castel, robert. a ordem psiquiátrica - a idade de ouro do alienismo

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ROBERT CASTEL

A ORDEM PSIQUIÁTRICA

A idade de ouro do alienismo

Tradução de

Maria Thereza da Costa Albuquerque

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Biblioteca de Filosofia e História das Ciências Vol. n° 4

2ª edição

© Editions de Minuit, Paris

Traduzido do original em francês L'ordre phychiatrique: l'âge d'or d'alienisme

Capa Sônia Maria Goulart

Direção: José Augusto Guilhon Albuquerque Roberto Machado

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Castel, Robert.

C343o A Ordem psiquiatria: a idade de ouro do alienismo /

Robert Castel; tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque. - Rio de Janeiro: Edições

Graal, 1978.

(Biblioteca de filosofia e história das ciências; 4)

Tradução de: L'ordre psychiatrique: l'ge d'or d'alienisme Bibliografia

1. Psiquiatria I. Título II. Título: A Idade de ouro do alienismo III. Série

78-0511 CDD - 616.89

CD D - 616.89

1º edição: 1978

Direitos adquiridos por EDIÇÕES GRAAL Ltda. Rua Hermenegildo

de Barros, 31 A Glória, Rio de Janeiro, RJ Tel.: (021) 252-8582

que se reserva a propriedade desta tradução. 1991

Impresso no Brasil/P/vntec/ in Brazil

Page 4: CASTEL, Robert. A Ordem Psiquiátrica - A Idade de Ouro do Alienismo

SUMÁRIO

Prefácio ................................................................................................................................7 CAPÍTULO I O DESAFIO DA LOUCURA............................................................................................16

O Estado, a Justiça e a Família.......................................................................................16 A Soberania, o Contrato e a Tutela ................................................................................23 O Criminoso, a Criança, o Mendigo, o Proletário e o Louco.........................................27 O Juiz, o Administrador, o Pai e o Médico ....................................................................34

CAPÍTULO II O SALVAMENTO DA INSTITUIÇÃO TOTALITÁRIA................................................40

A Medicina se situa........................................................................................................41 Outro modelo de assistência ..........................................................................................45 Um compromisso reformista..........................................................................................51 Um operador prático ......................................................................................................57 A Tecnologia pineliana ..................................................................................................61 O estabelecimento especial: herança e inovação............................................................65

CAPÍTULO III A PRIMEIRA MEDICINA SOCIAL ................................................................................70

Nascimento de uma especialidade .................................................................................70 Um saber muito especial ................................................................................................73 Um sistema bem amarrado.............................................................................................80 A Nova paisagem da assistência ....................................................................................85 O Alienista, o Higienista e o Filantropo.........................................................................92

CAPÍTULO IV OS PERITOS PROVIDENCIAIS....................................................................................103

Os Novos Executivos ...................................................................................................105 Unificar para reinar ......................................................................................................110 Certidão não conforme.................................................................................................112 Os Monomaniacos e os Loucos....................................................................................117 Uma conquista que destrói suas próprias retaguardas..................................................122

CAPITULO V DA PSIQUIATRIA COMO CIÊNCIA POLÍTICA.........................................................128

A Caminho da Integração no Aparelho de Estado .......................................................128 O Medicalizável e o Administrável..............................................................................133 Os Operadores políticos ...............................................................................................139 O Compromisso da lei..................................................................................................146

CAPÍTULO VI A LEI E A ORDEM.........................................................................................................155

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A Pseudo-aplicação da lei ............................................................................................156 Da eficácia: Real, administrativa e simbólica ..............................................................161 O paradigma da internação ..........................................................................................167 Público-privado............................................................................................................173

CAPÍTULO VII A PASSAGEM: DA IDADE DE OURO AO AGGIORNAMENTO..............................178

Primeiras dificuldades..................................................................................................178 1. A lei..........................................................................................................................179 2. O dispositivo institucional .......................................................................................181 3. O código teórico.......................................................................................................184 4. A tecnologia .............................................................................................................186 A Dupla linha de recomposição ...................................................................................189

OBRAS CITADAS..........................................................................................................197 Cronologia e lei de 30 de junho de 1838..........................................................................209 Lei de 30 de junho de 1838 sobre os alienados................................................................214

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"Peço-vos perdão por vos cansar com tantos detalhes, mas o governo dos indigentes, dos

criminosos e dos loucos não exige menos atenção do que o dos ricos e dos sábios, eis o que fui

obrigado a aprender através de uma fastidiosa experiência. O bem público e o prazer de vos relatar

o que se passa aliviarão esse fardo".

Procurador Geral de Aguesseau Carta de 6 de janeiro de 1701,

Mns. B. N. fr. 8123

"Esse assunto interessa às almas sensíveis visto que dele depende o destino da classe mais infeliz;

porém, não ê menos interessante para o poderoso e o rico, já que a segurança de seus gozos é

sempre inversamente proporcional aos sofrimentos e aos maus costumes do povo".

Cabanis Observations sur les hôpitaux, 1790

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Prefácio

Em 27 de março de 1790 a Assembleia constituinte decretava, no artigo 9 da lei que abolia as Lettres de cachet:

"As pessoas detidas por causa de demência ficarão, durante três meses, a contar do dia da publicação do presente decreto, sob os cuidados de nossos procuradores, serão interrogadas pelos juízes nas formas de costume e, em virtude de suas prescrições, visitadas pelos médicos que, sob a supervisão dos diretores de distrito, estabelecerão a verdadeira situação dos doentes, a fim de que, segundo a sentença proferida sobre seus respectivos estados, sejam relaxados ou tratados nos hospitais indicados para esse fim"

1.

Essa decisão da primeira Assembleia revolucionária circunscreve toda a problemática moderna da loucura. Pela primeira vez, todos os elementos que irão constituir, até hoje, as bases de seu encargo social e de seu status antropológico são dados em conjunto. Apesar de serem todos mencionados, sua ordenação definitiva ainda não fora encontrada. Tais elementos são quatro:

1. O contexto político do advento do legalismo. A questão moderna da loucura surge da ruptura de um equilíbrio tradicional de poderes, mais precisamente do desmoronamento da antiga base da legitimidade política. Sob o Antigo Regime, a administração real, o aparelho judiciário e a família repartiam entre si o controle dos comportamentos não conformes de acordo com procedimentos tradicionalmente regulados. Com a abolição das Lettres de cachet, uma peça essencial do dispositivo desaparece bruscamente, arruinando todo o edifício. No caso específico da loucura se, por um lado, sua repressão continua parecendo tão necessária, o recurso direto ao poder político para realizá-la é bloqueado, já que fica desqualificado enquanto manifestação do arbítrio real.

2. O surgimento de novos agentes. As instâncias encarregadas de preencher esse vazio são nomeadas desde logo: justiça (procuradores e juízes), administrações locais ("diretores de distrito") e medicina. À primeira vista, simplesmente, os aparelhos já instaurados são solicitados a estabelecer entre si novas relações. Entretanto, como tais, eles não poderão suprir imediatamente a autoridade que falta. Um longo processo de transformação de suas práticas e de renegociação de suas relações será necessário antes de poderem assumir sua nova tarefa. Um equilíbrio estável só será encontrado quando a medicina puder constituir sua viga-mestra.

3. A atribuição do status de doente ao louco. Na medida em que as modalidades do encargo da loucura não devem mais ser homogêneas às que continuam a controlar os

1 Ministério do interior e dos cultos, Législation sur les alienes et les enfants assistes, t. I, Paris, 1880, p. 1

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criminosos, os vagabundos, mendigos e outros "marginais", o louco é reconhecido na sua diferença a partir das características do aparelho que vai tratá-lo daí por diante. Entretanto, uma tal indexação coloca, inicialmente, mais problemas do que resolve. O código médico não é suficientemente apurado para dar um status científico a essa identificação. A tecnologia médica para com a loucura ainda não tem nada de específico. O lugar de uma especialização da medicina sob esse duplo registro teórico e prático é demarcado a partir desse novo mandato político, porém, ainda é um lugar vazio.

4. À constituição de uma nova estrutura institucional. A inscrição privilegiada dessas práticas nos "hospitais indicados para esse fim" também é prevista. Mais precisamente no momento em que essa instituição está marcada pelo descrédito atribuído aos lugares de segregação, dos quais, a administração real e a Igreja tinham feito os instrumentos de sua política de neutralização dos seus indesejáveis e dos seus inimigos; no momento também em que um movimento geral de desinstitucionalização da assistência desordena o antigo complexo hospitalar juntamente com as bastilhas do absolutismo político. A imposição do "estabelecimento especial" (ou asilo) como "meio terapêutico" supõe, portanto, a reconquista, pela nova medicina, de uma face da velha organização hospitalar carregada do ódio do povo e do desprezo dos espíritos mais esclarecidos.

1790, condenação do arbítrio político ― 1838, votação da lei, ainda em vigor, que regula o regime dos alienados: essa margem de tempo de quase quarenta anos entre os dois acontecimentos legislativos é de fato preenchida pelo lento caminhar das práticas alienistas. Através de seu desenvolvimento, o que a Assembleia Constituinte colocara como solução formal ― se não como escapatória em uma situação crítica ― institucionalizou-se como nova estrutura de dominação. O louco que surge como problema na ruptura revolucionária vai se ver dotado, no fim do processo, do status completo de alienado: completamente medicalizado, isto é, integralmente definido enquanto personagem social e tipo humano pelo aparelho que conquistou o monopólio de seu encargo legítimo. Primeira história a seguir, pois é a da constituição recíproca de uma nova medicina e de uma nova relação social de tutelarização.

Velha história, dir-se-á, e bastante conhecida no que nos concerne. De fato, um gosto um tanto fácil pela simetria oporia uma espécie de utopia totalitária, paradigma da psiquiatria do século XIX, a uma utopia, digamos capilar, principal linha de fuga da medicina mental atual: enclausuramento/desenclausuramento; segregação das populações/tratamento no ambiente de vida; reclusão/"desinstitucionalização", asilo/setor; dualismo normal-patológico/fluidez das categorias psicopatológicas atuais; estigmatização brutal pelos rótulos nosográficos/vocação universalista dos novos códigos psiquiátrico-psicanalíticos; intervenções limitadas a domínios bem circunscritos (a patologia manifesta e a criminalidade)/iniciativas cobrindo o conjunto dos comportamentos e atravessando até mesmo as clivagens tradicionais entre o psicológico, o cultural, o social, o político; perícia especializada/perícia generalizada; autoritarismo, paternalismo, diretivismo/permissividade, acolhida, escuta; exercício

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solitário do poder/circulação das informações em equipe e, no extremo, reversibilidade dos papéis entre "agentes" e "pacientes"

*etc.

Nem tudo é falso nessas oposições, com a condição de que se observe de perto como, por que, e para quem elas funcionam. Um sistema é dito "ultrapassado" quando não tem mais defensores. Mas é frequentemente porque seus antigos operadores simplesmente se deslocaram, e começaram a fazer outra coisa que, todo o resto permanecendo igual, poderia não ser tão diferente. Por exemplo, a internação já não tem muitos adeptos: o "isolamento terapêutico" do século XIX parece suficientemente grosseiro para que a segregação social que ele opera possa ser-lhe identificada sem muita dificuldade ― sobretudo para aqueles que deixaram de praticá-lo. Ao contrário, o encargo psicanalítico ou o condicionamento behaviorista encontrarão muito mais defensores. Hipótese com a qual estes não estarão de acordo: é porque os mesmos profissionais que segregavam integram, que os que excluíam normalizam. Mas não se pode marcar hora para daqui a um século para ver como andarão as coisas.

Donde a proposição feita aqui de tentar axiomatizar o sistema dos dados que constituem uma "política da saúde mental" e de seguir suas transformações. Tal política, quaisquer que sejam as racionalizações com que se recobre, articula um número finito de elementos: um código teórico (por exemplo, no século XIX, as nosografias clássicas); uma tecnologia de intervenção (por exemplo, o "tratamento moral"); um dispositivo institucional (por exemplo, o asilo); um corpo de profissionais (por exemplo, os médicos-chefes); um estatuto do usuário (por exemplo, o alienado definido como menor passível de assistência pela lei de 1838). Estamos simplificando: há também os pagantes, os intermediários, os promotores, os que demandam, etc. Esse grupo de variáveis forma uma constelação relativamente estável com conteúdo relativamente fixo. Assim, como veremos, a síntese asilar apresentou uma coerência extraordinária, sendo cada uma de suas partes construída em relação às outras a partir da matriz comum da internação.

Não se trata de uma hipótese funcionalista. Por um lado, essas dimensões não são elementos de uma estrutura, mas cristalização de práticas elaboradas num contexto histórico preciso, em relação a uma problemática social concreta. Por outro lado, a estabilidade relativa do conjunto não exclui nem os conflitos, nem as tensões, nem as crises, nem as derrapagens, nem os reequilíbrios, nem as mudanças. Mas é preciso distinguir uma mudança, mesmo se importante, dentro de uma série e a transformação do conjunto do dispositivo. Por exemplo, com relação às primeiras classificações do alienismo, a descoberta da monomania por Esquirol, posteriormente a da degenerescência por Morel, abalaram a crença na racionalidade das nosografias constituídas a partir do agrupamento dos sintonas (cf. capítulo IV). Contudo, essa crise pôde ser superada no quadro do sistema. Com relação ao quadro institucional, o interesse pelas colônias agrícolas, por volta de 1860, abriu uma brecha na supre- macia absoluta do asilo. Poder-se-ia dizer o mesmo a propósito da legislação, das terapêuticas, do regulamento do pessoal, etc. Não obstante, após um século, o edifício ainda se mantinha de pé. Evoluções, crises, mesmo muito importantes, podem originar * Em francês: "Soignants" ― "Soignés" (N. do T.)

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compromissos mais ou menos capengas e restabelecimentos mais ou menos instáveis. Elas podem até marcar um novo início, propiciando um novo alento a uma organização cansada. Assim, o triunfo do organicismo, no fim do século XIX, fundou pela segunda vez a permanência asilar.

Por oposição às mudanças em série, chamaremos metamorfose a transformação do conjunto dos elementos do sistema. Uma metamorfose marca a passagem a uma outra coerência, é a expressão de uma outra política. Não se pode mais interpretá-la a partir da restruturação interna do dispositivo médico. E o produto de uma renegociação global das divisões de poder com as outras instâncias interessadas numa política de controle: a justiça, a administração central, as comunidades locais, a escola, as famílias, etc. Se, desde 1860, houve críticas ao asilo ou à lei de 1838 ou ao saber psiquiátrico ou aos tratamentos médicos, tão violentas e tão lúcidas como as dos modernos antipsiquiatras, foi somente nas últimas décadas que se esboçou um modelo alternativo global que se coloca como substitutivo para o antigo sistema, para assumir a totalidade de suas funções com algumas outras a mais. Vivemos, assim, a primeira metamorfose da medicina mental desde a santificacão da síntese asilar pela lei de 1838.

Portanto, transformação decisiva. Mas a escolha da palavra metamorfose visa economizar um julgamento de valor sobre o sentido e as finalidades últimas da mudança. É precisamente o objetivo desta análise tentar tal avaliação. Não prejulguemos, portanto, o resultado. Trata-se de uma mutação, de uma revolução? Isto não é evidente por si mesmo. Metamorfose, segundo o dicionário Petit Robert: "Mudança de natureza, de forma ou de estrutura, tão considerável que o ser ou a coisa que a sofre não ê mais reconhecível", Portanto, tudo pode ser diferente. Porém, também Zeus transformado em bovino é sempre Zeus. Ele é/não é Zeus e é preciso ser mais esperto para reconhecê-lo. As mesmas funções podem realizar-se através de práticas totalmente renovadas, monopólios do mesmo tipo podem perpetuar-se, interesses idênticos podem introduzir-se. Resta ver.

Seguindo essa lógica, em vez de pretender que a medicina mental fez sua revolução (se acreditarmos nos psiquiatras, aliás, estaríamos na terceira ou na quarta), faremos, mais prudentemente, a hipótese de que ela efetua o seu aggiornamento. Em primeiro lugar porque, metáfora por metáfora, a simbólica religiosa convém mais ao tipo de respeitabilidade de uma profissão médica. Mas sobretudo porque, pelo menos até o presente, os sumo-sacerdotes da psiquiatria tudo fizeram para guardar o controle das mudanças.

Um concilio é um encontro com a história no decorrer do qual os próprios clérigos fazem o diagnóstico da crise, convidam os fiéis a de novo desposar o mundo, a transformar completamente os ritos, porém, para permanecer fiel ao espírito da doutrina. Acolher as mudanças exteriores, mas com a condição de poder reinterpretá-las na lógica do dogma e sob a autoridade de seus intérpretes qualificados. A psiquiatria francesa moderna promoveu seus concílios (as Journées de Saint-Anne em 1945, um certo colóquio em Bonneval, Bonnafé-Ey-Lacan, o de Sèvres em 1958...). Marxistas, psicanalistas, progressistas sacudiram os velhos alienistas-que chamavam um doente de

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alienado e que praticavam a exclusão em sã consciência. Foi importante. É necessário levar a sério as novas estratégias que eles definiram (o setor, a psicoterapia institucional, a escuta do doente, o serviço do usuário, etc.) Já que elas são ou serão do interesse de muita gente: elas são ambiciosas. Entretanto, saibamos também que esses especialistas não possuem a infalibilidade pontificai quando decretam que entramos numa era totalmente nova. Se cada uma das dimensões da problemática de saúde mental foi profundamente modificada (ou está em vias de transformação), sua articulação continua muito bem a circunscrever quase tudo o que se faz nesse domínio. Concedamos o máximo aos cantores da mudança: profissionais, que se multiplicaram, continuam atuando em instituições que, por sua vez, desarticularam códigos teóricos que se refinaram e tecnologias que se diversificaram, em direção a populações, cujo número aumentou e cujas características se tornaram mais sutis. É muita novidade. Mas não é o bastante para invalidar a hipótese de que um mesmo aparelho de dominação pudesse, por meio de sua modernização, remover seus prestígios, estender seu domínio e multiplicar seus poderes.

É possível, portanto, que o discurso psiquiátrico-psicanalítico atual represente o ponto de honra espiritualista de uma transformação profunda das formas de imposição do poder dominante. Seus agentes poderiam ser os operadores da instauração dos novos dispositivos de controle, manipuladores-manipulados numa renegociação geral entre as instâncias de normalização. Em todo caso, ajudar a desenhar esse novo mapa das sujeições por meio da reorganização da assistência, do trabalho social, do encargo e da tutelarização, deveria ser o objetivo último de uma avaliação da atual medicina mental.

Mas este é também o domínio diante do qual estamos mais desprovidos, numa deriva que carrega a todos. Se o século XIX propõe referências mais seguras não é somente porque permite axiomatizar a forma atualmente moribunda do sistema asilar. É também porque agora aparecem menos confusas as relações entre o dispositivo da medicina mental e os aparelhos judiciários, o estado do mercado de trabalho, a política em relação aos pobres, os desviantes e os marginais. Como as relações de força se deslocaram, somos menos solidários atualmente das do século XIX. Porque as antigas estratégias se desdobraram até o fim, manifestando assim sua trama, é possível perceber sua coerência acabada. O projeto de utilizar esses modelos para decifrar uma situação mais confusa em que o próprio analista, hoje em dia, está implicado, é a justificação "metodológica" deste longo desvio.

Haverá, portanto, estreita solidariedade entre os dois lados deste díptico: a idade do ouro ou a instauração e o triunfo de uma nova instância oficial que conquista o monopólio do tratamento legítimo da loucura (por meio de quais estratégias, em detrimento de que instâncias, com a ajuda de quais outras, e para quem, etc); o aggiornamento, ou a modificação atual dessas práticas e o deslocamento de suas funções (a partir de que projeto, por meio de quais conflitos, a respeito de quais objetivos, etc). A análise da transformação dos mesmos campos de objetos ― esquematicamente: os códigos, as tecnologias, os dispositivos institucionais, os

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operadores profissionais e políticos, as regras dos usuários ― tecerá, entre as duas épocas, uma rede de relações que tentará sempre inscrever a medicina mental em seu contexto social específico. Primeira metamorfose: o momento em que a medicina mental se constitui na destruição revolucionária dos equilíbrios tradicionais entre os poderes para suprir suas carências, em harmonia com a nova concepção burguesa da legitimidade. Segunda metamorfose: o momento em que os aparelhos de controle transformam suas técnicas autoritárias-coercitivas em intervenções persuasivas-manipuladoras.

Proporemos aqui o primeiro lado desse estudo, a idade do ouro, como a realização parcial de um velho projeto. Uma intenção não penetra assim através dos acontecimentos e dos homens sem contrair uma dívida a cada passo. Podemos apenas mencionar as que nos parecem essenciais. Inicialmente concebemos este projeto no quadro do programa de pesquisas do Centre de Sociologie Euro-péenne sobre as relações de inculcação simbólica. Os livros de Pierre Bourdieu e de Jean-Claude Passeron em particular, apresentam uma chave de interpretação dos aparelhos de dominação, cuja pertinência vai muito além da interpretação do sistema de ensino. Encontrar-se-á aqui mais do que simples vestígios. O leitor verá igualmente tudo o que este trabalho deve ao livro de Michel Foucault. A História da loucura, marcou, em relação ao etnocentrismo médico, uma ruptura em cujo rastro qualquer empreendimento deste gênero não pode deixar de se inscrever. Mas não se trata de uma fundação mítica. Consideramos aceitas numerosas análises do livro e tomamos emprestado às outras obras de Michel Foulcault certas categorias que comandam atualmente o acesso a uma teoria materialista do poder.

A parte contemporânea tornará mais manifesto o que os membros franceses, ou não, da rede "Alternative à la psychiatrie" me ajudaram a compreender, particularmente os do antigo grupo constituído por Franco Basaglia, no momento em que estas hipóteses se formavam. Mas sua amizade me deixa esperar que a diferença crítica que mantive com respeito ao ponto de vista dos profissionais tecnocratas da medicina mental não está em contradição com a posição de todos aqueles que trabalham nesse setor. Essa distância em relação ao modelo dominante da psiquiatria pretende ser, em seu registro teórico, a mesma que outros se esforçam em estabelecer na sua prática.

Gostaria, enfim, de agradecer aos que se dispuseram a ler o manuscrito e cuja vigilância não foi adormecida pela comunidade de pontos de vista, reforçada por longos intercâmbios.

Uma palavra ainda, sobre o ritmo da demonstração, uma outra sobre seu tom e uma última sobre seu nível.

O ritmo será lento. Trata-se de um risco calculado. Há alguns anos, o fato de mostrar que o asilo não é um meio integralmente terapêutico, que o mandato do

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psiquiatra não é inteiramente médico ou que o psicanalista não trata somente com o inconsciente, pôde causar impacto. Atualmente, que certos elementos dessa crítica passaram com o tempo, seu limiar deve ser elevado. Não para fazer uma teoria melhor em função da postura prática que agora sé impõe. Lutar contra os processos de sujeição e de expropriação desenvolvidos pela medicina mental exige uma consciência precisa sobre o modo de ação dessas novas tecnologias "brandas". Portanto, montar, remontar e desmontar suas articulações concretas. Talvez se tenha dito suficientemente que o saber psiquiátrico não era sério e que os procedimentos da psicanálise eram monótonos. Em todo caso, seus agentes não são nem ingênuos gozadores nem imprudentes usurpadores. Trata-se de técnicos sofisticados cuja jurisdição se estende e cujo poder aumenta. Hoje em dia aquele que tomar os atalhos de sua própria impaciência correrá o risco de ser simplório.

Quanto ao tom de uma tal crítica frente aos agentes que propagam essas técnicas, cada um interpretará como quiser; recuso, porém, a da condenação moral e a posição de quem dá lições. O Slogan moderno do psiquiatra-policial, tomado ao pé da letra, é um non-sens. Se o psiquiatra e o policial tivessem exatamente a mesma função .e fizessem exatamente o mesmo trabalho por que teriam se desdobrando? Os primeiros alienistas eram jovens de boa vontade, ambiciosos, frequentemente pobres e com ideias "sociais". No fim de seu curso de medicina, eles "subiam para Paris" (frequentemente vinham do sul). Iam para a Salpêtrière, frequentavam assiduamente o seminário do mestre da época, Esquirol. Eram seduzidos por esse ensino que aliava o aparente rigor de uma ciência, as grandes aspirações da filantropia e os prestígios da parisianidade. Nisto não havia nada de maquiavélico nem de desonroso. Veja-se atualmente.

Para os promotores de todos os gostos eis a história de um deles, Ulysse Trélat. Trélat possui o perfil de carreira dos melhores alienistas: antigo interno da Salpêtrière, discípulo de Esquirol, depois de muito tempo como médico-chefe de serviço na Sapêtrière, aposenta-se tranquilamente. Foi também Carbonário desde a fundação da Charbonnerie francesa em 1821, deputado da Loja central, membro titular da Suprema Loja de Paris. Até 1848 está em todas as conspirações, organiza a Charbonnierie nos departamentos, vai para as barricadas em 1830, opõe-se em seguida ao restabelecimento da realeza, vai várias vezes a julgamento. Diante da Câmara dos Pares, profere estas altivas palavras que lhe custarão três anos de prisão: "Justiça, que necessidade tendes dela? (...) A tirania possui suas baionetas, seus juízes e vossas golas bordadas; a liberdade tem por si a verdade. Condenai-me mas não me julgareis". Ele não cumprirá sua pena, mas permanecerá em prisão domiciliar em Troyes por causa de sua má saúde e após a intervenção de seu melhor amigo, François Leuret.

Pois Trélat é ao mesmo tempo amigo íntimo de um dos quatro sargentos de La Rochelle e de Leuret que representa a versão mais violenta do paternalismo dos alienistas. A revolução de 1848 recompensa sua oposição intransigente, tornando-o ministro, porém, ele escreve em 1861 La folie lucide para prevenir as famílias contra os alienados, tanto mais perigosos quanto mais inofensivos pareçam: "Não somente nada se fez para melhorar a raça humana, como também ela fica deixada em toda liberdade,

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digamos mais, ignorância e cegueira, deteriorando-se, sem nunca fornecer-lhe qualquer aviso (...). Ao sangue que pode transmitir-se generoso e puro, não deixemos misturar o veneno".

2

Não escolhi essa imagem cândida para ilustrar a eterna oposição entre intenções e atos (aliás, em que direção se deveria entendê-la?). Mas ela pode ajudar a delimitar a dimensão política que este livro comporta.

O registro da análise pouco tem a ver com as intenções subjetivas dos atores. Não pretende, também, denunciar programas maquiavélicos de política-ficção. Não existe Estado-Leviatã nem uma abstrata dominação de classe que imporia sua lei do alto através de aparelhos ideológicos ou outros, servidos por cínicos agentes. A rigor, poder-se-ia dizer que a medicina mental tornou-se, bem tarde e apenas em parte, uma peça de um aparelho centralizado de poder. Mas é porque ela já se tinha constituído como tecnologia específica, tinha criado caminhos privilegiados, investido sobre lugares estratégicos. Antes de sua inscrição no organograma oficial da distribuição do poder, e mesmo depois, ela conquista seu lugar ao sol por meio de iniciativas arrojadas e de tentativas empíricas. Práticas dispersas caminham lentamente, encontram-se e se enfrentam antes de se cristalizarem e adquirirem um caráter sistemático.

Essa ordem de coerência é difícil de definir. Não obstante, é ela que caracteriza a eficácia política própria da medicina mental. Digamos ― e o objeto da análise será mostrá-lo ― que ela prove um novo tipo de gestão técnica dos antagonismos sociais. A psiquiatria é efetivamente uma ciência política já que ela respondeu a um problema de governo. Ela permitiu administrar a loucura. Mas deslocou o impacto diretamente político do problema para o qual propunha solução, transformando-o em questão "puramente" técnica. Se existe repressão, esta se deve ao seguinte: com a medicina, a loucura passou a ser "administrável".

E, portanto essa constituição de um administrável (poderíamos dizer com mais ousadia de um "administrativável") que se trata de revelar: administrar a loucura no sentido de reduzir ativamente toda a sua realidade às condições de sua gestão em um quadro técnico. Uma longa alternância de posições, com múltiplos episódios, entre o médico e o administrador, domina toda a história da medicina mental. Os sucessivos equilíbrios de seu intercâmbio dão conteúdo concreto ao que se deve entender por estratégia de controle social: não como imposição brutal de um aparelho coercitivo, mas, instauração de dispositivos práticos por responsáveis bem intencionados. Os outros parceiros, um pouco afastados ― sobretudo o juiz e o policial ― fiscalizam a negociação. Eles também passaram a ser marginais: na medida em que a administração e a medicina liguem sua máquina, quando funciona bem, eles são desapossados. Quanto ao louco, nem se fala. Nesta lógica, efetivamente, não há grande coisa a dizer dele e ainda menos a deixá-lo dizer.

2 U. Trélat, La folie lucide, Paris, 1861, p. 320.

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Por que essa cumplicidade entre a medicina e a administração? Por que a privação correlativa da justiça e da polícia de um papel de intervenção direta?

Sobre o pano de fundo da sociedade contratual instaurada pela Revolução Francesa, o louco é uma nódoa. lnsensato, ele não é sujeito de direito; irresponsável, não pode ser objeto de sanções; incapaz de trabalhar ou de "servir", não entra no circuito regulado das trocas, essa "livre" circulação de mercadorias e de homens à qual a nova legalidade burguesa serve de matriz. Núcleo de desordem, ele deve, mais do que nunca, ser reprimido, porém, segundo um outro sistema de punições do que o ordenado pelos códigos para aqueles que voluntariamente transgrediram as leis. Ilha de irracionalidade, ele deve ser administrado, porém, segundo normas diferentes das que designam o lugar às pessoas "normais" e as sujeitam a tarefas em uma sociedade racional.

Estas contradições introduziram uma prática de perícia no centro do funcionamento das sociedades modernas. Uma avaliação fundada na competência técnica vai impor, a certos grupos "marginais", um estatuto que terá valor legal embora seja constituído a partir de critérios técnico-científicos e não de prescrições jurídicas inscritas em códigos. Um processo de corrosão do direito por um saber (ou por um pseudo-saber, mas essa não é a questão), a subversão progressiva do legalismo por atividades de perícia, constituem uma das grandes tendências que, desde o advento da sociedade burguesa, opera os processos de tomada de decisão que engajam o destino social dos homens. Do contrato à tutelarização.

A medicina mental foi um operador essencial dessa transformação. Como veremos, a máquina foi constituída a partir da questão da loucura. Produziu, como grande vitória de sua idade do ouro, o estatuto médico-jurídico-administrativo do alienado, sancionado pela lei de 30 de junho de 1838. Inícios modestos e transparentes: esta primeira etapa atingiu alguns milhares de loucos devidamente rotulados, confiados a algumas centenas de profissionais estritamente especializados. Tutelarização brutal, completa, implicando na minoridade e no total isolamento. Entretanto, a ruptura entre o normal e o patológico sobre a qual repousava uma tal operação deve ser lida nos dois sentidos: os "loucos" eram completamente loucos e os "normais" completamente normais.

Certamente não era o ideal. Não obstante, começa-se talvez a suspeitar que não houve apenas vantagem em quebrar essa dicotomia rígida. Atualmente esta atividade de perícia generalizada está em vias de se tornar a verdadeira magistratura de nossos tempos. Um crescente número de decisões em setores cada vez mais numerosos da vida social e pessoal são tomadas a partir de avaliações técnico-científicas produzidas por peritos competentes. Sem dúvida não é possível estabelecer limite para esse progresso. Mas seria o mínimo ousar perguntar "quem te fez rei?" a quem te faz sujeito-submisso.

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CAPÍTULO I O DESAFIO DA LOUCURA

No período revolucionário havia alguns milhares de loucos. Ainda em 1834 Ferrus enumera apenas dez mil. Isto é bem pouco se comparado aos dez milhões de indigentes, trezentos mil

1 mendigos, uns cem mil vagabundos, cento e trinta mil menores

abandonados, etc.2 Contudo, a maior parte desses "problemas sociais" agudos

permanece sem solução legal, pelo menos até as primeiras "leis sociais" da Terceira República. A lei de 30 de junho de 1838, sobre os alienados, é a primeira grande medida legislativa que reconhece um direito à assistência e à atenção para uma categoria de indigentes ou de doentes. É a primeira a instaurar um dispositivo completo de ajuda com a invenção de um novo espaço, o asilo, a criação de um primeiro corpo de médicos-funcionários, a constituição de um "saber especial", etc. Por que a legislação relativa aos alienados antecipa em cinquenta anos e ultrapassa em sistematização todas as outras medidas de assistência? Que não se venha falar da necessidade de "recuperar uma força de trabalho", no momento em que centenas de milhares de indigentes, menos improdutivos, não têm ocupação, Que não se venha alegar o patético da loucura, quando as famílias ociosas nas tardes de domingo dão gorjeta aos guardas de Bicêtre para assistir às contorções dos furiosos.

A loucura colocou um desafio à sociedade nascida nas convulsões da queda do Antigo Regime. E a sociedade o aceitou porque estava em jogo a credibilidade de seus princípios e do equilíbrio de seus poderes. Negócios burgueses e sérios de ordem, de justiça, de administração, de finanças, de disciplina, de polícia e de governo, nos quais o patos da loucura seria propriamente deslocado. Os debates em que o louco era objeto só colocaram em cena os "responsáveis" encarregados de controlá-lo. Começaremos, portanto, a analisar essa divisão de responsabilidades e a interrogar as responsabilidades desta partilha no momento em que ela se institui na crise revolucionária

*.

O Estado, a Justiça e a Família

Antes da Revolução, o poder judiciário e o poder executivo compartilhavam as responsabilidades da sequestração dos insanos. Seus procedimentos complexos e mal

1 G. Ferrus, Des alienes, Paris, 1834. 2 Cf. H. Derouin, A. Gary, F. Worms, Trailé thérique et pratique de l'Assistence publique, Paris, 1914. Cf., também, do ministro do Interior de Gasperin, Rapport au Roi sur les hôpitaux, les hospices et les services de bienfáisance, Paris, 1837. * Não nos mantivemos, na exposição, numa ordem estritamente cronológica. Cf. em anexo o quadro da sucessão dos principais acontecimentos, quer os estritamente médicos quer os relacionados com a problemática geral da assistência..

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unificados provocavam conflitos de competência, mas esses não colocavam em questão a base de direito das condutas repressivas.

As "ordens de justiça" consistiam em embargos ou sentenças de sequestração, em geral de duração ilimitada, dadas por uma das numerosas jurisdições competentes (parlamentos, tribunais de bailiado

**, prebostados

***, tribunal do Châtelet em Paris, etc).

Às vezes o enclausuramento era decidido por uma "ordem particular" de magistrado, porém, essa medida, suspeita de comportar riscos de arbítrio, tendeu a cair em desuso no fim do Antigo Regime. O procedimento judiciário mais elaborado era o da interdição que será adotado tal qual pelo código napoleônico. Após demanda apresentada pela família (excepcionalmente pelo procurador do rei), o juiz proferia o embargo após recolher os testemunhos, fazer comparecer os protagonistas e interrogar o louco. A pessoa reconhecida insana podia, então (mas isto não era obrigatório), ser sequestrada em uma casa de detenção e seus bens eram colocados sob tutela

3. A complexidade desse

processo, seu custo elevado, a publicidade dos debates, tão temidos para a "honra da família", tornavam tal medida relativamente pouco solicitada. Adicionando as interdições e os outros modos de intervenção por via judiciária, pode-se avaliar que a proporção das sequestrações por causa de loucura que, no fim do Antigo Regime, provinham das "ordens de justiça"

4, situava-se por volta de um quarto.

Os outros enclausuramentos, isto é, a maioria dentre eles, eram efetuados a partir de uma "ordem do rei" ou lettre de chachet. Essa ordem era outorgada por intermédio do ministro da Casa real, por iniciativa da autoridade pública ou por iniciativa das famílias. Deste forma, quando um insano perturbava a ordem pública, os serviços da chefia de polícia de Paris e os intendentes, nas províncias, podiam solicitar uma ordem de internação ao rei. Eles podiam até apoderar-se do louco, mas a sequestrarão provisória só passava a ser legal após a obtenção da lettre de cachet.

Uma "ordem do rei'' podia também ser obtida por solicitação da família. Esta justificava, numa "petição", as razões pelas quais solicitava o enclausuramento do insano (ou mais geralmente do perturbador da ordem familiar: pródigo, libertino, devasso, etc). Se o rei, por intermédio do ministro de sua Casa, fornecia a ordem, o insano passava a ser um desses "prisioneiros de família" que representavam aproximadamente nove décimos das lettres de cachet sob o Antigo Regime

5.

O poder real desempenhava, assim, um duplo papel. Munido das prerrogativas do executivo ele intervinha para salvaguardar a ordem pública contra as perturbações causadas pelos insanos. Porém, frequentemente, ele era intermediário e um regulador no exercício do poder correcional das famílias. É ele quem legitima a demanda familiar e aprecia em última instância seus motivos. Algumas vezes a ordem não é dada apesar das

** N. do T. De bailio, antigo magistrado provincial. *** N. do T.: Antigos tribunais de justiça militar. 3 Cf. P. Sérieux, M. Trenel, "L´internement des alienes par voie judiciaire sous l´Ancien Regime", Revue historique de droit français et étranger, 4ª série, 10º ano, julho-setembro, 1931; P. Sérieux, "L´internement par ordre de justice des alienes et correctionnaires sous l´Ancien Regime", ibid., 4ª série, 11º ano, julho-setembro, 1932. 4 Cf. Ph. Chatelin, Contributions à l'étude des alienes et anormaux au XVII. et XVIII. siècle, Paris, 1923. 5 Cf. P. Sérieux, L. Libert, Les lettres de cachet, "prisionniers de famille" et "placements volontaires", Gand, 1912.

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"humildes súplicas" da família. Neste caso os agentes do rei podem solicitar um inquérito suplementar ou aconselham a família a mover um processo de interdição

6.

Certamente, um tal sistema não é simples. Mas também não é arbitrário. Expressa um equilíbrio, não isento de tensões, entre três poderes ― real, judiciário, familiar ― que se amparam mutuamente com diversas possibilidades de negociações, compromissos e permutações. Observa-se, assim, uma evolução significativa de suas relações durante as décadas que precedem a. queda do Antigo Regime.

Em sua luta contra os Parlamentos a autoridade real tenta, inicialmente, impor sua hegemonia, ao mesmo tempo em relação à justiça e às congregações religiosas suspeitas de negociar, algumas vezes diretamente com as famílias, a sequestração de seus insanos e outros susceptíveis de correção. Assim, em 1757, o ministro da Casa real quer suprimir as "ordens particulares dos magistrados" suspeitos de arbítrio. Em 1767, o poder real cria um novo espaço de detenção, os depósitos de mendigos, submetidos à autoridade direta dos intendentes, sem controle judiciário, apesar da viva oposição dos parlamentos. Os depósitos de mendigos herdam uma parte das funções dos Hospitais Gerais, cada vez mais saturados de velhos pobres e adquirem o hábito de acolher um número crescente de alienados

7. Em 1765, o poder real impõe um regulamento

draconiano às numerosas casas de "caridade" (de fato detenções) dos Irmãos de São João de Deus, que dirigem, entre outras, Charenton. O artigo primeiro estipula "que não se receba quem quer que seja, sob nenhum pretexto, nas casas de detenção da Caridade a não ser aqueles conduzidos por ordem do Rei ou da Justiça

8. Ponto de equilíbrio,

portanto, onde poder executivo e poder judiciário controlam paritariamente a legitimidade das sequestrações.

Entretanto, a partir de 1770, a oposição às lettres de cachet se reforça. Malesherbes, um dos principais artífices da campanha, quando ministro da Casa Real em 1775, cria os tribunais de família para dar uma caução judiciária ao maior número possível de enclausuramentos. No fim do regime, o conde de Bréteuil, ministro da Casa Real, edita em 1784, numa circular dirigida aos intendentes, diretrizes precisas para a promulgação das lettres de cachet e distingue, com mais cuidado, as categorias às quais eles podem se aplicar: "No que concerne às pessoas cuja detenção seja pedida por causa de alienação do espírito, a justiça e a prudência exigem que proponhais as ordens somente quando houver uma interdição pronunciada por julgamento; a menos que as famílias estejam absolutamente impossibilitadas de pagar os gastos do processo que deve preceder à interdição. Mas, neste caso, será necessário que a demência seja notória e constatada por esclarecimentos bem exatos"

9.

A nova orientação, desde antes da queda do Antigo Regime é, portanto, fazer passar o máximo de práticas de reclusão, da jurisdição real para a autoridade judiciária,

6 Cf. A. Joly, Du sorl des alienes en Basse Normandie avant 1789, Caén, 1869. 7 Cf. Ch. Paultre, De la répression de la mendicité et du vagabondage sous l'Ancien Regime, Paris, 1906. 8 Citado in P. Sérieux, L. libert, "Le regime des alienes en France au XVIII. siècle", Annales médico-psychologiques, 1914, II, p. 97. 9 Circular Bréteuil, março de 1784, citada in F. Funck-Brentano, Les lettres de cachet à Paris, Paris, 1903, p. XLIV.

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tendência que prepara a tentativa de fazer garantir, pela interdição, todas as reclusões de alienados. Mas essas garantias, recentemente exigidas, dependem da possibilidade de engajar um processo de interdição e, portanto, da fortuna das famílias. Aos demais, aplicam-se as regras resumidas por Des Essarts em seu Dictionnaire universel de police: "Aqueles que têm a infelicidade de serem atingidos por essas doenças devem ser guardados por seus parentes, ou às suas custas, de maneira que a tranquilidade pública não seja perturbada por esses desafortunados. Quando as famílias não têm condições para pagar uma pensão, os oficiais encarregados da manutenção da ordem devem conduzir essas espécies de doentes para os hospitais ou outros lugares destinados pelo governo para recebê-los. Os parentes podem ser processados a fim de reparar os danos ocasionados pelas pessoas loucas, furiosas ou dementes; mas só se pode mover contra eles uma ação civil".

10

Existe, portanto, uma oscilação entre a legitimação das reclusões pelo poder real e pelo poder judiciário, e passagem da preponderância do primeiro para o segundo. Mas de certa forma eles permanecem complementares pelo esboço de uma divisão do trabalho: garantias da justiça para os ricos e repressão pelos agentes do executivo para os pobres. E, sobretudo, sob estas mudanças o espírito geral da legislação da loucura no Antigo Regime continua a fazer da loucura, na medida do possível, uma "questão de família". E só negativamente, na ausência, na carência ou impotência da família ou, positivamente, sob sua demanda, é que uma instância exterior intervém. Mais precisamente, três casos podem se apresentar.

Primeiro caso, a família assume totalmente a tarefa de manutenção e de neutralização do louco. Este caso faz parte, avant la lettre, da categoria dos "alienados intratáveis" que os psiquiatras construirão quando um sistema unificado de assistência for instaurado na primeira metade do século XIX. Por enquanto, trata-se de um anacronismo: esses "alienados intratáveis" são de fato, normalmente assistidos ou pelo menos tolerados por seus grupos primários de participação, família e circuitos de vizinhança; Eles escapam melhor a um "encargo" pelo exterior quanto mais rica for a família e/ou mais integrada, quanto maior número de redes de clientelas e de linhas de conivência existirem em torno dela. Donde esta implicação decisiva: pretendendo propor uma política global e "democrática" de assistência; sob a forma de um serviço público, a medicina mental, de fato, visará prioritariamente categorias particulares da população: os indigentes mais do que os ricos, os errantes mais do que os integrados, os urbanos mais do que os rurais.

Segundo caso: a família não quer ou não pode assumir essa função de vigilância porque a presença do louco lhe coloca problemas demasiado difíceis em função de seus meios de controle (caso dos "furiosos", por exemplo), ou então porque as iniciativas irresponsáveis do insano ameaçam a salvaguarda do patrimônio familiar. Ela tem, então,

10 Des Essarts, Dictionnaire universal de police, Paris, 1789, t. IV, artigo "Folie, fureur, démence".

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a escolha entre duas possibilidades que são de fato dois modos de delegação de seu poder mas, através de procedimentos dentro dos quais ela conserva a iniciativa. Pode dirigir-se à autoridade judiciária para obter uma ordem de internação, e mesmo solicitar a interdição. Esse procedimento leva a uma situação clara de tutelarização do louco pela qual a gestão de seus bens cabe à família. Essa solução era escolhida, de preferência, pelas famílias mais ricas e era até necessária quando o objetivo consistia em obter uma tutelarização civil do louco sem sequestração, pois a interdição não impunha a internação fora da família. Segunda possibilidade: a "ordem do rei" permitia obter a sequestração através de um processo mais sumário. Em sua solicitação, a família propunha em geral o lugar da internação, em função sobretudo do total da pensão que ela consentia em pagar. Através desse procedimento a família se poupava da "desonra" (e dos custos) de um processo de interdição. Mas a lettre de cachet representava o contrário de um ato arbitrário já que era requisitado pelos parentes, juízes naturais dos interesses familiares.

Terceiro caso: o louco escapava completamente ao controle familiar, ou porque não possuísse família, ou porque fosse surpreendido a "vagar" fora do seu âmbito de vigilância. Neste caso a iniciativa da repressão incumbia às autoridades responsáveis pela manutenção da ordem pública. Estas (em Paris e nas grandes cidades, os serviços de polícia; em outros lugares, os dos intendentes) podiam solicitar uma "ordem do rei". O mais frequente é que interviessem primeiro e, em seguida, solicitassem a ordem que legalizava sua intervenção. Isto, em princípio. De fato, a legalização dessas internações compulsórias precoces, através do recurso direto à autoridade real não parece ter sido a norma. Por exemplo, Piersin, "guarda dos loucos" em Bicêtre, em uma carta à Comissão das Administrações Civis e dos Tribunais que inquiria (10 frimário, ano III) sobre as modalidades de internações dos insanos detidos desde o Antigo Regime, constata somente vinte e três, em duzentos e sete, admitidos por "ordem do tirano" (e somente cinco por "decreto do ex-parlamento")

11. A maior parte dos outros insanos era internada

por iniciativa dos administradores da polícia ou dos estabelecimentos hospitalares. Mas não existe aí nada de escandaloso: sob o Antigo Regime, frequentemente, os agentes do executivo assumiam, através de delegação implícita, as prerrogativas do poder real. O importante é a legitimidade que essas intervenções extraem da antiga síntese entre o administrativo e o judiciário. Isso está claro em Des Essarts: "Deve-se distinguir, no chefe de polícia, o magistrado e o administrador. O primeiro é homem da lei, o segundo é homem do governo"

12. Antes que a revolução denuncie, nesta justaposição, o escândalo

do despotismo, ela funda em direito as práticas de reclusão dos loucos no Antigo Regime.

13

11 Cf. A. Tuetey, C Assislence publique à Paris pendant la Révolution, documents inédits. t. III, Paris, 1898, p. 368. 12 Des Essarts, Dictionnaire de police, op. cit. 13 Des Essarts faz, em 1789, uma autocrítica bastante significativa: "Ao reler, no mês de abril de 1789, esse artigo redigido em 1784, devo acrescentar que a nação almeja que essa parte da administração seja destruída, ou pelo menos modificada, de forma que a liberdade dos cidadãos seja assegurada da maneira mais inviolável".

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Por essa razão não deve surpreender que as mesmas disposições valham para os loucos e para as outras categorias de pessoas susceptíveis de correição: pródigos, libertinos, e mesmo espiões ou jansenistas. As "ordens" são tomadas contra o desvio familiar ou contra ameaças à segurança pública: crimes de Estado, indisciplina militar ou religiosa, questões de polícia. Os problemas referentes aos insanos representam apenas uma sub-espécie dessa categoria de delitos que provocam a intervenção do poder executivo. Os diferentes tipos de desvio são, portanto, menos confundidos do que reunidos sobre a base da repressão comum que eles exigem.

Da mesma forma não deve surpreender que esses diferentes tipos de pessoas susceptíveis de correição se encontrem reunidas nos mesmos estabelecimentos já que "ordens" comuns aí as colocam. O que deve causar surpresa é o fato de descobrir neles o esboço de uma diferenciação dos regimes internos, ao passo que as medidas legais de admissão dos reclusos proporcionavam-lhes um mesmo estatuto. Não obstante, a indiferenciação do grande enclausuramento nunca foi absoluta. Desde 1660, ou seja, quatro anos apenas após a fundação do Hospital Geral, o parlamento de Paris decidia que um pavilhão especial estaria reservado à "reclusão dos loucos e das loucas"

14. A

partir do início do século XVIII, distinções cada vez mais apuradas começam a operar no seio da categoria geral de insano

15. Mas tais diferenciações dizem respeito às exigências

de gestão e de disciplina interna e não à preocupação de realizar diagnósticos e tratamentos.

Se, portanto, uma percepção de tipo médico não é estritamente incompatível com o sistema de repressão da loucura sob o Antigo Regime, as finalidades e o equilíbrio interno deste último não dependem de seu grau de medicalização. Os objetivos que ele procura e as tensões que o atravessam são de ordem social, jurídica e política. Quando a pedra de toque do edifício for derrubada é que a coexistência dos elementos que o constituem passará a ser antagônica. A referência médica terá, então, um sentido inteiramente diverso: de subordinada passará a ser preponderante já que constituirá o eixo do novo equilíbrio.

Esquematicamente pode-se identificar três focos de ruptura mantidos pela coerência da antiga síntese:

1. A dualidade das instâncias responsáveis pela sequestração. O executivo e o judiciário compartilham, portanto, o direito de baixar "ordens" legitimando o enclausuramento. Tratando-se também da loucura, a concorrência que os opõe, no final do Antigo Regime, origina inúmeros conflitos. Mas o antogonismo não explode em contradição de princípio enquanto permanece, no cume da pirâmide dos poderes, a instância de soberania capaz de arbitrar em último recurso. "Toda justiça provém do rei", mesmo que ele delegue suas prerrogativas a seus "oficiais". Assim, em seu Traité des

14 Decreto citado in J. C. Simon, L´Assistence aux malades mentaux, histoire et problèmes modernes, tese de medicina, Paris, 1964. 15 Cf. M. Foucault, Histoire de la folie, Paris, 1961, 111, cap. II, "Le nouveau partage".

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seig-neuries (1613) Loiseau coloca no primeiro plano dos quatro direitos soberanos da realeza (os regulia) o de "ser a última alçada na justiça" (os três outros são: "fazer leis", "criar oficiais", "arbitrar a paz e a guerra".

16 Por exemplo, quando, em 1757, o ministro

da Casa Real quer abolir as "ordens particulares dos magistrados" que permitiam às famílias negociar, diretamente com os juízes, a reclusão de um de seus membros, sem controle do executivo, justifica assim a medida: "Sua Majestade julga que a liberdade é um bem demasiado precioso para que algum dos seus súditos possa dela ser privado extra-judiciariamente sem que, ela própria, tenha ponderado as causas".

17 O imperium

real pode, portanto, em uma última instância, "ponderar as causas" de uma derrogação do direito que, por isso, deixa de ser ilegal. Os parlamentos protestam ou mesmo não tomam conhecimento. Mas enquanto subsiste o princípio da monarquia absoluta o conflito ainda não é uma contradição aberta.

2. A dualidade dos gêneros de estabelecimento onde são enclausurados os insanos e as pessoas passíveis de correições. Além dos hospitais de tratamento como o Hôtel-Dieu pode-se identificar, no final do Antigo Regime, quatro ou cinco tipos de estabelecimentos que acolhem os insanos: fundações religiosas (as numerosas casas de "caridade" dos Irmãos de São João de Deus e também os conventos dos Cordeliers, dos Bons-fils, dos Irmãos das Escolas cristãs, da casa de São Lázaro fundada por São Vicente de Paula etc, e mais uma dúzia de conventos de mulheres recebendo ao mesmo tempo pessoas passíveis de correição, loucas e "moças arrependidas"); prisões do Estado como a Bastilha ou a fortaleza de Hâ; Hospitais Gerais, sobretudo Bicêtre e a Salpêtrière, onde são enclausurados mais da metade dos loucos do reino; enfim, pensões mantidas por leigos, em Paris existiam mais ou menos vinte, dentre as quais a mais famosa foi a pensão Belhome onde Pinel travou suas primeiras batalhas.

18

Contudo existe um princípio de clivagem entre essas fundações que não está, de forma alguma, em seu caráter mais ou menos médico, mas sim em sua direção ou em seu controle mais ou menos público ou privado. Certas prisões do Estado, os Hospitais Gerais e os depósitos de mendigos são fundações reais, colocadas sob o controle direto dos agentes reais e administradas por um pessoal leigo. As outras instituições são geralmente fundadas e geridas por congregações religiosas que aceitam com má vontade as diversas modalidades de controle pelos parlamentos e pelos serviços dos intendentes ou do chefe de polícia. Essa dualidade institucional autoriza diferentes políticas, particularmente no que diz respeito à iniciativa deixada às famílias. Já nesse momento o poder do Estado tenta homogeneizar tanto os processos de admissão quanto de vigilância. Mas as disparidades subsistirão por muito tempo, provocando conflitos cujas implicações modernas se manifestarão nas discussões da lei de 1838.

16 Cf. P. Goubert, L´Ancien Regime, t. II, Les pouvoirs, Paris, 1973. 17 Citado in F. Funck-Brentano, op. cit., p. XXXIII. 18 Cf. por exemplo, P. Sérieux, L. Libert, "Le regime des alienes en France au XVIII siècle", loc. clt.; "Un asile de súreté sous L´Ancien Regime", Annales de la Société médicale de Gand, junho de 1911; A. Bigorre, L´admlssion du maladè mental dans les

établissements de soin de 1789 à 1838, tese de medicina, Dijon, 1967.

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3. A dualidade das "superfícies de emergência" da loucura. O louco é um pertubador por quem o escândalo se manifesta, seja no espaço familiar, seja no social. Isto origina duas políticas bem diferentes a respeito da loucura. Esta coloca um problema de ordem pública, por causa da "divagação" dos insanos, em um no man's land social. Um vaguear perigoso que suscita uma intervenção, na maioria das vezes violenta, em nome da segurança das pessoas, da salvaguarda dos bens da decência, etc. Mas coloca também um problema de repressão privada, cuja eficácia poderia economizar' custosos recursos face ao fato consumado da desordem. Donde a questão da instauração de controles familiares e do controle dos controles familiares. A forma mais insatisfatória da relação entre essas duas superfícies é aquela pela qual a família, incapaz de fazer à sua própria polícia, toma a iniciativa de delegar seu poder a uma instância exterior, administrativa ou judiciária. A medicalização do problema introduzirá a uma dialética muito mais sutil entre o que é prerrogativa dos parentes e o que cabe ao poder do Estado na tarefa de conservar e de reproduzir a ordem sócio-familiar. O conceito de prevenção como verá mais tarde, será portador dessa esperança médica que consiste em intervir antes que seja necessária a repressão pela força pública e antes que a própria família se despoje de seu poder, e isto simultaneamente. Essa mesma concepção da prevenção desqualificará também a intervenção da justiça, cujo formalismo exige que somente se sancione fatos consumados. Dessa forma, todo o sistema passará da repressão de atos cometidos para a antecipação de atos a serem cometidos, e a reparação de uma desordem objetiva para o encargo de estruturas subjetivas em vias de alteração. O resultado desse longo processo suporia a subordinação dos três poderes, jurídico, administrativo e familiar à instância médica. Antes desta última, esses poderes compartilhavam a responsabilidade de neutralizar a loucura. Mas é neste ponto que o processo tem início, no momento em que esse quarto poder se insere em cunha na falha aberta pelo desequilíbrio político dos outros três.

A Soberania, o Contrato e a Tutela

Assim, o dispositivo de controle da loucura, no século XVIII, só parece tosco se o medirmos com o metro do monopólio médico. Mas ele é frágil porque reparte as responsabilidades entre aparelhos concorrentes por meio de procedimentos complexos e desarmônicos. Essa síntese barroca irá, portanto, se desfazer no momento em que a instância de arbitragem, o poder real, for qualificada de arbitrária. Trata-se aqui, de um ponto fundamental: inicialmente não são tanto as práticas que serão levadas a mudar mas seu princípio de legitimação; e a impossibilidade de legitimar as antigas práticas enquanto tais suscitará as novas ― ou imporá antigos procedimentos, que até então só tiveram um papel subalterno, no centro do sistema ― assegurando dessa forma, por meio de um longo desvio, o triunfo da medicalização da loucura.

