cativeiro barroco

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cativeiro

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  • ANA MARIA ALMEIDA FRAGA

    CATIVEIRO BARROCO

    A ESCRAVIDO URBANA EM MINAS GERAIS

    MARIANA E OURO PRETO NA PRIMEIRA METADE DO SCULO

    XVIII

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao da Universidade Severino

    Sombra como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre.

    Dezembro, 2000.

  • UNIVERSIDADE SEVERINO SOMBRA PROGRAMA DE PS-GRADUAO MESTRADO EM HISTRIA

    Dissertao defendida e aprovada em 21 de dezembro de 2000, pela banca examinadora constituda pelos seguintes professores:

    __________________________________________________ Professor Dr Carlos Eugnio Libano Soares - Orientador __________________________________________________ Professor Dr Eduardo Frana Paiva - UFMG __________________________________________________ Professora Dr Ana Maria da Silva Moura - UERJ __________________________________________________ Professora Dr Miridan Britto Knox Falci - IHGB

  • Agradecimentos. muito difcil citar em poucas linhas os nomes de todas as pessoas que de uma forma ou outra contriburam para a realizao deste trabalho. Para que este meu sonho fosse realizado contriburam de forma especial os funcionrios do Arquivo Pblico Mineiro, Arquivo da Casa Setecentista, Arquivo Histrico da Cmara de Mariana e Arquivo Histrico do Museu da Inconfidncia. Todas as pessoas que encontrei nestes lugares prestaram ajuda valiosa, disponibilizando documentos, localizando fontes, sugerindo outras e dispensaram-me imenso carinho .Para homenagear a todos os funcionrios destes arquivos cito Carmem da Silva Lemos, responsvel pelo Arquivo do Museu da Inconfidncia, cuja paixo pela pesquisa contamina a todos. As professoras Carla Junho Anastasia, Jnia Ferreira Furtado e Adriana Romeiro, acolheram-me na UFMG e dirigiram os primeiros estudos no Mestrado. Em Vassouras, fui acolhida com imenso carinho e generosidade, caractersticas marcantes deste entusiasmado grupo de professores e funcionrios que fazem do Curso de Mestrado em Histria um ncleo de ensino e pesquisa de excelncia. O meu orientador Carlos Eugnio Libano Soares acompanhou meus passos durante a pesquisa e redao deste trabalho, mas no fez apenas seu trabalho de orientador. Tornou-se um valioso amigo, teve pacincia, encorajou-me quando o desnimo avizinhava-se e sempre acreditou no meu trabalho. Agradeo especialmente FUNEC pelo financiamento dos meus estudos e pesquisas, representada pelos seus diretores Professores Celso Simes Caldeira e Antnio Fonseca que sempre me encorajaram e acreditaram na minha capacidade. Todos os meus professores da escola bsica e da graduao so tambm responsveis pelo meu sucesso neste trabalho. Se eles no fossem to dedicados provavelmente minha formao seria menor. No posso esquecer meus alunos que, nos ltimos quatro anos, suportaram minha ansiedade pela concluso deste trabalho e a eles devo todo o carinho e pacincia que me dispensaram. A minha famlia, que me protegeu, amparou, torceu e como nunca demonstrou o seu amor por mim, principalmente nos momentos em que eu mais precisei. A Deus, que apesar de ser citado por ltimo, est em primeiro lugar. Dediquei-me a este trabalho num momento de grande crise pessoal, em que todas as minhas crenas e projetos estavam sendo questionados. Deus mostrou-me o caminho, colocou a meu lado pessoas cujo carinho e amor so muito grandes e deume foras para escolher. Deixei para trs o desamor, o egosmo, a falsidade, a tristeza e falta de f e caridade. No foi fcil a escolha, foi sofrida, ainda di, mas , com certeza o melhor caminho.

  • Minha me partiu h dez anos e meu pai no mais consegue ler, mas eles abdicaram da sua vida para construir a dos seus filhos, e este tambm mais um passo deles em sua caminhada de amor pela vida. A eles dedico este trabalho.

  • Resumo da dissertao. Esta dissertao tem como tema o estudo da vida dos escravos ao ganho, na sociedade da rea mineradora de Minas Gerais no sculo XVIII. O estudo da documentao sobre a represso e normatizao das aes dos escravos no espao urbano, serviu para que pudssemos apreender os aspectos cotidianos da vida dos escravos urbanos como: origem, trabalho, sobrevivncia, lazer e as estratgias para alcanar a alforria. No decorrer do trabalho conclumos pela especificidade do espao urbano em Mariana e Vila Rica que, anteciparam as formaes urbanas do sculo XIX e a consolidao das caractersticas da escravido urbana e as vrias estratgias desenvolvidas pelos escravos para organizar a sua vida, cultura e possibilidades de manumisso. Abstract. This research has as main goal the study of the slaves life in the society around the area of mines in Minas Gerais in the 18th century. The studies on the documents about repression and normatization of the slaves attitudes in the city, helped us to understand their daily aspects such as: origin, job, living, leasure and the strategies to reach them freedom. During the work it was concluded that Vila Rica and Mariana had already features only found in the 19 th century s cities. That made it possible the consolidation of the features of the urban slavery and the slaves strategies in order to organize their lives, their culture and reach their liberty.

  • Sumrio. Introduo........................................................................................................01 Captulo I. Em Busca das Sombras Perdidas................................................16 Breve histrico da descoberta e formao das Minas...................................17 A formao do espao urbano: Mariana.........................................................25 A formao do espao urbano: Vila Rica.......................................................36 Os atores sociais: brancos, nativos, negros e mestios....................................47 Captulo II . A Vida Cotidiana dos Escravos Urbanos em Minas Gerais........53 Condies de trabalho.................................................................................... 54 Moradias..........................................................................................................59 Alimentao.....................................................................................................62 Velhice e abandono.........................................................................................66 Doenas e morte..............................................................................................68 Captulo III. O Espetculo da Rebeldia...........................................................73 Armas..............................................................................................................74 Vendas.............................................................................................................81 Quilombos urbanos: a cidade-esconderijo...................................................... 88 Revoltas.......................................................................................................... 94 Captulo IV . Liberdade.................................................................................102 Alforrias.........................................................................................................103 Liberto...........................................................................................................112 Concluso......................................................................................................117 Fontes e Bibliografia.....................................................................................119

  • 1

    INTRODUO

    A ESCRITA DAS MINAS

    No pretendemos retomar no espao desta dissertao tudo o que foi

    escrito sobre a escravido nas Minas Gerais e no Brasil. Estudaremos o

    espao fsico correspondente rea mineradora da Amrica Portuguesa que

    hoje corresponde a Minas Gerais, principalmente na regio onde seriam

    erguidas as futuras Vila do Ribeiro do Carmo e Vila Rica do Ouro

    Preto. O recorte temporal a primeira metade do sculo XVIII.

    Estudaremos as relaes escravistas neste espao/ tempo usando as

    categorias da escravido urbana. Procuraremos e seguiremos de perto os

    escravos de ganho, suas condies de vida, trabalho e as formas que eles

    encontraram para subverter as tentativas normatizadoras dos governadores

    e das Cmaras.

    Durante muito tempo predominou a idia de que os estudos sobre a

    escravido tinham chegado a um patamar definitivo . Parecia a todos que o

    debate j estava definido . Consolidava-se entre a imagem desumana do

    escravo submetido a todas as formas de maus tratos, assenzalado,

    rigidamente controlado pelo feitor e pelo mau senhor. Este tipo de conflito

    senhor - escravo teria gerado o mito de Zumbi e todos os quilombos ou

    tentativas de revoltas escravas. Em contraponto tnhamos o bom senhor que

    com tratamento humanizado criava as condies para que o escravo fosse

    bom, agradecido e leal, cujo esteretipo mais conhecido a figura do Pai

    Joo.

  • 2

    Na origem deste debate est uma outra questo. Qual foi a contribuio

    do escravo para a formao da cultura urbana brasileira. No sculo XIX, aps

    a Independncia, quando as elites procuravam criar uma identidade para a

    nova nao, vrios historiadores1direta ou indiretamente concluram que a

    escravido era ou foi ruim para formao da cultura brasileira. Vanhargem

    fez o elogio da colonizao portuguesa e Oliveira Viana e Fernando de

    Azevedo, segundo Silvia Hunold Lara2, afirmaram que, a escravido, mesmo

    sendo patriarcal ou paternal, era violenta.

    Estas interpretaes refletiam a mentalidade de uma sociedade que

    buscava o branqueamento e negava ao negro o seu lugar na formao social e

    cultural do povo brasileiro.

    O enfoque muda na dcada de trinta. Gilberto Freyre3 refutando as

    vozes racistas que desembocaram no nazismo, defendeu o negro como

    elemento decisivo para a formao do povo e da cultura brasileira. Defendeu

    tambm o carter benigno da escravido e sua base patriarcal.

    As idias de Freyre correram o mundo e tiveram grande repercusso

    nos EUA4. Desencadearam ali uma polmica em torno da posio do liberto

    nas duas formaes sociais: portuguesa e anglo - saxnica. Outra questo

    levantada era sobre o carter benigno da escravido ibrica em contraponto

    inglesa.

    Na dcada de sessenta os pesquisadores reunidos em torno de Florestan

    Fernandes questionaram fortemente a obra Freyriana passando a defender a

    anomia do negro, ou seja sua nulidade como personalidade, que apenas

    reagiria a partir da ao dos senhores ou seja, ao binmio bom senhor /

    escravo dcil - mal senhor escravo rebelde. Fernando Henrique Cardoso

    chegou mesmo a afirmar que em caso - limite o escravo poderia identificar-

    se totalmente com a ideologia do seu senhor atingindo uma coisificao 1 VANHARGEM, Francisco A . Histria Geral do Brasil. Rio de Janeiro, Melhoramentos. 2 LARA, Silvia H. Campos da Violncia. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988. pp. 97 98. 3 FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala: Formao da famlia brasileira sob o regime de economia

    patriarcal. 27 edio, Rio de Janeiro, Record,1990. 4 CASTRO SANTOS, Luiz Antnio de. E Pernambuco Falou Para o Mundo: O Impacto de Gilberto Freyre na Historiografia Norte-Americana. In: Novos Estudos / CEBRAP , n 18, Setembro 1987.

  • 3

    subjetiva. Alm disto, a chamada Escola Paulista defendia que a ascenso

    social dos negros no Brasil foi limitada, apesar de no serem claramente

    discriminados pela sociedade.

    Nos anos setenta com a afirmao da orientao marxista nos estudos

    da escravido nas universidades brasileiras, consolidou-se o conceito de modo

    de produo escravista sistematizado por Jacob Gorender. Esta nova escola,

    rejeitava os pressupostos tericos das antecessoras aceitando apenas que a

    coisificao poderia ocorrer em casos-limites.

