimentos, é fundamentalcolocar à luz da realidade as diferençascruciais entre o problema da distribuição eda geração de energia elétrica no Brasil.Cano afirma que o investidor privadosempre preferiu aplicar seu capital nadistribuição de energia. “A geração é uminvestimento cujo retorno demora muitotempo e de lucratividade modesta. Numsistema hidroelétrico, o investimento épesado, de custos operacionais fixospesados; é ingenuidade ou mau-caratismodizer que o capital se interessa por isso.Para as termelétricas, a necessidadederecursos é menor, a execução mais rápida eos custos fixos, muito mais baixos. Investirna distribuição é como vender sorvete emporta de escola: o retorno é primoroso eimediato”, observa.

Solução política – O economista lembraque a solução não é apenas técnica. É,sobretudo, política. “Qualquer analistapolítico sério vê, hoje, comoextremamente difícil para este governofazer uma recostura política e ganhar aeleição de 2002. E a situação só vai mudarcom um novo governo, originário deoutra base política, distinta desta uniãoconservadora entre o PSDB, PMDB e PFL.Pouco importa se será o PT ou a ala doPMDB não comprometida com JáderBarbalho e Fernando Henrique. Quemestiver lá, vai ter que resolver oproblema”, afirma.

Novamente irônico, o professor antecipaque de nada adiantará o futuro presidenteassumir e prometer, por exemplo, baixaros juros de supostos 21% para 18%. “Nãohá atividade, salvo o tráfico de cocaína,que ofereça uma taxa de lucro de 18%.Nenhum investidor vai arriscar seudinheiro onde os juros são tão altos e nãoexiste energia elétrica. Esse modelo deantidesenvolvimento precisa ser extinto. Eo povo deve saber o que fazer com seuvoto em 2002”, desabafa.

Um desabafo necessário, pregando umamudança necessária, na avaliação deWilson Cano. Porque a estruturaorçamentária está comprometida comjuros e amortizações, com uma políticaeconômica totalmente curvada aosdesígnios do FMI e do Banco Mundial.Porque a ponta do iceberg pode sersuficiente para afundar o navio.

AAAAA

Consumidordeverá pagar

três vezesmais pela

energia

WilsonCano, doInstitutodeEconomia:“O povovai levaroutracacetadadaqui adois anos”

Foto: Neldo Cantanti

Foto: Antoninho Perri

Universidade Estadual de CampinasJulho de 2001

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WANDA [email protected]

existência de desperdício de ener-gia f icou evidente j á nos primei rosresul tados colhidos após a implan-tação das medidas drásticas do go-

verno para evitar o apagão. Para o pesquisadorda Faculdade de Engenharia Mecânica (FEM)da Unicamp Gilberto de Martino Januzzi, a re-dução imediata no consumo de cerca de 18%na região Sudeste e de um pouco mais no Nor-deste mostrou que é possível obter uma respostarápida ao apelo de racionamento, principalmen-te por parte do usuário residencial .

“Havia folga. Pelo menos 10% da redução obti-da pode s er i denti fi cada c omo energia que eradesperdiçada; o restante se deve a uma dose desacri fício que o setor doméstico está praticando”.Para Januzzi , o setor públ i co também contribuiunesta primei ra fase, impondo a restrição de horá-rios e servindo de exemplo. Os próximos agentesdevem ser o comércio e a indústria, que precisamaprender como operar economicamente e partirpara a busca de alternativas e aprimoramentotecnológico.

O i mpacto posi ti vo i nicial , no entanto, nãodeve mascarar a realidade: não se atacou aindaos grandes focos de conservação. O professor daUnicamp, que desde maio é o gerente do FundoSetorial de Energia c riado pelo Ministério deCiência e Tecnologia, aponta que há muito afazer nas áreas de geração e transmissão de ele-tricidade. Falou-se bastante, nos ú l timos dezanos, s obre as d i fi culdades que a escolha damatri z energética provocaria ao país. Todos osespecial i stas, inclusive de setores governamen-tais, já sabiam que a crise era inevi tável .

Logo com a entrada em operação da Usina deItaipu, em 1983, e quatro anos depois, com o cortede investimentos em geração e transmissão, a criseatual começou a ser desenhada. Gi lberto Januzzimarca a metade da década de 90 como a época emque o quadro se complicou de vez, tornandoirrefutáveis os s inais de que a confiabi l idade nosistema energético estava afetada.

Na opinião do pesquisador, não é producenteficar f alando do passado, uma v ez que i sto nãoajudará a amenizar o quadro. O fundamental, emsua opinião, é di recionar esforços para soluçõesfuturas, atividade na qual ele tem se debruçadodesde o seu primeiro l ivro, Planejamento Inte-grado dos Recursos Energéticos, d e 1997 – dis-cutindo as questões de meio ambiente, conserva-ção de energia e fontes renováveis –, edi tado emparceria com o pesquisador norte-americano JoelN.P. Swisher. Temas que voltou a abordar no anopassado, com a publ i cação de Pol íticas Públ icaspara Eficiência Energética e Energia Renovávelno Novo Contexto de Mercado. Neste último estu-do, e le c ompara a experiência dos Estados Uni -dos na desregulamentação das empresas com aprivatização do setor no Brasi l .

Januzzi formou-se em matemática pelaUnicamp, mas direcionou sua especialização aparti r da t ese de doutorado na área de Ciênciasda Energia, na Universidade de Cambridge, I n-glaterra, em 1983. Aprofundou seu conhecimen-to em 1990, com um pós-doutoramento na Uni-versidade de Berkeley, Califórnia.

Desperdício fica evidente jáno começo do racionamentoGilberto Januzzi calcula que população reduziu consumode energia em 10% apenas cortando gasto supérfluo

Fundo de Energia – O governo tomou cons-ciência de que a c ri se era i minente na ú l timadécada, o que desencadeou uma série de medi-das como, por exemplo, o ajuste do preço do gáse a aprovação da l ei de eficiência energética,proposta em 1990 e aprovada somente agora,regulamentando o uso de tecnologias mais efi ci -entes para aparelhos e equipamentos que con-somem energia. “Estas foram ações positivas,ainda que i nsuficientes, que a c rise f orçou”,considera o professor.

A c riação do Fundo Setorial de Energia, emmaio, com a destinação de 0,5% da recei ta anuall íquida das empresas para pesquisa e desenvolvi -

mento, é uma decisão fundamental para se bus-car fontes al ternativas de energia, dentro de umplanejamento pol ítico estável e de l ongo prazo.Para este ano, a verba prevista é de R$ 80 mi lhõesa serem investidos em capaci tação pessoal e pes-quisa básica e apl i cada. “ Otimizar o s i stemaenergético leva tempo e as medidas concretas paraa troca de consumo sempre são de médio e longoprazo. Estamos falando de no mínimo cinco anos,mas este setor tem como característica a necessi -dade de um planejamento com pelo menos 10anos de antecipação. Em ações de c urto prazo,tomadas para gerenciar crises, as distorções sãoinevitáveis”, adverte.

AFal ta tecnologia

para produzirenergia eól ica

O pesquisador Gilberto Januzzi, da Unicamp,apontaalgumasopçõesenergéticasparaoBrasil,com grande potencial de uso como a eólica (ape-sar do pequeno domínio tecnológico no país), ouas solar e de biomassa, dois recursos promisso-res e já com capacidade instalada, mas poucoempregadasatéhoje.Nocasodoaproveitamentodo regime de ventos existe enorme potencial nasfaixas litorâneas doNordeste, dePernambucoaoCeará. O principal entrave é a inexistência detecnologia nacional, o que exigiria a adaptaçãodaquelas já existentes na Dinamarca,AlemanhaeEstadosUnidos.Falta, também,ummapeamentoprecisodas regiõesondeépossível uitlizar aener-gia eólica.Até agora só existe uma indústria bra-sileira, emSorocaba, no interior paulista, fabrican-do aerogeradores para o Ceará com tecnologiaalemã.Opapel doFundoSetorial deEnergia seráo de desenvolver esses ajustes, que servirãocomo base para a nossa indústria.

Januzzi anuncia que vão ser retomados estu-dos profundos de planejamento energético paraentender demandas futuras e seantecipar a elas.Outro objetivo é estimular o uso da biomassa,notavelmente nas indústrias de transformaçãodacana em álcool e açúcar, de papel e celulose,além de outros resíduos agrícolas. O Brasil podecrescermuito nestaárea, comavantagemdequejá domina grande parte do conhecimento básicopara sua implantação.

Da mesma forma, a energia solar, que sequerentra na contabilidade da balança energética dopaís, apesar de pesquisada desde a década de70, éumaopçãoextremamente interessanteparacompor as fontes de abastecimento.

Ingredientes – O PIB brasileiro é muito de-pendente do consumodeenergia e umdos ingre-dientes para reverter esta composição de custo éa busca de novas tecnologias. “As fontes alterna-tivas são complementares às de hidroelétrica etermoelétrica,masaenergia solar, por exemplo, étotalmente indicadaparausos térmicosdaeletrici-dade, como no chuveiro, para citar o caso maiscorrigueiro. Ela substitui a escolha equivocadadopassado, quepriorizouaenergia elétrica para taisaparelhos”, acrescenta o professor.

Diante da crise, dos riscos de apagão e daimpotência emse implantar opções viáveis e eco-nômicas imediatamente, odesafiodemédioprazoseráodealcançar a racionalizaçãodoconsumoea diversificação gradual da matriz de produção.Gilberto Januzzi acredita queumpasso importan-te nesta tarefa foi a criação do Fundo, que seconstitui em fonte estável de recursos – umpercentual sobreasvendasdeenergia–eviabilizaum planejamento energético efetivo. Como nocomitê gestor deste FundoSetorial sentam-se re-presentantes de todos os setores envolvidos napolítica energética, o professor da Unicamp acre-dita quehaverámais chancese forçapolítica paraimplantaçãodas fontes alternativas no futuro.

Januzzi, da FEM: “Havia folga no consumo”

Fotos: Neldo Cantanti

Foto: Neldo Cantanti

Universidade Estadual de CampinasJulho de 2001

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CARLOS [email protected]

s tentativas de reduzir o consumo de energiaproliferam na medida das discussões sobre as al-ternativas de geração. Se por um lado é precisodefinir outras fontes para atender a crescente

demanda, por outro deve-se promover o uso racional deenergia, reduzindo o consumo de forma eficiente, semafetar a qualidade dos serviços proporcionados pela ele-tricidade. A substituição das lâmpadas incandescentes porfluorescentes tubulares nas residências e escritórios, ouas de mercúrio por vapor de sódio na iluminação públi-ca, são exemplos de conservação. Já a utilização de lâm-padas fluorescentes compactas, embora representem umaredução de consumo, apresentam outros problemas as-sociados ao que se denomina “Qualidade de Energia Elé-trica”. Segundo José Antenor Pomílio, professor da Fa-culdade de Engenharia Elétrica e de Computação (FEEC)da Unicamp e presidente da Sociedade Brasileira de Ele-trônica de Potência (Sobraep), dentro do contexto demelhor uso da energia deve-se considerar a minimizaçãodo consumo em stand by. Quando equipamentos eletrô-nicos ficam ligados em sistema de espera, sem operar, oconsumo é muito grande. Medições revelam quecorresponde de 10% a 15% da eletricidade utilizada emuma casa de classe média, onde existe rádio-relógio, te-lefone sem fio, forno de microondas, aparelho de som,televisão, computador, videocassete etc.

“Para não fazer nada. O único benefício é o confortode se apertar um controle remoto. As pessoas devemperceber que este gasto representa a metade da meta decorte imposta pelo governo”, alerta o professor. No Ja-pão, onde o consumo doméstico corresponde a 50% daenergia gerada, sendo 13% de stand by, foi implantadauma legislação impondo uma redução drástica. Os japo-neses possuem muitos aparelhos eletrônicos automáti-cos e dificilmente mudariam seus hábitos. Os equipa-mentos ficam ligados na rede permanentemente, peloconceito de “casa e edifício inteligentes”. Então, pas-sou-se a exigir por lei que os aparelhos, após um pri-meiro estágio de stand by, caiam para um nível de con-sumo mínimo, de onde somente reajam a partir doacionamento do controle remoto. Isso exige a instala-ção de um circuito do tamanho de uma moeda noseletroeletrônicos, com o qual cada um deles passa a con-sumir no máximo 1 w att, contra 10 a 15 w atts do gastosem esta modificação. Ou seja, uma queda de 13% para1%. A tecnologia existe e já foi incorporada aos equipa-mentos. “Isso revela que existe uma discussão global emtorno deste assunto”, destaca Pomílio.

Tensão - Outra medida polêmica é a redução da tensãoem 5% anunciada pelo governo. Não exis-te certeza da diminuição do consumo, ava-liada em 2% pelos técnicos do governo,com base em um modelo das cargas elétri-cas. “O quanto, de fato, vai representar deeconomia, depende do tipo de cargas ali-mentadas”, detalha o especialista daUnicamp. Ele explica que existem três ti-pos de cargas: “impedância constante”,como as lâmpadas e chuveiros, para as quaisrealmente deve-se esperar uma redução,pois cada lâmpada vai ficar mais fraca e ochuveiro esquentar menos; “corrente cons-tante”, onde a queda não será tão expres-siva; e as de “potência constante”, tipica-mente os aparelhos eletrônicos de uso do-méstico e industrial, onde, além de nãohaver economia no consumo, se verifica-rá maior perda de transmissão de energia.

“O equipamento eletrônico funciona nor-malmente ao se reduzir a tensão na faixaespecificada, mas a corrente aumenta. O aumento de cor-rente que passa pela fiação eleva as perdas. É um proces-so na contra-mão do resultado esperado. Este aumento

Stand byJosé P omílio informa

que modo de espera

pode representar

até 15% do consumo

de energia em

uma residência

de consumo é marginal, muito pequeno, algo em tornode 0,1%”avalia o professor. Aparelhos do tipo “impedânciaconstante”, mas com controle de temperatura, como oferro elétrico, também não deverão produzir economiacom tensão mais baixa. Isso porque o usuário vai reajus-tar o aparelho para obter a temperatura desejada. A eco-nomia é obtida em equipamentos que não possuem estecontrole, como lâmpadas e chuveiros. No caso de chu-veiros, a tendência é as pessoas elevarem a temperatura.Se já está no quente e não há mais o que aumentar, resul -ta em economia.

No caso das geladeiras, que possuem um sistema au-tomático de religamento a partir da elevação da tempe-ratura interior, ela deverá funcionar mais tempo parafazer o processo de resfriamento e possivelmente au-mentará seu consumo. A alternativa de reduzir a tensãoé utilizada em algumas regiões dos Estados Unidos, nohorário de pico. Neste horário, grande parte da carga édo tipo “impedância constante” (chuveiros e lâmpadas),o que leva a medida a proporcionar economia.

A

José Pomílio,da FEEC:“Redução de5% na tensãonão é certezade economia”

Fotos: Antoninho Perri

Universidade Estadual de CampinasJulho de 2001

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Page 9: causas, efeitos e alternativas por

utro problema que a crise vem tornandocada vez mais importante é o relacionadocom a qualidade da energia elétrica. Con-

ceitualmente, a poluição da rede elétrica é análogaà do ar e da água. “A eletricidade é um bem comum,onde todos compartilham os mesmos recursos. Seeu coloco um aparelho que é poluidor (em termoselétricos), posso estar prejudicando todos que es-tão na rede, porque compartilham o sistema”, co-menta o professor José T omílio. Um exemplo atualé a lâmpada fluorescente compacta, que consomemenos energia, mas impõe grande deformação nacorrente que circula pela rede. “Ela gasta menos águana usina hidroelétrica, mas do ponto de vista ele-trônico é muito ruim. O fator de potência é 0,5,enquanto o ideal é 1. As lâmpadas compactas seri-am melhores com a introdução de uma pequenamodificação no circuito, que já é feita nas lâmpadasvendidas para a Europa, mas não realizada no Brasilpor falta de uma norma técnica que obrigue”, deta-lha Pomílio. Ele acrescenta que existem diversasnormas internacionais limitando a distorção da for-ma da corrente que um equipamento ou uma insta-lação industrial podem produzir, ainda não aplica-das devidamente em nosso país.

“Nós enviamos uma proposta, em nome da Soci-edade Brasileira de Eletrônica de Potência, para aAssociação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT),que respondeu tê-la encaminhado ao setor respon-sável e também à Abilux (Associação Brasileira daIndústria de Iluminação), entidade que deve sen-tar-se à mesa para discutir estas normas. Não exis-tem até o momento estudos para as lâmpadas com-pactas, apenas para as tubulares, que já estão devi-damente regulamentadas”, informa o pesquisador.

A eletrônica de potência é uma área que pesqui-sa o processamento de energia, tendo como umde seus focos a redução do consumo através deequipamentos mais racionais, mantendo ou mes-mo melhorando o desempenho dos processos esistemas. Para José Pomílio, a questão é como terequipamentos elétricos mais eficientes e com mai-or rendimento elétrico. “Por que se troca a lâmpa-da incandescente por uma fluorescente? Porqueproporciona a mesma qualidade de iluminação commenor consumo de energia. Oitenta por cento dapotência da incandescente é calor, enquanto nafluorescente, chamada de luz fria, o consumo pra-ticamente é só para a luz”.

O Procel (Programa de Conservação de EnergiaElétrica) também age neste sentido: incentivar odesenvolvimento e o uso de aparelhos como gela-deiras, máquinas de lavar roupa ou qualquer outroequipamento elétrico que gastem menos eletrici-dade e tenham a mesma eficiência e desempenho.

Estabilizadores – Em relação à qualidade daenergia, algumas situações são especialmente críti-cas, como em hospitais onde existem centenas deaparelhos funcionando simultaneamente. Em umatomografia, por exemplo, ao se ligar simul-tanemanete outro equipamento que polua a redeelétrica, o exame pode apresentar imagemdistorcida que não corresponda à realidade, levan-do a um diagnóstico equivocado. Em muitos ca-sos, o próprio fabricante do aparelho indica a ne-cessidade do uso de um no break profissional quegaranta uma tensão adequada ao equipamento, comuma alimentação separada da rede elétrica localA ABNT definiu recentemente normas técnicas paraos estabilizadores, muito usados em computado-

Eletricidadetambém se polui,como ar e água

res para garantir uma boa tensão de alimentaçãoao equipamento. Estas normas tornaram-se obriga-tórias a partir deste mês de julho. O principal be-nefício é o estabelecimento de padrões mínimosde qualidade para tais produtos, retirando do mer-cado aparelhos tecnicamente ineficazes e até mes-mo perigosos. O papel de um estabilizador é o decompensar variações da rede elétrica de modo amanter a carga estabilizada. Mas geralmente o pró-prio aparelho conta com este recurso. O estabi-lizador funciona, nestes casos, mais como um fatorde segurança adicional, incluindo a proteção con-tra descargas elétricas.

“Certamente os fabricantes de estabilizadores vãoutilizar a redução da tensão proposta pelo gover-no como ferramenta de marketing para vender seusprodutos. Já os filtros de linha, divulgados comoredutores de consumo, não proporcionam econo-mia alguma”, alerta Pomílio. O próprio estabilizador,segundo ele, não colabora com a economia deenergia. “É mais um equipamento ligado, consu-mindo mais alguns watts”, avalia.

Testes emlaboratórioda FEEC:lâmpadascompactasseriammelhorescompequenamodificaçãono circuito

O

CARLOS LEMES [email protected]

ara os consumidores residenciais, segui r à riscacertas recomendações simplistas que o governo

federal anda i nsistindo em populari -zar, na campanha de economia de ener-gia elétrica, pode resul tar em mais quea simples cansei ra de trocar todas as

lâmpadas tradicionais da casa pelas de modeloconsiderado menos “gastão”, e até mesmo emprejuízo de terem aparelhos eletroeletrônicos da-ni ficados. O alerta é da professora FranciscaAparecida de Camargo Pires, do Departamentode Sistemas e Controle de Energia da Faculdadede Engenharia Elétrica e de Computação (FEEC)da Unicamp. Segundo ela, de nada adiantará oesforço casei ro se as concessionárias não foremobrigadas a adequar a tensão nas redes secun-dárias ao nível das novas taxas reduzidas de con-sumo que estão sendo impostas.

“A primei ra providência indicada pelo governoaos c onsumidores r esidenciais f oi a de t rocar aslâmpadas incandescentes pelas fluorescentes com-pactas. Acontece que esta, de um modo geral , cau-sa distúrbios na rede”, esclarece a engenheira. “Sea gente f or moni torar a onda da c orrente destaslâmpadas, veri ficaremos que, de sinoidal , não temnada; a forma é totalmente picotada e, para a mai-or parte dos consumidores, poderá se comportarcomo cargas não-l ineares. Isso pode causar algunsproblemas na própria distribuição e mesmo atin-gir o sistema de transmissão”.