Apressado em abolir as lettres de cachet, Luís XVI dirige-se aos Estados Gerais em 23 de junho de 1789 nos seguintes termos: "O Rei, desejoso de assegurar a liberdade pessoal de todos os cidadãos, de maneira sólida e durável, convida os Estados Gerais a

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procurar e proporcionar-lhe os meios mais convenientes para conciliar a abolição das ordens conhecidas pelo nome de lettres de cachet, com a manutenção da segurança pública e com as precauções necessárias, seja para poupar em certos casos a honra das famílias, seja para reprimir com presteza inícios de sedição, seja para defender o Estado contra os efeitos de uma coalisão criminosa com as potências estrangeiras".

19

O problema é, portanto, efetivamente colocado: não, suprimir o conjunto das práticas repressivas cobertas pelo poder real com sua legitimidade, mas contornar a suspeita de arbítrio que, a partir daí, recai sobre as formas empregadas. Além disso, o artigo 1º da lei que decreta a supressão das lettres de cachet permanece bem restritivo quanto às categorias de "vítimas do despotismo" que libera pura e simplesmente: "No espaço de seis semanas após a publicação do presente decreto, todas as pessoas detidas nas fortalezas religiosas, casas de detenção, de polícia ou quaisquer outras prisões, através das lettres de cachet ou por ordem dos agentes do poder executivo, a menos que sejam legalmente condenadas ou sentenciadas de aprisionamento, que tenha havido queixa contra elas na justiça por crimes passíveis de pena de mortificação, ou que seus pais, mãe, avós, ou outros parentes reunidos tenham solicitado e obtido sua detenção de acordo com solicitações e relatos apoiados em fatos graves, ou enfim que elas sejam enclausuradas por loucura, serão colocadas em liberdade".

19bis Portanto, só são

diretamente invalidadas as sequestrações por negócios de Estado, ou seja, pouquíssimos casos. Por exemplo, em mil lettres de cachet promulgadas em Paris em 1751, Funck-Brentano encontra apenas um ou dois a terem classificados sob esta rubrica.

No essencial as "ordens do rei" fundavam em direito intervenções cuja necessidade permanece urgente aos olhos dos contemporâneos, mesmo após terem perdido sua justificação legal. Se a abolição das lettres de cachet libera algumas inocentes "vítimas do arbítrio", ela coloca sobretudo o difícil problema de justificar em direito a manutenção do maior número de sequestrações.

Assim, logo após o decreto de 27 de março de 1790, o prefeito de Paris, Bailly, escreve à Assembléia Constituinte solicitando, pelo menos, prorrogar sua aplicação: "Não seria perigoso, neste momento, devolver à Cidade dos homens, sem refletir, aqueles que dela foram afastados, sem legalidade é verdade, mas quase sempre com justos motivos?".

20 A falta de pressa em liberar os loucos é igualmente nítida. Em janeiro

de 1790, havia em Charenton, segundo um comunicado do prior à Assembléia Nacional, noventa e dois detidos por "ordem do rei", rotulados de "imbecis", "loucos", "loucos periódicos", "loucos perigosos", "loucos maus", "loucos furiosos", "em demência", "alienados". Somente um fora detido por "má conduta" e um outro por "causa desconhecida". O nonagésimo terceiro é o marquês de Sade a propósito de quem o prior havia anteriormente "suplicado à Assembléia livrá-lo de semelhante pessoa". Em novembro de 1790 permanecem oitenta e nove detidos. Sade foi liberado desde 27 de

19 Citado por F. Furtck-Brentano, op. cit., p. XLV. 19bis Ibid. Salvo menção em contrário, as passagens sublinhadas são do autor. 20 Citado in A. Tuetey, l´Assistence publique à Paris pendant la Révolution, op. cit., I, p. 200.

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março. Uma comissão de inspeção vai a Charenton após uma queixa do Comitê das lettres de cachet junto à municipalidade de Paris relatando internações arbitrárias. Presidida por um médico, a comissão só assinala um caso suspeito, para o qual solicita liberação: o que havia sido internado sob a rubrica "causa desconhecida". Tratava-se, de fato, de um cidadão italiano suspeito de cumplicidade num caso de falsificação de moeda e detido sem julgamento havia quatro anos. Assim, em Charenton, em noventa e três sujeitos internados no pavilhão dos alienados, por ordem do rei só serão liberados pelo decreto de março de 1790, Sade (e não por muito tempo), um suspeito de trapaça e talvez dois outros detidos, a menos que não tenham morrido entre-mentes.

21

Trata-se, pois, de um problema quantitativamente sem importância, mesmo se se objetar que Charenton era particularmente bem administrado. Mas é problema crucial, na medida em que questiona os fundamentos da nova ordem social. Na sua solução está em jogo a possibilidade de passar de um equilíbrio de poderes que repousa, em última instância, sobre a soberania real, para uma sociedade contratual. Por esta razão a questão da loucura se revestiu de importância capital no fim do século XVIII e no início do século XIX. Ela se situou no centro de uma contradição insolúvel para a nova ordem jurídica que se instaurava. Aparentemente, a loucura não deveria constituir um grande problema social já que vários outros problemas eram mais importantes e mais urgentes: a mendicância, a vagabundagem, o pauperismo, os menores abandonados, os doentes indigentes, etc, constituem, como já dissemos, populações infinitamente mais numerosas e em grande parte, igualmente perigosas. Contudo, os alienados "beneficiaram-se" do primeiro encargo sistemático, reconhecido como direito e sancionado por uma lei que antecipa toda a "legislação social" que virá cinquenta anos depois. Não se compreenderia esta originalidade se não a situássemos na linha divisória de uma problemática fundamental para a sociedade burguesa nascente. Sobre a questão da loucura, por intermédio de sua medicalização, inventou-se um novo estatuto de tutela essencial para o funcionamento de uma sociedade contratual.

Uma revolução política não faz tabula rasa do passado. A restruturação do poder de Estado que sancionará a nova ordem burguesa esboçou-se progressivamente a partir da Idade Média quando, por sob as relações de fidelidade entre súdito e soberano, instaurou-se, pouco a pouco, uma estrutura administrativa centralizada obedecendo a critérios de racionalidade técnica. Setores de atividade cada vez mais preponderantes ― extração das riquezas pelo imposto, circulação dos bens pelo comércio, coleta dos conhecimentos por meio dos grandes inquéritos estimulados pelo poder central, etc. ― passam, dessa forma, a ganhar autonomia. Em última análise, o poder de Estado constituiria apenas o garante desses intercâmbios estabelecidos por contatos. Mito liberal da separação completa do social e do econômico que asseguraria o livre jogo das leis do mercado.

A essa autonomia das leis que regem a troca das riquezas e a produção de bens, corresponde a racionalização dos mecanismos que presidem à circulação dos homens, à organização técnica de suas atividades, ao controle de suas iniciativas. Mito de uma 21 Documentos in A. Tuetey, op. cit., t. III, p. 229-238.

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perfeita territorialização dos cidadãos que é paralelo ao de uma perfeita circulação dos bens e que o Estado Napoleônico tentará incarnar instaurando uma vasta estrutura administrativa subdividida em tantos setores quantos forem as atividades sociais do sujeito, de tal sorte que em sua existência de cidadão ele se veja destinado a quadros geográficos encaixados uns nos outros, administrado por responsáveis dependentes do poder central, vigiado permanentemente na realização da totalidade de seus deveres sociais.

A ficção jurídico-administrativa sobre a qual repousa todo este edifício, como sabemos, é o contrato. Cada cidadão é sujeito e soberano, ou seja, é, ao mesmo tempo, assujeitado a cada um de seus deveres cuja não obediência é sancionada pelo aparelho de Estado e, sujeito que participa das atividades regida pela lei e retira seus direitos dessas práticas, cuja realização define sua liberdade. Assim, um perfeito cidadão jamais encontrará a autoridade do Estado sob a sua forma repressiva. Assumindo seus deveres, ele desenvolve sua própria soberania e reforça a do Estado. Dizer que se trata aí de uma simples "ideologia" pela qual a sociedade burguesa nascente tenta justificar em direito seu funcionamento de fato ― ficção das liberdades formais, realidade da exploração econômica ― é deixar escapar o essencial.

Em primeiro lugar, se há ficção não se trata de uma qualquer mas sim, daquela que abre um espaço autônomo necessário ao livre desenvolvimento de uma economia de mercado. Intervindo no quadro dos contratos para garanti-los, o Estado, de fato, garante a propriedade privada e a circulação das riquezas e dos bens, fundamento de uma economia mercantil.

Em segundo lugar, administrando os indivíduos em quadros objetivos cuja intercambialidade se opõe à fixação territorial, fundamento das antigas relações de soberania e de clientela, o Estado organiza uma "livre" circulação dos homens paralela à "livre" circulação dos bens e necessária para alimentá-la. Mas como essa liberdade é regida pelas leis, o Estado pode assumir ao mesmo tempo suas tarefas de vigilância e de polícia na base de um esquadrinha-mento racional gerenciável tecnicamente pelo menor custo.

Em terceiro lugar, o "não-intervencionismo" dos teóricos liberais adquire, assim; o seu sentido preciso que não é de forma alguma o da atenuação do poder coercitivo do aparelho de Estado, mas sim, o da delimitação precisa das situações em que ele pode e deve intervir, e isso tanto mais impiedosamente porquanto assim elimina qualquer arbítrio e pronuncia o direito. O Estado deve respeitar a liberdade dos cidadãos, seus contratos fundados sobre a propriedade privada, a livre realização das trocas sob as leis do mercado. Inversamente, ele pode e deve sancionar qualquer transgressão dessa ordem jurídico-econômica. Sua função de conservação social e de repressão política

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realiza-se fazendo respeitar a estrutura contratual da sociedade. Esta última não é a ordem do direito no seio do qual consciências soberanas fazem a experiência de sua intercambialidade. Ela é a matriz jurídica através da qual se exerce a violência do Estado e se impõe a exploração econômica.

Não obstante, apesar de seu caráter formal, nem todos os súditos da república entram sem problema nesse quadro contratual. A verdadeira especificidade do louco é a de resistir a essa redução, a tal ponto que, para inscrevê-lo na nova ordem social, será preciso impor-lhe um estatuto diferente e complementar àquele, contratual, que rege a totalidade dos cidadãos.

O Criminoso, a Criança, o Mendigo, o Proletário e o Louco

Em relação a essa concepção do direito, cinco grupos de indivíduos colocam problemas especiais.

1. Inicialmente os criminosos. Michel Foucault mostrou de que maneira a transformação do direito de punir, no início do século XIX, efetuou-se em torno do nascimento da prisão.

22 A novidade da forma-prisão não deve, contudo, dissimular o fato

de que as inovações jurídicas se inscrevem em uma evolução dos fundamentos do direito que precede à época revolucionária. Essa evolução colocou a responsabilidade pessoal em primeiro plano

23, O ato criminoso é o resultado de um cálculo pelo qual um indivíduo

escolhe seu interesse pessoal contra os direitos de outrem. Cálculo errôneo se o criminoso se deixar prender, mas cálculo racional pelo qual é totalmente responsável. A sanção que o atinge está, portanto, fundada em direito, seu objeto é a transgressão de contratos que a lei tem por função garantir. A abolição das lettres de cachet não coloca, portanto, nenhum problema de princípio para transferir do executivo ao judiciário a parte de repressão criminal que o primeiro ainda exercia. Dessa forma, sob ò Antigo Regime, uma "ordem do rei" poupava, às vezes, o escândalo de um processo, permitindo enclausurar sem julgamento um indivíduo (geralmente de boa família) cujo caso, de fato, seria da alçada dos tribunais. Assumindo-os por si sós, doravante, estes nada mais fazem do que retomar a plenitude de suas prerrogativas.

Os novos problemas colocados pela reestruturação do direito de punir se devem às dificuldades em instaurar uma tecnologia eficaz da sanção e não em inventar-lhe um fundamento legal. Deter, vigiar, corrigir, reeducar o criminoso. E mesmo medicalizá-lo, aspiração que aparece muito cedo como revela Cabanis: "Não ignorais que a natureza de várias espécies de prisões as aproxima muito da dos hospitais: tais são, por exemplo, as casas ditas de correição, onde as disposições viciosas da juventude são submetidas a tratamento regular: tais serão, um dia, as prisões para os indivíduos condenados a uma reclusão mais ou menos longa pelos tribunais criminais. De fato, essas prisões poderão

22 M. Foucault, Surveiller et punir', Paris, 1975. 23 Cf. C. B. Beccária, Traité des délits et dês peines, trad. francesa, Lausanne, 1766.

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tornar-se facilmente verdadeiras enfermarias do crime: nelas se tratará essa espécie de doença, com a mesma segurança de método e com a mesma esperança de sucesso que as outras perturbações do espírito.

24

Texto extraordinário para uma época em que a medicina mental não tinha ainda nascido oficialmente. Contudo, não deve induzir-nos em erro. A lógica que conduz à medicalização do criminosos é diferente, em seu princípio, daquela que vai impor a medicalização do louco. Se o direito de punir pretende humanizar-se, pedagogizar-se e mesmo medicalizar-se, trata-se de variantes em relação a um direito de corrigir, perfeitamente fundado a partir de seus axiomas iniciais: o equilíbrio entre os delitos e as sanções inscreve-se em um sistema racional porque o criminoso é responsável por seus atos. O louco coloca um problema diferente. Nenhum vínculo racional une diretamente a transgressão que ele realiza com a repressão a que é submetido. Não poderia ser sancionado mas sim, deverá ser tratado. Sem dúvida o tratamento será, frequentemente, uma espécie de sanção. Mas ainda que seja sempre assim com o louco, doravante a repressão só pode progredir disfarçada. Ela deve ser justificada pela racionalização terapêutica. É o diagnóstico médico que se supõe impô-la, ou seja, que lhe fornece a condição de possibilidade. Diferença essencial: em um sistema contratual, a repressão do louco deverá construir para si um fundamento médico, ao passo que a repressão do criminoso possui imediatamente um fundamento jurídico. Somente muito mais tarde (após a medicalização ter inicialmente sido imposta sob a forma de um estatuto do alienado diferente do criminoso e, posteriormente, ter começado a se generalizar, patologizando os setores mais diversos do comportamento, ou seja, por volta do fim do século XIX) é que a medicalização do criminoso, por sua vez, mudará de sentido. Ela não será mais uma intervenção a posteriori para ajudar a melhor aplicar a sanção, mas sim uma tentativa de fundar a legitimidade da punição a partir de uma avaliação psicopatológica da responsabilidade do criminoso (cf. infra, cap. IV). Por enquanto, são os legalistas que bloqueiam a via da descoberta da nova solução. Pretendendo dar ao aparelho judiciário a prepoderância (cf. abaixo os debates sobre a necessidade de uma interdição preliminar à sequestração dos insanos), travam de fato um combate de retaguarda e serão progressivamente ultrapassados pelo desenvolvimento das novas práticas legitimadas do ponto de vista médico, a respeito da loucura. A analogia entre as instituições (prisão-asilo) e as tecnologias de disciplinarização (reeducação penal - tratamento moral) não deve, portanto, dissimular o antagonismo de princípio entre o direito de punir e o dever de dar assistência. A solução do problema social da loucura não pode ser encontrada no prolongamento daquela que vai prevalecer para a criminalidade, muito ao contrário. Não que as homologias entre as soluções sejam acidentais. Mas elas ganharão sentido, como veremos, após ter sido constituída uma legitimidade médica diferente da justiça. Aí então, a psiquiatria poderá tocar a sua partitura no grande concerto da vigilância e da disciplinarização que remodela, na época, todas as instituições. Mas antes, deverá conquistar seu espaço de intervenção ao lado de e, sob certos aspectos, contra o espaço da justiça.

24 "Opinião de Cabanis, deputado de Paris, sobre a necessidade de reunir num único sistema comum a legislação das prisões e a da assistência pública", Corps législatifs, Coriseil des Cinq-Cents, 7 messidor, ano VI, p.6.

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2. A segunda categoria para a qual a abolição das lettres de cachet colocou problemas específicos é a que era da alçada de uma justiça das famílias. Durante a discussão da lei de 16-27 de março de 1790 na Assembléia Constituinte, o representante Pétion declara: "Não forçareis as famílias a receber em seu seio os celerados que poderiam nelas semear a desordem"

25. A cumplicidade direta entre poder executivo-

poder das famílias, pela qual a autoridade real colaborava com a autoridade familiar se

rompe, já que doravante ela é identificada ao "arbítrio" real. Será necessário reconstituir um equilíbrio entre poder judiciário-poder familiar, cuja fórmula será dificilmente encontrada. A instituição (ou melhor a reanimação), durante o período revolucionário, dos tribunais de família, que deixavam aos parentes as maiores prerrogativas com possibilidade de apelo diante da jurisdição ordinária, fracassará. O século XIX tentará corroer progressivamente os privilégios familiares até à lei de 1889, sobre a perda do pátrio poder, pela qual o juiz pode confiscar uma parte do poder familiar tradicional.

Reencontraremos essa evolução mais tarde na medida em que, a partir de um certo limiar de medicalização, a patologização de certos conflitos familiares alarga a brecha aberta no direito das famílias: o médico-perito arbitra decisões que, anteriormente, eram da alçada da tutela familiar. Essa tutela se desfaz e o juiz, por um lado (juiz de tutelas e juiz de menores), o médico, por outro (sobretudo psiquiatras e psicanalistas) herdam algumas das suas prerrogativas

26. Mas essa intervenção do médico

na intimidade familiar, via real da psiquiatrização futura, supõe uma maturidade da tecnologia psiquiátrica que só surgirá no final do século XIX, realizando-se plenamente com a psicanálise. A primeira psiquiatria não enfrentou o problema da infância a não ser a partir de Esqui rol, e por um rodeio ― o atraso do desenvolvimento (a idiotia) ― e não a partir da loucura. Dentre as numerosas razões teóricas e práticas para isto existe a seguinte: a controle da criança não coloca questões jurídicas agudas pelo fato dela já estar sob tutela (familiar) ao passo que o louco é como uma criança (cf. infra), porém, ele ainda não encontrou seu tutor legal. Que será o médico.

3. Os delitos de vagabundagem e de mendicância. Sob o Antigo Regime, a neutralização das massas vagabundas era uma prerrogativa do poder soberano, guardião da ordem pública. Para fundar o Hospital Geral ou condenar os vagabundos às galeras, basta uma ordem real (o problema diante do qual a realeza fracassou consistiu na sua impotência em fazer aplicar tais medidas sempre reiteradas e todas as vezes desviadas

27.

Mas também aqui a imposição de uma estrutura contratual generalizada revela uma contradição coberta pelo imperium real. Se doravante qualquer punição só deve sancionar as transgressões responsáveis, ela só pode aplicar-se a um sujeito que não é obrigado a cometer o delito pelo qual é susceptível de ser condenado. Se a miséria, que

25 Citado por P. Sérieux, L. Libert, Les lettres de cachet, "prisionniers de famille" et "placements volontaires", op. clt., p. 51. 26 Cf. J. Donzelot, La police des familles, em vias de publicação. 27 Cf. Ch. Paultre, De la répression de la mendícité el du vagabondage sous l'Ancien Regime, op. cit.

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equivale a um destino, lança o vagabundo nas estradas e obriga o miserável sem trabalho a mendigar, de que direito poder-se-á sancioná-lo?

O Comitê de Mendicância da Assembléia Constituinte empreende seus trabalhos a fim de aliviar os pobres, sem dúvida, mas também a fim de estabalecer essa reciprocidade entre o direito de punir e a possibilidade de não transgredir. Somente o direito à assistência e ao trabalho pode impor deveres aos miseráveis e fazer de seus atos associais, delitos: "Lá onde existe uma classe de homens sem subsistência existe uma violação dós direitos da humanidade; aí se rompe o equilíbrio social"

28. Cabanis

formula claramente essa contradição de uma repressão da miséria que atingiria os inocentes se o mínimo de possibilidades objetivas de escapar à sanção não lhes fosse outorgado: "A mendicância forma o primeiro grau, não digo de delito, mas se se pode expressar assim, de disposição para os atos que perturbam a ordem social: é o primeiro termo a ser considerado na questão da repressão que, por sua vez, deve ser encarada como o primeiro objeto da legislação penal. Mas a repressão da mendicância encontra-se tão estreitamente ligada à organização da assistência pública que, sem dúvida, é impossível separá-las. Pois bem! Como se poderia dizer, efetivamente, que a mendicância é um delito se o poder público não estabeleceu, em nome da nação, ajudas suficientes para prevenir a miséria ou para diminuí-la; se não garantiu trabalho a todo indivíduo que não o tem ou que diz não tê-lo?

29

Dentro dessa lógica a Assembléia Constituinte proclama que ela "coloca no nível dos mais sagrados deveres da nação a assistência aos pobres em todas as idades e em todas as circunstâncias da vida". Com isso, ela segue as recomendações do Comitê de Mendicância, cuja argumentação legalista e um tanto embaraçada merece atenção: "A igualdade dos direitos é o princípio fundamental de vossa Constituição. Será que esse princípio comum a todos os cidadãos pode cessar de ser aplicável àqueles que, não tendo senão misérias e necessidades, têm o direito de reclamar assistência à sociedade, assistência que ela própria tem o dever de só dar dentro do estrito necessário?" A Convenção vai mais longe quando inscreve, na declaração dos direitos do homem de 1793, artigo 23: "A subsistência é uma dívida sagrada da sociedade; cabe à lei determinar sua extensão e sua aplicação".

30

Nobres princípios mas que permanecerão letra morta: as assembléias revolucionárias não terão tempo, nem meios, para garantir sua realização. Não obstante, a exigência é tão imperiosa que o Estado Napoleônico retoma-a em novos moldes. A administração imperial apaga a dimensão generosa de um direito generalizado dos pobres à assistência pública, para acentuar aquilo que pode justificar o direito de reprimi-los. Assim, a lei de 5 de julho de 1808, sobre a "extirpação da mendicância" reúne significativamente duas medidas: interdição da mendicância em todo território do Império e estabelecimento, em cada Departamento, de um depósito de mendigos no qual "os indigentes encontrarão asilo, subsistência, trabalho, estabelecimentos paternais

28 Citado in F. Dreyfus, Un philanthrope d'aulrefois, La Rochefoucault Liancourt, Paris, 1903, p. 173. 29 "Opinião de Cabanis sobre a necessidade de reunir num único sistema...", loc. cit., p. 3. 30 Cf. J. Imbert, Ledroit hospitalier de la Rêvolution et de l'Empire, op. clt., p. 26 ss. Para uma análise mais aprofundada das relações entre a nova política da assistência, o direito ao trabalho e o estado real do mercado de trabalho, cf. infra, cap. III.

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onde a beneficência atenuará a conduta através da meiguice, manterá a disciplina através da afeição e conduzirá ao trabalho despertando um sentimento de vergonha salutar. Em prêmio a esses esforços, o governo acredita que, dentro de alguns anos, a França oferecerá a solução, tão inutilmente procurada até agora, para o problema da extinção da mendicância num grande Estado".

Mesma distância entre os princípios e sua realização. Ainda em 1890, serão pronunciadas 32.822 condenações por vagabundagem, embora só existam trinta e três depósitos de mendigos em toda a França

31. Ainda mais: o código penal (art. 274) prevê

penas de três a seis meses de prisão para os mendigos detidos em lugares onde exista um depósito de mendigos mas prevê também penas reduzida à metade (art. 275) nos lugares onde não exista nenhum estabelecimento de assistência. Aqui, o direito burguês encontra-se no limite da violação de sua própria legalidade: dispensa a cobertura jurídica mínima da injustiça estabelecendo uma reciprocidade puramente formal entre a letra da lei e a existência, no papel, de uma assistência que permitiria, aos miseráveis de boa vontade, escapar a seus rigores. Se, entretanto, essa ficção juridicamente capenga funciona, é porque é reiterada por uma concepção da "filantropia" de que voltaremos a tratar adiante. O direito à assistência perde seu rigor quando se pode atribuir aos defeitos do indivíduo (ociosidade, devassidão, imprevidência...) a responsabilidade por uma situação na qual ele é quase obrigado a infringir a lei. Os miseráveis podem ser.socorridos, porém sem obrigação, e em função de seus méritos ou do caráter lastimável de seu desamparo. Eles também podem ser punidos ou pelo menos submetidos (é a "moralização das massas") em função de seus defeitos ou do perigo de desordem que representam. É a prudência política que vai dosar repressão e beneficência: não colocar em questão, pelo reconhecimento de um direito dos pobres, os fundamentos de uma sociedade liberal, mas intervir antes que uma miséria demasiada não permita outra alternativa às vítimas do sistema, do que a da revolta. O apelo à beneficência pública, menos caprichosa do que a caridade, porém, menos obrigatória do que a justiça, sistematizada numa verdadeira política para os miseráveis é, assim, a contrapartida necessária do juridicismo de uma sociedade de classes, pelo menos para os espíritos mais "esclarecidos".

4. Poder-se-ia acrescentar toda a classe dos proletários a esses primeiros grupos que são problema no que diz respeito a legalidade contratual. Em uma estrutura social fundada sobre a propriedade privada e a "liberdade" das trocas econômicas, somente os proprietários são, no sentido pleno da palavra, cidadãos, é o que o sufrágio censitário transcreve no nível político. Felizmente existe uma escapatória. Para o trabalhador sem recursos (o "pobre válido", mas provido de ocupação), a ficção do contrato ainda pode funcionar, já que existe um "mercado de trabalho" no qual sua força pode ser "vendida". Existe, portanto, troca, reciprocidade regulada, contrato (ou pseudo-contrato) entre explorador e explorado. O proletário é ainda um sujeito de direito porque se pertence. Ele não é escravo nem alienus (alienado). Proprietário de si próprio ele pode adquirir. 31 F. Dreyfus, "Le vagabondage et la mendicité dans les campagnes", in Miseres sociales el études historiques, Paris, 1901.

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Sendo o salário uma propriedade privada, ele permite a acumulação e o acesso à posse dos bens: é uma questão de coragem, de economia, de moralidade.

Assim, se o esquema ideal de igualdade das pessoas for desmentido pelos fatos, pode-se ainda atribuí-lo à responsabilidade do sujeito que tem alguma coisa a ver com sua miséria, mesmo se não é penalmente culpado. Cai-se, então, em sã consciência, na política da assistência, que esmaece as manifestações extremas do desamparo sem ter com isso que realizar uma obrigação formal. De fato, essa construção é perfeita demais. Ela corresponde à época eufórica do início do liberalismo, quando seus teóricos ainda acreditavam que bastava liberar as condições de acesso ao trabalho para resolver, em seu princípio, a "questão social". A descoberta da necessidade do pauperismo como condição estrutural do funcionamento do capitalismo, substituindo a condenação moral da mendicância, vai levar a transformar a problemática da assistência especializada em política de sujeição generalizada das classes populares. Esta será a segunda etapa do processo, para a qual, a medicina mental, representando, então, o cume tecnologizado da filantropia, será um parceiro essencial (cf. cap. 111). Mas ainda estamos, aqui, no momento da constituição dessa problemática, quando o legalismo está, ao mesmo tempo, perfeitamente seguro da legitimidade de seu próprio fundamento, e convencido de que comporta os princípios universalizáveis a partir dos quais pode-se edificar e defender uma ordem social raciona.

32

5. A assistência à loucura inscreve-se nessa lógica contratual mas leva-a a um ponto de ruptura. Exige, assim, a invenção de uma solução mais rigorosa.

No final do século XVIII a loucura é objeto de urna dupla percepção contraditória. O louco é a figura generalizada da associabilidade. Ele não transgride uma lei precisa como o criminoso, pode violá-las todas. O louco reativa a imagem do nômade que vagueia numa espécie de no maris land social e ameaça todas as regras que presidem à organização da sociedade. "Divagação" assimilada à dos animais ferozes até por uma assembléia tão "progressista" como a Constituinte que, pela lei de 16-24 de agosto de 1790, "confia à vigilância dos corpos municipais os acontecimentos deploráveis que possam ser ocasionados pelos insanos ou furioso deixados em liberdade e por animais daninhos e ferozes.

33 O código penal, artigo 479 ainda justapõe "o efeito da divagação

dos loucos ou furiosos, ou de animais nocivos ou ferozes, ou da velocidade ou má direção ou da carga excessiva dos carros, cavalos, animais de tração, de carga ou de montaria". A necessidade absoluta de reprimir a loucura é inscrita nessa natureza que rompeu todos os controles e empurra o louco para o lado da animalidade e mesmo da

32 Para ser completo seria preciso acrescentar que a ficção do contrato só funciona no quadro da soberania nacional e, unicamente, para os cidadãos do Estado-nação. A política internacional é o exercício autorizado da violência, pólo antagônico do contrato. Da mesma forma, fora das fronteiras, os liberais não têm nenhum escrúpulo em ser protecionistas quando isso é exigido por seus interesses. A política colonial inventou, por contra própria, um e mesmo vários estatutos de tutela para os autóctones. Estes, normalmente, pagam a vantagem de se colocarem, sob a autoridade tutelar da potência civilizadora, com o preço de sua própria autonomia. 33 Legislaiton sur les sliénés et les enfanis assistes, op. cit., 1, p. 3.

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cegueira destrutiva das coisas, que, como um carro ladeira abaixo, só obedece à lei da gravidade.

Mas essas imagens evocadoras de medos fantasmáticos ou reais o são também de irresponsabilidade. Ao mesmo tempo que perigoso, o louco é também lastimável. É um miserável, um "desafortunado" que perdeu o atributo mais precioso do homem, a razão. Ele representa, assim, um pólo de imoderação sem reciprocidade ao qual a racionalidade da sanção não pode se fixar. Não se pertencendo mais a si mesmo, não é susceptível de participar do processo de produção e de aquisição. A lógica contratual, que justifica plenamente a repressão do criminoso é que inventa um compromisso aceitável a fim de sancionar a mendicância e a vagabundagem esbarra, aqui, com uma especificidade insuperável.

Diante da ambivalência de horror e piedade suscitada pelo louco, a medicina mental dará a cartada da benevolência. Com isso controlará o pólo do perigo. Já que o louco, ao mesmo tempo perigoso e inocente, escapa às categorizações jurídicas de uma sociedade contratual, a filantropia irá encarregar-se dele. Mas o humanismo filantrópico nada mais é do que o auxiliar do juridicismo, é o seu último recurso nas situações-limites onde a universalidade formal do direito de punir encontra-se num impasse. A compaixão foi, portanto, à atitude constante do movimento alienista a respeito dos insanos que "longe de serem culpados que se deva punir, são doentes cujo estado penoso merece todas as considerações dadas à humanidade sofredora e cuja razão perdida devemos procurar os meios mais simples de restabelecer.

34 Somente após Morel e Magnan,

quando as noções de degenerescência e de constituição colocaram em primeiro plano uma "perversidade" do doente mental, é que a psiquiatria se orientará para uma espécie de racismo anti-louco. Até por volta de 1860, o que prevalece é uma forma de paternalismo. Nele, a benevolência é iluminada pelo saber e se desenvolve numa relação institucional de dominação.

Porém, nenhuma contradição entre compaixão e ciência, nem entre benevolência e autoridade. A piedade não é um simples movimento do coração. Para Jean-Jacques Rousseau, ela "nos conduz sem reflexão ao socorro de quem vemos sofrer". Mas essa espontaneidade não se deve ao instinto cego "é ela que, no estado de natureza, faz função de lei, de costumes e de virtude com a vantagem de que ninguém é tentado a desobedecer à sua doce voz".

35 A piedade indica o lugar da lei lá onde a lei não pode se

manifestar sob sua forma própria. Ela é o analogon da lei, sua metáfora, seu suplemento.

36 Suplemento e suplente. A compaixão para com os "desafortunados", que

está na base da atitude filantrópica, supre em relação a eles, as lacunas da lei. Ela instaura, com aqueles que escapam ao legalismo, uma nova relação que não é mais de reciprocidade formal e sim de subordinação regulada. Uma relação de tutela. Tal é a matriz de toda política de assistência. Relação de dominação, sem dúvida, mas que participa ainda da utopia de uma troca racional geral e a mimetiza, mesmo quando um

34 Ph. Pinel, Traité médico-philosophique sur l'aliénation mentale, 2ª ed., Paris, 1809, p. 202. 35 J. ― J. Rousseau, Discours sur l'origine et les fondemerits de l'inegalité parmi les hommes. 1754, ed. Pléiade, III, p. 156. 36 Cf. o comentário de J. Derrida, De la grammatologie, Paris, 1967, p. 247 ss.

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dos pólos da reciprocidade está ausente. Também a violência que aí se exerce participa da boa consciência da razão: ela se desenrola para o bem dos submissos. Os contemporâneos, pelo menos os mais lúcidos, perceberam essa função de substitutivo da tutelarização em relação à contratualização. Muito significativamente, foi num relatório feito ao Conselho de Paris em 6 de agosto de 1791, sobre a situação dos alienados da Salpêtrière, que Cabanis sublinhou, pelo menos implicitamente, a concepção de uma minoria social compartilhada pelas crianças e os loucos:

"Quando os homens atingem a idade em que suas forças são suficientes para a sua existência, quis a natureza que eles não fossem mais submetidos a qualquer autoridade coercitiva. A sociedade deve respeitar e cumprir esta sábia disposição na medida em que os homens gozem de suas faculdades racionais, ou seja, na medida em que não estejam alteradas a ponto de comprometerem a segurança e a tranquilidade de outrem ou de expô-los, eles mesmos, a verdadeiros perigos. Ninguém tem o direito, nem mesmo a sociedade inteira, de atentar, no que quer que seja, contra a sua independência".

37

O indivíduo é sujeito autônomo enquanto for capaz de se dedicar a intercâmbios racionais. Ou então sua incapacidade de entrar num sistema de reciprocidade o isenta de responsabilidade e ele deve ser assistido. O fundamento contratual do liberalismo impõe a aproximação entre o louco e a criança

38, a grande analogia pedagógica da medicina

mental, no seio da qual, toda sua história vai se desenvolver. Familiarismo ou tutelarização por um mandato público, não haverá, para ela, outra alternativa.

O Juiz, o Administrador, o Pai e o Médico

Essa transferência, para a medicina, das prerrogativas essenciais do encargo da loucura está, contudo, bem longe de constituir uma evidência, por ocasião da queda do Antigo Regime. Pois o estado embrionário de desenvolvimento das práticas médicas em matéria de loucura tornava-as, desde logo, inaptas a assumir, de um dia para o outro, um tal mandato. A solução médica, ao contrário, aparecerá como um último recurso após terem fracassado as instâncias mais tradicionais na divisão das antigas atribuições do executivo real. Constata-se assim, até os últimos anos do século XVIII, e mesmo um pouco mais tarde, um florescimento de tentativas divergentes.

1. Uma primeira tendência ― que já inspirava a circular de Bréteuil em 1784 ― consistiria em fazer da instância judiciária a garantia exclusiva da totalidade do processo de neutralização da loucura. Se fosse realizável, esse modelo apresentaria uma dupla vantagem: ofereceria a solução mais próxima daquela já aplicada ao problema da criminalidade; poderia retomar o processo de interdição já praticamente maduro sob o Antigo Regime. Às custas de um remanejamento mínimo do aparelho judiciário poder-

37 Relatório citado na íntegra in A. Tuetey, L'Assistence publique à Paris sous la Révolution, op. cit., p. 489-506. 38 Como inspira a analogia entre o pobre e a criança, cf. infra, cap. III.

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se-ia, portanto, legalizar o encargo da loucura. É esta solução que o Código Civil, artigo 489, parece ratificar: "O maior de idade que se encontra num estado habitual de imbecilidade, demência ou furor deve ser interditado, mesmo quando esse estado apresentar intervalos lúcidos". Portanto, tutela jurídica, cujo estatuto é perfeitamente definido pelo código e cujas garantias são perfeitamente asseguradas pelo aparelho da justiça.

De fato, até a votação da lei de 1838 a interdição constituiu o único procedimento verdadeiramente legal de sequestração dos loucos. Além disso, a necessidade de recorrer à interdição foi perpetuamente lembrada, em particular por diferentes ministros da justiça. Mas sempre de um modo que prova que ela era constantemente traída: "Observei, nos relatórios analíticos dos prefeitos que, muitos, por sua própria autoridade, detiveram insanos para serem, sob sua ordem, enclausurados em casa de detenção. Acredito dever, para prevenir esses abusos, lembrar-vos os princípios e as regras nessa matéria. Segundo a lei de 22 de julho de 1791, conforme, nesse ponto, aos antigos regulamentos os parentes dos insanos devem velar por eles, impedi-los de vagar e atentar para que não provoquem nenhuma desordem. A autoridade municipal, segundo a mesma lei, deve evitar os inconvenientes que resultem da negligência com a qual os particulares cumpram esses deveres. Os furiosos devem ser colocados em lugar seguro, mas só podem ser detidos em virtude de um julgamento que a família deve provocar. O Código Civil indica, com muitos detalhes, a maneira pela qual se deve proceder para a interdição dos indivíduos prostados num estado de demência ou de furor. Somente aos tribunais ele confia o dever de constatar seu estado. As leis que determinaram as consequências dessa triste enfermidade cuidaram para que não se suponha arbitrariamente que um indivíduo dela sofre; elas quiseram que sua situação fosse estabelecida por meio de provas positivas com formas precisas e rigorosas. (...) Eu vos conjuro a vos conformardes a esses princípios. Deveis velar com cuidado para que as autoridades que vos são subordinadas nunca deles se afastem..."

39

Como vemos, na prática, frequentemente a autoridade administrativa se substituía à autoridade judiciária. Os insanos colocam problemas de ordem pública que devem ser resolvidos com urgência. A intervenção administrativa ultrapassa a lentidão do aparelho judiciário. Além disso ela é mais "democrática", no sentido de que não exige nenhum gasto nem iniciativa das famílias. Enfim, ela é mais segura, visto que leva necessariamente à sequestração, ao passo que uma interdição sem internação permite deixar um indivíduo perigoso sob o controle aleatório da família. Não somente a interdição é de aplicação difícil, como também não sela completamente o destino social do louco, como o lembrará uma carta do ministro da justiça em 1º de novembro de 1821: "O ministério público deve provocar a interdição de um louco furioso, porém, como essa medida não ocasiona de pleno direito a sequestração daquele que dela é objeto, a autoridade administrativa pode e deve mantê-lo em prisão enquanto for reclamado por sua família e sua liberdade oferecer perigo".

40

39 Circular de Portalis de 30 de frutidor, ano XII, citada in G. Bollotte, "Les malades mentaux de 1789 à 1838 dans Pouvre de P. Sérieux", Information psychiatrique, 1968, n? 10, p. 916. 40 Citado in M. Gillet, Analyse des circulaires, instructions et décisions émanéesdu ministère de la justice, Paris, 1892, nº 1559.

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Em suma, o procedimento legal imediatamente disponível não é aplicável à totalidade dos problemas colocados pelos insanos. Assim, Georget, constata em 1825: "Quase todos os alienados são enclausurados sem serem interditados em virtude da lei de 24 de agosto de 1790"

41. Em 1835, ano médio, apenas vinte e nove sentenças de

interdição foram pronunciadas em toda a França42

.

2. Visto que é a autoridade administrativa que assume a maior parte das tarefas práticas da sequestração dos insanos, por que não legalizar suas iniciativas? Esta segunda tendência pôde encontrar um suporte legislativo na lei de 16-24 de agosto de 1790, que confia à vigilância dos corpos municipais "o cuidado de evitar ou de remediar os acontecimentos perturbadores que possam ser ocasionados pelos insanos ou furiosos deixados em liberdade"

43. Essas funções administrativas, inicialmente reservadas às

autoridades locais, serão logo confiscadas pelo poder central, ministério do interior e prefeitos. Os representantes diretos do poder do Estado falam, naturalmente, em nome dessa orientação. O anteprojeto de lei de 1838 fora concebido, dessa forma, pelo ministro do interior como meio de legalizar essas prerrogativas da administração: "Já segundo a lei de 16-24 de agosto de 1790 esta atribuição lhe pertence em princípio. (...) Trata-se essencialmente de medidas de segurança pública de ordem pública. Aliás, as medidas de precaução relativas à sequestração exigem ordinariamente uma extrema presteza, prudência e discreção, que dificilmente se conciliam com a lentidão e a solenidade das formas judiciárias, mas são fáceis e naturais às operações administrativas".

44

A fim de fornecer à repressão da loucura uma eficácia máxima basta, portanto, legalizar a internação administrativa. Mas em sua resposta ao ministro, um deputado da oposição denuncia, nessa orientação, o retorno do "princípio (...) das lettres de cachet, aquela, entre todas as leis, que nos tempos calamitosos suspenderam por algum tempo a liberdade individual"

45. O artigo 7 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão

proclama que "nenhum homem pode ser preso ou detido a não ser nos casos determinados pela lei e segundo as formas por ela prescritas" ― ou seja, quando cometeu um delito. A loucura não é um delito. Ela coloca a justiça frente a uma aporia insuperável mas impede também que o executivo se ocupe da loucura salvo para cair no arbitrário das "ordens do rei".

3. Haveria ainda um terceiro caminho: remeter à família a responsabilidade do controle dos insanos. Esta tendência pode também reivindicar um apoio legislativo, a lei de 19-21 de julho de 1791, que prevê penas correcionais para aqueles que permitiam seus loucos "divagar", disposição esta retomada nos artigos 475 e 479 do Código Penal. Fazendo-se, dos parentes, os responsáveis pelo comportamento do insano, juridicamente, mantém-se este sob a dependência familiar, salvo se a família, ao solicitar

41 E. J. Georget, Considérations médico-légales sur la liberte morale, Paris, 1825, p. 38. 42 G. Delangre, De la condition des alienes en droit romain et en droit françats, Paris, 1876. 43 Législation sur les alienes et les enfahts assistes, op. cit., t. I, p. 2. 44 Législation sur les alienes et les enfants assistes, op. cit., t. II. 45 Ibid., II, p. 72.

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a interdição, legalizar essa situação de minoridade do alienado. Da tutela familiar à tutela jurídica, o alienado encontraria, sem transformar a lei, o fundamento de um estatuto que o isenta de responsabilidade.

Mas essa solução familiar não é mais universalizável do que as duas precedentes. Como vimos, a família só pode controlar uma das superfícies de emergência da loucura, a patologia doméstica. Ela se encontra desmunida de fato quando a loucura acede ao cenário social. Mas só pode ser desapossada de direito através de uma interdição, frequentemente inaplicável e que, nos melhores casos, não pode abranger todos os problemas práticos colocados pela loucura. Em suma, as "ordens do rei" fazem falta no momento histórico em que mais se sente sua necessidade: quando a passagem de uma civilização rural para uma civilização urbana multiplica o número de famílias dissociadas e de indivíduos isolados, quando o começo da industrialização exige que se organize uma circulação regulada dos homens, incompatível com o nomadismo sem limite da loucura.

Dessa forma, o insano escapa cada vez mais ao controle das famílias para vagar em novos terrenos baldios da sociedade. A justiça embaraçada pelo peso de seus procedimentos não pode suprir as carências familiares. A autoridade administrativa cuida do mais urgente, mas suas intervenções, outrora cobertas pela soberania real, contradizem os novos fundamentos jurídicos da ordem social. Uma dupla exigência começa a se impor. Inicialmente, suprir as insuficiências do controle familiar e do que se poderia chamar ordem da vizinhança. A loucura, sobretudo, quando está associada à indigência (e cada vez mais é o que ocorre) coloca problemas de ordem pública, cuja repressão deve ser reorganizada de modo homogêneo a nível nacional. Em segundo lugar, suprir as insuficiências do juridicismo, escapando ao arbítrio. Entre os sistemas de fidelidades tradicionais e o dos contratos livremente engajados (com sua contrapartida de sanções justamente merecidas) a instituição de um novo modo de dependência abre caminho. Visa a categoria dos desviantes irresponsáveis por oposição à dos criminosos que merecem punição. Não obstante, essa nova relação que será tão indispensável ao funcionamento de uma sociedade contratual quanto a sanção jurídica não pode, como esta, apoiar-se num aparelho já comprovado. A nova relação de tutelarização vai se definir e se modificar através da instauração e da transformação do dispositivo da medicina mental.

Repetimos, com o risco de ser acusado de legalismo e mesmo de idealismo jurídico: quando se trata de compreender a genealogia da instância de controle psiquiátrico, o essencial não se deve ao que se passou ao nível dos problemas concretos colocados pelos loucos. É evidente que a própria loucura é inoportuna. Improdutiva, perigosa, indecente, inquietante, o vazio institucional e legislativo diante do qual ela se encontra no final do século XVIII ― ou a disparidade das leis e a diversidade das instituições que a concernem indiretamente ― levantam cotidianamente inúmeras questões: qual autoridade se encarregará de deter o perturbador? Em que estabelecimento ela o colocará? Qual administração se encarregará dos gastos de sua manutenção se for indigente? Qual responsável se encarregará de prolongar ou interromper sua sequestração, etc? Porém, nesses períodos conturbados, improvisam-se

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facilmente soluções ou expedientes que com frequência têm quantitativamente mais importância do que a de selar o destino de 5 a 10 mil indivíduos. Além do mais, a incidência econômica da improdutividade de alguns milhares de pessoas é quase nula num momento em que vagabundos e mendigos, menos inaptos ao trabalho, contam-se aos milhares.

Ao contrário, se existe um princípio com o qual uma sociedade liberal não pode jogar é o respeito ao fundamento jurídico que a institui e justifica sua injustiça ― a não ser violando-o no sentido permitido por sua própria legalidade formal, e é nisso que o juridicismo se sobressai. Se atualmente esta maneira de colocar o problema pode suscitar reservas é porque, com o liberalismo avançado, esse legalismo arrefeceu. Mas por que? Porque se difundiram modalidades mais generalizadas e mais sutis de controle através do todo social permitindo, frequentemente, economizar o recurso à sanção legal: porque novas técnicas de sujeição podem tornar inútil o exercício de uma repressão inscrita nos códigos. Em suma, porque se multiplicaram os modos legítimos de tutelarização, reduzindo pouco a pouco a oposição dicotômica entre o contrato "livremente" aceito e a sanção penal "justa", contrapartida de sua transgressão. Em resumo, porque a medicina mental, agora, faz parte de nossa paisagem social.

A importância crucial da questão da loucura no momento da instauração da sociedade burguesa se deve, inicialmente, ao fato dela ter concretamente revelado uma lacuna da ordem contratual: o formalismo jurídico não pode controlar tudo, existe, pelo menos, uma categoria de indivíduos que deve ser neutralizada por outras vias do que aquelas de que dispõe o aparelho jurídico-policial. Mas essa importância se deve, também, ao fato de que o novo dispositivo instaurado para suprir essas carências vai desenvolver um novo modelo de manipulação, de plasticidade quase infinita. A maior parte dos novos modos de controle, das novas técnicas de sujeição, das novas relações de tutelarização vão ser afetadas por um índice médico (e posteriormente médico-psicológico, médico-psicanalítico, etc.). A crise imposta pelo problema da loucura às instâncias mais tradicionalmente implantadas e; sobretudo, à justiça, revela, assim, três coisas.

Em primeiro lugar, a justiça, mesmo restaurada, e a administração, mesmo modernizada, fracassam em assumir a herança do poder real para controlar tecnicamente a loucura. Em segundo lugar, é preciso apelar para uma outra instância para estabelecer novas relações entre esses aparelhos. Terceiro, e mais importante, através da resolução da crise, a nova instância médica vai reduzir a prova (ainda localizada, no começo) de sua flexibilidade. Diante da rigidez da justiça e da administração, deixa transparecer sua capacidade de desenvolver um modelo de exercício do poder alternativo ao da autoridade coercitiva.

A problematização esboçada neste capítulo não implica, portanto, de forma alguma, em que o encargo da loucura não tivesse outras implicações senão jurídicas. De certa forma, pelo contrário. Essa tutelarização dos loucos operou-se através de séries de

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transformações práticas bem precisas, cujas peripécias será preciso acompanhar: transformações dos dispositivos institucionais, recondicionamento dos códigos teóricos, refinamento das tecnologias disciplinares, constituição de novos papéis profissionais, etc. Isto é o mais importante, se não esquecermos que a constituição destas práticas instaurou e, posteriormente, dividiu os poderes de uma nova relação de dominação que coexistiu com a ordem legal antes de suplantá-la parcialmente, a fim de normalizar setores cada vez mais significativas da vida cotidiana.

Um membro da Assembléia Legislativa formulou, desde a época revolucionária, com uma impressionante lucidez, a contradição que corrói o legalismo: "Sabe-se muito bem que a lei só atinge as ações que podem interessar à ordem estabelecida por ela; mas deve-se acrescentar que ela não pode ficar indiferente às ações que, sem atacá-la abertamente levam, entretanto, a provocarem desordens na sociedade. Se a sociedade tem o direito de velar pela conduta física de seus membros, não é menor o de inspeção sobre sua conduta moral"

46.

Essa "inspeção sobre a conduta moral" ― esse controle interior ― escapa ao formalismo da lei, sendo ao mesmo tempo necessário para que ela assuma realmente sua tarefa de conservação da ordem social. A menos que se recaia no arbítrio do despotismo ― entretanto, a condenação do despotismo não está somente inspirada por princípios morais, ela é a condição necessária para o estabelecimento da nova sociedade burguesa ― o legalismo, suas pompas e suas obras, suas declamações verbosas e seus efeitos teatrais, seu cerimonial ridículo ou sangrento, exige sua contrapartida discreta em tecnologias brandas e receitas prosaicas de sujeição: a clandestinidade dos adestramentos nos bastidores do teatro da justiça. O aparelho da medicina mental irá fornecê-los. Ele surge à sombra do legalismo. Inicialmente nutriu-se de suas contradições a fim de conquistar seu próprio espaço de intervenção. Posteriormente ele se desenvolveu mantendo, com a justiça, uma relação aparentemente polêmica mas, de fato, dialética. O instável equilíbrio entre as duas instituições conspira para a realização do mesmo fim. Quer se trate de justiça ou de medicina é a mesma ordem que está em jogo. Uma impõe sua manutenção inscrevendo-a na objetividade das leis e combatendo suas transgressões através de sanções. A outra detecta em cada pessoa uma distância com relação às suas normas e tenta anulá-la com remédios.

46 Bernard d'Airy, Rapport sur l'organisalion gênêrale des secours publics, Assembléia legislativa, 13 de junho de 1792, p. 86-87.

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CAPÍTULO II O SALVAMENTO DA INSTITUIÇÃO TOTALITÁRIA.*

O caráter médico das práticas sociais referentes à loucura parece, no final do

século XVIII, ao mesmo tempo, natural é paradoxal. Natural, porque já havia muito tempo que a medicina investira sobre uma parte dessas práticas e porque; no final do Antigo Regime, o movimento de medicalização da loucura se sistematizara. Mas também paradoxal porque o recurso à medicina, nessa época, coloca mais problemas do que resolve. A "medicalização" não significa, de fato, a simples confiscação da loucura por um olhar médico. Ela implica na definição, através da instituição médica, de um novo status jurídico, social e civil do louco: o alienado, que a lei de 1838 fixará, por mais de um século, num completo estado de minoridade social.

A internação em um "estabelecimento especial" é o elemento determinante que condiciona esse status. Portanto, o essencial na "medicalização" da loucura não é a relação médico-doente, implicação posterior e, durante muito tempo secundária. O importante é a relação medicina-hospitalização, o desenvolvimento de uma tecnologia hospitalar, o desenrolar de um novo tipo de poder na instituição, a aquisição de um novo mandato social a partir de práticas centradas, inicialmente, no baluarte asilar. É necessário, então, perguntar por que e como a medicalização do louco, que passa por "progressista" e "modernista" ― e que de certa forma o foi ― moldou-se na velha instituição totalitária que ela se esforçou em salvar do descrédito? No final do século XVIII, esse salvamento do velho complexo hospitalar não é evidente por si mesmo, nem do ponto de vista médico, nem do ponto de vista político.

A luta contra o absolutismo real passa, também, pela destruição de suas cidadelas hospitalares; a luta contra o obscurantismo religioso coloca em primeiro plano a liquidação das Congregações que compartilham, com o poder real, o privilégio de enclausurar as pessoas passíveis de correição, os loucos e pobres, juntamente com todos os que nelas realizavam, mais ou menos voluntariamente, sua própria salvação. Uma reorganização da assistência se instaurou na base da distribuição da assistência a domicílio. A medicina será "liberal" numa sociedade "liberal". Assim, nessas condições, de que maneira a psiquiatria nascente pôde ser levada a vincular seu destino ― e por tanto tempo ― ao asilo? * A ambigüidade do qualificativo "totalitário", proposto há algum tempo, como tradução para a total institution de Goffmam (Manicômios conventos e prisões, São Paulo, ed. Perspectiva, 1974), é voluntária. Como veremos, ela exprime a própria anfibologia do conceito, cujos registros estruturais e políticos são indissociáveis.

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A Medicina se situa

Abordemos, primeiro, o mais "natural": a introdução do médico no cenário da loucura não representa, de forma alguma, uma inovação no final do século XVIII. Eleja interviera a títulos diversos e, no final do Antigo Regime, seus papéis se sistematizaram.

Inicialmente, a partir da metade do século XVIII, aparecem numerosos tratados médicos sobre a loucura, particularmente o Traité des affections vaporeuses des deux sexes ou des maladies nerveuses de Pomme (1760), o Traité de l'épilepsie (1770) e o Traité des nerfs et de leurs maladies (1780) de Tissot. Diversos artigos da Enciclopédia ("demência", "loucura", "hipocondria", "mania", "melancolia", "frenesi") insistem sobre o caráter curável da loucura. Também, do ponto de vista do tratamento, toda uma gama de remédios é posta à disposição do médico

1. Pinel não constrói sua obra num yazio

terapêutico. Ao contrário, ele preconiza sua "medicina expectante" contra o frenesi intervencionista de seus contemporâneos.

Também, no quadro da internação, a loucura passa a ser objeto de uma percepção mais médica (cf. cap. I) e as práticas a respeito dos insanos começam a diferenciar-se das que se destinam aos outros reclusos. Assim, os Irmãos de São João de Deus especializam uma parte do seu pessoal nos cuidados aos alienados e Charenton é um estabelecimento tão bem organizado, no momento da revolução, que uma comissão de inspeção, inicialmente hostil aos religiosos, e dirigida por um médico, pouco tem a reprovar quanto às condições oferecidas aos loucos.

2

Como já observamos: o encargo dos insanos no Antigo Regime não entrava em contradição com uma certa medicalização; simplesmente, o sistema não repousava sobre ela. Entretanto, mais do que esses desenvolvimentos da teoria e da prática em matéria de loucura, o que indica, nas vésperas da Revolução, os progressos de sua medicalização, é o anúncio do reconhecimento de uma competência do médico para intervir nas questões sociais colocadas pela loucura. Através do papel de perito que passou a desempenhar, o médico começou a se transformar numa personagem central de uma problemática indissociavelmente médica e social.

Essa função de perícia possui igualmente uma longa história. Desde 1569 Jean Wier colocara claramente seu princípio, ao solicitar que se fizesse apelo à competência médica nos processos de feitiçaria: "Inicialmente e face a qualquer coisa incontinente que se perceba sobre algum mal engendrado contra a ordem da natureza: é necessário recorrer, segundo decreto de Deus, àquele que, notório pela doutrina, profissão e uso, compreende muito bem as doenças, suas diferenças, seus sinais e suas causas: a saber, o médico que tenha boa consciência"

3.

1 Cf.. in J. Colombier e F. Doublet, Introduction sur la manière de gouverner les insensés et de travailler à leur guêrison dans

les asiles qui leur sont destines, Paris, 1786; a segunda parte, "Traitement", redigida por Doublet expõe os diversos remédios para as diferentes espécies de loucura. 2 Cf. A Tuetey, L'Assistance publique à Parispendant la Révolution, documents inédits, op. cit., I. p. 237. 3 Jean Wier, De l´imposture et tromperie des diables, des enchantements et sorcelleries, 1ª ed. francesa, Paris, 1570, p. 6.

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Esse recurso havia transbordado do quadro dos processos religiosos, já que um certificado médico era, frequentemente, apresentado no decorrer do processo de interdição

4. Porém, no final do Antigo Regime, um papel de perito bem mais oficial irá se

impor. Em 1785, Necker cria uma Inspeção Geral dos Hospitais e das Prisões do Reino e confia sua direção à Colombier. Este, juntamente com Doublet, redige um relatório sobre a situação dos insanos, que será amplamente distribuído em todas as intendências do reino, pelos cuidados do poder central

5. Eis o primeiro reconhecimento, pelo poder de

estado, de uma competência especializada da qual, os grandes alienistas, como Esquirol e Ferrus, tirarão partido sistematicamente

6. Colombier e Doublet se utilizam desse

mandato oficial a fim de preconizar uma organização geral da assistência dos alienados, com a afirmação, também, de que sua solução passa pela medicalização. O alienado vê oficialmente reconhecida sua qualidade de doente: "sequestrando apenas da sociedade os miseráveis cujo espírito está alienado, não se realizarão inteiramente os objetivos que se deve assumir; e se deverá provar que, em todos os casos, é essencial tratar primeiro dos doentes, sobretudo quando a loucura se inicia".