    Para Gorender no processo de escravido o homem torna-se

    propriedade de outro e Como propriedade o escravo coisa, um bem

    objetivo.(...) Mas o escravo, sendo uma propriedade tambm possui corpo,

    aptides intelectuais, subjetividade __ e em suma um ser humano, perder

    ele, o ser humano, ao tornar-se propriedade ao se coisificar?5 No deveria

    esta pergunta ser feita ao contrrio? O escravo no se coisifica. Ele tornado

    coisa ao ser apreendido e vendido. Desconhecemos documentao em que

    africanos ou crioulos pediram ou fizeram acordos se viram ou foram vistos

    como coisas, a no ser no trfico negreiro como peas.6. Mas, apesar

    deste parntese, discordamos do autor quanto a perda da subjetividade pelo

    escravo no processo de escravizao e no aceitamos tambm a afirmao de

    que o escravo caia na anomia social, como defendeu a escola Paulista liderada

    por Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso e no limite

    identifica-se com o seu senhor . Reproduzirei aqui um exemplo citado por

    Gorender. Trata-se de um relato de Louis Franois de Tollenare relativo a

    uma visita a Pernambuco:

    Em Pernambuco, matavam-se os escravos de um inimigo por vingana, como se mataria seu gado. Um senhor de engenho, que ganhara a inimizade de moradores despejados das terras que ocupavam, confiara um negro ao visitante francs afim de acompanh-lo nos seus passeios. O negro no ousava aproximar-se do povoado dos

    5 GORENDER, Jacob. O Escravismo Colonial. So Paulo, Editora tica, 1978, p. 63 6 KARASCH, Mary. A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro . 1808 1850. So Paulo, Cia. Das Letras,

    2000. Ver cap. 2: A Encruzilhada: O mercado de Escravos do Rio de Janeiro. pp: 67 98.

  • 4

    moradores hostis e se justificava: O que diria o meu senhor se esta gente me matasse?7

    Os defensores da escola Paulista veriam a a base da anomia social dos

    ex- escravos no ps 1888 e Gorender concorda que podia ter havido casos-

    limites em que os escravos identificavam-se, como propriedade.

    Mas, e se fizermos outra leitura do texto acima? Digamos que o escravo

    conhece profundamente a situao em que vive. Provavelmente outros

    escravos j tinham sido mortos. Ele quer salvar-se mais no pode desobedecer

    ao senhor, por isto finge estar de acordo com ele e diz: O que diria o meu

    senhor se esta gente me matasse? Desta forma ele escapa da morte e de um

    possvel castigo do senhor, dando ainda a aparncia de que identifica-se com

    ele e que lhe muito leal. Isto pode ser lido como uma estratgia escrava de

    burlar a autoridade senhorial.

    Hoje fica extremamente difcil defender a anomia social do ex-escravo,

    e o prprio Gorender afirma: A luta contra a coisificao era, por isto,

    necessidade cotidiana que o sistema impunha ao escravo.8

    Este aspecto abriu espao para novos estudos na dcada de 80 ,que

    dialogavam com o marxismo, ao meu ver no negavam totalmente o modo de

    produo escravista mas, resgatavam as estratgias prprias dos escravos

    atravs das quais eles tentavam ser sujeitos de suas vidas.

    Na dcada de 80, sob a influncia da Nova Histria Francesa e

    aproximando-se o Centenrio da Abolio reabriu-se o debate sobre o

    escravismo. A nfase foi colocada nas aes dos escravos e nas vrias formas

    de resistncia e redes de solidariedade formadas por eles. Nesta nova

    perspectiva o escravo torna-se sujeito de sua histria e segundo Gorender

    estes autores negam a escravido porque Tendo o escravo como ator, a

    escravido deixa de ser uma relao imposta e se convertia em relao

    contratual . Como parte de um contrato, seria vantajoso ao escravo confirmar

    7 Cf. Gorender op. cit. p.65. 8 Idem, p. 69.

  • 5

    a expectativa senhorial de fidelidade, obedincia e trabalho assduo para

    obter a alforria e outras vantagens.9

    Em 1982 aparece a primeira edio da obra de Laura de Mello e

    Souza.10 Analisando a sociedade mineradora ao longo do sculo XVIII, a

    autora trouxe ao debate um aspecto pouco discutido na historiografia : a vida

    daqueles que no foram abonados pelo ouro e pedras preciosas das Minas

    Gerais. Trabalhando com o conceito de desclassificao social a autora

    analisa as aes do poder constitudo em relao aos grupos sociais

    desclassificados. Nas palavras da autora: Desclassificado Social uma expresso bastante definida. Remete, obrigatoriamente, ao conceito de classificao, deixando claro que, se existe uma ordem classificadora, o seu reverso a desclassificao. Em outras palavras: uns so bem classificados porque outros no o so, e o desclassificado s existe enquanto existe o classificado social, partes antagnicas e complementares do mesmo todo.11

    O livro no trata da escravido mas ela analisada como uma das

    fontes de desclassificados: os forros. As idias da autora em relao a este

    aspecto sero analisadas no quarto captulo deste trabalho.

    Laura de Mello e Souza tambm retrata a magnificncia e o fausto da

    incipiente vida citadina em terras mineiras nos primrdios do sculo XVIII,

    que sofre um rpido processo de urbanizao a partir de 1711 quando os

    arraiais so elevados a vilas.

    Em 1988, Carlos Magno Guimares, publicou um ensaio sobre os

    quilombos existentes em Minas Gerais no sculo XVIII, analisando-os a

    partir de conceitos marxistas. Trabalhando com a documentao produzida

    pelas autoridades da capitania o autor resgata o escravo enquanto sujeito

    histrico. No momento em que foge e homizia-se no quilombo o escravo tem

    plena conscincia do seu ato. Sabe que est subtraindo do seu senhor uma

    propriedade. Ao formar o quilombo, que segundo o autor a mais completa

    forma de reao ao escravismo, o cativo:

    9 GORENDER, Jacob. A Escravido Reabilitada . So Paulo, Editora tica, 1991, p. 23. O grifo do autor. Esta observao feita a propsito da obra de Silvia H. Lara , Ktia Mattoso e Joo Jos Reis. 10 SOUZA, Laura de Mello. Os Desclassificados do Ouro: A pobreza mineira no sculo XVIII. Rio de

    Janeiro, Edies Graal, 2a edio, 1986. 11 Idem. P. 13.

  • 6

    Ao fugir, o escravo negava a validade de quase todo este aparato jurdico. E negava assumindo, conscientemente, responsabilidade de se tornar um criminoso. Ele tinha conscincia das responsabilidades do seu ato, sabia das punies que o esperavam se fosse recapturado. Em momento algum ignorava a retaliao que pairava sobre a sua pessoa em decorrncia do seu ato. (...) O rebelde sempre era castigado em praa publica, na frente dos demais escravos, para servir de exemplo. As cabeas dos executados eram colocadas nos locais mais visveis. No era por acaso que o pelourinho se localizava nas principais praas das vilas e arraiais. 12

    Mas Carlos Magno Guimares presta pouca ateno aos escravos que

    permaneceram nas vilas e arraiais, em ocupaes prprias, e forjando

    estratgias de resistncias diferentes dos quilombolas.

    Em 1993 Luciano Figueiredo13 ampliou um estudo sobre um aspecto

    que j tinha sido apontado por Laura de Mello e Souza. Ele abordou com

    muita competncia a vida das mulheres pobres, forras ou escravas nas Minas

    Gerais no sculo XVIII. Na sua obra aflora a luta destas mulheres pela

    sobrevivncia material: comrcio , vendas, prostituio, famlia so abordados

    pelo autor que, respaldado em vasta documentao primria expe as

    estratgias desenvolvidas pelas mulheres pobres do setecentos, em Minas

    Gerais, para garantir a sua subsistncia material e adequarem-se ou burlar a

    legislao e a represso das autoridade coloniais.

    Estas trs obras tm em comum o fato de partirem da constatao de

    que nas Minas predominava uma sociedade formada por dois estamentos:

    senhores e escravos. Para Laura de Mello e Souza todos os outros grupos

    seriam desclassificados. Os quilombolas que reagiram ao sistema escravista

    negando a condio de escravo e procurando a liberdade, no escapavam do

    relacionamento contraditrio com a prpria sociedade que rejeitavam. Os

    quilombos eram usados por criminosos livres para esconderem-se ou ainda

    como canais de contrabando. Os quilombolas precisavam vender o produto de

    seus roubos ou do ouro faiscado clandestinamente e abastecerem-se nas vilas

    e arraiais. As mulheres escravas e forras tambm vivam margem da

    sociedade mineradora. Todos os trs trabalhos remetem-se aos

    12 GUIMARES, Carlos Magno. A Negao da Ordem Escravista: Quilombos em Minas Gerais no sculo

    XVIII. So Paulo, cone, 1993. 13 FIGUEIREDO, Luciano. O Avesso da Memria : Cotidiano e trabalho da mu lher em Minas Gerais no sculo XVIII. Rio de Janeiro. Rio de janeiro, Ed. Jos Olympio ; Braslia, Edumb, 1993.

  • 7

    desclassificados urbanos, aos relacionamentos contraditrios e negao da

    ordem escravista.

    A obra de Eduardo Frana Paiva inovadora em relao s

    anteriores.14 pioneira a sua forma de usar testamentos e inventrios de

    pessoas livres e forras. Ao estud-los o autor lanou luzes sobre as relaes

    existentes entre os vrios grupos sociais e a prpria estrutura escravista. Estas

    relaes nos permitem apreender as crenas e as estratgias de sobrevivncia

    usadas pelos escravos para conseguir a alforria.

    Marco Antnio Silveira15 analisa as relaes entre o Estado e a

    sociedade mineira do setecentos ao tratar a escravido como um valor

    assumido, por escravos, forros e livres. Valor este visto como categoria

    legitimada pelo conjunto da sociedade. Ele demonstra como a sociedade

    mineira, bem caracterizada como aluvional16, reforava estes valores para

    enquadrar o liberto, que jamais era tratado como livre.

    No podemos deixar de registrar a produo acadmica de UFMG.

    Seu corpo discente e docente tem regularmente apresentado novos trabalhos

    sobre o sculo XVIII mineiro atravs de livros, artigos, dissertaes e teses.

    A historiografia sobre Minas Gerais tem sido continuamente renovada.

    impossvel citar todos e, claro, que alguma injustia ser cometida na

    relao a seguir.

    Douglas Cole Libby17 analisa a dinmica do trabalho na sociedade

    escravista. Dos muitos trabalhos sobre o sculo XVIII, se destaca o de Carla

    Junho Anastasia18 que analisou a violncia coletiva nos motins do serto.