A explicação técnica, segundo ela, é a seguinte:“Cargas não-l ineares podem acarretar sobretensões;além disso, habi tualmente, quando uma carga nor-mal (aquela que corresponde ao consumo normal)é l igada, você tem a tensão num determinado nível ,porque i sso f oi r egulado, não nos postes, mas emsubestações encarregadas de manter o abastecimentode uma certa área. Quando você al ivia muito a carga,a tendência é a tensão na rede aumentar”.

Lembrando que a “grande ansiedade das pes-soas é ter de economizar em função da média deconsumo registrada no ano passado”, a especia-l ista frisa: “Só que aquela, até então, era a médiaque normalmente você e seus vizinhos tinhamcomo consumo sob certa tensão. Agora, com mui-ta gente baixando esse consumo, teremos aumentode tensão (que poderá ou não estar na faixa dos5% previstos legalmente), e que poderá, também,apresentar distorções consideráveis pela presençãodas lâmpadas fluorescentes compactas”.

Além de as “lâmpadas milagrosas” correrem ori sco de não fazer nenhum mi lagre, a engenhei raalerta: “Um equipamento mais sensível, que de-penda de controle de tensão, pode pi far. Inclusivecomputadores com estabi l i zadores, até porque temmuito estabilizador no mercado que não cumpretudo o que está na propaganda”.

A solução, para ela, seria “alguém lá de cima” for-çar as concessionárias a modificarem seus parâmetros,para adequar a transmissão aos novos níveis de consu-

mo. Exemplos a segui r não fal tam, de acordo comela: “Nos EUA, o expediente do blackout pode mui-tas vezes ser superado pela técnica do brownout, ouseja, ao invés de apagar tudo, mapeia-se os pontosmais críticos de tensão nas redes, diminuindo-a emconsonância c om o c onsumo v eri fi cado em c adaparte dos centros urbanos”.

P

FranciscaPires, daFEEC: atentaao serviço daconcessionária

Canseira pode ser maior que a de trocar as lâmpadas

Universidade Estadual de CampinasJulho de 2001

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Page 10: causas, efeitos e alternativas por

MANUEL ALVES [email protected]

“O direito do povoa governar a si próprio

é um desafio contra toda verdade.A verdade é que o povo temo direito de ser governado”

(Getúlio V argas)

s discussões em torno da crise energéticabrasileira ganharam um novo e importan-te viés depois que o Supremo T ribunal Fe -deral (STF) considerou constitucionais as

medidas adotadas pelo governo para enfrentaro problema. Ao justificarem a decisão, os mi-nistros do STF lançaram mão de um argumentoestritamente político. De acordo com eles, apopulação não cumpriria as metas de econo-mia de eletricidade se as determinações fossemdeclaradas inconstitucionais. Para o filósofoRoberto Romano, professor titular do Institutode Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) daUnicamp, tal posicionamento é inadmissível doponto de vista democrático. “Essa postura re-força o conceito da pedagogia da servidão. Osjuízes atribuíram ao povo brasileiro um atesta-do de minoridade, de impatriotismo, de au-sência de comportamento responsável”, afirmao intelectual.

Segundo Roberto Romano, o julgamento doSTF seria aceitável, desde que tivesse partidode outro pressuposto. O professor afirma queo Judiciário poderia ter ressaltado em sua ar-gumentação o estado de emergência em que oPaís se encontra e o conseqüente risco públi-co, recurso previsto em direito administrativo.“Se uma atitude assim fosse assumida, seguin-do-se uma conclamação dos juízes ao povo, paraque todos ajudassem a superar as dificuldadesadvindas de um gerenciamento imprudente, oSTF mereceria aplausos”, analisa.

Ao invés disso, diz o filósofo, os membros dainstância máxima do Judiciário preferiram des-respeitar a cidadania. “A decisão do Supremoexemplifica todas as doutrinas antiliberais eopostas à democracia que vêm sendorearticuladas desde o século 18, como reaçãoàs conquistas jurídicas e políticasconsubstanciadas nas revoluções americana efrancesa”, compara. Para os doutrinadores ro-mânticos e adeptos do conservadorismo, explicao professor da Unicamp, o povo se constituitão somente em grande massa de crianças irres-ponsáveis, que devem ser tuteladas pelosgovernantes.

Com uma sentença que se pretende pruden-te, o STF, reforça Roberto Romano, “dá maisuma pancada na estaca que prende a repúblicabrasileira em seu pretérito conservador eantiliberal”. O Estado brasileiro, acrescenta,apresenta fraturas gravíssimas devido ao arcaís-mo de suas funções e das doutrinas que o re-gem. A representação parlamentar, lembra o pro-fessor, é viciada numericamente e está em eter-na crise por causa dos escândalos de corrupçãoe infidelidade programática. Os políticos, afir-ma, trocam de partido conforme a sua conveni-ência, violentando o compromisso assumidocom seus eleitores.

Nesse mesmo cenário, prossegue o filósofo,o Executivo se investe, com a cumplicidade daslideranças parlamentares, da força legislativa. OJudiciário, por sua vez, não julga de fato os

A pedagogia da servidãoRoberto R omano afirma que STF, ao justificar seu voto a favor dasmedidas de racionamento, atribuiu ao povo um atestado de minoridade

atos dos outros poderes. “A decisão do STF sobre acrise energética força a ruptura definitiva entre oscidadãos e o Estado que deveria representá-los.Com isso, a fé pública é abalada até as raízes, impe-dindo o convívio democrático tanto no plano ho-rizontal (de cidadão a cidadão) quanto no vertical(dos cidadãos diante dos administradores)”.

Roberto Romano vai mais além em sua análise echama a atenção para o risco futuro proporciona-do por esse tipo de postura. Se essa via se radicalizar,adverte, haverá dificuldades para garantir o pactoque permite a existência de uma sociedade segura,em um Estado democrático de direito. “A violênciaurbana que nos arrasa é indício do que pode ocor-rer numa terra onde a Constituição não atende aosreclamos dos cidadãos, sendo utilizada apenas emfavor dos governantes”, exemplifica.

Autonomia – A atual Constituição brasileira, res-salta Roberto Romano, tem uma diferença signifi-cativa em relação às anteriores: a doutrina da auto-nomia, que, em última análise, representa a suaprópria essência. É o que o professor da Unicampchama de autonomia-cidadã, princípio que rege asatividades dos estados, Ministério Público, univer-sidades e da sociedade diante da administraçãopública. Este núcleo da Carta Magna, de acordocom o intelectual, foi fortemente atingido pelaposição do STF, que impôs aos contribuintes a so-bretaxa e os possíveis cortes no fornecimento deenergia elétrica. “A maneira de afirmar airresponsabilidade de todos e de cada um dos ci-

dadãos constitui um golpe contra o espírito deautonomia”.

Romano recorre a Imanuel Kant, o pensadorda autonomia, para lembrar que só existe liber-dade quando a lei é universal, quando é respei-tada por ela mesma. Caso seja imposta pelas viasdo medo e da punição, a legislação tende a serrecebida pela sociedade como algo emanado deuma vontade alheia à sua. Conforme o filósofo,isso se chama heteronomia da vontade. Um indi-víduo heterônomo, ressalta, jamais será livre. “As-sumindo a tese da punição imposta pelo Execu-tivo federal, os juízes do STF a pioraram. Elesproclamaram que o povo brasileiro só respeita alei se tiver castigos no horizonte. Na perspectivade Kant, está é uma efetividade despótica”.

Precedentes – A posição do STF sobre a criseenergética não pode ser analisada fora da pers-pectiva histórica. O Estado brasileiro, de acor-do com o professor, tem origem na contra-re-volução que sucedeu as políticas democráticasimplementadas em várias nações após as revo-luções francesa e americana. Dom João VI, aofugir de Napoleão, trouxe para o Brasil um pro-jeto de Estado que prevenia a possibilidade deeventos como o de 1789. Antes mesmo da inde-pendência, mas principalmente depois dela, oPaís tornou-se um eficaz moderador das tesesdemocráticas e liberais, tanto em seu territórioquanto no exterior.

A técnica utilizada para atenuar o poder dopovo foi a instituição do P oder Moderador, con-centrado na figura do chefe de estado. A pro-clamação da República, diz o filósofo, não abo-liu tal instrumento. O presidente continuouexercendo a preeminência diante dos outrospoderes. A prática foi reforçada com a Repúbli-ca Velha, que tinha traços fortíssimos do posi-tivismo e de sua tese de ditadura. O períododitatorial V argas – formado na escola positivistado Rio Grande do Sul – aumentou o poder dopresidente em detrimento de outros setores doEstado. Todas essas ações, esclarece o professorda Unicamp, foram executadas para atenuar aomáximo as teses democráticas e de soberaniapopular.

Romano, doIFCH: “Tratama populaçãocomo criançasirresponsáveisque devem sertuteladas”

A

Ilustração: Félix

Foto: Antoninho Perri

Universidade Estadual de CampinasJunho de 2001

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TATIANA FÁ[email protected]

culpa é do governo, mas a solução não depende só do gover-no: a sociedade vai acabar pagando o pato. A afirmação doprofessor Otaviano Canuto, do Instituto de Economia (IE) daUnicamp, é uma forma de dizer que mais vale apagar a lâm-

pada e acender uma vela pelo País que entrar naJustiça contra as sobretaxas impostas a quem não atin-

gir as metas de redução de consumo estabelecidas peloplano de racionamento, apresentado em maio último

pelo ministro da Casa Civil e presidente da Câmara deGestão da Crise de Energia (CGCE), Pedro Parente.

Não se trata de dizer “amém”. Mas de saber, como ressaltaCanuto, que vitórias judiciais contra o governo não vão signi-ficar produção de energia. “É preciso cortar o consumo nagordura e não na carne. O grau de lipoaspiração tem de sersuficiente para evitar apagões desordenados”, comenta o eco-

nomista. Até porque, mesmo os especialistas estão pe-nando para tentar enxergar com clareza a intensida-

de dos impactos do racionamento sobre a econo-mia brasi lei ra.

Eles só conseguem, tateando em meio ao breu,indícios sobre a di reção desses impactos. O que não é

nada animador. A queda é certa, em todas as frentes daeconomia. O crescimento do Produto Interno Bruto (PIB),

antes previsto para no mínimo 4,5% este ano, não deve passarde 3%, com otimismo. “A r edução da arrecadação do ICMS

(Imposto sobre Ci rculação de Mercadorias e Serviços) será tão fortequanto o grau de recessão, quanto maior a necessidade de corte nacarne para poupar o consumo de energia. Se for possível reduzi r oconsumo apenas na gordura, a queda no crescimento do PIB serámenor e, igualmente, o impacto sobre o ICMS. O desempregotambém se enquadra nessa lógica”, explica Canuto.

Apesar de os impactos imediatos da crise energética chamaremmais a atenção, principalmente por seus efei tos incidi rem di reta-mente no bolso do consumidor, é necessário pensar em medidas alongo prazo, com o objeti vo de recuperar a capacidade de investi -mentos públicos e a oferta mínima de investimentos privados nossetores essenciais de infra-estrutura.

Contar com a possibilidade de recursos complementaresprivados significa, sobretudo, dizer que o governo tem deencontrar rapidamente soluções para abrir espaço aos inves-tidores. Resolver definitivamente o problema do risco cam-bial e estabelecer regras para o mercado atacadista de ener-gia são algumas alternativas. “É preciso retomar o planeja-mento energético”, insiste Otaviano Canuto. “O governo pre-cisa projetar a necessidade de uso, tentar novas fontes deenergia, aproveitar a possibilidade de oferta e disponibilizarespaços para receber o apoio técnico e das universidades.Colocar nesses postos as pessoas que entendem de energia,em vez de lotear cargos em setores tão essenciais como os deinfra-estrutura utilizando critérios estritamente políticos”,acrescenta o professor.

O fundamental, agora, de acordo com o economista, é revero conceito de gastos públicos e o formato do acordo do Brasilcom o Fundo Monetário Internacional. Os moldes atuais das

transações com o FMI identificam como despesa qualquerinvestimento feito pelo governo no setor de infra-estrutura –em geração de energia, por exemplo. É sinônimo de agrava-mento do déficit público.

Periclitante – Um detalhe que não pode ser esquecidonem pelo presidente Fernando Henrique Cardoso e sua cúpu-la, nem pelos técnicos da CGCE, é que uma das condicionantespara a injeção de recursos financeiros na economia de umpaís é a credibilidade. E, nesse ponto, faz-se necessário ad-mitir que o Brasil não anda lá muito bem das pernas.

O professor Canuto salienta: “Já vivíamos uma situação devulnerabilidade externa. Estava claro para alguns analistasque a pressão para desvalorização do real não era apenasoriunda da crise da Argentina, mas que tinha a ver com apercepção da tendência de falta de dólar no mercado brasi-leiro. A crise energética só agravou esse quadro de vulnerabi-lidade, porque o primeiro resultado foi uma retração do in-gresso de capital, uma desaceleração”, declara. “Eu diriaque nós estamos em uma situação periclitante. Por enquanto,o Banco Central está fazendo o que pode: já lançou papéis dadívida pública indexados ao dólar, por exemplo. E depende,em parte, da capacidade de o governo convencer o mercadode que a economia vai permanecer sob controle, uma vez quesua credibilidade se tornou ponto frágil. Inclusive no quetange a outras áreas”, completa.

Entre as causas diretas da crise energética destaca-se, por-tanto e sem dúvida, o baixo nível de investimento nos últimosanos. Canuto lembra que a precariedade da situação fiscalbrasileira, a ausência de um marco regulador adequado para aabertura aos capitais privados e o desmonte de uma estruturade planejamento energético foram os principais fatores quelevaram a essa carência de investimentos. “O alerta já tinhasido fei to. E o governo subl imou, porque a óti ca era imediati stae de negociação de apoio parlamentar com o Congresso. Vocêpode fazer isso com alguns segmentos, mas com outros é preci-so manter um comando de forte conteúdo técnico. E em ener-gia, assim como em outros setores de infra-estrutura, exige-setal postura. Foi um erro que, eu espero, os governos futuros nãorepitam”, salienta o economista.

Acendendo umavela pelo Brasil

Para Otaviano Canuto,mais vale apagar alâmpada do querecorrer na Justiçacontra as sobretaxasimpostas peloracionamento

ACanuto, doInstituto de

Economia: cortarna gordura e não

na carne

Foto: Neldo Cantanti

Ilustração: Omaga

Universidade Estadual de CampinasJulho de 2001

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Page 12: causas, efeitos e alternativas por

WANDA [email protected]

uma história que não podia mesmo dar certo. Oprograma brasileiro de privatização, no qual se in-sere o setor energético, nasceu com a meta de re-solver o balanço de pagamentos e não para soluci-

onar a crise anunciada. Alguns dos principais agentes,como pesquisadores, dirigentes de estatais e a própriaequipe técnica do governo, estiveram totalmente alertasquanto à evidência de uma falência na área de energia,mas não tiveram força política para reverter as ações to-madas. Dian-te da exigência de elevados investimentosde longo prazo, a carência desses recursos na seara priva-da e pública brasileira abriu flanco para o ataque do capi-tal estrangeiro, com todo o seu fôlego.

O professor André Furtado, do Departamento de Políti-ca Científica e T ecnológica do Instituto de Geociências(IG) da Unicamp, afirma que não é o caso de atribuir aogoverno Fernando Henrique o papel de único protago-nista nesta tragédia. Ele inclui a sociedade brasileira nopalco de amadores. Afinal, um governo não se traduz emmonólogo e os demais agentes em cena têm co-autoriano desastre. O modelo de privatização foi descuidado e,numa comparação, liberalizou mais que os Estados Uni-dos, principal referência desta corrente de pensamento eonde até hoje isto não é ‘uma boa idéia’ em áreas estraté-gicas como a da energia. O Brasil cometeu o pecado deencenar um roteiro que não emplacou. Para a platéia docamarote principal, ocupado pelo capital estrangeiro, aretomada frenética do consumo, festejada na primeirametade do atual governo, recebeu aplausos de pé: interes-sou, sim, mas só pagou ingresso onde a liquidação era maior.Preços de ocasião para um prato apetitoso: as hidroe létri cas.

“Com 94% de participação na matriz energética brasilei-ra e seus planos de amortização daquele pesado capitalde longo prazo já realizados, o momento era de só ale-gria: lucros elevados, com tarifas já colocadas no trilhopelo governo e baixo custo de operação”, lembra o pro-fessor. Na peça montada pela equipe de FHC, faltou in-

Analisando friamenteoespetáculo, oprofessordaUnicamp identificaacompletafalta de planejamento como vilão. Furtadolembra que, na última década, com aproximidadedacriseanunciada, foramsendo tomadasmedidasemergenciais.Em1997criou-seoConselhoNacional dePolíticaEnergética, supra-ministerial, comesteobjetivo. A sua agilidade, porém, deixou adesejar: a primeira reunião do Conselhodemorou trêsanosparaacontecer.Quandose deu conta de que não havia planoestratégicoparaaquestãoenergética,nãosesabia qual o modelo adequado e mais viávelpara o Brasil, e nem o que fazer com arestriçãodeconsumo,necessária,masquetrazia na bagagem o impacto de pelo menos10% na queda da atividade industrial.

Sem culpar o governo como agenteexclusivoda tragédiaencenada,opesquisador lembra que o uso racional deenergia no setor doméstico, o primeiro aresponder à proposta de breque nodesperdício, deveráseruma realidadecotidiana a partir de agora. Para a áreaindustrial, que não desperdiça, por se tratarde um insumo que pesa na contabilidade decadaempresa, estepodeseropontapé inicialpara o uso de novas tecnologias que gastemmenosenergia, comoadaco-geração.

“Do governo, que colhe os frutospodres da falta de planejamento, restaesperar que se recupere da fé cega nomercado e avalie, com mais cuidado, aimportação de modelos internacionais”,considera Furtado. A inspiração nomodelo britânico de desestatização dosetor energético foi, no mínimo,desatenciosa: esqueceu-se que lá a rededistribuidora de gás já está totalmenteimplantada e que esta energia limpa, noBrasil, realmente pode ser usada, comocomplementar e estratégica em tempo deestiagem, mas necessita de instalação nopaís, além de exigir contratos de longoprazo. Este cenário levaria à situaçãoinsólita de, em determinados momentos,ter de jogar fora energia hidráulica paradar sustentação à térmica e honrarcompromissos assumidos. Esta,realmente, não é uma boa idéia.

cluir “alguns detalhes”, como mecanismos de transferên-cia desta lucratividade para financiar novas hidroelétricase, também, termelétricas. Afinal, a energia térmica deve-ria ser coadjuvante deste grande desafio de gerar luz paraum país em crescimento.

Furtado, que colabora com o programa de Planejamen-to Energético na Faculdade de Engenharia Mecânica(FEM), ministrando a disciplina de Economia da Energia,lembra que esses fatores não estavam no roteiro original.O déficit público impedia investimentos de tal porte. OBanco Mundial já tinha avisado que financiar energia es-tatal, “nunca mais”. E o capital estrangeiro privado nãoopera na lógica de interdependência do setor, que mui-tas vezes precisa transferir energia para onde ela é neces-sária e não para onde é mais lucrativa.

Caráter populista – Privatização total em energia não éuma boa idéia – já se disse – nem nos Estados Unidos.Estes sabem que com a segurança da população não sebrinca, pois ela rende votos. “A medida mais inteligenteseria uma abertura para a iniciativa privada num sistemade parceria, o que daria maior controle do processo emárea tão estratégica”. Furtado acrescenta que, desta for-ma, seria possível alavancar investimentos sem compro-meter o abastecimento, atendendo a outros desejos dosinvestidores, que eram o lucro e pouca disposição dearcar com obras de longo prazo.

O professor avalia, contudo, que o desejo do governoFHC, pelo menos em sua primeira fase, era outro. “Decaráter populista, o governo deixou o consumo solto,sem regras, em clima de certa euforia que lhe interessava:a população consumia, comprava novos aparelhos, aque-cia a indústria e as concessionárias”, assinala o pesquisa-dor. Este calor de consumo desenhou um cenário atraen-te para os investidores estrangeiros, parceiros do sonhodo governo na compra das estatais. Mas só as hidreolétricasinteressaram. Afinal, que investidor entraria na bola divi-dida com as termelétricas, de custo operacional mais altoe que enfrentariam a inexorável concorrência de preçoscom a hidroelétricas, capaz de derrubá-las.

É

Conselho dePol ítica Energéticademorou 3 anospara s e r euni r

Tragédiaencenada por

amadores

André F urtadolembra queprivatizar setorde energianão é uma boaidéia nem nosEstados Unidos

André Furtado, doInstituto deGeociências: “Modelode privatização foidescuidado”

Artes:Paula Almozara/IA

Foto: Neldo Cantanti

Universidade Estadual de CampinasJulho de 2001

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JOÃO MAURÍCIO DA [email protected]

acionamentos, apagões programados e re-dução de tensão da energia na rede de dis-tribuição são ingredientes de um filme bra-sileiro bem antigo. Remontam aos “ Anos

Dourados”, como ficou conhecida a década de 50 que, naverdade, foi de lusco-fusco, a cor dos apagões vespertinosinstitucionalizados que marcaram os primeirnos anos da -quela época.