7

Colombier e Doublet relacionam esse projeto de medicalização com a reorganização do espaço do enclausuramento. Eles se manifestam contra a presença dos alienados nas casas de detenção e propõem reservar-lhes um pavilhão especial nos depósitos de mendigos: "Já um grande número de asilos se prepara para seu refrigério, através do estabelecimento de um departamento destinado unicamente para eles em cada depósito de mendigos e propondo-se a tratar indistintamente todos os gêneros de loucura"

8.

A criação dos depósitos de mendigos por mandado real de 1767 havia respondido à quase saturação dos Hospitais Gerais com velhos e indigentes. Esses estabelecimentos visavam fixar as populações mais inconstantes dos mendigos e vagabundos. "Sua verdadeira destinação é a de conter todos aqueles que os hospitais rejeitam e que as prisões não podem conter"

9.Em 1785 surge um regulamento real com cento e trinta e

cinco artigos, reorganizando o regime interno e as condições de admissão nos depósitos, prevendo que neles serão interno e as condições de admissão nos depósitos, prevendo que neles serão acolhidos, juntamente com os vagabundos e os mendigos, moças e mulheres de vida suspeita e, "em quarto lugar, os particulares que aí forem enviados por ordem do rei por causa de demência ou mau comportamento"

10.

Colombier e Doublet não se contentam em autonomizar essa parte do espaço fechado para que o médico possa, nele, encontrar lugar. Eles propõem subdividir esse pavilhão especial em função dos tipos de comportamentos patológicos, colocando, desta

4 Cf. P. Sérieux, L. Libert, "Le regime des alienes en France au XVIII siècle", loc. cit., p. 215. 5 J. Colombier, F. Doublet, Instruction sur ia manière de gouvemer les insensés..., op. cit. 6 J. E. D. Esquirol, "Des établissements consacrés aux alienes en France et des moyens de les améliorer", memorial apresentado ao ministro do interior, in Des maladies mentales, Paris, 1838, t. II; Q. Ferrus, Des Alienes, Paris, 1834. 7 J. Colombier, F. Doublet, Instruction..., op. cit., p. 11. 8 Ibid., p. 5. 9 De Montlinot, Etat actuel du depôt de mendicité de Soissons, Paris, 1781, p. 27. 10 Citado por Ch. Paultre, De la répression de la mendicité, op. cil., p. 414. Cf. também P. Sérieux, Le quartier d'alienes du depôl de mendicité de Soissons au XVIII siècle. Soissons, 1934.

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forma, o princípio de base da tecnologia asilar: "Não é menos essencial dispor convenientemente os lugares destinados a receber esses miseráveis; esses lugares são de duas espécies: alguns são destinados ao tratamento e os outros a conter aqueles que não são submetidos a tratamento. Quanto aos primeiros não se pode dispensar salas para as espécies de loucos, a saber, os furibundos, os insanos tranquilos e os que estão em convalescência"

11.

Tenon defende as mesmas posições. Ele também está munido de uma espécie de mandato oficial, já que foi encarregado de preparar uma reforma completa do Hôtel-Dieu de Paris, unanimemente desacreditado. Ele realiza um inquérito sistemático sobre os estabelecimentos hospitalares parisienses e vai à Inglaterra para estudar as inovações recentes (é uma das origens do modelo inglês que também irá inspirar os trabalhos do Comitê de mendicância da Assembléia Constituinte). Tenon visita, sobretudo, Saint-Luc, onde são tratados cento e trinta loucos e Bethléem (Bedlam) em Londres, que contém trezentos. Seduzido, Tenon projeta a construção de um estabelecimento em Saint-Anne onde, ao lado de mil febris e feridos, haveria um pavilhão especial para duzentos alienados

12. A Revolução impede a realização do projeto, mas Tenon continua a defendê-

lo no Comitê de Assistência Pública que sucede ao Comitê de Mendicância durante a Assembléia Legislativa, e que ele preside

13. Aliás, é com este mesmo espírito que o

Comitê de Mendicância já projetara, na Constituinte, a construção, em cada grande cidade, de um hospital para os pobres sem domicílio, os contagiosos, os portadores de doença venérea e os loucos curáveis atacados "pela maior e mais temível das misérias humanas que possa atingir desafortunados, degradados na mais nobre parte deles próprios"

14. O Comitê, lamentando o atraso em relação aos ingleses, lança um

verdadeiro apelo aos médicos franceses para que concedam à loucura toda a atenção que ela merece:

"Essa doença, tão aflitiva e tão humilhante para a humanidade, e cuja cura proporciona ao coração e ao espírito uma completa satisfação, ainda não suscitou, na França, a atenção prática dos médicos. Inúmeras obras foram publicadas, sem dúvida muito sábias, sobre este interessante assunto; mas ainda nenhum bem, nenhum alívio resultou de sua doutrina para essa classe desafortunada, infelizmente muito numerosa. A proporção de curas não aumentou; entretanto, a experiência prova, nas nações vizinhas, que um grande número de loucos pode voltar ao uso da razão através de tratamentos apropriados, por meio de um regime conveniente e, mesmo, apenas com cuidados indulgentes, atenciosos e consoladores; ao passo que a dureza com que frequentemente são tratados na França torna-os incuráveis e infelizes. A grande instrução dos médicos franceses tornará seus cuidados, no tratamento desta doença, tão úteis como os dos médicos ingleses, quando se multiplicarem os tratamentos realizados nessas casas, inteiramente apropriados aos cuidados que eles exigem"

15. O Comitê

11 J. Colombier, F. Doublet, op. cit., p. 10. 12 J. Tenon, Mémoires sur les hôpitaux de Paris, Paris, 1788, p. 303 ss. 13 Cf. P. Carette "Tenon et l'assistence aux alienes à la fin du XVIII siècle", Annales médico-psychologiqttes, 1925. 14 Citado in F. Dreyfus, Un philanthrope d'autrefois, La Rochefoucault-Liancourt, on. cit., p. 178. 15 C. Bloch e A. Tuetey, Procès-verbaux et rapporls du Comitê de mendicitê, Paris, 1903, p. 762.

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preconiza igualmente a abertura de dois estabelecimentos para loucos em Paris, um para os curáveis e outro para os incuráveis.

Confirma-se, dessa forma, ao mesmo tempo, a permanência do esquema do "grande enclausuramento" e a tentativa de romper a indiferenciação que o fundava, através da ação conjunta do humanismo dos filântropos e da ideologia médica. Tenon vai bem longe ao declarar: "E impossível distribuir os loucos, cuja loucura se pretende tratar, como se distribui doentes comuns ou mulheres grávidas. Um hospital é, de certa forma, um instrumento que facilita a cura: porém existe uma grande diferença entre um hospital de febris e feridos e um hospital de loucos curáveis; o primeiro oferece somente um meio de tratar com maiores ou menores vantagens, em função de ser mais ou menos bem distribuído, ao passo que o segundo tem, ele próprio, função de remédio"

16. Isto é

mais do que a antecipação do famoso axioma alienista formulado por Esquirol: "Uma casa de alienados é um instrumento de cura; nas mãos de um hábil médico ela é o agente, terapêutico mais poderoso contra as doenças mentais"

17.

Poder-se-ia objetar de que se trata mais de anseios do que de realizações concretas. Na cidade de Paris ― e em quase toda a França ― havia, em 1788, quarenta e dois loucos e trinta e quatro loucas amontoados em duas salas insalubres do Hôtel-Dieu. Se resistissem a mais de dozes semanas de tratamento, eram transferidos para Bicêtre ou para a Salpêtrière e pura e simplesmente isolados. Um inquérito de 1790 realizado em Bicêtre aos cuidados de M. Jussieu, vice-prefeito dos hospitais, se interroga "se existe um método de cura empregado para o tratamento da loucura". Resposta: "Não, todos os loucos enviados a Bicêtre aí permanecem in status quo até que praza à natureza favorecê-los"

18 (o que não impedia que, um em cada cinco se curasse, pelo menos,

saísse). Ora, as inovações e os projetos, na França como na Inglaterra, só diziam respeito aos "loucos curáveis", ou seja, os doentes recentes. Em Saint-Luc, por exemplo, sem dúvida o primeiro dos "estabelecimentos especiais" em que um tratamento médico foi sistematicamente aplicado, só eram admitidos, por uma duração de um ano no máximo, os insanos jamais tratados anteriormente. O projeto de Tenon, de construir um novo hospital em Saint-Anne para duzentos loucos, só diz respeito, igualmente, aos curáveis: é concebido no quadro da reforma do Hôtel-Dieu, sem colocar em questão seus princípios de seleção. Em 1792, um pouco antes de Pinel entrar para a hagiografia psiquiátrica, a Assembléia Legislativa decreta que "aqueles que estão atualmente internados por causa de demência às custas da nação, serão transferidos para novas casas de repressão". O decreto da Convenção de 24 vindimário, ano II, descreve, no título III, a organização dessas casas. Guardas armados de fuzil e de sabre vigiam noite e dia à porta. Se os insanos são admitidos "às custas da nação", o que se encontram são, sobretudo, mendigos incorrigíveis que aí passam um ano em média

19. Ambiente aparentemente

pouco terapêutico.

16 J. Tenon, op. cit., p. 393. 17 J. E. D. Esquirol, Des maladies mentales, op. cit., II, p. 398. 18 Citado por A. Tuetey, l´Assistance à Parispendant la Révolution, op. cit., t. I, p. 237. 19 Cf. B. de Gerando, De la bienfaisance publique, Paris, 1839, p. 487 ss.

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Outro modelo de assistência

Assim, no período revolucionário, as cartas ainda não estavam dadas, longe disso. Mas essas dificuldades de uma organização médica do ambiente de reclusão dos pobres não devem ser interpretadas como um simples atraso na conquista de seu espaço natural por uma nova ciência. A vocação médica e caridosa do hospital, no final do Antigo Regime, é obscurecida por uma tela de ódios e ressentimentos que traduz bem o grande medo dos pobres/Com respeito a essas instituições onde a religião e o poder de Estado se aliam ou se revezam para fazer reinar um. verdadeiro terror disciplinar por meio do amontoamento dos corpos. Em sua grandiloquência um texto, dentre cem outros, traduz muito bem essa repulsa geral expressa, também, através de inúmeros Cadernos de reivindicações das três ordens:

"A raça humana já não existia a não ser pela audição quando alguém gritou: 'O Eterno é misericordioso, ele quer absolver os filhos dos homens e chamá-los a Si: Graças a todos os pecadores um só está isento'. Os parricidas, os envenenadores, os homicidas, os caluniadores batiam no peito dizendo: Fomos condenados. Fez-se um silêncio de consternação; e a espera perturbava todos os espíritos. A mesma voz se fez ouvir com um som que estremeceu o universo: Um único está isento... É um administrador de hospital"

20.

É preciso lembrar que o hospital só se tornou um meio prioritariamente médico no século XIX, se é que o foi completamente naquele momento. Sob o Antigo Regime, a população dos hospitais não era constituída somente de doentes nem de todos os doentes.

Era produto de uma seleção bem específica, operada no seio dos indigentes reduzidos ao último grau de abandono, assim como de todos aqueles que era preciso arrancar de seu meio de vida em função dos perigos que apresentavam para o equilíbrio social. Duas simples observações, para compreender o paradoxo que haveria em fazer repousar uma nova política de assistência sobre a estrutura hospitalar.

Em primeiro lugar, o hospital é o último e o mais discutido grau de um dispositivo mais geral de luta contra os riscos sociais provocados pela miséria e pela doença. Em Paris existe, desde 1545, a "Grande repartição dos pobres" cuja função principal é de distribuir, a domicílio, esmolas aos pobres inválidos, e trabalho, aos pobres válidos com domicílio

21. No final do século XVIII, Turgot e Necker, particularmente, encorajam o

desenvolvimento de serviços de beneficência e querem que sejam criados em cada paróquia. O projeto tende a laicizar e a generalizar numerosas iniciativas anteriores de origem religiosa, como as confrarias de caridade de Vicente de Paula ou as obras pias dos vigários de paróquia

22. "O serviço de caridade conhece os pobres doentes e suas

necessidades. Em todos os lugares onde seu zelo é mais esclarecido ou melhor secundado pelas liberalidades do público, ele mantém em reserva uma provisão 20 J. S. Mercier, Tableau de Paris, 1783, XIII. p. 174. 21 Cf. Ch. Paultre, De la répression de lá mendicité et du vagabondage en France sous L´Ancien Regime, op. cit. 22 Cf. L. Lallemand, L'assistance médicaleau XVIII. siècle", Bulletin dês sciences économiques et sociaies du Comitê des travaux

historiques et scientifiques, fascículo especial, 1895.

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suficiente de roupas, móveis, utensílios para uso dos dois sexos em suas enfermidades; ele paga uma pensão honesta a médicos e a cirurgiões com habilidade e probidade reconhecidas para visitar e tratar todos os doentes da paróquia, fornece todos os remédios, sopas e comida necessários durante a doença e a convalescência"

23.

Sem dúvida, esse sistema funciona muito mal. Entretanto, a hospitalização, longe de ser o modelo exclusivo da assistência aos doentes, já aparecia como um último recurso para as populações condenáveis. Assim, segundo um anônimo do século XVIII, o pároco de Saint-Roch vangloriava-se de "só deixar ir para o Hôtel-Dieu os doentes que não possuem nenhum domicílio, ou que não sejam pessoas suficientementes boas que possam encontrar um amigo ou uma vizinha que queiram prestar-lhes alguns cuidados"

24. Esta tendência à "desospitalização" torna-se, como veremos adiante,

preponderante, exatamente no momento em que o asilo se instaura.

Em segundo lugar, sob o Antigo Regime, a assistência é facultativa e, seus meios, irrisórios em comparação com a imensidão da miséria. O indigente deve, portanto, forçar a atenção em função de critérios entre os quais a doença não é o mais lisível. No binômio assistência-repressão que faz funcionar toda a política de assistência, é o papel de repressão que domina o encargo hospitalar, já que este, passando pela reclusão, assume imediatamente um papel de salvaguarda da ordem pública. Numerosos textos da época distinguem bem, no seio da população hospitalar, os "pobres doentes" e os "pobres válidos". Porém, sob vários pontos de vista, os "válidos" exigem de forma mais imperiosa não serem abandonados a si mesmos, na medida em que sua presença coloca imediatamente problemas de ordem pública através dos dois flagelos sociais que são a vagabundagem e a mendicância. Ocorre o mesmo, a fortiori, com os diferentes tipos de pessoas passíveis de "correição".

Esquematicamente, poder-se-ia dizer que, sob o Antigo Regime, os "bons pobres" e até a maior parte dos doentes socialmente inseridos são assistidos a domicílio na medida do possível. Eles ganham esmolas e auxílios por boa conduta da qual, o melhor indício é a assiduidade religiosa. A hierarquia paroquial, com o pároco e seus auxiliares, devotos caridosos e damas de caridade, constitui uma rede de controle para a qual o acesso à assistência se mede pelo mérito. Com exceção de algumas doenças é sobretudo para aqueles que estão em ruptura de integração social que a solução hospitalar se oferece, ou melhor, se impõe.

Face a essa exigência de polícia social e de moralidade pública que unifica as diversas categorias pertinentes à sequestração, a especificidade institucional do hospital como meio terapêutico não se manifesta na metade do século XVIII, mesmo com relação a esses internos que nele entram por causa de doença. O complexo hospitalar forma um contínuo heterogêneo, desde as casas de detenção até os estabelecimentos que se assemelhariam a hospitais de tratamento, como os Hôtels-Dieu, com todas as formas

23 Abbé Baudeau, Idées d'un citoyen sur les besoins, les doits et les devoirs des vrais pauvres. Paris, 1765. 24 Citado por L. Laliemand, loc. cit.

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mistas intermediárias. Assim, Paris (Para 660.000 habitantes, às vésperas da Revolução) possui 20.000 hospitalizados dos quais 12.000 no Hospital Geral, 3.000 nos Inválidos, 2.500 no Hôtel-Dieu e o resto em mais ou menos cinquenta fundações das quais algumas só comportam alguns leitos. Na mesma época existe, na França, um milhar de estabelecimentos desse tipo com mais de 100.000 enfermos, velhos, indigentes, menores abandonados, mendigos e delinquentes de toda espécie. Dentre eles, mais ou menos 25.000 doentes

25. Mas pode-se falar de doentes propriamente ditos quando a

promiscuidade, a disciplina interna, o poder discricionário dos administradores não

diferencia suas condições de existência da dos outros reclusos? O hospital é uma instituição totalitária onde reinam as leis do universo concentracionário, mas sem tecnologia hospitalar específica. E como tal é percebido pelos contemporâneos. Existem inúmeros testemunhos sobre as resistências populares, não somente ao enclausuramento dos "pobres válidos" nos Hospitais Gerais e nos depósitos de mendigos, como também ao encargo público dos doentes. Michelet resume, da seguinte forma, esse sentimento geral:

"Os antigos hospitais não diferiam em nada das casas de correição. O doente, o pobre, o prisioneiro que aí se lançava era sempre visto como um pecador atingido por Deus, que, antes de mais nada, devia expiar sua culpa. Ele sofria tratamentos cruéis. Uma caridade tão terrível assustava. (...) Os doentes escondiam-se para morrer, de medo de para lá serem arrastados"

26. Aos que possam pensar que falta serenidade científica a

Michelet eis um julgamento de um contemporâneo: "Os nomes hospital ou Hôtel-Dieu tornaram-se aviltantes servindo somente para afastar, através de um sentimento natural, todos os que mais necessitam de ajuda e de assistência"

27.

Medo dos pobres, mas também repulsa dos "espíritos esclarecidos" com respeito às instituições que simbolizam, ao mesmo tempo, o absolutismo político e a irracionalidade econômica: "Os hospitais aumentam a pobreza em vez de extingui-la e atormentam a humanidade em vez de socorrê-la"

28. Sob o consenso geral para reduzir o

papel dos hospitais, e mesmo para suprimi-los29

, uma nova exigência de rentabilidade emerge em dois níveis.

Por um lado, a gestão tradicional do patrimônio hospitalar, e no final das contas, sua própria existência, aparecem como contra-sensos econômicos. Na medida em que são inalienáveis os bens dos estabelecimentos de caridade, urna parte considerável da riqueza da nação encontra-se, assim, definitivamente imobilizada. A preocupação de não entregar os bens destinados aos pobres à especulação interessada parece justificar que

25 Des Essarts, Dictionnaire de police, op. cit., artigo "hôpitaux"; cf. também de Gerando, De la bienfaisance publique, op. cit.,

F. E. Fodéré, Essai historique et moral sur la pauvreté deinations, Paris, 1824; C. Granier, Essai de bibliographie charitable, Paris, 1891. 26 J. Michelet, Histoire de France, Paris, 1880, XV, 21. 27 Tellès-Dacosta, Plan general d'hospices royaux. Paris, 1789, p. 4. 28 M. de Mirabeau, L'amides hommes, Paris, 1774, 2' parte, p. 349. 29 Dentre a numerosa literatura sobre o assunto nos últimos anos do Antigo Regime, cf. Abbé de Reclade, Trailé des abus qui subsistent dans les hôpitaux, Paris, 1786; D'Argenson, Considérations sur le gouvernement de la France, Paris, 1784; Howard, Etai des prisons, des hôpitaux et des maisons de force, Paris, 1788; Tellès-Dacosta, Plan general d´hospices royaux, Paris, 1789; Dupont de Nemours, Idée des secours à donner aux pauvres malades dans une grande ville, Paris, 1786.

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as funções hospitalares escapem dos circuitos mercantis e defendam, com zê-lo, as suas isenções e os seus privilégios. Porém, são igualmente subtraídas às leis do mercado todas essas possibilidades de fazer frutificar as terras e de vivificar o comércio. Além do mais, essas antigas fundações nem mesmo atingem os objetivos que supostamente realizam: implantadas segundo os caprichos dos fundadores, estão inteiramente ausentes em algumas regiões ao passo que outras são demasiadamente bem providas; num mesmo setor geográfico, certo tipo de desamparo é largamente socorrido ao passo que outros são deixados na mais completa privação, etc. Com Turgot, os economistas são unânimes em denunciar essa anarquia custosa, cujo arcaísmo se opõe à instauração de uma estrutura econômica mais racional, ou seja, mais produtiva

30.

Pior: essa organização não realiza apenas uma punção nas riquezas. Apesar das inúmeras declarações de princípio segundo as quais os Hospitais Gerais e os depósitos de mendigos devam fazer os reclusos trabalharem, seu regime interior é tal que as populações enclausuradas são praticamente improdutivas. Quanto aos estabelecimentos mais "terapêuticos" do tipo Hôtel-Dieu, frequentemente desempenham mais uma função de ante câmara da morte do que de um lugar onde os doentes possam recobrar a saúde

31. Ora, a partir da segunda metade do século XVIII, a idéia de que também a

população faz parte da "riqueza das nações", começa a se impor. Um tal desperdício de força de trabalho e de vidas humanas afigura-se como crime econômico e, ao mesmo tempo, como atentado contra a humanidade. "Se todo gozo é fundado num trabalho preliminar", diz explicitamente um contemporâneo, "é, portanto, indispensável, para o interesse da classe que goza, velar pela conservação da classe laboriosa"

32.

Uma tal tomada de consciência do valor do trabalho como origem da riqueza social irá impor uma recomposição completa da paisagem da assistência, à qual voltaremos a seguir (capítulo III). Mas, desde o período pré-revolucionário, a junção da crítica política de um bastião do absolutismo e da crítica econômica do custo exorbitante de sua gestão, provoca o descrédito do complexo hospitalar e a procura de uma alternativa do desenvolvimento da assistência a domicílio: "No século XVIII, os homens de Estado, os escritores que tratam das questões econômicas possuem uma acentuada tendência a preconizar a assistência a domicílio e a situá-la bem acima da assistência hospitalar''

33. Desde 1765, para o abade Baudeau, as cartas estão dadas:

"Não hesitamos mais em condenar inteiramente as casas de enfermaria pública. Suas rendas, e mesmo seus edifícios, serão atribuídos à Bolsa Comum da Caridade Universal em cada diocese, sob a direção do Serviço Geral de Caridade; e os pobres doentes não serão mais obrigados a procurar socorros humilhantes, dolorosos e frequentemente funestos nessas casas; a beneficência patriótica irá socorrê-los em suas

30 Cf. A. R. J. Turgot, artigo "Fondation" da Enciclopédia in Oeuvres, ed. Schelle, Paris, 1824, I, p. 584 ss. Comentário desse artigo e resumo de sua influência in A. Monnier, Histoire de l'Assistance dans les temps anciens et modernes. Paris, 1856, p. 449 ss. 31 Cf. J. Tenon, Mémoires sur les hôpitaux, op. cit. 32 Cf. C. P. Coqueau, Essai sur l'établissement des hôpitaux dans les grandes villes, Paris, 1787, p. 142. 33 L. Lallemand, "L'assistance médicale au XVIlI siècle", loc. cit. p. 3.

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próprias casas, entre os braços de seus parentes, conforme o sistema dos serviços de misericórdia que é preferível, por mil razões, ao dos hospitais"

34.

Dentro dessa lógica, o Comitê de Mendicância da Assembléia Constituinte coloca em primeiro lugar, no seu vasto programa de assistência, um projeto de distribuição de auxílios numa "lista de pobres" em cada município, de acordo com uma classificação que segue "a declaração das faculdades de trabalho daquele a quem forem dados". As despesas serão financiadas por um fundo nacional de assistência, cujos recursos serão, em seguida, distribuídos pelos Departamentos, distritos e cantões. Conjunção entre o centralismo administrativo, que faz da assistência um direito garantido pela nação, e a localização da atribuição da assistência no domicílio do pobre e do doente, sob o controle da autoridade mais próxima. Essa noção de domicílio de assistência implica em que a maior parte das práticas assistenciais e médicas podem ser administradas sob um modo não segregativo. Haveria, assim, em cada cantão, um local de assistência, com um médico e um dispensário de remédios gratuitos. Somente algumas categorias bem especificadas (os contagiosos, os venéreos, os pobres sem domicílio, os mendigos e vagabundos irredutíveis, os menores abandonados e também, como veremos, os loucos) devem ser subtraídas ao seu meio e transplantadas numa instituição fechada

35.

Para colocar em prática essa política, um dos primeiros atos da Constituinte foi o de decretar, a 2 de novembro de 1789, os hospitais e os hospícios de igreja bens nacionais, ficando a cargo da nação "prover", de maneira conveniente, os gastos do culto, a manutenção de seus ministros e o alívio dos pobres. Os privilégios e as isenções dos hospitais foram abolidos a 22 de agosto de 1791. O decreto de 18 de abril de 1792 suprimiu as congregações religiosas.

A Convenção quis ir ainda mais longe. A 23 messidor, ano II, a Assembléia decretou a venda dos bens hospitalares. No mesmo momento, Barère formula a utopia de uma assistência sem segregação: "Não mais esmolas, não mais hospitais. Tal é o objetivo para o qual a Convenção deve caminhar sem parar, pois essas duas palavras devem ser apagadas do vocabulário republicano"

36. Com efeito, o decreto da Convenção,

instituindo um cadastro da beneficência nacional (22 floreal, ano II) não faz mais referência aos hospitais

37. Evidentemente, dois dias antes de se separar, a Convenção, a

2 brumário, ano IV, suspendeu a aplicação de seu decreto de 23 messidor. Ele foi definitivamente abolido pelo Diretório no dia 16 vindimário, ano V: os bens hospitalares já vendidos como bens nacionais deverão ser substituídos, o governo central fica isentado de qualquer responsabilidade financeira; quanto à distribuição da assistência e a gestão do patrimônio hospitalar, são confiadas a comissões administrativas sob o controle das municipalidades. O Estado Napoleônico confirmou a tendência ao retorno às práticas do Antigo Regime: os doadores de leitos tornam a encontrar seus direitos, a

34 Abbé Baudeau, Idée d'un citoyen sur les besoins, les droils, et les devoirs des vrais pauvres, op. cit., 1, p. 64-65. 35 Cf. C. Bloch, A. Tuetey, Procès-verbaux du Comitê de mendicíté, op. cit.; cf. também F. Dreyfus, Un philanthrope d'autrefois,

op. cit. 36 B. Barère, Premier rapport fait au nom du Comitê de salut public, sur les moyens d'extirper la mendicíté dans les campagnes,

et sur les secours que doit accorder la Republique aux citoyens indigents, em 22 floreal, ano II. 37 M. Rochaix, Essai sur l'évolution des questions hospitalières de l'Ancien Regime à nos jours, Saintes, 1959.

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fundação de novos estabelecimentos privados e autorizada, o papel das congregações religiosas é oficialmente reintroduzido

38. Desta forma, após termidor, a restauração

hospitalar seguirá, grosso modo, as principais etapas da restauração política.

Entretanto, tudo se passou como se, por um momento, a história tivesse hesitado; como se tivesse havido uma oscilação entre dois modelos antagônicos de assistência. O primeiro é a utopia totalitária do Antigo Regime: absorver a massa de desviantes para, num primeiro momento, neutralizá-los pelo isolamento e, num segundo momento, discipliná-los desenvolvendo, no seio da instituição fechada, um leque de técnicas correcionais à base de atividades manuais, exercícios religiosos e regulamentações morais. A segunda estratégia de assistência já é uma utopia que se poderia chamar capilar. Ela visa fixar o risco do desvio no seu lugar de emergência, para evitar uma deriva perigosa para a ordem pública; ela fecha a possibilidade de uma brecha no domicílio de assistência. Essa noção de domicílio de assistência foi muito sutilmente construída para representar um meio termo entre o nomadismo da liberdade absoluta de circulação e a fixação rígida ao município de origem, tomando explicitamente em mãos, as exigências do mercado do trabalho

39.

Duas estratégias de territorialização, portanto, que implicam em duas modalidades opostas de medicalização. Pois a tendência para a desospitalização não ocasiona uma desmedicalização, pelo contrário. A maior parte das atividades sobre as quais a medicina investe, no fim do século XVIII, e que lhe conferem uma nova dimensão política, desenvolvem-se fora do espaço hospitalar, no espaço que, atualmente, chamaríamos comunidade. O mesmo ocorre com seu novo encargo para com a infância: consciente da nova valorização da população como fator de riqueza, a medicina ataca os problemas da mortalidade infantil, controlando mais estreitamente os partos e as mulheres que amamentam. O mesmo ocorre em relação às epidemias, à higiene nas cidades, à morbidade no campo. É sobretudo a criação da Academia Real de Medicina, em 1770, que concretiza essa concepção mais ambiciosa do papel do médico. Ele recebe, do poder real, um mandato de observação, de coleta de informações, de vigilância das populações em seu próprio meio natural. Através dessas práticas o médico se atribui uma nova função política. Agente do poder central, desinteressado, já que assume um serviço público que, segundo alguns projetos de reforma revolucionária, deve ser diretamente retribuído pelo Estado, o médico, em seu papel de assistência, deixa o meio especial do hospital para percorrer todo o espaço social e propor sua competência no lugar de emergência da desgraça e da desordem

40.

Temos aqui uma dupla antecipação, muito promissora: de uma medicina como serviço público homogêneo, implantado em todo o território, e de uma medicina preventiva, parte de um dispositivo geral de despitagem e de intervenção precoce: "É, sem dúvida, um dever imperioso da sociedade, dar assistência à pobreza, mas o de

38 Cf. J. Imbert, Le droit hospitalier de la Révolution et de 1'Empire, Paris, 1954. 39 Cf. J. B. Bô, Rapport et projet de décret sur 1'extinction de la mendicité, presente à l'Assemblée nationale au nom du Comitê

des secours publics, s. d. (trata-se de um relatório lido na Convenção). 40 Cf. M. Foucault, Naissance de la clinique, Paris, 1963; J. P. Peters, "Le grand rive de l´ordre medical, en 1770 et aujourd'hui", Autrement, nº 4, inverno de 1975-76; Cf. também infra, cap. III.

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preveni-la não é menos sagrado, nem menos necessário"41

. Uma política da assistência segregativa é chamada a intervir quando o mal está feito, quando o desafortunado ou o doente já se desligaram, sendo levados em uma deriva que corre o risco de ser irreversível. Mas, na medida em que a intervenção médica reparasse as estruturas em vias de alteração ela também se desprenderia desses lugares, sobredeterminados sob muitos pontos de vista, que são os hospitais. Em vez de romper os laços naturais, a política de assistência os salvaguardaria e reforçaria. Ela economizaria o desvio do isolamento inscrevendo-se na dialética espontânea entre o indivíduo e seu meio. É no quadro de sua crítica da hospitalização que o Comitê de Mendicância formula, assim, a utopia que lhe serve de suporte: "É através dos cuidados mútuos que o espírito de família se conserva, que os laços naturais se estreitam, que a bondade se cultiva, que os costumes se aperfeiçoam"

42.

Sempre é melhor tratar in loco do que isolar, prevenir do que tentar, posteriormente, reprogramar um indivíduo dessocializado, reforçar os laços com o meio de vida do que recolher os destroços causados pela ruptura. Programa que antecipa em mais de cento e cinquenta anos, de modo praticamente completo, uma política dita de "setor". Assim, o último projeto "progressista" da Convenção em matéria de assistência organiza, a 22 floreal, ano II, a inscrição de todos aqueles que têm necessidade de assistência no Grande livro da beneficência pública. No lugar da assistência hospitalar, um corpo de 1.500 à 2.000 médicos ou oficiais de saúde, pagos pelo Estado, se encarregará dos problemas de saúde

43.

Portanto, se esses dois modelos existem simultaneamente, porque a nova medicina mental se moldou no mais arcaico e mais desacreditado dentre eles? Por que voltou as costas para a nova fórmula que parece dever se impor, para retrabalhar o velho trapo da instituição totalitária, tomar-lhe um pedaço e remendá-lo incansavelmente ― tarefa à qual devotou quase toda a sua dedicação durante mais de um século?

Um compromisso reformista

Se a psiquiatria nascente vinculou seu destino ao da instituição totalitária, e por tanto tempo, não foi só por razões técnicas nem somente por razões políticas, mas pela conjunção estritamente regulada, no espaço e no tempo, dessas duas séries. A forma-asilo se destacou no espaço concentracionário do Antigo Regime através de um conjunto de práticas que se pode reconstituir a partir da obra de Pinel. Mas esse trabalho prosaico cristaliza, ao mesmo tempo, uma reviravolta política, da qual Delecloy pode ser considerado porta-voz.

Na vertente política o devaneio desinstitucionalista completo de Barère representa apenas uma tendência limite. Ele suporia o advento de uma organização

41 C. Bloch, A. Tuetey, Rapports et procés-verbaux du Comitê de mendicité, op. cit., p. 396. 42 Citado in C. Bloch, A. Tuetey, Rapports et procès-verbaux du Comitê de mendicíté, op. cit., p. 394. 43 Cf. M. Roçhaix, Essai sur l´évolution des questions hospitalières..., op. cit.

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política capaz de afastar definitivamente a miséria, tornando, desta forma, inúteis, instituições cuja única finalidade é gerir a desgraça: "Deve haver uma parte da humanidade que sofra? (...) Inscrevei, portanto, na porta desses asilos, o anúncio de seu próximo desaparecimento. Pois se, depois de terminar a Revolução, houver ainda desafortunados entre nós, nossos trabalhos revolucionários terão sido vãos"

44.

Essa utopia não sobreviverá à derrota da Montanha. O porta-voz da reação termidoriana em matéria de assistência é Delecloy. Como membro da Convenção será ele que pleiteará a suspenção da aplicação da lei de 23 messidor, ano II, que ordenava a venda dos bens hospitalares. Quando se tornou membro do Conselho dos Quinhentos, no Diretório, voltou ao ataque e obteve sua abolição definitiva. Naquela ocasião, apresentou um plano global de reorganização da assistência pública, que continha as linhas diretrizes da política que irá triunfar

45.

Primeiro, liquidação da alternativa revolucionária: "Já é tempo de, sairmos da trilha rígida a que uma filantropia exagerada nos confina desde a Assembléia Constituinte. Uma mania de nivelamento, de generalização na distribuição da assistência ainda parece conseguir perder os melhorares espíritos"

46. Não se poderia ser mais claro:

"Quem primeiro disse que só o governo deve assistência de todo tipo ao indigente, e em todas as idades da vida, disse um absurdo; pois o produto de todos os tributos da República não seria suficiente para custear esse enorme e incalculável encargo: talvez seja bem mais verdadeiro, em política, dizer que o governo não deve nada a quem não lhe serve. O pobre só tem direito à comiseração geral"

47.

O direito à assistência, desta forma, é substituído pelo apelo à benevolência das almas pias. Trata-se de um retorno puro e simples à antiga caridade? Não. A indigência, a miséria, a doença são problemas sociais. O Estado não pode se desinteressar na medida em que a existência desses males pode colocar em questão seu equilíbrio. Deve, portanto, mostrar o exemplo de beneficência, ser o "principal motor" do impulso que irá desencadear a iniciativa privada em matéria de assistência: "Coloquemos, portanto, como princípio, que o governo não pode se encarregar sozinho da manutenção do pobre; porém, colocando-o sob a salvaguarda da comiseração geral e da tutela das pessoas abastadas, deve dar o exemplo de uma beneficiência limitada em seus meios; deve sacrificar fundos e imprimir, assim, uma grande ação a todas as engrenagens que podem fazer funcionar a sensibilidade universal"

48. Não é evidente, para Delecloy, ou

não finge acreditar que, "quando o governo diz sinceramente aos homens que façam o bem, infalivelmente eles o fazem"?

49.

É, portanto, necessário, na medida do possível, descentralizar a assistência, implantá-la diretamente nas comunidades locais onde poderá ser vivificada pela iniciativa privada. Mas se a desestatização, a municipalização e a privatização caminham

44 Lebon, citado in J. Imbert, Le droit hospitalier de la Révolution et de l'Empire, op. cit., p. 78. 45 J. B. Delecloy, "Rapport sur l'organisation des secours publics", Convention nationale, sessão de 12 vindimário, ano IV. 46 Ibid., p. 2. 47 Ibid., p. 4. 48 Ibid., p. 3. 49 íbid., p. 6.

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juntas, é preciso, não obstante, prever o encargo necessário de um certo número de casos limite. Uma estrutura mínima de assistência obrigatória se instaura, portanto, segundo o duplo registro de uma organização da assistência a domicílio e de um programa hospitalar.

Na primeira direção, preparar-se-á, em cada comuna, uma lista bem restritiva de indivíduos completamente desprovidos: doentes totalmente indigentes (a inscrição é provisória), menores abandonados, velhos totalmente sem recursos, pois "o governo deve cuidar das gerações que começam e das que terminam, ou seja, das que prometem ou que deram trabalho"

50. Na medida do possível, esses auxílios serão distribuídos a

domicílio. Pois, significativamente, nesse contexto moderado, a crítica do hospital manteve sua virulência: "Não vos esconderemos que, quanto mais nos ocupamos dos pobres, mais sentimos que um hospital é um estabelecimento vicioso; somente os administradores é que puderam imaginar, para sua comodidade, amontoar homens de todas as espécies para fazê-los definhar no opróbio e na miséria"

51.

Entretanto, a estrutura hospitalar não pode ser inteiramente abolida: "Desejaria poder suprimir esse gênero de assistência; mas, entre outras considerações, senti a necessidade de oferecer, em alguns municípios, aos celibatários, aos indivíduos sem asilo, sem parentes, sem amigos, um refúgio para o seu desamparo ou suas enfermidades. Diminuiu-se, portanto, consideravelmente, o número de hospícios, aumentando a assistência a domicílio e restringindo, rigorosamente falando, à classe solitária, sem parentes e sem amigos, o penoso e indispensável recurso dos hospitais"

52.

No campo, os vínculos concretos que subsistem entre os homens e que podem constituir redes de ajuda mútua, permitem fazer a economia de uma organização pública da assistência. A hospitalização nada mais é do que a contrapartida da anomia urbana. Resignar-se-á, portanto, em estabelecer pequenos hospícios, na base de uns cinquenta lugares disponíveis para as cidades de 10.000, à 20.000 habitantes, etc. O gigantismo parisiense justificará a conservação de uma dezena de hospitais (ao passo que existia uma centena), mas sua capacidade será consideravelmente reduzida; assim o Hôtel-Dieu disporá de apenas quatrocentos leitos.

Dessa forma, a população atingida pelo antigo enclausuramento se reduz violentamente. Mas essa própria redução identifica, no interior de si mesma, categorias que contradizem, ainda mais radicalmente, o mito de uma desinstitucionalização total. São constituídas pelos "insanos", os que sofrem de doenças venéreas, dos dois sexos, e todos aqueles que, em virtude de julgamento, são detidos a prazo". Para eles "será estabelecida, em cada Departamento, uma casa de repressão

53. Somente em Paris o

número da população permite prever dois estabelecimentos especialmente consagrados aos alienados, um para cada sexo.

50 Ibid., p. 3. 51 Ibid., p. 6. 52 Ibid., p. 6. 53 Ibid. ,p. 8.

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Este é o momento em que a repressão e a assistência tentam dissociar-se através da crítica da estrutura hospitalar. A acentuação da assistência a domicílio permite traçar um primeiro círculo de rejeição, em torno de um número limitado de isolados que não podem receber, em seu meio de vida, a assistência que seu estado exige. Mas esse argumento humanitário permite distinguir um segundo círculo de enclausuramento para todos aqueles; que devem ser eliminados da sociedade em razão do perigo que representam. Portanto, através da crítica da institucionalização maciça de todos os desviantes, e distinguidos de um número reduzido de indigentes que podem se beneficiar da hospitalização como um direito, os loucos permanecem os únicos, juntamente com os criminosos e os que sofrem de doença venérea, passíveis de sequestração obrigatória. Assim, mesmo antes da forma-prisão e da forma-asilo se dissociarem podemos apreender a lógica que as constitui e faz, de sua existência, uma necessidade paradoxal no centro das sociedades liberais.

Dois mecanismos funcionaram simultaneamente. Por um lado, uma clarificação das finalidades do enclausuramento: crítica da instituição totalitária como modo indiferenciado da assistência-repressão que abafava subordinados ao seu regime. Essa crítica libera certas categorias que, em outros momentos foram "cuidadas" dessa maneira e, ao mesmo tempo, revela que outras não podem beneficiar de uma tal liberação. A identificação da criminalidade com a loucura, exigindo um tratamento específico, destaca-se, assim, tendo como tela de fundo em regime "liberal": na medida em que a estrutura contratual da sociedade se generaliza, ela impõe a rejeição daqueles que não podem entrar no seu jogo. Sociedade liberal e instituição totalitária funcionam muito bem como um par dialético.

Por outro lado, o "liberalismo" implica numa privatização máxima da administração da assistência. Esse movimento irá pronunciar-se e realizar-se plenamente sob a Restauração. O programa mínimo de serviço público que o projeto de Delecloy ainda comporta nem será aplicado. A assistência se tornará cada vez mais facultativa. Um tal laxismo identifica igualmente a contrário a criminalidade e a loucura como "problemas sociais" específicos: no contexto do laisser-faire comandado pela economia de mercado, criminosos e loucos não podem, absolutamente, ser abandonados a si mesmos.

No decorrer do período pós-revolucionário a instituição totalitária é, portanto, reduzida a seu esqueleto. Mas essa redução não significa desaparecimento, sob certos pontos de vista ocorre o contrário. Na medida em que suas finalidades passam a visar somente os sujeitos que não possuem absolutamente lugar na sociedade "normal", elas parecem, doravante, racionais. Sua organização interna deve também racionalizar-sc, reformar-se, de tal maneira que possa gerir tecnicamente as tarefas para as quais é insubstituível.

Essa clarificação se esboça em Delecloy. Distribuições da assistência a domicílio, hospitais, hospícios e casas de repressão são identificados em sua função diferencial. Mas o processo de disjunção não é levado a termo. A casa de repressão ainda reúne criminosos responsáveis e duas categorias heterogêneas de doentes: os que sofrem de

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doença venérea, contagiosos e moralmente culpáveis e os insanos, perigosos mais irresponsáveis. O que dá conta de um tal sincretismo ainda é o caráter demasiado excludente do medo suscitado por esses rejeitados. A racionalidade repressiva triunfará dissociando, de maneira mais sutil, certos tipos de medo e associando-lhes tecnologias específicas para exorcizá-los

54.

Não é arbitrário propor essa interpretação a partir de um simples relatório de Delecloy, pois ele nada mais é, neste contexto, do que porta-voz, no domínio da assistência, dessa classe que derrotou, ao mesmo tempo, o poder absoluto da realeza e a alternativa revolucionária. Um outro "especialista" dessas questões, Cabânis, diz quase a mesma coisa, mas em termos que introduzem mais diretamente ao problema técnico-político que a medicina mental irá resolver.

Mesma suspeita no que diz respeito ao hospital: "Esse amontoamento de indivíduos que não são unidos por nenhum vínculo natural; que nenhuma esperança desperta para a ação; que uma segurança estúpida torna insensíveis ao futuro; que só possuem, com os objetos que o envolvem e com as pessoas de que dependem, relações falsas e corruptas: esse amontoamento, dizia eu, não seria capaz de degradar a inteligência e os costumes até o último ponto?"

55. "Todas as vezes que se juntam os

homens, altera-se sua saúde, todas as vezes que se juntam os homens num meio fechado altera-se, ao mesmo tempo, seus costumes e sua saúde"

56.

O mesmo realismo também: "Os hospitais são, talvez, por natureza, estabelecimentos viciosos mas, no presente estado das sociedades, eles são absolutamente necessários"

57. Mas uma solução se esboça, destacando-se em referência

e em oposição ao sonho de Barère, interpretado sem ser mencionado: "A súbita destruição das casas de socorro e a diminuição calculada da beneficência individual, longe de suprimir as numerosas causas da miséria, seguramente agravaria várias delas. Além disso, não é preciso tomar ao pé da letra essa expressão profunda de um homem que, dotado de um gênero de espírito cuja característica é visar sempre grandes resultados, dedicou-se, contudo, de forma particular, à pesquisa e ao exame dos fatos"

58.

O que não se deve "tomar ao pé da letra" é a dimensão propriamente política da concepção de Barère e dos convencionais radicais. Eles visavam uma reviravolta política porque viam, no hospital, um bastião do absolutismo, um equipamento de poder

54 Delecloy também parece pôr em cheque um outro "problema social" importante, cuja posição ambígua nesse contexto já observamos: o da vagabundagem e de mendicância. Seu projeto prevê a transferência dos fundos dos depósitos de mendicância para as casas de repressão, como se essas últimas pudessem assumir todas as funções do enclausuramento obrigatório. Sabemos que a administração napoleônica retrocederá com relação a esse laxismo fazendo da recriação dos depósitos de mendicância uma peça essencial do dispositivo de manutenção da ordem. Mas o decreto de 1808 também foi muito mal aplicado. Oscilação entre laisser-faire e autoritarismo em matéria de assistência. O centralismo napoleônico e a administração da assistência pelos notáveis e pelo clero durante a Restauração, representam as duas opções antagônicas possíveis no quadro de uma mesma política "liberal". De fato, por trás dessas hesitações pode-se encontrar as flutuações de uma política do emprego e opções divergentes sobre o valor social do trabalho (cf. cap. II). 55 P. J. Cabanis, "Quelques príncipes et quelques vues sur les secours publics" in Oeuvres completes, t. II, Paris, 1823, p. 201-202. 56 Cabanis, Observations sur les hôpitaux, Paris, 1790, p. 18. 57 Cabanis, ibid., p. 7. 58 Cabanis, "Quelques príncipes et quelques vues"..., loc. cit., p. 203.

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fundado sobre o afastamento dos miseráveis de seu meio de vida para colocá-los, desmunidos, sob o tacão de uma autoridade absoluta. A questão, portanto ― mesmo se os convencionais não puderam ou não tiveram tempo de definir o programa ― era de inventar uma alternativa política para um tipo de relações, igualmente qualificadas em termos políticos. Ao contrário, se os hospitais são somente "por sua má organização, novas causas de miséria em vez de verdadeiros benefícios, princípio de desmoralização em vez de modelo ou alimento de virtudes benfazejas"

59, o problema torna-se apenas

técnico, com implicações simplesmente morais. Eis aí uma sociologia das organizações avant la lettre: acabar com o bloqueio das estruturas, liquidar arcaísmos, recuperar atrasos, racionalizar procedimentos, rentabilizar custos, humanizar as relações, etc. Realismo, eficácia, rentabilidade, moralidade, boa gestão: o hospital é reformável. Modernizado, pode transformar-se na pedra angular de um novo dispositivo de assistência renovada pelo menor custo político e financeiro. Não se trata de um aparelho de poder que esmaga os homens e reproduz a servidão. Trata-se de um estabelecimento mal gerido. O que se deve fazer é renovar essa ala da instituição totalitária, colocá-la em harmonia com o novo ambiente moral da sociedade burguesa.

Cabanis chegou até a esboçar a aplicação desses princípios tecnocráticos avant la lettre em seu "Relatório endereçado ao Departamento de Paris por um dos seus membros, sobre o estado das loucas detidas na Salpêtrière" (6 de dezembro de 1791)

60.

Logo aparece a preocupação com a boa gestão (início do relatório): "O estado das loucas nas velhas celas da Salpêtrière é uma dessas desordens que uma administração humana não deveria tolerar"

61. Cabanis propõe, portanto, um projeto de nova regulamentação

que diz respeito, ao mesmo tempo, às admissões e ao regime interior. As loucas são classificadas em quatro grupos: "mulheres em tratamento", "furiosas indecentes e sem esperança de cura", "corruptas e epiléticas incuráveis", "imbecis e em geral todas aquelas que só necessitam de cuidados particulares"

62. Classificação ainda grosseira e

que pode até parecer ultrapassada em relação àquela proposta por Colombier e Doublet. Mas, ao mesmo tempo, Cabanis preconiza técnicas avançadas de observação do louco: "Serão observado* sob todos os aspectos, serão observados por oficiais de saúde, serão observados pelo pessoal de serviço, dentre os mais inteligentes e mais habituados a observar a loucura em toda a sua variedade"

63. Ele chega até a imaginar a execução de

um registro diário "onde o quadro de cada doença, os efeitos dos remédios, as aberturas de cadáveres, serão referendados com uma escrupulosa exatidão. Todos os indivíduos da seção serão nominalmente inscritos no mesmo com o que, a administração poderá se dar conta nominativamente de seu estado, a cada semana ou mesmo a cada dia, se julgar necessário". Além disso, cada serviço é colocado sob controle médico: "Estabelecer-se-à, em cada seção, um oficial de saúde, unicamente ligado aos serviços

59 Cabanis, ibid., p. 203. 60 Cabanis, Relatório criado sem o nome do autor in A. Tuetey, L´Assistance publique à Paris sous la Révolution, op. cit., t, III, p, 489 ss. 61 Ibid., p. 489. 62 Título II, art. 4 do projeto de regulamento, ibid., p. 502. 63 Ibid., p. 494

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das loucas, sob a inspeção do médico-chefe"64

. A loucura, dessa forma, está pronta para ser exposta à observação médica. Ela encontrará, no asilo, o espaço específico onde poderão ser conduzidas, paralelamente, sua redução ao saber médico e seu domínio prático

65.

Não obstante, Cabanis ainda é um fabricador de projetos, cujos programas abrangem o conjunto da "assistência pública". Trata-se, sem dúvida também, de um médico, e não por acaso, mas de um médico que passou quase todo seu tempo traduzindo Homero e frequentando o salão de Mme. Helevetius ou as assembléias parlamentares, do que praticando sua profissão

66. A política que preconiza tem

necessidade de operadores práticos. Procura-se managers eficazes e humanos.

Um operador prático

Esse novo manager foi encontrado por Cabanis e seus amigos na pessoa de Philipe Pinel. A história não registrou se Pinel tinha, explicitamente, um mandato para realizar esses desígnios. Em todo caso, ele os admitia e pertencia ao meio que os propagava. Pinel foi nomeado para Bicêtre em 1793, por recomendação de Cabanis e de Thouret. Cabanis já o havia introduzido junto a Mme. Helvétius, animadora da famosa "Sociedade de Auteuil" onde ele encontra Lavoisier, Condorcet, Franklin, etc, e Thouret. Ele pertence, com Cabanis e Thouret, à mesma loja franco-maçônica das Neufs-Soeurs cujo venerável era Pastoret, outro médico

67. Thouret, último regente da antiga

Faculdade de Medicina do Antigo Regime, também é o primeiro diretor da Escola de Medicina fundada no ano III da República. Ele convida Pinel para a cadeira de física médica e de higiene e, posteriormente, para a cadeia de patologia médica. Thouret foi membro do Comitê de Mendicância, depois do Tribunal, depois do Corpo Legislativo. Ele representa, juntamente com Delecloy. Cabanis e Fourcroy, a corrente dos reformadores da assistência, higienistas e filantropos, frequentemente médicos, que sobreviveram a todas as convulsões políticas, menos por oportunismo do que pelo fato dos meandros dos diferentes regimes realizarem, progressivamente, essa síntese burguesa da ordem e do progresso, que eles preconizavam.

O que se sabe sobre as idéias propriamente políticas de Pinel coloca-o nesse campo. Segundo Semelaigne, seu biógrafo, "ele era dotado de um sábio patriotismo, de um amor ao progresso sincero, mas tinha horror do sangue c daqueles que o derramavam em nome da liberdade e da igualdade. Suas cartas sobre a morte de Luís XVI, da qual foi testemunha e sobre os facciosos que organizaram o Terror, honram seu corajoso bom senso e a firmeza de suas convicções sem fanatismos"

68.

64 Ibid., p. 502. 65 M. Foucault, Histoire de la folie, op. cit., p. 459-463. 66 Para marcar certas continuidades lembremos também que o pai de Cabanis era íntimo de Turgot, que introduziu o jovem Cabanis no círculo de Mme. Helvétius. Cf. "Notice historique et philosophique sur la vie, les travaux et les doctrines de Cabanis", por L. Piess, in "Introduction", 3» edição de Rapports du physique et du moral de l'homme. 67 Cf. G. Bollote, "Les châteaux de Frère Hilarion", Information psychiatrique, jan. 1966. 68 R. Semelaigne, Les grands aliénisles français, I, Paris, 1894, p. 94.

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Assim, ele também será honrado por sucessivos regimes. Tendo sua carreira hospitalar assegurada pela Convenção, é nomeado médico consultor do Imperador em 1803. Recebe a Legião de honra em 1804 e, posteriormente, a cruz de Saint-Michel das mãos do duque de Angoulême em 1818. Somente com a reação ao assassinato do duque de Berry, em 1821, é que seu republicanismo moderado será criticado: será demitido em 1822 quando a Faculdade de Medicina é dissolvida. Muito mais tarde, a República radical irá gerir sua legenda.

Mas Pinel não foi nem um "ideólogo" nem um político, entendido como homem da assembléia, (por um momento ele foi oficial municipal sob a Convenção, mas logo renunciará a qualquer atividade pública desse tipo). É na e através de sua prática profissional que ele irá instaurar um dispositivo, através do qual, os projetos dos reformadores da assistência ganharão uma parte de seu peso histórico. Pinel foi um operador prático da corrente reformista que vai da Convenção à Monarquia de Julho. Graças a ele ― ou melhor, ao tipo de prática que ele foi o primeiro a instaurar de maneira sistemática ― um programa assistencial um tanto vago se incarnou numa tecnologia hospitalar. Pelo menos num ponto, a política filantrópica da burguesia esclarecida obteve os meios para sua realização: na questão dos alienados.

Ilustrar, através da obra de Pinel, os princípios da tecnologia alienista não significa atribuir a um único homem o mérito de uma revolução (se é que houve revolução). É verdade que a originalidade de Pinel e de seu "gesto" foi majorada pela hagiografia psiquiátrica. Médicos como Willis, Cullen (que Pinel traduziu em 1785), Haslam na Inglaterra, Colombier e Tenon na França, Daquin na Sabóia, Chiarrugi na Itália, etc, participam de um mesmo contexto de "reformas" e suas iniciativas, em certos domínios, chegam até a preceder as de Pinel (como as de Haslam e Daquin no que se refere ao tratamento moral). Mas Pinel mostra claramente uma redução que qualifica propriamente o alienismo. Antes dele, duas linhas de progressão se desenvolviam de maneira quase independente. Uma pode ser chamada teórica: ela consiste num refinamento progressivo do quadro classificatório das doenças, através das obras de Boissier de Sauvage, Linné, Sydenham, Tissot, etc.

69. A outra, é um trabalho sobre a

instituição totalitária, através de iniciativas práticas como as de São Vicente de Paula, dos Irmãos de São João de Deus, dos administradores de Hospitais Gerais ou de depósitos de mendigos, dos reformadores como Colombier e Doublet, etc. Os tratamentos seguem uma terceira linha de transformação, aliás bem lenta. As técnicas medicamentosas, em matéria de loucura, ainda são pouco especificadas: administração de farmacopéia e de drogas que supostamente funcionaram em medicina geral, como o ópio; sangrias, purgações; mais específico, o emprego de diversas formas de hidroterapia: lavagens, banhos, duchas frias ou quentes... Doublet, no anexo da circular de 1785 que foi caracterizada como inovadora, preconiza ainda, nos casos rebeldes, "os

69 Cf. M. Foucault, Histoire de la folie, op. cit., II cap. I, "Le fou au jardin des espèces".

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cautérios, sedenhos, abscessos superficiais, inoculação da sarna" assim como a volta ao heléboro

70.

Pinel reuniu essas três dimensões, heterogêneas em aparência, cuja articulação vai constituir a síntese alienista: classificação do espaço institucional, arranjo nosografico das doenças mentais, imposição de uma relação específica de poder entre médico e doente, o "tratamento moral"

71.