    Jnia Furtado19 estudou as relaes entre Estado e sociedade no distrito

    14 PAIVA, Eduardo Frana. Escravos e Libertos nas Minas Gerais do Sculo XVIII : Estratgias de

    resistncia atravs dos testamentos. So Paulo, ANNABLUME, 1995. 15 SILVEIRA, Marco Antnio. O Universo do Indistinto: Estado e sociedade nas Minas setecentistas (1735

    1808). So Paulo, Ed. Hucitec, 1997. 16 O termo aluvional remete a uma sociedade em permanente movimentao. SILVEIRA pp. 87 110. 17 LIBBY, Douglas C. Transformao e Trabalho em uma Economia Escravista: So Paulo,

    Brasiliense,1988. 18 ANSTASIA, Carla Junho. Vassalos Rebeldes: Violncia coletiva nas Minas na primeira metade do sculo

    XVIII. Belo Horizonte, Editora C/Arte, 1988. 19 FURTADO, Junia F. Livro de Capa Verde: Regimento diamantino de 1771 e a vida no distrito diamantino

    no perodo da real extrao. So Paulo, ANNABLUME, 1996.

  • 8

    diamantino. Adalgisa Arantes Campos uma brilhante estudiosa da viso de

    morte do setecentos em Minas Gerais, irmandades religiosas e da pompa

    fnebre do perodo barroco. Seus estudos so imprescindveis para se

    entender a mentalidade dos homens e mulheres do sculo XVIII.20

    Entre a produo do Programa de Ps-Graduao da UFMG, podemos

    citar como representativa a dissertao de mestrado de Ramon Fernandes

    Grossi.21 Seu estudo sobre o medo que permeava o imaginrio dos mineiros

    do sculo XVIII brilhante. Medo da noite, da perda da salvao da alma, do

    demnio, dos feitios e das revoltas dos colonos, dos escravos, dos

    quilombolas, etc. Pode-se afirmar que a vida do homem daquele perodo era

    marcado pelo medo.

    No podemos esquecer das clssicas obras de Julita Scarano sobre as

    irmandades 22 e os aspectos cotidianos23 dos negros em Minas. A primeira

    um estudo denso sobre a ao das irmandades de escravos e negros no

    sculo XVIII. Na segunda a autora abrange em seu estudo os aspectos

    cotidianos da gente de cor. Gente de cor, no referia-se apenas aos

    escravos, mas aos libertos, pardos, mulatos e as vrias modalidades de

    mestiagem. possvel atravs destas duas obras apreender muitos

    aspectos da vida dos escravos nos setecentos mineiro.

    No entanto, sentimos que ainda faltava um estudo que enfocasse em

    particular a escravido urbana em Minas Gerais. Os trabalhos sobre a regio,

    no sculo XVIII, generalizam a escravido no fazendo distino entre o

    campo e a cidade.

    As pesquisas sobre escravido urbana no Brasil so poucas. S agora o

    trabalho pioneiro de Mary C. Karasch24 foi traduzido para o portugus e est

    20 CAMPOS, Adalgisa Arantes. Consideraes Sobre a Pompa Fnebre. Revista do Departamento

    deHistria. UFMG, Belo Horizonte, no 4, pp. 3-24. 21GROSSI, Ramon F. O Medo na Capitania do Ouro : relaes de poder e imaginrio sobrenatural, sculo

    XVIII. Dissertao de mestrado apresentado FAFICH, Belo Horizonte, Maio de 1999. Cpia xerografada.

    22 SCARANO, Julita. Devoo e Escravido. So Paulo, Cia. Editora Nacional, 1976. 23 _______________ . Cotidiano e Solidariedade: vida diria da gente de cor na Minas Gerais, sculo XVIII.

    So Paulo, Brasiliense. 1994. 24 KARASCH, Mary C. A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro : 1808 1850. Traduo: Pedro Maia Sores.

    So Paulo, Cias. das Letras, 1a Edio, 2000.

  • 9

    ao alcance de um pblico maior. Os trabalhos de Leila Mezan Algranti25,

    Marilene Rosa Nogueira da Silva 26apontaram o caminho para a academia

    brasileira mas, em relao ao sculo XVIII, ainda faltam estudos

    aprofundados.

    Ningum poder entender nossa opo sem conhecer a sua origem .

    Em 1986 pesquisando no Arquivo Pblico Mineiro a distribuio de

    sesmarias, no sculo XVIII, na regio de Mariana, encontramos em um

    cdice a carta de Dom Pedro de Almeida, Conde de Assumar, governador de

    Minas entre 1717 e 1721. Ela relatava sobre a abortada revolta escrava da

    Quinta-Feira das Endoenas em 1719. Neste momento todo um mundo de

    possibilidades abriu-se diante de ns. claro que j conhecamos as revoltas

    e a vida dos escravos pelos manuais didticos e outros livros, mas nada se

    compara ao enfrentamento direto com as fontes primrias. Nas pginas

    amareladas eu lia agora a vida dos escravos como nem sempre aparecia nos

    livros. Muito mais viva, cruel, sofrida, porm cheia de possibilidades. Vida na

    cidade, vida nas lavras, vida no campo. Formando um todo, j que a

    circulao escrava era intensa entre estes diversos planos. Fugas, contrabando,

    revoltas, crimes, roubos, feitiaria, aes de liberdade, esperana e desespero.

    Tudo era novo e muito vivo porque uma das caractersticas da documentao

    do sculo XVIII justamente a de ser detalhista. Ela viva, cheia de

    pormenores que revelam a viso de mundo dos atores envolvidos no processo

    histrico e possibilita vrias leituras deste mesmo processo.

    A documentao com a qual trabalhamos no indita, como afirma

    Laura de M. e Souza: O historiador s pode trabalhar com documentos que

    existem: no pode invent-los, mas pode re-invent-los, l-los com novos

    olhos.27 Lemos os documentos procurando pelas aes dos escravos das

    cidades.

    25ALGRANTI, Leila Mezan. O Feitor Ausente: estudo sobre a escravido urbana no Rio de Janeiro. 1808 -

    1821. Petrpolis, Ed. Vozes, 1988. 26 SILVA, Marilene R. N. Negro na Rua: a nova face da escravido. So Paulo. Ed. Hucitec, 1988. 27 SOUZA, op. cit. p. 17.

  • 10

    Para fazer esta leitura usamos um mtodo terico elaborado por

    Clifford Geertz28. a descrio densa. O que est escrito nos documentos

    est filtrado por trs sculos de cultura. Nunca chegaremos a compreender

    na totalidade o que pensavam, sentiam, e por que agiam os homens e

    mulheres do sculo XVIII, apenas poderemos reconstruir aspectos do qu

    e de como eram as suas vidas.

    Esta reconstruo buscar restaurar os significados construdos pelos

    prprios escravos para os seus atos. Estes significados podem ser mltiplos,

    mas quando articulados formam uma teia, a rede de significados elaborada

    como conceito por Geertz. A leitura densa o instrumento de decodificao

    desta rede.

    Ao fazer este estudo encontramos o mundo dos escravos e forros do

    setecentos, as redes de solidariedade desenvolvidas no espao de circulao,

    redes estas que desafiavam o poder legalmente constitudo. Desta forma

    veremos que o poder est diludo em vrios segmentos sociais, que

    dificilmente podiam ser controlados pelo central. O que pode nos aproximar

    de Foucalt.29

    Para Weber, citado por Geertz, o homem um animal amarrado a

    teias de significados que ele mesmo teceu. Geertz entende que esta teia a

    cultura. Dentro da cultura propomos o estudo da solidariedade desenvolvida

    em determinado espao e tempo. No nosso caso, pelos escravos em Mariana

    e Vila Rica, na primeira metade do sculo XVIII. Os pequenos gestos de

    apoio mtuo desenvolvidos pelos escravos deste perodo tornaram-se um dos

    muitos fios da teia cultural da Minas Gerais dos setecentos. A presena do

    Estado como agente encarregado da represso senhorial a predominncia

    do escravo ao ganho ou de aluguel e a mobilidade destes na cidade, foram

    alguns destes fios.

    28 GEERTZ, Clifford. A Interpretao das Culturas. Rio de Janeiro, LTC Editora S. A, 1989. 29FOUCALT, Michel. Microfsica do Poder. Rio de Janeiro, Graal, 1979.

  • 11

    No primeiro captulo acompanharemos a epopia da descoberta das

    Minas Gerais. A recente historiografia tem negligenciado e at mesmo

    subestimado a ocupao e colonizao do territrio brasileiro pelos

    portugueses. No propomos a volta da histria positivista que enaltecia os

    heris mas, uma maior ateno determinao e a vida daqueles que,

    superando todos os obstculos contriburam para a formao do que somos

    hoje. Alm disto analisamos a formao das cidades mineiras. Parece-nos

    que h entre os historiadores um acanhamento em denominar de urbano aos

    agrupamentos de moradores das Minas setecentistas.

    De acordo com a ltima edio do Dicionrio Aurlio da Lngua

    Portuguesa, cidade o complexo demogrfico formado, social e

    economicamente, por uma importante concentrao populacional no

    agrcola, dedicada s atividades de carter mercantil, industrial, financeiro e

    cultural.30 Se seguirmos este conceito, os complexos de arraiais que

    formaram Ribeiro do Carmo e Vila Rica do Ouro Preto enquadram-se

    perfeitamente. Suas atividades econmicas principais eram o comercio e a

    minerao.

    Na dcada de 1980 Iraci Del Nero Costa caracterizou as duas reas

    como urbanas por concentrar um grande nmero de funcionrios, clrigos,

    militares, artesos, profissionais liberais, mineradores, comerciantes e

    negociantes: O carter citadino da urbe refletia-se, particularmente, na presena altamente significativa das atividades vinculadas aos setores secundrio e tercirio, ressaltando daquele, o grande peso relativo e amplo espectro coberto pelas ocupaes artesanais. As ocupaes agrcolas, por seu turno, eram de pequeno monte.31

    Weber citado por Ronald Ramenelli 32 afirmava que a cidade

    ocidental caracterizava-se por pela administrao autnoma, pelo seu

    aspecto de comunidade, que origina o conceito de comunidade. Mais adiante

    o autor afirma que para Capistrano de Abreu a cidade colonial era um

    30 Novo Dicionrio Aurlio da Lngua Portuguesa, Sculo XXI, Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira. 31 NERO, Iraci Del C. Estruturas Populacionais Tpicas. EDEC, 1982, p 8. 32 RAMINELLI, Ronald. Histria Urbana. In: Domnios da Histria: Ensaios de teoria e metodologia. In: CARDOSO, Ciro F. e VAINFAS, Ronaldo. Rio de Janeiro,Editora Campus. 1a Edio ,1997. p.187.

  • 12

    aparelho administrativo, ou um meio caminho entre os engenhos e os centros

    europeus de comercializao de acar.