“Mal se enxergava em casa. O racionamento e os apa-gões quebraram a produção industrial e serviram de pla-taforma eleitoral para a oposição consolidar candidatu-ras como a de Jânio Quadros para a Câmara de São Pau-lo”, lembra o historiador e cientista político Ricardo FrotaMaranhão, professor do Departamento de Ciências Po-líticas do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas(IFCH) e membro do Núcleo Interdisciplinar de Plane-jamento Energético da Unicamp (NIPE).

Maranhão defendeu tese de doutoramento em 1993sobre a evolução da política energética no Estado de SãoPaulo, tendo como foco a Light, grande empresa da épo-ca, de origem canadense. De acordo com ele, foi a incom-petência das empresas privadas em gerir o sistema elétri-co que levou à estatização nos anos 60 e não o nacionalis-mo exacerbado dos seus consumidores.

Também não foi por incapacidade do Estado que onegócio voltou para o setor privado a partir de 1995, maspor um conjunto de pressões externas para exigir, comaltos juros, o pagamento da dívida feita pelo Brasil para aconstrução do modelo de sistema elétrico estatal e efici-ente que sobreviveu até o início dos anos 90.

Muito antes disso, nos anos 50, o capital estrangeirocontrolava todo o sistema de geração e distribuição deenergia. A Light na cidade de São P aulo e, no interior, aCPFL (Companhia Paulista de Força e Luz), então contro-lada pela Amforp – American and Foreign Power Company–, empresa americana com operações em Cuba, Guatemalae Panamá.Ambas tiveram de apelar para os apagões logodepois da Segunda Guerra.

“As duas maiores empresas de atuação multinacional noBrasil não fizeram os investimentos necessários para acom-panhar o desenvolvimento econômico do país, dando opor-tunidade para pesados ataques por sua nacionalização, por-que não demonstraram competência”, argumenta Maranhão.

Estatização – A Amforp foi nacionalizada em 1964 pelogoverno federal e depois repassada à Cesp (CompanhiaEnergética do Estado de São P aulo). “A Light teve umasobrevida, porque no início dos anos 50 tomou dinheiroemprestado do Banco Mundial, com aval do governo brasi-leiro. Um empréstimo internacional privilegiado: foi a pri-meira vez que o Banco Mundial emprestou dinheiro para

uma empresa e não para um governo”, conta o historiador.Depois do processo de estatização, segundo Maranhão, o

governo começou a investir pesado em geração de energiaelétrica, nos anos 60, 70 e 80, eliminando totalmente osproblemas de apagões e racionamentos. “Enquanto funcio-nou, o modelo estatal foi de grande eficiência no sentido deoferecer serviço, o que demonstra que a estatização veio paraatender muito mais a uma necessidade objetiva do que ideo-lógica, pois o setor privado não estava dando conta”, analisa.

O negócio caminhou bem até o início dos anos 90, quan-do, de acordo com as pesquisas de Maranhão, começaram aaparecer fissuras oriundas dos grandes investimentos emgeração através da tomada de empréstimos internacionais demaneira inadequada à realidade financeira mundial do finaldos anos 80. “O governo tomou dinheiro spot em péssimascondições, agravando o quadro da dívida externa”.

“Além disso, alheio à crise internacional, o governo insis-tiu em fazer Itaipu de uma vez só, ignorando estudos dan-do conta de que o potencial hidrelétrico da Bacia Platinapoderia ser aproveitado por várias usinas que iriam sendoconstruídas, com comprometimento financeiro menosoneroso”, acrescenta.

Decisão maluca – A razão da insistência na construção daHidrelétrica de Itaipu, afirma Maranhão, foi uma euforiadescabida do governo militar. “A usina, uma das maiores domundo, atendia também à idéia delirante de alguns milita-res de que uma barragem à jusante da Argentina seria umaverdadeira arma de guerra. Eles estavam sempre pensandoem uma guerra com a Argentina. Então, achavam que a qual-quer momento poderiam abrir abruptamente as comportase inundar o país vizinho, como parte de seus esforços mili-tares contra um velho inimigo utópico”.

As conseqüências desta “decisão maluca”, na expressão do

professor, e a pressão internacional cobrando os emprésti-mos no início dos anos 90, começaram a fissurar o modeloestatal. “O Banco Mundial, os grandes bancos e instituiçõesfinanceiras passaram a forçar a privatização em todo o mundo,como forma de recuperar rapidamente os ativos que utiliza-ram como empréstimos na década anterior”.

Maranhão garante que, ao contrário dos discursos ofi-ciais, as empresas públicas tinham condições de continu-ar investindo e se modernizando, desde que contassemcom planejamento político e vontade política. “Mas, emvez de sanar as falhas apresentadas pelo modelo estatal,preferiram usá-las como pretexto para o desaparecimen-to do estado no setor”, afirma.

O professor credita o atual colapso no setor à rapidezcom que o governou agiu no processo de privatizaçãopara atender à pressão internacional, sem ouvir conse-lhos de técnicos e juristas especialistas sobre a necessi-dade de se criar, primeiro, um organismo de fiscalização eregulamentação. “Privatizaram rapidamente, com menorcusto possível, sem fazer o correspondente conjunto deregras e normas a serem seguidas para que o setor funcio-nasse como quando era estatal”.

Indefesos – A Aneel (Agência Nacional de Energia Elé-trica), que deveria regular o setor elétrico, de acordo comMaranhão, ainda não passa de uma pequena agência semefetividade, com muito poucas condições de proteger oconsumidor diante de um eventual ataque especulativodas empresas sobre o estoque de energia, como foi cogi-tado durante o início da crise energética na Califórnia,para elevar a tarifa. “Ela ainda não se municiou com umaparato de regulamentação, controle e fiscalização”.

Além disso, o estado transferiu o sistema para o setorprivado alegando não ter mais capacidade de investimen-to. A idéia era vender para que as empresas investissem oque o Estado não podia investir. “Mas quem garante queelas vão investir?̈, pergunta o professor, lembrando quegrande parte do capital financeiro globalizador que adqui-riu algumas estatais tem função claramente especulativa.

“É um capital que está de passagem. Tanto que algu-mas destas empresas privatizadas já se encontram à ven-da. Esse processo de comprar e vender atrás do lucrofinanceiro é muito mais significativo e característico des-te capital globalizador do que um interesse efetivo nacriação de um setor elétrico competente”.

Se, como diz o ditado, o futuro repete o passado, o anoeleitoral de 2002 promete reprisar o velho filme, com acrise energética municiando os discursos eleitoreiros. Peloentendimento do professor Ricardo Maranhão, ao contrá-rio do que diz um outro ditado, o povo brasileiro não temo governo que merece. “Um povo que teve a agilidade pararesponder aos apelos de redução de consumo, recebeucomo contrapartida medidas arbitrárias que, na prática, ca-racterizam aumento de tarifa”.

Os apagõesdos ‘Anos

Dourados”Ricardo Maranhão lembra como

o racionamento elegeu JânioQuadros e outros políticos da

oposição na década de 50

RRRRRFoto: Antoninho Perri

Maranhão, do IFCH: “Anos Dourados foram os do lusco-fusco”

Ilustração: Félix

Universidade Estadual de CampinasJulho de 2001

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Jornal da Unicamp – Como o senhor vê acrise de energia?

Octavio Ianni – A rigor, a crise energética é sóum aspecto de uma conjuntura excepcionalmen-te crítica que está vivendo a sociedade brasi leira.De certo modo, a crise de energia expressa umacrise mais profunda, geral , da manei ra pela qualo governo está conduzindo a economia e a socie-dade brasi leira.

P – O senhor poderia explicar?

R – O que está em causa, fundamentalmente,é que o sistemático programa de privatização, deal ienação, de centros decisórios por parte do go-verno, s eguem d i retri zes que não s ão s imples-mente do FMI, do Banco Mundial e da Organiza-ção Mundial do Comércio. São também dascorporações transnacionais.

P – O que isso significa?

R – Envolve uma mudança profunda da pol íti caeconômica, social e cul tural brasi leiras. Em outrostermos, o que está acontecendo é um abandonototal do projeto nacional que se havia desenvolvidoem décadas anteriores. Um processo que havia seiniciado já desde a Proclamação da Repúbl ica, masque, a r igor, entra num c iclo excepcionalmenteimportante desde 1930 até os anos 60. E esse pro-jeto nacional, que já sofreu sérios percalços, pas-sou por sérias di ficuldades durante a di tadura mi-litar, passou, com os governos civis, desde o primei-ro, e agora, com os dois mandatos do atual governo,a ser radicalmente abandonado.

P – Em que sentido?

R – O que acontece é que a capacidade doEstado de defini r objetivos, de implantar di retri -zes, fi cou totalmente dependente das aval iaçõesnão só das organizações mul ti l aterais, mas tam-bém das corporações transnacionais, que passama ter uma voz muito importante na maneira pelaqual o governo toma decisões. Todos sabemos quea crise de energia é conseqüência imediata, di re-ta, da manei ra pela qual esse governo adotou asdiretrizes neol iberais. Então, dá para dizer – eesse é o ponto principal - que a crise de energia ésomente uma expressão fundamental e, talvez sepossa dizer, o desfecho do processo de desmontedo projeto nacional .

P – O senhor entende que o projeto de naçãofoi definitivamente relegado ao abandono?

O desmontedo projetonacionalOctavio Ianni nos ilumina

ao avaliar a crise energética dentrodo contexto histórico brasileiro

R – O projeto nacional signi fica que, desde umcerto momento, de uma maneira muito evidentedesde 1930, com o primeiro governo Va rgas, emesmo com a ditadura Va rgas, f oram adotadasmedidas de modo a dinamizar a economia e adesenvolver setores econômicos além da agricul -tura. Todos sabemos que até 1930 o Brasil eraamplamente, quase que totalmente, dependentenão da agri cul tura em geral , mas principalmenteda cafeicul tura. E i sso era uma fonte, ao mesmotempo, de conveniências, de al ianças, de acomo-dações e de graves problemas. As c rises do c o-mércio internacional do café repercutiam demaneira desastrosa na economia e na situaçãosocial do país.

P – Como, no entendimento do senhor,se deu a ruptura?

R – O que houve desde 1930 de uma maneiramais evidente foi a adoção de medidas de modo aestimular o desenvolvimento de outros setores daeconomia, ao mesmo tempo que protegendo a eco-nomia cafeei ra. Naturalmente entram outros ele-mentos em causa, como as guerras, mas o queocorreu foi um desenvolvimento cada vez mais evi -dente do setor industrial e, claro, do setor de servi-ços e de empreendimentos econômicos estatais.

P – Quais?

R – A Companhia Siderúrg ica de Vol ta Redon-da, a Eletrobrás, a Companhia Vale do Rio Doce, aFábrica Nacional de Motores, entre outros. Erauma grande quantidade de iniciativas através dasquais setores pri vados e governamentais dinami -zavam o conjunto da economia. E i sso veio acom-panhado, da década de 30 à de 60, de iniciativasna área cultural, na área universitária, de legisla-ção trabalhista.

P – O senhor poderia citar quais as ini-ciativas?

R – A CLT é uma iniciativa que se situa precisa-mente nesse contexto. Ela é de 1943. O que houve,então, foi um projeto nacional muito forte. Errático,com problemas, inclusive favorecendo alguns seto-res em detrimento de outros, mas existia um projeto.

P – O senhor poderia exemplificar?

R – Não real izaram a reforma agrária, por exem-plo. Mas houve um projeto nacional que vi sava o

ÁLVARO [email protected]

m silêncio reverencioso tomou o auditório do Instituto de Filosofia eCiências Humanas (IFCH), em 18 de junho último, durante umseminário internacional sobre a América Latina. Podia-se ouvir obarulho metálico das cadeiras e os sons inconfundíveis doburburinho externo, típicos dessas ocasiões. A deferência tinha

nome, sobrenome e uma história de coerência: a palavra acabara de ser passada aOctavio Ianni, professor emérito da Unicamp.

Não foi preciso meia hora para que a platéia, formada em sua maioria por jovens, sesentisse recompensada. Foi uma aula brilhante daquele que é considerado um dosmais renomados intelectuais do país. Conceitos sem concessões fluíam num estiloque reunia o telegráfico, o visceral e o espirituoso. Novas luzes sobre geopolítica,economia, história e seus derivados foram debatidas por esse ituano de 75 anos, boaparte deles dedicada à defesa intransigente dos ideais democráticos, traduzida emobras que se tornaram clássicos das Ciências Sociais.

Na entrevista que segue, concedida ao Jornal da Unicamp, Ianni analisa com aagudeza habitual a crise energética, classificada por ele como “a pá de cal noprocesso de desmonte do projeto nacional”. Para o professor, ao adotar incondicio-nalmente a cartilha do neoliberalismo, o governo ficou refém do capital transnacionale das organizações multilaterais. Em seu depoimento, Ianni também historia essadependência, segundo ele iniciada já na ditadura militar, e critica o papel da mídia.

U

(Continua na página 15)

Ilustração: Félix

Universidade Estadual de CampinasJulho de 2001

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Page 15: causas, efeitos e alternativas por

desenvolvimento de uma economia brasileira naqual os centros decisórios eram priori tariamentecontrolados por setores governamentais e priva-dos comprometidos com a economia, com as em-presas, com o mercado etc. Esse projeto tem pro-blemas, mas se real i zou de uma manei ra notável .E tinha um futuro importante se fosse continuadoe, claro, se fosse desdobrado em novas iniciativas.

P – Quando exatamente essas iniciati-vas foram abortadas?

R – O que aconteceu é que a di tadura mi l i tar,que é originária da diplomacia da Guerra Friaorquestrada pelos norte-americanos, degolou aslideranças e as organizações comprometidas como projeto nacional . Eles não só reprimi ram gru-pos e organizações de esquerda, mas tambémgrupos que estavam comprometidos com o pro-jeto nacional , que grosso modo se fala popul ismo,nacional i smo etc. Mas, na verdade, o que estavapor baixo disso tudo era um conjunto de ini cia-tivas que implicavam na constituição de umaeconomia nacional relativamente forte e de umconjunto de alianças e de associações, de com-promissos em termos de setores sociais, que per-mitiam uma razoável capacidade de decisão emâmbito nacional. A ditadura enfraqueceu mui-tíssimo esse projeto.

P – Como?

R – Aqueles que assumiram o poder, militarese civis, mal i ciosamente ou não, passaram a des-montar o projeto nacional. Evidentemente oRoberto Campos, o Bulhões, o Gudin, que eramconselhei ros, membros ativos da di tadura mi l i tar,trabalharam de modo decisivo no sentido de favo-recer interesses das corporações transnacionais.Já no primei ro plano de ação de Roberto Campos,em 1964, ele f ala na privatização da Petrobrás.Quer d izer que o projeto de desmonte j á s e de-senvolve um pouco durante o regime mi l i tar. Nãovamos esquecer que, durante o governo Geisel,eles foram obrigados ou aceitaram gostosamenteo contrato de ri sco. Era uma primei ra concessãoimportante na área do petróleo, permitindo queas empresas estrangeiras trabalhassem na áreada prospecção e, eventualmente, em outros níveisda atividade petrolífera.

P – O que veio depois disso?

R – Com os governos civis, ainda que de modoerrático, não há dúvida de que esse processo con-tinuou. O que define e caracteriza o governo deFernando Henrique, tanto o primeiro como o se-gundo, é que esse governo assumiu l i teralmente ocompromisso de completar o processo de des-monte do projeto nacional . Só que eles não falamem desmonte, é lógico.

P – Quais seriam, então, esses artifícios?

R – Eles falam em reforma do Estado, emdescentralização, em estado mínimo, em moder-nização, em organizar o país para entrar no Pri -meiro Mundo. A linguagem é enganosa, encobreo que realmente foi fei to, um total desmonte doprojeto nacional . Tanto desmonte que o governoatual não é capaz de dizer para ninguém qual é oprojeto nacional que eles têm. Eles pedem que asoposições formulem um projeto, j á que na verda-de eles não têm. O que eles fi zeram, na verdade,foi alugar ou vender; ceder ou entregar.

P – Quais foram, na avaliação do se-nhor, os resultados dessa política?

R – O que aconteceu é que o setor de energiaelétrica f icou gravemente s acri fi cado. Como s esabe, há um grave hiato entre a produção de ener-gia elétrica e o c onsumo. I sso é o r esul tado daincapacidade que o governo já enfrenta de defi -nir objetivos nacionais, porque ele está prisionei-ro de compromissos com as transnacionais e comas organizações multi laterais.

P – Que análise o senhor faz desse quadro?

R – Não estou dizendo nada que seja novo. Naverdade, dá para dizer que a crise de energia é apá de cal no desmonte do projeto nacional . Mes-mo porque as medidas que eles estão adotando

agora, para enfrentaressa c rise, s igni ficamevidentemente umaabertura e uma entre-ga, e uma abertura ain-da mais ampla do setorde energia.

P – Em que nível?

R – O que temos éum conjunto de provi-dências apressadas,mas que vão favorecer aentrada de outras em-presas transnacionais ecorporações na área daenergia elétrica. Maisum setor, provavelmen-te o úl timo da econo-mia, no qual ocorre a transnacional i zação e umatotal abdicação dos governantes de decidi r. Por-que quando se transnacionaliza também a pro-dução de energia, a c apacidade do governo dedecidi r sobre essa esfera fundamental da econo-mia fica l imi tada. O governo é obrigado a segui ras injunções dos interesses das corporações.

P – Alguns especialistas denunciam queo governo superdimensionou a crise parajustificar a entrega do setor elétrico paraas empresas. O senhor acha a versãofantasiosa?

R – É di fíci l saber se houve uma ênfase exage-rada, mas se as medidas que estão sendo adotadas,entre elas a de cortar o fornecimento de energia,de punir os consumidores, de reduzir o consumode energia em di ferentes setores da sociedade...Primeiro: parece que o problema é muito real emuito sério. Não há dúvida, porém, de que osinteresses privados inseridos na sociedade brasi -lei ra e inseridos no mercado mundial estão usan-do a crise.

P – De que maneira?

R – Para criar o cl ima favorável à transnacio-nal ização total do setor. E, nesse sentido, a mídiaajuda muito. O que ela quer? Produzir mercado-ria, que são as suas publ icações, suas edições.

P – Qual, a seu ver, tem sido o papel damídia?

R – Ela t em a judado a c riar um estado depânico através do qual as corporações e os inte-resses privados acabam entrando ainda mais. Amídia trabalha em vários níveis, cada jornal temuma orientação. Ela é muito complexa, muitodiversi ficada. Inclusive, dentro dela, há jornal is-tas, há atores, há profissionais em todos os níveisque têm um sério compromisso com os proble-

mas sociais. Mas acon-tece que as decisõesfundamentais e, por-tanto, as diretrizes prin-cipais adotadas namídia são direta e rigo-rosamente controladaspelos donos, pelos di -retores, por aqueles quecontrolam as edições, apaginação.

P – A hierarqui-zação das matérias...

R – O que há é umcerto t ipo de i nforma-ção, há um c erto t ipode interpretação, háuma maneira de regis-

trar os fatos – na página par, na página ímpar, naparte de c ima, na parte de baixo etc – que t emum efeito muito sério na formação da opiniãopública. De repente, um assunto da maior im-portância é jogado em uma coluna no “pé” dapágina 17. O assunto passa a ter um impactomuito menor.

P – A técnica fica a serviço da manipu-lação...

R – A questão, obviamente, envolve as técnicasjornal ísticas, nas mídias i mpressa, t elevisiva eradiofônica. Os problemas são fáceis de equacionar,mas a r igor a mídia t em um papel decisivo naformação da opinião públ ica. A mídia discute oapagão, discute a crise de energia, mas poucos sãoos meios de comunicação que aprofundam a infor-mação, que fazem o trabalho de buscar quais sãoas raízes desse quadro. Ao contrário: quando chegauma matéria numa redação que vai às raízes doproblema, dependendo do v eículo, essa r eporta-gem é simplesmente jogada no l i xo ou engavetada.Isso porque ela incomoda a pol ítica que cada meiode comunicação tem. Não nos i l udamos: cada meiode comunicação tem uma pol íti ca sobre o que é aopinião públ ica.

P – O senhor acha que ela despolitiza oconteúdo da questão?

R – A rigor, despol i tizar entre aspas, porquecertas informações e certas aval iações são menos-prezadas, esquecidas ou satanizadas ao mesmotempo que o meio de comunicação prioriza ou-tras informações ou outras anál ises. Você sabe que,quando se põe um título numa matéria, já se estáfazendo uma interpretação. Quando é veiculadauma informação e sua fonte é omi tida, isso é algomuito grave em termos de democracia. É muitograve não só porque a fonte está sendo omi tida,mas porque não se está revelando que essa maté-

ria está sendo “cozinhada”, está sendo reelaboradae pasteurizada pela redação. Então o processo dedespol i ti zação, que ocorre no mundo intei ro, tema ver com o fato de a mídia ser amplamente mo-nopolizada. Os interesses que predominam namídia correspondem aos interesses que predo-minam no mundo e aos das grandes corporações.