Em primeiro lugar, classificação do espaço hospitalar: "1ª Ordem geral estabelecida na distribuição dos enfermos, encaminhamento das crianças e das jovens para os ofícios consagrados aos órfãos; afastamento dos sexagenários, maridos e mulheres sob o nome de, casais, que não se deveria mais tolerar num hospício destinado unicamente às mulheres; distribuição geral do mesmo hospício em várias divisões, de acordo com a idade, as enfermidades ou doenças crônicas e, por conseguinte, isolamento das moças em idade própria ao trabalho, dos septuagenários, das pessoas obrigadas a repouso após longos anos de serviço, dos paralíticos, dos epiléticos, dos alienados, das mulheres atacadas de câncer com a rubrica de incuráveis, cada uma dessas divisões deveria ter suas próprias alas e pátios separados; estabelecimento de oficinas para costura, tricô, renda e outros trabalhos das mulheres válidas; enfim, refeitório para os empregados. Quantos autênticos testemunhos de uma ordem geral e invariável estabelecida doravante num lugar onde outrora reinavam abusos incalculáveis e extremas confusões!"

72

Não nos esqueçamos que Bicêtre, onde Pinel começou sua carreira hospitalar, posteriormente a Salpêtrière onde prosseguiu, eram os dois maiores estabelecimentos do Hospital Geral de Paris, com sua pluralidade de funções e sua diversidade de população. O duque de La Rochefoucault-Liancourt assim descreve, três anos antes da chegada de Pinel, esse extraordinário pátio dos milagres: "A casa de Bicêtre contém pobres acolhidos gratuitamente, pobres que pagam pensão (e distinguem-se quatro tipos diferentes de pensão), homens, crianças epiléticas, escrofulosos, paralíticos, insanos, homens reclusos por ordem do rei, por mandatos do Parlamento e, também esses, com ou sem pensão; crianças detidas por ordem da polícia ou condenadas por roubo ou delito, crianças sem vícios e sem doenças admitidas gratuitamente; enfim,

70 Doublet, "Traitement qu'il faut administrer aux différentes espèces de folie" in' Colombier et Doublet, lnstruction sur la manière de gouvemer les insensés, op. cit., 2ª parte. 71 E inversamente, a comparação com que o que se passou em outros lugares no mesmo momento mostra bem que foi essa sistematização das relações entre os elementos da prática psiquiátrica que garantiu o avanço da escola francesa durante a primeira metade do século XIX. Por exemplo, na Inglaterra, a fundação de La Retraite por Tucke se inscreve na mesma linha "filantrópica". Mas Tucke não era médico. Sua prática se chocou frontalmente com o establishment médico, ao mesmo tempo que seduzia os layinen, os reformadores "leigos" da assistência. Donde uma clivagem perigosa entre as aspirações das almas pias e os prestígios da cientificidade, que os alienistas ingleses terão dificuldade em superar, a fim de conseguir recuperar o tratamento moral como técnica médica. Com Pinel, a síntese é dada de imediato: trata-se de um médico que impõe, através sua prática, a solidariedade entre um saber, um poder e um lugar de exercício, o hospital, e essas três dimensões, que não são novas, operam uma mutação pelo próprio fato de se darem em conjunto. (Sobre a situação na Inglaterra na mesma época cf. A. T. Scull, "From madness to mental illness", Archives europêennes de sociotogie, 1975, 2). 72 Ph. Pinel, La médecine clinique, 2ª ed., Paris, 1804, "Avis sur cette seconde édi-tion", p. XXIX-XXX.

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homens e mulheres tratados do mal venéreo. Assim, essa casa é ao mesmo tempo: hospício, Hôtel-Dieu, pensionato, hospital, casa de detenção e de correição"

73.

O ato fundador de Pinel não é retirar as correntes dos alienados, mas sim o ordenamento do espaço hospitalar. Através da "exclusão" do "isolamento" do "afastamento" para prédios distintos, as categorias misturadas no enclausuramento são desdobradas em tantas quantas forem as razões para se tornar, um assistido: pobreza, velhice, solidão, abandono pelos parentes, doenças diversas. A categoria da loucura se destaca, então, em sua especificidade, decantada dessas complexidades ligadas pela universalidade da desgraça. E, dessa maneira, ela se tornou doença. A partir do momento em que é isolado em seu próprio espaço, o insano aparece, sem dúvida, sequestrado como os outros, porém, por outras razões. Por causa de doença. O que quer dizer isso? O que é a doença mental?

Ela revela a sua natureza num desdobramento do próprio ato de isolamento. A doença se desdobra por reagrupamento-diversificação de seus sintomas, inscrevendo no espaço hospitalar tantas subdivisões quantos são os grandes sintomas comportamentais que ela apresenta. A "distribuição metódica" dos insanos introduziu, por si própria, uma racionalidade da doença

74. O saber que irá constituir a psiquiatria alienista deve ser lido

na disposição espacial do hospital, como nas páginas de um livro. Funda-se uma ciência a partir do momento em que a população dos insanos é classificada: esses reclusos são, efetivamente, doentes, pois desfilam sintomas que só resta observar:

"Um hospício de alienados (...) é destituído de um objeto fundamental se, através de sua disposição interior, não mantiver as diversas espécies de alienados num tipo de isolamento, não for capaz de separar os mais furiosos daqueles que são tranquilos, não evitar suas comunicações recíprocas a fim de impedir recaídas e facilitar a execução de todos os regulamentos de polícia interior ou a fim de evitar anomalias inesperadas na sucessão do conjunto de sintomas que o médico deve observar e descrever"

75.

Mas esse princípio de leitura também é o guia imediato de uma prática. O espaço ordenado solicita uma conduta regulada. O saber e a práxis, o conhecimento da natureza das doenças mentais e seu tratamento são duas vertentes de uma mesma racionalidade hospitalar conquistada pela classificação. Que o hospital, com a condição de ser ordenado, constitui o próprio instrumento do tratamento, deve ser tomado rigorosamente ao pé da letra. O texto de Pinel, citado acima, continua da seguinte maneira:

73 Citado in C. Bloch, A. Tuetey, Rapports et procès-verbaux du Comitê de mendicíté, op. cit., p. 598. 74 Em oposição à situação anterior, assim descrita por La Rochefoucault-Liancourt, após sua visita a Salpêtrière em 1790: "O ar das velhas celas é infecto, elas são pequenas, os pátios estreitos, tudo se encontra num estado de abandono tão penoso quanto inconcebível. As loucas acorrentadas (e são em grande número) estão reunidas com as loucas tranqüilas; as que sofrem acessos de raiva se encontram sob os olhos das que estão calmas; espetáculo de contorsões, furor, gritos, brarhidos perpétuos, impedem qualquer forma de repouso às que dele teriam necessidade, e torna os acessos dessa horrível doença mais freqüentes, mais vivos, mais cruéis e incuráveis. Enfim, aí não existe nenhuma ternura, nenhuma consolação, nenhum remédio" (citado in C. Bloch, A. Tuetey, op. cit., p. 624). 75 Ph. Pinel, Traité médico-philosophique sur l'aliénalion mentale, 2ª ed., Paris, 1809, p. 193-194.

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"Uma distribuição metódica dos alienados do hospício em diversos departamentos possibilita a rápida apreensão das respectivas medidas que devem ser tomadas quanto à sua alimentação, limpeza, regime moral e físico. As necessidades de cada um dentre eles são então calculadas e previstas, as diversas lesões do entendimento são apreendidas através de seus caracteres distintivos, os fatos observados são comparados e reunidos com outros fatos análogos, ou melhor, convertidos em sólidos resultados da experiência; é na mesma fonte que o médico observador pode obter as regras fundamentais do tratamento, aprender a discernir as espécies de alienação que cedem mais ou menos prontamente ao tempo e ao regime, aquelas que opõem os maiores obstáculos à cura, ou que se pode considerar como incuráveis, e enfim as que reclamam imperiosamente o uso de certos medicamentos"

76.

O caráter vicioso do hospital não é devido, portanto, à segregação que ele opera, mas sim à promiscuidade nele reinante. A mistura das espécies propiciava, no Hospital Geral, uma confusão, cujos efeitos invalidavam, ao mesmo tempo, a possibilidade de um conhecimento (impossibilidade de observações exatas, e de diagnósticos precisos), de um tratamento (impossibilidade de domínio específico sobre a doença na indiferenciação dos gêneros) e de uma regeneração moral (a "desmoralização") seria causada pelo contágio das influências suspeitas: transmissão dos vícios, como das doenças, pela promiscuidade. Inversamente, é pelo mesmo ato que, ao ordenar o caos, institui um saber (as classificações nosográficas), uma prática eficaz (o tratamento moral), e uma redução dos focos de epidemias morais (a moralização). Não se trata de proceder a uma crítica radical da instituição hospitalar. Nem mesmo de ser cético, como os defensores da assistência a domicílio, com relação às suas virtudes terapêuticas, vendo nela, um mal menor. Ao contrário, um hospital é um observatório ideal e um centro de ação privilegiado. Donde o programa da medicina alienista: fazer do hospital um instrumento dócil nas mãos do médico esclarecido. Desenvolver nele uma tecnologia que, sem ser nova, é profundamente renovada por ter, enfim, encontrado todas as condições susceptíveis de maximizar sua eficácia.

A Tecnologia pineliana

O próprio Pinel se refere à sua obra como "reforma administrativa". Mas dela tudo decorre: "Fui levado, orientado por esse espírito de ordem, a determinar as divisões da alienação em suas espécies distintas, fundadas em observações numerosas e constatadas da melhor maneira possível. Essa distribuição metódica possui, ainda, uma vantagem preciosíssima para estabelecer uma ordem constante no serviço dos hospícios, e concorrer para o restabelecimento dos alienados"

77.

Rica anfibologia do conceito de ordem do qual toda a medicina mental nada mais será do que um longo comentário: "Essa disposição geral dos alienados segundo a natureza do local, as conformidades de gosto e de inclinação e seu estado de calma ou

76 Ibid., p. 194-195. 77 Ph. Pinel, Traité médico-philosophique., op. cit., p. 5.

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de efervescência, indica, inicialmente, sobre que bases repousa a ordem geral que reina no hospício e a facilidade com que se afasta todas as sementes de dissenção e de distúrbio"

78. Basta enumerar ás principais operações através das quais se desenvolve

essa estratégica da ordem, para se dar conta que ela funda toda a prática asilar.

1. Primeira imposição da ordem, isolar do mundo exterior, romper com esse foco de influências não controladas no qual a doença encontraria do que entreter sua própria desordem. É a justificação do famoso "isolamento terapêutico". Trata-se, igualmente, de uma espantosa inversão dos valores.

Até então, o isolamento dos insanos fora encarado pela corrente filantrópica, como um mal, necessário certamente, mas que constituia, não obstante, um extremo deplorável. Assim, Mirabeau, num violento ataque dirigido, ao mesmo tempo, contra as sequestrações arbitrárias e o princípio das casas de detenção, resolve admitir uma exceção a seu liberalismo: "Quanto aos loucos que se encontram em algumas prisões, é por demais verdadeiro que é preciso esconder à sociedade aqueles que perderam o uso da razão"

79. O resignado "é preciso" de Mirabeau, transforma-se, com Pinel, num "deve-

se" categórico. Aliás, Mirabeau, continuava da seguinte maneira, a sua denúncia, avant la lettre, dos males do "hospitalismo": "Porém, observarei que a maior parte dos insanos enclausurados nas casas de detenção ou nas prisões do Estado, passaram a sê-lo, os primeiros, pelo excesso de maus tratos e os outros pelo horror da solidão onde encontra a cada momento os prestígios de uma imaginação aguçada pela dor"

80. Com Pinel a

perspectiva é exatamente inversa: a sequestração é a primeira condição de qualquer terapêutica da loucura.

Fundando, assim, a necessidade de operar, através dessa ruptura, uma "diversão para o delírio", a psiquiatria fornecerá a racionalização erudita esperada pela exigência administrativo-policial de sequestração (cf. cap. V). A partir desse princípio, o paradigma da internação irá dominar, por um século e meio, toda a medicina mental. Ficam cortadas as vias para a desinstitucionalização, para a assistência a domicílio, para a confiança no valor terapêutico dos vínculos familiares e das relações não profissionais, etc. A hospitalização torna-se a única e necessária resposta ao questionamento da loucura.

"Em geral é tão agradável, para um doente, estar no seio da família e aí receber os cuidados e as consolações de uma amizade terna e indulgente, que enuncio penosamente uma verdade triste, mas constatada pela experiência repetida, qual seja, a absoluta necessidade de confiar os alienados a mãos estrangeiras e de isolá-los de seus parentes. As idéias confusas e tulmutuosas que os agitam e são provocadas por tudo o que os rodeia; sua irritabilidade continuamente provocada por objetos imaginários; gritos, ameaças, cenas de desordem ou atos extravagantes; o emprego judicioso de uma repressão enérgica, uma vigilância rigorosa sobre o pessoal de serviço cuja grosseria e

78 Ibid., p. 198-199. 79 H. G. Mirabeau, "Des lettres de cachet et des prisons d'Etat", Oeuvres, I, Paris, 1820, p. 264. 80 Ibid., p. 264.

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imperícia também se deve temer, exigem um conjunto de medidas adaptadas ao caráter particular dessa doença, que só podem ser reunidas em estabelecimentos que lhe sejam consagrados"

81.

2. Segunda imposição da ordem, a constituição da ordem asilar, essa articulação rigorosa dos lugares, das ocupações, dos empregos do tempo, das hierarquias que tecem a vida cotidiana do doente com uma rede de regras imutáveis. O texto precedente prossegue da seguinte maneira; "Daí se originam os vários preceitos sobre as disposições locais, a distribuição dos alienados, o serviço interior, o regime físico e moral conforme o caráter e as variedades da alienação, seus diversos períodos de estado agudo, de declínio e de convalescência; o que supõe profundos conhecimentos de seu processo, e a mais completa experiência"

82.

Baseado na necessidade da ruptura com o mundo exterior, deduz-se, portanto, a necessidade complementar de construir a partir de zero, um novo laboratório social no qual toda a experiência humana poderia ser reprogramada. A segregação é, portanto, algo diferente do simples transplante de um lugar em outro, ou mesmo a impossibilidade de se comunicar com o exterior em uma instituição fechada. Ela se pretende uma mudança de meio que opera uma inversão dos valores: o mundo "normal" é doravante o lugar da reprodução da desordem, ao passo que o grande cemitério asilar passa a ser um espaço coextensivo da razão, onde os loucos vivem na transparência da lei reapropriando-se dela. Foi necessário esse golpe de força para que a incomensurabilidade da loucura tivesse uma chance de ser anulada pelo reforço de todas as coerções. Os que disseram que o mundo normal não diferia essencialmente do mundo asilar provavelmente não acreditavam dizer tanto: o asilo nada mais é do que o dejeto da sociedade, a ordem da moralidade reduzida ao seu esqueleto de leis, obrigações e constrições. Em comparação com esse modelo, são as regulações da vida corrente que enfraquecem e parecem laxistas. Compreende-se, portanto, que o asilo tenha podido funcionar como o paradigma de uma sociedade ideal, no sentido de idealmente reduzida à ordem. Falanstério, em cujo seio nenhuma perturbação estranha pode mais abalar o harmonioso desenrolar da lei. Mas, de qualquer modo, estranho paradoxo, quando se sabe que esse espaço é aquele que enclausura essa loucura na qual nos comprazemos em ver um excesso de subjetividade.

3. Terceira modalidade da implantação da ordem, a relação de autoridade que une o médico e seus auxiliares ao doente, no exercício de um poder sem reciprocidade e constantemente aplicado. Pois, evidentemente, a loucura é desordem e nada mais que isso. O retorno à razão só pode, portanto, operar-se através da interiorização, pelo alienado, de uma vontade racional que lhe é inicialmente estranha, já que ele é irracional. A partir daí, todo o tratamento passa a ser uma luta, uma relação de força

81 Ph. Pinel, Traité médico-philosophique, loc. cit., "Plan general de l'ouvrage", p. 6-7. 82 Ibid., p. 7.

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entre um pólo razão e um pólo não-razão. Quando a vontade estrangeira penetra nele, circunscrevendo progressivamente o lugar da agitação e do delírio até subjugá-lo completamente, ocorre a cura: "Os maníacos se distinguem, particularmente, pelas

divagações que ressurgem continuamente, por uma irritabilidade das mais vivas, e por um estado de perplexidade e de agitação que parece dever se perpetuar ou não poder se acalmar a não ser gradativamente. Um único centro de autoridade deve sempre estar

presente em sua imaginação para que aprendam a se reprimir, eles próprios, e a domar seu arrebatamento impetuoso. Uma vez realizado esse objetivo, basta apenas ganhar sua confiança e merecer sua estima para torná-los inteiramente aptos a usarem a razão no declínio da doença e da convalescência"

83.

O médico é a lei viva do asilo e o asilo é o mundo construído à imagem da racionalidade que ele encarna. O espaço hospitalar concentra seus poderes e, inversamente, a ordem inscrita nas coisas ganha vida como ordem moral por ter como suporte a vontade do médico. O tratamento moral é essa estratégia através da qual o poder médico se apóia em todas as relações institucionais que, por sua vez, foram articuladas para lhe servir de intermediário. Seria ingênuo surpreender-se com o fato de que essa relação apresente frequentemente um estilo de luta. Essa violência é de direito, é a violência da razão. O alienado nada mais é do que um "enfermo'

84, cujo defeito, aliás,

frequentemente se apresenta como excesso, imoderação. É necessário dobrá-lo, dominá-lo através de uma relação terapêutica que se assemelha a uma justa entre o bem e o mal.

Não é por acaso que a psiquiatria nascente se inscreveu numa forma institucional que é herança do absolutismo político. A relação que se desenrola entre o médico e doente, e que representa o primeiro paradigma da relação terapêutica em medicina mental, é uma relação de soberania. O louco só pode reconquistar sua humanidade através de um ato de fidelidade a uma potência soberana encarnada num homem. Desprovido de tudo e principalmente da razão, não tem acesso por si só, à ordem contratual. Se ele pode esperar aceder a essa ordem só pode ser através da mediação de uma relação de tutela tornada arcaica em comparação com o novo modelo que, por suposição, preside à reorganização da totalidade das relações sociais. Numa sociedade contratual, ã relação médica com o louco, se instaura, portanto, reproduzindo uma antiga relação de fidelidade. Mas, não inteiramente. A nova fidelidade não se define mais em relação aos valores da sociedade feudal, mas em relação aos valores racionais da nova sociedade contratual. O poder do médico, por hipótese, tem por fim o saber e se anula, enquanto princípio de dominação, com a reconquista da autonomia racional pelo louco. Daí o jogo particularmente sutil entre exercer a violência e restituir o acesso à

razão, subjugar e liberar, que irá estruturar toda a história da relação terapêutica.

Contudo, naquele momento, essa relação terapêutica permanece contida na instituição onde se instala. Mas, da mesma forma que a relação médico-doente já é

83 Ph. Pinel, Traité médico-philosophique, op. cit. Prefácio, 2ª ed., p. IV. 84 Ph. Pinel, continuação do texto seguinte: "É preciso, portanto, para esses enfermos, estabelecimentos públicos ou particulares submetidos a regras invariáveis de polícia interior" (ibid., p. V).

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como que uma sublimação da relação de soberania, assim também o palco do afrontamento é como uma sublimação da instituição totalitária. Não se trata mais do espaço indiferenciado da prosmicuidade e dos contágios, mas sim um território ordenado cujos caminhos balizados representam etapas para a cura.

O estabelecimento especial: herança e inovação

Poder-se-ia dizer que o asilo terapêutico representa uma revolução ou que ele se inscreve na continuidade do desenvolvimento das instituições disciplinares. Com efeito, seria preciso demonstrar de que maneira ele salva essas últimas do descrédito, renovando profundamente a problemática na qual elas ganhavam sentido. Primeiro aggiornamento que opera em três níveis: do recrutamento das populações concernidas, das técnicas de disciplinarização aplicadas e das finalidades políticas buscadas.

Primeiramente, o mecanismo de recrutamento das populações a seu "encargo" aparentemente não mudou. Continua-se a realizar uma função no seio de uma massa de desviantes ou de marginais, a arrancá-los do seu meio para transplantá-los num espaço fechado a fim de maximizar a eficácia das técnicas que lhes serão impostas.

Em segundo lugar, essas técnicas continuam do mesmo tipo: aprendizagem da regularidade, da obediência e do trabalho... Portanto, técnicas disciplinares ― cuja proliferação, à sombra do poder de soberania, Michel Foucault mostrou ― sobretudo nesses meios fechados que, desde os conventos religiosos, funcionavam como laboratórios onde elas eram experimentadas antes de serem generalizadas. No asilo (como também nas prisões) essas técnicas desenvolvem sua coerência sistemática.

Em terceiro lugar, as finalidades visadas por essas operações também não diferem fundamentalmente. Trata-se sempre de anular ou reduzir a distância que certos comportamentos mantêm em relação às normas dominantes: corrigir indisciplinados, obrigar ociosos ao trabalho, readaptar doentes e também dissolver focos de desordem e de agitação. Os lugares de internação sempre desempenharam, supostamente, um papel duplo retomado pelo asilo: reinjetar os reclusos no circuito da normalidade, quando as técnicas de disciplinarização são vitoriosas; neutralizá-los, pelo menos, e definitivamente, se necessário, através da segregação.

Portanto, continuidade em relação à política da assistência do Antigo Regime, pelo menos tal como começa a sistematizar-se à medida que um poder político autoritário, e centralizado se impõe. Não obstante, operou-se uma transformação decisiva. Em cada um dos três níveis, a síntese alienista resolve uma aporia na qual a velha instituição totalitária esbarrava.

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1. Em primeiro lugar, no antigo sistema, a apreensão do perturbador era uma medida de polícia. Depois, torna-se uma intervenção médica. No regime monárquico, o caráter abertamente repressivo da caça aos ilegalismos havia colocado grandes problemas para o poder político. A prisão dos mendigos, vagabundos, maus elementos e até de criminosos, provocava frequentemente "emoções" e mesmo revoltas populares. O choque que essas detenções provocavam pode ser muito bem qualificado de político, porque a violência e o exercício do poder se manifestava em seu caráter arbitrário e suscitava a revolta das vítimas. Evidentemente que não era para o bem dos contraventores que os arqueiros do rei os prendiam para jogá-los nessas casas abomináveis. Mas, é pára o bem dós doentes que a medicina alienista se encarrega deles. A sequestração aparece agora como uma medida quase que natural, em todo caso humana, porque a necessidade do isolamento se fundamenta na natureza da doença.

A justificação médica da internação desmobiliza, portanto, as reações face à intervenção do poder público, em certas ocorrências, no domínio da manutenção da ordem, Mas garante também uma detecção mais-segura de uma parte das populações visadas. Apesar da reclusão, sob o Antigo Regime, pretender ser uma medida política para controlar os indesejáveis, sua eficácia fora duvidosa. Multiplicidade dos mandatos reais sobre a repressão da mendicância e da vagabundagem, frequentemente baixados com intervalos de alguns anos, é muito significativa nesse sentido: para ter que renovar tão frequentemente essas diretivas era preciso que elas fossem pouco ou mal aplicadas. A maior parte da multidão dos desviantes e dos marginais passava através das malhas muito amplas de uma rede lançada por diferentes instâncias repressivas de ação mal coordenada. Identificar uma parte deles do ponto de vista médico, especializar um aparelho na tarefa de rolá-los, significa arrogar-se um meio mais eficaz, primeiro, de recenseá-los e, em seguida, de apoderar-se deles.

2. Em segundo lugar, a eficácia das medidas disciplinares aplicadas aos reclusos das casas de detenção, hospitais gerais, depósitos de mendigos, etc, era ainda mais duvidosa do que a das disposições que regulavam suas detenções. Aqui ocorre o mesmo contraste entre os regulamentos dessas instituições que falam de trabalho, de obediência aos preceitos morais e religiosos e os testemunhos e queixas sobre seu funcionamento real que denunciam unanimemente o reinado da fraude e do vício. À venalidade e ao sadismo dos guardas corresponde a ociosidade, a devassidão, as rixas e o espírito de revolta dos reclusos. Uma casa de detenção é, em princípio, um instrumento do governo de uma eficácia insuperável. Num meio protegido contra as influências exteriores, os administradores dispõem de um poder discricionário sobre súditos que nada mais podem senão obedecer sem apelação. Não somente os dirigentes são os senhores de uma polícia interior que distribui à vontade as sanções e as penas, como também, em muitas dessas casas, possuíam uma grande liberdade para fixar a duração das estadias em função da conduta dos internos

85.

85 Cf. P. Sérieux, Le quartier d´aliênés du depât de mendicíté de Soissons, op. cit.

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De fato, entretanto, a administração dessas instituições assemelha-se à desses governos despóticos que alternam o terror e o laxismo por serem incapazes de conseguir impor um regime regular de coerções. De que maneira pode um poder ser absoluto sem cair no arbítrio, permanecer "comedido" impondo decisões sem apelação, ou seja eficaz e racional? A psiquiatria oferece uma solução original face a essas contradições que haviam bloqueado a política da internação e a haviam conduzido, finalmente, ao fracasso. Ela propõe uma instrumentalização do poder absoluto que torna seu exercício eficaz e racional.

A ordem asilar é certamente a imposição de técnicas disciplinares, mas a tecnologia médica lhes fornece a unidade que faltava. O padre Dunod, por exemplo, dizia a propósito das Casas de "Caridade" dos Irmãos de São João de Deus, que elas eram ao mesmo tempo casas religiosas, seminários de educação e manufaturas

86. Três funções

cuja unidade é, ao mesmo tempo, real (são as mesmas técnicas que são impostas) e problemática (rezar, respeitar o regulamento interior e trabalhar dizem respeito a três princípios de obrigação heterogêneos quanto ao seu fundamento). No asilo, a justificação terapêutica de todas as atividades é deduzida do mesmo princípio. A organização da vida cotidiana é tratamento, a submissão às ordens do pessoal é tratamento, o trabalho é tratamento. O "tratamento moral" é o desenrolar de uma tecnologia englobante que supostamente unifica, internamente, a diversidade das coerções (de ordem econômica, administrativa, pessoal, etc.) impostas ao recluso. A

menor peripécia da vida cotidiana é retomada no projeto global da instituição e elevada à dignidade de suporte terapêutico.

Essa unidade é reforçada pela unidade de comando sob a liderança médica absoluta. Nas instituições fechadas do Antigo Regime existiam focos de poder concorrentes: diretor e administradores (religiosos ou leigos), tesoureiro, zelador, capelão, pessoal de vigilância (religiosos ou leigos), médico (quando lá penetrava), etc. Quanto ao asilo, a tese da supremacia da direção médica é imediatamente colocada por Pinel. Ela abre, como iremos ver adiante, um longo debate técnico sobre as prerrogativas respectivas da medicina e da administração na gestão do hospital. Não obstante, admite-se, em princípio, que o "médico, pela natureza que o liga ao sucesso do tratamento, deve ser informado e tornar-se o juiz natural de tudo o que se passa num asilo de alienados"

87. Pequena república platônica, o asilo realiza a síntese entre o saber e poder

através dessa figura moderna do rei filósofo que é o médico-chefe.

3. Em terceiro lugar, é no asilo que o duplo jogo da instituição totalitária entre neutralizar e reeducar encontra sua melhor justificação. Se, como Michel Foucault demonstrou, o controle exercido sobre os desviantes pode ser feito segundo dois modelos antagônicos, a exclusão e o esquadrinhamento disciplinar

88, essas duas

estratégias não são mutuamente excludentes. Tudo se passa como se, do leprosário ao

86 P. Dunod, Projet de la Charité de la ville de Dôle. Paris, 1698. 87 Ph. Pinel, Trailé médico-philosophique, op. cit., p. 225. 88 M. Foucault, Surveiller et punir, op. cit.

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asilo, passando pelo Hospital Geral e pelo depósito de mendigos, progressivamente se instaurasse uma forma mista na qual a segregação representaria uma primeira etapa a ser anulada graças à aplicação, num espaço fechado, de um programa de ressocialização. Somente o leprosário parece ter sido um meio de pura exclusão, se é verdade que se contentou em circunscrever um no man´s land social no qual os condenados eram apenas depositados. Porém, antes mesmo da constituição do leprosário, o convento realizou uma outra figura do espaço fechado mas pleno, saturado de regras e de disciplinas onde a ruptura com o mundo exterior nada mais era do que um meio de maximizar, no interior, a eficácia das regras disciplinares.

O tipo ideal do convento ilustra a profunda afinidade que existe entre o isolamento, disciplina e transformação da personalidade. Ele revela, também, todas as condições que seriam exigidas para a realização da utopia totalitária: aperfeiçoamento de um código que seleciona os novatos (no caso, o código religioso da vocação), de uma tecnologia institucional rigorosa (cf. a regra de São Bento, por exemplo), e das finalidades oficiais da instituição ("matar o homem velho" para reprogramar um homem novo). Em princípio o postulante aceita ― e mesmo deseja ― o processo de transformação de sua personalidade que a organização da existência na instituição fechada tem por objetivo promover

89.

O mesmo não ocorre com o vagabundo, o delinquente, o libertino ou mesmo o simples miserável. A priori, eles não tem nenhuma razão para desejarem ser "moralizados". Em outras palavras, existe uma defasagem entre o código social e/ou moral que os seleciona, o programa de ressocialização que não pode ser talhado sob medida por causa da heterogeneidade das populações que supostamente ele trata, e a finalidade readaptativa da instituição que lhe é imposta de fora. Daí o fracasso quase que necessário da instituição totalitária, na medida em que se obriga o recluso a romper com sua cultura, a repudiar sua afinidade de grupo e de classe, em nome de um projeto de regeneração que nada tem a ver com ele, pois só expressa a lei dos senhores. A presença numa instituição fechada provoca o aparecimento de uma relação de força entre governantes e governados que não é dada de antemão. Existe a força dos fracos que se expressa através da dissimulação e do complô, que desvia e corrompe a lei da instituição e que pode bloquear seu funcionamento tanto mais eficazmente quanto aqueles que dispõem, em princípio, de todos os poderes, não possuam uma tecnologia específica para instrumentalizá-los

90.

No asilo, a coincidência entre o interesse do doente e a finalidade oficial da instituição ainda permanece, em parte, fictícia. Mas tem mais credibilidade e, sobretudo, tenta se realizar através de um dispositivo técnico mais elaborado. Tem mais credibilidade porque supõe a coincidência da cura do doente com o caráter terapêutico da instituição. Ora, a monopolização do poder pelos representantes oficiais da instituição (os médicos) é justificada, no caso, por razões internas à ideologia médica: consistindo o "infortúnio" do louco em sua perda da razão, o que lhe é imposto não o é realmente de

89 Cf. a apresentação de Asiles de E. Goffman, trad. francesa, Paris, 1968. 90 E. Goffman, Asiles, op. cit.

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fora, mas sim, em nome do que ele próprio faria se fosse racional. No dispositivo institucional do asilo ajustam-se, portanto, numa síntese, pelo menos ideologicamente coerente, o código médico, a tecnologia do tratamento moral, o status do recluso, menor cujo estado exige o encargo por uma vontade alheia e, enfim, a posição de poder absoluto do responsável oficial da instituição, o médico, que encarna essa vontade médica.

Uma única objeção: nem todos os doentes se curam, pelo contrário. Mas, afinal de contas, Deus sabe se, nos conventos, frades e freiras não encontraram mais frequentemente o caminho da perdição do que o da salvação. Mas não resta dúvida de que o convento foi uma admirável máquina de poder, o mais sistemático agencia-mento institucional para matar a personalidade e reconstruir, na base dessa erradicação, uma nova e completa definição do homem. Em suma, o laboratório de experimentação sobre o homem tecnicamente mais elaborado. A eficácia das casas de detenção fica muito atrás. No final.do século XVIII, tornou-se claro que essa versão, cultivada em isolamento, de uma contra-organização deliberada e sistemática da existência humana, fracassou na proposta de uma solução global para os problemas do desvio. O asilo retoma a questão em novas bases. Ele parte de uma definição mais cuidadosa de sua população, de uma disposição mais rigorosa de suas técnicas e de uma justificação mais científica de seus objetivos.

Essa primeira metamorfose marca o nascimento da medicina mental. Todos os alienistas irão se indignar contra o escândalo de enclausurar em prisões esses infelizes doentes. Todos serão unânimes em sublinhar o enorme progresso filantrópico que a invenção do asilo representou. Não há nenhuma razão de suspeitar de sua sinceridade. E mais ainda: seria um erro pretender que eles se enganaram completamente. Eles operaram uma metamorfose. Inventaram um "outro cenário", ou seja um espaço bem diferente, mas que é também o mesmo. Contudo, prisioneiros de sua própria prática, não reconheceram o que subsistia do velho esqueleto sob a nova construção. Provavelmente não o podiam reconhecer. Possamos nós, apenas, em vez de condená-los, tirar a lição de uma distância, cujo mérito não é lá grande, já que tudo isso ― esperemos, pelo menos ― está em vias de desaparecer. Porém, Fênix pode renascer de suas próprias cinzas. Não existiria um discurso sobre a liberação da palavra que poderia ser tão liberador-mistificador quanto o discurso sobre a liberação dos alienados de suas cadeias?

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CAPÍTULO III A PRIMEIRA MEDICINA SOCIAL

A partir do baluarte asilar conquistado por Pinel, uma nebulosa complexa emerge nas três primeiras décadas do século XIX. Ela irá tecer laços entre práticas aparentemente heterogêneas: hospitalares e extra-hospitalares; referidas a um saber que se pretende novo, mas que defende os interesses corporativistas de um grupo profissional; pretendendo impor-se através de uma pura competência técnica, quando recebem uma sanção legal, etc. Mas todas essas práticas têm um ponto em comum: recebem uma característica médica e se impõem através do reconhecimento dessa qualificação. Donde a questão preliminar ― antes dê seguir sua difusão no capítulo seguinte: qual teria sido a função específica da codificação médica para constituir esse novo campo de objetos? E, mais precisamente, de que referência médica se trata? Qual é a medicina e quais são os médicos que concretizam operações que, aparentemente, diziam mais respeito a uma problemática da ordem pública do que a essa paciente exploração dos corpos através da qual, no mesmo momento, a clínica funda a medicina moderna sobre novas bases?

"Medicina especial", "médicos especiais": assim se qualificam os próprios atores. O que quer dizer isso? Trata-se, de fato, de uma medicina social cuja primeira figura é elaborada pela medicina mental. Nela, um código médico já superado e um velho devaneio político encontram, em sua aliança, uma nova juventude. A vitória histórica do alienismo se deve a que ele soube juntar ― ou melhor, não dissociar ― uma trama médica, garantida pela respeitabilidade científica, e uma trama social, a dos filantropos e dos reformadores do período pós-revolucionário à procura de novas técnicas assistenciais.

Nascimento de uma especialidade

Pinel representou um ponto crucial. Realizou, em sua própria pessoa, a disjunção criadora da primeira especialidade médica. Trata-se de um "clínico geral" ― se se pode empregar essa palavra antes do surgimento das "especialidades" ― que fornece, inicialmente, com sua Nosographie philosophique, a suma dos conhecimentos médicos do século XVIII. Na metade de sua vida foi nomeado, por razões devidas sobretudo à conjuntura política, para Bicêtre e, depois, para a Salpêtrière, dedicando aos alienados sua atividade teórica e prática. Contudo, sua notoriedade principal continua sendo a de um grande médico enciclopédico. Aliás, quando foi criada a Escola de Saúde de Paris, por decreto da Convenção, a 14 frimário, ano III, ele ocupou a cadeira de professor adjunto

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de física médica e de higiene, posteriormente a de professor de patologia médica (patologia interna), que manterá até a sua demissão em 1822

1.

Esquirol é o primeiro "especialista", no sentido de que, a partir dele, abre-se toda uma carreira consagrada à alienação mental. Ele se reúne a Pinel na Salpêtrière a partir do ano VIII. Nos anos seguintes agrupa em torno de si todos aqueles que se tornarão os grandes nomes do movimento alienista, Falret, Pariset, Ferrus, Georget, Voisin, Leuret e, um pouco mais tarde, Trélat, Calmeil, Foville, Lassègue, Chambeyron, Evrat, etc.

2. Essa

separação do tronco comum da medicina inova, no próprio momento em que a reorganização da profissão médica vai, ao contrário, no sentido de um reforço de sua unidade. É dessa forma que a reforma fundamental de Fourcroy do ano XI, completando a do ano III, termina com a separação originária entre medicina e cirurgia, impondo uma formação comum às duas disciplinas

3.

O grupo dos alienistas opera, na medicina, um corte original, cuja especificidade permanecerá até à reforma do estatuto dos médicos-chefes dos hospitais psiquiátricos em 1968. Ele realiza a unidade entre uma forma homogênea, defasada em relação ao ensino das faculdades, e um estatuto de funcionário ligado a uma instituição hospitalar. Essa situação difere tanto do exercício privado da medicina, quanto da carreira hospitalar das faculdades. Ela é o cadinho do "quadro" dos médicos alienistas (transformados em médicos-chefes dos hospitais psiquiátricos em 1937), que exerceu até hoje uma influência preponderante sobre a revolução da medicina mental na França. Seus traços originais ― distância com relação às universidades quanto à formação, homogeneidade e especificidade do recrutamento, peso das tradições ligadas às condições da prática no meio fechado do asilo, e logo o estatuto, por muito tempo único na medicina, de funcionários a tempo integral, nomeados diretamente pelo poder central ― originam-se no ambiente da Salpêtrière. De lá irão partir os missi dominici

* de

um novo servido público: "A partir da promulgação da lei de 1838, jovens médicos, escolhidos em sua maior parte dentre os alunos dos mestres eminentes que ensinavam alienação mental nos hospícios de Paris, foram enviados para os Departamentos a fim de organizarem o novo serviço. Esses missionários tiveram que criar tudo"

4.

De fato, o movimento tinha começado bem antes de 1838. Nessa data, todos os serviços parisienses eram dirigidos por representantes da escola. Esquirol, que decidia as nomeações, já colocara seus alunos em Rouen, Nantes, Toulouse, Auxerre, Rennes, etc.

Desde 1830, um opositor, o advogado Elias Regnault, em sua polêmica contra as pretensões dos alienistas em matéria de perícia médico-legal (cf. infra, cap. IV), é testemunha dessa precoce auto-nomização da especialidade. Os "médicos especiais" 1 A. Corlieu, Centenaire de la faculte de médecine, Paris, 1896. Encontra-se nesse livreto o horário e o programa dos diferentes cursos dados na Escola de Medicina de Paris, transformada em faculdade durante a reorganização napoleônica de 1808. O de Pinel nada tem a ver com a medicina mental. 2 Cf. R. Semelaigne, Qualques pionniers de la psychiatrie française, Paris, 1930, e Médecins et phtlanthropes. Paris, 1912; cf. também A. Moret, Nolices bibliogràphiques, Paris, 1894; A. Ritti, Histoire des travaux de la societé médico-psychologique,

Paris, 1913. 3 U. Trélat, De la constituition du corps des médecins et de l'enseignement medical, Paris, 1828. * N. do T.: Em latim: os enviados do Senhor. 4 A. Ritti, "Eloge d'E. Renaudin", in Histoire des travaux de la Societé médico psychologique, op. cit., p. 122.

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com base em sua formação comum nos asilos, já se colocam como um corpo unido face a seus colegas: "Porque alguns médicos foram ligados a um hospício de alienados, quer como internos quer a um título mais elevado, não consideram em nada a opinião de todos os outros e, refugiados em sua especialidade, contestam o direito de conhecer e de se pronunciar aos colegas de fora. (...) Assim, por um lado, apresentam-se os médicos dos hospitais com sua ciência especial, taxando os outros de ignorância; e, por outro lado, a massa dos médicos reclama contra esses analistas privilegiados do intelecto humano, sustentando que, se suas luzes são incertas, essa incerteza é geral"

5.

Portanto, tudo começou "na época já distante onde florescia a escola da Salpêtrière" cuja atmosfera calorosa, Lasègue evoca trinta anos mais tarde: "As aulas tinham uma posição secundária mas, ao lado do auditório do anfiteatro, existia o círculo mais restrito dos alunos assíduos. O serviço era accessível a todos, sem formalidades, sem doutrina imposta, cada um estudava segundo a inclinação de suas aptidões, e relatava suas observações pessoais que eram debatidas e discutidas, controvertidas em comum com a indulgente participação do mestre. Vivia-se, dessa forma, numa amigável atividade do espírito cuja lembrança nenhum de nós perdeu"

6.

Impressão de andar de vento em popa, de abrir um campo de pesquisas infinitas e, ao mesmo tempo, de ver suas inovações acolhidas, em geral, positivamente, porque correspondiam a uma espectativa tão solícita que nem olhava muito para a qualidade da resposta: "Era a época em que a medicina mental usufruía da benevolência que era dada a todas as novidades em medicina. Ela era pouco estudada; mas não era discutida, e as decisões tomadas pelos médicos alienistas eram acolhidas com a deferência que se tem em relação às afirmações científicas demasiado jovens para sofrerem a experiência da contradição"

7.

Assim, sob o entusiasmo, perpassa um tom mais grave. Não somente esse sucesso é frágil, como também poderia haver contra-senso naquilo que supostamente o garante. "Esquirol introduzira, na patologia, um método ao qual seus alunos permaneciam religiosamente ligados. Enquanto que a fisiologia afirmava, com Broussais, sua preponderância na medicina, era natural que a psicologia, essa fisiologia da inteligência, reclamasse os mesmos direitos. O estado normal das faculdades do espírito tornara-se objeto de pesquisas hábeis, ardentes, quase apaixonantes. Apressava-se em utilizar, em proveito da patologia, descobertas ainda inexploradas. O doutor Falret possuía uma fé refletida, convincente e convencida no futuro da medicina psicológica e assim, como seus contemporâneos, desligava-se, em parte independentemente dele próprio e em parte cientemente, do que os Alemães chamaram, posteriormente, medicina somática. Nisso consistiu a direção decepcionante de sua vida, tão bem preenchida"

8.

Paradoxo: à medida que a primeira especialidade médica cresce espetacularmente, estabelece-se uma distância cada vez maior em relação ao que

5 E. Renaudiri, Nouvelles réflexions sur la monomanie homicide, Paris, 1830, p. 5-6 (sublinhado pelo autor). 6 Ch. Lasègue, "Notice nécrologique sur J.-P. Falret", Archives générales de médecine, 1871, 1, p. 487. 7 Ibid, p. 488. 8 Ibid.. p. 490.

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deveria servir-lhe de fundamento, o desenvolvimento concomitante da medicina em geral. As "afirmações científicas demasiado jovens" da medicina mental repousam, de fato, numa referência médica muito envelhecida. Essa proposição merece maior atenção. Ou essa fixação é um erro, e ainda seria necessário explicar por que o arcaismo era compensador em medicina mental, no momento em que a medicina moderna constituía seus fundamentos no mesmo meio parisiense. Ou então, é somente através de um modelo médico muito particular ― e, infelizmente para a "ciência", já ultrapassado ― que a medicina mental poderia realizar seu mandato, pois esse mandato não era essencialmente médico.

A "escolha" desse corpo teórico parece orientada menos por sua "cientificidade" médica do que por sua pertinência na codificação de uma problemática social. Atualmente, alguns diriam que o saber instaurado por essa primeira psiquiatria se esgota em sua determinação ideológica. De fato, não há nenhum "corte epistemológico" no caso, entre as referências eruditas e uma demanda social que elas expressam claramente. Mas uma tal desqualificação não teria muito sentido. Positivamente, a força da síntese alienista se deveu, ao contrário, à sua aptidão para instrumentalizar as preocupações práticas dos higienistas e dos filantropos. Donde a primeira questão: em que e por que o corpus alienista pôde fornecer uma formulação operatória à política desses reformadores sociais? A resposta a essa questão foi esboçada no capítulo precedente que mostrou em que o salvamento de uma parte da instituição totalitária podia se inscrever numa estratégia de controle do desvio. Mas é o conjunto do sistema alienista que é capaz de reformular "cientificamente" as exigências da nova política da assistência que se elabora no mesmo momento.

Um saber muito especial

Pinel é o primeiro a fornecer a formulação de conjunto do corpus teórico da ciência alienista, como é também o primeiro a caracterizar o conjunto de sua prática hospitalar. Mas sua obra teórica, mais ainda do que a tecnologia pineliana, deve ser lida em continuidade com relação à medicina do século XVIII. Sua Nosographie philosophique é o último dos grandes sistemas classificatórios fundados na coleta metódica dos sinais exteriores das doenças: "Uma distribuição metódica e regular supõe, no seu objeto, uma ordem permanente e sujeita a certas leis gerais: Ora, as doenças que eram erroneamente consideradas digressões ou desvios da natureza, não possuem esse caráter de estabilidade, já que suas histórias, recolhidas pelos antigos e pelos modernos, são tão conformes, quando não se perturba a ordem da natureza? Uma observação atenta e constantemente repetida não conduziria a focalizá-las como mudanças passageiras mais ou menos duráveis, nas funções da vida, e manifestadas através de sinais exteriores com uma constante uniformidade nos traços principais e inúmeras variedades nos traços acessorios? Esses sinais exteriores (...) formam, nas suas diversas combinações, quadros isolados, mais ou menos distintos e fortemente pronunciados

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segundo se tenha uma visão mais ou menos experiente ou se faça observações profundas ou superficiais"

9.

A constituição de uma ciência da alienação mental é pura e simplesmente o decalque desse método classificatório da medicina geral do século XVIII, ele próprio herdado das ciências naturais: "Portanto, por que não transportar para essa parte da medicina, como para as suas outras partes, o método em uso em todos os ramos da história natural? Os traços distintivos da alienação mental, com exceção de variações acessórias, não seriam os mesmos em todas as observações exatas recolhidas em diferentes épocas? E não se deveria concluir que todos os outros fatos que se poderá recolher virão situar-se naturalmente nas divisões que forem adotadas? Aliás, é o que confirmam, todo dia, os alienados de um ou de outro sexo admitidos nos hospícios"

10.

Trata-se, efetivamente, da aplicação do princípio metodológico geral no qual Pinel resume sua obra e que o situa na medicina das espécies: "Dada uma doença, determinar seu verdadeiro caráter e a ordem que deve ocupar num quadro nosológico"

11. A atitude

científica consiste simplesmente em observar o curso natural dos distúrbios mórbidos, assegurando-se de que ele não foi perturbado por nenhuma interferência estranha. Como no caso das febres e das afecções corporais, veremos também as doenças do espírito ordenarem-se em configurações estáveis a partir da simples descrição de seus sintomas. A novidade que Pinel se orgulha de ter introduzido, em relação aos seus predecessores, em matéria de alienação mental, reduz-se, exatamente, ao seguinte: observar minuciosamente os sinais da doença na ordem de sua aparição, no desenvolvimento espontâneo e no seu término natural. É por essa razão que seu método é, segundo ele, "filosófico", no sentido de Locke e de Condillac: o contrário de "metafísico", ele recusa as especulações arrojadas sobre as causas obscuras dos fenômenos. Pinel se inscreve na tradição filosófica da escola inglesa retomada na França por Condillac e pelos ideólogos e especialmente aplicada à medicina por Cabanis: o homem é maleável pela experiência, visto que todos os seus conhecimentos lhe vêm do exterior; todas as idéias c os conhecimentos são um composto de sensações e podem ser reduzidos pela análise em seus elementos mais simples

12. É o obscurantismo metafísico

que visa um "além" dos fenômenos. A ciência contenta-se em encontrar seu ordenamento racional limitando-se ao que é dado na experiência. Ela distingue o essencial do acessório, o constante do acidental porém, a partir do que aparece à observação atenta.

A consequência prática dessa orientação na medicina mental é de dirigir a atenção para os sinais ou sintomas da loucura em detrimento da procura de sua sede no organismo. A racionalidade, assim conquistada, é apenas classificatória. Ela consiste em agrupar, segundo sua ordem natural, as manifestações aparentes da doença. Portanto,

9 Ph. Pinel, Nosographie philosophique ou la méthode de l'analyse appliquée à la médecine, Paris, 1800, Introdução a 1ª ed., p. VI-VII. 10 Ph. Pinel, Traité médico-phytosophique sur l'aliénation menlale, op. cit., p. 136. 11 Ph. Pinel, Nosographie philosophique, op. cit., p. X. 12 Cf. G. Rosen, "The philosophy of the ideology and thçemergence of modern medecine in France", Bulletin of History of

Medicine, 1946, vol. XX.

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racionalidade puramente fenomenológica, que se esgota em constituir nosografias. Paradoxo no momento em que, através da "abertura dos cadáveres", um novo modelo de cientificidade começa a se impor. A exploração do embasamento orgânico que, na medicina, constituirá a atitude "científica", ainda é assimilada por Pinel ao obscurantismo "metafísico" das vagas especulações sobre as causas ocultas dos fenômenos: "Seria fazer uma má escolha, tomar a alienação mental como um objeto particular de pesquisas, consagrando-se a discussões vagas sobre a sede do entendimento e sobre a natureza de suas lesões diversas; já que nada é mais obscuro e impenetrável. Mas, para nos mantermos dentro de sábios limites, se permanecermos no estudo de seus caracteres distintivos manifestados através de sinais exteriores, adotemos, como princípios do tratamento, somente os resultados de uma clara experiência e, então, penetraremos no movimento seguido, em geral, em todas as partes da história natural; e, procedendo com reserva nos casos duvidosos, não teremos mais receio de desviar-nos"

13.

Sobre esse ponto decisivo Pinel, no essencial, foi seguido pelo grupo da Salpêtrière que, assim, sitou-se a contracorrente do desenvolvimento contemporâneo do saber médico. Com efeito, nada há em comum entre essa espécie de fenomenologia descritiva e a observação clínica, à qual Michel Foucault atribui o nascimento, exatamente no mesmo momento e no mesmo meio parisiense, observação que trespassa os sinais, rompe os arranjos de superfície e procura, nos tecidos e nos órgãos, o princípio de uma inteligibilidade subjacente da doença

14.

O divórcio era demasiado profundo para não ser percebido pelos contemporâneos. É conhecida a polêmica que opôs Pinel a Broussais, o profeta da "fisiologia"

15. Em termos mais comedidos, Bichat expressa claramente a

incompatibilidade entre os princípios da escola alienista e os da medicina "científica". "Há alguns anos somente, todos os que estavam à frente dos hospícios de alienados (...) consideravam as alienações mentais como doenças da alma e do espírito com os quais, o corpo não possuía a menor ligação; ou então, situavam sua sede imediata no peito ou nas entranhas do ventre. Não somente essa crença geral desviava a atenção da verdadeira sede dessas doenças, como também privava os médicos das casas de loucos de um dos mais preciosos e mais fecundos meios de descobrir a relação entre as alterações de faculdades fundamentais e as alterações do cérebro. (...) Contento-me (...) em ter operado a mais feliz das revoluções, não somente no que diz respeito ao estudo da natureza das doenças mentais como também ao seu tratamento"

16.

Entretanto, Bichat se ilude sobre um ponto: ele não realizou essa "feliz revolução". Sua influência, como a de seus contemporâneos, orientados para a pesquisa do substrato orgânico da doença mental ― Bayle por exemplo, o descobridor da paralisia geral ou Rostan, o primeiro teórico do organicismo que, apesar de amigo de Pinel, não

13 Ph. .Pinel, Trailé médico-philosophique, op. cit., Introdução à 1ª ed., p. IX. 14 M. Foucault, Naissance de la clinique, op. cit. 15 Cf. F. J. Broussais, De l´irritation et de la folie, Paris, 1828. 16 X. Bichat, Recherches physiotogiques sur la vie et la mort, Paris, 1868, p. 72-73.

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foi alienista ― só poderá se impor mais tarde, justamente, quando a corrente pineliana tiver esgotado seu crédito.

A contradição é tão real que aparece na própria obra da maior parte dos discípulos. Falret projeta, no início de sua carreira, um tratado intitulado lnstructions à tirer des ouvertures de corps des alienes pour le diagnostic, le pronostic et le traitement des maladies mentales. Ele nunca o escreverá e repudia, cada vez mais, as tentações organicistas à medida que progride na carreira alienista, formulando, por fim, a doutrina do "ecletismo terapêutico" à qual voltaremos adiante.

O caso mais típico é o de Georget. Trata-se, sem dúvida, do espírito mais perspicaz da escola e o mais orientado do ponto de vista médico em função dos novos critérios. Ele vê, efetivamente, o impasse a que a pesquisa nosográfica conduz, do ponto de vista da exploração das lesões do cérebro. Desde 1820, portanto, ele se pronuncia claramente contra Pinel e Esquirol, sobre a necessidade de atribuir a preponderância à pesquisa da sede da loucura. Ele é o primeiro a fazer, do delírio, um simples sintoma da alienação mental, que não deve ser confundido com a "natureza" da doença. Mais do que isso, ele subordinava o tratamento da loucura à constituição de um saber sobre o organismo: "Conhecimentos menos vagos sobre a sede da loucura, sobre a natureza, o desenvolvimento, a marcha e a terminação de seus diversos fenômenos, assimilados a todos os outros fenômenos morbíficos, possibilitam aperfeiçoar-se muito o tratamento da loucura, e estabelecê-lo a partir de princípios inteiramente reconhecidos pela razão"

17. Georget esboça, assim, um novo programa terapêutico, que implica num

julgamento severo do tratamento moral: "A medicina empírica dos sintomas perde o crédito: sabe-se que não são as ramificações, mas sim, a fonte do mal, que é preciso atacar, que não se deve dar remédios sem conhecer sua ação e sem prever os efeitos que poderão produzir, tanto no órgão como no resto da economia". "Quanto à parte empírica, dita moral, ela é fundada em princípios opostos: sua administração não tem quase nenhuma relação com o estado presumido do cérebro; os distúrbios intelectuais por si sós fornecem, nesse caso, quase todos os elementos"

18. Georget aparece, assim,

como o defensor de uma medicina mais científica que pesquisaria sob a aparência dos sintomas, ultrapassaria a cintilação das formas do delírio, para remontar às causas orgânicas. A esse conhecimento objetivo corresponderia um tratamento diferencial das doenças mentais, que daria a maior importância à administração "de meios medicamentosos internos e externos".

Mas, bruscamente, há uma reviravolta do regime da argumentação: os tratamentos "que chamamos diretos, empíricos ou morais, sempre necessários, produzem efeitos quase constantes e de uma utilidade bem mais constatada do que os outros. Por si sós, podem curar muitas loucuras"

19. Esses meios morais, sobretudo o

isolamento e a pedagogia médica, são "diretos" porque agem diretamente sobre o delírio, isto é, sobre o sintoma. Mas, a custa de uma inconsequência impressionante por

17 E. G. Georget, De la folie. Paris, 1820, p. 245. 18 Ibid., p. 246. 19 Ibid., p. 258.

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parte de um espírito tão sutil como o de Georget, a superioridade desses meios é devida ao fato de que eles agem também diretamente sobre as causas da loucura. Pois as principais causas da loucura são morais, quer se trate das "causas predisponentes" ("são sobretudo, certas disposições do estado moral e intelectual que se deve observar como próprias a favorecer o desenvolvimento da loucura") quer se trate das "causas eficientes diretas ou cerebrais" ("em cem alienados, noventa e cinco, pelo menos, tornaram-se alienados após afecções e comoções morais")

20. O organicismo de princípio se nega,

aqui, para dar lugar à psicogênese.

A descoberta da paralisia geral é um outro exemplo da impossibilidade de inscrever o movimento alienista no desenvolvimento linear da medicina "científica". Desde 1822, Bayle identifica uma sucessão de estágios, marcados por síndromas específicos fazendo da paralisia geral uma doença mental particular, que segue sua própria progressão e não, como se acreditava geralmente na época, a última fase de degradação da demência. Essa descoberta pareceu, posteriormente, exemplar, numa perspectiva organicista, já que ela parecia impor uma relação necessária entre a presença de um agente orgânico (treponema pálido) e um conjunto preciso de sintomas psíquicos. Contudo, quando se observa mais de perto, as coisas estavam longe de serem tão claras no início. Bayle está bem consciente da divergência entre seu método e o da maioria dos alienistas: "Esses sábios autores (Pinel e Esquirol) contentaram-se, em geral, em observar os fenômenos sem procurar remontar à sua fonte, em descrever escrupulosamente os fatos sem querer ligá-los a nenhuma causa produtora"

21. Contudo,

ele próprio oscila entre uma etiologia física e uma etiologia moral (psicológica e social) da paralisia geral. Por exemplo, constatando que os ex-soldados dos exércitos napoleônicos são mais frequentemente atacados de paralisia geral, ele vincula esse fato às condições traumatizantes da vida militar e, entre outras, à decepção causada pela queda do Império. O papel da sífilis é discutido como uma das causas possíveis

22. Da

mesma forma Esquirol, observando a forte proporção de paralíticas gerais entre ex-prostitutas, atribui a sua origem aos excessos e não à infecção sifilítica. Indubitavelmente, a prova definitiva da origem orgânica da paralisia geral só será administrada bem mais tarde, quando as alterações do cérebro pelo agente patogênico forem observadas no microscópio

23. Mas, desde a primeira metade do século XIX, no

mesmo meio da Escola de Paris, o conhecimento das formas clínicas da sífilis já tinha sido perfeitamente estabelecido. De fato, a questão "científica" da etiologia da paralisia geral foi focalizada na (e, a nosso ver, obscurecida pela) grande discussão da época sobre o papel do desenvolvimento da civilização no aumento dos distúrbios mentais. Tanto Lunier

24 como Baillarger

25 sublinham essa relação que os conduz a acentuar as condições

sociais de surgimento da paralisia geral. As coisas são tão pouco claras que, em 1853, J. Falret ao fazer o balanço da questão, mostra que a orientação propriamente

20 Ibid., p. 155 e p. 160. 21 A. L. J. Bayle, Nouvelle doctrine des maladies mentales, Paris, 1825, p. 8-9. 22 A. L. J. Bayle, Traité des maladies du cerveau et de ses membranes, Paris, 1826, p. 498 ss. 23 Cf. G. Rosen, Madness in society, Londres, 1968, cap. IX, "Patterns of discovery and control in mental illness". 24 L.Lunier, "Recherches sur la paralysie general progressive pour servir à 1'histoire de cette maladie", Annales médico-

psychologiques, 1849. 25 M. J. Baillarger, "De la découverte de la paralysie générale et des doctrines émises par les premiers auteurs", ibid., 1850.