    A cidade que encontramos possui todas estas caractersticas mas,

    desde cedo elas incorporaram e consolidaram uma produo artesanal muito

    grande. No eram apenas entrepostos do ouro e produtos coloniais. A

    existncia de diversos tipos de oficinas e o registro de muitos escravos

    oficiais alm de pardos e mulatos livres e libertos atesta a dinmica das reas

    estudadas.

    Cedo, tambm, se constata a diviso entre cidade e campo.

    Inicialmente pela distribuio de sesmarias aos colonos. Estes mesmos

    faziam questo de declarar que possuam minas, roas e casas. Ou ainda a

    generalizao do costume de sair do campo para assistir as comemoraes da

    Semana Santa nas cidades caracterizando bem a separao entre o rural e o

    urbano . Pirenne j comentava a respeito das cidades medievais: Grandes ou pequenas, encontramo -las em toda parte; (...) Isto acontece porque se tornaram, com efeito, indispensveis sociedade. Introduziram-lhe uma diviso de trabalho, doravante imprescindvel. Entre estas e o campo estabeleceu-se uma recproca troca de servios. Uma solidariedade, cada vez mais estreia, liga-as, provendo o campo ao abastecimento das cidades, e fornecendo-lhes as cidades, em contrapartida, produtos comerciais e objetos fabricados. A vida fsica do burgus depende do campons, mas a vida social do campons depende do burgus. 33

    Na verdade a cidade setecentista mineira ainda no encontrou o

    seu historiador. E o universo que encontramos um entrelaamento

    entre campo, cidade e lavras. Tudo era muito fludo.

    Principalmente nas Minas Gerais e na regio por ns

    estudada. As pessoas procuravam ter casas na cidade para

    acomodar a famlia, minas para procurar o ouro e terras para

    plantar e evitar o fantasma da fome e dependncia de fornecedores

    externos. Ao longo do sculo, com o declnio da minerao, a

    propriedade da terra volta a ser o principal meio para formar a

    riqueza, e de distino social. Mas as cidades sero o centro

    33 PIRENNE, Henri. As Cidades da Idade Mdia : Ensaio de Histria econmica e social. Portugal, Prenses

    Universitais de France.

  • 13

    administrativo, econmico, lugares privilegiados de troca

    mercantis, palco das lutas polticas , centros de ensino, da

    encenao barroca e onde demonstrava-se a distino social.

    Outro aspecto a ser observado na formao das cidades

    mineiras o seu aspecto aluvional , como descrito por Marco

    Antnio Silveira . Ao longo do sculo XVIII Minas no estava

    isolada nas montanhas. Cedo os caminhos a ligaram Bahia,

    Gois, Espirito Santo e Rio de Janeiro. Passagem obrigatria dos

    tropeiros e negociantes. De nada adiantaram as ordens para

    impedir a construo de caminhos, de passar para Gois ou Bahia.

    O afluxo de pessoas para a regio era to grande que foi

    necessrio, para melhor control -la, separ-la de So Paulo e fixar

    todo o aparelho administrativo na regio. Mas caracterstica de

    qualquer rea mineradora o trnsito contnuo de pessoas que

    transportavam no apenas produtos mas, notcias, idias,

    contrabando. Em relao a este aspecto Luiz Felipe de Alencastro

    observa que: Movido a ouro em p, o mercado do polgono mineiro formado por Minas Gerais, Gois e Mato Grosso aambarcava toda a Amrica portuguesa no sculo XVIII. Comprava bens europeus e escravos pela Bahia e pelo Rio de Janeiro, mulas e gado do Rio Grande do Sul e dos currais do So Francisco. Atravs dos rios Madeira, Marmor e Amazonas, as minas de Mato Grosso conectavam-se a Belm e ao Atlntico. De maneira descontnua, emergira a mais longa rede de comunicaes terrestres e fluviais do continente americano. Nas veredas do ouro medravam roas, vendas e vilas que desenhavam um mapa extenso de povoamento e um circuito de comrcio continental.34

    Esta foi a realidade que encontramos na formao do espao

    urbano de Mariana e Ouro Preto. Minas, chcaras, ruas, estradas, caminhos,

    fazendas, ranchos, tudo estava imbricado. Portanto acreditamos que pode-se

    estudar a escravido nesta rea usando a categoria da escravido urbana.

    Para os estudos relativos a algumas reas de Minas Gerais j hora de

    romper com este preconceito.

    34 ALENCASTRO, Luiz Felipe. Vida Privada e Ordem privada no Imprio. In: Histria da Vida Privada

    no Brasil, Vol. 2. Imprio: a corte e a modernidade nacional. So Paulo, Cia. Das Letras. pp. 11 93.

  • 14

    No captulo dois procuramos na documentao os aspectos da vida

    cotidiana dos escravos urbanos em Mariana e Vila Rica. Para isto relemos a

    documentao a nosso dispor criteriosamente. Esta documentao foi

    produzida pelas autoridades coloniais, e quase sempre tratam de represso aos

    escravos e forros, mas deixam entrever o que era ser escravo nas Minas

    Gerais setecentistas.

    No terceiro captulo mapeamos as relaes tensas nas Minas Gerais.

    Em uma sociedade organizada em torno de dois plos antagnicos, senhores

    e escravos, o medo estava sempre presente. A maior contradio ser

    justamente a liberdade que era dada ao escravo urbano. Liberdade de

    circulao para produzir mais renda para o senhor mas que dava-lhe

    condies de agir contra o mesmo senhor ou a sociedade como um todo.

    No quarto captulo investigamos o que significava a alforria numa

    sociedade estamental que, para no abrir mo de seus privilgios criou uma

    outra figura jurdica: o liberto. Ser liberto era ser livre? O ex - escravo tinha

    os mesmos direitos que seus ex -senhores? Qual era a posio do liberto

    naquela sociedade? Que viso de mundo assumia o liberto? Que expectativas

    ele possua ao alcanar a alforria? Estas so algumas questes que precisam

    ser resolvidas pela historiografia.

    No era objetivo deste trabalho fazer levantamento estatstico mas,

    necessrio levantar criteriosamente os dados cartoriais do sculo XVIII para

    verificar as condies de concesso das alforrias. Temos indcios que para o

    perodo estudado, elas eram compradas ou conseguidas atravs da coartao.

    Esta foi uma prtica que ainda no foi bem estudada pela historiadores da

    escravido. Uma das crenas que precisam ser investigadas a relao entre

    o suposto declnio da minerao a partir da dcada de trinta e as alforrias.

    Pelo que parece-nos a partir desta poca as coartaes aumentam. O que

    indica uma diversificao econmica e maior possibilidade do escravo para

    alcanar a compra da alforria.

  • 15

    A primeira posio foi defendida por Jacob Gorender 35e tem sido

    refutada pelos estudos sobre a escravido como os de Laura de Mello e

    Souza 36 e Eduardo Frana Paiva37. Mas, para fundamentar melhor esta

    questo, ainda falta um estudo estatstico que tenha por objeto as alforrias e

    coartaes no incio do sculo XVIII ou todo ele. Este no ser um trabalho

    fcil.

    35 GORENDER, Jacob. O Escravismo Colonial. So Paulo, Ed. tica, 1990. 36 SOUZA, Laura de Mello. Norma e Conflito : Aspectos da Histria de Minas no sculo XVIII. UFMG,

    1999, ver parte II, Coartao. 37 PAIVA, op. cit. p.21.

  • 16

  • 16

    CAPTULO I

    EM BUSCA DAS SOMBRAS PERDIDAS ...

    L vo pelo tempo adentro esses homens desgrenhados:

    duro vestido de couro enfrenta espinhos e galhos:

    em sua cara curtida no pousa vespa ou moscardo;

    comem lavas, passarinhos palmitos e papagaios; sua fome verdadeira

    de rios muito largos, com franjas de prata e de ouro,

    de esmeralda e topzios.

    ( Que feito de ti, montanha, que a face escondes no espao?)

    ( Romance I ou Da Revelao do Ouro, O Romanceiro da Inconfidncia. Ceclia Meireles )

  • 17

    Breve Histrico da Descoberta e Formao das Minas.

    No momento do V Centenrio do Descobrimento ou se, outros

    discordarem, do nascimento ou achamento do Brasil, pelos portugueses,

    necessrio lembrar uma questo: o qu os portugueses queriam desta terra?

    No entraremos no mrito de quem descobriu primeiro ou se o que

    aconteceu foi realmente uma descoberta ou invaso. Estas questes j foram

    tratadas por outros historiadores e no so o objeto desse estudo.

    Responderemos a primeira questo. Dentro da lgica da expanso

    mercantilista do sculo XV, Portugal queria terras onde pudesse explorar

    riquezas para aumentar o poder e a gloria do reino. Riquezas que naquela

    poca eram representadas principalmente por especiarias e ouro. Tudo que j

    foi escrito contra ou a favor da explorao que foi levada adiante neste pas

    pelos portugueses, tem sua pertinncia, mais no o nosso objeto de estudo.

    O que vamos fazer, neste captulo, acompanhar com a distncia de trs

    sculos a aventura dos portugueses para encontrar as minas gerais.

    O ouro no foi encontrado inicialmente mas, a regio do atual

    nordeste revelou-se frtil para o cultivo da cana-de-acar e logo outros

    produtos foram incorporados produo como o algodo, tabaco, a pecuria

    extensiva e as drogas do serto.

    O serto. Este era o pesadelo e a esperana dos portugueses porque l

    deveriam estar as minas de ouro e de outros metais preciosos. No serto

    tambm estavam os nativos que resistiam escravido e impediam as

    expedies que saam da Bahia, Espirito Santo e Porto Seguro de

    desbravarem-no.

    No ltimo quartel do sculo XVI a poltica da coroa muda. O objetivo

    principal passa a ser, incentivar os paulistas, preadores de nativos, a

    desbravar o interior. Esta deciso era arriscada porque era notrio que a Coroa

    Ibrica no confiava nos paulistas por serem considerados muito

  • 18

    independentes. A necessidade de encontrar as minas devia-se, principalmente,

    falncia do sistema de financiamento da produo aucareira aps a Guerra

    Holandesa e a Restaurao do trono portugus em 1640 e o inicio do plantio

    da cana-de-acar pelos holandeses nas Antilhas. Alm disso, a existncia de

    metais preciosos no Peru faziam os portugueses acreditarem na possibilidade

    da existncia de grandes jazidas na regio ao norte de So Paulo. A esta altura

    no havia dvidas sobre a extenso longitudinal das possesses portuguesas.