P – O que gera, de uma certa forma, auniformização do discurso?

R – Sim, daí ser realmente vál ido dizer que omundo hoje está vivendo um quadro aterr ador,de pensamento único. Você pega os edi toriais devários jornais, pega o posicionamento de várioslocutores no r ádio e na t elevisão, e notará quealguns recados são exatamente os mesmos. Issodesemboca evidentemente numa gravedespol i ti zação que t em s érias i mpl icações por-que o leitor, ouvinte ou espectador perde a pers-pectiva histórica do que está acontecendo. E aca-ba confundindo, mui tas vezes, os incidentes queocorrem aqui ou ali como se fossem capítulo denovela ou programa de audi tório.

P – As abordagens superficiais passama ser predominantes.

R – Sim. Falo isso baseado na lei tura de jornaisem várias l ínguas. Você pega um New York Timese constata que é um jornal muito bem-informa-do, apesar de não esconder que tem um compro-misso com establishment norte-americano. Mas,a despei to disso, é um jornal que informa mui tobem o que está acontecendo no mundo. O mes-mo s e pode d izer do Le Monde, do El Pais e,seguramente, de muitos outros jornais. Como seexpl ica que sejam jornais pertencentes a grandescorporações e ainda assim mantêm uma capaci-dade informativa excepcional , ao passo que a gran-de maioria informa precariamente, limita-damente? Isso provoca um grave problema, quenão é simplesmente a despol i ti zação.

P – Quais seriam os outros efei tos?

R – As pessoas que acompanham certos meiosde comunicação ficam pessimamente situadas nomundo. É um problema muito grave, elas per-dem a capacidade de discernir. Pensam, porexemplo, que a crise de energia é o resul tado deum incidente meteorológico. Pensam que não háenergia porque não há chuva. Então elas falam:“Coitado do governo, o governo não tem culpa”.São desdobramentos muito freqüentes do notici-ário, que implicam numa grave responsabilidadeética dos meios de comunicação.

P – O senhor falou da ditadura e dos go-vernos FHC. E aqueles que o antecederam?

R – Não tenho o que falar sobre eles. Não têmuma importância maior, nem o governo FernandoHenrique tem uma importância maior. Ao contrá-rio, são burocratas da política.

P – O senhor acha que FernandoHenrique Cardoso traiu seus ideais?

R – I sso é um f also problema, não s e i luda. OFernando Henrique está se comportando como umpolítico, apenas isso. Não tem nada a ver com socio-logia. Como político ele está se comportando na basede al ianças, de conveniências, de avanços e recuos.

P – Obedecendo à lógica que sempre pre-dominou no meio?

R – Segundo a cul tura pol íti ca que domina noBrasi l . E qual é a cul tura pol ítica? Eminentemen-te conservadora e al tamente reacionária na ma-nei ra pela qual enfrenta os problemas sociais.

P – O que o senhor acha que pode emer-gir dessa situação?

R – Não vou falar sobre prognósticos elei torais,porque esse não é meu campo. O problema é oseguinte: nós estamos enfrentando uma crise deenergia que, a meu ver, é a expressão da manei rapela qual o governo atual , mais do que os outros,está completando o processo de desmonte do pro-jeto nacional . Isso que é importante. Isso que édecisivo. I sso que muda o c aráter do país. I ssoque é um desafio fundamental, porque implicanum total divórcio entre Estado e sociedade.

Parece que oproblema é muito

sério. Não hádúvida, porém,

de que osinteresses privados

mundiais estãousando a crise

(de energia)

Octavio Ianni: “O mundo hoje está vivendo um quadro aterrador, de pensamento único”

Foto: Antoninho Perri

Universidade Estadual de CampinasJulho de 2001

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Page 16: causas, efeitos e alternativas por

CARLOS [email protected]

ão existe resposta única e fácil paraa atual crise energética brasileira. To-dos os estudos devem considerar vá-rias alternativas de fontes de ener-

gia a médio e longo prazos. No curto prazo(até o final de 2001) a única saída é a redu-ção do consumo, como a que vem ocorren-do nas últimas semanas. Ela deve gerar hábi-tos mais permanentes, onde prevalecerão obom senso e a consciência do desperdício.As causas da atual crise são amplamente co-nhecidas: houve uma redução no volumede chuvas, de investimentos no setorhidro elétrico e um atraso na implantação decentrais termelétricas a gás.

A opinião é do professor Isaías Macedo, as-sessor da Reitoria da Unicamp, que possuisólida base acadêmica e experiência de lon-gos anos de serviços prestados ao desenvol-vimento de tecnologia da Copersucar. Eleenumera as alternativas possíveis hoje no Bra-sil: 1) ações de otimização, melhoria e ampli-ação do aproveitamento da energia hidráuli-ca disponível; 2) instalação de termelétricas agás, como complementação permanente damatriz energética brasileira; 3) investimentosna geração de energia da biomassa com

tecnologia comercial; e 4) ações complemen-tares em energia eólica e solar.

Segundo Macedo, o Brasil experimentahoje movimentação semelhante à ocorridadurante a crise de petróleo, na década de70, em busca de fontes de energia alternati-vas. “Em 74 a Unicamp começou um grandeprograma de energia, montado inicialmen-te com o Instituto de Física e a Faculdade deEngenharia, abrangendo também a Engenha-ria de Alimentos e depois outros departa-mentos. O programa chegou a ter 70 pes-soas trabalhando na área de energias alter-nativas e cresceu muito por força da crise dopetróleo. Hoje está disperso por alguns gru-pos e estamos tentando reaglutinar esses pes-quisadores. Seria muito importante ter ativi-dades envolvendo especialistas das váriasáreas, mantendo as características dos gru-pos existentes. Problemas de geração e usode energia são multidisciplinares”, afirmaMacedo. Os custos da “nova” energia hidro-elétrica, quando considerados de forma am-pla e sem incluir algumas externalidades,ainda são muito atraentes, mas já se viabilizaalternativas como as mencionadas.

Termelétricas – O que aconteceu com oprograma de instalação de termoelétricas agás, lembra Isaías Macedo, é semelhante ao

registrado com o álcool na década de 80. OPro-Álcool foi estabelecido com cotas porprodutor e garantia de compra pelo gover-no desses volumes, a preço definido combase em auditoria de custos por órgão in-dependente (no caso, a Fundação GetúlioVargas). Quando este compromisso deixoude ser cumprido, os produtores optarampor não produzir as cotas e exportar açú-car, levando à escassez do álcool. No casodo gás, o problema ocorreu antes mesmoda instalação das centrais: a compra de gáse fornecimento de energia a preços defini-dos antes da desvalorização do realinviabilizou (e paralisou) os investimentos.

O investimento de capital em uma cen-tral a gás é relativamente mais baixo e ainstalação de termelétricas mais rápida,em comparação a novas hidro elétricas. Oproblema atualmente (uma vez sendo resol-vido o impasse entre preços do gás e tarifaselétricas) seria de fornecimento de equipa-mentos. Competiremos com o mercado ame-ricano, que deve voltar-se rapidamente namesma direção. “Mas a partir do momentoem que se começa a investir no setor, os for-necedores aparecem. É um tremendo mer-cado para as companhias de energia em todoo mundo”, acredita Macedo.

(Continua na página 17)

energia fotovoltaica (eletricidade ge-rada com a luz solar) é viável para

abastecer regiões muito distantes dos centrosgeradores de energia convencional e das li-nhas de transmissão, e tem o futuro garantidopor algumas características: é uma energialimpa, de fonte inesgotável, e o crescimentoindustrial pode baratear seu custo. Os equi-pamentos para gerar a energia fotovoltaicaainda são caros quando comparados comoutros sistemas de produção, comohidroelétricas e termelétricas, mas atualmenteesta atividade industrial está entre as que maiscrescem no mundo, em torno de 30% ao ano,sendo que o ganho de escala deve reduzirseu custo nos próximos anos.

“Não é hoje solução para a crise de ener-gia. Mas para algumas aplicações, como tele-comunicações, a geração fotovoltaica é muitoutilizada. Esta tecnologia é importante para oBrasil, porque ao levar energia a regiões dis-

A difícil escolha

tantes do interior do País, contri-buirá para a integração do terri-tório nacional”, avalia o profes-sor Ivan Emílio Chambouleyron(foto à direita), pró-reitor de Pes-quisa da Unicamp e especialistaem alternativas energéticas.

Segundo ele, uma das melho-res aplicações da energiafotovoltaica é a utilização em sis-temas de bombeamento de águapara irrigação em regiões ondenão há eletricidade. “Permitiria umgrande salto de produtividade agrícola”, acre-dita. “No futuro, poderemos utilizá-la desta for-ma também em sistemas de hidroelétricas de‘rio seco’, onde durante o dia a energia do solseria parcialmente utilizada para bombear aágua que já passou pelas turbinas de volta paraa represa, mantendo-a sempre cheia”,exemplifica o professor. Esta sim seria uma al-

ternativa para o tipo de criseatualmente vivida pelo Brasil.

Embora aparentemente se-melhantes, o sistema de pro-dução de energia fotovoltaicanão é o mesmo utilizado em re-sidências para aquecer água.O aquecedor solar (que tam-bém pode proporcionar eco-nomia pela desativação do chu-veiro elétrico, responsável porcerca de 6% de toda energiaelétrica consumida no Brasil)

simplesmente aproveita o calor do sol para aque-cer a água utilizada em duchas e torneiras.

Sofisticação – A produção de células sola-res, elementos básicos da energia fotovoltaica,exige uma tecnologia relativamente sofisticada.Atualmente, a eletricidade de origem solar éutilizada na rede de distribuição elétrica em al-

Isaías Macedo enumera fontes alternativas e espera que crise gerehábitos permanentes, bom senso e consciência do desperdício

Energia solar tem mercado garantidoPara Ivan Chambouleyron, tecnologia contribuirá para a integração do ter ritório nacional

guns países desenvolvidos, como os EstadosUnidos, para complementar a geração con-vencional em horários de pico. Em locais mui-to distantes, a exemplo do interior da Amazô-nia, nas plataformas em alto mar, veleiros e,sobretudo, satélites artificiais, é uma fonte idealde energia.

Outro exemplo do avanço desta tecnologiaé a corrida de veículos realizada periodica-mente no deserto da Austrália, a “World SolarChallenge”, com carros movidos exclusiva-mente com energia fotovoltaica. “É umatecnologia que está sendo desenvolvida hámuitos anos. No início ela foi financiada porórgãosgovernamentais,masatualmenteéumaatividade industrial privada muito lucrativa.Dentro de vinte anos, muitos países, principal-mente da Europa, além dos EUA e Japão,estarão usando esta fonte como complemen-tação do sistema de distribuição elétrica”, pre-vê Chambouleyron. (C.T.)

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Foto: Antoninho Perri

Ilustração: Félix

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tecnologia para produção de energia debiomassa está disponível. Existem aproxima-

damente 300 usinas de açúcar e álcool no Brasil,que produzem a própria energia a partir do baga-ço de cana, e algumas até vendem o excedente. “Éum desperdício não implantar usinas de biomassaporque esta energia vai estar aí sempre”, afirma oprofessor Isaías Macedo. Nas condições brasileiras,são necessárias algumas usinas de biomassa para pro-duzir a energia de apenas uma termelétrica a gás; éum processo bem mais descentralizado.

A biomassa que interessa neste caso não é consti-tuída apenas de bagaço de cana, mas também dequalquer resíduo da produção agrícola, tal comopalha de arroz, casca de árvore, resíduo da indús-tria de papel e celulose, lixo urbano, etc. O bagaçode cana é mais conhecido devido ao grande volu-me concentrado em algumas regiões, assim comoo resíduo de madeira nas indústrias de papel.

A Suécia possui hoje 20% de sua energia produ-zida de biomassa, a partir da madeira; planeja atin-gir 40% em 2020. Na Dinamarca existem muitasusinas usando palha de cereal e, nos Estados Uni-dos, várias dezenas de unidades a partir de resí-duos e madeira. Os usos “modernos” de biomassapara energia têm sido implementados em muitospaíses. A conotação de “baixo nível tecnológico”

destes processos não corresponde mais à realida-de. A contribuição da biomassa na produção deenergia no mundo todo chega a 10%, mas metadecorresponde ainda à chamada energia não comer-cial. Segundo Macedo, a energia da biomassa noBrasil é totalmente viável, dentro de custos aceitá-veis no mercado internacional.

Nicho interessante – Existe no País outro nichointeressante, de grande potencial, surgido na décadade 70, quando houve incentivo fiscal para refloresta-mento. “Este programa resultou em muitas florestasde eucalipto e pinus que hoje são queimados emcaldeiras de lenha em indústrias, produzindo vapor.Esses sistemas podem ser reprojetados no futuro pró-ximo para gerar energia elétrica, a exemplo das usi-nas de cana”, pondera Isaías Macedo.

Evidentemente devemos buscar sempre aplica-ções onde seja possível fazer co-geração, utilizan-do de modo mais eficiente a energia da biomassa.

Os programas mais interessantes de pesquisa e de-senvolvimento nesse campo no mundo, atualmen-te, são os de gaseificação e ciclo combinado de tur-bina a gás. Na área de cana, o programa pioneiromais importante internacionalmente é o daCopersucar com a TPS na Suécia, que está prontopara uma planta piloto.

Usinas vendem excedente

m dos fatores importantes na consideração dealternativas energéticas é o seu impacto

ambiental. A utilização de derivados de petróleo parageração de energia tem suas limitações e efeitosnocivos, em nível local e global. Por exemplo, nonosso caso, não devemos esquecer que mesmo ogás natural considerado “limpo” contribuipesadamente para o efeito estufa. “O mundo começaa pensar em termos do ciclo de vida dos produtos einsumos. Temos que avançar a tecnologia dentro doobjetivo de proteger o meio ambiente, tanto paralimpar os processos de uso do combustível fóssilcomo para melhorar as técnicas de energias novas.Nestes casos, a posição da universidade éfundamental, no sentido investigar e de apontarsoluções tecnológicas”, avalia o professor IsaíasMacedo.

A geração de energia da biomassa exige maisunidades, mas de menor tamanho, e é um sistemaseguro e limpo. As emissões podem ser controladascom maior facilidade. Nos resíduos sólidosreciclados, não há emissões de enxofre. E, claro, nãohá emissão “líquida” de gás carbônico importante.Um dos impactos considerados nas termelétricas agás (não co-geradoras), mas não apenas nelas, é oalto consumo de água para resfriamento. Isto podeou não ser um problema, dependendo de fatoreslocais.

A energia nuclear está em compasso de espera emmuitos países desenvolvidos; em alguns, foiinviabilizada pela força da opinião pública. Oproblema ainda é a insegurança quanto àsoperações e à disposição de resíduos.

Consumo baixo – O padrão médio de consumo deenergia do brasileiro é baixo em comparação com oresto do mundo industrializado, mas ainda existemuito desperdício. Embora as reduções possíveis deconsumo devam ser perseguidas, a demanda totaldeverá crescer (e muito) à medida que a distribuiçãode riqueza se tornar mais aceitável.

“É importante olhar de perto o aquecimentotérmico solar nas residências, o que pode resultarem grande economia de eletricidade”, destacaMacedo. Como fontes alternativas se destacam aindaa energia solar e a eólica, interessantes para regiõesdistantes das linhas de transmissão.

A energia solar fotovoltaica ainda é reservada parapequenas aplicações especiais, devido ao alto custoatual, mas havendo perspectiva de grandes avançosnos próximos anos. A energia dos ventos vemcrescendo com grande velocidade, sendocompetitiva em áreas específicas.

“Devemos nos preparar para planejar e administrarsistemas muito mais complexos de fornecimento deenergia, saindo do tradicional hidroelétrico/petróleo.São necessários a adequação de fontes e processosao uso final, o uso extenso de co-geração e umadescentralização muito maior, juntamente com aconsciência a respeito do valor da energia e daimportância de evitar o desperdício”, finaliza IsaíasMacedo.

A equipe do coordenador do Nipe e enge-nheiro Luiz Cortez, em parceria com o pes-soal da Feagri e Aipse/FEM, desenvolve umasérie de pesquisas energéticas relacionadascom biomassa. A que mais desperta atençãona atual conjuntura é sobre produção de car-vão vegetal a partir de bagaço de cana. Naverdade, desde 1996 – bem antes da crise,portanto – já funciona uma unidade experi-mental no Centro de TecnologiaCoopersucar, em Piracicaba.

“Mesmo sem a atual pressão que o Brasilestá sofrendo na área energética, já prevía-mos que essas pesquisas teriam o seu devi-do impacto dentro de algumas décadas”, contaCortez. “É importante lembrar que todo o sé-culo 20 foi do petróleo e tivemos muito pou-cos investimentos em tecnologias alternativas.Mas agora, com a questão do efeito estufa,as nações andam cada vez mais preocupa-das com mecanismos de desenvolvimento lim-po, sustentáveis”.

O princípio do trabalho é chamado depirólise (do grego “decomposição pelo ca-lor”) rápida. O processo tem lugar quandoum material sólido se decompõe na presen-ça de um fluxo de calor e de uma atmosferanão oxidante ou pouco oxidante.

Papel fundamentalda universidade

IsaíasMacedo,

assessordaReitoria: em

defesadeusos

modernosde biomassa

O futuro brotado refugo

Unidade experimentalinstalada no Centro deTecnologia daCoopersucar emPiracicaba desde 1996

1 - Esteira de alimentação2 – Reservatório3 – Dosador4 – Injetor horizontal5 – Reator6 – Separadores mecânicosde sólidos7 – Válvula de amostragemde carvão vegetalpulverizado9–Resfriador-condensador-separador de bio-óleo12 – Separador de líquido14 – Chaminé15 – Queimador de gás8, 10, 11 e 13 –Reservatórios para sólidos elíquidos do processo

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Esquema da unidadepiloto de piróliserápida em leitofluidizado

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Foto: Divulgação

Foto: Neldo Cantanti

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eve funcionar como um barbeador, raspando asuperfície sem afastar-se dela e tampouco re-volver o solo. T ambém não pode ser sofistica-da, apenas uma máquina suficientemente ro-busta e construída com eficiência em aço sol-dado. Equipada com transmissões convencio-nais de fácil ajuste e manutenção, seu preço erendimento precisam torná-la competitiva nomercado. Por isso, certos recursos eletrônicos,hidráulicos ou corte laser, nem pensar.

Este é o princípio da colheitadeira de canaque está sendo desenvolvida pela Faculdade deEngenharia Agrícola (Feagri) da Unicamp e quepoderá viabilizar o uso de mais uma fonte debiomassa para a produção de energia: a palhada cana-de-açúcar.

Concebida inicialmente para reduzir o custoda colheita e dar mais qualidade à cana, a máqui-na ganhou uma nova dimensão diante da criseenergética no país por seu potencial de aproxi-madamente 30 milhões de toneladas/ano de pa-lha, que atualmente são queimadas ao ar livre.

“O bagaço tem sido o único resíduo aprovei-tado da biomassa do canavial, principalmenteporque está disponível espontaneamente aolado da caldeira da indústria. Até hoje se falamuito pouco sobre o aproveitamento da pa-lha, mas deve surgir uma valorização da ener-gia embutida na palha diante da atual crise deescassez”, explica o professor Oscar AntonioBraunbeck, coordenador do Laboratório deProjetos de Máquinas Agrícolas da Feagri.

De fato, a palha tem trazido só inconveni-entes para os produtores e cortadores de cana.Os primeiros estão na mira de uma lei estadu-al de São Paulo, que limita as tradicionais enocivas queimadas no canavial para facilitar ocorte. Os trabalhadores, porque sem a queimada palha, não enxergam o colmo onde cravama foice e ainda correm o risco de enfrentaranimais peçonhentos – e de perder postos detrabalho para as máquinas.

“A única forma de efetuar o corte da cana ma-nualmente é com a queimada. No entanto, alei determina que boa parte das áreas de co-lheita seja feita sem queima prévia, o que pou-

cos obedecem, mesmo se sujeitando a multas.Não obedecem porque não encontram umatecnologia de colheita adequada; as conheci-das impõem investimento e perdas altos e qua-lidade baixa ”, explica Braunbeck.

Com um conceito desenvolvido na Austrálianos anos 50, as atuais colheitadeiras emprega-das nas lavouras de cana têm outro inconveni-ente. Além da perda de até 15% da matéria-prima colhida, estas máquinas arrastam juntocerca de 5 quilos de terra por tonelada decana”, lembra o pesquisador. E esta terra vaicom a cana para a moagem, comprometendosua qualidade. No caso da palha, a contamina-ção com terra supera os 10 kg/t, o que inviabilizasua queima para produzir energia.