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"organicista" representa somente uma das quatro interpretações dominantes da natureza da doença

26.

Essas hesitações são as da escola alienista inteira com exceção, sem dúvida, de Leuret, que produziu logo uma concepção totalmente psicogenética da alienação mental: "A loucura consiste numa aberração das faculdades do entendimento; ela não é, como as doenças comuns, caracterizada por sintomas físicos, e as causas que a produzem, às vezes notadas pelos sentidos, pertencem frequentemente a uma ordem de fenômenos completamente estranhos às leis gerais da matéria: são as paixões e as idéias"

27. A completa separação da medicina mental do tronco da medicina é a

consequência lógica dessa posição. Esse preço, os outros alienistas não quiseram pagar. Na Salpêtrière, assim como nos novos asilos constituídos a partir do seu modelo, "abrem-se os cadáveres", e procura-se, na forma do crânio, os sinais de uma deficiência orgânica, ou mesmo de uma malformação hereditária. Mas tudo se passa como se, uma vez prestada essa homenagem ao modelo moderno da cientificidade, voltasse-se às questões realmente sérias, que são de ordem prática e, para as quais, a anatomia não proporciona respostas.

Quando se lê os textos da escola, percebe-se que ela oscilou entre dois modelos da doença mental: um esquema organicista supondo uma lesão localizada ha origem da doença; uma nosografia moral e social dos sintomas da desordem remetendo a uma psicopatologia das paixões e a um terreno social patogênico. Certos escritos, dentre os mais "teóricos", afirmam a supremacia do primeiro modelo. Mas, em última análise, a escola alienista sempre se inclinou para o lado do segundo

28. Ainda em 1874, o relatório

dos inspetores gerais dos asilos defendem, nas categorias de Pinel e de Esquirol, a grande síntese prática do alienismo

29.

Um tal consenso, praticamente mantido a despeito do peso contrário da evolução da medicina em geral, deve remeter a alguma forte razão. Ê porque o fato de acentuar quase que exclusivamente a sintomatologia é mais conveniente para fundar uma concepção reativa e psicogênica da doença mental, que fornece a justificação à tecnologia do tratamento moral: "Na medida em que é a desordem física e moral o traço mais evidente da loucura, já que é nele que ela se traduz, a tendência terapêutica mais uniforme deve ser o restabelecimento da ordem no exercício das funções e das faculdades"

30.

Essa subordinação de uma concepção "teórica" da alienação mental às exigências práticas do tratamento já é explícita em Pinel: "Um dos preconceitos mais funestos para a humanidade e que, talvez, constitua a causa deplorável do estado de abandono no

26 J. Falret, Recherches sur la folie paralytíque et les diverses paralysies généràtes, Paris, 1853. Em relação a toda essa discussão cf. G. Rosen, op. cit. 27 F. Leuret, Du traitement moral de la folie, Paris, 1840, p. 1. 28 Cf. por exemplo M. Parchappe, "De la prédominance des causes morales dans la génération de la folie", Annales médico-

psychologiques, 1843, t. II. 29 Constans, Lunier e Dumesnil, Rapport sur le service des alienes en 1874, Paris, 1878. 30 H. Girard, "De l'organisation et de l´administration des établissements d'aliénés", Annales mêdico-psychologiques, 1843, t. II, p. 231.

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qual se deixam quase todos os alienados é o de focalizar seu mal como incurável e de atribuir-lhe uma lesão orgânica no cérebro ou em qualquer outra parte da cabeça. Posso assegurar que, na maioria dos casos que reuni sobre mania delirante tornada incurável ou terminada com uma outra doença funesta, todos os resultados da abertura dos corpos, comparados com os sintomas que se manifestaram, provam que essa alienação

possui, em geral, um caráter puramente nervoso e que ela não é produto de nenhum vício orgânico da substância do cérebro, como demonstrarei na 5ª secção"

31.

Implicação que pode parecer "progressista": tornando-se organicista, a psiquiatria do fim do século XIX se resignará, mais facilmente, com a incurabilidade e abandonará a seu destino de exclusos, os doentes que a primeira escola alienista esforçava-se em tratar. Mas é preciso, também, avaliar o preço desse humanismo terapêutico. A Escola da Salpêtrière constituiu, como saber "verdadeiro", aquilo que justificava mais imediatamente sua prática, em detrimento de uma pesquisa clínica mais aberta para o futuro, cujas implicações, porém, não eram evidentes no quadro asilar. Pois o espaço do asilo, dominada pelas exigências do tratamento moral, não é o campo experimental da clínica, mesmo se um e outro se inscrevem no mesmo tecido hospitalar. Aparece, assim, desde o início, um certo divórcio entre a psiquiatria asilar e a medicina hospitalar. Ele constitui um princípio explicativo de base para compreender a evolução da medicina mental. O conflito eclode novamente várias vezes, entre os "asilares", preocupados em defender e melhorar as condições de exercício de sua "medicina especial" e uma orientação tecnicista e modernista que se refere ao modelo médico constituído nos hospitais ordinários e nas clínicas de faculdade, atualmente os C. H. U. Veremos que as mudanças decisivas na história da psiquiatria (a criação dos serviços livres, a organização da higiene mental, a separação entre a psiquiatria e a neurologia, e até as peripécias contemporâneas da aplicação do "setor") marcam os muitos episódios desse conflito. As lutas institucionais futuras, os conflitos de poder entre "asilares" e "universitários" oporão sempre dois esquemas médicos incompatíveis.

É preciso, não obstante, abster-sé de ver, aí, simples episódios do conflito entre os antigos e os modernos. O alienismo representa algo mais do que um momento ultrapassado da história da medicina. O que irá mais tarde "resistir" à impaciência planificadora dos administradores tecnocratas e dos médicos tecnicistas é uma antropologia e uma política, cuja qualificação, em termos de progresso ou de atraso, não é simples. Veremos, assim, logo após a Segunda Guerra Mundial, uma corrente marxista preconizar o retorno ao "neo-esquirolismo"

32, contra um outro modelo de medicina

social, cuja vontade normalizadora apoia-se numa concepção modernista da medicina. Pode haver "progressismo" na crença ― herdada do iluminismo ― de que a loucura não é um destino, que o homem é produzido por suas obras, seu meio de vida, que pode ser ultrapassado por suas próprias conquistas, desconstruído pelo que lhe ocorre na história e reconstruído por um programa racional de educação, num quadro especialmente organizado para maximizar o efeito das intervenções médicas. Há também

31 Ph. Pinel, Traité médico-philosophique..., op. cit., p. 154. 32 A expressão é de L. Bonnafé, "De la doctrine post-esquirolienne", I e II, Information psychialrique, abril e maio, 1960.

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"conservadorismo" em circunscrever esse programa de transformação do homem no quadro da ordem estabelecida e em atribuir-lhe, ao mesmo tempo, sua representação pejorativa da loucura e suas técnicas de disciplinarização para reduzi-la. Mas, independentemente desses julgamentos de valor, é importante mostrar a articulação dos elementos dessa máquina de poder.

Um sistema bem amarrado

1. Primeiro elemento do sistema, a sintomatologia. O corpus teórico da medicina mental ― as classificações nosográficas – nada mais é do que a disposição dos sinais, distinguindo o comportamento patológico das condutas socialmente reguladas. Percepção puramente negativa de um avesso da ordem: o alienado é aquele "que não tem, habitualmente, consideração por nenhuma regra, nenhuma lei, nenhum costume, ou melhor, desconhece-os todos; cujos discursos, postura e ações estão sempre em oposição, não somente com os hábitos do país que habita, mas ainda com o que existe de humano e de racional"

33. "Ele é egoísta e sem sociabilidade; ele é levado, por suas

idéias e seus sentimentos doentios, para fora do mundo real e só exerce um fraco controle sobre suas próprias idéias; sem domínio sobre si mesmo, só reage muito fragilmente contra suas tendências ou disposições doentias que deixa se exercessem contraposição e que se alimentam de seu exercício"

34.

As nosografias se contentam em esmiuçar, num certo número de sub-espécies, essa percepção global e globalmente pejorativa. A loucura, esse excesso que é uma falta: agitação, exagero, arrebatamento, imoderação, desregramento, impulsividade, imprevisibilidade, periculosidade, esses traços codificam igual número de distâncias em relação à tranquila plenitude de uma vida que tenha integrado todas as normas disciplinares, fazendo delas uma segunda natureza. A rotulagem nosográfica nada mais faz, assim, do que formalizar os dados imediatos da consciência social da loucura.

2. Segundo elemento do sistema, o terreno privilegiado onde eclode a doença mental, a desordem social. Donde os inúmeros textos da escola alienista sobre as relações da loucura com a civilização, tema tratado sob múltiplas facetas, quer se trate das grandes comoções políticas, da aceleração do progresso, da degradação dos costumes, do abandono das antigas crenças, das flutuações do comércio e da indústria, da miséria e da imoralidade das classes populares.

"O movimento das idéias e as instituições políticas, tendo tornado mutáveis as profissões que eram imóveis e estáveis, teve como resultado, ao lado de um grande bem, os excessos de uma concorrência ilimitada e de um esquecimento daquilo que as antigas instituições possuíam de bom na teoria e na prática. Não possuindo um regulador, a geração atual, que se encontra numa verdadeira época de transição e de

33 F. E. Fodéré, Essai médico-légal sur la folie, Paris, 1824, p. 124. 34 J. P. Falret, "Du traitement general des alienes", in Des maladies et des asiles d'aliénés, op. cit., p. 686.

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organização, projetou-se na nova carreira que havia criado e deparou com novas causas de infortúnios e destruição. Muitas inteligências, super excitadas por uma ambição sem freio, sem limites, desgastaram-se pervertidas numa luta além de suas forças, chegando às raias da loucura, e encontraram num esquecimento da virtude ou numa educação insuficiente, a causa desse acidente. Outras, colocadas em situações de necessidade, privadas do apoio protetor das antigas corporações, sentiram-se excessivamente fracas para resistir e o desânimo e a miséria as conduziram à perda da razão"

35.

Trata-se da anomia social, que favorece um estado de agitação constante e abre caminho para as perturbações da loucura. Existe uma profunda homologia entre as manifestações da loucura (seus sintomas) e esse terreno abalado pelos acontecimentos políticos e pelos conflitos sociais. Sobre essa base geral se enxertam inúmeras análises sobre o papel da má educação, do relaxamento dos costumes, da má conduta das mulheres, da miséria, etc, na gênese dos distúrbios psíquicos. "A loucura é o produto da sociedade e das influências intelectuais e morais"

36. Donde o alto rendimento do tema

loucura-civilização, a propósito do qual citar-se-á, praticamente, todos os alienistas. Ainda em 1874, o Relatório sobre o Serviço dos Alienados orquestra longamente essa cantilena reativada pelos acontecimentos da Comuna

37.

O alienismo é, efetivamente, a primeira forma de "psiquiatria social". É falso pretender que ― salvo, talvez, no momento do organicismo triunfante ― a medicina mental tenha posto de lado as condições históricas e sociais que atuam na gênese da doença mental. Ao contrário, elas constituem sua preocupação constante. Mas ela as interpreta no quadro de uma etiologia psicologizante que oculta suas dimensões objetivas. Ambiguidade de toda a "medicina social" de que voltaremos a tratar.

3. Terceiro elemento do sistema, a preponderância das causas morais que fez a ligação entre o nível individual ou antropológico (sintomatologia) e o terreno social (anomia) de uma fenomenologia da desordem. Frequentemente a loucura é reativa a uma situação de desequilíbrio social por intermédio de uma etiologia passional. A categoria das "causas morais" reúne o conjunto dos acontecimentos traumatizantes da existência. Esses traumas agem sobre a sensibilidade, que eles abalam, provocando as manifestações intelectuais do delírio: "A loucura é frequentemente produzida pelo desenvolvimento das paixões, por vivas emoções morais, por desgostos, etc. Também os conflitos de consciência e os remorsos a provocam frequentemente, sobretudo nas mulheres. Depois vêm os excessos de todo tipo, a devassidão, a miséria e as privações que ela provoca"

38.

35 H. Girard, "Compte rendu sur le service des alienes de Fains en 1842, 1843, 1844 par Renaudin", Annales médico-

psychologiques, 1846, t. VIII, p. 143. 36 Esquirol, "Mémoire sur cette question; existait-il de nos jours un plus grand nombre de fous qu'il n'en existait i! y a quarante ans?", in Des maladies mentales, op. cit., II, p. 742. 37 Drs. Constants, Lunier e Dumesnil, Rapport sur le service des alienes en 1874. op. cit., p. 1-9. Cf. também L. Lunier, De

l'influence des grandes commotions politiques et sociales sur le développement des maladies manfales pendam les annés 1869 à

1873, Paris, 1874. 38 M. J. Baillarger, "Note sur la fréquence de la folie chez les prisionniers", Annales médico-psychologiques, 1844, t. IV, p. 77.

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Sobre esse ponto a demonstração se torna particularmente aventurosa e seria difícil tentar seguir suas sinuosidades. Figuram, como provas, estatísticas fantasísticas e frequentemente contraditórias, minimização de dados, mesmo conhecidos, como os relacionados com a hereditariedade, casuística obscura sobre as relações entre os diferentes tipos de causas (predisponentes, secundárias, eficientes diretas, eficientes indiretas, etc). Não obstante, a escola alienista se obstinou em manter, contra os ventos e marés, o adágio de Falret: "É fato estabelecido que a loucura é engendrada mais frequentemente por causas morais do que físicas"

39. Não vemos em que uma tal

afirmação pudesse ajudar o alienismo a se inscrever na medicina atuante da época. Ao contrário, ela o impedia de integrar as pesquisas que se faziam sobre a hereditariedade ou através das autópsias. Mas sem esse tema da supremacia das causas morais se rompia a ponte que, supostamente, ligava os sintomas da doença mental com o terreno social, tido como responsável de seu aparecimento. A psicogênese da loucura, sobretudo, proporciona-lhe o domínio prático mais seguro: a causalidade moral da doença é anulável através dos meios morais do tratamento.

4. Quarto elemento do sistema, o tratamento moral. Da mesma forma que a tese da preponderância das causas morais não conseguiu recobrir inteiramente todo o campo da etiologia, assim também o tratamento moral nunca excluiu o emprego de toda uma gama de meios físicos, dos medicamentos à hidroterapia. Mas se os psiquiatras, atualmente, podem pretender que ò que conta, sobretudo, na administração do medicamento, é a relação que ele permite estabelecer com o terapeuta, é ainda mais fácil reinterpretar em termos "morais" a eficácia dos meios "físicos" da época, como as duchas. Faltret denomina "ecletismo terapêutico"

40 essa atitude que se orgulha em usar

todo e qualquer recurso contra a doença. Se o discurso do tratamento moral se beneficiou de um (ai crédito e não, como deveria ter sido, pelo menos relativizado pela modéstia dos sucessos terapêuticos e pela consciência do emprego de muitos outros remédios, é porque se vinculava diretamente com a percepção moral da loucura: o emprego de meios morais é imediatamente requisitado para cancelar a desordem moral: "Quanto mais o alienado for avesso a qualquer regularidade, mais é necessário que uma ordem metódica o envolva por toda parte e o molde a uma existência que cedo ou tarde terminará por tornar-se uma necessidade para ele"

41.

É por isso que, nos teóricos mais coerentes do tratamento moral como Leuret42

, até os remédios mais físicos nunca podem agir, a não ser através de sua reinterpretação moral. Na base dessa convicção Leuret desenvolveu a primeira teoria global da psicoterapia. Ele levou ao extremo a coerência da atitude, desenvolvendo uma tática sutil de disciplinarização, estritamente ajustada a cada caso particular. Suas curas representam, avant la lettre, verdadeiras terapias diretivas. Mas, frequentemente, o

39 J. P. Falret, "Considérations générales sur les maladies mentales", (1843) In Des maladies mentales et des asiles d'aliênés, op,

cit., p. 62. 40 J. P. Falret, "Du traitement general des alienes", in Des maladies mentales et des asiles d'aliénés, op. cit., p. 680. 41 E. Renaudin, "L'asile d'Auxerre et les alienes de l'Yonne", Annales médico-psychologiques, 1845, V, p. 242. 42 F. Leuret, Du traitement moral de la folie, op. cit.

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tratamento moral se administra de maneira coletiva e impessoal. Grandes massas de doentes são tomados anonimamente em redes de regulações gerais. É preciso tratar do mais urgente e isso é um mal menor

43. No fundo, a loucura não é original. O excesso de

subjetividade que ela manifesta não deve ser explorado em si mesmo. Ele se reduz a alguns tipos de transgressões monótonas, sempre percebidas negativamente sobre um fundo de ordem. Se o que importa é menos a qualidade do delírio do que o que ele manifesta como falta, a ação contínua das disciplinas gerais, horários fixos, trabalhos rotinizados, divertimentos regularizados, pode substituir, sem muito dano, o face-a-face terapêutico. Portanto, não é surpreendente se quase não se pensa na loucura "em si mesma" em toda essa literatura psiquiátrica. Nenhuma preocupação em explorar a subjetividade do doente por ela própria, nenhuma interrogação sobre a legitimidade do monopólio que a razão exerce sobre a loucura, nem o menor escrúpulo em impor uma relação unilateral de poder sobre o paciente. O que conta é apenas o aparelho, já que somente ele ― e o médico nada mais é do que a viga mestre dessa máquina ― vale como estrutura objetiva racional para anular uma desordem que nada mais é do que carência de ser:

"A ordem e a regularidade em todos os atos da vida comum e privada, a repressão imediata e incessante das faltas de qualquer espécie, e da desordem sob todas as suas formas, a sujeição ao silêncio e ao repouso durante certo tempo determinado, a imposição ao trabalho a todos os indivíduos capazes, a comunidade da refeição, as recreações com hora fixa e duração determinada, a interdição aos jogos que excitam as paixões e que entretêm a preguiça e, acima de tudo, a ação do médico, impondo a submissão, a afeição e o respeito por sua intervenção incessante em tudo o que diz respeito à vida moral dos alienados: tais são os meios de tratamento da loucura que fornecem, ao tratamento aplicado nessas casas, uma incontestável superioridade em comparação com o tratamento aplicado a domicílio"

44.

5. Quinto elemento do sistema, o asilo, evidentemente. O asilo é o lugar existencial do exercício da psiquiatria porque é o mais apto a opor; ao meio natural (isto é, familiar e social), patogênico porque anômico, um meio construído, terapêutico porque sistematicamente controlado. No asilo, uma pedagogia da ordem pode se desenrolar em todo o seu rigor. Nele o exercício da autoridade pode ser mais enérgico, a vigilância mais constante, a rede de coerções mais estreita. Camisa de força moral, válida como qualquer outra: "O asilo, convenientemente organizado, constitui, para eles (os doentes), uma verdadeira atmosfera médica; sua ação incessante é quase imperceptível,

43 Assim como o tratamento geral e o tratamento individual da loucura representam duas variedades do tratamento moral (cf. J.-P. Falret, "Du traitement general des alienes" in Des maladies mentales et des asiles d'alienes, op. cit., p. 682-683 e infra, cap. IV), o emprego, por Leuret, de meios abertamente coercitivos, ou o paternalismo benevolente da maioria dos psiquiatras da primeira metade do século XIX, são também as duas modalidades extremas de uma mesma estratégia de disciplinarização que supõe um desnivelamento fundamental entre o doente e o terapeuta e a maleabilidade absoluta do primeiro pelo segundo. Cf. R. Castel, "Le traitement moral, thérapeutique mentale et controle social au XIXe. Siècíe", Topique, nº 2, fev. 1970. 44 M. Parchappe, Rapport sur le service medical de l'asile des alienes de Sainl-Yon, Rouen, 1841, p. 11.

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mas eles a respiram por todos os poros e ela os modifica, finalmente, muito mais fortemente do que se poderia acreditar, na medida em que sejam modificáveis"

45.

Entretanto, é preciso notar que, se o asilo é efetivamente a peça central do dispositivo da primeira medicina mental, ele o é como o lugar subordinador onde pode se desenrolar melhor a estratégia de intervenção psiquiátrica. Qualquer que seja uma importância, ele nada mais é do que o meio que maximiza a eficácia de uma tecnologia de poder: "Tudo, num asilo bem ordenado, as localidades, os regulamentos e as pessoas, encontra-se como que impregnado desse espírito de ordem e submissão e coopera, assim, mesmo a despeito dos que dele são objeto ou instrumento, para a plena realização do objetivo geral que é a cura ou, pelo menos, a melhoria dos alienados"

46.

O que o movimento alienista visa, fundamentalmente, é abolir da paisagem social esse foco de desordem que é a loucura. A questão ― essencial para o futuro, já que ela condiciona a possibilidade de um aggiornamento da psiquiatria na comunidade, no setor, etc. ― é saber se uma tal política é condenada a sempre usar a mediação do espaço fechado. Os que falam de "revoluções" em medicina mental se referem sempre, de fato, a rupturas institucionais. A separação em relação ao asilo será, seguramente, extremamente importante. Mas, se ficarmos atentos às estratégias psiquiátricas assim como aos lugares onde elas se exercem, não é certo que as rupturas institucionais tenham a significação de começos absolutos.

Portanto, tal foi o suporte de coerência do sistema alienista. Seu vigor não consistiu na força de cada uma de suas partes tomadas isoladamente mas sim, na sua articulação numa síntese prática. Em toda a literatura psiquiátrica da primeira metade do século XIX, é notório o contraste entre a certeza de ter uma tarefa essencial a ser realizada plenamente e as hesitações, as aproximações, as dúvidas, e mesmo as contradições, do ponto de vista do saber. Prova de que não é desse ponto de vista que é preciso apreender sua força: "Em toda parte, atualmente, quer-se curar os alienados, por toda parte se quer modificar, esclarecer, reformar os criminosos, e por toda parte, os elementos científicos necessários estão ausentes. As luzes não estão ao nível dos sentimentos"

47. Mas de uma certa maneira os "sentimentos" podem substituir as

"luzes". É a fraqueza teórica do sistema alienista que faz sua força prática. Ou, em outras palavras, foi porque não autonomizou uma dimensão propriamente "científica", que a medicina mental pôde se realizar imediatamente através de seus objetivos práticos. Como os primeiros alienistas nunca instituíram uma ruptura, nem mesmo tomaram uma verdadeira distância em relação à concepção social "ordinária" da loucura, como eles reiteraram em suas nosografias a supremacia da ordem, da mesma forma que impuseram em seu tratamento a autoridade do poder dominante, então, ficaram desde logo no mesmo nível das estratégias políticas que visavam a perpetuação dessa ordem. Síntese teórico-prática, a medicina mental nomeou em sua teoria o que tinha por objeto combater em sua prática: certas fissuras dessa ordem.

45 J.-P. Falret, "Du traitement general des alienes" in Des maladies mentales et des asiles d'aliénés, op. cit., p. 685. 46 J.-P. Falret, ibid., p. 698. 47 F. Voisin, Du traitement intelligent de la folie, Paris, 1847, p. 10.

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A questão da "cientificidade" da psiquiatria é, portanto, um falso problema. Ela não operou nenhuma mutação na ordem do saber médico. Em compensação, soube marcar, com o selo médico, práticas que dizem mais respeito às técnicas disciplinares do que às operações de exploração clínica da medicina moderna. De que maneira? Através de uma dupla operação. Primeiro se referindo a um corpus médico já arcaico no momento de seu nascimento, o das classificações nosográficas do século XVIII. Em seguida, inscrevendo-os num espaço hospitalar em vias de reestruturação de uma nova tecnologia médica. Portanto, código médico, mas já ultrapassado. Ambiente médico também, mas reinterpretado no quadro de uma pedagogia autoritária sem relação com o trabalho clínico. Essa dupla inscrição se revelou suficiente para dar um rótulo médico a uma síntese que não o era, em função dos critérios da medicina atuante da época. Mas, tendo sido talhado, assim, tão largo, o hábito medico que lhe permitiu cobrir e legitimar fora do campo de sua estrita especialização. Pelo menos tanto quanto a constituição de um novo campo da medicina, o nascimento do alienismo deve ser interpretado como a segmentação de um novo grupo no seio dos profissionais da assistência: "Pelo menos tanto quanto", ou seja, nem mais nem menos, A etiqueta médica possibilitou uma certa credibilidade "científica" a um projeto político que, por sua vez, impôs a escolha do tipo de cientificidade desenvolvida. Eis aí as duas faces de uma mesma operação, através da qual, a problemática da assistência ultrapassou um novo limiar. Mas, para compreender a importância do que está em jogo, é preciso aceitar fazer um desvio.

A Nova paisagem da assistência

A segunda metade do século XVIII fora marcada por uma descoberta decisiva: a relação entre a riqueza e o trabalho. "Há muito tempo se procura "a pedra filosofal": ela foi encontrada, o trabalho"

48. A riqueza não é mais um dom que é dado, na origem, pelo

soberano, transmitida através das filiações naturais, livremente redistribuída pela esmola. Ela é o produto de uma troca e sua fonte está no trabalho

49. Esse

reconhecimento do valor-trabalho transforma o lugar que o indigente e os outros improdutivos devem ocupar na estrutura social. Em vez de exilá-los num espaço fechado, para moralizá-los, é necessário reintroduzi-los continuamente nos circuitos produtivos. Implicação decisiva para a política da assistência, indicada por um contemporâneo: "A questão da assistência pública não é, portanto, uma questão de moral ou de beneficência pura, trata-se de uma questão de polícia e de administração. Socorrer os pobres doentes não é, portanto, uma virtude: é um dever do governo; é até mais, é uma necessidade do Estado"

50.

Não que a solução do enclausuramento já não tivesse sido uma questão de política, de administração, de governo. Mas se descobre, doravante, o desperdício de recursos que representava o fato de perpetuar, em lugar estanque, a ociosidade de populações virtualmente produtivas. Ainda Coqueau: "É, sem dúvida, uma necessidade, 48 Romans de Coppins, in Mémoires qui onl concouru pour le prix accordé en 1774 par l'Académie de Châlons-sur-Marne,

Châloris, 1780, p. 327. 49 Cf. J. Donzelot, "Espace clos, travail et moralisation", Topique, nº 3, maio 1970. 50 C. P. Coqueau, Essai sur l'établissement des hôpitaux dans les grandes villes, op. cit., p. 142.

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prevenir a desordem e os infortúnios que o excesso da miséria pode ocasionar para a classe mais numerosa da sociedade. Uma delas é velar pela conservação desse imenso e precioso viveiro de pessoas destinadas a lavrar nossos campos, a transportar nossas mercadorias, a povoar nossas manufaturas e nossas oficinas"

51. O poder real fora quase

que exclusivamente sensível à primeira "necessidade" de uma política com respeito aos indigentes, e articulou sua exclusão na instituição fechada (a moralização através do trabalho que, supostamente, nela se produzia, sempre foi um fracasso). Uma forma mais elaborada de assistência poderia matar dois coelhos com uma só cajadada: ao mesmo tempo neutralizar o risco de desordem e explorar esse "imenso e precioso viveiro de pessoas" instaurando condições especiais de acesso ao trabalho para todos os que não a possuíam.

Essa descoberta do trabalho como fundamento da riqueza social inspirou uma primeira política da assistência, a dos partidários de um liberalismo que se poderia qualificar de ingênuo, porque ainda não tem consciência de sua contradição interna e porque os obstáculos que encontra parecem-lhe arcaísmos legados por um sistema que já teve sua época. "Todo homem são deve obter sua subsistência através do trabalho porque, se fosse nutrido sem trabalhar, ele o seria às custas daqueles que trabalham. O que o Estado deve a cada um de seus membros é a destruição dos obstáculos que os atrapalhariam em sua indústria ou que os perturbariam no gozo dos produtos que a recompensam"

52. A função racionalizadora do Estado se reduziria, assim, a suprimir os

protecionismos que são obstáculos ao livre acesso ao trabalho, associando a isso, no máximo, uma tarefa organizadora mínima para que os mais desmunidos encontrem, em trabalhos de interesse coletivo, um meio, pelo menos provisório, para escapar à mendicância.

Assim, Turgot elaborou, na sua Intendência do Limousin, um programa de trabalhos de aterro para empregar os indigentes. Quando se tornou controlador geral das finanças quis difundir a fórmula e, ao mesmo tempo, suprimir os depósitos de mendicância, considerados por ele, assim como pela maior parte dos economistas e dos reformadores, como ultrapassados

53. Sucesso parcial: a metade dos depósitos ainda

subsiste ao fim do Antigo Regime e a administração real decide sua reorganização em 1785. Se funcionam mal, a organização das oficinas de assistência é quase tão defeituosa e sua produtividade quase tão aleatória quanto eles

54. Contudo, quando as oficinas de

Paris foram fechadas por razões políticas, em 1791, elas ocupavam 31.000 pessoas, ou seja, três vezes a população do Hospital Geral e mais de dez vezes a proporção dos "pobres válidos" internados.

Se o sistema de assistência através do trabalho está longe de ser tecnicamente perfeito na queda do Antigo Regime, entretanto, dois princípios susceptíveis de reorganizar toda a política da assistência parecem se impor em primeiro lugar, a fórmula do enclausuramento está ultrapassada, pelo menos para os indigentes válidos; em

51 Ibid, p. 13. 52 Turgot, artigo "Fondation", in Oeuvres completes, op. cit., p. 208. 53 Cf. Turgot, "Instruction sur les moyens les plus convenables de gouverner les pauvres", ibid. 54 Cf. F. Dreyfus, Un philanthrope d'auttefois, La Rochefoucault-Liancourt, op. cit.

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segundo lugar, uma organização do trabalho, liberada de suas coerções arcaicas, poderia absorver a maior parte dos problemas colocados pela vagabundagem e pela mendicância

55. "Erro grosseiro da internação e falta econômica: acredita-se suprimir a

miséria colocando fora do circuito e mantendo, através da caridade, uma população pobre. De fato, mascara-se artificialmente a pobreza; e realmente se suprime uma parte da população, riqueza sempre presente"

56. Em lugar da antiga fórmula do

enclausuramento a assistência se reorganiza inteiramente em função das capacidades diferenciais de acesso ao trabalho: "Aquele, portanto, que está em condições de trabalhar e que tem trabalho, não deve obter socorros; aquele que não tem pão e que solicita trabalho, deve encontrar ambos; aquele que recusa trabalhar, apesar de estar em condições de fazê-lo, não somente não merece nenhuma assistência pública, como ainda deve ser severamente vigiado pelos magistrados"

57.

Entretanto, à medida que se impõe a liberdade do trabalho (e sabe-se que ela se torna a carta das novas relações econômicas com a lei Le Chapelier em 1791), ela desenvolve mais claramente todas as suas consequências sociais, que irão contradizer o otimismo dos primeiros "liberais". O princípio do livre acesso ao trabalho é, de fato, o quadro legal da exploração operária, e não o livre acesso de todos aos meios de subsistência. Que a riqueza esteja fundada no trabalho significa, na realidade, que o rico tem necessidade do pobre e que dele deve poder dispor para assegurar seu próprio lucro. Brissot já o exprimira numa fórmula enérgica, dez anos antes de se tornar chefe do partido girondino: "Sempre existirá ricos e, portanto, deverá sempre existir pobres. Nos Estados bem governados, esses últimos trabalham e vivem; nos outros, eles se revestem com os farrapos da mendicância e roem insensivelmente o Estado cobertos pela ociosidade. Tenhamos pobres e nunca mendigos. Eis o objetivo ao qual deve tender uma boa administração"

58.

O "mendigo" é o antigo pobre, aquele que nada tinha e ao qual se dava esmola ou aquele a quem se internava quando era muito perigoso ou quando eram muitos. O novo pobre é rico em força a explorar. É preciso, sem dúvida, colocá-lo no trabalho, mas segundo as leis do lucro máximo. Ora, estas, possuem a sua própria lógica. Nada garante que a organização racional do mercado assegure a subsistência de todos os pobres. E, mesmo, deixa de ser evidente que a economia burguesa que se instaura exija o pleno emprego. O trabalho não é mais, portanto, a solução universal para o problema da assistência, mesmo para os pobres válidos. De certos pontos de vista, ao contrário: o mercado do trabalho, longe de absorver toda a miséria, cria ele próprio a indigência, pela política de baixos salários, a constituição de uma faixa de desemprego, a frequência das crises econômicas, etc. O espectro do pauperismo irá substituir o da mendicância, a análise econômica-política irá suplantar a condenação moral.

55 Com exceção dos reincidentes incuráveis, para os quais a ociosidade é uma escolha moral. É principalmente para eles que todas as Assembléias Revolucionárias preverão "casas de repressão", herdeiras dos depósitos de mendigos e que constituem, juntamente com os asilos e as prisões, as únicas instituições preservadas do antigo complexo totalitário. 56 M. Foucault, Histoire de la folie, op. cit., p. 430. Cf. também G. Polanyi, The Great Transforniation, Boston, 1963. 57 Cabanis, "Quelques príncipes et quelques vues sur les secou rs publics, in Oeuvres completes, op. cit., t. II, p. 229. 58 J. P, Brissot (de Warvilie), Théorie des lois criminelles, Paris, 1781, p. 75.

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Essas ambiguidades da noção de trabalho se manifestaram com uma relativa clareza nos momentos altos da Revolução. O Comitê de Mendicância da Constituinte, como já dissemos, fez com que a Assembléia admitisse, imprudentemente talvez, "que ela coloque no nível dos deveres mais sagrados da Nação a assistência aos pobres em todas as idades e em todas as circunstâncias da vida". Na medida em que se desenvolve o processo revolucionário, essa concepção de um direito à assistência se radicaliza no sentido de um direito ao trabalho.

Bernard d'Airy afirma, diante da Assembléia Legislativa, em 13 de junho de 1792: "Daí, Senhores, esse axioma que falta à Declaração dos Direitos do Homem, esse axioma digno de encabeçar o código da humanidade que ireis decretar: todo homem tem direito à subsistência, através do trabalho, se for válido, e através da assistência gratuita, se não estiver em condições de trabalhar"

59.

J. B. Bô, diante da Convenção: "O homem, que nasce para o trabalho, só será infeliz quando este lhe faltar ou quando, sendo excessivo, não puder fornecer-lhe os meios de subsistência. (...) O trabalho é o único socorro que um Estado deve empregar para aliviar a indigência; pois o homem não é efetivamente pobre porque não possui nada, mas sim, porque não trabalha. (...) Vós apagareis, seja pela propriedade, seja pela indústria, até mesmo a idéia de miséria"

60.

Noção tão perigosa quanto a de um pleno direito ao trabalho. Se, em vez de esperar assistência ou de se submeter às leis do mercado, os pobres podem exigir o que lhes é devido, eles intervém como interlocutores de pleno direito na repartição das riquezas, do poder e, no final das contas, da propriedade. Os Convencionais não apreenderam, sem dúvida, todas as implicações desse princípio

61, mas Barère, pelo

menos, as percebeu: "Os miseráveis são as potências da terra; eles possuem o direito de falar como Senhores, com os governos que deles negligenciam"

62. Em última análise, o

direito ao trabalho representaria o equivalente, na ordem social, do direito à insurreição na ordem política: o reconhecimento de um direito qualifica sua transgressão corno arbítrio despótico. A violência popular seria, então, legitimada, já que ela nada mais faria do que reestabelecer o direito.

Tendo sido vencida a ala radical da Revolução, a obsessão dos porta-vozes de uma política de assistência à altura da nova sociedade burguesa será a de combater essa concepção de um direito à assistência em nome do qual, os pobres poderiam se levantar a fim de exigir sua parte de poder. A polêmica foi conhecida sob o nome de crítica da "caridade legal", expressão envelhecida que designava a inscrição no direito de uma

59 B. d'Airy, Rapport et projet sur l'organisation générale des secours publics, apresentado à Assembléia national em 12 de junho de 1792, p. 7. 60 J. B. Bô, Rapport et projet de décret sur l'extinction de la mendicité, apresentado à Convenção em nome do Comitê de assistência pública, p. 4-5. 61 Cf. a discussão sobre o direito à subsistência e o direito ao trabalho, a propósito da apresentação por Barère d(/art. 23 da Constituição de 1793 in Archivesparle-mentaires, 1ª série, n* 63, p. 110 ss., sessão de 22 de abril de 1793. Sabe-se que a Convenção, tomando consciência do risco de transbordamento de suas iniciativas, as quais queria circunscrever nos limites do direito burguês, votou por unanimidade a condenação de qualquer atentado ao princípio da propriedade privada. Cf. A. Monnier, Vassistance dans les temps anciens et modernes, op. cit. 62 B. Barère, Premier rapport fait au nom du Comitê du salut public, 22 floreal, ano II, loc. cit.

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prerrogativa dos pobres não proveniente da reciprocidade de um intercâmbio contratual. Essa crítica foi realizada, ao mesmo tempo, pelos artesãos de um retorno ao Antigo Regime e pelos porta-vozes, no domínio da assistência, da nova burguesia financeira. Ela se atribui um duplo alvo: os trabalhos das Assembléias Revolucionárias, evidentemente, mas também a organização da distribuição da assistência na Inglaterra, suspeita de facilitar demais as coisas para os indigentes. Um dos representantes dessa corrente, Duchâtelet, que percebeu, melhor do que os próprios Convencionais, as potencialidades revolucionárias do direito ao trabalho ("o princípio do direito ao trabalho abala as bases da ordem social"

63), também tirou as consequências radicais de

sua crítica: "O operário dá seu trabalho, o mestre paga o salário combinado, nisso se reduzem suas obrigações recíprocas. (...) A partir do: momento em que ele (o mestre) não tem mais necessidade de seus braços ele o despede, cabe ao operário resolver a questão como puder"

64.

Trata-se aí, de tirar as consequências lógicas dos princípios do liberalismo absoluto. O próprio conceito de assistência perde sentido. O rigor contratual da troca mercantil deve comandar, não somente as transações econômicas, como também as relações entre os homens. Toda assistência organizada seria atentatória ao livre jogo das leis do mercado, da mesma forma que esses obstáculos à circulação das riquezas e dos homens, representados pelas corporações sob o Antigo Regime, e que agora seriam as coalisões operárias. Nem mesmo instituições tão "humanitárias" como os hospitais para menores abandonados serão poupadas pelos partidários mais coerentes dessa moral do rendimento

65. O exercício facultativo da caridade privada deve ser suficiente para

remediar as manifestações mais extremas e, portanto, mais sensíveis para o coração, da miséria social. Ainda mais que a distribuição dos recursos dessa caridade repousa sobre uma infraestrutura tradicional que se reconstitui no mesmo momento: o período da Restauração é mercado pela criação de inúmeras obras privadas de caridade sob controle religioso e pelo retorno maciço das Congregações, que pouco a pouco recuperam as posições que ocupavam no Antigo Regime

66.

Entretanto, apesar da evolução globalmente reacionária da política da assistência, no início do século XIX

67 essa opção extremista não prevaleceu como tal. É porque, indo

além de um retorno à situação do Antigo Regime, ela marca uma regressão com relação à problemática do controle, que o século XVIII começara a elaborar, compreendendo o interesse do Estado em intervir nas questões de assistência a fim de salvaguardar a ordem social. Coqueau, antes da Revolução, já formulara claramente essa implicação: "As necessidades mais extremas são as que ele (o governo) tem mais interesse em

63 T. Duchâtel, De la charité dans ses rapports avéc l'état moral et le bien-étre des classes inférieures de la societé, Paris, 1829, p. 185. 64 Ibid., p. 343. 65 Ibid., p. 233. 66 Em 1842, havia 1.800 estabelecimentos religiosos com pessoal constituído de 25.000 religiosos, contra 27.000 às vésperas da Revolução. Cf. Discursos de Isambert na Câmara dos deputados, Le Moniíeur, 19 de maio de 1842. 67 F. Schaller resume essa orientação da seguinte maneira: "Garantir a assistência é encorajar o vício, o esbanjamento, a desordem; nos termos da economia política é instituir um prêmio contra a economia, os sábios cálculos, enfim, contra a prudência nos casamentos" (Un aspect nouveau du Contrat social, Neufchâtel, 1950, p. 41).

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prevenir", sem o que, as desordens que nascem da miséria "formarão duas nações inimigas no seio de um mesmo império"

68.

Aos defensores da pura caridade privada se opõem, assim, os partidários da beneficência pública. Não se trata da reação de almas sensíveis. Eles tiram as consequências de uma análise política que pretende ser mais realista as consequências de uma análise política que pretende ser mais realista a partir dos mesmos princípios.

A defesa da propriedade privada e a busca do lucro são os fundamentos da ordem social e não poderiam ser colocados em questão. Portanto, nenhum direito dos pobres que possa contradizer as leis do mercado, nada de "caridade legal", em nome da qual os mais desmunidos possam reivindicar o que só é exigível como contrapartida de uma troca. Mas, se a desigualdade das condições é uma justa consequência do crescimento das sociedades, é preciso controlar seus efeitos, a fim de que ela não atinja um limiar de ruptura, a partir do qual, os sacrificados se precipitariam em soluções extremas, declarando a guerra social.

Essa posição, mais sutil e mais hábil do que a dos cínicos cantores do liberalismo absoluto, é a da fração da burguesia especializada nos problemas da assistência à qual a história deu o nome de filantropos. Não se trata de um fenômeno marginal. A filantropia representou um laboratório de idéias e iniciativas práticas de onde saíram as técnicas de sujeição das massas, indispensáveis à dominação de classe da burguesia

69.

O jogo de forças parecerá, agora, claro e atual mesmo se, para apreendê-lo, foi preciso fazer esse longo desvio. Entre a ordem da autonomia contratual e a das exclusões juridicamente sancionadas, existem status sociais intermediários que não possuem existência legal no senso estrito, mas que representam estruturas de dependências constituídas pela própria política da assistência. O pobre, nos limites da indigência é mantido, pelas leis do mercado, em permanente estado de necessidade: necessidade de ajuda no caso de doença, de distribuição de víveres, no caso de fome, de roupas, se ocorre um nascimento imprevisto, de alojamento se seu casebre se torna inabitável, etc. Essa miséria não é injustiça, já que é uma consequência necessária do funcionamento da máquina social. Mas, representa, não obstante, um mal e um perigo. O miserável deveria, portanto, obter, pelo menos uma satisfação mínima de suas necessidades, porém, sob um mundo que não é o da satisfação de um direito exigível (só existe o direito contratual). Os meios de sobrevivência lhes são outorgados numa relação personalizada de dependência, através da qual, a relação econômica entre riqueza e pobreza se transforma em relação humana entre benfeitor e assistido. "A pobreza está para a riqueza assim como a infância está para a idade madura. Ricos, reconhecei a dignidade de que estais investidos! Mas compreendei bem, não sois chamados a um patrocínio vago e indefinido. (...) Deveis exercer um patrocínio pessoal, individual, direto, imediato. (...) Sois chamados a uma tutela, uma tutela livre e de vossa escolha, mas real e ativa"

70.

68 Coqueau, op. cit., p. 29. 69 Em relação à análise sistemática dessa política filantrópica cf. i. Donzelot, La police des familles, op. cit. 70 De Gerando, Le visiteur du pauvre, Paris, 1820, p. 9-10.

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As relações econômicas são impessoais: a sociedade burguesa reduziu a razão ao cálculo e as trocas se desenrolam no universo glacial da justiça contratual. Mas a desigualdade das posições induz um fluxo de trocas de uma outra espécie, a generosidade se antecipa à miséria e encontra o reconhecimento daquele que é assistido. Beneficência, reinterpretação burguesa da piedade rousseauista. Novo alento que é também ancilar da lei e da ordem e que, evidentemente, obra a seu serviço. O pobre é mantido nos limites da sobrevivência pelas leis de bronze da economia. Mas, assim, ele está pronto a acolher seu explorador-benfeitor numa relação especular, através da qual, a alegria do doador que faz uma oferenda sem ser obrigado, entra em reciprocidade com o reconhecimento daquele que é assistido, que é livrado da necessidade através de uma ajuda à qual ele não tem direito

71.

Num mundo social entregue à impiedosa racionalidade do intercâmbio econômico se reconstituem, assim, as "relações encantadas do mundo feudal". E elas estendem suas ramificações, reinstaurando um vínculo orgânico entre homens cuja situação objetiva opõe em tudo, na medida em que o exercício da benevolência vincula o assistido ao seu tutor numa relação de clientela, o egoísmo do homo economicus é, dessa forma, transcendido, a humanidade é reconciliada, ao mesmo tempo, com o interesse bem entendido e com as efusões do coração, e, last but not least, a ordem social está salva: "Em vez de dividir a sociedade com nomes odiosos, em categorias de proprietários e proletários, que com isso se excita ao ódio, ao ataque, à espoliação mútua, esforcemo-nos, ao contrário, em mostrar, aos menos felizes dos homens, quantas fontes abundantes e sagradas de simpatia e de benefício fluem a seu favor, do seio das classes afortunadas. Para cada infelicidade que possa atingir uma família operária, uma caridade generosa opõe um estabelecimento que tende a preveni-las; ou pelo menos aliviá-las"

72.

A nova paisagem da assistência é representada, agora, por esse mapa, ainda em branco em grande parte, das sujeições deliberadas. O exercício esclarecido da benevolência fica, assim, compreendido, como o melhor instrumento de vigilância e de manipulação do povo. A relação de tutela que ele instaura desarticula toda possibilidade de revolta, reproduz e estende a dominação de classe. Solução simples, mas genial: enquanto que a dureza de coração dos proprietários impulsiona os miseráveis à revolta, a generosidade a seu respeito é a raiz política de sua submissão.

A lógica da transformação da assistência, tratada no capítulo precedente, não recobre, portanto, todo o seu campo, longe disso. Tinha-se reconstituído um movimento de separação das populações dependentes de assistência, que tendia a redistribuí-las segundo dois pólos opostos. Essa primeira linha de força reduzia o número das pessoas susceptíveis de serem cuidadas pelas instituições fechadas e racionalizava seu

71 Com respeito ao reequilíbrio das relações impessoais de trocas, por uma consolidação afetiva secretada pela própria beneficiência, cf. De Gerando, Le visiteur du pauvre, op. cit., p. 10 ss. 72 Barão C. Dupin, Bien-êlre et concorde des classes dupeuple français, Paris, 1840, p. 40. Dupin, membro da Academia e par do reino, é um dos primeiros especialistas do entendimento entre as classes. Ele desenvolveu uma atividade filantrópica infatigável, escrevendo vários livros e também sendo o instigador de inúmeras iniciativas para a educação dos operários merecedores, como as Escolas de Artes e Ofícios. Um índice de sua forte inserção no movimento filantrópico é o fato de ter sido ele a fazer o elogio ao duque de La Rochefoucault-Liancourt na Academia.

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tratamento através de sua estrita identificação dentro de categorias limitadas e específicas: criminalidade, alienação mental, mendicância incorrigível. Teoricamente, "todo o resto" permanecia fora dessa organização da assistência obrigatória. Em outras palavras, o conjunto dos cidadãos, doravante, deveria depender de regulações sociais "normais", através dos intercâmbios contratuais, dos direitos e dos deveres codificados, das obrigações administrativas e das leis econômicas.

Mas uma tal bipolarização entre a coerção absoluta e a liberdade racionai corresponde a uma representação abstrata e idealista do funcionamento da máquina capitalista. Esse espaço social "liberado" das coerções arbitrárias é, de fato, um território anômico entregue aos sobressaltos das crises econômicas, às revoltas dos explorados, aos dramas do desemprego e da miséria. Paradoxo do liberalismo: a liberdade da circulação dos bens e dos homens lhe é necessária para a obtenção dos lucros máximos. Mas, destruindo as territorializações naturais e as relações sociais orgânicas, ela exige, para a sua própria sobrevivência, regulações que contradizem seus princípios.

Donde, uma segunda linha de recomposição da problemática da assistência: enquadrar, vigiar e domesticar as próprias populações "liberadas" e, em primeiro lugar, esse exército de pobres que o progresso aumenta através de seu próprio desenvolvimento. Estratégia inversa à do enclausuramento, já que se trata de submeter as populações no seu próprio meio, sem arrancá-las do movimento que elas produzem. Problema que também mudou de escala, pois, em vez de se contentar em absorver os marginais mais perigosos, é preciso controlar "a classe mais numerosa da sociedade". Mas desafio pelo menos tão urgente a ser enfrentado, pois o espectro da "la sociale" não é um fantasma, 48 e a Comuna se projetam no horizonte temporal de uma classe que toma consciência de que a condição de sua própria sobrevivência se deve à sua capacidade de colonizar essas hordas, feitas selvagens pelo "livre" desenrolar de sua racionalidade.

O Alienista, o Higienista e o Filantropo

As relações que a medicina mental irá manter com essas novas estratégias de dominação à procura de sua nova fórmula são complexas e ambíguas. Ficou estabelecido que o alienismo forjou seus instrumentos procedendo ao aggiomamento de uma parte da instituição totalitária. Vocação que o situa, portanto, fora dessa busca da sujeição no ambiente de vida. Mas, apesar da corrente filantrópica operar, efetivamente, num outro espaço social e visar outras populações, ela não dispõe de imediato, de uma tecnologia adequada para instrumentalizar seu próprio programa.

Assim, De Gerando explicita longamente no livro Le visileur du pauvre, uma técnica de controle que permanece, em suma, bastante artesanal: assegurar-se de uma tutela completa de alguns pobres, vigiar minuciosamente seu comportamento, dirigir seu cadastramento. Receitas que não contrastam absolutamente, em relação às da antiga caridade e, que, de qualquer forma, não estão ao nível dos novos problemas colocados pelo pauperismo. De Gerando vê, efetivamente, a necessidade de proceder a uma

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"classificação geral dos pobres", "base de todo o edifício que uma caridade esclarecida é chamada a construir

73. Ele a esboça a partir de uma apreciação das necessidades,

segundo três vetores: a amplitude das necessidades (dimensão quantitativa); sua natureza (distribuição qualitativa: alimentação, alojamento, cuidados, etc.) e sua duração (certas necessidades são transitórias, como quando ocorre uma doença ou uma demissão; outras são permanentes como as dos inválidos). Esses três parâmetros esboçam uma combinatória da dependência. Intervir de uma maneira "esclarecida" sobre as necessidades dos pobres, ou seja, satisfazê-los de forma comedida, e atenta ao uso que o beneficiário faz dos dons, significa reservar-se o meio de manipular aqueles a quem se dá assistência, reconduzir sua dependência, instituir uma vigilância permanente das famílias desprovidas. Sendo a concessão de assistência medida pela docilidade dos pobres, toda ajuda entretém e reproduz o processo de sujeição

74.

Entretanto, se um tal programa pode seduzir ele exigiria a disposição de um conjunto de recursos que não são dados desde logo. O período da Restauração vê, efetivamente, despontar numerosas sociedades beneficentes, instituições privadas de ajuda aos diversos desamparos, associações de poupança, de previdência, de educação popular, inspiradas por esses princípios de chantagem deliberada. Mas, apesar de convergentes quanto aos seus objetivos, essas iniciativas nascem dispersamente e tais esforços permanecem desproporcionais em relação às necessidades a serem satisfeitas.

Tudo se passa como se essa política de controle através da assistência tivesse, de imediato, esclarecido suas finalidades, mesmo tomando consciência da fraqueza dos meios para realizá-las. Seu problema seria, assim, de institucionalizar e profissionalizar uma estratégia de dominação, cujos objetivos são políticos, mas, cujos recursos permanecem artesanais. Problema tanto mais difícil porquanto sua solução, através de um encargo oficial, através da criação de um organismo nacional de distribuição da assistência, por exemplo, é impossível por causa da crítica "liberal" contra um direito reconhecido à assistência.

Essa interpretação do movimento "filantrópico" dá conta do tipo de relações, ao mesmo tempo estreitas e distantes, que ele estabeleceu com a medicina em geral e, em particular, com a medicina mental. É verdade que as populações visadas não são as mesmas e as técnicas não são, enquanto tais, intercambiáveis. Mas a referência ao modelo médico representa a possibilidade de passar do amadorismo ao profissionalismo, do empirismo na escolha dos meios à sua unificação através de uma tecnologia erudita. O apelo da oferta permanece limitado, sem dúvida; mas ele antecipa uma velha ambição médica.

Lembremo-nos que, nas últimas décadas do Antigo Regime, desenvolveu-se uma espécie de nova utopia médica, no decorrer dos trabalhos da Sociedade Real de Medicina. O médico se atribuía um papel de auxiliar esclarecido do poder político a, fim

73 De Gerando, Le visiteur du pauvre, op. cit., p. 39. 74 Com relação à filantropia como nova tecnologia da necessidade, cf. J. Donzelot, op. cit.

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de reduzir a miséria e educar o povo organizando-lhe um quadro de existência higiênico e racional

75. Controlar o meio ambiente, acabar com as epidemias e as doenças,

racionalizar a procriação, lutar contra o obscurantismo, aliviar a desgraça, distribuir assistência, tudo isso se tornava menos intervenções especializadas do que elementos complementares de uma estratégia de intervenção coerente, exigindo a organização de uma medicina de Estado, munida de um verdadeiro mandato político e dotada de amplos poderes

76. Cabanis, apesar de ser muito comedido na apreciação dos meios de

que a medicina de seu tempo dispõe, ainda defende essa concepção do médico-magistrado, "guardião da moral e da saúde pública"

77.

Uma tal representação de uma ordem médica generalizada é uma consequência do otimismo do iluminismo. O mandato político reivindicado pelo médico está, a seus olhos, fundado no saber privilegiado que ele possui sobre a vida humana. Luzes capazes de dissolver os preconceitos, de reduzir o arbítrio e, em última instância, de dominar, pela razão, a organização da existência cotidiana. Contudo, o desenvolvimento das lutas revolucionárias reais iria desmentir esses objetivos ambiciosos. Como observa J. P. Peters, outros grupos estavam mais bem situados para impor sua hegemonia do que o dos médicos. Outros interesses, que não a razão, iriam ocupar o cenário principal da história. Obstado em seu projeto político global, o médico deverá resignar-se a ser um especialista, mas um especialista das questões de interesse geral.

O movimento higienista desloca, portanto, para programas aparentemente mais modestos, essa vontade de dominar a contingência social e de promover uma existência mais racional. Esse investimento político que procura, para si, uma área de intervenção técnica, constituiu a originalidade e o avanço da escola higienista francesa durante o período pós-revolucionário. Nela, a ideologia do Iluminismo e o sensualismo da escola inglesa, atualizados através da teoria da influência da moral sobre o físico, de Cabanis, deram lugar a um reformismo prático de inspiração médica: ao controlar as influências do meio através do saber, o homem conseguirá programar para si, uma existência mais sensata

78. Se o médico é um especialista, sua especialidade tem algo a ver com as

implicações mais fundamentais da vida social: "Forma-se, então, como que uma espécie de ciência média entre a Legislação e a Medicina. (...) Essa ciência que denomino medicina política é o resultado, propriamente dito, das relações que podem existir entre as instituições sociais e a natureza humana"

79.