    Segundo Diogo de Vasconcelos: Nestas condies, D. Afonso VI, ento reinante, mandou Agostinho Barbalho Bezerra a So Paulo, com cartas s Cmaras Municipais e aos potentados, afim de organizar uma expedio que fizesse o caminho e descobrisse por a o distrito das esmeraldas. (...) As Cmaras de Santos e So Paulo, recebendo as cartas rgias, puseram-se disposio de Barbalho e dos potentados que lograram a honra das letras de S.M., figurou no auge do entusiasmo o velho Ferno Dias Paes Leme, vulto eminente da Colnia, que para logo enviou a Barbalho cem negros carregadores, cem arrobas de carne de porco, mil varas de algodo tecido, e muitos outros gneros prprios da ocasio como se viu do termo assinado em 9 de agosto de 1666.1

    Mas, Barbalho morreu no Esprito Santo e a expedio ficou sem

    comando. Uma ressalva antes de prosseguirmos a leitura que deve ser feita

    destes documentos. O rei esperava que as expedies fossem custeadas pelos

    prprios participantes destas aventuras, quando muito pelas Cmaras, o que

    equivalia a usar os impostos pagos pelo povo ou criar novos impostos. Mas,

    geralmente, os bandeirantes de posse da proviso real para entrar pelos sertes

    e fazer descobertas bancavam os custos das mesmas.

    Disps-se a seguir a empreitada Ferno Dias Paes Leme que,

    segundo Diogo de Vasconcelos, era sertanista respeitado. Havia pacificado

    os goians, o que equivale a escraviz-los e aberto para colonizao a

    terra onde estes haviam se refugiado. Apenas nesta investida mais de cinco

    mil nativos foram escravizados por ele de trs diferentes tribos da nao

    goian.

    Apesar da desaprovao dos familiares, porque ele j era sexagenrio,

    Ferno Dias organizou a sua bandeira com a carta-patente de 20 de outubro de

    1672 que concedia-lhe os poderes de praxe e ainda o privilgio de ser 1 VASCONCELOS, Diogo. Histria Antiga das Minas Gerais. Vol. 1. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia. p.p. 72

  • 19

    governador de seus homens e das terras aonde se encontrassem as esmeraldas.

    A expedio organizada era muito grande formada por nativos, mestios,

    negros e brancos o que acarretaria problemas com as provises no serto. O

    caminho seguido foi o seguinte: de So Paulo a Guaratinguet (regio

    conhecida) e a seguir a difcil passagem da Serra da Mantiqueira que, se no

    era totalmente desconhecida, tinha sido usada por poucos aventureiros.

    Ferno Dias passou para o Emba, Passa Quatro, Capivari, Baepedi e chegou

    a um pouso que foi chamado de Ibituruna onde fundou o primeiro arraial nas

    terras mineiras.

    Escrevendo em 1704, Antonil2 relata que gastava-se muito tempo

    entre So Paulo e Minas porque os paulistas viajavam at as quatorze ou

    quinze horas, depois disso era preciso parar, montar acampamento,

    providenciar o jantar que muitas vezes era complementado com caa. Por isto

    a viagem durava dois meses.

    A expedio de Ferno Dias foi, por ser a primeira, cheia de percalos

    e, a longa trajetria crivou-se de sepulturas e de misrias.3 Vrios de seus

    companheiros voltaram a So Paulo abandonando o sonho das esmeraldas. A

    esta altura, 1674, estava Ferno Dias no Sumidouro, arraial prximo ao Rio

    das Velhas. Estava aberto o caminho para as Minas! Nesta poca enfrentou

    uma conspirao, cujo chefe era seu filho bastardo Jos Dias. Este liderando

    os descontentes com os resultados da expedio, pretendia assassinar seu pai

    Ferno e retornar a So Paulo. conhecido de todos o desfecho deste

    episdio. Os conspiradores foram perdoados, mas expulsos da bandeira e o

    filho enforcado.

    Enquanto esteve no Sumidouro abandonado por vrios companheiros

    de jornada, Ferno escreveu sobre sua situao ao prncipe, Cmara e

    esposa. Precisava de recursos para reorganizar a bandeira: armas, plvora,

    73. 2 ANTONIL, Andr Joo. Cultura e Opulncia do Brasil . So Paulo, Ed. Melhoramentos, 1976, p.p. 181-

    183. 3 VASCONCELOS, Diogo. op. cit, p. 80.

  • 20

    tecidos e alimentos. Por trs anos ele esperou no Sumidouro. A Cmara

    nenhuma atitude tomou. O prncipe regente nomeou um administrador-geral

    D. Rodrigo Castelo Branco e o tesoureiro-geral Jorge Soares de Macedo para

    regularizar as possesses das minas do Sabarabuu e disse que mais no podia

    fazer. Sua esposa enviou-lhe os recursos que ele pedia com o dinheiro do

    prprio casal e, assim que os recebeu e reorganizou a bandeira, ele partiu

    procura das esmeraldas. Encontrou, com a ajuda de um nativo feito

    prisioneiro na regio, a Lagoa Vapabuu, onde ele colheu pedras em nmero

    vantajoso e de bons quilates (...), e tornando aos ares livres da Serra a fundou

    o povoado de Itacambira (...).4 Na viagem de volta morreu antes de chegar

    ao Sumidouro vtima das febres do serto. Era maio de 1681.

    Estando morte Ferno Dias instruiu que seu filho primognito

    deveria regressar a So Paulo e cuidar da famlia e seus negcios. Ao genro

    Manoel Borba Gato ele passava o direito das possesses que havia recebido

    do Prncipe. Um detalhe no deve ser esquecido: ningum do Sumidouro

    sabia da existncia de D. Rodrigo Castelo Branco, seus oficiais e sua

    proviso.

    Este, por vrios motivos, demorou-se em So Paulo at ser instado

    pelos potentados a tomar o caminho para as minas. Reclamavam estes que

    eles por sua prpria conta faziam grandes gastos nas descobertas para

    engrandecer as possesses e a fazenda real. E aquele que tinha recebido todo

    o apoio da Cmara e os instrumentos necessrios no se dispunha a arriscar a

    sua vida, pelos mesmos objetivos, como os paulistas faziam. sempre bom

    lembrar que D. Rodrigo era espanhol e foi aceito como fidalgo da casa real

    por causa dos seus conhecimentos em mineralogia e os paulistas sentiam-se

    enciumados pela grande ateno que o prncipe dava a um estrangeiro.

    Desta forma organizada a expedio partiu D. Rodrigo para o

    encontro com Ferno Dias. Encontrou morto e embalsamado sendo

    transportado pelo filho Garcia Rodrigues, em SantAna do Paraopeba. Este

    4 Idem p. 87

  • 21

    relatou a D. Rodrigo os ltimos desejos de Ferno, dividiu com ele as

    supostas esmeraldas para que assim chegassem mais rpido ao Prncipe

    Regente e continuou para So Paulo, a p, com seus homens tomados pela

    febre. D. Rodrigo mandou um mensageiro a cavalo para So Paulo com as

    pedras e continuou a viagem para encontrar o Borba Gato.

    No Sumidouro aconteceram novos fatos desagradveis. Borba Gato

    j havia partido para Sabarabuu mas, ao receber a notcia da chegada do

    forasteiro e de antigos companheiros, retornou imediatamente. Estabeleceu-se

    um clima de animosidade entre D. Rodrigo e o Borba. D. Rodrigo tinha uma

    proviso real nova, datada de 28 de junho de 1673 para administrar as minas

    que fossem descobertas no serto. Borba Gato era herdeiro da proviso de

    Ferno Dias, anterior a de D. Rodrigo e as minas de Itacambira e Sabarabuu

    j estavam descobertas por isto o Borba achava que a proviso de D. Rodrigo

    no dizia respeito a ele e que este deveria deixar o Sumidouro e fazer as suas

    buscas no serto. Era portanto uma questo referente a jurisdio da

    administrao de dois governadores. Contribua para aumentar a resistncia

    dos paulistas a D. Rodrigo o fato de ele ser nobre espanhol, estar recebendo

    pelo trabalho enquanto os paulistas faziam tudo s suas custas. D. Rodrigo

    resolveu dar tempo ao tempo e permaneceu no Sumidouro durante a estao

    propcia s exploraes. O Borba percebeu as suas intenes e para resolver

    as tenses existentes no acampamento entre os seus partidrios e os

    seguidores de D. Rodrigo, instou-o a partir.

    Antes de prosseguirmos necessrio esclarecer quem era D. Rodrigo

    de Castel Blanco. Nobre espanhol, conhecia as minas da Amrica espanhola e

    era especialista em metais. Da Espanha passou para Portugal onde ganhou a

    confiana do Prncipe Regente que fez dele fidalgo e o incumbiu de fazer

    descobertas no Esprito Santo onde enfrentou os nativos e no encontrou

    nada. Recebendo ordens de passar a So Paulo, seu grupo foi requisitado para

    as guerras do Sul contra os Castelhanos. Uma parte de seus homens foi para o

    sul e ele mesmo foi para o serto de So Paulo a procura de ouro, j que trazia

  • 22

    um mineiro com experincia consigo. Somente depois de reunir a sua

    comitiva e dos incidentes com a Cmara de So Paulo ele partiu para as

    minas. D. Rodrigo sabia que no era benquisto pelos paulistas que o

    consideravam um intruso, principalmente pelo Borba que no reconhecia a

    sua proviso uma vez que nela o prncipe regente deixava claro que ele

    deveria respeitar a proviso anterior, de Ferno, que a havia passado ao

    Borba. Por isso resolveu partir para fazer as suas exploraes mas j no era

    a estao propcia de sair aos sertes. As chuvas aproximavam-se; por isto D.

    Rodrigo requisitou a Borba Gato que lhe entregasse armas, munio plvora e

    alimentos para passar o inverno no serto. Isto resultaria em grande prejuzo

    para os que ficassem no Sumidouro e as armas eram de propriedade de Ferno

    e portanto do Borba. Novo impasse. Para resolv-lo D. Rodrigo props a

    Borba Gato um encontro no alto de um morro, onde estariam desarmados e

    acompanhados cada um por dois pajens. Na conversa os nimos exaltaram-se,

    porque Borba Gato no abria mo de que D. Rodrigo se retirasse do distrito

    do Rio das Velhas, que ele afirmava ser de sua jurisdio. Aqui ficamos

    diante de um impasse que nunca ser resolvido pelos historiadores. Pela

    verso oficial D. Rodrigo ofendeu Borba Gato sendo morto pelos pajens deste

    que estavam armados, que queriam tambm matar os pajens do fidalgo mais

    foram impedidos pelo prprio chefe. Isto aconteceu em outubro de 1681, no

    morro que passou a ser chamado de Alto do Fidalgo.

    Foi planejada a morte de D. Rodrigo por Borba Gato? Nunca

    saberemos. Em dezembro do mesmo ano o rei, em Lisboa destitua D.