Tecnologia própria – Tendo trabalhado du-rante oito anos no setor sucroalcooleiro nosanos 80, Braunbeck percebeu que o Brasil pre-cisava de uma tecnologia própria para a co-lheita mecânica. “A A ustrália concebeu estatecnologia há 50 anos, em estado de urgência,pois não tinha mão-de-obra para a colheita. Nãopensou em outros mercados quando execu-tou o projeto”, explica.

Por esta razão, o professor decidiu desenvol-ver a máquina nacional dentro do programa depós-graduação da Feagri e o projeto foi financi-ado em diversas fases pela Fapesp (Fundaçãode Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo).Hoje vai sendo levado com ajuda de quatro alu-nos bolsistas. “É um projeto simples, estruturadoem três pontos: o corte da base, do ponteiro edas folhas. T udo isso sem prejudicar o pé docolmo, onde tem mais concentração de açúcar;sem danificar a soqueira para evitar a entradade pragas ou doenças; e sem arrastar terra, me-lhorando a qualidade da matéria-prima e prote-gendo a longevidade do canavial”, detalha.

O projeto vem sendo desenvolvido há quatroanos, em parceria com uma indústria de usinagemde Piracicaba. O protótipo estaria concluído den-tro de três ou quatro anos, de acordo com asprevisões, mas o agravamento da crise energéticalevou a equipe a incorporar à colhedora um pro-cesso de enfardamento da palha. “Agora não po-demos precisar quando o protótipo se consoli-dará como um produto comercial”, afirma.

Máquina vai ajudara extrair luz de palhaOscar Braunbeckcoordena projetode geração deenergia a partir dapalha de canadesperdiçada naqueimada

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Braunbeck, da Feagri:colhedeira em

desenvolvimento podeviabilizar nova fonte de

biomassa

A indústrianão se mexe

Sendo o protótipo da Unicamp a única pesquisa tecnológica en-volvendo princípios alternativos para a colheita da cana-de-açúcarem andamento no país, o que fazem as indústrias agromecânicasbrasileiras?A resposta é pouco ou nada, pois não há um mercadosuficientemente atraente. Braunbeck conta que para atender a de-mandade todos os canaviais doBrasil,maior produtor domundo, asfábricas teriam que manter no mercado cerca de três ou quatro milmáquinas. “A quantidade é considerada insuficiente para justificarinvestimento em pesquisas básicas e desenvolvimento do produto,se consideramos que existem atualmente quatro fabricantes”, diz.

Para dar uma idéia melhor, o professor lembra que até o estágioatual dos trabalhos, a Unicamp não gastou mais do que R$ 300 mildos recursos arrecadados de diversas fontes, em quatro anos. Ovalor da pesquisa deverá ser equivalente ao preço máximo de umamáquina já com trator. “Umdesenvolvimento similar, hipoteticamenterealizado pela indústria, utilizando mais recursos físicos e menosanalíticos, teria umcustodequatromáquinas”, compara.Atualmente,uma colhedora do modelo australiano vale cerca de R$ 450 mil.

Opreço inicialmenor eomaior rendimento damáquinaprometemderrubar pelametade o custo da colheita.As perdas devemcair pelametade, de 10% para 5%, mesmo potencial para a redução da terraarrastadapor tonelada colhida.

O maior rendimento (toneladas/dia) da colhedora proposta surgefundamentalmentedaeliminaçãoda logísticanecessáriaparamantera sincronia entre a colheita e o transporte. “As colhedoras convenci-onais têm que trafegar ao lado de um caminhão para ir lançando acanaqueécolhidaecortadaemrebolos.Nossacolhedora fazocortedos colmos inteiros e os deposita em leiras de alta densidade paraposterior carregamento e transporte, desvinculandoassimasopera-ções de colheita e transporte”.

O tempoparaaconclusãodoprojeto, segundoopesquisador, deverespeitar asprioridadesdaUniversidade,quesãooensinodegradua-ção e pós-graduação. “Quem tem pressa é a indústria. É certo quedepoisdeprontoe funcionando, vai ter gente interessadaem transfor-mar esta pesquisaemproduto demercado”, acreditaBraunbeck.

Para o professor, as queimadas só serão erradicadas dos canavi-ais brasileiros quando existir uma tecnologia que torne indiferente acolheita com ou sem queima, em termos de custo e qualidade doproduto colhido. “Enquanto colheitas como a de trigo, milho e outrosgrãos estão totalmente mecanizadas há mais de meio século, a decana, que oferece a maior produção de massa por hectare, aindaengatinha e sem uma tecnologia viável”, argumenta.

Por isso, ele destaca no trabalho da Unicamp dois fatores chavepara tirar opaís desteatraso: oempenhodosalunoseos recursosdaFapesp. “Os recursossãopoucos,massuficientes.Nãoépreciso riosdedinheiroparapesquisar.O importanteéquetenhamosumaestruturaséria, para queodinheiro venha sempre eapesquisa ande”, finaliza.

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atmosfera ao redor da churrasqueira embrasa está impregnada pelo aroma de ga-ses voláteis – óxidos de carbono, ácidoacético e aldeídos, entre outros. Se a es-trutura da churrasqueira fosse mais efici-ente, poderia aprisionar esses gases etransformá-los em energia elétrica, assimcomo já está sendo feito com o calor apri-sionado de um gerador da UniversidadeFederal do Acre. Estas duas fontesenergéticas – os gases do carvão e o calordos geradores – são algumas das pesqui-sas desenvolvidas no Instituto de FísicaGleb W ataghin (IFGW) da Unicamp, peloGrupo de Combustíveis Alternativos (GCA).

A churrasqueira capaz de aprisionar ga-ses, na verdade é um forno. O professorCarlos Alberto Luengo aponta para a obra,erigida no “quintal” do GCA. Coordena-dor e orientador de pós-graduação doGrupo, Luengo mostra uma construçãorústica, em tijolos refratários, com algunsdutos acoplados nas paredes.

A rusticidade, porém, é mera ilusão. Tr a-ta-se de um sofisticado forno para produ-ção de um novo tipo de “carvão” vegetal,com propriedades diferentes do carvão

tradicional. Propriedades que o tornamuma alternativa interessante para a produ-ção de energia e capaz de abastecer, porexemplo, pequenas comunidades ruraisque atuam de forma cooperativa.

Nascido em Buenos Aires, formado edoutorado em Bariloche, Luengo foi poralguns anos pesquisador na Universidadeda Califórnia, em San Diego. Aqui, coor-dena uma verdadeira usina de alternativaspara produção de energia. Atualmente,além do forno de torrefação de biomassa,como é chamada a construção de tijolos,tem outro trabalho desenvolvido naUnicamp já em operação no Acre, refrige-rando o ar de instalações da universidadedaquele E stado, e capaz até alimentar arede de distribuição elétrica estatal.

O forno de torrefação está sendo de-senvolvido pelo aluno de pós-graduaçãoFélix Fonseca Felfli, numa pesquisa comnome complicado: Estudo das V ias deIntrodução da Biomassa Torrada no Mer-cado de Insumos Ener géticos do Brasil. “Aocontrário do forno tradicional para pro-dução de carvão vegetal, este conservagases voláteis que o outro desperdiça porfalta de um controle preciso de tempera-tura e tempo de queima”, explica Félix,formado em engenharia mecânica pela

Energia dachurrasqueira

Luengo, do Instituto deFísica: uma usina de

alternativas paraprodução de energia

Universidade do Oriente, de Cuba, e dou-torando no curso de PlanejamentoEnergético na Unicamp.

“Enquanto os fornos tradicionais fazemcombustão da lenha a uma temperaturade 400 graus, controlada por intuição,este não passa de 200 graus e é controla-do por parâmetros exatos”, informa. Estecontrole reduz o tempo de queima de 4ou 5 dias para 4 horas. T ambém apresen-ta um rendimento superior: se o sistemanormal obtém 30 quilos de carvão em 100quilos de lenha, o forno de Felfli conse-gue 70 quilos. E ainda conserva gasescomo óxidos de carbono, ácido acético,aldeído e outros que são canalizados paraa produção de energia, a razão dos dutosnas paredes.

Para quem não conhece os gases cita-dos por Felfli, o professor Luengo pedeque apure o olfato diante da churrasqueiraardente. “São gases que fazem parte docotidiano das famílias”, observa.

Complexidade – Apesar da aparênciarudimentar, a construção do forno expe-rimental envolve complexos modelos ma-temáticos para simulação do processo, me-ticulosos cálculos de engenharia para de-senvolvimento do projeto da unidade bá-sica e experimentos com os produtos ob-tidos. “Se não fosse complexo, não justi-ficaria um doutoramento”, observa Felfli.

Ao contrário dos fornos tradicionais uti-lizados para a produção de carvão, emforma de iglus, que controlam a tempe-ratura através de furos que são abertosou fechados, este forno hightech tem ocalor controlado por rigorososparâmetros. “É possível determinar comprecisão a temperatura e o tempo dequeima sem margem de erros”, garante opesquisador.

“O processo de carbonização visa eli-minar os voláteis e a água da madeira parafacilitar a combustão e concentrar ener-gia. A torrefação vai atingir o mesmo ob-jetivo, mas conservará aqueles voláteisque têm energia”. O carvão torrefato, as-sim chamado tecnicamente, é considera-do ecologicamente compatível frente asexigências atuais e pode ser amplamenteutilizado por empresas preocupadas coma preservação ambiental. “É uma alterna-tiva para a substituição da madeira na ali-mentação de caldeiras e cerâmicas, porexemplo”, explica Felfli.

Uso doméstico – Utilizado domestica-mente, o forno pode gerar energia paraassociações de produtores rurais que dis-ponham de matéria-prima como palha dearroz, cana e quaisquer outros produtoscarbonizantes. Basta aliar o equipamentode Felfli a um gerador e um gaseificadorpara acender as luzes ou fazer rodar a bom-ba de irrigação. “O forno vai consumir ape-nas os resíduos da lavoura normalmentedesperdiçados”, argumenta o pesquisador.

O professor Luengo acredita que, sen-do um produto ecologicamente compa-tível com a nova ordem mundial, o car-vão torrefato tem tudo para consolidar-se no mercado como alternativaenergética. “T rata-se de um processo quesó precisa demonstrar sua economici-dade”, afirma.

A pesquisa é financiada pela Fapesp (Fun-do de Amparo à Pesquisa do Estado de SãoPaulo), com prazo de conclusão em doisanos. O resultado, segundo Felfli, deveráser obtido em 2002. No ano seguinte serárealizada pesquisa de mercado para a dis-seminação do produto. que já está em pro-cesso de patenteamento pela Fapesp.

ocalizadono ladomaisocidental daAmazônia,oEstadodoAcre, assimcomograndepartedaregião Norte, é abastecido por energiatermelétricaapartir deóleodiesel transportadoem balsas que saem de Manaus e, portanto,caríssimo.Por isso, nãopoderia sermaisapro-priadooprojetodedoutoradodoestudanteFran-ciscoEulalio dosSantos, daUniversidadeFe-deral doAcre (Ufac).

ConhecidopeloscolegasdaUnicampcomoMagnésio, Francisco veio com uma bolsa deestudospara concretizar uma idéiaque jáestáproduzindo resultados juntoàsua instituiçãodeorigem.Elevemaproveitandoocalor despren-

didoporgeradoresdaUfacpara refrigeraroardesuasinstalações;ométodoaindapodegerarener-gia paraa redeelétrica local.

“Magnésio transformouumgrupomotogeradordeuns300kVAadiesel, similaraosemergenciaisdo Hospital das Clínicas da Unicamp e muitofreqüentes na região Norte, em um co-geradorcompacto”, explica o professor Carlos Luengo.“Utilizando refrigeradorespor absorçãodecalor,eleobtémar condicionadoeeletricidade”.

O professor lembra que a tecnologia de co-geraçãoenergéticaéamplamentedifundidanasindústrias de papel e de cana, mas sua aplica-ção no setor terciário, como está fazendo Fran-

cisco dos Santos, foi negligenciada até o mo-mento.

“AUfacéaprimeirauniversidadebrasileira aimplementar esta forma de conservaçãoenergética,masgraçasàcrisealgunsshoppingse outros estabelecimentos do setor terciario jáestãoconsiderandoestapossibilidade”, informa.

OprojetodeMagnésio foi desenvolvidocomopartedeseudoutorado juntoaoCPE/FEM(Cur-sodePlanejamentoEnergéticodaFaculdadedeEnergiaMecânica), doqual o Instituto deFísicatambémparticipa.SuaapresentaçãonaUnicampocorrerá assim que o projeto for testado pelaEletronorte, estatal deenergiada regiãoNorte.

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LUniversidade do Ac re adota c o-geração energética

CarlosLuengoatua naconstruçãode umfornocapaz deproduzirnovotipo de‘carvão’vegetal

Foto: Antoninho Perri

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professor de ecologia Mohamed Habib, do Departamen-to de Zoologia do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp,apagou uma das três lâmpadas fluorescentes de seu gabi-nete para combater o desperdício de energia. Se a econo-mia causou perda de luminosidade, não dá para notar. Oambiente é claro como seu raciocínio sobre a crise

energética do Brasil e o planoemergencial esboçado para combatê-la, que considera uma verdadeira ar-madilha se for pela via de construçãode termelétricas.

“Além da cultura do desperdício, oBrasil peca por não oferecer uma al-ternativa inteligente de desenvolvi-mento aliando sociedade, energia emeio ambiente, e respeitando as ca-racterísticas regionais de cada Estado”,analisa, referindo-se à compra de gásboliviano para alimentar as usinas

termelétricas. “É um conceito totalmente errado acreditarque o desenvolvimento só vem com chaminés, fumaças eintoxicações. Além disso, devemos levar em conta que estaagressão ao meio ambiente também leva à falta d’água queseca os reservatórios e, consequentemente, à possibilida-de de queda da disponibilização de eletricidade”, afirma.

Na verdade, segundo o professor, o Brasil sequer temum projeto de desenvolvimento, uma vez que a crise estásendo combatida com medidas de curto prazo quando

seu déficit energético é conhecido há longa data. Emboraseja a oitava economia do mundo, o País ocupa a octogé-sima posição em cota de energia elétrica por habitante/ano. São 2 mil quilowatts em média por ano para o brasi-leiro, contra 20 mil para um norte-americano. “No Nor-deste esta média não chega a 900 quilowatts”, lembra. “En-quanto uns têm tanta luz que a casa mais parece uma árvo-re de Natal, outros nunca acenderam uma lâmpada”, com-para, atribuindo o contraste à concentração de renda.

Imagem forjada – Por isso, Mohamed Habib consideraforjada a imagem propagada nas últimas semanas de queo Brasil corre o risco de ficar sem energia por que hádéficit, como se isso fosse uma novidade. “A falta de ener-gia é histórica quando comparada com os países desen-volvidos. Assim, quando associamos energia e eletricida-de ao desenvolvimento, percebemos as dificuldades decrescimento econômico do país, já que sua cota não per-mite mais empreendimentos e só nos resta ficar patinan-do nesta luta de desemprego, pobreza e miséria”, diz.

Para eliminar este déficit, que mantém a cota energéticabrasileira diminuta ante seu potencial econômico, Habibdefende que se esbocem planos para geração de energia.Mas não esses emergenciais, feitos com medidas provisóri-as apenas para geração a curto prazo. De acordo com ele, oplano deve ser de médio e longo prazo, considerando queo gás da Bolívia tem condições de gerar energia por ape-nas 10 ou 11 anos, pois se esgota, não é um recursorenovável. “E como ficamos depois? Como investir em umatermelétrica cujo preço varia de US$ 700 milhões a US$1bilhão, condenada a não ter mais com o que gerar? Como

trabalhar com gás do exterior pagandoem dólar?”.

Realidades diversas – “O planoenergético tem de levar em conta as ca-racterísticas locais para manter coerên-cia com cada realidade, já que temos umterritório nacional ocupando uma enor-me área do continente, com uma gran-de variação em termos ambientais, cul-turais, sociais e disponibilidades de re-cursos naturais”, lembra o professor.

O Brasil também precisa definir quetipo de desenvolvimento quer para cadaregião e que tipo de energia seria com-patível com esse tipo de desenvolvi-mento. “O plano energético não podese basear numa receita única. V amoscomprar gás da Bolívia e vamos esten-der para o Brasil, como se o país fossehomogêneo. É obrigatório que o pla-no seja coerente com estas diferençaspara gerar desenvolvimento que sirva àsociedade do momento e às futuras ge-

rações”, argumenta.

A cultura das chaminésMohamed Habib ressalta alternativa aliando sociedade, energia e ambiente

A escolha da matriz energética, s egundo o biólogoMohamed Habib, tem sido tão problemática para opaís quanto a deficiência de sua cota dehidroeletricidade. “ O c ri tério defendido pela c iênciapara a uti l i zação dos r ecursos naturais obedece aotripé da sustentab i l idade: o recurso deve seringesgotável ou no mínimo renovável, econômico eseguro para a saúde e o meio ambiente”, explica.

Segundo estes cri térios, o gás natural está descar-tado, pois sendo um recurso fóssi l , se esgota. A águaque se perde por evaporação no processo deresfriamento das turbinas dessas termoelétricas,também deve ser levada em consideração numaregião c omo a nossa, onde j á s ofremos a escassezem épocas de estiagem. O grande problema dastermelétricas projetadas pelos empreendedores, afi r-ma o professor, é que elas necessi tam de água pararesfriar as turbinas. “É um volume assustador, num

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percentual de 80% do total uti l izado”, expl ica. Po-dem s er buscadas outras a l ternativas para c ada r e-gião. Habib c i ta ainda a energia eólica e a solar,além de de mini -hidroelétricas e até o gás, d esdeque c om c ri térios ecológicos, econômicos e s ócio-culturais.

Por isso, o professor desenha um futuro som-brio para a região de Campinas, caso se concreti zea instalação de Carioba 2 em Americana ou nassuas proximidades.

No panorama atual, com estiagem de até 45dias durante o inverno, a previsão é de total escas-sez de água. “A ampliação do Pólo Petroquímicode Paulínia vai consumir um volume de águaigual ao consumo de toda Campinas. Então, comoconstruir uma Campinas sobre Campinas?”, per-gunta. “Aliado ao consumo de Carioba, vem o dasindústrias que correrão atrás de sua energia e

que também vão precisar de água”, complementa.Os problemas não param por aí. Embora conside-

radas menos poluidoras que as t ermelétri cas movi -das a piche ou r esíduos de r efinaria, estas usinas agás também produzem gases de estufa, parti culados,poluentes e gases tóxicos. “Tem mais: será que nos-sa região precisa ainda de desenvolvimentotecnológico e i ndustrial poluidor, enquanto o i nte-rior do Brasi l possui populações que necessi tam deemprego, têm água e precisam de fábri cas, que nun-ca devem ser poluidoras? Por que o setor empresari -al industrial fica nesta região saturada e frágil e nãoprocura parti cipar de um projeto de desenvolvimen-to nacional , exercendo uma f unção s ocial c orreta?”.

Perna curta – Este contraste leva o professor ainsisti r que o Brasi l não t em um p lano de governopara o desenvolvimento r espei tando o t ripé ener-

gia, sociedade e meio ambiente. “Um tripé nãopode ter uma perna mais curta, senão perde aestabi l idade, a f i rmeza. Só s e c onsegue este equi l í-brio através de estudo e não a parti r de medidasmi tigadoras, de c orreção. O Brasi l v i ve c orrendoatrás de prejuízos, em v ez de estar à f rente dosacontecimentos”, c ri tica.

Habib l embra ainda que a i nstalação de i ndústri -as não é a única via para o desenvolvimento. “A NovaZelândia é um exemplo mundial de desenvolvimen-to c om r espei to ao meio ambiente e é parecido c omnosso país no aspecto ambiental , s ó que r ico e pre-servado. Achar que r iqueza s igni fica destruição, f u-maça e intoxicação é burrice. Não podemos cai r nes-ta armadilha. Os acadêmicos, juntamente com ogoverno, t êm de t er a c apacidade de oferecer à s oci-edade a al ternativa mais intel igente para o desenvol-vimento nacional ”, defende.

O problema da água, sempre

MohamedHabib, do IB:“Terméletricassão umaarmadilha”

Se o Brasil podecompetir comosEstados Unidos emalgumasperformances,uma delas é nodesperdício, segundo oprofessor MohamedHabib. Nosso paísperde 25% da energiaelétrica disponível, 5%a mais do que a cota doracionamento. “Se nãohouvesse a cultura dodesperdício, nãoprecisaríamosderacionamento. Mas atéa sede daconcessionária deenergia elétrica e osprédios públicosamanheciamcoma luzligada”, acusa.