Bouchardat, em 1867, faz uma tardia auto-crítica dessa orientação: "Se, no início deste século, havia um esforço no sentido de se compreender tudo na higiene, atualmente, é preciso deixar na sombra uma porção de detalhes supérfluos ou o que não se pode provar. (...) Antes da nova fase em que entrou a higiene, os autores buscavam

75 Cf. M. Foucault, Naissance de la clinique, op. cit., cf. também supra, cap. II. 76 Cf. J. P. Peters, "Le grand rêve de l'ordre medicai, en 1770 et aujourd'hui", loc. cit. 77 Cabanis, Du degré de certitude de la médecine, 3ª ed., Paris, 1819, p. 147. 78 Cf. E. H. Acketnecht, "Hygiene in France, 1815-1848", Buílelin of the History of Medicine, XXII, 2, março-abril 1948. 79 Prunelle, De la médecine considerée politiquement, Paris, 1818, p. 29.

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aumentar seu campo. Esforçavam-se em fazer um inventário geral dos conhecimentos humanos, o programa era infinito"

80.

O meio onde se desenvolvem essas preocupações é, ao mesmo tempo, o grupo de participação e de referência dos primeiros alienistas. Os mesmos homens se encontram nos mesmos lugares, particularmente no "Conselho de Salubridade do Sena" criado em 1802 de acordo com os planos de Vico d'Azyr, antigo animador da Sociedade Real de Medicina. Nele se encontram Parent-Duchâtel, Marc, Pariset, Villermé, etc, e Esquirol, que será seu presidente em 1822. Eles fundam, em 1829, instigados por Marc e Esquirol, os Annales d'hygiène publique et de médecine légale, cujo secretário é Leuret. Sete dentre os doze membros do conselho de redação da revista pertencem ao Conselho de Salubridade. O prospecto de apresentação formula o consenso científico-político do grupo:

"A medicina não tem por objeto, unicamente, estudar e curar as doenças, ela possui relações estreitas com a organização social; às vezes ela ajuda o legislador na formulação das leis, frequentemente ela esclarece o magistrado ria sua aplicação, e sempre vela, com a administração, pela manutenção da saúde pública. Assim aplicada às necessidades da sociedade, essa parte de nossos conhecimentos constitui a higiene pública e a medicina legal"

81.

Portanto, dois pontos principais de aplicação da medicina "em sua relação com a organização social": "a higiene pública, que é a arte de conservar a saúde dos homens reunidos em sociedade, e que é chamada a gozar de um grande desenvolvimento e a fornecer numerosas aplicações ao aperfeiçoamento de nossas instituições", e a medicina legal, pela qual, "o estudo mais aprofundado da alienação mental permitiu resolver de maneira satisfatória várias questões relativas à liberdade moral, ao estado civil de um grande número de indivíduos, à criminalidade de certas ações"

82.

Mas essas especializações não são, nem estreitamente circunscritas, nem excludentes de intervenções mais amplas que atinjam a problemática global da miséria, do desvio e da ordem social. Finalmente, o movimento higienista quer promover a idéia de prevenção, cuja rica anfibologia nutre, ainda hoje, os equívocos da medicina social. Ao tentar elucidar esse conceito os autores americanos, recentemente, mostraram sua insuperável ambiguidade. Se a prevenção "terciária" concerne às condições de vida invalidantes para um dado indivíduo, a prevenção "secundária" já implica em assumir a vulnerabilidade dos grupos e, tanto uma como a outra só são formalmente dissociáveis de uma prevenção "primária", que exigiria o controle do conjunto dos dados que condicionam a existência numa comunidade

83. Apesar de não ser explicitamente

formulada uma tal teoria, essa pretensão de reduzir a totalidade das condições patogênicas do meio ambiente está efetivamente subjacente à ambição dos reformadores sociais do século XIX. Da insalubridade física do meio à miséria, à

80 A. Bouchardat, Rapport sur les progrès de l'hygiène en France, Paris, 1867, p. 49. 81 Prospecto, Annales d'hygiène publique et de médecine légale, nº 1, janeiro, 1829, p. V. 82 Ibid., p. VI. 83 Cf. G. Caplan, Principies of Preventive Psychiatry, Boston, 1963.

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imoralidade ou ao vício, trata-se de um continuo de condições degradantes que exigem que se lhes traga remédio.

A ação pontual e especializada desemboca, assim, num intervencionismo político generalizado: "O mais belo, o mais sublime dos deveres do médico para com a sociedade é o de empenhar-se, através de sua arte filantrópica, em todos os lugares e em todos os tempos, não somente em conservar a saúde pública quando foi perdida, mas ainda em buscar fundar a moral sobre bases sólidas, em indicar à autoridade como se pode levar o ocioso ao trabalho, o homem corrompido à virtude, o indigente ao bem estar e à felicidade"

84. "Arte filantrópica": conjunção entre uma competência especial, que seria

ligada a um saber médico, e uma propensão a tratar o conjunto dos "problemas sociais".

Os alienistas também tomaram parte ativa nessa vasta ambição. Por exemplo, Foderé, cujo Essai médico-lêgal sur les diverses espêces de folie (1832) é um dos primeiros tratados de medicina mental edita, em 1822-24, suas Leçons sur les êpidêmies et l'hygiène publique e um Essai historique et moral sur la pauvretê des nations em 1825. "Sendo a má distribuição de todas as partes do sistema social uma das principais causas das doenças do físico e da moral do homem, acreditei dever acrescentar, às minhas Leçons sur les épidémies et l'hygiène publique, a publicação desta obra"

85. Ele discute, aí,

todos os "problemas sociais" da época: pauperismo, mendicância, hospitais, menores abandonados e solicita "uma boa economia pública da qual possam beneficiar-se, não um pequeno grupo, mas todos os membros, indistintamente, das diferentes sociedades humanas, cada qual em função do nível que ocupa"

86.

Outro exemplo, Leuret, que não é somente o discípulo direto de Esquirol, médico-chefe de um serviço de Bicêtre ou o teórico do tratamento moral. Redator dos Annales d'hygiene publique et de medicine légale, numa oportunidade, empreende a avaliação da distribuição da assistência pública e preconiza a reforma do sistema da assistência

87.

Escalada das ambições, imperialismo psiquiátrico avant la lettre? Entretanto, o expansionismo supõe a possessão de um território bem circunscrito a partir do qual se desenvolvem as técnicas de anexação. Trata-se aqui, antes de mais nada, de um filo ainda relativamente indiferenciado, compartilhado por diferentes sub-grupos, que irão definir progressivamente sua identidade, uns em relação aos outros, sem nunca chegar a se autonomizar completamente.

As relações privilegiadas entre as medicinas e as políticas que se ocupam especialmente das "questões sociais" foram estabelecidas desde as assembléias revolucionárias. Assim, os médicos são maioria entre os trinta e seis membros do Comitê de assistência pública presidido por Tenon que sucede, na Assembléia Legislativa, ao Comitê de Mendicância da Constituinte (entretanto, a Assembléia conta apenas com vinte e oito médicos). Portanto, de imediato, médicos e filantropos constituem um grupo

84 P. S. Thouvenel, Sur les devoirs du médecin, Paris, 1806, p. 10. (Thouvenel pertencerá à Sociedade de Moral Cristã que desempenhará, como veremos, um papel no desenvolvimento do movimento alienista sob a Restauração e publicará Elements

d'hygiène que, em 1840, perpetuam ainda essa tradição). 85 Foderé, Essai historique et moral sur la pauvretê des nations, Paris, 1825, p. 3. 86 Ibid., p. 23. 87 F. Leuret, "Notice sur les indigents de la ville de Paris", Annales d'hygiène publique et de médecine légale, 1836.

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quase indissolúvel. A medicina mental, logo que começar a existir, irá inscrever-se "naturalmente" nessa corrente. Passa-se, sem solução de continuidade, da "arte especial" dos médicos aos programas coletivos dos higienistas e aos projetos políticos dos filantropos. "A questão dos alienados é, sem dúvida, um dos ramos mais consideráveis dessa medicina política e social, cuja ação parece dever ocupar um lugar cada vez mais amplo na existência das sociedades modernas"

88. Palavras proféticas!

Essas solidariedades não implicam, contudo, numa completa intercambialidade de papéis. Dentro do contínuo, a medicina mental ocupa uma posição particular, tanto em relação ao higienismo, quanto a respeito da filantropia.

Examinemos, primeiro, com relação ao higienismo. Se a corrente higienista trouxe grandes esperanças, no início do século XIX ― na expectativa da era pasteuriana ― deu lugar a realizações práticas bastante limitadas: sanear os esgotos, denunciar a toxicidade de certos produtos industriais, prevenir algumas doenças profissionais, e mesmo fazer o balanço dos perigos da prostituição

89, esses resultados modestos permanecem bem

aquém das declarações de intenções sobre a necessária contribuição da higiene "para o aperfeiçoamento de nossas instituições". É porque o rótulo médico através do qual a higiene busca se atribuir uma caução científica é demasiado globalizante para lhe garantir uma instrumentalização eficaz. Ainda Cabanis ― que, dentre suas múltiplas atividades, foi também professor de higiene nas Escolas Centrais, a partir do ano III -. tinha visto muito bem o problema de uma medicina situada na encruzilhada entre seu projeto político e a fraqueza de seus meios de intervenção técnica. Por um lado, ele proclama: "Sob certos aspectos a profissão de médico é uma espécie de sacerdócio; sob outros, é uma verdadeira magistratura"

90. Por outro lado ele estava perfeitamente

consciente do "grau de certeza" ― e também de incerteza ― de uma medicina de tecnologia precária e espreitada pelo demônio das especulações arrojadas. Para ele, o ponto crucial pelo qual passa, tanto a possibilidade da realização do programa político quanto do desenvolvimento técnico da medicina, consiste em "simplificar, sobretudo, a arte mais difícil e mais importante, de fazer a aplicação dessas regras práticas"

91.

Poder-se-ia, certamente, julgar o saber e a técnica dos alienistas como grosseiros. No entanto, são eles, no contexto da época, os que se encontram mais bem situados para propor um esquema de intervenção coerente e operatório, pelo menos, no espaço hospitalar (ou, o que finalmente é a mesma coisa, nesse espaço eles aperfeiçoaram uma fórmula que ainda não se demonstrou ineficaz). Apesar da medicina clínica já se beneficiar de um maior prestígio científico, ela ainda permanece fechada num quadro somático e individual. O alienismo trata de um problema social e desenvolve uma prática coletiva. Ele pode, assim, aparecer como vanguarda do movimento higienista, propondo-

88 A. Foville, Des alienes, Paris, 1853, p. 79. 89 Cf. em particular A. J. P. Parent-Duchatelet, Hygiènepublique, Paris, 1836; De la prostitution dans la ville de Paris, Paris, 1836; Villermé, Tableau de l'état physique et moral des ouvriers, Paris, 1842. Os inquéritos com operários de Villérme constituem, sem dúvida, a base de um vasto prbgrama de "trabalho social", mas eles são também, completamente, desligados de qualquer referência médica. 90 Cabanis, Du degré de certitude de la médecine, op. cit., p. 147. 91 Cabanis, ibid., p. 14.1.

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lhe seu esquema de intervenção cientificamente mais reconhecido e tecnologicamente mais eficaz.

O argumento vale, com algumas reservas, no que diz respeito à "filantropia". Nas duas orientações, a filosofia social é a mesma. Comparemos apenas dois textos escolhidos dentre dezenas, de mesma inspiração:

"Compreende-se melhor, agora, a influência da civilização que conta seus feridos e seus mortos após celebrar suas vitórias. O movimento do comércio e da indústria, o desenvolvimento das artes, a atividade intelectual que fazem a glória do país, não devem nos fazer esquecer os deserdados mortos antes de atingirem a meta. A sociedade deve reservar algumas migalhas de sua prosperidade a fim de estender uma mão caridosa aos vencidos do progresso social. Dentre esses vencidos, os alienados são, certamente, os que mais merecem que simpatizemos com sua desgraça, pois as necessidades da assistência pública se coadunam perfeitamente com as indicações humanitárias".

"Se a civilização, no curso de seus progressos, aumentar as desigualdades das condições, torná-la-á mais sensível; se, por isso, ocasionar infortúnios parciais, tornará sua impressão ainda mais dolorosa; se, ao chamar o homem a destinos mais altos e mais fortes, deixa ao desamparo aqueles cujas faculdades enfraquecidas ou paralisadas não podem responder a seu apelo; se, na marcha ascendente encontrar alguns obstáculos, propiciar alguns choques e multiplicar as chances de acidente, com as perspectivas de sucesso, não seria justo que ela se preocupe com as vítimas imoladas em consequência do próprio trabalho que a conduz a seu objetivo, e indenize aqueles que são arruinados na sua passagem?

A primeira citação é uma passagem dos Commentaires médico-administratifs de Renaudin, que constituíram a bíblia da escola alienista

92, A segunda é de De Gerando,

líder do movimento filantrópico93

. Poderíamos continuar a fazer dialogar o alienista e o reformador social. Se "o alienado é quase sempre um ferido da civilização e o asilo sua ambulância"

94, ele participa, juntamente com os doentes graves, os velhos sem recursos,

os indivíduos incuráveis, os cegos, os surdo-mudos, os menores abandonados, dessa ordem de deficiências que, apesar de serem irredutíveis no que diz respeito a suas causas específicas, são, não obstante, relacionadas com uma etiologia geral comum. "O progresso ― diz ainda De Gerando ― liga o aumento das riquezas comuns com a desigualdade das condições individuais como a dois fenômenos conexos"

95, e "a

desigualdade é a consequência inevitável do trabalho livre, fonte de toda prosperidade"

96. Mas "pouco importa que existam pessoas mais bem dotadas se, através

desse meio, aqueles que o são menos obtêm um maior bem estar"97

. E Renaudin ecoa novamente suas palavras: "Se cada dia é marcado por uma nova conquista, por que, após ter constatado os resultados da vitória, regatearíamos o benefício da ambulância

92 E. Renaudin, Cornmentaires médico-administratifs, op. cit., p. 20-21. 93 De Gerando, De la bienfaisance publique, op. cit., p. 212. 94 E, Renaudin, op. cit., p. 251. 95 De Gerando, De la bienfaisance publique, op. cit.. p. 75. 96 Ibid., p. 76. 97 Ibid., p. 43.

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ou a retirada dos inválidos aos vencidos e aos feridos?"98

. O alienado aparece assim, como a figura-limite, o último dos excluídos por um processo de rejeição que esmaga os homens. A necessidade dessas exclusões não é colocada em questão pois elas são a contrapartida do movimento da civilização assimilado ao desenvolvimento da sociedade burguesa. A finalidade da assistência, quer se trate de doentes mentais, quer se trate das outras populações abandonadas no caminho do progresso, é sempre a de preservar a ordem social ou ideológica fornecendo, aos mais deserdados, a assistência que devem manter ou restaurar sua dependência em relação a essa ordem.

Os meios empregados também são, portanto, do mesmo tipo. Trata-se sempre de desenvolver estratégias de sujeição. Um mesmo feixe de técnicas disciplinares é susceptível de impor a recuperação da razão (ou seja, o retorno à normalidade dominante) e domesticar o povo (ou seja, fazê-lo interiorizar as regras que garantem a reprodução da ordem burguesa). Mas, desse ponto de vista, o tratamento moral tem função de modelo ideal. Porque trata de um problema estritamente circunscrito num meio especial e fechado, ele representa o paradigma de qualquer pedagogia autoritária. Compreende-se, assim, por que os filantropos, na busca indecisa de uma tecnologia aplicável a populações mais diversificadas em meios heterogêneos, tenham sido fascinados por esse modelo. E têm de que. A filantropia do século XIX não deixou por conta, nem 48 nem a Comuna. O alienismo trouxe uma solução real e completa para o problema da loucura, pelo menos, na medida em que abafou seu desafio por mais de um século. A medicina mental após e, sem dúvida, melhor que a religião (cujo amor também soube tornar-se inquisitorial para o bem dos heréticos) exibe uma das primeiras vitórias das tecnologias relativamente brandas, cuja generalização pouparia o recurso à violência aberta na solução da questão social.

Essas homologias não excluem, contudo, uma heterogeneidade fundamental dos campos de trabalho, que manterá uma clivagem entre as duas atividades, pelo menos enquanto a medicina mental permanecer ancorada no asilo. Significativamente, foi quase exclusivamente no que diz respeito aos problemas nascidos de um outro espaço fechado, a prisão, que todos esses reformadores se encontraram concretamente.

Sabe-se que, no início do século XIX, a questão dos criminosos e das prisões constituiu o ponto de convergência de todas as obsessões reformadoras: vigiar, punir, intimidar, reeducar, prevenir, curar...

99. Nesse grande concerto, os alienistas tocaram sua

partitura. Assim, Ferrus, primeiro inspetor geral dos asilos, a partir de 1836, é também inspetor sanitário das casas de correição a partir de 1842. Seu livro Des prisionniers et de l'emprisonnement

100 tem tanta autoridade no meio penitenciário quanto Des alienes

101

no meio alienista. Meios em osmose. Moreau-Christophe, inspetor geral das prisões do reino, apoia sua política nos relatórios de comissões em que alienistas como Esquirol, Pariset, Ferrus, participam em grande número. Na grande polêmica da época entre os partidários de um encelamento absoluto e os partidários de um regime mais brando, é a

98 E, Renaudin, op. cit., p. 23. 99 Cf. M. Foucault, Surveiller et punir, op. cit.; cf. também H. Gaillac, Les maisons de correction, Paris, 1971. 100 G. Ferrus, Des prisionniers et de íemprisonnement, Paris, 1850. 101 O. Ferrus, Des alienes, op. cit.

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autoridade desses alienistas que conduz a dotar inicialmente a primeira fórmula (dita "sistema de Filadélfia"): "Os Srs. Pariset e Esquirol, solicitados a expressarem seu pensamento sobre essa questão, não recearam afirmar que o isolamento dos condenados podia ser empregado com um certo rigor e uma grande perseverança sem que pudesse resultar qualquer inconveniente para seu estado mental"

102. O mesmo

Moreau-Christophe além disso, sente-se bem a par das idéias dos alienistas para endereçar, à Academia de Medicina, um memorial intitulado "De la moralité et de la folie dans le regime pénitenciaire" (1839), que será aprovado pelos médicos, sob recomendação de seu relator, Esquirol.

A conjunção, nesse caso, foi particularmente estreita porque, tanto nas prisões quanto nos asilos, o isolamento impõe uma ruptura total em relação ao mundo exterior a partir da qual, um completo programa de ressocialização pode ― pelo menos teoricamente ― desenvolver-se num espaço depurado de toda influência perturbadora. Em relação aos outros domínios de aplicação possível, a posição de modelo ocupado pelo movimento alienista é duplamente paradoxal.

Paradoxo, antes de mais nada, por se inscrever num movimento de reformas sociais por intermédio de uma tecnologia essencialmente hospitalar. Enquanto a realização do programa higienista e filantrópico exigiria o domínio do meio social, a prática alienista só domina uma parte do espaço hospitalar; enquanto se esboça uma vontade generalizada de prevenção, as intervenções mais eficazes dos "médicos especiais" ocorrem a posteriori, sobre populações já segregadas.

Em segundo lugar é pelo fato do movimento alienista parecer mais bem caracterizado do ponto de vista médico que ele retira sua maior parcela de prestígio. Mas, como já vimos, essa referência se apoia num corpus teórico e em técnicas já em atraso com relação ao que representa, para a época, a medicina "de vanguarda" (a medicina clínica). O avanço do alienismo corre o risco, assim, de pagar caro, quando se manifestar esse divórcio entre sua própria caução "científica" e os critérios de uma cientificidade médica tornada mais exigente. Não somente o movimento alienista correrá o risco de descrédito, como também uma outra medicina social tentará agarrar-se a um outro esquema médico, mais tecnicista. Os focos de inovação em medicina mental se deslocarão, então, dos asilos para os hospitais comuns e, sobretudo, para as clínicas de faculdade.

A medicina mental entrará verdadeiramente numa crise decisiva quando esses dois movimentos conjugarem seus efeitos. Um questionamento profundo da preponderância da prática asilar surgirá paralelamente à supremacia de um novo esquema médico que acreditará romper definitivamente com a percepção social (ou moral) quase espontânea da loucura, para constituí-la como "verdadeira doença". Então, a "luta contra os flagelos sociais", inspirada no modelo da tuberculose, referir-se-á a uma outra tecnologia médica e, ao mesmo tempo, a instauração de programas de profilaxia

102 Moreau-Christophe, "De l'influence du regime pénitentiaire en general et de l'emprisónnement individuel en particulier", Annales médico-psychologiques, 1843, p. 430.

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sistemática tornará caduca a idéia de que o hospital possa constituir um dispositivo institucional privilegiado para conduzir essa luta.

História que deve ser acompanhada, porém, cuja compreensão depende da genealogia aqui tentada. De fato, tudo se tornará muito confuso e muitos bons espíritos e boas vontades irão perder-se nessa confusão. Não obstante, no decorrer das tentativas futuras, haverá sempre as duas tramas, a médica e a social, às vezes separadas, às vezes entrelaçadas de outra forma. A vitória do alienismo na sua idade de ouro, deve-se ao fato de que ele as tomou pelas raízes, no momento em que elas coexistiam ainda em sua unicidade pré-crítica, antes do processo de sua divisão ser objetivado em práticas concorrentes, fundadas em saberes diferentes. Mais tarde, Durkheim, por exemplo, tentará conquistar um campo social homogêneo contra sua contaminação pelo psicotatológico

103. Os médicos operarão um movimento de retirada, inverso e

complementar, tentando circunscrever estritamente seu objeto, a partir do orgânico (ou do inconsciente). Então, será preciso inventar sincretismos mais sofisticados para reconciliar a "teoria" e a "prática", o "social" e o "psicológico".

Benefício de uma certa ingenuidade em relação a essas pesquisas .mais tardias: a primeira medicina mental foi de imediato social porque nunca rompeu, verdadeiramente, com a concepção dominante da loucura. Ela nem teve que se colocar o problema de suas "aplicações" a fim de reencontrar aquilo de que nunca se separou, sua inscrição na ordem social dominante. Seus propagadores nunca tiveram, portanto, dificuldade em servir a essa ordem, porque o código teórico da medicina mental se contentava em classificar o que nela faltava através de suas nosografias sintomatológicas, enquanto que seus tratamentos se esforçavam em restabelecê-la através de suas estratégias de sujeição.

Que essa tentativa de inscrever a psiquiatria na sua verdadeira filiação, assistencial e política, bem como médica, termine, portanto, pela meditação de um texto desse grande filantropo que foi o barão De Gerando: "Não se trata somente, como se supõe, de proporcionar trabalho ao indigente; trata-se, frequentemente, de lhe dar educação para o trabalho em qualquer idade; isto é, de lhe inspirar o gosto, de lhe fazer adquirir a capacidade e contrair o hábito do trabalho. Não se trata, como se supõe, de atingir apenas um objetivo econômico, (...) trata-se, antes de mais nada, de atingir um objetivo moral (...). Há pouco a esperar, em matéria de especulação, do produto de uma tal indústria; mas há muito a esperar de seus efeitos sobre os costumes dos pobres, mesmo sendo a especulação pouco frutífera"

104.

Substituamos "o indigente" por uma das múltiplas qualificações aplicadas hoje às diversas variedades de "excluídos" de um sistema de exploração e de normalização. Teremos a fórmula geral de uma política de assistência numa sociedade de classes, com o lugar marcado, também, para todas as medicinas sociais ou mentais, passadas, presentes ou futuras. E também a chave da relação entre psiquiatria clássica e a

103 E. Durkheim, Le Suicide, Paris, 1912. 104 B. dê Gerando, De la bienfaisance publique, op. cit., II, p. 287.

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problemática do trabalho. Não tanto (senão por acréscimo) a recuperação de uma mais-valia. Mas sim, a restauração de uma ordem cuja lei econômica pode ser a extração da mais-valia porque sua lei moral é a sujeição às disciplinas.

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CAPÍTULO IV OS PERITOS PROVIDENCIAIS

Perícia: auto-superação da competência técnica. Na base de seus conhecimentos e de suas práticas, o especialista é chamado a decidir entre opções que engajam valores fundamentais da existência. A delegação de poder faz parte da própria definição de perícia. Através de um raciocínio de estilo técnico ou científico, toma-se uma decisão, que diz respeito a um terceiro e que irá doravante selar seu destino. O desenvolvimento dessa função de perícia é uma das características das civilizações de tipo ocidental, e o operador essencial do processo de racionalização da sociedade, no sentido de Max Weber. Mandato, outorgado a especialistas competentes, atribuindo-lhes o monopólio das avaliações significantes, provocando, como consequência, a burocratização, o desencantamento do mundo, e a expropriação, do comum dos homens, de qualquer autonomia de decisão.

Os médicos em geral, e os psiquiatras em particular, ocuparam uma posição estratégica no desenvolvimento desse processo. Função que foi talvez, por um lado, herdada do papel tradicional do médico quando, mesmo nas sociedades onde setores de intervenção conquistados pelo pensamento racional são limitados, ele arbitra, em nome de sua arte, juntamente com o padre, que ele também é frequentemente, a contingência originada no corpo social por intermédio do acidente, dá fome, da epidemia, da ferida ou da morte. Mas essa prerrogativa irá, ao mesmo tempo, deslocar-se e se generalizar com a vinculação da arte médica a um saber racional. Elliot Freidson descreveu, sob o nome de "autonomia profissional", a base objetiva dessas intervenções, ao mesmo tempo que mostra por que os médicos a possuem no mais alto grau

1. Exibindo os sinais exteriores

da cientificidade e cultivando uma técnica esotérica, os médicos aumentam a distância em relação aos saberes práticos vulgares e, com isso, impõem sua legitimidade como exclusiva, não somente com relação ao tratamento técnico das questões que supostamente são do âmbito de sua competência, como também quanto à maneira como elas devem ser colocadas: "Seu mandato consiste em definir se um problema existe ou não, qual é a sua "verdadeira" natureza, e como deve ser tratado"

2. Assim, os

peritos definem a realidade para a sociedade global e, particularmente, para aqueles que vivem, na carne, suas contradições. O psiquiatria realiza essa operação de maneira exemplar: a partir do momento em que seu diagnóstico define o doente mental no seu status completo, pode, como diz Th. Szasz, "transformar seu julgamento em realidade social"

3.

1 E. Freidson, Professionnal Dominance, New York, 1970. 2 E. Freidson, Profession of Medicine: a sludy in lhe Applied Sociology of Knowledge, New York, 1970, p. 205. 3 Th. Szasz, Ideology of Insanity, New York, 1970, p. 75.

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Críticas desse tipo insistem, em gerai, sobre o caráter pseudo-científico das operações que, supostamente, fundam esses golpes de força (a doença mental é um "mito", etc). Além da dificuldade que se tem, com isso, para compreender o que dá ao psiquiatra um tal poder, o essencial, sem dúvida, não reside aí. Um perito não é e não tem que ser um teórico. O que o determina não é tanto a força da verdade quanto a necessidade desajustar os elementos conflitantes, dados numa situação concreta. Admite-se o caráter mais ou menos aproximado de suas avaliações na medida em que ele ocupa uma posição estratégica num processo de decisão.

É verdade que não é só o médico que exerce esse papel. O urbanista, situado entre a necessidade de uma estrada para servir um grande conjunto e o desejo de salvaguardar espaços verdes, entre as exigências do agente imobiliário e os desejos dos habitantes, emite um parecer que apresenta a mesma estrutura. Entretanto, existem duas diferenças essenciais. A competência do médico, sancionada pela lei, torna-o, mais do que um consultor, o verdadeiro "decisor" corno se diz hoje

4. Essa decisão arbitra

entre valores essenciais, a segurança e a liberdade, para manter o vocabulário da época. Originalidade e gravidade do que será a "função psi", eleva a perícia à altura de uma magistratura.

Talvez falte, às análises do tipo de Freidson, de Szasz e de A. T. Scull ― que faz, nessa base, um notável estudo da conquista do monopólio do tratamento da loucura pelos psiquiatras ingleses, no início do século XIX

5 ― possibilitar compreender

suficientemente por que o engodo funciona. Por que a expropriação se realiza sempre? Por que o psiquiatra terá recebido o mandato, bastante exorbitante, de transformar completamente a definição da loucura e condicionar inteiramente o status antropológico do louco? Porque o seu poder lhe advém de outros sistemas de poder. A negociação, cujo resultado é o destino social do doente, não ocorre entre o perito e os que "colocam problema", mas entre o perito e outros peritos ou outros responsáveis que têm mandato (e poder) para "resolver o problema". É sempre uma questão de equilíbrio, de intercâmbio, de concorrência entre representantes de aparelhos: da justiça, da administração, da polícia... Se existe alguém a quem nunca se pede a opinião sobre seu "tratamento", esse alguém é o louco.

Portanto, talvez valha a pena seguir, com detalhes essas estratégias de especialistas "responsáveis", através daquelas que os alienistas desenvolveram no decorrer de sua "tomada de poder". De fato, tripla estratégia de conquista e, inegavelmente, conduzida até seu termo: no mesmo momento em que o movimento alienista obtém, sem muita dificuldade, o domínio não somente médico, mas

4 Objetar-se-á, talvez, que a própria definição de perícia implica em que seja um terceiro quem decide (por exemplo os jurados), "em sã consciência", a partir do relatório médico-legal do psiquiatra, etc. Mesmo no quadro da lei de 1838 (Cf. Infra, cap. V) não é o certificado do médico do estabelecimento que decide da internação, mas sim, a ordem do prefeito (internação compulsória,

artigo 18), ou o certificado de um médico não ligado ao estabelecimento (internação voluntária, art. 8). Mas veremos, precisamente, que as peripécias atuais da noção de perícia subvertem essas prescrições estritamente legalistas. Renaudin já havia assinalado: todo diagnóstico psiquiátrico é um "ato médico-legal" (Commentaires médico-administratifs, op. cit., p. 23), porque ele implica direta ou indiretamente o destino de uma pessoa. Por exemplo, quando um juiz de menores decide uma internação em ambiente fechado, ele ratifica praticamente um prognóstico sobre a evolução psicológica do sujeito, sobre o caráter mais ou menos patogênico do meio familiar, etc. 5 A. T. Scull, "From madness to mental illness", loc. cit.

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administrativo, de uma parte da estrutura hospitalar, ele começa a impor sua preponderância no ponto de articulação entre o asilo e o seu exterior, sobre o problema das admissões, e tenta, com a perícia médico-legal, uma incursão no exterior, mais difícil, mas também mais rica em desenvolvimentos futuros.

Os Novos Executivos

A primeira linha de expansão do movimento alienista passa pela anexação das funções administrativas dentro do hospital.

Durante o período pós-revolucionário, a situação dos hospitais e hospícios é catastrófica. Como vimos, as iniciativas da Assembléia Legislativa e da Convenção haviam desorganizado o antigo complexo hospitalar, sem terem tido tempo de instaurar uma nova estrutura, A abolição das congregações, e a venda de uma parte importante do patrimônio hospitalar como bens nacionais, provocou uma crise aguda, que irá se prolongar por muito tempo após terem sido revogadas essas medidas. Durante o Diretório, a maior parte dos estabelecimentos carecia de pessoal. Frequentemente a fome grassava nesses estabelecimentos, muitos recusavam admissões e até, em certos casos, tentavam colocar na rua os internos.

Ao renunciarem a um programa nacional de assistência (cf. supra, cap. II), os regimes pós-termidorianos transferem para as administrações locais o encargo de gerir essa situação. A partir do ano V, portanto, são as comissões administrativas, nas províncias, sob controle municipal, e, posteriormente, a partir do ano IX, o Conselho Geral da Administração dos Hospícios, em Paris, que se incumbirão de restaurar a ordem

6. Nesse marasmo, uma fórmula nova, susceptível de pôr fim à confusão, mesmo

num domínio limitado, tem todas as chances de ser adotada. É o que se observa, inicialmente, na região parisiense, com relação aos alienados.

O Diretório (27 prarial, ano V) havia suprimido a admissão dos loucos no Hôtel-Dieu e fechado as "petites maisons" que recebiam, juntamente com Bicêtre e a Salpêtrière, os incuráveis. Ao mesmo tempo, Charenton (fechado durante a Convenção) é reaberto e promovido a estabelecimento nacional para o tratamento dos loucos curáveis. Mas é logo saturado pelos doentes que pagam pensão, quer a título pessoal, quer por intermédio da cidade de Paris. Por volta de 1800, ainda não havia, portanto, em Paris, estrutura geral de atenção para a assistência dos alienados. Desde que começa a funcionar, o Conselho dos Hospícios se inspira nas idéias de Pinel e pretende adquirir duas antigas casas religiosas no Faubourg-Saint-Antoine a fim de destiná-las especialmente ao tratamento dos alienados. Como as negociações fracassaram, o Conselho empreende então, a transformação de Bicêtre e da Salpêtrière. A partir dê 1806, os dois estabelecimentos são aumentados, modernizados e dotados de leitos de tratamento (cento e oitenta em Bicêtre, desde 1806), as celas insalubres são suprimidas. Cinco pavilhões distintos foram construídos segundo as exigências classificatórias de Pinel. Este, segundo o panegírico feito por Hallé na Academia de Medicina, no ano IX, 6 Com relação a esses pontos cf. o imponente trabalho de J. Imbert, Ledroit hospitalier de la Révolution et de l'Empire, op. cit.

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reina sobre oitocentas loucas na Salpêtrière e lhes prodigaliza toda a assistência da ciência

7.

Assim, desde antes dos anos vinte, os estabelecimentos parisienses satisfazem a quase todos os critérios propostos pelos alienistas. Entre 1801 e 1821, o administrador Desportes, membro do Conselho dos Hospícios, calcula 5.075 altas para 12.900 entradas, números bastantes impressionantes (é verdade que o dos mortos também o é: 4.968). A estadia média dos alienados egressos em 1821 foi de 80 dias para os homens e 149 para as mulheres. Em suma, taxas comparáveis as de uma época bem próxima da nossa. Esse meio altamente medicalizado, não se contenta em administrar, experimenta e inova. Por exemplo, fazia-se coabitar por muito tempo, jovens epilépticos com vacas, experimentação terapêutica que, não vemos em nome de quais critérios científicos não se poderia levar a sério

8.

Na província, a situação é muito menos satisfatória, por causa da distância com relação ao núcleo dos valores alienistas. Em seu famoso relatório ao ministro do interior, de 1818, Esquirol calcula, somente oito "estabelecimentos especiais" para toda a França. Os que obedecem a uma "direção médica" são ainda mais raros. Nos outros, os alienados são amontoados, como na época do Antigo Regime, nos pavilhões de hospícios, nos depósitos de mendigos, nas prisões. Esquirol opõe o estado dos insanos, na maior parte dos estabelecimentos da província, às normas médicas praticamente respeitadas em Charenton, Bicêtre e na Salpêtrière: "Eu os vi cobertos de farrapos, nada mais tendo do que palha para se proteger da umidade do chão sobre o qual se estendem. Alimentados grosseiramente, privados de ar para respirar, de água para estancar sua sede e das coisas mais necessárias à vida. Eu os vi em cubículos estreitos, salas infectas, sem ar, sem luz, acorrentados em antros em que não se ousaria acorrentar os animais ferozes que o luxo dos governos mantém a alto custo na Capital. Eis o que vi em quase toda parte na França, eis como são tratados os alienados em quase toda parte na Europa"

9.

Entretanto, a partir dos anos vinte, a situação começa a mudar e, precisamente, à medida que o movimento alienista se desenvolve. Esquirol que se reúne a Pinel na Salpêtrière desde 1802, abre, nesse estabelecimento, um curso de clínica das doenças mentais em 1817. Se os primeiros médicos, assim formados, reforçam o serviço dos alienados da capital, logo se difundem pela província tornando-se os missi dominici do novo saber. Substituem pouco a pouco os médicos à moda antiga, para quem o serviço dos alienados representava uma sinecura. A obra dos recém-chegados é pelo menos, tão administrativa quanto médica. Eles modificam a organização material do estabelecimento, discutem o orçamento, propõem planos para a construção de novos

7 Cf. Camus, Rapport au conseil general des hospices de Paris, Paris, frutidor, ano XI.. Com relação à situação no primeiro terço do século XIX, cf. também Pasto-ret, Rapport au conseil general des hospices de 1804 à 1814, Paris, 1816; Desportes, Compte

rendu duservicedes alienes, Paris, 1826; A. Bigorre, L'admission du mala-de mental dans les hôpilaux de soin de 1789 à 1838,

op. cit.; G. Bolotte e A. Bigorre, "fassistance aux malades mentaux de 1789 à 1838", Annales médico-psychologiques, II, 1966. 8 Cf. L. Desportes, Compte rendu du service des alienes, op. cit. 9 J. E. D. Esquirol, "Des établissements consacrés aux alienes en France et des moyens de les améliorer", in Des maladies

menlales, Paris, 1838, II, p. 400.

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asilos. Não é sem conflitos que eles se impõem10

. Mas, como em Paris, frequentemente conseguem se fazer ouvir pelas autoridades locais e departamentais que, apesar de regatearem no que diz respeito aos meios financeiros solicitados, estão em geral dispostas a delegar, a esses novos especialsitas, a gestão de um problema particularmente espinhoso. Desse modo, no momento dos trabalhos preparatórios da lei de 1838, a situação se encontra restabelecida. Desde o relatório de Esquirol o número dos "alienados atendidos" dobrou (10.250 em 1835 contra 5.153 em 1818). Existem nessa época quarenta e um estabalecimento em que os alienados são classificados e tratados à parte

11. Em 1835, Ferrus é nomeado inspetor geral dos asilos de alienados e

dá novo impulso ao movimento. Mas agora está revestido de um mandato oficial; ele dispõe dos resultados do inquérito sobre a situação dos alienados que o ministro do interior solicitou aos prefeitos em 1834; é encarregado de fazer proposições precisas, que deverão transformar-se em lei

12.

Ultrapassa-se um limiar. Um movimento global se ampliou a partir de situações locais, através da difusão do modelo pineliano. Ao propor uma lei, o poder central nada mais fará, em parte, do que tomar conhecimento de um desenvolvimento contínuo que se desenrolou durante mais de trinta anos.

Portanto, investida progressiva sobre uma parte do espaço hospitalar pelos alienistas; consolidação e extensão geográfica de seu domínio. Mas esse movimento não marcou somente um progresso na "medicalização" da loucura. Essas práticas médicas são, indissociavelmente também, práticas administrativas e de direção. A administração irá reconhecê-lo ao delegar explicitamente, ao médico, uma parte de seu próprio poder. O desenvolvimento do domínio psiquiátrico na primeira metade do século XIX é, paralelamente à expansão das práticas médicas, o reconhecimento progressivo da função de médico-diretor.

Conquista impressionante se levarmos em conta o fato de que, de um ponto de vista histórico, os hospitais e hospícios só tardia e imperfeitamente foram investidos pelos médicos. Com mais razão ainda deveria ter sido assim nos "estabelecimentos especiais", que herdavam as funções de vigilância e de disciplinarização do Hospital Geral e dos depósitos de mendigos. Mas essa confiscação do poder administrativo no seio do hospital é uma consequência direta da nova tecnologia asilar:

"(O médico) deve ser, de certa forma, o princípio de vida de um hospital de alienados. É através dele que tudo deve ser colocado em movimento. Ele dirige todas as ações, chamado, que é, a ser o regulador de todos os pensamentos. A ele, como centro da ação, deve-se dirigir tudo o que interessa aos habitantes do estabelecimento, não somente o que diz respeito à medicação, como ainda tudo que o se relaciona com a higiene. A ação do administrador que governa o material do estabelecimento, a

10 Sobre um episódio preciso das peripécias dessa tomada de poder cf. G. Bléandonu e G. Le Gaufey, "Naissance des asiles d'aliénés, Auxerre-Paris", Annales, 1975, nº 1. 11 Cf. Esquirol, "Des maisons d´aliénés", redação do artigo do Dictionaire des sciences médicales, para a edição de 1838 de Maladies mentales; a ser comparado com seu memorial de 1818. 12 G. Ferrus, Des alienes, op. cit.

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vigilância sobre todos os empregados que essa mesma administração deve exercer, deve ser escondida; o diretor nunca questionará uma decisão tomada pelo médico, nunca se colocará entre ele e os alienados ou os servidores. O médico deve ser investido de uma autoridade a que ninguém possa se subtrair"

13.

O fim do texto de Equirol abre um debate que só será definitivamente resolvido, em detrimento dos psiquiatras, pela reforma, em 1968, do estatuto dos psiquiatras públicos, que suprime a função de médico-diretor. Na época alienista, a posição de Esquirol está entre as mais moderadas, já que ele ainda faz referência a uma dualidade das funções administrativas e médica, apesar de subordinar a primeira à segunda. O outro discípulo imediato de Pinel, J.-P. Falret, será mais categórico: "Por mais que procure a parte do diretor, só encontro a do médico"

14.

Com efeito, sobre o que poderia se fundar a autonomia da instância administrativa já que o tratamento moral orquestrado pelo médico é a única lei viva do asilo? Se é verdade, como o diz na mesma época o próprio filho de Pinel, Scipion, "que nunca é demais inculcar aos alienados a forte persuasão do poder de um único a deter seu destino nas mãos, que pune, que perdoa, que libera"; e que "assim deve ser o poder ilimitado do médico-chefe: desse modo sua influência aumenta ainda mais sua consideração e lhe permite regularizar todas as partes do serviço, através do impulso que lhe é imprimido por unia vontade firme e tenaz no bem"

15; então, somente uma

liderança médica absoluta poderia realizar um tal programa de governo.

Com isso, estamos diante de uma constante fundamental da medicina mental que a psicoterapia institucional, analítica ou não, nada mais fará do que reativar (o paradoxo reside em que a psicoterapia institucional analítica representou a última expressão da vontade de imperialismo médico em relação à administração, no preciso momento em que a função de médico-diretor estava em vias de supressão). Mas já Renaudin, em uma das grandes sumas da medicina alienista, publicada com o significativo título de Commentaires médico-administratifs, sistematizou esse pensamento ao reinterpretar completamente todos os atos administrativos segundo o crivo psiquiátrico: "Quando se examina superficialmente os atos mais importantes da direção administrativa, distingue-se uma forma e correlações que, à primeira vista, não parecem ter nada de médico e não diferir do que se passa em qualquer aglomeração. Mas, por menos que se estude de perto os elementos do problema que cada um deve resolver, nota-se que seu caráter se modifica essencialmente"

16. Assim Renaudin concluirá num outro texto: "A direção de

um asilo de alienados tornou-se uma ciência médica interessante sob vários pontos de vista. Tomando-nos administradores nós nos tornamos, se posso me expressar assim, mais médicos"

17. E acrescenta: "Essa organização, que temos todo o direito de considerar

como a única normal, será uni dia, sem dúvida, aplicada em todos os estabelecimentos; pois a direção material e a direção moral, longe de poderem separar-se, devem ser

13 Esquirol, "Des maísons tfaliénés", in Des maladies mentales, op. cit., II, p. 528. 14 J. P. Falret, Des alienes et des asiles d'aliénes, op. cit., p. 582. 15 Scipion Pinel, Traité complet du regime des alienes, Paris, 1836, p. 42. 16 E. Renaudin, Commentaires médico-administratifs, op. cit., p. 162. 17 E. Renaudin, "Administration des alienes", Annales médico-psychologiques, V, 1845, p. 74.

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submetidas a uma unidade de vistas cuja condição essencial é a unidade de poder. (...) Além disso, o médico é a alma do asilo, é sobre ele que repousa a responsabilidade moral, e também só ele é competente para resolver ou estudar as questões mais importantes; suas inspirações vivificam a letra morta dos regulamentos. Ele é, portanto, o administrador natural de um estabelecimento hospitalar tão importante"

18.

Essa pretensão bastante exorbitante enfrentará resistências, mas será ratificada no essencial. A lei de 1838 e seu regulamento de aplicação de 18 de dezembro de 1839 permitem, ao médico, com a condição do respeito a algumas exigências mínimas (existência de pavilhões distintos, separação entre adultos e crianças e entre sexos) um poder absoluto sobre a organização do regime interior do asilo. Com isso, os problemas da autoridade e da hierarquia se encontram resolvidos em princípio, e por muito tempo, através da anulação de qualquer competência dos "colaboradores" do médico que não derivem dele o princípio de seu poder. Donde esse primeiro quadro da solidariedade entre os membros da "equipe" enquanto se contentem em encarnar o pensamento médico: "Tais são os instrumentos de que o médico dispõe para prescrever o regime físico e moral dos alienados e exercer sobre os doentes sua política médica e pessoal. O chefe dos guardiões recebe as instruções, a esse respeito, diretamente do médico; transmite seus detalhes de aplicação aos enfermeiros e guardiões, cuja ação se coordena, assim, numa unidade favorável ao serviço. O médico não atende diretamente, não age ele próprio; diz a maneira como se deve tratar e como se deve agir; controla a forma pela qual se trata e se age. O chefe dos guardiões é o depositário imediato do pensamento do médico em sua aplicação ao tratamento dos alienados; ele não pode transformá-lo, nem lhe dar outro alcance, nem um objetivo contrário; ele nada mais pode do que especificá-lo, desenvolvê-lo e, enfim, traduzi-lo"

19.

Mito alienista? Num certo sentido, a tecnologia do tratamento moral funcionou como um sistema de racionalizações. Qualquer estudo empírico das práticas hospitalares mostra que os comportamentos reais dos reclusos, assim como do pessoal subalterno, podem se organizar segundo princípios ― que Goffman chama, adaptações secundárias

20 ― diametralmente opostos a essas finalidades explícitas da instituição de

"tratamento". O importante, no entretanto, é que essa representação lisonjeira da eficácia terapêutica conseguiu se fazer reconhecer oficialmente. Sinal de que, como veremos, pelo menos para os representantes do poder administrativo e político, o mais importante não é tanto o que a medicina mental faz realmente ao nível das práticas, mais sim, o que ela supostamente faz, ao recobrir com suas racionalizações as contradições dos questionários.

Assim, o ministro foi nomeando progressivamente um número crescente de médicos-diretores. O movimento atinge seu apogeu no final do grande período asilar. Uma estatística de 1863 mostra que, dentre quarenta e cinco "estabelecimentos especiais" e pavilhões de hospício (com exceção de Paris), somente treze não eram

18 Ibid, VI, 230. 19 Dr. Bouchet, "Surveillant, infirmicrs et gardiens", Annales rnédico-psychologiquès, t. III, 1844, p. 54. 20 E. Goffman, Asiles, op. cit.

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dirigidos por médicos21

. Em relação a Paris, uma longa discussão sobre essa questão da direção médica se abre em 1860 no Conselho Geral do Sena, a fim de decidir sobre a implantação e sobre a organização dos futuros asilos da região parisiense. Um administrador tão "sério" como foi o famoso barão de Haussman declara durante o debate: "Nos estabelecimentos desse gênero, tudo deve ser subordinado ao pensamento médico". E o doutor Li nas assim resume as discussões: "Está claro que o médico é o mestre absoluto e que o diretor nada mais é do que um ministro de suas vontades, um agente de suas ordens"

22.

Unificar para reinar

A difusão da tecnologia asilar de Pinel, na primeira metade do século XIX, terá uma outra consequência essencial para a história da medicina mental: a unificação do dispositivo da assistência e a recusa do movimento alienista ― até, e inclusive, os promotores do "setor" no final da Segunda Guerra mundial ― de tratar, em instituições separadas, as diferentes categorias da população asilar e, em primeiro lugar, os "agudos" e os "crônicos".

Também, nesse caso, as coisas não se decidiram desde o início. Lembremo-nos de que o "modelo inglês", que inspira os reformadores do final do século XVIII, propõe estabelecimentos de tratamento intensivo, cuidando de doentes "novos" durante no máximo um ano, depois do que, no caso de fracasso terapêutico, eles devem ser transferidos para hospícios que se ocupem dos incuráveis. Além disso, quando Tenon projeta a instituição do primeiro estabelecimento francês especialmente destinado aos alienados, ele reproduz "naturalmente" essa distinção entre curável ― incurável, em vias de se institucionalizar em nome do próprio modernismo

23. É essa concepção, também,

que inspira as primeiras realizações do Diretório quando este torna Charentonum estabelecimento para curáveis que se desincumbe de seus fracassos enviando-os para Bicêtre ou para a Salpêtrière, munidos de um certificado de incurabilidade.

Ainda Esquirol, no seu primeiro projeto de reforma global do sistema asilar, em 1818, prevê um estabelecimento para tratamentos intensivos na sede de cada tribunal superior.

A prática de Pinel parece, igualmente, ter sido hesitante sobre esse ponto. Seu "gesto" de libertação dos alienados atingiu os reclusos do Hospital Geral, em Bicêtre e posteriormente na Salpêtrière, ou seja, as populações consideradas como incuráveis ou como indignas de tratamento. Sabe-se também do seu otimismo terapêutico que o levou a rechaçar os diagnósticos definitivos das etiologias orgânicas. Entretanto, ele insiste sobre a necessária precocidade da intervenção: a maior parte dos alienados pode curar-se no ano que se segue ao início da doença, e o prognóstico torna-se cada vez mais sombrio à medida que o tempo passa. Existem, sobretudo, categorias de alienados que

21 Drs. Constans, Lunier e Dumesnil, Rapport sur le servIce des alienes en 1874, Paris, 1878, p. 160. 22 A. Linas, "Le passe, le present et l'avenif de la médecine mental en Frane", Paris, 1863, p. 27. 23 J. Tenon. Mémoire sur les hopitaux, op. cit.

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Pinel considera rebeldes a qualquer tratamento, por razões mais morais do que propriamente médicas: são aquelas a que a revolta ou "tendências perversas" impedem de colaborar com o médico que atua na sua cura. Nos exemplos que Pinel toma, esses indomáveis são mulheres, e é um exercício não-conforme da sexualidade, devassidão, onanismo ou homossexualidade que as torna irrecuperáveis:

"Todo pudor se esvai, o vício se mostra a nu e assistimos essas infelizes vítimas da devassidão proferirem as palavras mais repugnantes e desprezarem todos os meios de repressão que se possa imaginar: assim, não nos resta senão confiná-las em celas isoladas e deixá-las mergulhar em todas as sujeiras que sua imaginação embrutecida sugere, sem infectar as outras com seus exemplos"

24. Mas, "incurabilidade"

propriamente dita ou perversidade irreversível, por que não lançar francamente esses irrecuperáveis em estabelecimentos menos custosos e constituir o asilo em lugar de tratamento intensivo, como mais tarde os "modernistas" irão propor?

O que vai, de fato, decidir a questão, é a lógica própria à tecnologia asilar. A referência ao tratamento moral ― apesar de funcionar em parte como uma racionalização ― irá unificar progressivamente o espaço hospitalar e torná-lo o "meio terapêutico" mais homogêneo possível, dada a existência de diferentes categorias de alienados. Pois, apesar de haver várias espécies de loucuras, o poder do médico desenvolvido pelo tratamento moral, não se compartilha nem se limita. Mesma quando não cura, ele ainda trata: "Quaisquer que sejam as circunstâncias da admissão, a internação no asilo só tem como finalidade o tratamento da doença cuja existência o certificado médico constatou. Seria falso acreditar que se deve restringir os esforços que tendem para esse objetivo unicamente aos casos susceptíveis de terminar pela cura. A tarefa do médico não poderia ser limitada; pois ele nunca poderia esquecer que, sobretudo em relação aos alienados, sua missão consiste em curar algumas vezes, frequentemente aliviar e sempre consolar. Todo alienado é, portanto, um doente a quem é preciso tratar; e a quem é preciso, em consequência, submeter a uma observação atenta"

25.

Parchappe ao constatar, desde 1851, que a escolha entre estabelecimento único e estabelecimentos distintos foi resolvida nos fatos, fornece à atitude unitária dos alienistas sua expressão mais acabada: "Os alienados curáveis e incuráveis podem ser reunidos e aproximados num estabelecimento, sem que a presença dos incuráveis seja um obstáculo para a eficácia do tratamento dos alienados curáveis. Sua presença, com a condição de que seja possível uma separação conveniente, é mesmo, nas mãos de um médico judicioso, um poderoso auxiliar a fim de conseguir e manter ascendências sobre os alienados curáveis e a fim de impor-lhes os hábitos de disciplina que constituem uma parte essencial do tratamento moral"

26.

Na luta aberta, na história da medicina mental, entre um tecnicismo médico seletivo e, portanto, excludente, que quer escolher seus doentes a fim de tratá-los

24 Ph. Pinel, Traité médico-philosophique sur l'aliénation mentale, op. cit.. p. 70. 25 E. Renaudin, Commentaires médico-administratifs, op. cit., p. 73. 26 J. B. M. Parchappe, Des príncipes à suivre dans Ia fondation et Ia construction des asiles d'alienes, Paris, 1851, p. 8.

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intensamente, e uma tendência mais globalizante que distingue mal entre terapêutica e assistência, entre os "agudos" e os "crônicos", e que recusa a noção de incurabilidade por humanismo, sem dúvida, mas também porque ela marca o ponto final de seu poder, os alienistas tudo fizeram para impor essa segunda atitude. Em geral, eles o conseguiram ― o "setor", como veremos, ainda é em parte concebido a fim de poupar essa escolha ― porque a conjunção entre a tecnologia e o dispositivo que eles operavam impunha essa opção. "Medicalizar" a loucura não consistiu, para eles, em tratar os episódios agudos (isso havia sido tentado antes e o será, de novo, após a crise do sistema asilar). O ato fundador da primeira medicina mental consistiu em fazer emergir, da massa polimorfa dos antigos reclusos, uma categoria única (a alienação mental é um singular, mesmo se comporta espécies; mais tarde é que existirão as doenças mentais) inscrita num quadro institucional único (mesmo se é essencial classificar espacialmente suas diferentes populações de doentes), sob uma única direção médica. Se, por um lado, foi possível acusar o movimento alienista de conceber a doença mental com certa estreiteza, pelo menos essa concepção é coerente. Mas é porque ela obedece a uma lógica administrativa e não só médica. As duas devem ser paralelas, e foi a esse preço que o investimento progressivo sobre o hospital pôde ser um empreendimento sistemático. Imposição do "estabelecimento especial" como único dispositivo de assistência, recusa de sancionar diferenças absolutas entre as diferentes espécies de alienação mental e confiscação das prerrogativas administrativas de direção, são os diferentes elementos de uma estratégia única vinculada ao "tratamento moral" como sua razão de ser, sua racionalidade. Direção das almas doentes, direção do pessoal e direção da empresa asilar manifestam o desenvolvimento de um mesmo poder.

Assim, a personagem do alienista, que domina completamente uma parte do complexo hospitalar já é algo mais do que um simples técnico e do que um especialista estrito. Ele assume tarefas de organização administrativa e de política social que, ao mesmo tempo, decorrem de sua competência profissional (ou daquela que se atribui ou que se lhe atribui) e que a ultrapassam. Esse excedente de competência que se difunde a partir do centro das práticas asilares irá impor, no exterior, o reconhecimento de um novo papel de perito. Mas, enquanto esse poder a mais se fazia sobretudo no asilo às custas da instância administrativa, agora, ele irá se impor em detrimento da instância judiciária, com o apoio das administrações locais e, posteriormente, da administração central.

Certidão não conforme

Problema aparentemente limitado e técnico, o das admissões. Contudo, situado entre o interior e o exterior e comandando o acesso ao status de doente, ele faz eclodir as ambiguidades da função de perito, aos olhos dos próprios contemporâneos: "A fortuna, a vida, a honra desses doentes, de seus parentes e das pessoas que os cercam, a própria ordem pública estariam comprometidas se não se impedisse os alienados de causar danos, apoderando-se deles. (...) A suspensão do direito de cada um de dispor, segundo sua vontade, de si, próprio e de suas propriedades, é uma privação tão grave do

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direito comum, na ordem social, que é surpreendente que os médicos, e sobretudo os legistas, não tenham indicado, de forma positiva, os casos em que um alienado pode e deve ser privado de sua liberdade. É surpreendente que as leis de todos os países não tenham estabelecido regras a fim de constatar os casos que exigem a suspensão da liberdade de um alienado, a fim de fixar o modo de ser seguido quando essa suspensão, julgada necessária, é executada"

27.

Mas a questão é ainda mais complicada do que Esquirol diz aqui. Não se trata, somente, de uma lacuna da lei ou da ausência de lei, mas sim, da real impossibilidade (cf. supra, cap. I) de promover uma lei no prolongamento direto da reforma burguesa do direito. Esquirol se esforça em circunscrever o problema o mais estreitamente possível, tornando-o questão de prazos e reclamando "uma lei que regule as medidas de isolamento, que torne legais os atos intermediários entre a invasão da loucura e a interdição"

28. De fato, é a própria interdição que será desqualificada, para ser substituída

por uma legitimidade de tipo inteiramente diverso, fundada sobre um ponto de vista médico em vez de jurídico.