    Rodrigo cedendo s queixas dos paulistas, principalmente de Borba Gato, mas

    aquele j estava morto.

    No serto o mal j estava feito. Borba Gato entrincheirou-se no Alto

    do Fidalgo com seus homens e pediu ajuda aos que Ferno Dias tinha

    expulsado de sua bandeira e de vrias tribos amigas. No Sumidouro ficaram

    os seguidores de D. Rodrigo e os outros chefes paulistas que relutavam em

    ficar ao lado de Borba Gato porque o crime era de lesa majestade. Os reforos

  • 23

    de Borba Gato atacaram o Sumidouro, os homens de D. Rodrigo apanharam o

    que puderam e se embrenharam nos sertes de Sete Lagoas e passaram a criar

    gado e plantar roas. Os outros paulistas voltaram a So Paulo e relataram os

    fatos Cmara que oficialmente o denunciou ao rei em dois de novembro de

    1682. Estava perdido o Borba. Viveu exilado durando vinte e quatro anos nos

    sertes do Piracicaba, enquanto esperava pelo perdo real.

    Em 1683 o rei ordenou a Garcia Rodrigues que organizasse uma

    nova bandeira para ir at o local onde Ferno Dias descobriu as turmalinas e

    explorasse mais fundo para ach-las mais lmpidas e bem formadas. Ele

    retornou em 1687 sem sucesso. Mais de qualquer forma o caminho para as

    minas estava aberto. As bandeiras continuavam procurando ouro e apresando

    nativos nos dez anos seguintes e de forma completamente casual foi

    descoberto ouro do Tripu. Em uma destas bandeiras, um mulato chamado

    Miguel de Souza, desceu at um crrego para beber gua e encontrou alguns

    minerais que lhe pareceram diferentes. Esta bandeira era de Taubat.

    Voltando a Taubat os minerais foram passados a um comerciante

    que desconfiou serem as pedras preciosas. Aps exame acurado verificou-se

    que era ouro. Miguel de Souza relatou a familiares e amigos o caminho que

    se achava limpo de nativos e sem obstculos. Em silncio organizaram uma

    expedio comandada por Vicente Lopes que no achou o caminho de Tripu.

    Em 1692 foi a vez de Antnio Rodrigues Arzo que conseguiu chegar a

    Guarapiranga onde deparou-se com alguns nativos da nao puri que levaram-

    no at o Rio da Casca onde ele encontrou ouro e uma serra com o pico que os

    nativos chamava de Pedra Menina, mas no era o Itacolomi, referencial dado

    por Miguel de Souza para se encontrar o Tripu. Tomado por febres, Arzo

    quis voltar mas os nativos apavorados pelos botocudos, s o seguiram at o

    Esprito Santo onde ele recuperou-se, e tentou voltar s minas, teve o apoio

    da Cmara de Vitria mas no conseguiu reunir gente, s lhe restou voltar a

    So Paulo por mar, morrendo aps a chegada. Antes de morrer, Arzo,

  • 24

    chamou Bartolomeu Bueno da Siqueira, seu cunhado, e confiou-lhe o segredo

    do caminho das minas.

    No entanto este no tinha dinheiro para montar uma expedio porque

    havia perdido sua herana em jogos, por isto, reuniu os parentes que a

    princpio no quiseram financiar-lhe a expedio mas um deles, Carlos

    Pedroso da Silveira, convenceu vrias pessoas a ajud-lo. Acompanhava-o o

    capito Miguel Garcia de Almeida e Cunha. Chegaram at o Itaverava,

    exploraram os arredores mas no conseguiram encontrar a serra do Itacolomi.

    Voltaram a Itaverava onde plantaram roas para se alimentarem at o ano

    seguinte. Enquanto isto exploravam os arredores e encontraram um ribeiro

    que continha ouro. Em concordncia com Bueno o ouro foi mandado a So

    Paulo a Carlos Pedroso que o enviou ao Rio de Janeiro em 1796 e o entregou

    solenemente ao governador Sebastio de Castro Caldas. Este ouro foi o

    primeiro dado oficialmente como o encontrado em Minas Gerais.

    O coronel Salvador Fernandes de Mendona partiu de Itaverava e

    seguiu Miguel Garcia at o seu ribeiro, para o qual tinha conseguido um

    regimento de explorao, e outros ribeiros foram sendo descobertos e os

    chefes foram apoderando-se deles. A partir do arraial de Miguel Garcia

    (Fundo) ele alcanou o Ribeiro do Carmo em dezesseis de julho de 1696.

    Tomou posse para si e para sua comitiva. Do Ribeiro do Carmo (Mariana)

    encontrou a Passagem. Seguindo por ela avistaram finalmente o Itacolomi e

    acharam o Tripu, a futura Vila Rica do Ouro Preto.

    A esta altura o novo governador Artur de S recebera ordens do rei

    para ir a Minas e iniciar a distribuio administrativa das datas e cobrar os

    quintos reais. As Minas j estavam infestadas de todo o tipo de gente que

    sabendo das riquezas dos ribeiros saam de So Paulo, Bahia, do Reino e

    vinham em busca do ouro. Terminara o ciclo pico dos bandeirantes,

    descortinava-se a formao das Minas Gerais. Comeamos pois a montar o

    nosso palco.

  • 25

    A Formao do Espao Urbano: Mariana

    Os arraiais que mais tarde formaram a cidade de Mariana

    tiveram incio com as bandeiras do taubateanos Miguel Garcia e

    do Coronel Salvador Fernandes Furtado, que segundo Diogo de

    Vasconcelos 5, em 1696, no 16 de Julho, na festa da Virgem

    descobriram o rio que passaram a chamar de Ribeiro do Carmo.

    Como praxe na transitoriedade e precariedade das

    instalaes dos mineradores, foram erguidos ranchos geralmente

    feitos de pau-a-pique abertos cobertos de palha. Segundo Claudia

    Damasceno Fonseca6 as primeiras cabanas foram construdas na

    praia, formando o ncleo primitivo de Mata Cavalos, que recebeu

    este nome porque a areia engoliu dois cavalos matando-os. No

    entanto, o ncleo original espalhou-se pelo morro acima onde foi

    erguida uma capela. Com o aumento do povoado a capela foi

    promovida condio de parquia. O povoado foi abandonado por

    duas vezes em 1701 e 1702, por causa da fome, porque os

    mineiros imprevidentes esqueceram que:

    A log s t i ca do nd io e do bande i ran te (pau l i s t a ou t auba teano) o mi lhara l p lantado no ser to: a roa sagrada . Faz-se o p lan t io em setembro -ou tubro , as p r imei ras chuvas ; faz-se a co lhe i t a em maro -abr i l , en t rada da seca . Com os pa i is che ios , v ia ja -s e . Mas sempre prec iso a lguma reserva para o p lant io de novas roas no pr inc ip io da invernada e para agen ta r na t ranque i ra e pe r odo adve r so . 7

    Em 1703, quando todos retornavam a So Paulo

    deixando as Minas pela segunda vez, ficou Francisco Fernandes,

    apelidado o Vamos-Vamos, que tinha lavras na margem

    5 VASCONCELOS, Diogo, Histria Antiga de Minas. Editora Itatiaia, 1974. 6 FONSECA, Cludia Damasceno. O espao urbano de Mariana: sua formao e suas representaes. In:

    LPH: Revista de Histria, Mariana, n 7, Editora UFOP, 1997. pp. 67-107. 7 OLIVEIRA, Tarquinio J.D. Ouro Preto e Mariana. Fiat Automveis S/A fundao Roberto Marinho/

    Berlindes P. Vertcchia Editores Ltda, 1981.

  • 26

    esquerda do ribeiro e Manuel da Cunha, cuja cabana e terras

    minerais situavam-se na foz do crrego Lava-ps (hoje chamado

    Sumidouro).

    Provavelmente os que ficaram j tinha tomado providncias

    quanto a plantaes. Escrevendo no incio do sculo XVIII.

    Antonil relata que: Sendo a t e r r a que d ouro e s t e r i l s s ima de tudo o que se h mis t e r para a v ida humana, e no menos es tr i l a maior par te dos caminhos das minas , no se pode c re r o que padeceram ao p r inc p io os mineiros por fal t as de mant imentos , achando-se no poucos mor tos com uma esp iga de mi lho na mo, sem te rem out ro sus ten to . Porm, tan to que se v iu a abundncia do ouro que se t i rava e a la rgueza com que se pagava tudo o que l ia , logo se f izeram es ta lagens e logo comeara m os mercadores a mandar s minas o melhor que chega nos nav ios do Re ino e de ou t ras par tes , ass im de mant imentos , como de regalo e de pomposo para se ves t i rem, a lm de mi l bug ia r i as da Frana , que l t ambm foram dar . 8

    Sabe-se que o livro de Antonil fo i publicado em 1711 e

    portanto parece que a questo do abastecimento nas Minas j

    estava resolvido. Outra circunstncia que no deve ser esquecida

    que o governador Artur de S, quando esteve em Minas Gerais

    distribuiu datas e sesmarias. possvel que alguns no Ribeiro do

    Carmo j fizessem plantaes como parece ter sido o caso de

    Francisco Fernandes e Manoel da Cunha, embora a historiografia

    no registre esse fato. Certo que no Sumidouro, em Sabar-buu

    e pelo caminho de So Paulo a Minas as roas eram uma

    constante.

    Em 1703 Antnio Pereira Machado comprou, segundo

    Cludia Damasceno Fonseca, 9 alguns bens imveis, mas no

    especifica quais. Portugus e tendo conhecimento da tcnica que

    os espanhis usavam, procurou ouro nas encostas. necessrio

    lembrar que as benfeitorias eram feitas dentro das datas minerais

    segundo o Regimento de Terras Minerais de 1702,e que o mesmo

    8 ANTONIL, Andr Joo. Cultura e opulncia do Brasil. So Paulo, Melhoramentos MEC, 1976, p. 169. 9 FONSECA, Cludia Damasceno. op. cit. pp. 67-107.

  • 27

    proibia que as datas fossem vendidas. O Regimento foi sendo

    modificado de acordo com a realidade das Minas. Foi Antnio

    Pereira que construiu uma ermida a Nossa Senhora da Conceio.