O desperdício deenergia, para oprofessor, tem um ladocultural que pode serobservado tambémnasindústrias.“Equipamentosindustriais obsoletosgastam energia e têmpouca produtividade. Oempresário, pagandobarato pelaeletricidade, vai renovaros equipamentos paraquê? O setor industrialprecisa evoluir paraacompanhar a realidadee substituir suasmáquinas por outrasmais eficientes eeconômicas”, ensina.

Foto: Fernando De Tacca

Foto: Neldo Cantanti

Queimada de cana-de-açúcar: visão lúdica para efeito trágico para o planeta

Desperdíciode primei ro

mundo

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JOÃO MAURÍCIODA ROSA

[email protected]

e o racionamento no Brasil ser-vir de lição ao governo federal,a comunidade científica come-çará a ser melhor ouvida no quetem dito a respeito do efeito estufa, um aviso tãocontundente quanto a iminência do colapsoenergético e igualmente desdenhado. “Não foi porfalta de alertas que o governo negligenciou. Agora,se negligenciar em relação ao efeito estufa, as con-seqüências serão trágicas para o mundo inteiro”,afirma o cientista César José Bonjuani Pagan, pro-fessor da Unicamp licenciado e prefeito da estânciapaulista de Amparo.

A preocupação do professor cresce na mesmamedida da construção deusinas termelétricas pelopaís. “É uma política insana”,critica, descendo apressadopelas suntuosas escadariasdo Paço Municipal da estân-cia turística, um prédio his-tórico no centro da cidade.

Com 39 anos, Pagan pa-rece muito moço para suabiografia, que se tornouconhecida nacionalmenteem 1998. Na época com 36anos e lecionando na Fa-culdade de Engenharia

Elétrica e de Computação (FEEC) da Unicamp,Pagan, em parceria com o professor GilbertoJanuzzi, da Faculdade de Engenharia Mecânica(FEM), fez o poderoso cartel da indústria de ilu-minação do Brasil retomar a fabricação de lâmpa-das de 127 volts, então trocadas pelas de 120, pro-porcionando uma economia ao país de R$ 500milhões anuais. Soma equivalente ao custo de umausina hidrelétrica de 250 megawatts, suficiente parailuminar três cidades do porte de Campinas.

Atualmente, se em vez de no gabinete de Ampa-ro estivesse no Congresso Nacional, iria comprarbriga contra o projeto visando a evitar futuros ra-cionamentos com a construção desenfreada de usi-nas termelétricas. “Esta opção por termelétricas me

para oefeitoestufa

S

A preocupação do professor CésarPagan com o meio ambiente foi pauta desua campanha eleitoral em 2000, o quelhe rendeu 65% dos votos através deuma coligação PT-PC do B. Amparo é amaior cidade do chamado Circuito dasÁguas, com 60 mil habitantes e umdiversificado parque industrial.Atualmente, o prefeito lidera ummovimento para a criação de umamicrobacia na região, envolvendo outroscinco municípios.

Para ele, a vida de prefeito é similar àde professor. Ambos são homens públicosprodutores de ações em benefício dasociedade. “Devo voltar a lecionar depoisque deixar a prefeitura”, afirma, dizendo-se fora de uma disputa em nível estadualou federal. Se for assim, azar dasindústrias de eletroeletrônicos e dasdistribuidoras de energia, pois quandoretornar aos laboratórios – ou antesdisso, por intermédio dos colegas –promete reiniciar suas pesquisas sobre osefeitos da variação de tensão nosequipamentos domésticos.

A história da troca de tensão daslâmpadas começou com o que não passariade uma conversa de corredor. Professor deeletrotécnica, ouviu alunos comentando quesuas lâmpadas estavam queimando muitodepressa. “As minhas, também. Fomos vere deu no que deu”, resume.

Pagan e equipe descobriram que,apesar de a lâmpada de 120 voltsoferecer ganho de luminosidade,consumia mais energia e tinha menosdurabilidade. Ou seja, dava 21% a maisde luz, mas também consumia 9,1% amais de energia. Multiplicando estepercentual por 20 milhões de residênciasacesas, chegou à fantástica conta de queo país estava pagando anualmente pelodesperdício e ainda ao prejuízo de R$100 milhões por ano aos consumidorespela elevação da conta. Além do mais, aslâmpadas de 120 volts tinham vida útil de450 horas, menos da metade do tempodas de 127 volts.

Geladeira - Cientista que fezgraduação, pós-graduação e doutoradoem física, para depois chegar à livre-docência em engenharia elétrica, Paganinforma que toda vez em que há mudançada tensão aplicada, muda também o modode funcionamento de boa parte dosequipamentos domésticos, como ageladeira, que depende de motor elétrico.“Se a tensão cair muito, pode abreviar avida útil do aparelho”.

O professor Gilberto Januzzi, parceirode Pagan nas pesquisas, segueestudando este problema e o aluno demestrado Dean Willians está defendendotese sobre o funcionamento degeladeiras. Já descobriu que a queda detensão na rede de distribuição vai fazer ageladeira consumir mais energia. “AUniversidade está repleta de pessoasbem intencionadas. É só caminhar pelosseus corredores para vê-las. Se acomunidade acadêmica fosse ouvida comsensatez, não teríamos apagão e nãoprecisaríamos temer o efeito estufa”,finaliza Pagan.

Conversa decorredor eleva

tensão daindústria deiluminação

César P agan, o‘homem dalâmpada’, dá novopasso à frente ealerta o governopara o buraco nacamada de ozônio

Lição que serve

preocupa, pois pode ser uma opção para o investi-dor particular, já que o prazo de amortização do in-vestimento é de menos da metade de umahidreolétrica. Mas é ruim, por depender de recursosnão renováveis, indexada em dólar, muito mais cara.E a nossa energia já foi a mais barata do mundo”,lembra. O prazo de retorno do capital nas terme-létricas, segundo ele, é de aproximadamente 10 anos,contra 20 ou 30 anos das hidroelétricas.

Pior do que a mera especulação financeira por trásda proliferação das termelétricas, é sua contribuiçãopara com o buraco na camada de ozônio que prote-ge o planeta do efeito estufa. Regiões do Chile e daArgentina já adotaram horários impróprios para pes-soas saírem às ruas, numa clara demonstração de queo problema está muito mais palpável. “Isso não é umafantasia pessimista. Se a comunidade científica já di-zia há tanto tempo que teríamos o racionamento deenergia, sem que nenhuma medida fosse tomada, émelhor que os governos dêem atenção à mesma co-munidade quanto ao efeito estufa, uma coisa sériaque pode ter impacto no planeta todo”.

Pagan fala inconformado dos recursos naturaisrenováveis abundantes no Brasil, como água e sol man-tidos como estão, relegados ao esquecimento em be-nefício das termelétricas movidas a gás boliviano pagoem dólar. “As opções que fizermos hoje terão conse-qüência amanhã. É uma insanidade a gente caminharpara esta política de termeletricidade. Ela pode vircomo suporte do sistema, mas não com esta gama deinvestimentos que estão alocando. É perfeito para ainiciativa privada, que tem lucro mais rápido, mas parao desenvolvimento do país e de nossa sustentabilidadeé péssima estratégia”.

O professor credita o racionamento à falta de investi-mento nos últimos anos. “O governo preferiu privatizara colocar dinheiro no sistema elétrico, enquanto osreservatórios baixavam de nível. E o problema não éde clima, não é falta de chuvas, foi negligência mesmono investimento em geração e transmissão”.

Pagan, daFEEC eatualprefeito deAmparo:“Governoprecisaouvir auniversidade”

Foto: Neldo Cantanti

Foto: Antoninho Perri

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U

Eletricidade vira moedaFoto: Antoninho Perri

1.Avaliar de forma retrospectiva, mais completa, rigorosa, para fins de minorar e corrigir assituaçõesdedegradaçãoambiental já causadasouagravadas pela capacidade instaladadeofertae transmissão/ distribuição de eletricidade.

2. Sistematizar informação já existente, talvez dispersa, e implantar campanhas de mediçãogeofísica, química, biológica; organizar, reorganizar, interligar serviços e redes de avaliação dasituação dos reservatórios de hidrelétricas já formados; particularmente.

2.1 os casos de proximidade com áreas urbanas a montante e a jusante,2.2 os problemas de assoreamento, sedimentação de material orgânico,2.3 os problemas de eutrofização, fermentação com emanação de gases e de contaminação

química de reservatórios ou trechos de rios com vários reservatórios, para fins de adotar medidasde reforma, proteção, limpezas, alteraçõesdemododeoperação, descontaminação, etc. em todosesses reservatórios.

3. Conceber, planificar e instrumentar medições de emissões de poluentes primários e deconcentrações de poluentes de todos os tipos nas regiões atingidas por termelétricas de todos ostipos, em todas as situações operacionais, estações do ano e condições meteorológicas. Espe-cialmente no caso de combustíveis fósseis com enxofre ou gás sulfídrico em sua composição, e,no caso do ciclo formado pelos óxidos de nitrogênio, hidrocarbonetos voláteis, Ozônio e outrosprodutos de smog foto-químico na baixa atmosfera, no ar respirável.

4. Elaborar, testar e aperfeiçoar critérios de zoneamento e controle ambiental de áreas jáproblemáticas e de áreas de proteção de recursos naturais, especificamente rios ou trechos dosrios, considerados em planos públicos ou privados como passíveis de futuros aproveitamentohidrelétrico e dos trechos de rios prejudicados ou passíveis de, por causa das grandes captaçõesegrandesperdas evaporativas dos sistemasde resfriamento (termelétricas, co-gerações, centraisde utilidades de indústrias e de coletividades)

-para estabilizar e reduzir poluição e risco atuais-para restringir localização de novas obras e instalações elétricas e de novos processos hidro-

intensivos (p.ex. bacias do Sorocaba, do Piracicaba (SP), do Paraíba do Sul (SP,RJ,MG), ondese somam efeitos de hidrelétricas, de termelétricas e indústrias hidro-intensivos)

5. Concepção e aperfeiçoamentos das cadeias de coleta, reutilização e reprocessamento demateriais de alto conteúdo deeletricidade, em indústrias convencionais e em instalações específi-cas, piloto, comunitárias, etc. Inovações e adaptações tecnológicas para redução de parâmetrosde consumo elétrico nos processos eletro-intensivos.

[ por exemplo , as cadeias produtivas que fornecem o cloro e a soda por eletrólise, algunsprodutos metalúrgicos obtidos em fornos elétricos de indução e arco voltaico, que fornecem asferro-ligas de manganês, e cromo, os metais não ferrosos, como chumbo, zinco, cobre, alumínio,as que fornecemoestanho, e ainda as sílicassilicas de alta pureza ( grau ótico para as fibras, grauvoltaico para as células fotoelétricas e grau eletrônico, para os chips ), todas elas consumindomilhares ou dezenas de milhares de kilowatts x hora por tonelada de produto acabado ]

6. Em princípio, deveriam ser incentivados todos os esquemas, procedimentos e acessóriosvisando à redução de consumo médio de iluminação, conforto térmico, ventilação, refrigeração, àredução de consumo e potência exigida em horas de pico, à diminuição de potência reativa, aoaumento de fator de potência, à combinação ou complementação de uso final de energia elétricacom calor solar, com foto-eletricidade, com uso de vapor de processo e de vapor motriz, ouvisando à melhor manutenção técnica, menor desgaste, melhor eficiência, — tudo no sentido dereduzir progressivamente e de forma difundida, as ineficiências, as perdas e os riscos dedesabastecimento edepane.

Muito além do esteriótipoSó para contrariar aquela propaganda institucional que o governo federal

anda bancando no horário nobre das emissoras de TV, na qual um ator estereo-tipa um “oposicionista” adepto da política do “quanto pior melhor”, Sevá Filho,solicitou ao Jornal da Unicamp que destacasse um roteiro que ele apresentouem Brasília, num workshop do Centro de Gestão e Estratégia do Ministério deCiência eTecnologia.Ciência e tecnologiapara assumir osproblemasambientaisda eletricidade é como ele batizou o documento que segue:

Oswaldo Sevá F ilho vê ‘criseproduzida’, com intenção deocultar grande operaçãode transferência de rendas

Foto: Neldo CantantiCARLOS LEMES [email protected]

ma pedra no sapato do s tatus quotambém pode contribuir na bus-ca de fórmulas para superar a cri -se. E ninguém melhor para assu-

mir essa missão que Arsenio Oswaldo SeváFilho. Um homem que soube canalizarsuas qual i ficações de professor da Faculda-de de Engenharia Mecânica da Unicamp ena pós-graduação em PlanejamentoEnergético para pular os muros acadêmi-cos e r espaldar c ienti fi camente as c ruzadas de or-ganizações não-governamentais engajadas noquestionamento de projetos i ndustriais e de c en-trai s e létri cas c om grande i mpacto nos r ecursosnaturais e na v ida das pessoas atingidas.

É nessa l inha que ele t enta desvendar i deologi -camente o que estaria subjacente à “era do apagão”.“A e letri cidade v ai v i rando uma nova e c omplexamoeda, a ser transacionada em bolsas de merca-dorias e de apostas, t ratada c om l inguagem c adavez mais ci frada e cujos dados físicos e comerciaismais estratégicos circulam cada vez menos em cir-cui tos s ociais c ada v ez mais s egregados”.

Para Sevá Fi lho, “o embrião desta novidade” exis-ti ria, na verdade, há quase um século no Brasi l . “Aintenção é ocultar uma enorme operação de trans-ferência de r endas”. Exempl i fi ca: “ Nós, em c asa,ou as prefei turas, c om as l uzes das r uas e praças,remetendo j uros, l ucros, r oyalties, a c ada t oquede i nterr uptor, a c ada f echamento de d isjuntor”.Referindo-se ao a lumínio e outros metais, prosse-gue: “ Nós em c asa, f inanciando i ndústrias de a l toconsumo elétrico, que muitas vezes exportam, tam-bém por nós subsidiadas”.

O especial ista não s e c onforma c om o atraso naaval iação de medidas que s ó agora v êm ocorrendo:“Não era preciso genial idade nem tecnologias secre-tas há dez, quinze anos, para i nduzi r mudanças deequipamentos, o aprovei tamento de c alor do s ol ,dos resíduos, e das máquinas e processos térmicos,além de perseguir a redução de perdas”. Sobramfarpas também para a iniciativa privada: “Teria sidoobrigação de qualquer empresa decente, há tempos,melhorar o uso de eletricidade em processos i nten-sivos e, obviamente, melhorar continuamente a ma-nutenção e a s egurança operacional ”.

Na opinião do pesquisador, num s istema t ão de-pendente de r ios c omo é o nosso c aso, “ uma c ri se‘produzida’ como esta é mui to favorável , de imedia-to e a longo prazo, para quem vende diesel , GLP, gásnatural c anal izado e até c ombustíveis piores, c omoo c oque de minério ou o de petróleo, os r esíduosviscosos, o carvão mineral, os f inos de x isto”.

Dentre os objetivos dos c ondutores desta c rise,ainda não suficientemente claros, ele arr isca: “Po-dem estar a mudança da própria estrutura de pro-dução e transporte de mercadorias, a captura maiseficaz dos sistemas domésticos e coletivos de ener-gia”. E sobre os efei tos, aponta: “Já temos o agrava-mento das c ontas externas do País, pois o f echa-mento do abastecimento nacional de diesel e GLPdepende cada vez mais de importação. Do gás na-tural, uma pequena parte já é importada da Argen-tina, e s obre o gás bol iviano, está s endo pago umvolume c ontratual mui to maior do que o e feti va-mente consumido. “Ponha-se na conta também oaumento de importação de lâmpadas, geradores,isenções para t urbinas etc”.

‘Saudades da ditadura’ – O engenheiro nãoduvida de um imperativo: “Quem detém combus-tíveis e eletricidade, sempre fez pol ítica pesada, emtodo o mundo. E em cada recanto do Brasil. Opessoal que está aí agora é um aprofundamento dogrupo pefelista baiano e pernambucano, que do-mina o MME, a Eletrobras e as ex-estatais e a indaestatais, desde os tempos do general Geisel ”. E in-tensi fi ca o ataque: “Estão com saudades da di tadu-ra e acham normal infernizar a população e umaparte dos empresários, desde que s ejam protegi -dos até o fim os interesses bem determinados queos sustentam. Nomeando-os: as ‘irmãs do petró-leo e do gás’ , as grandes empresas elétricas estran-geiras, os fabricantes de turbinas, centrais e l inhaselétricas, e, c laro, os grandes f abricantes, v orazesdevoradores de eletricidade”.

Uma deixa para sua l i nha de argumentação predi -leta: “As entidades t êm propostas há mui to t empo ehá mui to t empo s ão alvo de r idicularização, c l ichêse desconfiança, i nclusive aqui , na academia”. Lem-brando uma s eqüência de f óruns nacionais e i nter-nacionais promovidos por ONGs ambientais, dosquais participou, adverte: “ São antigas as propostasque apontam e exigem outros rumos, até abrindooutras oportunidades de negócios, projetos,tecnologias. Mas somos um tipo de gente que pensamais a s ociedade do que esses c onstrutores de c ri -ses, que estão planejando outras coisas, para si pró-prios, e que por enquanto não podem fi car escanca-radas”. E c arrega na i ronia: “Business as usual,mesmo para sai r da crise”.

Pouco entusiasmo – O especial ista confessa játer sido bem próximo das instâncias que queremtraçar rumos, escopos e concei tos para nossas pes-quisas. “ Essa área de C&T, como dizem. É impor-tante manter e i ncentivar a d iversidade, os t emasmultiprofissionais”. Porém, deixa claro: “Não meentusiasma a pesquisa d i rigida por governos f ede-ral , estaduais ou municipais, e sim os laços que sepossa criar e manter com a sociedades local , regio-nal, de outros Estados, a humanidade, enfim.Tampouco tenho boas referências de pesquisas en-comendadas por empresas existentes e, menos ain-da, pelas que estão tentando implantar projetos degrande impacto.”

Mesmo ponderando que com “este transe atualda escassez e do racionamento em implantação,fica mais di fíci l propor c oisas novas, s alvadoras”,ele s e posiciona: “ Continuo exigindo precaução. Écriminoso, s ó por c ausa da ‘ crise’ , baixar padrõesde controle ambiental e acelerar l icenças ambientaisde projetos r uins e mal l ocal izados”.

Sevá Filho, da FEM:pesquisas oficiaisnão entusiasmam

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CARLOS LEMES [email protected]

ameaça do apagão, que parece ter come-çado a pairar sobre nós de repente, comoum flagelo bíblico, é na verdade um des-dobramento mais do que natural do

autoboicote que o Brasil vem promovendo histori-camente na “voltagem” de sua organização sócio-política. Este é um bom início de análise da criseenergética, na opinião do engenheiro agrícola LuizAugusto Barbosa Cortez, coordenador do NúcleoInterdisciplinar de Planejamento Estratégico (Nipe)da Unicamp. Cortez, que abriu a mesa-redonda Criseenergética: implicações e conseqüências, realizadapelo Nipe em parceria com a Coordenadoria Geralda Universidade (CGU), integra o pool de especia-listas da Unicamp engajados no esforço de debatere desenvolver um mix de tecnologias alternativaspara o setor. A sua principal pesquisa é sobre ob-tenção de matriz energética do bagaço de cana pelapirólise rápida (veja matéria na página 17).

“A sociedade brasileira é muito pouco organiza-da e a questão energética é só mais um elementodessa desorganização”, afirma o pesquisador. “Du-rante os mais de vinte anos de regime militar, elafoi estimulada a não se organizar. Aliás, isso ocorreao longo de toda a nossa história, desde a relaçãocom Portugal. Dá para sentir essa lacuna tomando-se como parâmetro duas nações modernas, a nor-te-americana e a francesa, que mesmo às custas demuitas lutas, violência até, equacionaram suas dife-renças, construíram uma sociedade de direito e, apartir daí, viabilizaram seu desenvolvimento”. ECortez reflete: “O que é desenvolvimento, senão oresultado material da organização?”.

Na avaliação do engenheiro, essa crise pontual si-naliza a necessidade de planejamentos a longo prazoem todos os setores essenciais para o País. “Não é sócom relação ao problema energético. Até porqueenergia é um item que, isoladamente, não tem senti-do; você a tem para fazer alguma coisa”, observa.

Cortez considera empobrecedora para a discus-são a tendência de se atribuir exclusivamente aogoverno federal a culpa pela situação, sob argu-mentos como negligência ou políticas equivoca-das que estagnaram investimentos imprescindíveisao setor: “Depois de afirmar que a falta de plane-jamento é um problema cultural nosso, só possoponderar que o governo – o atual ou qualqueranterior – não é nada mais que um reflexo disso.Quem é FHC, quem foram Itamar e Collor? Sim-plesmente pessoas que representam parcelas dapopulação e que, por alguma razão e em determi-nado momento, espelham o ponto de vista de umsegmento importante e, sendo colocadas em po-sição de decidir, repassam responsabi-lidades, estabelecendo-se uma re-lação de execução de ações quepodem ou não atender às ne-

cessidades maiores do País. A crise energética ésó um exemplo de como não se conseguiu satis-fazer as demandas de um setor, vital, nesse caso” .