Inicialmente a resposta será dada na prática. Procedimentos concretos irão se instaurar e, quando tiverem deslocado, progressivamente, a contradição inicial, nada mais restará à lei, senão sancioná-los.

Também nesse caso Paris desempenhou um papel pioneiro. A densidade da aglomeração logo provocou a superação de um limiar crítico no problema das admissões. Uma primeira solução foi tentada quando se utilizou a diferença entre os "agudos" e os "crônicos", cujas implicações institucionais já analisamos. Foi instituída uma tolerância para os estados de crise: a autoridade administrativa podia aprender um indivíduo, em caso de urgência, para colocá-lo num hospital. Mas com a condição de que se tratasse de uma medida provisória. Ela não podia ser prolongada sem que o tribunal se pronunciasse, através do processo de interdição. Chaptal, ministro do interior edita, a 18 vindimário, ano X, um regulamento para as admissões nos hospícios, que contém, no artigo 7, "regras particulares para a admissão dos insanos"

29. Quanto aos casos "agudos"

que posteriormente se revelassem incuráveis, eram cuidadosamente previstos através de um aditivo promulgado em 8 brumário do mesmo ano:

"Quando os insanos, admitidos nos hospitais para doentes, forem julgados incuráveis pelos oficiais de saúde encarregados de seu tratamento, a comissão fará com que sejam recebidos, para fins de depósito, em casas destinadas a servi-lhes de refúgio nos casos de incurabilidade. Essa admissão, essencialmente provisória, só será definitiva quando seu estado for fixado através de um julgamento autêntico, para cujo efeito, a. comissão, na ausência de requisição dos parentes, será obrigada a provocar esse julgamento através do ministério público"

30.

27 J. E. D. Esquirol, "Mémoires sur l'isolement des alienes" (1832), in Des Maladies mentales, op. cit., II, p. 743-744. 28 Ibid., p. 785. 29 Législation sur les alienes et les enfants assistes, op. cit., 1, p. 12. 30 Bibliothèque de l´Assistance publique, Mn El 13, citado por J. Lemoine, Le regime des alienes et la liberte individuelle, Paris, 1884, p. 30.

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Essa solução não prevaleceu, por duas razões. Em primeiro lugar, o peso do aparelho judiciário tornou-o incapaz de assumir parte da tarefa que lhe era destinada, a legalização da segregação dos incuráveis através da interdição. Não que não tenha tentado, num primeiro momento, aplicar esse regulamento. Mas a lentidão e o custo dos processos não permitiu dar-lhe o menor começo de execução. Em relação a isso, uma carta do prefeito do Sena, a 17 de outubro de 1806, exclui qualquer dúvida: "O tribunal, através de um de seus membros, procedeu às visitas e aos interrogatórios prescritos. Mas o número das formas exigidas pelas leis atualmente existentes sobre essa matéria e a quantidade considerável de gastos que cada interdição acarreta não permitiu, até, hoje, que uma só fosse terminada. O tribunal se viu, mesmo, obrigado a suspender essas operações, porque as rendas dos insanos se revelaram, frequentemente, insuficientes para pagar os gastos"

31. Assim também, em 1821, Bicêtre conta apenas dezoito

interditados para seiscentos e cinquenta e um alienados qualificados de incuráveis32

.

Em segundo lugar, a dicotomia institucional entre estabelecimentos de tratamento e estabelecimentos para incuráveis, sobre a qual esse procedimento repousa está sendo, ao mesmo tempo, corroída pela prática alienista, como acabamos de ver. Nesse mesmo ano de 1806, em Bicêtre e na Salpêtrière, abrem-se setores de tratamento. Apesar da ciência alienista insistir sobre o interesse de uma intervenção precoce, ela se recusa a fixar um limite temporal para o tratamento. Um outro dado agrava a situação: os estabelecimentos parisienses são praticamente os únicos a possuírem a reputação de tratar, de um ponto de vista médico, os alienados, que afluem a Paris de todas as partes.

O Conselho Superior dos Hospícios de Paris, cujo papel reformador já analisamos é, assim, levado a se encarregar da situação. Ele instaurará progressivamente um procedimento paralelo que dará preponderância aos médicos. A partir de 1802 aparecerá, nitidamente, uma das funções do certificado médico que não é somente a de diagnóstico de um técnico, mas sim, atestado de um perito que decide a carreira oficial de um indivíduo: "O serviço central só poderá admitir os indivíduos que se encontram num estado evidente de loucura ou aqueles munidos de um certificado que a constate, fornecido por dois médicos e por duas testemunhas dos atos de loucura"

33.

Mesmo os insanos enviados por ordem do chefe de polícia devem passar pelo serviço central dos hospícios que, desse modo, controla a admissão das urgências (é a origem da "enfermaria especial" do depósito). Em 1806, quando são criados serviços de tratamento em Bicêtre e na Salpêtrière, o procedimento de admissão se baseia no certificado médico. Não existe mais diferença substancial entre a admissão num serviço de alienados e a entrada num hospital comum.

O papel preponderante do controle médico se impõe sobre um outro aspecto importante do encargo dos alienados. No estado de confusão institucional e legislativa do começo do século XIX, o número de casas de saúde privadas aumentara

31 Archives Nationales, F 131933, citado por J. Lemoine, op. cit., p. 32. 32 Cf. L. Desportes, Compte rendu du service des alienes, op. cit. 33 Cf. J. Lemoine, op. cit., p. 31.

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consideravelmente. Calcula-se que, no final dos anos vinte, havia mais de duzentas que podiam acolher alienados, e inúmeros diretores são suspeitos de visarem o lucro e de serem complacentes com as famílias que querem se livrar de um de seus membros

34. A

fim de regularizar esse estado de coisas o chefe de polícia De Belleyme, em 1828, baixa uma regulamentação importante, pois será uma das bases das discussões da lei de 1838. A abertura de uma casa de saúde fica subordinada à autorização do chefe de polícia que também deve estar a par do registro das entradas. Os médicos da prefeitura devem verificar o fundamento da medida de admissão. As casas de saúde deverão ser dirigidas por um médico obrigado a residir no estabelecimento. O procurador do rei será avisado de qualquer admissão e uma comissão formada por membros do Conselho de Salubridade visitará regularmente todas as casas de saúde

35.

Fica, assim, prefaciada, a colaboração entre as instâncias administrativas, judiciárias e médicas que caracterizará a lei de 1838. Mas, apesar de serem solicitadas a se sustentarem mutuamente, elas não ocupam a mesma posição. O poder médico goza de um privilégio de fato, pois cabe a ele a função de perícia: o certificado, que valida ou invalida o estado de doença, decide, de fato, a questão da legitimidade da internação. Além do mais, somente o médico está constantemente presente na instituição, ao passo que a intervenção dos outros responsáveis é intermitente e se tornará, na aplicação, facultativa.

Como consequência prática, tanto nos estabelecimentos públicos quanto nos particulares, pelo menos em Paris, o essencial dos processos relacionados às admissões passou progressivamente para o controle médico. Na província, a situação é muito heterogênea, mas globalmente caracterizada, também nesse caso, por um "atraso" desse domínio médico. Em inúmeras regiões, como por exemplo em Dijon, as autoridades administrativas locais, contentam-se em exigir o respeito da estrita legalidade, ou seja, o julgamento da interdição tão difícil de ser obtido, a fim de evitar a carga de um número exagerado de alienados

36. Mas essas práticas parecem arcaicas.

Elas não conseguem assumir as novas demandas. Elas manifestam assim, a contrário, a função de prestígio de Paris, que parece inovadora do duplo ponto de vista médico e administrativo.

No decorrer das discussões preparatórias à lei de 1838 os alienistas consultados irão se referir, de maneira elogiosa, a esse modelo parisiense que dá tanta importância ao médico. Assim, Scipion Pinel: "Se não estamos enganados, em Paris, a detenção dos alienados exige, agora, formalidades que nos parecem apresentar total segurança"

37.

Esquirol: "(A lei) deve generalizar, para todo o reino, as medidas de isolamento já em uso em vários Departamentos, particularmente em Paris. Mais de trinta anos de aplicação dessas medidas, provam sua eficácia. Assim, nenhum indivíduo afetado por doença

34 A mesma proliferação dos estabelecimentos privados para alienados com fins lucrativos, observa-se ao mesmo tempo na Inglaterra, cf, A. T. Scull, "From madness to mental illness", loc. cit. É preciso datar o nascimento de um mercado da loucura no começo do capitalismo triunfante. 35 Circular muito citada In J. Lemoine, op. cit. 36 A. Bigorre, l'admission des malades tnentauxdans les établissemenls de soin..., op. cit. A mesma situação no Norte. 37 Sc. Pinel, Traitê complet du regime sanitaire des alienes, op. cit., p. 303.

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mental poderá ser isolado, enclausurado, sem um certificado assinado por dois médicos que constatem a necessidade do isolamento"

38.

Esses procedimentos relativos à admissão têm seus correspondentes naqueles relacionados com a alta. Dela se fala muito menos, na medida em que o problema da estadia indefinida numa grande instituição médica vem à baila excepcionalmente. Contudo, também sobre esse ponto, o médico dispõe de uma soberania de fato. Na verdade é a totalidade do estatuto do recluso, da admissão à hipotética alta, com todas as implicações sobre a privação dos direitos humanos e civis durante a estadia, que depende da competência médica.

No concerto de panegíricos que os alienistas pronunciam em louvor da vitória de sua própria estratégia, uma só voz é dissonante, a de Ferrus: "Essa autoridade exclusiva do médico sempre me pareceu exorbitante e fortaleci essa opinião em meio às grandes dificuldades que encontro em exercê-la. (...) Todas essas questões são tão árduas, tão cheias de dificuldades e sujeitas a controvérsia, que me parece prudente não confiar suas soluções ao julgamento de um único homem, quaisquer que sejam as garantias que sua clarividência possa oferecer, e mesmo que se suponha que ele seja incapaz de abusar das prerrogativas ligadas às suas funções de medico de alienados". "Enfim, para repetir uma última vez, o atual estado de coisas é demasiado imperfeito e pode facilmente levar ao arbítrio ou, somente, ao erro ou à injúria e está muito pouco em sintonia com nossas outras garantias sociais para ser, segundo a minha consciência, suportado por muito tempo

39.

Ferrus conclui propondo uma nova lei que dá preponderância à autoridade judiciária. Ele não será seguido nem por seus colegas, o que se compreende, nem pelo governo, nem pelo conjunto dos parlamentares. As práticas instauradas adquiriram uma tal coerência que, em 1838, elas parecerão fornecer uma solução à contradição assinalada por Esquirol

40. Mas, ao sancioná-las, o próprio legalismo da lei se deslocará:

ele cobrirá, com sua autoridade, um elemento de decisão que não estava incluído na interdição e que não é de ordem jurídica, mas médica. Uma competência de perito será assim, legitimada pela lei.

38 J. E. D. Esquirol, "Examen du projet de loi sur les alienes", In Des maladies mentales, op. cit., p. 789. 39 G. Ferrus, Des alienes, op. cit., p. 285 e 290. 40 Contudo, pode-se encontrar os sinais de uma oposição ao movimento alienista desde antes da votação da lei de 1838. Um texto anônimo publicado em Marse lha denuncia a pretensão do médico que "se estabelece, por si mesmo, como juiz supremo" e "a inquisição disfarçada e refinada, bem mais terrível para um povo livre do que a da Espanha, pois nessas espécies de casas de saúde, ela se exerce não somente para os fatos religiosos, mas para toda espécie de fatos" (Considêrations sur le projet de loi

presente à la Chambre des deputes sur les alienes, Marselha, 1837, p. 9-10). A expressão "pineleiras" ("pinelières") parece ter passado mesmo para a linguagem corrente desde os anos vinte, servindo para designar estabelecimentos já desacreditados: "Pensava ter visto diversas espécies de prisões que existem nessa cidade e disso me orgulhava diante de um distinto médico. Não conheceis as mais curiosas, diz-me ele, aquelas que se intitulam casas de alienados e que o público maldoso chama "Pineleiras" (Supplément au voyage en France de M. Leign, Paris, 1826, p. 1). A fim de situar essas correntes hostis ver, no capítulo seguinte, a análise das discussões parlamentares da lei de 1838.

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Os Monomaniacos e os Loucos

Se o reconhecimento da competência dos médicos sobre a questão das admissões ainda se situa na fronteira entre a sociedade "normal" e a instituição fechada, a primeira incursão que o alienista faz claramente fora do asilo consiste na sua imposição como peça indispensável ao funcionamento do aparelho judiciário.

Aparentemente, o problema não é novo nem central, quer seja focalizado do ponto de vista da medicina, quer do ponto de vista da justiça. Não é novo, porque (cf. cap. II) um certo papel do médico como auxiliar da justiça surgira muito cedo através dos processos de feitiçaria. E também não parece central porque, no início do século XIX, parece estar estabelecida uma divisão clara entre o que compete à medicina e o que compete à justiça. Assim, o artigo 64 do código penal, aliás, retomando antigas práticas judiciárias, reconhece que "não existe crime nem delito quando o acusado se encontrava em estado de demência no momento da ação ou quando foi coagido por uma força à qual não pôde resistir".

Portanto, é em torno de um problema aparentemente marginal, introduzido por essa equivalência significativa, estabelecida no artigo 64, entre a loucura e a coerção exterior, que a questão irá eclodir. A alienação mental, como a coerção externa, excluem do campo da penalidade porque elas desresponsabilizam. Mas o problema surge, justamente, da dificuldade em aduzir a prova da irresponsabilidade, num certo número de situações onde não há presença do delírio para impor a caracterização patológica do ato, porém, a justiça não pode castigar por não ter certeza quanto à culpa do acusado. A casuística da psiquiatria e da justiça, tão importante para a evolução futura das duas instituições, irá se desenvolver nessa margem, aparentemente estreita, mas que progressivamente irá incorporar todos os comportamentos delituosos em que a responsabilidade do sujeito está em questão. Portanto, casuística da responsabilidade e da irresponsabilidade ou do voluntário e do involuntário. É por isso que, diante desse problema que lhe é proposto, a medicina mental fica em dificuldades. Digamos, esquematicamente, que ela se encontra à vontade quando se trata de diagnosticar os distúrbios do entendimento, ou seja, uma patologia caracterizada pelo delírio. Nesse caso a coisa já está resolvida e, a competência médica, reconhecida: o diagnóstico do alienista impõe a aplicação direta do artigo 64 do código penal. Mas, face aos atos involuntários sem delírio, a medicina mental deverá comprovar sua aptidão para patologizar esse novo setor do comportamento.

Ora, nada em sua tradição a prepara para assumir esse problema. Quase todos os casos descritos pelos primeiros alienistas dizem respeito aos distúrbios do entendimento. Georget, sem dúvida o espírito mais inovador da escola, escreverá, ainda em 1820: "Não existe loucura sem delírio"

41. As poucas falhas que a experiência

impusera a esse sistema não tinham recebido um status teórico. Pinel fora o primeiro a chocar-se por encontrar em sua prática "exemplos de uma mania, com furor, mas sem delírio, e sem nenhuma incoerência das idéias". Esses exemplos, "mostram a que ponto

41 E. G. Georget, De la folie, op. cit., p..20.

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as lesões da vontade podem ser distintas das do entendimento, apesar de se encontrarem, frequentemente, reunidas a estas"

42. Mas, para Pinel, essas descobertas

constituem uma "surpresa"43

que ele não pode integrar em seu sistema conceitual, porque elas constituem "uma espécie de enigma segundo as noções que Locke e Condillac ofereceram sobre os alienados"

44.

Essa questão chega à psiquiatria de fora, parte do lado da justiça. Esboçamos, no capítulo I, a restruturação completa dessa última em torno da noção de contrato. Como mostrou M. Foucault em Surveiller et punir, a partir da segunda metade do século XVIII (cf. Béccaria), a sanção não tem mais como finalidade destruir o crime-ofensa, aniquilando o criminoso com o sobre-poder do soberano; ela se propõe a corrigir um desequilíbrio de que um indivíduo se torna culpado ao escolher seu interesse particular contra o interesse geral. Mudança fundamental, porque supõe uma racionalidade calculadora na origem de qualquer ato criminoso. Não há responsabilidade sem racionalidade do ato, e, portanto, não existe sanção, nem mesmo delito, sem responsabilidade.

A justiça depara-se, assim, com um problema que é simétrico ao que a medicina encontra. Da mesma forma que as categorias classificatórias do alienismo deixam de ser operatórias no domínio da vontade, assim também, a impossibilidade de aplicar, a certos comportamentos, o novo código em termos de responsabilidade-racionalidade, coloca para a justiça uma questão de princípio.

Esses comportamentos são, segundo Hoffbauer, "os estados que não se pode qualificar com o nome de loucura e nos quais, é impossível vencer o impulso para uma ou outra ação"

45. Face a essas "insólitas impulsões para uma determinada ação", a

posição de Hoffbauer é particularmente equívoca e revela efetivamente a dificuldade da justiça. Ele não pode patologizá-las pois não reconhece nelas os sinais clássicos da loucura. Também não pode condená-las, pois o sujeito não é dono de seu impulso. Recorre, então, a um expediente: esses "insólitos impulsos" serão, apesar de tudo, considerados como irresponsabilizantes. Mas isso entra em contradição com os novos códigos que consideram apenas duas condições de irresponsabilidade (cf. artigo 64): a loucura e a coerção exterior.

É preciso, portanto, que a medicina mental amplie sua definição para nela incluir um novo tipo de coerção interior. Significativamente, é; no final dessa passagem embaraçosa de Hoffbauer, que Esquirol insere sua célebre nota sobre a "monomania". A noção de monomania ocupa, na literatura psiquiátrica da época, o lugar dessa questão. Ela é a primeira resposta da escola alienista a uma aporia que é menos sua que da

42 Ph. Pinel, Traité médíco-philosophique, op. cit., p. 102. 43 "Não fiquei pouco surpreendido ao ver vários doentes não apresentarem, em nenhum momento, nenhuma lesão do entendimento e serem dominados por uma espécie de instinto de furor, como se somente as faculdades afetivas tivessem sido lesadas" (ibid., p. 156). 44 Ibid., p. 102. 45 Hoffbauer, Traité de médecine légale, trad. franc, Paris, 1827. Por intermédio dessa tradução, feita por Chambeyron, discípulo de Esquirol, e comentada pelo mestre, esse tratado alemão ocupou uma posição central nas discussões sobre a medicina legal na França.

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justiça. Ela funciona, com dificuldade, para qualificar patologicamente uma nova área de comportamentos que escapa à sinalização clássica da loucura por intermédio do delírio. Com isso, ela abre um espaço, inicialmente mal definido, de extensão do patológico.

Lugar bem modesto, a princípio. O próprio inventor da noção, Esquirol, circunscreve-a, inicialmente, à representação intelectualista tradicional da alienação mental. Sua primeira definição ainda é essencialmente disjuntiva em relação à mania, entendida como um delírio generalizado. A monomania é essa micromania, que se manifesta quando o delírio se orienta para um objeto particular, deixando intacta a faculdade da razão, em vez de subvertê-la inteiramente como na mania: "A mania tem como característica um delírio geral cujo princípio se encontra na desordem de entendimento, que por sua vez provoca a desordem das afeições morais. (...) Conservamos o nome de monomania para o delírio parcial"

46. No máximo, Esquirol

esboça um outro princípio de distinção, ao fazer a monomania depender de "paixões excitantes, expansivas e alegres" e ao acrescentar que, enquanto na mania o movimento vai da desordem de entendimento para a das paixões, na monomania, "o delírio se origina na desordem' das afeições morais que reagem sobre o entendimento". Mas ele diz o mesmo da melancolia e continua a caracterizar a monomania pela "fixidez e a concentração das idéias"

47.

A "monomania criminosa" começa sua careira nos tribunais sob essa forma ambígua. Foi, sem dúvida, uma das razões da moderada recepção que neles recebeu. Adotada pela defesa, bem feliz de poder dispor de um argumento inédito para os casos desesperados, ela é denunciada por um grande número de magistrados que vêm nela tão somente uma habilidade ou uma tautologia, que consiste, simplesmente, em batizar de monomania homicida o próprio ato criminoso, com o único fim de inocentá-lo. Elias Regnault, um advogado, obterá certo sucesso com um panfleto intitulado Du degré de compétence des mêdecins dans les questions judiciaires relatives aux aliénations mentales, no qual nega aos alienistas o menor direito de se imiscuírem nas questões da justiça: "Afastemos esses cortesãos da humanidade que pretendem honrá-la transformando o crime em doença e, o assassino, em louco"

48. Um magistrado declara

que, se a monomania existe deve ser curada na praça de Greve* e, um outro, aconselha: se um acusado tem a monomania de matar, tende a monomania de condená-lo.

Noção aparentemente muito frágil, pelo menos sob essa forma, para suportar a operação visada por seu intermédio: conquistar uma parte das prerrogativas tradicionais da justiça. Desse modo, os alienistas a re-trabalham. Georget, que afirmava em 1820 que não existe loucura sem delírio, em 1829, distingue com clareza as "lesões da vontade" das "lesões do entendimento, ou delírio" e isso, justamente, no quadro de uma discussão sobre as perícias. Trata-se, respectivamente, "primeiro" de um estado de perversão das

46 Esquirol, Dictionnaire des sciences médicales, t. XXXIV, artigo "Monomanie", retomado In Des maladies mentales, op. cit.,

II, 98. 47 Ibid.. p. 100. 48 E. Regnault, Du degré de compélence des mêdecins dans les questions judiciaires relatives aux aliénations mentales, Paris, 1828.

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tendências, das afeições, das paixões e dos sentimentos naturais e, em segundo lugar, de um estado de aberração das idéias, de perturbação nas combinações intelectuais"

49.

Esquirol, tendo partido da nota confusa de 1819, retoma a questão em 1827 e, como Georget, ele o faz no quadro de uma reflexão sobre a responsabilidade penal: "Desde essa época observei loucuras sem delírio, tive que me submeter à autoridade dos fatos". Esses fatos novos são revelados principalmente pela própria atividade de perícia. Eles "demonstram que, se os alienados enganados pelo delírio, pelas alucinações, pelas ilusões, etc, matam; que, se os alienados atacados de monomania raciocinante, matam, após terem premeditado e raciocinado o homicídio que irão cometer; existem outros monomaníacos que matam por impulso instintivo. Esses últimos agem sem consciência, sem paixão, sem delírio, sem motivo; eles matam por arrebatamento cego, instantâneo, independente de sua vontade; encontram-se num acesso de monomania sem delírio"

50.

Marc, em 1840, dará a essa doutrina da monomania, sua forma definitiva: "É preciso, portanto, já que os fatos o exigem, admitir duas espécies de monomania, uma instintiva, e a outra, raciocinante. A primeira leva o monomaníaco, por efeito de sua vontade primitivamente doente, a atos instintivos, automáticos, não precedidos por qualquer raciocínio; a outra determina atos que são consequência de uma associação de idéias"

51. Distinção um tanto embaraçosa, em favor da qual, a noção de uma patologia

da vontade ou do instinto não se impõe sem remorsos.

Mas o que importa não é tanto a noção de monomania em si mesma, mas sim, o que através dela se procura como elaboração teórica e delimitação de um espaço de intervenção prática. O próprio destino da noção foi frágil e fugaz. Desde 1854, Falret faz uma crítica generalizada dessa noção, ao declarar que não se poderá "ter uma idéia completa dos motivos que levam os alienados a alguns dos seus atos, enquanto não nos livrarmos do erro da monomania"

52. A questão provoca duas importantes discussões na

Sociedade Médico-Psicológica, em 1853-54, onde ela é vivamente atacada, em particular por Morel, e, em 1866, onde parece completamente ultrapassada

53. O importante é uma

estratégia que se apóia sobre um saber aproximado, elabora-o e o transforma, em grande parte interessadamente, ou seja, a fim de conquistar uma área de intervenção às margens do funcionamento do aparelho judiciário. Falret o confessa com grande franqueza: "Do ponto de vista administrativo e legal, não se trata de certezas absolutas, mas de simples possibilidades e de fortes presunções. Ora, é nesse novo terreno que os médicos devem consentir em se situar. Não podemos mais eludir essa questão urgente e afastá-la com uma recusa peremptória. Se recusarmos estudá-la outros decidirão sobre ela sem nós, apesar de nós, contra nós"

54.

Um tal empreendimento suscita, evidentemente, resistências, e provoca polêmicas como a que foi instigada por Elias Regnault a quem Leuret responde

49 E. Georget, Considérations médico-légales sur Ia folie et sur la liberte morale, Paris, 1825, p. 24. 50 J. E. D. Esquirol, "Mémoire sur la monomanie homicide", in maladies mentales, op. cit., II, p. 796. 51 C. C. H. Marc, De la folie considérée dans ses rapports avec lês questions médico-judiciaires. Paris, 1840, p. 244. 52 J. P. Falret, "De la non-existence de la monomanie homicide", Archives générales de médecine, agosto, 1854. 53 Cf. os resumos dessas discussões in Annales médieo-psychologiques, 1854, t. VI (nove seções) e 1866, t. II (três seções). 54

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longamente nos Annales d'hygiène et de médecine légale. Em várias circunstâncias os alienistas intervém como verdadeiro grupo de pressão a fim de forçar uma decisão comprovando sua "competência especial"

55. Mas essa concorrência entre os

representantes dos dois aparelhos não exclui certa cumplicidade, com a condição que se saiba "evitar o exagero dos sistemas opostos" como o solicita o texto de apresentação da rubrica consagrada às questões médico-legais no primeiro número (1843) dos Annales médico-psychologiques. Ora, em geral, o movimento alienista evitou cuidadosamente esses "excessos" mantendo uma dupla exigência: tornar impossível que um louco fosse condenado, mas também que um criminoso fosse inocentado por falsa alegação de loucura. "Não queira Deus, exclamou Esquirol, que, promotores do materialismo e do fatalismo, queiramos criar e defender teorias subversivas, da moral, da sociedade e da religião. Não pretendemos nos constituir defensores do crime e transformar os grandes atentados em acessos de loucura; mas acreditamos que a doutrina da monomania é outra coisa que não o crime desculpado pelo crime"

56.

Georget, que tomara posições bastante liberais é desacreditado por Marc nos seguintes termos: "Ver monomania sem toda parte é chegar a ponto de não vê-la mais em parte, alguma. Apesar do mérito de seus trabalhos, o falecido Georget me parece ter cometido esse erro e, querendo propagar a doutrina da monomania, ele talvez tenha atraído sobre ela o descrédito no espírito dos criminalistas"

57. Contudo, o próprio

Georget havia sublinhado muito bem o fato de que tentar estabelecer uma divisão criminalidade-loucura irresponsabilizando os doentes mentais não tinha por objetivo desculpar todos os crimes: "Aquele que defendesse uma tal doutrina, em teoria ou na prática, teria, ele próprio, perdido a razão. (...) Essa opinião, que assimila os efeitos das paixões aos da alienação mental, parece-nos errônea e perigosa; ela tende a confundir dois estados diferentes e a situar, sobre uma mesma linha, imoralidade e inocência, assassinos e alienados"

58.

Portanto, nenhum sincretismo e, em princípio, nenhuma vontade de anexação das prerrogativas da justiça. Essa perícia se pretende estritamente especializada. Pretende delimitar esferas de competência, eliminar setores de incertezas, separar populações flutuantes. Em suma, trata-se de dar a cada um o que lhe é devido, os loucos aos psiquiatras e os criminosos aos juízes. Assim, Lelut, lastimando que exista entre alguns desses especialistas, tão honrados, uns e outros, "um espírito de oposição e como que de suspeita recíproca, que provocou, mais de uma vez, bem tristes resultados nos anais da justiça criminal", resume, assim, as intenções explícitas dos alienistas: "Estou longe de querer ampliar o círculo da loucura para, com isso, subtrair à ação das leis, ao gládio da justiça, faltas, delitos, crimes que a sociedade deve repelir, e que ela tem o direito de punir. Sou da opinião de Aristóteles: acima do indivíduo está a família, acima da família, a cidade, acima da cidade, o Estado. Que se restrinja, portanto, em seus

55 Cf. uma intervenção concreta desse tipo após a condenação de P. Rivière, in M. Foucault et ai, Moi, Pierre Revière ayani

égorgé ma mère, ma soeur et monfrère.... Paris, 1973. 56 Esquirol, "Mémoire sur la monomanie homicide", in Des Maladies mentales, op. cit., II, p. 842. 57 Marc, De la Folie consldêrée dans ses rapports avec les questions médíco-judiciaires, op, cit., p. 229. 58 Georget, Discussion médico-légale sur la folie et l'aliénation mentale, suivie de l'examen du procès criminei d'H. Cormler et

de plusieurs autres procès, Paris, 1829, p. 51.

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limites mais estreitos, o círculo da insanidade, dessa insanidade que falseia ou destrói o livre arbítrio e faz desaparecer a culpa. Mas, uma vez estabelecido esse círculo, que os infelizes cujo estado aí colocou, e que o transpõem para cumprir uma ação perigosa, vejam abrir-se, não as grades da casa de correição ou das galés, mas as portas de uma casa de caridade"

59.

É por isso que a medicina mental ganhou, inicialmente, seu espaço de intervenção através de casos que lhe são oferecidos pela justiça porque, em suma, representam para esta última um enigma insolúvel. Trata-se desses grandes crimes monstruosos e sem motivos que entretiveram a opinião pública do século XIX: Léger, Papavoine, Lecouffe, Henriette Cormier, Pierre Rivière

60. Essas exceções literalmente transtornantes

questionam o direito de punir ao nível de seu funcionamento. Atos tão deslocados que não podem mais ser recodificados em termos de motivos. Eles desconcertam toda e qualquer justificação racional da sanção, pois não podem ser referidos a nenhum cálculo. Que o aparelho de gestão da loucura o assuma, portanto. É verdade que é preciso contar com as susceptibilidades profissionais, o espírito de corporação, a defesa dos territórios tradicionalmente balizados que alimentam as incompreensões e as querelas. Mas, fundamentalmente, a operação alienista, que patologiza novos setores do comportamento, é complementar à operação judiciária que visa remanejar o direito de punir numa base completamente racional.

Uma conquista que destrói suas próprias retaguardas

Entretanto, se tais exceções não são susceptíveis de condenar os juízes ao desemprego também não são destinadas a permanecerem figuras pitorescas de um museu de horror. Como diz M. Foucault, esses grandes e raros monstros dos anais do crime darão origem a uma massa de perversos menores, psicopatas, anormais e outros degenerados ― até à "infância deliquente". A dificuldade do juiz não se manifestará tanto diante do espetáculo dos grandes processos sangrentos, mas sim, na tarefa cotidiana de deslindar as influências familiares e sociais nos micro-delitos, ou de antecipar a eficácia de uma sanção sobre uma ou outra questão. O julgamento de racionalidade-responsabilidade se deslocará do ato criminal para a pessoa individual avaliada através de suas motivações profundas, das peripécias de sua vida, de suas relações familiares, de suas relações sociais. A consideração dessas dimensões torna-se-á indispensável, ao mesmo tempo, para avaliar a sentença e para apreciar as possibilidades de emenda. O "serviço" que o alienista presta ao juiz, no início do século XIX, portanto, é susceptível de ser transposto para uma outra escala, isto é, deslocado qualitativamente e multiplicado quantitativamente. Através da monomania os psiquiatras conseguiram realizar muito bem a difícil tarefa de responder àquilo para o que foram feitos socialmente: desvendar a subjetividade para codificar os

59 F. Lelut, "Revue médicale des joumaux judiciaires", in Annales médico-psvchologiques, t. 1, jan., 1843, p. 64. 60 A exposição desses casos intervém repetitivamente na literatura psiquiátrica da época, e eles exercem a função de paradigmas para a elaboração do conceito de monomania. Cf. por exemplo, Georget, Discussion médico-lêgale sur la Folie et l'aliénation

mentale, op. cit.: Esquirol, "Monomanie homicide", loc. cit.; Marc, De la Folie considérée dans ses rapports avec les questions

médico-judiciaires, op. cit.

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comportamentos que são problemáticos em outros códigos e, portanto, que não são geríveis pelos outros aparelhos. Pois codificar é gerir através de um mandato social. O diagnóstico inaugura um destino institucional. Para começar, asilo ou prisão, dependendo do acusado ser ou não reconhecido como monomaníaco. Mas, posteriormente, e de uma forma mais sutil, a gama das possibilidades se ampliará através do desenvolvimento de um leque institucional, cuja diversificação se fará paralelamente ao refinamento dos crivos de interpretação e à diversificação das populações a serem "atendidas". A atividade de perícia deixará, então, de funcionar sobre o modo dicotômico "ou...ou": ou louco ou criminoso. Ela situará o indivíduo numa escala de responsabilidade e de desempenhos. Ela se tornará atividade de triagem, de despistagem, de orientação, de classificação. Ao mesmo tempo, será levada a abarcar um número crescente de indivíduos. Exemplo desse deslocamento: atualmente, os "toxicômanos" colocam um problema equivalente ao dos "monomaníacos" por volta de 1820. Mesma dificuldade para reprimir esses comportamentos através do crivo penal tradicional; mesma tendência para se desembaraçar sobre o aparelho psiquiátrico (lei de 1954 sobre os "alcoólatras perigosos", lei de 1970 sobre a luta contra as toxicomanias). E, também, mesma tentação, em alguns, de refinar o código psiquiátrico (ou psicanalítico) a fim de responder essa nova "demanda". Quer se trate de monomaníacos, de toxicômanos, ou de outros "anormais" existem sempre peritos para pensar como Falret: se não somos nós que nos ocupamos deles, serão outros, e é melhor que sejamos nós, pois somos os mais sábios e mais humanos (e assim tornamo-nos os mais poderosos). Pretensões que talvez nem sempre sejam abusivas mas que têm sempre, como consequência, transferir "o encargo" dos próprios sujeitos para um grupo mandatado de especialistas competentes.

Essa "pequena" questão da monomania é, portanto, cheia de futuro, um futuro que é nosso presente agora. Mas já nessa época ela induziu um deslocamento importante sobre o triplo plano da percepção do louco, da confiança na validade do tratamento e da credibilidade do asilo como meio "terapêutico" privilegiado.

Como a questão da monomania se situa nos limites entre o terreno médico e o judiciário, ela focaliza a atenção dos alienistas para um campo de comportamentos que não era prioritário para eles. É verdade, como notamos, que a medicina mental se edificou a partir de uma percepção diferencial (e de uma clivagem institucional) entre os doentes mentais, os criminosos e os outros desviantes. Mas essa operação criava uma distância entre patologia e criminalidade e acentuava uma inocência dos loucos em relação a outras categorias com as quais eles tinham sido injustamente confundidos na in-diferenciação relativa do "grande enclausuramento". Donde essa benevolência geral dos primeiros alienistas que, ao se traduzir por um paternalismo as vezes violento, não era por isso menos sincero. Quem ama muito, muito castiga. Significativamente, a dureza de um Pinel, por exemplo, com relação a certas "perversas", estritamente falando, não encontrou lugar nem em sua obra teórica nem em sua prática. Ele as fecha em celas e não fala muito nisso, como se quisesse esquecê-las. Esquecidas, elas foram.

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A necessidade de operar mais sutilmente a clivagem entre doentes mentais e criminosos (pois se trata ainda de distingui-los) conduz à apreciação mais aprofundada dos traços que lhes são comuns e, em primeiro lugar, a periculosidade do doente mental. Não que se trate, também nesse caso, de uma descoberta: desde o início, a periculosidade qualifica a percepção do louco. Mas uma dupla transformação irá se produzir. Por um lado, periculosidade irresponsável era associada, como acabamos de dizer, à compaixão que se atribui ao fato de ter perdido a razão, esse bem supremo do homem. Agora, o perigo que o doente apresenta será associado à natureza má do "monomaníaco instintivo" entregue às más tendências, à liberação dos automatismos, às fraquezas ou aos eclipses da vontade. Por outro lado, a periculosidade era tradicionalmente associada à grande agitação. Os extravasamentos do "furioso" se anunciavam de longe e permitiam precaver-se com antecedência. A periculosidade do monomaníaco e, logo, das categorias mais sutis de doentes ou de psicopatas, será imprevisível, pois se enraíza num impulso indetectável que pode amadurecer lentamente às escondidas. Paradoxalmente, o doente que é visto como irresponsável é, ao mesmo tempo, quase suspeito de premeditação: "A melhora é frequentemente aparente; quase sempre nenhum fenômeno anuncia o retorno das idéias delirantes; a explosão é quase sempre rápida'; o indivíduo medita seus projetos no silêncio, e ele ataca em meio à mais perfeita calma"

61.

Vale dizer que, quando se lida com um desses perigosos impulsivos, o melhor é não soltá-lo mesmo se manifestar sinais aparentes de cura, Pois o registro mudou: não se trata mais de um "retorno à razão" que anula o parêntese patológico, mas da permanência de uma natureza perversa que pode simular os sinais exteriores da normalidade. Implicação prática: "O médico-legista realiza um grande dever de humanidade ao preservar o monomaníaco da infâmia, ao salvá-lo da mão do carrasco, mas o alienista desconheceria os sagrados direitos da humanidade ao expô-la de novo a ataques, com uma alta intempestiva. Todo alienado homicida, digo-o pela última vez, deve ser internado para sempre numa casa de alienados"

62. De passagem, Aubanel

solicita novas disposições e a criação de pavilhões de segurança para alienados perigosos.

A mesma atitude vale antes da passagem ao ato delituoso, abrindo, a possibilidade de uma nova modalidade da caça ao louco, que podemos chamar, se quisermos, de prevenção. Ela conduz a uma intervenção fundada na ameaça virtual que o doente apresenta, sem inscrição objetiva em comportamentos reais. Comentário de Lunier à leitura de um desses fatos do dia que dão grande publicidade a acessos de violência de doentes mentais e que os jornalistas do século XIX já cultivam: "Se não se esperasse que o alienado cometesse algum crime ou delito de uma certa gravidade para, então, isolá-lo, não teríamos que deplorar todos os dias semelhantes acidentes"

63.

61 H. Aubanel, "Rapports judiciaires et considérations médico-légales sur quelques cas de folie homicide", Annales médlco-

psychologiques 1845, II, p. 383. 62 H. Aubanel, Md., p. 384. 63 L. Lunier, "Revue médicale des journaux judiciaires", Annales médico-psychologiques, 1846, p. 259.

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Ao abandonar a referência aos comportamentos reais em favor de imputações a respeito do futuro, a psiquiatria começa a se arrogar uma margem de interpretação (e, portanto, de intervenção) cujos limites são incertos. Ainda mais que, como observa um pouco mais tarde J. Falret, "pensando bem, não se tardará em reconhecer que a Sociedade deve proteger, não somente a vida, mas a propriedade e a honra dos indivíduos, assim como a ordem pública. Desse modo, o número dos alienados que podem perturbar, por essas diferentes razões, a segurança pública, encontra-se singularmente aumentado"

64. Acrescentemos que o psiquiatra (sem mesmo falar de

deformação profissional), podendo ser considerado responsável nos casos de "imprudência", em virtude do mandato oficial que lhe é delegado, terá mais tendência a majorar o perigo.

Um exemplo. Um alienado, Griffith, evadiu-se em circunstâncias que exigiram uma grande engenhosidade. Detido num albergue, não por ter manifestado distúrbios patológicos, mas por não ter podido pagar a conta por falta de dinheiro, prefere se deixar condenar a sete anos de prisão, a confessar que tinha fugido de um asilo (o que diz muito das condições de vida de um tal "meio terapêutico"). Ele é liberado da prisão, antes do fim de sua pena, por boa conduta, encontra trabalho e vive "normalmente" até que é acidentalmente descoberto como antigo alienado. Comentário de Moreau de Tours quando toma conhecimento da história, relatada num jornal: "A conduta de um alienado pode se parecer, em muitas circunstâncias, com a de um homem racional. O fato que precede é um exemplo dentre mil. Na presença de semelhantes fatos, surge logo uma reflexão ao espírito do médico-legista: quantos doentes como Griffith podem ser perigosos quando pensamentos de morte os dominam! Como as aparências podem se impor e escamotear a situação mental real de um acusado"

65.

Três implicações dessa atitude. Em primeiro lugar, a alienação torna-se um estigma que se cola à pele para toda a vida. Se a cura corre o risco de nada mais ser do que uma "aparência", só há bons doentes no asilo. A indiferenciação generalizada da nova periculosidade autoriza, por parte do médico, uma prudência 'com efeitos exorbitantes, já que uma impressão, em grande parte inverificável, poderá provocar um isolamento por toda a vida. Prova, ao mesmo tempo, do caráter amplamente fictício ― do ponto de vista do saber ― e essencial, do ponto de vista do controle social, do diagnóstico psiquiátrico: é através de um prognóstico de periculosidade, do qual, mesmo os psiquiatras mais cientistas nunca conseguiram fornecer critérios positivos indiscutíveis, que ele pesa, sobretudo, para condicionar completamente o destino social de um sujeito.

Em segundo lugar, começa uma era de desconfiança generalizada. Em sua própria racionalização a atitude psiquiátrica não é mais somente ajuda ao sofrimento (assistência) mas olhar suspeito-o sobre o conjunto dos comportamentos sociais. Aqui, também, os primeiros passos dessa transformação são modestos. Assim, desde a primeira publicação, em 1843, os Annales médico-psychologiques criam uma rubrica

64 J. Fáiret, Des alienes dangereux et des asiles spéciaux pour alienes, Paris, 1869, p. 53. 65 J. Moreau de Tours, "Revue médicale des journaux judiciaires", Annales médico-psychologiques, 1845, V, p. 118.

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regular que recolhe todas as ocorrências relacionadas com alienados implicados em assassinatos, incêndios, atentados aos costumes, roubos, etc, e mesmo simples acidentes. Os comentários são estereotipados. Trata-se, sempre, de prevenir contra uma ameaça difusa e de afirmar a competência exclusiva dos novos especialistas para detectá-la e neutralizá-la. O caráter dicotômico da oposição normal-patológico ainda restringe essa atitude à procura de "verdadeiros loucos" que um meio inocente não é capaz de descobrir. Mas esse freio é frágil, na medida em que até mesmo esse olhar desmantela uma percepção objetivista da loucura: ele procura sinais escondidos de desordem atrás das aparências de um comportamento racional. Início de uma reversão, cujas consequências ainda não deixamos de sofrer: é a normalidade que é suspeita de ser uma "aparência", e que deverá ser comprovada diante de um tribunal de especialistas em patologia. E que não se veja, nessa relativatização das concepções do normal e do patológico, o esboço da vingança de uma loucura oprimida durante muito tempo pela razão e que começaria a se emancipar dessa tutela, para poder realizar sua própria "viagem". São as mesmas características normalizadoras, adquiridas dos valores dominantes, que continuam a fornecer os critérios, a partir dos quais, novos juízes invalidam os comportamentos não conformes.

Em terceiro lugar, o asilo corre o risco de não ser mais o melhor dispositivo institucional para tratar todos os problemas da alienação. Paradoxo significativo: no quadro de uma tentativa de modernização do aparelho psiquiátrico, no início do século XX, psiquiatras "progressistas" do ponto de vista médico se voltarão com nostalgia para o sistema "pré-psiquiátrico" do século XVIII. Na linha da degenerescência de Morel, que sistematiza um certo número de dados surgidos inicialmente a propósito da monomania (cf. cap. VI), eles descobrem que o alienismo clássico assumiu uma definição demasiado estreita das populações a serem cuidadas. A categoria de "anormal" se distingue da de "doente mental". Se este último pode ser tratado no meio terapêutico, inexiste uma instituição para acolher as pessoas "demasiado lúcidas para as casas' de alienados e insuficientemente responsáveis para a prisão".

"Enfim, existia ainda, na Bastilha, uma numerosa categoria de prisioneiros recrutados dentre esses degenerados malfeitores, esses anormais constitucionais cujas lacunas cerebrais congênitas não permitiam a adaptação ao meio social. Ainda hoje, esses anormais constituem um flagelo, contra o qual a Sociedade permanece praticamente desarmada. A maior parte, para quem a psiquiatria, a medicina legal e a justiça contemporânea rivalizam em fraqueza, não tarda em sair das prisões e dos asilos, por mais manifesto que seja seu estado perigoso. E entretanto, se eles são demasiado lúcidos para as casas de alienados e insuficientemente responsáveis para a prisão, não são eles, antes de mais nada, demasiado malfeitores para serem deixados em liberdade?"

66.

O desenvolvimento paralelo das práticas hospitalares e extra-hospitalares exprime, assim, concretamente, a contradição fundamental levantada no capítulo precedente e, à qual, a medicina mental ficou presa na primeira metade do século XIX. A 66 P. Sérieux, L. Libert, Les lettres de cachet, "prisionniers de famille" et "placements volontaires", op. cit., p. 12.

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conquista do hospital pela psiquiatria foi mais segura e mais regular porque a estrutura hospitalar oferece um terreno onde a tecnologia alienista pode se desenvolver como num espaço natural. Para as intervenções exteriores o movimento alienista não dispõe ainda de tecnologia específica. Entretanto, existe nisso mais do que um retardo técnico ou uma defasagem histórica. A exportação para o exterior de um modelo construído no asilo mina, em retorno, sua base de início por um efeito de boomerang. Por exemplo, quando Esquirol diz, do monomaníaco homicida, que ele "não apresenta nenhuma alteração apreciável da inteligência ou das afeições: ele é arrebatado por alguma coisa indefinível que o impele a matar"

67, ele não se dá conta claramente, sem dúvida, de que

uma tal posição não se integra na síntese asilar, e corre o risco de fazê-la eclodir. Pois, de que maneira um tal impulso seria conciliável com a concepção reativa da loucura que a escola alienista forjou, com o papel do meio e da cultura na gênese dos distúrbios mentais e a predominância das causas morais sobre a etiologia orgânica? E de que maneira poderia ceder o que um tal impulso representa de irresistível, de indefinível e de misterioso diante da tecnologia do tratamento moral que postula uma maleabilidade da loucura face ao desenvolvimento de um conjunto de meios racionais? O lugar de um incurável pode ser o asilo porque, como dizia Parchappe, ele contribui, por sua passividade dócil a fazer reinar a ordem. Mas, e um perverso ineducável? E mais: se o asilo corre o risco de não ser mais o lugar que se impõe para a cura ou para a detenção de um tal "anormal", ele é ainda mais inadequado para garantir a prevenção dessas novas manifestações que se encontram na fronteira entre a patologia e a imoralidade.

Assim, quer se trate de disciplinar o acúmulo de instintos ou de impulsos que borbulham sob a capa da monomania, ou de intervir a tempo para neutralizá-los, o asilo começa a ser ultrapassado no próprio momento em que se impõe como a solução primeira.

67 Esquirol, "Mémoire sur la monomanie homicide", in Des maladies mentales, op. cit., II, p. 793.

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CAPITULO V DA PSIQUIATRIA COMO CIÊNCIA POLÍTICA

As conquistas dos alienistas, apesar de numerosas e avançadas, ainda se

apresentam, no início dos anos trinta, dispersamente ordenadas. Por um lado, continuam a ser respostas improvisadas para problemas localizados. Frequentemente, foram negociadas com autoridades locais ou, nas províncias, com comissões administrativas e Conselhos Gerais e, em Paris, com o Conselho Geral dos Hospícios. Portanto, progressão por ensaio e erro, balizada por sucessos obtidos passo a passo. Se as posições assim adquiridas começam a se cobrir com a autoridade do costume, também correm o risco de serem colocadas em questão enquanto não forem reconhecidas pela lei. A última etapa, a da integração no aparelho de Estado, ainda tem que ser percorrida. Mesmo esse resultado foi preparado através de uma série de etapas, gênese que esclarece as relações entre o poder de Estado e os núcleos locais de poder. Não foi um aparelho centralizado que impôs sua marca de cima para baixo. "Micropoderes"

1, a princípio desarticulados, foram-se organizando progressivamente em

redes cada vez mais compactas. A integração final nada mais fez do que marcar a superação de um limiar no desenvolvimento desse processo.

Seguiremos, aqui, as principais peripécias dessa permutação nos intercâmbios e equilibrações recíprocos entre esses operadores práticos constituídos pelos alienistas e os operadores políticos encarregados de gerir, no nível central, os antagonismos sociais. História de uma aliança conflitual através da qual o poder propriamente político nada mais faz do que arbitrar entre práticas preexistentes, a qual coloca essas questões: por que os alienistas encontraram, na integração centralizada de suas práticas, o melhor meio de realizar seus objetivos? Por que o poder político ― e, mais precisamente, que tipo de poder político ― reconheceu nas práticas alienistas um meio de efetivar suas próprias ações?

A Caminho da Integração no Aparelho de Estado

O regime napoleônico apresenta ― o que não é surpresa ― uma primeira manifestação dessa vontade de intervencionismo generalizado do poder central, no nível dos problemas psiquiátricos. O esquadrinhamento administrativo que organiza, no conjunto do território, uma rede de vigilância cerrada, devia também, e talvez sobretudo, esforçar-se em fixar as populações marginais. Em 5 de julho de 1808 aparece o decreto imperial relativo à repressão da mendicância, cujas principais características já

1 Sobre os micro-poderes, cf. M. Foucault, Surveiller et punir, op. cit., em particular, IV, 2.

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analisamos (cap. 1): reterritorialização das massas flutuantes, atribuição compulsória de emprego e ao mesmo tempo de residência. Os depósitos de mendigos devem absorver a circulação sem controle dos marginais. Mesma tática para os criminosos: instaura-se, através de um decreto de 1813, uma rede constituída de vinte e três prisões de Estado, uma em cada tribunal superior.

A 25 de março desse mesmo ano de 1813, um outro decreto imperial exige dos prefeitos um recenseamento dos alienados e uma avaliação de sua situação: quem prove às suas despesas, que tratamento lhes é aplicado, que regras são seguidas para decretar sua sequestração, quais são os abusos que devem ser reformados e as melhorias a serem propostas, qual é a proporção dos alienados socorridos em relação aos que permanecem a cargo das famílias, etc. Deplorando os inconvenientes da ausência de um regime comum para os alienados, o decreto deixa transparecer suas intenções: "Resultam desse estado de coisas, entraves para a ordem da contabilidade, incertezas sobre as somas que se deve alocar nos orçamentos e contínuos obstáculos para a admissão e estadia nos estabelecimentos públicos dos insanos que, entretanto, devem ser mantidos sequestrados da Sociedade"

2.

As circunstâncias políticas fizeram com que esse inquérito não fosse explorado sistematicamente. Entretanto, a administração napoleônica dava bastante importância a seu projeto para decidir em circunstâncias tão difíceis como as do mês de dezembro de 1814, fazer, do asilo de Mareville, perto de Nancy, um hospital central que teria a seu encargo os alienados da Mosela e dos Departamentos limítrofes. Ainda em 5 de março de 1815, o ministro do interior se dá ao trabalho de enviar um despacho ao prefeito da Mosela, confirmando-lhe a decisão

3. Trata-se, de fato, de adotar para os alienados a

solução adotada para os criminosos: instituir cerca de vinte grandes estabelecimentos regionais que enquadrarão todo o território e fixarão assim, após os vagabundos e os criminosos, os últimos nômades sem controle.

Uma nota, sem assinatura, dos arquivos do ministério do interior, de 9 de setembro de 1813, confirma essa intenção mas trai, ao mesmo tempo, uma hesitação significativa: "Não houve, até o presente, nenhuma forma uniforme para o tratamento e a manutenção dos insanos. Existe um grande número de hospícios que recebem esses infelizes. Muitos outros são colocados nas casas de detenção e nos depósitos de mendigos. Pensamos que teríamos muita vantagem em fazer cessar essa confusão e em formar para os insanos, a exemplo das casas de detenção, um certo número de estabelecimentos centrais onde se destinariam pavilhões próprios para os alienados susceptíveis de tratamento e outros para os alienados incuráveis. É difícil determinar se os estabelecimentos para os insanos devam ser considerados mais como hospitais ou como casas de detenção. Por um lado, trata-se de, quanto aos alienados incuráveis, enclausurar indivíduos que podem causar danos à sociedade e, por outro lado, trata-se de fornecer, quanto aos alienados curáveis, meios de cura para indivíduos doentes e, quanto aos indigentes que se encontram numa ou noutra categoria, trata-se de

2 Législalion concernant les alienes et les enfants assistes, loc. cit., I, p. 45. 3 Cf. Constans, Lunier e Dumesnil, Rapport general sur le service des alienes en 1874, op. cit., p. 22.

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assegurar a existência de indivíduos que não possuem os meios para proverem suas próprias necessidades. Parece que os estabelecimentos de insanos sejam estabelecimentos mistos, que pão podem ser colocados nem na categoria dos hospícios nem na das casas de detenção"

4.

Apesar da necessidade de um serviço público para os alienados se impor desde 1813, ainda permanece uma indecisão sobre a natureza dos estabelecimentos: puras casas de detenção, hospitais, ou "estabelecimentos mistos", cuja fórmula ainda não foi encontrada? Isso quer dizer que o caráter essencialmente médico do "estabelecimento especial" ainda não se impôs nesse nível político. Esse estabelecimento "misto" é um híbrido que justapõe, num único espaço, duas instituições com finalidades oficiais contraditórias, o asilo e a prisão.

Seis anos mais tarde, já não será a mesma coisa. Uma circular do conde Decaze, ministro do interior de Louis XVIII, aparece em 16 de julho de 1819: "A comissão que nomeei ainda não terminou seu trabalho mas reconheceu, unanimemente, que a situação dos alienados não poderá receber as melhorias desejáveis sem que eles sejam colocados em estabelecimentos que lhes sejam destinados exclusivamente. (...) Alojamentos salubres e bem ventilados, numerosas divisões e subdivisões, um grande isolamento, cuidados constantes e assíduos, eis as condições que o tratamento, dos alienados exige, condições que será quase impossível assegurar-lhes nos estabelecimentos que recebem outras classes de indivíduos, e que só poderão encontrar em hospícios especiais"

5.

É todo o programa dos alienistas que se encontra, assim, ratificado pelo ministro do interior. O que se passou entrementes? Uma permutação bem significativa entre os representantes da medicina e os da administração central.

Em 27 de novembro de 1817, Edouard Lafont de Ladebat, chefe do Serviço da Assistência e dos Hospitais envia a seu ministro, uma nota, cujo conteúdo já é diferente do da nota de 1813

6. Pela primeira vez, a concepção do "estabelecimento especial" tal

como foi instaurada pelos alienistas em Paris e em algumas cidades da província é tomada como modelo geral da reforma administrativa.

A nota faz, igualmente, referência às condições do "tratamento físico e mental" que exige que os alienados sejam classificados segundo a natureza e a gravidade da doença.

Em 9 de outubro de 1818, segunda nota de Lafont de Ladebat, na qual a referência médica é ainda mais nítida e menciona nominalmente uma colaboração com Esquirol: "No momento em que me dispunha a preparar um relatório sobre um assunto que merece tanto interesse, tive conhecimento de que o Sr. Esquirol, médico ordinário

4 Archives nationales, F15 444. 5 Législation sur les alienes et les enfants assistes, op. cit., I, p. 10-11. 6 G. Bollote, "Les projets d'assistance aux malades mentaux avant la loi de 1838", Information psychiatrique, junho de 1965. Bollote já atribui a paternidade da nota de 1813 a Lafont de Ladebat. Mas o manuscrito original que se encontra nos Archives Nationales não é assinado.

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da Salpêtrière, ocupava-se de uma extensa obra sobre o estado das casas para alienados na França e sobre as mudanças que tal estado exigiria. O Sr. Esquirol, aluno e digno êmulo do Sr. Pinel, há vários anos, dedica toda a sua atenção ao tratamento da alienação. Ele introduziu, no regime da Salpêtrière, importantes melhorias, das quais obteve os mais favoráveis resultados. Percorreu quase toda a França (...). Considerei que ninguém melhor do que esse médico poderia ser consultado, com mais proveito sobre um tal assunto. A meu pedido ele concordou em me entregar um memorial que é, de certa forma, o resumo do trabalho que ele se propõe publicar, e cuja análise apresentarei a V. Excia. nesse relatório"

7. De fato, segue-se um resumo fiel do relatório

de Esquirol. Na conclusão, Lafont de Ladebat, propõe a adoção pura e simples do programa dos alienistas: estabelecimento de cerca de vinte asilos regionais, classificação rigorosa dos doentes, preponderância da direção médica.