    Acima da Mata Cavalos desenvolveu-se, ao longo da

    estrada que levava Vila Rica, um novo ncleo populacional,

    chamado So e Gonalo 10. Foi formado nas lavras do capito

    Manoel Cardoso Cruz assim que a minerao avanava, as casas

    eram demolidas, de qualquer forma ganha uma rua bem

    determinada no povoado chamada de Rua de So Gonalo que

    encontrava-se com a Rua Direita de Mata Cavalos e formava o

    Largo de Quitanda, de onde saia uma ladeira chamada dos

    Quartis ou dos Aougues (em direo leste) que, depois de

    transpor a ponte de Manoel Ramos (sobre o atual Crrego do

    Catete), tinha continuidade por uma rua das mais povoadas

    paralela ao ribeiro: a rua do Piolho. A atual Rua Direita era um

    simples caminho e sem a Ponte de Areia. Era conhecida como

    caminho de cima. Dava acesso chcara do Antnio Pereira e

    teria sido (por volta de 1715), um simples rego destinado a levar

    gua aos seus lavradores junto praia. A Rua do Piolho dava

    acesso ao bairro do Secretrio. Este nome deve-se a Jos Rabelo

    Perdigo, secretrio do governador Artur de S, que ali construiu

    uma chcara chamada Bananal. Nesta chcara residiram os

    secretrios de vrios governadores. No h registro se era uma

    residncia oficial de propriedade oficial ou particular.

    Em 1711, o arraial foi elevado categoria de vila, e

    conseguiu o seu rossio de Antnio Pereira:

    10 A medida que a ocupao da rea processava-se, elas eram incorporadas ao espao urbano e geralmente

    nomeadas com o nome do santo da devoo do dono ou posseiro das terras.

  • 28

    Quando da c r i ao de uma v i l a , a de t e rminao de seu t e rmo , ou se ja , da rea do novo munic p io , e ra uma das providncias a serem t o madas , a ss im como a de l imi tao do ross io . Esse l t imo cons t i tu a o te r reno pbl ico da v i la , que compet ia Cmara adminis t ra r , seguindo as vagas or ien taes das Ordenaes do Reino . A demarcao dos ross ios "era uma t rad io medieval r egu lamen tada pe la s o rd e n a e s l u s i t a n a s " e visava garan t i r uma rea para o usufru to comum dos habi tantes ( loca is pbl icos , t e r renos para p lan taes , pas tagens) e para se rv i r s necess idades fu tu ras de expanso da nova v i l a . 11

    Antnio Pereira perdera o morro de Mata Cavalos por

    causa da ocupao urbana mas, em troca recebera uma sesmaria no

    que seria hoje o centro histrico da cidade. Entretanto as pessoas

    que l moravam no aceitaram deixar suas casas e nem pagar-lhe

    nenhuma compensao. Por isto ele doou as terras para a vila em

    troca do cargo de Escrivo Vitalcio do Senado da Cmara, de um

    ttulo de nobreza, do hbito da Ordem de Cristo e de doze mil reis

    de tenas efetivas para quem se casasse com uma de suas filhas.

    Era muita coisa em troca de uma sesmaria mas, ao que tudo indica

    ele conseguiu pelo menos o cargo de escrivo vitalcio e

    hereditrio porque mais tarde o encontramos vivo mas quem era

    escrivo era seu filho. Antnio Pereira fundou ainda o arraial de

    Antonio Pereira e o Bonfim do Mato Dentro, sempre a partir de

    novas lavras ou de sesmarias para o plantio.

    No rossio, tratou a Cmara de regularizar os aforamentos,

    geralmente de duas braas de frente com os fundos e

    superfcies no definidas que seriam ao longo do sculo alvo de

    disputas. De qualquer forma parece-nos um aspecto burocrtico

    para efeitos da cobrana dos foros, j que a ocupao expontnea

    j tinha ocorrido. Por trs da Igreja de Nossa Senhora da

    Conceio, atual S, corria um valo: O va lo e ra poss ive lmente , uma l inha d iv i sr ia do ross io , do te r r i t r io da v i la , e cons t i tu a uma marca urbanis ta , que l imi tava e a fas tava o mundo ru ra l , um con torno com o qua l a c idade defend ia sobre tudo as p rpr ias conv ices de suas funes

    11 FONSECA, Cludia Damasceno. op. cit . p.80

  • 29

    u rbanas , desempenhando , ass im, o mesmo pape l dos f rge is ba lua r t e s de a lguns nc leos co lon ia i s b ras i l e i ros . 12

    Em 1715 construiu-se o Palcio de Assumar no limite da

    cidade, ou seja, prximo ao valo, limitando-se como a Igreja da

    Conceio e com a atual Rua Direita. Foi a primeira construo de

    telhas na vila. Ocupava terrenos que eram considerados

    propriedade da Coroa.

    Depois do Palcio o que existia eram terras da Coroa, para

    servir de pastagem para os cavalos e a se construiu um bebedouro

    para cavalos que existe at hoje, no mesmo lugar. Na poca era

    chamado de Largo de Cavalhada. Era o local de socializao

    onde se organizavam as festas populares como os curros, as

    touradas, comemoraram-se os nascimentos e casamentos dos

    prncipes e princesas reais, a entrada dos governadores,

    acampavam os circos de cavalinhos e realizavam-se festas de

    cunho profano. Hoje esta rea a Praa Gomes Freire de Andrade

    e ainda funciona, com seus bares e restaurantes como rea de

    socializao.

    Ao longo do Largo de Cavalhada ficava o caminho da

    Intendncia e da Olaria, sada para o caminho de Itaverava e So

    Paulo. Mais tarde com a decadncia do morro de So Gonalo,

    tornou-se a entrada oficial da cidade e a principal ligao com

    Vila Rica. Paralela a ele, em terras da Coroa, existia a rua da

    Corte que segundo Waldemar de Moura Santos13 concentrava a

    maioria das casas dos funcionrios reais. Com a abertura da nova

    rua Direita (antigo caminho de cima) e a mudana dos

    funcionrios e nobres para l (em parte para fugir s inundaes

    do ribeiro que devastavam a rua do Piolho), a Rua da Corte passa

    12 FONSECA, op. cit. p. 85. 13 As referncias a Waldemar Moura Santos, encontram-se FONSECA, op. Citada.

  • 30

    a ser chamada de Rua dos Cortes que naquela poca significava

    isolamento, despejo, afastamento.

    Em 1720 formado o bairro do Santana ao redor da ermida

    destinada ao culto de Santa Ana. Provavelmente foi construda

    pela Irmandade da Misericrdia com a finalidade de dar

    sepultura aos condenados forca e at meados do sculo XX

    existia no local um hospital construdo em 1736. Parece ter sido

    sempre encarado como uma rea suburbana da cidade.

    importante lembrar que, em obedincia s teorias mdicas da

    poca, matadouros, cemitrios e hospitais eram elementos que

    deveriam ser separados dos centros urbanos. 14

    Fora da vila, alm das terras reais encontrava-se a rea

    rural: a chcara do Quintanilha, do Secretrio e a fazenda do

    Buco, todas localizadas ao longo das estradas que levavam

    cidade.

    Dentro da vila, nos primeiros tempos, predominava o caos. O

    trabalho de minerao nas encostas e no ribeiro provocaram

    grandes incmodos aos moradores. Para aumentar a explorao

    aurfera, os mineradores traziam mais escravos, escavavam os

    morros, faziam barragem no crregos e no ribeiro. As inundaes

    tornaram-se constantes. As enchentes, ainda em 1749 destruram

    boa parte da vila, principalmente a rua do Piolho e a 15antiga rua

    Direita de Mata Cavalos, sendo que esta ltima foi reduzida a

    praya, ou alis a regatos ou braos do rio. 16

    Nesta poca, D. Joo V decidiu criar o primeiro bispado de

    Minas em Vila do Carmo, que passaria a ser chamada de Mariana,

    em homenagem a sua esposa Dona Ana Dustria. A vila foi

    escolhida, como sede do Bispado, por causa da comodidade do

    14 FONSECA, op. cit. P. 83 15 Documento da Irmandade do Rosrio citado pelo Cnego Trindade em Instituies de igrejas no Bispado

    de Mariana. Rio de Janeiro, MEC/SPHAN, 1945. 16 FONSECA, op. cit. P. 84

  • 31

    terreno (local mais plano) e para isto era necessrio que a vila

    fosse elevada categoria de cidade, porque as leis da Igreja s

    permitiam a criao de bispados em terras liv res. Em 1745, Gomes

    Freyre de Andrade discordou do Rei quanto escolha da sede e

    citou os motivos: as freqentes inundaes, a diminuio da

    populao, das lavras, das faisqueiras com a crescente escassez de

    ouro e a necessidade de reparos na matriz da Conceio e, disse

    ainda, que mesmo que se fizesse uma nova cidade seria difcil

    arrumar nova populao.

    O principal problema eram as enchentes do Ribeiro do

    Carmo causadas em grande parte pela minerao nas encostas e

    nas praias. Em representao ao Rei, em 1735 afirmavam os

    oficiais da Cmara: ( . . . ) r epresen tamos a S . Majes tade que o d i to Antnio Bote lho e seu i rmo Joo Bote lho de Carvalho tem um servio de minerar na p ra ia de Rio chamado Ribe i ro do Carmo ao p des ta c idade o qua l p r o v m t o d o o d r a ma de sua inundao do d i to se rv io ( . . . ) . 17

    Os irmos Botelho tambm eram acusados na mesma

    carta de evitar que o povo usasse a gua que vinha do Itacolomi e

    com a qual a Cmara queria fazer uma fonte para uso pblico. No

    encontrei o desfecho da disputa entre os Botelho e a Cmara, mas,

    a documentao sobre as enchentes dos rio grande. O Coronel

    Bento Fernandes Furtado, Antnio Artur Castro e Manoel

    Francisco, conceberam um plano de cerco de rio na altura da

    atual rua Direita at a entrada da antiga rua dos Monsus.

    No entanto o ouvidor geral da Comarca da Vila Rica, que

    foi instado pelo rei a acompanhar o caso, deu o seu parecer

    desfavorvel para a obra no ano seguinte, 1746, por vrios

    17 APM, .Fundo A.H.U. Caixa 45, doc. 92 , documentao microfilmada. 25/02/1745.

  • 32

    motivos: por que as chuvas j aproximavam-se, os custos seriam

    altos e as obras no conteriam a enchente. Sua soluo que o

    melhor era mudar a populao para lugares mais altos: ( . . . ) por que desaguando os desmontes das minas daquela c idade e do morro dessa v i la , no d i to r io , a l te rando cada dia mais [a quan t idade] das guas , l evar qua lquer ce rca que se lhe f i ze r ( . . . ) . ( . . . ) sendo inevi tvel o dano recebido [e] que para o no receberem adian te tem edi f icado e vo ed i f icando os moradores casas , em um a l to e par te segura onde se res tabe lece r aquela par te da c idade (. . .) 18

    A parte alta e segura a que se refere o Ouvidor provavelmente as

    terras da coroa alm do valo da cidade, perto dos quartis e na rua dos Cortes.