Silêncio e opor tunismo – O professor, porém, nãodeixa de tecer críticas. “T enho estranhado um certosilêncio, não só do Poder Executivo, como tambémdo Legislativo, no sentido de fazer um trabalho maisefetivo de conscientização da comunidade; orientar,mais do que simplesmente impor metas. Seria o casode o presidente, os governadores, os prefeitos e osparlamentares de todos os níveis atuarem com maiorempenho em parcerias técnicas com as concessioná-rias. Mas continuam prevalecendo os interesses polí-ticos imediatos, sejam a imagem pública, as ambiçõeseleitorais, as CPIs”, observa.

Por mais que a falta de maturidade que identificana esfera política o incomode, Cortez frisa: “O queme preocupa realmente, neste momento, é o opor-tunismo de alguns segmentos da iniciativa privada,com vistas a ganhar muito dinheiro com a crise”. Eele dá nome aos bois: “São empreendedores ávi-dos em atropelar as legislações ambientais e de pro-teção ao consumidor, para fazer valer seus proje-tos específicos”.

Como exem-

Como um flagelo bíblicoLuiz Cortez afirma que

crise de energia remetepara a necessidade

de planejar todas asatividades essenciais

Aplo do primeiro caso, o pesquisador lembra os po-lêmicos esforços para a instalação da TermelétricaCarioba 2. “Todos esses projetos têm que ser ante-cedidos por um amplo esclarecimento à popula-ção sobre as conseqüências positivas e, sobretudo,as negativas. A macrorregião de Campinas já é ex-tremamente sofrida do ponto de vista ambiental eestão quase forçando uma situação que turva a tran-qüilidade necessária para o cumprimento corretodos estudos de impactos”, critica.

Ainda que se deslocando do monstruoso cantei-ro de obras em Americana para as gôndolas dossupermercados, a ganância dos espertalhões nãoarrefece, segundo o engenheiro: “Imediatamenteantes da crise, era possível achar uma lâmpada fluo-rescente por até R$ 10,00; hoje, o consumidor nãoencontra por menos de R$ 20,00 e, às vezes, temque pagar até R$ 25,00”. Essa seria até a mais pro-saica “caracterização de ganho ilícito”, para Cortez.“Esbarramos com sobrepreços em coletores solarese quaisquer equipamentos que possam acarretar eco-nomia energética, numa prova de que, sabendo danecessidade e do conseqüente aumento da deman-da, há muitos empresários se aproveitando”, de-nuncia.

Guerra ao chuveiro – A essa altura, o coordena-dor do Nipe se vê obrigado a apontar outra falta deiniciativa das autoridades públicas: “Há medidas queo governo já poderia ter começado a implantar.Uma delas é exatamente a difusão do coletor solarcomo fonte alternativa de energia, que no prazode alguns anos reduziria ao máximo ou, até quemsabe, praticamente eliminaria o uso do chuveiroelétrico”. Para reforçar sua argumentação, Cortezse reporta ao pronunciamento do professorSecundino Soares Filho, da Faculdade de Enge-nharia Elétrica e da Computação (FEEC), que du-rante a mesa-redonda afirmou que os quilowatts“devorados” por cada chuveiro elétricocorrespondem a até 9% de toda a energiaconsumida no País. “Mesmo que haja um custo ini-cial, imagine o benefício quando se pensa no aten-dimento de 20 milhões de residências”, sugere

E ele propõe até uma forma de pulverizar essecusto no mercado consumidor “num prazo de qua-tro ou cinco anos”. Bastaria seguir a trilha de paísescomo Estados Unidos e Canadá, onde, de acordocom o especialista, à medida que optam portecnologias econômicas, as populações usufruem decréditos fiscais. “Vou comprar um coletor solar que,no Brasil, custa R$ 1,2 mil. Mas aí, o governo de-

sempenha o papel de parceiro, bancando de30% a 40% do preço final”. Cortez ressalva

que, por mais que a idéia lembre o histó-rico Proá lcool, aquele foi um incentivo

direcionado para um segmento da eco-nomia. “O que estou defendendo é

abrir essa possibilidade para asociedade em geral”.

Cortez, coordenadordo Nipe: “O que édesenvolvimento,senão o resultadomaterial daorganização?”

Fotos: Neldo Cantanti

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O mercadonão resolvetudo‘O ano doapagão’,segundo EnnioPeres, queestudao hidrogêniocomo fonte deenergia elétrica

CARLOS LEMES [email protected]

mercado não resolve tudo. Eis a principalcausa da crise energética, na anál ise deEnnio Pe res da Si l va, c oordenador doLaboratório de Hidrogênio do Insti tuto de

Físi ca Gleb Wataghin (IFGW) da Unicamp. “Oprocesso de privatização de um setor quehistoricamente era todo controlado pelo Estado foiconduzido sem determinadas precauções, seguindoa lógica de que o mercado se auto-regula. Só queisso nem sempre acontece no curto prazo,pontualmente”, afirma.

Enquanto participa do debate sobre o “ano doapagão”, o cientista coordena pesquisas sobre oaproveitamento do hidrogênio como fonte “limpa”de energia elétrica. E, graças ao avanço daconscienti zação, impulsionado pela própria cri se,Peres da Si lva acredi ta que já no próximo ano terácondições de testar protótipos para suprir ailuminação de escolas da rede básica de Campinas(veja box).

Prosseguindo em sua aval iação, o físico ressalvaque, acima de qualquer fator predominantementepolítico, há a condicionante de o País ter sua geraçãode energia elétrica fortemente embasada no sistema hidroelétrico. Ta lconfiguração, segundo ele, determinou em mui to as cartas perversas do jogoda privatização. “Desde a era Vargas, o Estado mantinha um controle absolutoda geração, transmissão e boa parte da distribuição. Então, no governo Col lor,deu-se início ao processo de reestruturação do setor, com parti cipação maiorda iniciati va privada, onde o Estado passou a se colocar mais como um agenteregulador do que econômico”, expõe.

Os entraves começaram a se corporificar no atual governo, a quem coubedar continuidade às pri vati zações. “Um dos obstáculos é o fato de a geraçãovia hidroelétrica exigi r investimentos grandes nos projetos e pautar-se porum prazo longo de maturação, na ordem de quinze anos, em média”, destacao pesquisador. “Então, mesmo que depois a operação passe a ser de baixocusto, pois a água – vamos dizer assim – é quase de graça, o setor privado nãosente atratividade nesse tipo de empreendimento, por ter que aportar grandesquantidades de capital. Como visa lucros, obviamente quer investimentosmenores e retornos mais rápidos”, conclui .

Freguesia di fíci l – O governo ainda tentou contornar a si tuação oferecendoa alternativa das termelétricas. Teoricamente, o c enário parecia apaziguado.Afinal , t ermelétri cas demandam i nvestimentos i niciais menores, prazos deexecução dos projetos exeqüíveis em dois ou t rês anos e r etorno f inancei rorápido. Tudo ao gosto dos “fregueses” grandalhões da eletricidade. Nem tanto,corr ige Peres da Si lva: “Há o custo do combustível. Por isso, foram necessários osacordos com a Bol ívia e a Argentina, para a construção do gasoduto, permi tindoque o Brasi l disponibi l izasse tecnicamente as termelétricas”.

Mesmo assim, mais encrencas à vi sta. Sentindo que estavam l idando com umgoverno de mãos atadas para reagir no campo dos investimentos de grandeporte, por f orça das r estrições c olocadas pelo FMI, o empresariado s e v iu àvontade para exigi r uma série de garantias, l igadas desde ao fornecimento dogás à venda da energia. “Como havia a estimativa de até três anos para erguer astermelétricas, o governo foi negociando, mas não de forma crítica, pois o tempoia passando”, observa o pesquisador. “Assim, se naquele prazo ideal izado seriapossível colocar mi lhares de megawatts em funcionamento, já que eram váriasempresas e todas i riam fazer seus projetos simultaneamente, o que era ‘ possível ’não se concretizou: a crise chegou antes”.

Peres aponta como prova de que nem sempre funciona a lógica do mercadoa ilusão de que, solucionando-se um problema de ordem econômica,rapidamente se teria os investimentos necessários. “Obviamente, qualquergoverno tem de entender que a fórmula dogmática segundo a qual o mercadoregula tudo automati camente não funciona sempre, ainda mais em se tratandode um setor tão essencial e, ao mesmo tempo, tão mal estruturado”, cri ti ca.

Um exemplo dessa desestruturação, para ele, está na própria históriada regulação: “As privatizações acabaram antecedendo o processo deregulação. O governo precisava vender e a regulação ainda está sendoelaborada. Nós a estamos fazendo já com parte do sistema privati zado.Isso, é claro, vai trazer mi l problemas. Um deles é a di ficuldade de secolocar imposições para os investimentos”.

Riscos da aventura – A imprudência de se lançar numa ação “tipooi to ou o i tenta”, c omo Peres compara, está colocando o pessoal doNúcleo Interdiscipl inar de Planejamento Energéti co (Nipe) da Unicampde orelha em pé. Principalmente com relação a dois aspectos: um éexatamente o arcabouço regulatório e o outro, o ambiental .

No primei ro c aso, o f ísico adverte: “ Consti tucionalmente, t udo ébastante duvidoso. Deixa-se de ter um problema de suprimentoenergético que dificilmente se manteria grave por mais que algunsmeses, para se criar outro, que pode ser permanente. Atropelarpremissas consti tucionais é caminho certo para abalar a credibi l idadenas instituições. Um exemplo recente e amargo é o da caderneta depoupança, que nunca mais recuperou a confiança popular, após oconfisco do Plano Col lor”.

No plano ambiental, Peres teme a cogi tada flexibi l ização de anál isesde impactos para projetos energ éticos: “ Pode ser um desastre. Naescrita, nossa legislação ambiental é até muito avançada, mas poucodela foi regulamentada e esse pouco já não se cumpre. Pe rmitirtermelétri cas s em c ri térios pode agravar a poluição atmosférica ecomprometer a qualidade da água”.

Na opinião do pesquisador, a melhor l i ção que o governo pode ti rarda crise é que ao tratar a energia como outros produtos de mercado,que pelo menos a veja como um produto essencial: “Em se tratando decarne, f ei jão e outros i tens, c ujo abastecimento está por c onta dainiciativa privada, há a estratégia do estoque regulador. Ante perturbaçõesno mercado, como entressafra ou mera especulação de preços, o governointervém e corrige as distorções”.

Ele admite que, no caso da energia, é difícil formar estoque oumesmo importar. “Mas nada impede que o Estado mantenha algumashidro ou termelétricas por conta própria, que até podem ficar apagadasem épocas normais, só entrando em operação nas emergências”,defende. “Seria um custo social que todos pagaríamos, para nãotermos uma recidi va da cri se”. O adiamento da pri vati zação de Furnasé encarado pelo pesquisador como “um sinal de que estamosaprendendo com a adversidade”.

origemdaspesquisas deEnnioPeresdaSilva remontaa1975, dentro da

perspectiva da crise depetróleo.Ohidrogênio,então,era trabalhadocomoobjetivo de substituir derivados.Osestudosparaageraçãodeenergiaelétricaapartir doelementocomeçaramase intensificar apartirdadécadade1990–maisprecisamenteem1992, ano da EcoRio, evento que teve omérito deelevar a consciênciamundial sobreosproblemasambientais, nosquais oaproveitamentoenergéticode fontesrenováveis passou a ocupar cada vez maisdestaque.

A novidade no setor são as células acombustível, que transformamhidrogênioemenergiaelétricaporumprocessoeletroquímico. “Ohidrogênioéuma formadearmazenare transportarenergia,alémdeinterligar várias fontes”, explicaPeres.Nessecaso, ohidrogêniodesempenhaopapel devetorenergético.

Como formadeproduzir energiaestacionária,equipamentosabasedehidrogêniopodemvirar alternativasaosgeradoresconvencionais, quealémdosefeitospoluentesatmosféricos,guardamoinconvenientedenãopoderemserusadosemqualquer lugar, por causadofuncionamento ruidoso.Outravantageméofatodeaeficiênciadoequipamentoalternativoindependerdasdimensões, oquenãoocorreno caso das turbinas. “Assim, no futuro,poderemosnosvaler deumconjuntodepequenasestações, semodispêndiodeumagrande”, diz o físico.

Eleadiantaestarbuscandoparceriascomempresasprivadasnacionaisedoexteriorparaamontagemdeequipamentosaseremusadosemdiversasaplicações, inclusiveemescolas. “Oque tambémnos favoreceráéatendênciade,empouco tempo,essesestabelecimentosadotaremaslâmpadascompactas,umdos recursos indicadosparaareduçãodoconsumo”,apostaopesquisador.

ENERGIALIMPA

A TIRACOLO

A Ennio Peres no Laboratório de Hidrogênio: protótipos para iluminar escolas públicas

O

Foto: Antoninho Perri

Universidade Estadual de CampinasJulho de 2001

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ÁLVARO [email protected]

crise energética veio para i luminar. Aopinião é do sociólogo Laymert Garciados Santos que, parafraseando ClariceLispector, vê na desi lusão o mote para

que a população desperte do torpor. Letargia, nocaso, a l imentada pela c onfiança c ega de que opaís havia carimbado o passaporte para amodernidade ao longo da década de 90. E o cida-dão bem que tateou o criado-mudo à procura dointerr uptor, mas o despertador estava sob o tocode vela, na sombra do lampião. Um retornoincontinenti, compara Laymert, aos primórdiosda Revolução Industrial .

É aí que o paradoxal produz seu primei ro efei -to: passada a perplexidade, o brasi lei ro começa apensar na l ição a ser ti rada. Mais: o não-reconhe-cimento, por parte do governo, de sua responsa-bi l idade na i mpl icação da c rise, j oga o c idadãosozinho no fosso cada vez maior que o separa doPrimeiro Mundo. Uma vala da qual podem emer-gir, além da revolta e do amadurecimento, novasformas de desobediência civi l .

“O governo tinha de ter admitido que essa criseera anunciada; ter reconhecido que fal taram in-vestimentos”, aval ia Laymert, professor do Depar-tamento de Sociologia do Insti tuto de Fi losofia eCiências Humanas (IFCH) da Unicamp. Não sónão o fez, como preencheu o vácuo da estratégiapol íti ca com o recheio edulcorante do marketing.No discurso oficial , a crise ganha contornos pica-rescos, de fábula até. O “ser pego de surpresa” eas comportas celestiais de São Pedro que o digam.

E, nessa regra perversa, os papéis foram inverti-dos. “A solução para encobrir essa irr esponsabil idadeé uma tentativa, o tempo inteiro, de traduzir qual-quer gesto da população em adesão”, anal isa. Omaniqueísmo, diz, atinge seu mais al to grau quan-do, a lém de empurrar o problema para a popula-ção, o governo passa a ameaçar os “transgressores”com toda a sorte de punições – de multas a sobreta-xas – e a jogar pesado na esfera do Judiciário.

Imagem é tudo – P ara o professor do IFCH, a“cruzada cívica” contou com o auxíl io sempre “di -ligente” da mídia, apoio fomentador de umaatmosfera di fusa e i lusória, como se o conjunto dasociedade tivesse aderido ao racionamento. “A mídianão é a opinião públ ica. A razão pela qual as pesso-as estão racionando está mui to longe de ser a mes-ma mostrada pelas imagens televisivas”, pondera.O professor acredi ta que dois aspectos precisamser r elevados: 1) é preciso s eparar a obediênciacega ao governo, da autoproteção surgida na des-confiança general izada em r elação ao Estado, j áque ou o cidadão se organizava ou ficava condena-do ao s ervi l ismo; 2) a c rise entrou pela porta dafrente no cotidiano das pessoas, obrigando-as, nosmínimos gestos, a refleti r sobre a degradação a queforam submetidas e, conseqüentemente, a econo-mizar com os parcos meios que dispõem.

Na aval iação de Laymert, a c rise c ambial dejaneiro de 1999 foi o primeiro sinal do que estavapor vir. Ela se inseria no downgrade que permeoua “ausência de pol ítica como pol ítica” e o “des-manche das insti tui ções” registrados na décadade 90, com a di ferença de que o estouro do realera “abstrato”, ao contrário da crise energética.“De certo modo, aquela conta gigantesca era re-mota, não aparecia no dia-a-dia das pessoas”.

Para o sociólogo, a situação de hoje deve ser vistacomo inédi ta e, dessa manei ra, não pode ser con-tornada pelos processos gerenciáveis de marketingengendrados pelos tecnocratas da equipe de FHC .“As impl icações da crise ul trapassam em mui to aquestão da imagem do governo ou do presidente.

Na análise feita por Laymert Garcia dosSantos, o “apagão” traz à tona asdiscussões sobre a “vocação moderna” dobrasileiro, abordada por autores comoDarci Ribeiro, Sérgio Buarque deHollanda, Gilberto Freire e Caio Prado,entre outros. Nesse sentido, havia aexpectativa de o brasileiro tornar-se umpovo autônomo, e não apenas para serusado como mão-de-obra a ser explorada.Essaperspectivademodernização, deconstrução de futuro, avalia Laymert, tevena globalização a sua última fase. “Já naabertura Collor tentaram vender, pelomenos para a população urbana da classemédia, que essa parcela poderia ingressarno Primeiro Mundo, ganhar amodernidade”.

À medida que se estabelecem oscritérios de seleção, como já sabiam osarautosdaglobalização, constata-sequeamassa de excluídos seria imensa. “Há oabandono de uma grande parcela dapopulação que não pode entrar no trem. Eaqueles que entraram no trem de altavelocidade descobrem, agora, que tambémestão sem futuro”. Nesse cenário,acrescenta, asituação ficabastante“complicada” por deixar claros os limitesdessaproposta. Laymert acredita que “ascartas estãosendobaixadas”, e o fossoentre asnaçõesdesenvolvidaseessessegmentos “modernos” do país vai crescerainda mais daqui para a frente. “Elescontinuam no seu ritmo dedesenvolvimento, enquanto nós estamosindo comprar lampião”, compara.

Nessecenáriodedesmontedasinstituições, Laymert classificade“patético” o papel do governo FHC pelofato de, a reboque da globalização, terabdicado da possibilidade de implementarumaestratégia política aosubmeter-se àsregras ditadas pelas doutrinas do mercadoe ficar atrelado a outras instâncias, entreelas FMI e Banco Mundial. “Não houveinvestimento, como bem lembrouFrancisco de Oliveira, porque não estavanos planos do Estado e, embora elesoubesse que precisava fazê-lo, optou emseguir a cartilha neoliberal”.

Laymert lembra que, quando ficaramclaros os efeitos da falta de investimento,constatou-sequeaausênciadeumapolítica para o setor não deixava de ser,também, uma política. O professor apontao contraste entre o discurso e a ação comoemblemático dessa linha de ação. De umlado, a retórica que pregava o ingresso noPrimeiro Mundo; de outro, o desmonte dasinstituições. “É uma contradição que,agora, ficou explicitada”. O trem não vaimais a lugar algum.

Racionar luzpara iluminara consciênciaLaymert Garcia dos Santostorce para que a povo brasileirodesperte de seu torpor

Trem quenão leva a

lugar algumA

Foto: Fernando De Tacca

Não dá para saber ainda as formas que essa revol tavai tomar. Ela não signi fica bagunça nem rebel ião;pode ser a compreensão do processo. E a constru-ção disso não se faz do dia para a noite”.

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Estrategistaprevê crises pioresGeraldoCavagnari Fi lhoalerta paraperigo que cercao transportemodal e defendeAngra III

CARLOS LEMES [email protected]

ÁLVARO [email protected]

A nova “idade das trevas”, enunciada em plenoinício do terceiro mi lênio e que tanto tem ti rado osono dos brasi lei ros, s erá “ fichinha” perto dasnovas crises que rondam a nação a curto prazo.Tudo “por culpa da fal ta de visão estratégica e dehonestidade do governo federal ”. O prognósti co,nada animador, e embalado por uma críti ca de-cididamente ácida, é de Geraldo Lesbat CavagnariFi lho, fundador e pesquisador do Núcleo de Estu-dos Estratégicos (NEE) da Unicamp.

Para impulsionar sua avaliação além da amea-ça pontual de um colapso energéti co, CavagnariFi lho usa como munição as suas qual i fi cações decoronel da reserva do Exército, diplomado emAltos Estudos Mi l i tares e em Intel igência Estraté-gica, além do instrumental que lhe confere o Nú-cleo de Pesquisa em Relações Internacionais daUSP, do qual é professor convidado.

“Essa crise revela, antes de tudo, a íncúria dogoverno no campo energético. Assim como faltouvisão estratégica, planejamento estratégico, fal toutambém seriedade e até mesmo honestidade aogoverno. Por esse precedente, é de se temer que opaís não esteja l ivre de outras crises de tal magni-tude”, denuncia o especial ista.