    O problema das enchentes no era novo. Em Carta ao rei datada de vinte e

    um de agosto de 1724 a Cmara Municipal de Mariana j fazia o relato da

    enchente do ano que tinha destrudo a ponte da cidade que tanta falta faz ao

    povo e aludia ao fato que as inundaes provocavam falta de alimentos. As

    inundaes j existiam antes que D. Joo V resolvesse criar o bispado e

    continuariam mesmo aps esta deciso, mas este pareceu a Cmara o

    momento oportuno para tentar resolver um problema que tanto afligia a

    populao e que no tinha ateno da Coroa. Tanto que em vinte e cinco de

    setembro de 1745 escrevem ao rei recomendando os planos que o ouvidor

    frustraria, assegurando que com as obras: ( . . . ) f icar segura a c idade e a Igre ja Matr iz que poder serv i r para S , po i s de ou t ra so r t e an tes de dez anos co r re r o r io jun to e l a e s e inundar a t e r ra toda onde agora t em a maior e mais f lo rescen te , povoao , o que no se r jus to no s pe lo de t r imen to dos par t i cu la res mas dos ed i f c ios pb l icos , e p r inc ipa lmente porque no deve submerg i r -se uma povoao que deve a Vossa Majes tade a honra de a exa l t a r c idade . E como da razo dos bons vassa los aumenta r e no des t ru i r povoao que os seus soberanos cr iam ( . . . ) . 19

    De nada adiantaram as splicas da Cmara. O problema

    das inundaes ficaria sem soluo depois do parecer negativo do

    ouvidor. Resolveu-se por isto construir uma nova cidade, em

    18 APM, Fundo A.H.U. Caixa 47, doc. 41, documentao microfilmada.30/04/1746. 19APM, Fundo A.H.U. Caixa 47, doc. 41, documentao microfilmada. 15/08/1745.

  • 33

    terras da Coroa, alm do valo da vila e para isto convocou-se o

    engenheiro Jos Fernandes Alpoim que segundo Fonseca: A par te nova da c idade j ia se conf igurando ao longo de t rs e ixos que se prolongavam na d i reo sul : a es t rada da I taverava ou rua da Ola r ia , em seu t r echo u rbano - a rua dos Cor tes e a rua Nova , a lm dos e ixos na tura is , representados pe los cr regos do Cate te e do Seminr io (a t en to , cr rego do Secre t r io) , elementos l imi tadores e condic ionadores da forma urbana . Por tan to , a ao do engenhe i ro deve te r-se res t r ingido ao a l inhamento , nem sempre to ta l (ce r tamente dev ido ocupao j conso l idada) , dessas vias longi tudinais e de outras pr -exis tentes (como a rua Direi ta) e c r iao de a lgumas t ransversa i s (as t ravessas) , menos la rgas , den t ro de uma rea r e l a t ivamente pequena da c idade . 20

    A partir da inicia-se uma nova fase na vida da cidade. O

    antigo caminho de cima torna-se a principal via de acesso a S e

    portanto a principal rua com ordem da Cmara para as casas do

    lado esquerdo fossem feitas de maior nobreza. 21 A concluso da

    Salomo de Vasconcelos que essa a razo de vermos at hoje

    todas as casas deste lado da rua, de dois andares e de sacadas;

    enquanto do lado oposto, dando para o rio, eram e so em geral,

    casas baixas, de um s pavimento .22

    O prdio da Cmara foi construdo definitivamente na

    antiga rea dos quartis de Assumar. As Arquiconfrarias de So

    Francisco e de Nossa Senhora do Carmo iniciaram a construo

    de suas Igrejas em frente e ao lado da Cmara. Abertas ruas e

    travessas, a Cmara distribuiu os foros a quem quisesse construir

    na parte nova da cidade desde que, segundo carta do rei: ( . . . ) todos os edi f c ios te ro que fazer face das ruas cordeadas , as pa redes em l inha re t a , e havendo comodidade pa ra qu in taes das casas devem es tes f ica r pe la par te de t rs de las , e no pe la par te das ruas em que a s casas t ive rem as suas en t radas ( . . . ) . 23

    O antigo Largo da Cavalhada passou a chamar-se Praa D.

    Joo V e sua funo continuou a mesma. A Igreja da Conceio

    20 FONSECA, op. cit. p. 95. 21 Idem. p. 94. 22 Idem. p. 94. 23 Ibidem. p.91-92

  • 34

    foi reformada para tornar-se a S e na sua frente abriu-se um

    grande adro para as festas religiosas.

    A parte antiga da cidade formada por Mata Cavalos, So

    Gonalo e Rua do Piolho foi relegada a segundo plano. Os

    planos de conteno das inundaes no foram mais retomados.

    Mata Cavalos e So Gonalo continuaram sendo reas de

    minerao, mas agora como reas perifricas da cidade ocupadas

    por escravos, libertos e pardos forros. A antiga Rua do Piolho

    constituiu-se o foco mais forte das senzalas que se comunicava

    com os fundos das casas da Rua Direita, onde residiam a nobreza

    e os opulentos da poca.24

    No entanto, todo este espao urbano era cercado pelas

    propried ades rurais muito prximas a ele, a saber: alm de

    Santana, o caminho que seguia para o Sumidouro, So Caetano e

    Guarapiranga; o caminho para Itaberava era cercado pela chcara

    do Secretrio, chcara do Quintanilha e a Fazenda Buco; no alto

    do morro de So Gonalo ficou esquecido o antigo caminho para

    Vila Rica. A cidade portanto estava cercada por matas e reas

    rurais.

    Dentro dela definiram-se as territoriedades: da nova Rua

    Direita para o Sul era o territrio das autoridades, dos nobres, dos

    brancos ricos. So Gonalo, Mata Cavalos, a Rua do Piolho e

    Santana eram de domnio dos escravos, libertos e pardos. Ou seja

    a sonhada, planejada e segura cidade dos brancos estava cercada

    de seus inimigos potenciais por toda parte.

    Quanto ao que Cludia Damasceno Fonseca chama de

    constituio do espao barroco, ele ter grande impulso com o

    primeiro bispo D. Manuel da Cruz. Durante o perodo em que

    esteve frente da nova diocese teve particular zelo com a

    24 Ibidem. p. 94.

  • 35

    reforma dos antigos templos e capelas e construo dos novos.

    Ele iniciou obras que s foram terminadas na segunda

    metade do sculo. Mas a organizao das irmandades

    precedeu a organizao do bispado e mesmo a construo dos

    templos, como re lataremos a seguir. Em 1749 organiza-se a

    Irmandade Nossa Senhora das Mercs da Redeno dos

    Cativos, criada pelos pretos crioulos, para se diferenciarem

    dos africanos que eram da Irmandade do Rosrio. A igreja

    das Mercs foi construda na quarta travessa da planta de

    Alpoim. A capela de Nossa Senhora dos Anjos foi construda

    na Rua Nova e pertenceria Arquiconfraria de So Francisco,

    Ordem dos Homens Pardos devotos do santo. Em 1752 inicia-

    se a construo da Igreja do Rosrio, no alto do Monsus.

    Para a sua construo reunram-se trs irmandades de pretos:

    Rosrio, So Benedito e Santa Efignia. Estas irmandades

    reuniam-se na antiga capelinha de Mata Cavalos. Quando

    mudaram-se para a nova igreja, esta passou a ser chamada de

    Rosrio Velho, at ser comprada pela irmandade de Santo

    Antnio.

    S para exemplificar as dificuldades da construo

    destas igrejas, basta citar que a nova igreja do Rosrio ficou

    pronta apenas em 1770. Em 1752 iniciava-se a construo da

    Igreja de So Pedro dos Clrigos, que at hoje no est

    pronta. A Casa de Cadeia e Cmara teve sua construo

    iniciada em 1768 e terminada apenas trinta anos depois,

    embora sua construo estivesse aprovada desde 1747. J o

    Seminrio de Nossa Senhora da Boa Morte foi inaugurado

    em 1750, apenas dois anos aps a chegada de D. Manuel da

    Cruz. Os passos da paixo espalhados pela cidade so mais

    difceis de serem inventariados.

  • 36

    Os irmos da Ordem Terceira do Carmo reuniram-se

    na antiga capela de So Gonalo at o incio da construo

    da sua igreja ao lado da Cmara em 1759, no sem protesto

    da Irmandade de So Francisco que construa a sua igreja em

    frente e que tinha iniciado a sua construo primeiro.

    De qualquer forma, observamos que, aps a ocupao

    inicial e aleatria da rea da cidade, houve uma grande

    interveno oficial com a construo de uma cidade ideal e

    nova interveno popular com a organizao do espao barroco

    atravs do qual a populao intervinha novamente na cidade

    subvertendo a ordem burocrtica e adaptando-a s suas

    necessidades e mentalidade religiosa da poca, dentro do

    esprito da Contra-Reforma. ( . . . ) Aps ou concomitantemente sua def in io , a malha v i r i a de Mar iana fo i sendo pon t i lhada de ig re jas , passos da pa ixo (a lguns colocados no e ixo foca l das t r avessas , produzindo e fe i tos de perspec t ivas) , de ora tr ios e c ruzes nas pontes e c ruzamentos de caminhos , de forma semelhante ao que se pe rcebe em ou t r a s c idades do C ic lo do Ouro .25 . . . r eve lando , a t r avs da d i spos io de cha fa r i zes , p raas e das cons t rues de g rande vu l to , uma in tenc iona l idade em d i l a t a r o espao urbano , em promover cenograf icamente um ar ran jo en t re seus e lementos , que poss ib i l i tasse dotar de sent ido , de impregnar o espao concre to de va lores s imbl icos que nor teavam a menta l idade da poca . 26

    A Formao do Espao Urbano: Vila Rica

    Depois que se confirmaram as notcias da descoberta do

    ouro vrias bandeiras paulistas, gente do nordeste, do Esprito

    Santo, reinis e de todo lado vinha para Minas a ponto do rei em

    25 FONSECA, op. cit. p. 103. 26 FISCHER, Mnica. Mariana: Os dilemas da preservao histrica num contexto social adverso.

    Dissertao de mestrado em Sociologia Urbana, Belo Horizonte, FAFICH-UFMG, citada por FONSECA, p.103.

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    1701 ordenar ao governador Artur de S, que no permitisse a

    entrada de mais gente nas Minas.27

    Em 1698 Antnio Dias Oliveira, junto com o Pe. Joo de

    Farias Fialho e os irmo Camargo fundaram Vila Rica. O ouro

    atraiu novos exploradores que seguindo o Regimento das Terras

    Minerais procuravam por novas lavras distantes pelo menos meia

    lgua uma das outras, para que assim, fossem reconhecidos como

    descobridores e tivessem, o privilgio de ter duas datas prprias.

    Com isto novas lavras, ranchos e futuros ar raiais foram se

    espalhando. Em toda a par te e ram pesquisadas as a re ias dos r ibe i ros e a t e r ra das montanhas e , quando encont ravam a lgum ter reno aur fero , cons t ru ram barracas em suas v