O gás natural como curingaDenis Schiozer informa que Petrobrás já explora reservas na Bahia e Bolívia

Para Cavagnari Fi lho, o perigo mais eminentecerca o nosso sistema de transporte modal . “Senão forem real izados investimentos rápidos e con-sistentes na recuperação, modernização e expan-são da infra-estrutura de todo o conjunto – inclu-indo-se aí desde as rodovias, ferrovias e hidrovias,até os portos e aeroportos –, haverá, em c urtoprazo, uma nova crise”, prevê o estrategista. “Ecreio que mais grave ainda”, reforça.

Alcatéia – Porém, enquanto o resto da “alca-téia de l obos maus” a inda não atacou de f ato,Cavagnari Fi lho t enta c ontribui r para o esforçonacional de f ortalecimento da área energética,com vistas a el iminar – ou ao menos reduzi r – aspossibi l idades de repetição dos atuais problemasnos anos seguintes. “Há uma necessidade impe-riosa de se adotar uma nova matri z energética”,

No c aso do Brasi l , Cavagnari Fi lho s e v ale dedois argumentos que considera fortes: “To do oequipamento necessário à construção da usinanuclear Angra III já foi adquirido e está pago. Opaís não pode jogar fora o dinhei ro gasto. Logo,justi fica-se a construção. Além disso, as reservasbrasi leiras de urânio são bastante signi ficativas,não gerando, dessa forma, nenhuma dependên-cia externa quanto a esse insumo”.

Incompetência – Outra crítica que o estudi-oso do NEE tece ao governo federal é quanto aorelacionamento comercial que as autoridades vêmmantendo com as concessionárias de energia elé-tri ca, principalmente no tocante ao processo deregulação do setor. Considerando- se que, atual-mente, a maioria dessas empresas é da iniciativaprivada, Cavagnari detecta elementos dedesestruturação no caso: “O processo deprivatização do setor foi conduzido com incompe-tência. Bastou a ameaça do apagão para o gover-no acelerar a privatização das geradoras”.

Mais do que simplesmente privadas, muitasdas novas c oncessionárias em ati vidade s ão denatureza transnacional . No entanto, como especi -al ista em estratégia, o professor tranqüil iza: “Mes-mo que a presença estrangei ra venha a ser domi -nante no campo energético brasi lei ro, não deveráhaver riscos à soberania nacional ”.

O al ívio de se ter razoavelmente longe o perigode uma “ colonização v ia i nterruptores”, entre-tanto, não chega a ser suficiente para aplacar oscustos sociais que, segundo o pesquisador, a po-pulação pagará por conta das atuais contingênci -as na área energética.

“Repi to sumariamente o que outros anal istas jádisseram. O impacto dessa cri se na nossa econo-mia deverá ser mui to grande. O crescimento eco-nômico neste ano e em 2002 deverá ser menor doque o previsto. O desemprego aumentará e a ren-da média dos trabalhadores fi cará estacionada”,enumera Cavagnari Filho.

propõe e le, até c hegando areconhecer que “não hádúvidas de que i sso j á estásendo fei to, de certo modo,fortemente estimulado pelaatual crise”.

Lembrando que, até ago-ra, mais de 90% da energiaelétrica consumida em todoo terri tório nacional é gera-da por hidroelétricas, o pes-quisador do Núcleo de Es-tudos Estratégicos adverte:“É um risco enorme depen-der de uma única fonte naprodução de energia”.

“Assim, na nova matri z aser adotada pelo Brasi l , ou-tras fontes de energia deve-rão ter uma participação sig-

ni ficativa, i nclusive o gás que é i mportado daBolívia e da Argentina”, relaciona o pesquisador.

Polemizando – Para compor esse mix deopções, Cavagnari Filho não descarta nem mes-mo uma das alternativas que carregam o pesohistórico da c ontrovérsia: “ Eu s ou f avorável àconstrução de usinas nucleares; elas devem par-ticipar da nova matriz energética brasi lei ra. Éuma fonte de energia limpa”, defende o pesqui-sador. “A segurança nuclear vem se aperf eiçoan-do muito, já é bem mais confiável que há vinteanos e a tendência é melhorar o padrão deconfiabi l i dade ainda mais”.

O professor baseia sua tese em uma tendên-cia internacional : “É sabido que os Estados Uni -dos, por exemplo, já pretendem investir em no-vas usinas nucleares”.

Usina Nuclear deAngra dos Reis:capital já investido compromessa de maiorsegurança

Cavagnari, no NEE: “Faltou até honestidade”

JOAO MAURICIO DA ROSAjmaurí[email protected]

ÁLVARO [email protected]

A termeletricidadeproduzidaapartir dogásnaturalpodenãoserbemaceitanomundoecologicamentecorreto, poiséconsideradaumaener-gia suja que emite poluentes nocivos à camada de ozônio e acelera aprodução do chamado efeito estufa. Mas, na falta de outras matrizesenergéticas, porquenãoutilizá-lo comasdevidasprecauções?

Denis Schiozer (foto ao lado), coordenador do Cepetro (Centro deEstudosdoPetróleo) daUnicamp, afirmaqueogásnatural temgrandepotencial de crescimentonoBrasil e quepode fazer parte daestratégiagovernamental para combater aescassezdeenergia. “Éprecisodiver-sificar amatriz energéticapara reduzir adependênciadopaísàsusinashidroelétricas. Entre 10% e 12% da energia consumida em váriospaíseséobtidadogásnatural.NoBrasil,estepercentualaindaestáentre2%e3%”, justificaSchiozer, da primeira turmademestrado emEnge-nharia do Petróleo, curso inaugurado pela Unicamp em 1988 junto aFaculdadedeEngenhariaMecânica.

Schiozer é especialista em exploração e produção de reservas de

petróleo, área de pesquisa que busca encontrar ocombustível nas bacias sedimentares brasileiras eproduzir óleo e gás da melhor forma possível, inte-grandogeociências,engenhariaeeconomia.

Atualmente,segundoele,aPetrobrásexplorareser-vasdegás,principalmentenoRiodeJaneiro,BahiaeBolívia.NoBrasil,comocombustível,ogás jáé utiliza-doemveículoscomotáxisecoletivos,masnogeralautilizaçãoépequenasecomparadaaoseupotencial.Oprofessor tambémconheceascríticasaocombustívelcomo fonte de eletricidade. “Não é limpo como ashidroelétricas, nem tão seguro,mas comogovernoatuandorigidamentecomoregulador,podeseraalterna-tivaparaaescassezdeenergia”,argumenta.

Este controle governamental deve ser o mais severo, segundo oprofessor, pois a exploração de energia, um setor estratégico paraqualquer país, terá grande presença de companhias estrangeiras.“Isso pode ser bom para o governo, pois estas companhias estãoinvestindo pesado em exploração e produção, coisa que a Petrobrássozinha não tinha condições de fazer. O Brasil ganha impostos eroyalties dos produtos, mas é preciso ter cuidado com o meio ambi-

ente e com o planejamento a longo prazo”, diz.

Especialistas –Aárea de petróleo e energia ébemespecializadae,comonovopapel reguladordoEstado, o país precisa deprofissionais capacitadosparaatuarnaáreaegarantirosucessoa longoprazo.Atémuito recentemente, oBrasil tinhapoucosespe-cialistas foradaPetrobrásquepudessemdialogardeigual para igual com as grandes corporaçõesmultinacionaisqueestãoentrandonomercadonacio-nal de energia.AUnicamp foi umadaspioneiras naárea comocursodeEngenharia doPetróleo.

Agora,oprofessoracha importanteogovernobra-sileiro reforçar a idéiadealiançacomuniversidadee

centros de pesquisa para preservar o interesse do país em uma áreaestratégicacomoadopetróleo. “Aempresaestrangeira vai fazer oqueémelhorparaelaeasatividadesdeexploraçãoeproduçãodepetróleoenvolvemmeioambiente, segurançaesaúdeporserumaáreaestraté-gica.Por isso, o país precisa contar comcentros depesquisaseagên-cias fortespara traçarpolíticasde longoprazo.Nacrisedeenergia, issonão foi feito e devemosaprender commais esse problema”, avisa.

Foto: Antoninho Perri

Foto: Neldo Cantanti

Divulgação

Universidade Estadual de CampinasJulho de 2001

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JOÃO MAURÍCIO DA [email protected]

ISABEL [email protected]

luz é atividade. Escuridão, ainércia. Por conta disso, quan-do o sol era a única fonte deenergia conhecida, a luz foi as-

sociada ao bem e a sombra ao mal e assimpermanece até hoje. O cientista Maurí-cio Knobel, professor emérito de pós-gra-duação em Psiquiatria da Unicamp, contaque a ciência já tentou localizar até o mo-mento em que a luz, mãe dos vegetais,começa a agir sobre a vida humana. “Sub-metendo gestantes à iluminação intensadescobriram apenas que a mãe pode trans-mitir sensações às crianças”, explica.

Mas é nas trevas que o homem inicia osseus dias para depois fugir delas. “Du-rante o período da sociedade pré-civili-zada, sem eletricidade, mas que já manti-nha este rito atual de produção, só se po-dia trabalhar quando tinha luz. Daí suaassociação com o bem. Quando não seconsegue enxergar, perde-se os movi-mentos, tateia-se, há perigo de se machu-car. É o mal. Estes significados se perpe-tuaram”, explica Knobel.

No apagar das luzes, homens moder-nos saltam para o divã da psicanálise. Omedo do escuro, que já foi cantado emsamba e rock, não é apenas tempero mu-sical. Knobel trata de gente que chega aficar paralisada no apagar das luzes, umapatologia que chegou a ser chamada, semsucesso, de nictofobia (de “niktos”, queem grego significa noite).

“Em sentido amplo, as fobias – que po-dem ser definidas como um medo irraci-onal em situações ou diante de objetosque não apresentam qualquer perigo àpessoa – atingem cerca de 10% da popu-lação. Os transtornos mentais são muitomais comuns do que se imagina: quaseum terço dos adultos terá algum proble-ma de saúde mental ao menos uma vezna vida”, avisa o médico.

Maurício Knobel acredita na possibi-lidade de uma ação social para nego-ciar a ocorrência de eventuais apagõesem horário diurno. “Tenho a certeza deque o dano será menor”, afirma. “E osnossos pacientes agradecerão”, comple-ta o médico, especialista na área dePsicoterapia Breve, ou seja, trata deemergências que exigem tratamento empoucas sessões para ajudar o paciente amudar de atitude. “A escuridão favore-ce a regressão, a introspecção e conse-qüentemente a fantasia, às vezes aluci-nação”.

O médico lembra que recentemente,em seu consultório, foi procurado poruma mulher fóbica, de 35 anos. Ela que-ria saber como ficaria a sua situação di-ante da iminência do apagão. Dizia estar angustiada ao prever o seu pró-prio enlouquecimento. “Essa paciente não agüenta enfrentar o escuro,mesmo conhecendo outros recursos de iluminação igualmente eficazes”.

Perigo das fantasias – Paulo Dalgalarrondo, psiquiatra chefe do Depar-tamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Unicamp, reforça as experi-ências de Knobel. “Pessoas mais sensíveis, que têm fobia, síndrome depânico, depressão, ansiedade ou psicoses, poderão sofrer mais ainda. Noimaginário atual, o escuro conduz ao medo e à insegurança”, diz.

Dalgalarrondo acredita que o escuronão traz somente medo. Em geral, elevem agregado a fantasias de ameaças, nocaso das crianças e pacientes psicóticos,o que pode até ser perigoso. “Existeinteração contínua entre o social e omental. Isso não se desvincula em ne-nhuma patologia”.

A medicina preventiva também investi-ga essa problemática. Os pacientes rece-bem orientações sobre como agir em de-terminadas situações. A realidade é apre-sentada de maneira natural. O médico sa-lienta que todas as pessoas estão sujeitasaos fenômenos da natureza, como a es-curidão, por exemplo, e que o homem éo ser que mais se adapta às mudanças.

“Chamamos o paciente à reflexão,enfocando outros aspectos cotidianoscom os quais somos obrigados a convi-ver, e não podemos evitar”, explicaKnobel. Para ele, o problema da seca émuito mais grave, e as pessoas convivemcom este mal. “O que dizer então dosalagamentos e dos tremores de terra queocorrem em vários países?”, observa. APsicoterapia Breve também tem por fi-nalidade esclarecer isso. “Não devemosnos enganar, pois precisamos viver umavida quanto mais próxima do normal”,enfatiza.

Expectativa temerosa – Dalgalar rondoafirma que a crise energética deverá de-sencadear respostas sociais e psicológicas,tanto negativas quanto positivas. A negati-va é a revolta histórica da sociedade con-tra as autoridades governamentais. “T odosestão desacreditados nos rumos do País. Aexpectativa temerosa é não saber o quepode vir no futuro próximo”.

Já o aspecto positivo, segundoDalgalarrondo, é que as pessoas devemser menos passivas. “Precisam estar cien-tes de que sua ação ainda pode provocarmudanças, a começar dos hábitos”, afir-ma. Adolescentes ou adultos que passa-vam horas estáticos na frente da televisãoou então afundados nas poltronas parasomente mais uma jogada no videogame

ou ainda ‘navegando no mar da Internet’ terão que restringir o tempo de usodestes equipamentos. “Eu percebi que muitos pais vão gostar de os filhosficarem menos em frente à televisão, além da contenção daquela despesa”.

A sociedade brasileira precisa vencer alguns vícios horríveis, aconselhaDalgalarrondo, porém ela sempre revela garra para renovação. “A criseenergética tem mobilizado muito medo e revolta. Vai depender de como aspessoas passarão a lidar com isso. Está em jogo a crença no futuro e nasociedade”.

Medo de escuroPsiquiatra Maurício Knobel fala da ‘ nictofobia’ ,

que vai torturar muitas pessoas em caso de apagões

A

Ilusttração: Félix

Knobel: negociar para que apagões ocorram de dia

Foto: Antoninho Perri

Universidade Estadual de CampinasJulho de 2001

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Page 28: causas, efeitos e alternativas por

JOÃO MAJOÃO MAJOÃO MAJOÃO MAJOÃO MAURÍCIO DURÍCIO DURÍCIO DURÍCIO DURÍCIO DA RA RA RA RA [email protected]

uando, há três anos, os postes che-garam trazendo luz para os sítios deMalacacheta, no interior de MinasGerais, Aurora e Vítor Moreira dosSantos aposentaram o ferro aqueci-do a carvão acreditando que o uten-sílio já poderia virar peça de museuou canteiro de avencas, como os dasmadames da cidade. Quase na vi-rada do século, o companheiro de20 anos de escuridão deu lugar aoferro elétrico. Mas o salto tecno-lógico durou apenas o tempo devida de uma brasa.

Três meses depois da primeiralâmpada acesa na roça, a família delavradores migrou de Malacachetapara Socorro, estância turística lo-calizada 110 quilômetros ao norte deCampinas, no badalado Circuito dasÁguas. O Vale do Jequitinhonha,onde fica a cidade natal, foi trocadopelo alto da Serra da Mantiqueira,100 metros acima dos 745 de altitu-de média dos municípios.

Vítor chama o novo logradouro deCuba, mas o filho Valdinei, que tema idade do ferro aposentado, logocorrige: “É Jacuba, pai. O povo é quetem vergonha do nome”. Cuba ouJacuba é um povoado onde a dis-tância entre as casas é medida coma imprecisão das léguas-de-beiço eo caminho até a cidade só é longoporcausadasvoltasquedáparacon-tornar os despenhadeiros.

A mudança da família foi provo-

cada por uma proposta de rendo-sa parceria em um cafezal casti-gado pelas oscilações da cotaçãono mercado. E, já na terceira co-lheita, o sonho de altas rendas sediluiu na volta ao breu e à roupapassada a carvão, pois a proprie-dade, vizinha a uma hidroelétricaturística, não tem luz. “A vida in-teira sem luz. Quando a força che-gou em Malacacheta, a gente to-cou para cá”, comenta Aurora, ati-çando as brasas do fogão à lenhaque aquece o caldeirão d’águapara banhar as crianças. “A genteusa lenha só para o feijão e a água.A comida é no gás”, explica.

São seis filhos, quatro dando forçano cafezal, dois em idade escolar. Alida na roça compreende trêscapinagens por ano em cerca de 7mil pés de café cultivados em mor-ros quase perpendiculares. Depoistem a lavoura branca, de feijão emilho, e uma pequena boiada que

não está no contrato de parceria.A lida é cercada por perigos repre-

sentados por animais que a Bíbliaconfinounas trevas:cobrasemorce-gos vampiros. Descrita à luz dalamparina, a boipeva, cobra lendá-ria dos campos brasileiros, parecemaisassustadora.“Quandoouvepas-so de gente ou de bicho, ela se acha-ta que nem fita, se encolhe e dá osalto”, descreve Vítor. Tem tambéma urutu-cruzeiro, que anda em duplae, quando ouve os passos em seurastro, arma uma tocaia para o infe-liz. “Se não mata, aleija”.

Em Malacacheta, sinônimo de

mica – mineral empregado em pro-dutos eletrônicos –, Valdinei conse-guiu chegar à quinta série escolar.Agora, se quiser continuar os estu-dos, vai ter que caminhar quase umahora escalando montanhas e subin-do em barranco para abrir passagemaosraroscarrosqueavistalongeatra-vés da poeira vermelha.

Diversão em Jacuba (ou Cuba), sóaos sábados, nas sinucas, e até umpouco antes do pôr-do-sol. “Aqui agente dorme quando escurece eacorda quando alumia”, diz Valdinei

Vítor,opai,mostraosutensíliosqueo acompanham pela vida, ainda pre-sa ao universo do latão: o baldetracionado do poço por uma roldanachorona; a lamparina, parecida comum funil de boca tampada “made in”Belo Horizonte; o ferro a brasa, demarcaFama,sacadodofundodobaú;um rádio-gravador portátil, que con-some quatro pilhas de tamanho mé-dio por mês, e o rádio de bolso queValdinei deixa amanhecer ligado aolado da cama. “É de duas pilhas pe-quenas e dura uma vida”, explica.

Eles têm ainda um lampião a gásque, estrategicamente penduradoem um caibro da sala, ilumina osquatro cômodos da casa, mas só otempo necessário para os afazeresmais essenciais. “Gasta muito gás”,justifica Vítor. De vez em quandovêem uma televisão a bateria nacasa da filha casada, que visitampassando por uma picada entre amata e o cafezal.

Quarto de légua – Vítor se esfor-ça para entender a seqüência deetapas que terá de aguardar parareceber luz elétrica outra vez. O

Nas trevas do latãoA famíliaA famíliaA famíliaA famíliaA famíliaququququque, nae, nae, nae, nae, navida,vida,vida,vida,vida,acendeuacendeuacendeuacendeuacendeuumaumaumaumaumalâmpadalâmpadalâmpadalâmpadalâmpadaem casaem casaem casaem casaem casaporporporporporapenasapenasapenasapenasapenastrêstrêstrêstrêstrêsmesesmesesmesesmesesmeses

técnico agropecuário AlcidesTrainoti, da Casa da Agricultura deSocorro, explica que os postes jácomeçaram a subir a montanha eestão a poucos quilômetros abai-xo de Jacuba, agora sim no ver-dadeiro bairro de Cuba. “Um quar-to de légua”, calcula, lembrandoque uma légua corresponde a 6quilômetros (a de beiço é impreci-sa, pois tem como estimativa o lá-bio inferior esticado, segundo o di-cionário do Aurélio).

“Brevemente você receberá a vi-sita de um funcionário da compa-nhia, que fará a medição da quanti-

dade necessária depostes e fios para pu-xar a eletricidade”, avi-sa Alcides. “Vão trazerforça e luz ?”, pergun-ta Vítor, provavelmen-te influenciado pelo

nome da distribuidora encarregada.A CPFL (Companhia Paulista de

Força e Luz), que detém a conces-são daquela área para distribuiçãode energia, já cadastrou cerca de400 propriedades rurais sem ele-tricidade só ali nas vizinhanças daMantiqueira. Ao todo, a companhiatem planos para atender 10 mil pro-priedades no Estado de São Pau-lo até 2003, seguindo as regras dosprogramas governamentais Luz naTerra e Luz no Campo.

Se há entusiasmo pela luz anun-ciada, Vítor não demonstra. Afinal,o crepúsculo aumentando a umi-dade da serra avisa que é hora dese recolher. Amanhã bem cedotem que subir de volta ao morrolidar com o café e as boipevas.Melhor se enfurnar nas trevas dolatão, em vez de acalentar um so-nho de luz que desdenhou emMalacacheta e agora ainda está aléguas-de-beiço de Jacuba.

Q

Valdinei, estudando sobluz de lamparina: quaseum hora escalandomontanhas até a escola

Assoprando a brasa do ferro, marca Fama: a léguas-de-beiço Aurora e sua vida sem luz: fogão a lenha para o feijão e a água do banho

Fotos: Neldo Cantanti

Universidade Estadual de CampinasJulho de 2001

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