Ambas as notas ficam sem resposta até Guizot ser nomeado diretor geral da Administração Departamental e Comunal em janeiro de 1819. Já em 19 de fevereiro ele escreve a Decaze ratificando, por sua vez, pura e simplesmente, a nota de Lafont de Ladebat: "A possibilidade de criar, em grandes estabelecimentos, as divisões e as subdivisões tão úteis ao bem estar dos doentes, a faculdade de neles dispor dormitórios e pátios comuns, enfeixar todas as circunstâncias próprias para contribuir para a cura dos insanos, a possibilidade de colocar, à frente desses estabelecimentos, homens de arte hábeis que, reunindo sob seus olhos uma grande quantidade de fatos e de observações, poderão retirar resultados preciosos para o progresso da ciência e o alívio de uma das enfermidades mais dignas de interesse; tais são as principais vantagens que esse projeto parece apresentar"

8.

A fim de aplicar tal projeto, Guizot propõe a seu ministério a constituição de uma comissão dotada de poderes extensos e podendo solicitar a colaboração dos prefeitos departamentais. Presidida por um Conselheiro de Estado, médico, o barão d'Oisel, ela é composta pelos três principais médicos dos três "estabelecimentos especiais" de Paris (Esquirol pela Salpêtrière, Pariset por Bicêtre, Royer-Collard por Charenton), por um membro da Comissão Administrativa dos Hospícios de Paris, conquistado para a causa alienista, Desportes, um arquiteto e Lafont de Ladebat. E mais ainda, Pinel escreve ao ministro, alguns dias mais tarde, expondo os "seus longos serviços e as obras clássicas que publicou sobre a matéria" e é incorporado à comissão em março. Os alienistas recebem verdadeira carta branca no que constitui uma real delegação de poder por parte da administração.

A comissão se encarrega imediatamente da modernização de Bicêtre, da Salpêtrière e de alguns outros serviços de província. Ela envia aos prefeitos departamentais um questionário a fim de preparar uma reorganização geral da assistência aos alienados. Esquirol dirá, mais tarde, que esses trabalhos "deram novo impulso em favor dos alienados"

9. Parece que, mais do que um novo impulso, todos os

7 Citado in G. Bollote, "Les projets d'assistance aux malades mentaux sous la Restauration", Annales médico-psychologiques, I, 3, 1966; cf. também G. Bollote e A, Bigorre "L'assistance aux malades mentaux de 1789 à 1838", loc. cit. 8 Législalion sur les alienes et les enfants asssités, loc. cit., I, p. 8. 9 Esquirol, "Des maisons d´aliénés", in Des maladies mentales, op. cit.

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elementos para chegar rapidamente à definição de uma política global já estejam dados. Entretanto, o processo é bruscamente bloqueado durante quinze anos. O movimento alienista continua sua progressão subterrânea mas aumenta o divórcio entre o reforço das práticas e o vazio que existe ao nível central. Entre 1820 e 1833 não aparece a menor circular ministerial sobre a questão dos alienados. Em compensação, encontram-se nos arquivos descrições catastróficas sobre a situação, como essa nota da divisão dos hospícios datada de 26 de novembro de 1822:

"A situação dos alienados na França solicita, da maneira mais urgente, a atenção do governo. Queixas surgem de todas as partes. A humanidade geme, a tranquilidade pública está ameaçada; o mal cresce incessantemente e a autoridade não tem nenhuma força para obstá-lo. Desordens que não pode reprimir, escândalo que não pode impedir, são cometidos a cada dia pelos insanos livres por falta de asilos". A nota lembra, mais uma vez, as proposições de 1818-1819 e chega a calcular o custo da construção de quinze asilos regionais para nove mil insanos que têm necessidade de assistência

10.

Contudo, nada acontece. Será preciso esperar 1833 até que a questão seja retomada no nível central. Em 14 de setembro de 1833, o conde d'Argout, ministro do interior, envia aos prefeitos departamentais uma circular que lembra a circular napoleônica de 1813 e solicita uma avaliação da situação. O Conselho Geral dos Hospícios mandata Ferrus e um de seus membros para visitar os asilos ingleses e examinar as condições de aplicação das duas bills a de 1827 e a de 1828 que, após a descoberta de escândalos nos asilos britânicos e a nomeação de uma comissão parlamentar, anunciavam intenções reformadoras

11. O relatório de Ferrus termina com

proposições precisas que adaptam as preconizadas por Esquirol em 181812

. Em 25 de junho de 1835, nova circular do ministro do interior aos prefeitos. A necessidade de uma legislação nova é claramente reconhecida: "A segurança pública é frequentemente comprometida pelos insanos em estado de liberdade, assassinatos, incêndios são cometidos por eles. O ministro da justiça solicita a cooperação da autoridade administrativa; é indispensável que a administração se ocupe seriamente dos meios para regular esse ramo importante do serviço público. Na medida em que as dificuldades da administração provêm de uma única causa ― falta de recursos seguros e suficientes ― tais dificuldades só podem ser suprimidas pela lei"

13.

Em 1836, cria-se a Inspeção Especial do Serviço dos Alienados, confiada a Ferrus. Os prefeitos departamentais são avisados de sua visita iminente através de uma circular. Devem colaborar com ele a fim de estabelecer um balanço preciso da situação dos alienados. A lei de orçamento de 18 de julho de 1836 assimila provisoriamente, até à promulgação de uma legislação definitiva, os gastos com os alienados indigentes aos gastos variáveis dos Departamentos. Nesse mesmo ano de 1836, o Conselho de Estado prepara um projeto de lei que é apresentado à Câmara dos Deputados pelo conde de

10 Archives nationales, F15 444. 11 Cf. A. T. Scull, "From madness to mental illness", loc. cit. 12 G. Ferrus, Des alienes, op. cit. 13 Législation sur les alienes et les enfants assistes, op. cit., I, p. 18.

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Gasperin, ministro do interior, em 6 de janeiro de 1837. O processo que integra a psiquiatria no aparelho de Estado está, dessa vez, pronto para vir a termo.

Mas por que esse longo caminho e essas eclipses? Não basta falar em lentidões administrativas. Durante esse período, por volta de trinta anos, operadores práticos e operadores políticos se aproximaram e se afastaram várias vezes. Por que? A questão deve ser focalizada sucessivamente do ponto de vista de cada um dos parceiros. Antes de mais nada o que, no sistema de práticas e enunciados que a psiquiatria aperfeiçoa, presta-se a uma retomada pelo poder político? Em seguida: qual é o tipo de política que se reconhece nessas práticas, integra-as em seu aparelho e delega-lhes um mandato oficial para realizar uma parte de suas funções?

O Medicalizável e o Administrável

Primeiro elemento para uma resposta: se as elaborações psiquiátricas são retomadas pela administração é porque elas são administráveis. E com razão: elas são concebidas para se submeterem a exigências de gestão.

Tomemos, por exemplo, o famoso relatório de Esquirol de 1819, "Des établissements consacrés aux alienes et des moyens de les améliorer", que teve uma influência decisiva para articular as práticas instauradas pelos alienistas e as decisões tomadas a nível governamental, na definição do que atualmente chamaríamos uma política global de saúde mental. Não se tem uma prova segura para decidir se Esquirol se inspirou, para a sua concepção dos asilos regionais, no modelo das casas centrais de correição da administração napoleônica ou se ele simplesmente generalizou o modelo do estabelecimento especial constituído por Pinel e por ele próprio (cf. cap. II), as duas eventualidades não sendo, aliás, contraditórias. Mas sua exposição, escrita por solicitação de Lafont de Ladebat, análise das causas da desordem atual, discussão dos diferentes meios de remediá-las, propostas de reformas concretas. Por um lado, toda a argumentação é feita de um ponto de vista médico, ou seja, é edificada em função de colocar como finalidade explícita, o melhor tratamento dos alienados. Mas, ao mesmo tempo, ela se estrutura administrativamente: calcula os custos, compara a eficácia relativa das diferentes opções, discute a possibilidade de generalizar "experiências piloto" avant la lettre, no caso, a da Salpêtrière.

Os "livros brancos" da medicina mental não datam de hoje e sempre se endereçaram aos mesmos interlocutores. Neles, a competência médica se desdobra e se olha no espelho das exigências administrativas para nelas se ajustarem. Inversamente, estas últimas neles se reconhecem e encontram solução para suas próprias dificuldades. Donde essa permutação, Esquirol, Lafont de Ladebat, Esquirol, o ministro do interior. Em outras palavras: instauração progressiva de novas práticas ― demanda administrativa ― transcrição médica realista ― retradução burocrática ― nova negociação entre peritos ― sanção pelo aparelho de Estado. A lógica é identicamente a mesma, quer desemboque na lei de 1838 ou na circular de março de 1960 sobre a setorização (ou, se se preferir um exemplo americano, no Community mental health act de 1963).

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Profissionais e administradores formam um par funcional porque negociam na base das opções comuns que definem o que se chama uma "política de saúde mental". Negócio, como se diz, para "responsáveis": funcionários do Estado encarregados do controle das populações marginais e competentes especialistas do desvio, essencialmente os médicos. A partir de uma época recente (cf. os Estados Unidos) um terceiro comparsa, o especialista em ciências sociais, é às vezes chamado a trazer a sua contribuição, com a condição de ratificar os objetivos dos "solicitantes" e de ajudar o administrador e o profissional a negociarem o melhor compromisso para ambos. Assim, confunde-se objetividade científica com reprodução de uma relação de forças inscrita na estrutura social: uma política de assistência-controle-tutelarização exprime o ponto de vista daqueles que receberam mandato oficial para gerir os problemas da doença mental, invalidando de imediato o ponto de vista daqueles aos quais ele "se aplica".

Analisaremos, num próximo livro, os benefícios recíprocos obtidos por cada uma das partes do compromisso da "política de setorização". Mas a maneira com que a permutação funcionou no século XIX já permite exemplificar a lógica política de qualquer empreendimento de medicalização.

Em primeiro lugar, a noção médica de "estabelecimento especial" permite escapar à aporia administrativa do híbrido "estabelecimento misto" e aos problemas insolúveis de gestão e de rentabilização que ela coloca: a que setor orçamentário será atribuído, a que Departamento ministerial vinculá-lo, etc. Mas através dessa solução técnica para um problema de gestão, o que se encontra é uma

1 solução política para uma

questão de princípio.

Lembremos da contradição que existe, no nível dos princípios, entre a exigência de sequestração dos loucos e o respeito às regras jurídicas que devem acompanhar qualquer medida privativa de liberdade (cf. cap. I). Por um lado, a salvaguarda da segurança pública e, por outro, a da liberdade das pessoas. Concretamente, trata-se de aceitar ou de recusar um novo tipo de internação administrativa, forma moderna, porém mais sutil do aviso régio: a administração se apóia em suas prerrogativas técnicas para adotar medidas de ordem política. Por exemplo, a quarentena em caso de epidemia é, sem dúvida, uma medida tecnicamente justificada. A vontade da administração seria de promover, para os alienados, uma solução do mesmo tipo, ou seja, de apreciar, sob sua própria responsabilidade, a oportunidade de uma medida privativa de liberdade. Como diz o ministro do interior, na exposição de motivos da lei de 1.838, "trata-se de prevenir acidentes análogos aos que a polícia administrativa abarca em sua solicitude, em vista dos quais ela foi instituída, tais como as inundações, os incêndios, os flagelos de toda espécie, os perigos que ameaçam a salubridade pública ou mesmo o repouso dos cidadãos", e ele logo acrescenta essa auto-justificação da legitimidade da intervenção administrativa a partir de critérios internos: "Senhores, não estamos mais na época em que a autoridade administrativa encontrava-se em estado permanente de suspeita, em que só se via nos seus atos o perigo de arbítrio. Atualmente, sua responsabilidade é real,

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sua marcha, legal, sua intervenção, protetora. Reconhece-se que, como todos os poderes legítimos, ela própria é uma garantia"

14.

Aí está, justamente, toda a questão. A lembrança das lettres de cachet ainda é vivaz numa classe política que se impõe contra o "despotismo" real. Além do mais, o Estado napoleônico havia retomado o uso da internação administrativa contra seus opositores e até havia começado a se servir da instituição psiquiátrica nascente com esse fim: Vivien, relator da lei de 1838 menciona, na Câmara dos Deputados, sequestrações nos asilos por motivos políticos

15. Enfim, a própria polícia da Restauração perpetuava

práticas em contradição com a Carta. Não é por acaso se, nas discussões da lei de 1838, um dos mais eloquentes defensores dos princípios jurídicos é o deputado Isambert, que havia sido condenado, sob a Restauração, por uma campanha na imprensa contra as práticas da "baixa polícia". Ainda hoje, nada há a acrescentar ao argumento de Isambert

16:

"Acredito ter demonstrado que se trata, nessa lei, de um imenso deslocamento de poder; de transportar a magistratura das famílias para o poder administrativo; de colocar a autoridade judiciária em conflito com a dos prefeitos e a do ministro do interior, em condições que não interessam à política do governo, ou melhor, de colocá-la sob tutela, de subordiná-la à da polícia, de degradar uma e comprometer a autoridade moral da outra. É uma nova lei de disjunção. É uma lei que abala o Código civil é que, no caso mais grave, abole o controle necessário sobre a interdição. Daquilo que as leis de 1790 e de 1791 só indireta e timidamente ousaram atribuir à autoridade municipal, o governo se apodera, exagerando-o. Trata-se, Senhores, do restabelecimento de uma antiga confusão entre poderes, do próprio princípio das lettres de cachet, senão da própria coisa: Trata-se da primeira de nossas liberdades, da liberdade individual, consagrada pelo artigo 4 da Carta, já que se destrói a garantia judiciária que lhe serve de base"

17

Sobre esse plano dos princípios, a contradição é insuperável. A medicina mental irá deslocá-la. Aliás, Isambert se engana em um aspecto. Antes da medicalização (e, quando ele intervém, é em resposta ao ministro do interior que propôs, em sua exposição de motivos, uma versão bem pouco medicalizada da lei), quando a lógica administrativa e a lógica jurídica estão face a face, sem mediador, não há "deslocamento de poder" propriamente dito. Pode haver, quer bloqueio da contradição, quer anexação pura e simples, por uma das partes, das prerrogativas da outra. Através da medicalização há um verdadeiro "deslocamento", isto é, transformação da situação iniciai por meio da transferência de certas atribuições das instâncias antagônicas para um terceiro poder.

14 Législation sur les alienes ei les enfants assistes, op. cit., II,.p. 14. 15 Ibid, II, p. 211. 16 A não ser para observar que, com relação à primeira metade do século XIX, a intromissão do poder administrativo no poder judiciário é cada vez mais tolerada. Assim, a prática da internação administrativa foi colocada na moda, em 1939, para os indivíduos "perigosos para a defesa nacional ou a segurança pública" (decreto-lei de 18 de novembro), acentuada, no regime de Vichy, para certos estrangeiros, israelitas, prostitutas, etc, reinstaurada na liberação para outras categorias (decreto de 4 de outubro de 1944), aplicada amplamente durante a guerra da Argélia (lei de 27 de julho de 1957 e decreto de 7 de outubro de 1968). (Cf. Colliard, Les libertes publiques, 3ª ed., Paris, 1968). O próximo livro tratará da relação entre a diminuição do legalismo e o aumento de dispositivos de controle miniaturizados do tipo médico-psicológico. 17 Législation sur les alienes et les enfants assistes, op. cit., II, p. 92.

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Esse deslocamento constitui a operação própria da medicina mental, através da qual, ela se inscreve na problemática política.

A medicina mental pode, inicialmente, deslocar a contradição porque se coloca no terreno de uma das partes e ratifica integralmente sua demanda: ela requer imperiosamente o que o poder administrativo exige absolutamente, a sequestração dos alienados. Mas, transforma-lhe o sentido, justificando-o com suas próprias razões. A noção de "isolamento terapêutico" é o maravilhoso operador dessa alquimia. O isolamento terapêutico, como dissemos é, segundo Pinel, Esquirol e toda a tradição alienista, a atividade médica que "opera uma diversão no delírio", "modificando a direção viciosa da inteligência e das afeições dos alienados"

18. É a primeira medida a ser

tomada, e urgentemente (ela deve, portanto, escapar à lentidão do aparelho judiciário) pois constitui uma condição necessária â cura. O isolamento terapêutico não é, portanto, um sequestro, ato arbitrário de uma autoridade usurpadora, é uma internação requerida pela situação particular do alienado. Medida, sem dívida, tão imperiosa, tão rigorosa e tão segura quanto a mais policial das detenções. Mas, através dela, o espaço de detenção se tornou o melhor meio terapêutico e, reciprocamente, o "estabelecimento especial" garante um isolamento tão eficaz quanto a melhor das prisões. "A medicina mental faz desse meio a condição primeira do tratamento; a família (...) supera o medo de cometer um ato arbitrário e, usando os direitos imprescritíveis da razão sobre o delírio, ela se beneficia dos ensinamentos da ciência a fim de obter o benefício da cura dos alienados"

19.

A série administrativo-policial: salvaguarda da ordem pública-detenção-sequestro, torna-se assim a série médico-humanista: bem para o doente-isolamento-internação num estabelecimento especial-tratamento-cura (eventual). Se alguns maus espíritos se obstinam ainda em falar de repressão (pois trata-se, evidentemente, do exercício autoritário de uma coerção dolorosa), pelo menos ela se justifica plenamente pelas razões mais científicas e administradas pelos especialistas mais competentes e mais respeitáveis, os médicos. "Feliz coincidência", diz admiravelmente o relator da lei na Câmara dos Pares, o marquês de Barthélemy: "Essa legislação deve velar a que os males de um homem sofredor e infeliz sejam diminuídos, e sua cura obtida quando possível e, ao mesmo tempo, deve tomar as medidas que retirem, a um ser perigoso para os outros e para si mesmo, os meios para fazer o mal. Par; atingir esse duplo objetivo, ela deve prescrever o isolamento dos alienados pois esse isolamento, ao mesmo tempo em que garante o público contra seus desvios e excessos apresenta, aos olhos da ciência, o mais poderoso meio de cura. Feliz coincidência que, na aplicação de medidas rigorosas, une a vantagem do doente e o bem geral"

20.

Com efeito, maravilhosa harmonia pré-estabelecida que fornece a chave do papel político da medicina mental (e sem dúvida de toda a psiquiatria, pois, como veremos, se os mecanismos modernos são mais sutis, exprimem a mesma lógica). O deslocamento da

18 Esquirol "Mémoire sur I´solement des alienes", 1832, in Des maladies mentales, op. cit., II, p. 413. 19 J. P. Falret, Observations sur le projet de loi relatif aux alienes, Paris, 1837, p. 6. 20 Législation sur les alienes et les enfants assistes, op. cit. II, p. 315-316.

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contradição, aqui operado, deve ser entendido exatamente: não é nem sua repetição, nem sua solução.

Não é sua pura repetição, pois se passou de um dispositivo relativamente grosseiro do enclausuramento para um dispositivo mais elaborado da internação, o que supõe a articulação de um novo espaço institucional, a constituição de um novo corpus

de racionalizações, o aparecimento de um novo corpo de especialistas, etc. Dizer quem ganhou e quem perdeu com isso seria mais delicado. Sem nenhuma dúvida, os alienistas ganharam com isso, já que se trata do seu lugar ao sol. Os doentes também, muito provavelmente, em comparação com a situação anterior, mas isto já é um julgamento de valor. De qualquer forma ocorreu, efetivamente, metamorfose do sistema.

Mas também não se trata da solução da contradição porque não houve transformação completa da situação. Medicalizar um problema é mais deslocá-lo do que resolvê-lo, porque é autonomizar uma de suas dimensões, trabalhá-la tecnicamente e, assim, recobrir sua significação sócio-política global, a fim de torná-la uma "pura" questão técnica, adscrita à competência de um especialista "neutro". Operação cujos efeitos funcionam em dois níveis. No plano "ideológico", trata-se de resolver ou desarticular verbalmente a contradição, numa nova síntese que garante, pelo menos, que a fórmula adotada era a melhor possível: "Não é voluntariamente que se procura isolar um alienado, a necessidade faz a lei. A calamidade encontra-se na loucura e não na medida. Curar se for possível, prevenir perigosos desvios, tal é o dever imposto pelas leis da humanidade e da preservação social"

21. Não há mais golpe de força, arbítrio e

escândalo, mas solução maduramente refletida, que leva em consideração todos os interesses presentes. No plano das práticas equivale a reduzi-las ao que é imediatamente manipulável num quadro técnico-científico ocultando tudo o que não é do âmbito de um tal "tratamento" técnico (psicológico ou orgânico).

Essa lógica da subjetivação (ou da individualização) constitui o modo próprio de intervenção da medicina mental e lhe confere seu sentido político específico. Assim, na racionalização e na prática efetiva do "isolamento terapêutico" está claro que não se suprime o antagonismo entre a ordem pública e a liberdade individual. Mas o segundo termo da oposição ficou invalidado como posição de direito e tornou-se um caso a ser "assumido". O único problema será, doravante, saber se o caso é bem ou mal tratado segundo critérios técnicos-científicos autônomos. Deslocamento, portanto, numa problemática inteiramente médica, de um problema de poder que se colocava inicialmente em outra parte e de forma diferente. Doravante, com a maior boa-vontade, o médico enquanto tal nada mais poderá senão operar nesse quadro técnico a fim de refinar seu dispositivo de intervenção especializada. A neutralidade médica erigiu como seu exterior o que era também seu interior. Fazendo necessariamente como se o conjunto dos problemas que lhe são apresentados implicassem somente em sua competência, ela reproduz doravante, através de cada uma de suas intervenções concretas, a escolha política que constitui o status social do alienado. A medicina mental reproduz, portanto, a exclusão social. Mas confere-lhe a forma mais "humana", não 21 Casimir Pinel, "De l'isólement des alienes", Journal de médecine mental, t. I, 1861, p. 181.

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somente justificando, do ponto de vista médico, suas razões, como também tratando da mesma forma os seus efeitos. Alguns alienistas do século XIX, pelo menos, tiveram o mérito de serem conscientes a esse respeito. Fizeram desse humanismo, da dedicação ao doente, da competência técnica, qualidades profissionais, na verdade indispensáveis, mas que têm sentido a partir da aceitação de um mandato social que subordina tal profissão a uma exigência política: "Se o indivíduo tem seus direitos, a sociedade tem os seus. (...) Perturbar a ordem pública, comprometer a segurança das pessoas, eis os perigos com que o louco ameaça a sociedade. Que ele perca, portanto, sua liberdade individual, quando coloca esses bens em perigo: nada mais justo"

22.

Tal lucidez será perdida por duas razões. O refinamento de novos dispositivos técnicos, aumentando o espaço de intervenção da medicina mental, reforçará o sentimento de sua independência. Os profissionais terão tendência a confundir uma relativa autonomia técnica, que conquistaram aperfeiçoando seus instrumentos, com a autonomia ou a neutralidade política. Ao mesmo tempo, à medida que seus instrumentos se aperfeiçoam, dissimulam melhor sua finalidade. Em oposição ao que se manifesta claramente através da brutalidade do "isolamento terapêutico", as tecnologias mais sofisticadas serão, ao mesmo tempo, mais "brandas" e mais bem armadas para recobrir as relações de força com relações de sentido. Uma, análise do tipo da que é feita aqui correrá, então, o risco de ser qualificada de redutora, e mesmo de paleolítica. É verdade que aos espíritos tão sutis quanto as técnicas que empregam repugna ver objetivada a sua prática.

Entretanto, sem pretender reduzir uma situação a um modelo simplificado, pode-se começar a compreender que não é jamais gratuitamente, nem apenas por si só que o aparelho da medicina mental obtém poder. Ele é reconhecido como um parceiro legítimo, na medida em que resolve uma dificuldade própria da ou das autoridades que o reconhecem. Sua expansão fornece assim, às instâncias administrativas ou políticas, um sobre-poder que elas usam em função de seus próprios fins.

Duas implicações. Em primeiro lugar, a assimilação ― que faz parte da vulgata psiquiátrica ― da instância administrativa ao gênio mau que sabota ou trai as iniciativas propriamente médicas é, em grande parte, uma racionalização. O conflito pode existir, de fato, a nível da divisão técnica das tarefas e da rivalidade entre representantes dos dois aparelhos (por exemplo, entre o médico e o diretor dentro de um hospital). Mas essas peripécias se desenrolam sobre o pano de fundo de uma reciprocidade concorrencial entre duas partes que compartilham do mesmo mandato de gestão. Em segundo lugar, o que logo é percebido como triunfo pelos representantes do establishment psiquiátrico ― por exemplo a votação da lei de 1838, ou a circular de 1960 sobre a setorização ― pode ocasionar um despertar desencantado e, tanto mais doloroso quanto, ingênuos e/ou generosos, os promotores médicos se distanciarem menos, por etnocentrismo profissional, em relação à racionalização mais nobremente desinteressada de suas iniciativas. Pois, numa política de saúde mental, a dimensão propriamente médica, em relação ao conjunto do dispositivo, é apenas a parte manifesta 22 Scipion Pinel, Traité complet du regime sanitaire des alienes, op. cit., p. 223.

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(e, por isso, a única, visível) do iceberg. Para o administrador consciente, ela é, no melhor dos casos, o meio de realizar sua própria gestão. Pode ocorrer também que ela seja tomada como uma simples cobertura para uma operação cujos objetivos podem estar em contradição com as intenções dos promotores médicos. Em caso de conflito, estes últimos raramente têm peso (ver a aplicação atual da "política de setorização").

Existe, assim, todo um problema (a ser retomado mais tarde) da postura dos profissionais em relação a seu mandato, e do grau de consciência que dele possuem. Trata-se de uma das diferenças incontestáveis entre a situação do século XIX e a de hoje. Os alienistas aderiram ao seu mandato. Eles souberam o que faziam e quiseram fazê-lo. Mais tarde, através do processo de degradação da síntese asilar, atitudes desconhecidas irão começar a emergir: a má fé (não saber ou não querer saber o que se faz), a má consciência (não querer fazer o que se faz), o desvio de mandato (querer se servir daquilo que supostamente se faz para fazer outra coisa), o nihilismo (não fazer nada). Se podemos falar da psiquiatria da primeira metade do século XIX como de uma idade de ouro é, particularmente, por causa dessa felicidade que surge da boa consciência de ter um dever a realizar e de só encontrar problemas técnicos para realizá-lo

23.

Os Operadores políticos

Contudo, não é qualquer aparelho administrativo-político que realiza alguns de seus objetivos através de técnicas que tomam sua respeitabilidade à medicina. Pode haver meios menos sofisticados para disciplinarizar os marginais e reduzir os focos de desvios. Podemos imaginar, por exemplo, que um Estado fascista nada teria a fazer do "problema dos doentes mentais" a não ser administrar-lhes uma espécie de "solução

final", como tentou o nazismo alemão. Não basta, portanto, que os médicos proponham

esquemas administráveis. É necessário, ao mesmo tempo, que esse organograma técnico esteja em simbiose com as opções políticas, de tal sorte que o fato de aceitar a proposição técnica pareça como um meio de realizar a opção política. Historicamente, o problema foi colocado praticamente assim. Já antes de 1820 os alienistas elaboraram um dispositivo técnico capaz de resolver certos problemas agudos de controle das populações marginais. De que forma e por que essa possibilidade técnica se torna, a um dado momento, uma decisão política?

"De que maneira, pergunta Esquirol, restituir a esses desafortunados, a parte de cuidados que lhe é devida pela caridade pública? Como satisfazer as reclamações das administrações locais que se queixam do estado de abandono em que gemem os alienados e que solicitam os meios de melhorar seu destino? Como responder às pretensões do governo?"

24.

23 O que não significa, de forma alguma, que os alienistas tenham sido politicamente de "direita", como o são os psiquiatras atuais que perpetuam sua tradição (e que são, atualmente, os únicos a terem boa consciência). Uma psiquiatria atuante é expressão de uma vontade reformadora. Ela é, portanto, pelo menos inicialmente, mais ou menos "progressista". Essa posição global da profissão na divisão social do trabalho pode mudar em função da modificação da conjuntura histórica. Ela pode, também, estar associada a uma gama bem ampla de atitudes "políticas" pessoais. Trata-se, no final das contas, dá "contradição" de Ulysses Trélat, apresentada no prefácio. 24 Esquirol "Des établissements consacrés aux alienes en France", Des maladies mentales, op. cit., II, p. 413.

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Nós nos perguntamos sobretudo: por que essas "pretensões do governo" irão se realizar numa síntese médica? De Gasperin, ministro do interior, como se respondesse à questão de Esquirol nessa curiosa permuta: "Vários motivos diferentes podem comandar, como já se observou, que a pessoa portadora de alienação mental seja colocada num estabelecimento destinado a esse serviço: o interesse da segurança pública, comprometida pelo perigo de violências, incêndios, etc; o interesse da segurança de terceiros, dos parentes, das pessoas próximas, cuja vida pode estar ameaçada por causa da monomania; o interesse da própria existência do doente, ameaçado pelas tentativas de suicídio, às quais um terço dos alienados está sujeito; o interesse dos costumes públicos que podem ser ofendidos pelo espetáculo de alienados, de idiotas, vagando nos lugares públicos; enfim, o interesse tão sagrado do tratamento do próprio alienado cujo sucesso, para trazer a cura, exige as precauções em questão; o princípio do isolamento foi proclamado pela ciência como base de todos os tratamentos dos alienados"

25.

Já vimos de que maneira esses diferentes "interesses", tão divergentes, podem ser unificados pelo alienismo na base da aceitação de seu mandato social, analisado anteriormente; resta precisar o tipo de poder político que encontra seu próprio interesse em confiar-lhes um tal mandato.

Podemos distinguir quatro ou cinco sequências na temporalidade política que separa a Revolução da votação da lei de 1838. Durante o primeiro período, as práticas alienistas se instauram em meio às reviravoltas políticas sob o impulso desses reformadores sociais do tipo de Cabanis, espíritos esclarecidos, ou seja, em luta contra o absolutismo real, mas que, uma vez este último derrotado, tornam-se defensores convictos da nova ordem burguesa. Vimos que Pinel fora entronizado por esse grupo. Contudo, num primeiro momento, o reconhecimento dos méritos dá ''medicina especial" permanece limitado a círculos relativamente estreitos. Segundo período, tentativa napoleônica de generalização e de centralização do sistema. Ela aborta sem que se possa decidir com certeza se o fracasso se deveu sobretudo à queda prematura do regime ou à fragilidade das posições ocupadas pelos alienistas nesse momento. Mas é provável que, se a administração napoleônica tivesse tido tempo de instaurar seu sistema de estabelecimentos regionais para os alienados, ele teria sido, pelo menos num primeiro momento, pouco medicalizado. Terceiro episódio: mal amortecidas as convulsões da Restauração, nova tentativa de constituir um serviço de assistência para os alienados, no qual, sob a liderança de Esquirol, os médicos desempenham os papéis principais. Essa tentativa parece prestes a se concretizar; em seguida tem-se um longo eclipse de quinze anos. Quarto episódio: o processo se recoloca em andamento a partir de 1833, ou seja, logo que os riscos de derrapagem da monarquia de Julho para uma república social foram obstados.

Sem pretender fazer a história política dessa época, podemos retirar dessas peripécias algumas indicações sobre as cumplicidades profundas entre a psiquiatria e uma certa política. Em suma, o ensinamento pode valer para além desse período 25 Législation sur les alienes et les enfants assistes, op. cit., II, p. 9.

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acabado. Uma situação do mesmo tipo se reproduziu pelo menos uma vez, por volta de 1960, no momento dessa outra grande reviravolta do desenvolvimento da psiquiatria que representa a adoção da "política de setorização". Se ainda hoje certos psiquiatras se sentem maravilhados em encontrarem algum Lafont de Ladebat nos gabinetes ministeriais, talvez valha a pena se interrogar sobre o que essa "chance" esconde.

Guizot pode ser tomado como uma personagem-paradigma. Ele é nomeado, em janeiro de 1819, diretor geral da Administração Departamental e Comunal, num gabinete que tenta uma liberalização da Restauração através da estrita aplicação da Carta, a despeito da oposição encarniçada dos extremistas. A função de Guizot é aparentemente técnica mas ele empreende imediatamente uma ambiciosa reforma da administração e da assistência. Para só falarmos desse último domínio, não há um só setor em que ele não tivesse intervido, em um ano, por meio de numerosas circulares. Não somente os alienados, como vimos, mas as prisões (três circulares), a reforma da penalidade (uma circular), os menores abandonados (duas circulares), a situação dos hospícios e dos serviços de caridade (quatro circulares). Nesse mesmo ano de 1819, Guizot é um dos membros fundadores da Sociedade Real para a Melhoria das Prisões e suas preocupações higienistas o conduzem a presidir o Comitê Central de Vacinação

26.

Simples lembrete: Guizot, durante a Restauração, é um dos representantes mais dinâmicos da orientação política que construiu a França burguesa. Dos espíritos esclarecidos do fim do Antigo Regime aos arautos atuais das "reformas", passando pelos políticos radicais da Terceira República, percorre uma linha sinuosa que, antes de triunfar, passou por altos e baixos e se recobriu de múltiplos rótulos, mas permaneceu firme sobre um certo número de princípios. Na primeira metade do século XIX, o combate se dá em duas frentes. Por um lado, trata-se de preservar as conquistas sociais, legislativas e civis da Revolução, de obstar todas as tentativas de restauração do Antigo Regime e, por outro lado, garantir essas conquistas através de um quadro constitucional que coloque fora do jogo político os interesses dos não-proprietários. Defesa da Carta como garantia; ao mesmo tempo, contra as hostalgias dos extremistas e o aumento das reivindicações sociais, liberalização, controlada da imprensa e da administração, representatividade estritamente calculada com base censitária a fim de excluir, de qualquer participação política, aqueles cujas posses não garantam apego à estabilidade social, tais são, durante a Restauração, algumas das principais opções desse programa, cujo mais ativo porta-voz era o grupo dos "doutrinários", animado por Guizot.

O fato de que essa política geral encontra uma estrita tradução no domínio da assistência foi sublinhado com menos frequência pelos historiadores. Seus resultados não se traduziram em acontecimentos espetaculares, mas ela teve efeitos a longo termo que se expressam até hoje na política do "trabalho social". Trata-se dessa orientação cuja filosofia foi apresentada sob a bandeira da "filantropia", isto é, de uma vasta política de sujeição em relação às classes pobres, infelizes e perigosas (cf. cap. III). Para lembrá-la em duas frases: no mínimo, manter fora da água, a cabeça dos "feridos da civilização" para que eles não recorram a soluções, extremas; na melhor das hipóteses, tecer em 26 Cf. Ch. Pauthas, Guizot pendemt la Restauration. Paris, 1949.

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volta deles uma firme rede de vigilância para incitá-los energicamente a lutar contra a desgraça através de um acúmulo de moral e de disciplina. Portanto, abafar, sem recorrer à violência direta, os possíveis focos de revolta e mesmo, se possível, estancá-los na fonte, intervindo preventivamente pela aprendizagem das disciplinas.

Se a filantropia é uma política, não é surpreendente que políticos tenham tentado realizar seu programa. A carreira de Guizot, pelo menos no seu começo, é um dos melhores exemplos dessa interpretação. Sua luta contra a irresponsabilidade dos extremistas no nível da política geral ― isto é, a luta contra o risco, bloqueando os mecanismos da nova sociedade, de levar seja a um retorno aos arcaísmos do Antigo Regime, seja a uma revolução social ― é acrescida por um esforço de reforma das prisões, dos asilos, dos hospícios e dos hospitais e por um interesse pela educação das classes pobres.

Mas a política de Guizot e da corrente que ele representa ainda é frágil no início da Restauração. Ele parece estar consciente disso e dobra a dose no seu posto de diretor-geral da Administração Departamental e Comunal, lançando pelo menos uma medida de assistência por mês. Mas ele só mantém essa posição estratégica durante um ano. Em 20 de fevereiro de 1820 o duque de Berry é assassinado. Decazes (que havia começado, anteriormente, a tomar distância com relação aos "constitucionais") cai e Guizot se demite logo após. O segundo gabinete Richelieu e sobretudo o gabinete Villèle que o sucede, desencadeiam uma repressão contra os meios liberais. A corrente filantrópica e o movimento alienista são atingidos simultaneamente, o que é sinal, ao mesmo tempo, de sua solidariedade e da maneira como sua ação era percebida politicamente. O duque de La Rochefoucault-Liancourt, "patrono comum de todas as filantropias da terra", como diz um relatório de polícia

27, deve renunciar ou se demitir de

vários de seus cargos28

. A comissão sobre os alienados nomeada por Decazes por iniciativa de Guizot perde seus poderes e seus trabalhos não vem a termo. A Faculdade de Medicina é fechada em 1822, depois de uma revolta de estudantes. Quando é reaberta, a cadeira de patologia mental que Royer-Collard ocupava é suprimida e o próprio Pinel, apesar de seu prestígio, é demitido. Esquirol, menos marcado politicamente, põe em surdina suas ambições reformadoras, deixa a Salpêtrière em troca de Charenton e frequenta a Sociedade de Moral Cristã.

Essa Sociedade de Moral Cristã é um elo essencial para seguir, nos bastidores políticos, o caminho das idéias filantrópicas e o amadurecimento de uma política da assistência. Fundada em 1821 no momento do refluxo da influência liberal e presidida (ainda) pelo duque de La Rochefoucault-Liancourt, posteriormente por Guizot em 1828, ela agrupa os principais membros liberais da oposição que compartilham das mesmas aspirações "sociais" (mas não socialistas). A representação protestante é importante, com o presidente do Consistório de Paris, Guizot e vários de seus amigos, dentre eles o pai de Lafont de Ladebat; quinze pastores e somente dois padres. A Igreja Católica, em geral, está do lado dos extremistas, da caridade privada, e apóia a política de assistência

27 Citado por Ch. Pauthas, Guizot pendant la Restauration, op. cit., p. 48. 28 Cf. Ch. Dupin, Eloge du duc de La Rochefoucault-Liancourt, Institut royal de France, 1827.

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das Congregações do tipo do Antigo Regime, que recobram, nesse momento, o essencial do terreno perdido. Os católicos da Sociedade de Moral Cristã são, pelo contrário, esses filantropos defensores da "beneficência pública", como De Gerando, jornalistas e políticos liberais, alguns banqueiros esclarecidos. E, dentre esses políticos destacam-se inúmeros nomes que desempenharão um papel importante na Monarquia de Julho e outros, ou os mesmos, que terão uma parte ativa na elaboração da lei de 1838, como De Gasperin, ministro do interior que a propõe, Vivien, seu relator na Câmara dos Deputados, Dufaure, inspirador do artigo primeiro que comanda seu espírito.

Essa sociedade ecumênica avant la lettre precisa, nos seus estatutos, que "se evitará escrupulosamente manter qualquer discussão sobre os pontos que dividem os diferentes ramos da família cristã": ela tem mais o que fazer. Seu objeto próprio é "aplicação dos preceitos do cristianismo às relações sociais". Em outros termos, é preciso substituir os impulsos privados da caridade pelos preceitos racionais de uma sã filantropia ou, se se prefere uma linguagem mais moderna, desenvolver um programa completo de ação social, de vigilância e de educação controlada com relação às classes pobres e perigosas, em vez de se contentar em dar-lhes esmola em situações extremas. "Podemos acrescentar, Senhores, que a filantropia, ou seja, o método filosófico de amar e servir à humanidade, é mais vosso estandarte do' que a caridade que é dever cristão de amar e de socorrer o próximo. (...) A caridade se satisfaz quando alivia o infortúnio; a filantropia só pode, satisfazer-se quando o previne. (...) As melhorias, sua obra (do filantropo) longe de cessar com ele, transformam-se cedo ou tarde em instituições

29.

De fato, a maior parte das futuras instituições de assistência, ou a reforma das antigas, amadureceram nesse círculo que compreendia, entre outros, um comitê para melhoria moral dos prisioneiros, um comitê para a colocação dos órfãos, um comitê de caridade e de beneficência para as questões relacionadas aos alienados, aos doentes, aos indigentes e à higiene pública. Os trabalhos desses comitês se desenrolam em estreita osmose com os do Consistório Protestante, que também promove, na época, uma sociedade para o incentivo da instrução primária, que irá inspirar a lei de Guizot de 1833, e uma sociedade de previdência e socorro mútuo

30. As relações entre essa

filantropia militante e a política são tão estreitas, que Guizot recrutará, na Sociedade de Moral Cristã, a maior parte dos quadros da sociedade "Ajuda-te a ti mesmo, o céu te ajudará", que irá galvanizar a oposição para a preparação das eleições de 1828, e cuja ação se prolongará como foco de agitação liberal constitucional. Daí, a origem da carreira de um certo número de políticos da Monarquia de Julho.

Existe uma coincidência entre a passagem para a oposição dessa orientação política e o acontecimento-indicador que cristaliza a tentativa de retorno maciço da corrente conservadora, o assassinato do duque de Berry em 1820. Porém, ainda mais significativo é a estrita simultaneidade entre essa retirada e o abandono da política de assistência aos alienados que parecia estar a ponto de se impor. Inversamente, quando os liberais moderados voltam ao poder, tratam primeiro do mais urgente, reprimindo as

29 L. de Guizart, Rapport sur les travaux de la Société de morale chrétienne pendant l'année 1823-24, p. 22-23. 30 Ch. Pauthas, Guizot pendant la Restauration, op. cit.

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tentativas de radicalização da revolução de julho. Posteriormente eles retomam a questão dos alienados exatamente no ponto em que Guizot a havia deixado.

Contudo, a situação tinha-se deslocado duplamente. Por um lado, o movimento alienista continuara sua progressão subterrânea em três níveis, no da conquista das direções administrativas dos hospitais, no da preponderância dada aos certificados médicos para regular as admissões nos asilos, e no reconhecimento da perícia médico-legal pelos tribunais (cf. cap. IV). Mas, inversamente, tinha-se desenvolvido um sistema paralelo, apoiado na outra França, a dos notáveis conservadores e das congregações religiosas. Esse sistema prolonga a tradição das "casas de caridade" do Antigo Regime e tende a tratar diretamente com as famílias, eliminado a intervenção do poder público.

Assim, o padre Jaumet, não contente em desenvolver o Bon-Sauveur de Caen que se torna um dos asilos modelos da época, faz proselitismo nas províncias, onde é convidado, como Esquirol, a dar parecer sobre a construção de novos estabelecimentos. O irmão Hilarion, sobretudo, multiplica as criações de asilos privados. Personagem estranha, tratado quatro anos em Charenton, recolhe-se em seguida, à Trapa, em 1815, onde lê a biografia de são João de Deus e decide consagrar-se aos alienados. Funda em Piolec um primeiro asilo "agrícola e preparatório", posteriormente um segundo, em 1819, num velho castelo de Vaucluse. Em 1829, publica um Manuel de l'hospitalier et de l´infirmier que é provavelmente o primeiro no gênero

31. Apesar de afastado da ordem de

São João de Deus e em meio a várias estadias na prisão, por dívidas, ele multiplica suas atividades fundadoras, criando ou reorganizando os asilos de Clermond-Ferrand, Cellette, Leyme, Saint-Alban, Auch, Quimper...

32

A atividade do irmão Hilarion não é senão o aspecto mais evidente de um processo geral que instala toda uma rede de assistência. A sombra das transações privadas propicia facilidades para preservar "a honra das famílias" ― e seus interesses materiais. Se, nas províncias, a operação é conduzida, sobretudo, por intermédio das congregações religiosas, nas grandes cidades se assiste também à proliferação dos estabelecimentos privados, porém, frequentemente com uma direção leiga e com fins essencialmente lucrativos. Lembremos que, em Paris, o prefeito Belleyme havia baixado um decreto, em 1828, para tentar remediar os perigos resultantes da existência de mais de duzentas casas privadas, muitas das quais recebiam alienados ou assimilados praticamente sem controle oficial.

Face ao desenvolvimento mal controlado do setor privado, há convergência entre o interesse do poder central e o do movimento alienista. Este é ameaçado em sua expansão, e seu funcionamento "científico" é colocado em questão por essas práticas paralelas. Episódio do conflito entre as "luzes da ciência" e o "espírito de caridade". O setor privado, sobretudo religioso, desenvolve uma concepção anti-racionalista e mística da doença mental. As orações são mais eficazes do que os tratamentos médicos. "Obscurantismo" que é atacado pelos alienistas. Existe uma abundante literatura

31 J. Tissot (Frère Hilarion), Le manuel de l'hospitalier et de l'infirmier, Paris, 1829. 32 Cf. G. Bollote, "Les châteaux de Frère Hilarion", loc. cit.

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psiquiátrica, na época, sobre os perigos da exaltação religiosa para entreter o delírio: somente se a religião for reduzida a seu esqueleto de preceitos morais é que ela poderá ser útil, mas como simples auxiliar da medicina Ferrus

33, em sua função de inspetor

geral, chega a questionar o papel prático dos religiosos nos asilos e dá preferência ao pessoal leigo da Salpêtrière. Durante as discussões da lei de 1838, o irmão Hilarion, será acusado (sem ser mencionado) de "não estar verdadeiramente em posse de suas faculdades" porque "pensa que, através de meios sobrenaturais, de procedimentos supersticiosos, que não têm qualquer relação com os indicados pela Ciência, poderá curar a alienação mental"

34. Através da defesa dessa base "científica", os alienistas

combatem em favor de um monopólio sobre os problemas da loucura,que corre o risco de lhes escapar.

Porém, por seu lado, a administração central, por mais respeitadora que seja dos interesses privados, não pode deixar perpetuar, e mesmo se agravar, práticas do Antigo Regime, incompatíveis com uma concepção moderna do Estado. O Estado monárquico constitucional aliás, preocupou-se muito mais com a homogeneização de seus serviços e com o controle pela autoridade central do que se poderia acreditar tendo em Vista seu rótulo "liberal". Assim é que, apesar de numerosos projetos e tentativas de reforma administrativa (sustentadas, sobretudo, pelos partidários de um retorno ao Antigo Regime), na verdade nunca voltou atrás, com relação ao centralismo napoleônico. A classe burguesa, que irá se impor com a Monarquia de Julho, tem interesse, senão de romper, pelo menos de controlar a simbiose entre a família tradicional e a religião, mantida pelo poder dos notáveis mais conservadores. Sobre a questão particular dos alienados, essa preponderância da intervenção do poder público sobre as transações se desenrola na relação entre o setor público e o setor privado. Fazer da psiquiatria um verdadeiro serviço público, ou seja, dar o poder a alienistas, sob a autoridade dos prefeitos é abrir um caminho para fazer da loucura, essa explosão de subjetividade privada, uma "questão de Estado"

35.

33 Essa tendência começa com Pinel que vê, na exaltação mística, a fonte dos delírios mais rebeldes ao tratamento e recomenda que se mantenha os alienados longe das influências religiosas. Apesar de alguns de seus seguidores serem menos hostis, eles opõem condições bem estritas à intervenção da religião. "Numa casa destinada ao tratamento da loucura, a experiência o demonstra, a religião deves de certa forma, reduzir-se a uma especialidade". (H. Girard, "De l'organization et de 1'administration des établissements d'aliénés", Annales médico-psychologiques, 1843, II, p. 257). 34 Législation sur les alienes et les enfants assistes, op. cit., III, p. 133. O irmão Hilarion (Jean Tissot) intervirá no debate da lei de 1838, através de um opúsculo, Mé-moire en faveur des alienes, Lyon, 1838: "A lei proposta seria desastrosa: ela já lançou a perturbação em todos os estabelecimentos de alienados, a desolação nas famílias desses desafortunados" (p. 5), sua adoção seria "uma verdadeira calamidade pública" (p. 15). Derrotado, Tissot assumirá posições cada vez mais violentas contra o sistema oficial. Num livro de 1850, Etat déplorable des alienes, ele fala de "matanças" nos asilos e se insurge contra os "médicos alienistas" que "por cegueira, erro e cobiça, assassinam e martirizam cotidianamente" (p. 179). Ele forfíece, sem dúvida, a primeira formulação coerente para certas atitudes an-tipsiquiátricas: antiprofissionalismo, concepção mística da natureza da loucura, projeto prático de destruição do asilo: cria um "serviço de informações, de direção moral e de consulta gratuita para obter a cura dos alienados a domicílio". Propõe, igualmente, a constituição de pequenos grupos terapêuticos, constituídos por uma dezena de pessoas nas quais a diferença "agente" ― "paciente" (em francês: "soigant"-"soigné" N.T.) seja pouco acentuada. Prova de que pode haver uma antipsiquaitria "de direita". Essa orientação, na qual o antiprofissionalismo, o irracionalismo e a luta contra a intervenção do Estado, constituem programa, conservou-se até hoje. Por exemplo, nos Estados Unidos, a John Birch Sociely, provocou, há alguns anos, uma campanha antipsiquiátrica e algumas dessas tendências não são estranhas ao pensamento de Thomas Szasz. 35 Uma tal constatação não implica, aliás, nessa espécie de mito ecológico da loucura que tende a prevalecer atualmente. Sem dúvida, nunca houve uma existência feliz do louco. Tanto quanto se pode saber, ele sempre foi controlado, ridicularizado, utilizado c, portanto, de certa forma, "reprimido". O escândalo do louco seqüestrado ou explorado na família ou pelas

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O Compromisso da lei

De janeiro de 1837 a junho de 1838, a Câmara dos Deputados e a Câmara dos Pares abriram um palco no qual se defrontaram as diferentes implicações de uma política alienista: reequilíbrio nas relações entre a administração e a justiça, legitimação de uma nova instância médica de poder, episódio da luta da França rural com a França urbana, dos notáveis tradicionais com a burguesia, das redes clientelistas de relações com as relações sociais racionalizadas, da defesa da intimidade das famílias contra a intervenção do poder público... Restaram mais de 950 páginas de debates, de uma riqueza notável, descrevendo a vitória de Pirro do movimento alienista.

Esse movimento não poupou esforços: intervenções de corredor e porta-vozes nas Câmaras. Os mais célebres dos alienistas, dentre os quais Esquirol, J. P. Falret, Scipion Pinel, Ferrus, Londe, Adeodat Faivre, foram amplamente consultados pelas comissões parlamentares e seus pareceres foram, o mais das vezes, religiosamente seguidos. Esquirol, Falret e Faivre escreveram opúsculos, no calor da hora, que foram distribuídos aos deputados e serviram de referência às discussões

36. Seus representantes

nas Câmaras, em particular Dufaure e Calemard-Lafayette, intervieram frequentemente e contribuíram para transformar completamente o projeto inicial do ministério do interior, que se inspirava numa lógica puramente administrativa e pretendia dar aos prefeitos departamentais as prerrogativas mais importantes. Assim, "uma lei de polícia e de finanças" tornou-se "uma lei de beneficência e de caridade pública"

37. Contudo, o

resultado é um compromisso laboriosamente negociando em vários níveis e que irá tanto bloquear como garantir as possibilidades de desenvolvimento futuro da medicina mental.

A vitória mais clara dos alienistas, obtida graças ao apoio total da administração, foi ganha sobre o ponto aparentemente mais espinhoso: a eliminação da justiça de qualquer papel direto no processo das admissões. Aqui, a permutação medicina-administração, que analisamos anteriormente, foi empregada a fundo. Do ministro do interior: "Aqui se apresenta uma questão fundamental que encerra quase toda a substância da lei: o isolamento do alienado, tal como acaba de ser definido, deve, pode ser subordinado à interdição civil? Os homens da arte respondem unanimente: não. Essa subordinação seria, na realidade, impossível; em princípio, injusta"

38.

Apesar de oposições decididas, porém minoritárias, como as de Isambert, a racionalização médica, várias vezes reiterada nas discussões, e apoiada sem reservas pela administração, fez calar os escrúpulos legalistas

39.

conivências locais pode eqüivaler, efetivamente, ao das "internações arbitrárias". Quanto aos alienados que eram seqüestrados em casas de detenção, antes da instauração do sistema psiquiátrico, sua situação não deixa saudades. 36 Esquirol, Examen du projet de loi sur les alienes, Paris, 1837; J. P. Falret, Observations sur le projet de la loi relative aux

alienes. Paris, 1837; A. Faivre, Examen critique du projet de loi sur la séquestration des alienes, Lyon, 1837. 37 Législalion sur les alienes et les enfants assistes, op. cit., p. 11. 38 Md., II, p. 9. 39 Certos opositores situaram, com muita lucidez, a implicação do problema: "Não pretendo discutir aqui a questão médica: fazemos legislação e não medicina. (...) Legislativamente, não sabemos que sistema médico é preciso adotar, quais descobertas a

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Um certo número de artigos da lei estabelece essa divisão das competências entre o prefeito, ou seus representantes, e o médico, a fim de legalizar as modalidades da internação

40. O aparelho judiciário cessa, assim, de ser um operador ativo na

dinâmica da internação. Enquanto o processo da interdição fazia desse aparelho a única instância legal, agora ele só pode intervir posteriormente, a fim de controlar, de fora, a regularidade do processo. Desse modo, prevê-se que o procurador visite regularmente os estabelecimentos de alienados (art. 4), e é teoricamente possível, para um terceiro, para o procurador ou para o próprio alienado, fazer apelo ao tribunal no caso de presunção de práticas ilegais (art. 29). Na aplicação prática, essas garantias formais se revelarão amplamente ilusórias. Um magistrado chegou a escrever: "Não chega a um décimo o número dos Departamentos em que algumas das pessoas enumeradas na lei se sintam obrigadas a visitar o asilo uma ou duas vezes por ano"

41. Daí uma imensa

literatura polêmica sobre a questão das internações arbitrárias.

Mas talvez exista um contra-senso na palavra arbitrária. Diante das ativas campanhas lançadas contra eles, a partir de 1860, os alienistas puderam desafiar seus adversários a apresentarem exemplos convincentes de internações arbitrárias. E se, com isso, entende-se sequestrar cinicamente uma pessoa que se sabe não estar doente, houve, sem dúvida, pouco, pelo menos no serviço público. Mas é a própria relação entre o arbitrário e a legalidade que ficou deslocada. A colaboração regulada entre a medicina e a administração garante, doravante, a legitimidade do processo, salvo "excessos" tais como a precipitação, a falta de perspicácia diante das pressões familiares, os erros de diagnóstico, etc. Razão a mais para reforçar a autoridade da intervenção médica, a fim de fazer dela um ato humano e cientificamente irrepreensível: "Aqui se revela a importância das funções do médico, chamado a se pronunciar sobre se um indivíduo deve ser colocado fora do direito comum"

42. "Seu certificado é a melhor garantia da

regularidade do procedimento administrativo"43

; ele representa um verdadeiro "ato médico-legal"

44. Efetivamente, ele pode modificar globalmente o status social de um

indivíduo45

.

ciência poderá fazer. Solicito, portanto, que se deixe o governo livre para fixar as condições próprias para assegurar a boa ordem e para conciliá-la com a liberdade individual" (Md., II, p. 504). 40 A partir da dupla modalidade da "internação compulsória" (por iniciativa da administração) e da "internação voluntária" (por iniciativa da família ou de pessoas próximas, apoiada em certificado médico), à qual voltaremos no próximo capítulo. 41 M. Dayrac, Reformes à introduire dans la loi de 1838, Paris, 1883, p. 250. 42 Esquirol, "Mémoire sur 1'isolement des alienes" in Des maladies mentales, op. cit., IJ, p. 745. 43 J. P. Falret, Observation sur le projet de loi relatif aux alienes, op. cit., p. 29. 44 E. Ranaudin, Commentaires médico-administratifs, op. cit., p. 65. 45 Objetar-se-á, talvez, que, segundo a lei de 1838, não é o médico do serviço que atende o alienado quem faz o certificado de internação. Porém, vejamos mais em detalhe. No caso da internação dita voluntária, ou seja, solicitada pela família, o certificado do médico exterior, raramente psiquiatra, é legitimado ou não pelo certificado "de vinte e quatro horas" e, em seguida, de "quinzena" do alienista. Para a internação compulsória, é verdade que só a autoridade administrativa intervém para deter um indivíduo julgado "perigoso para si mesmo ou para ou-trem". Mas a triagem entre alienados e não alienados sempre se faz num determinado momento, a partir de critérios médicos (em Paris, pela Enfermaria especial do depósito, em outros lugares, pelo certificado de vinte e quatro horas ou de quinzena). Aliás, a lei prevê que as ordens do prefeito devam ser circunstanciadas (art. 18) e que, se o médico julga uma pessoa internada legalmente como não doente ou curada, o prefeito deve deliberar novamente sem tardar (art. 20). Porém, o mais significativo se deve ao seguinte: a complexidade desses processos deveria ter provocado inúmeros conflitos entre médicos e representantes do poder administrativo. Ora, até recentemente, pelo menos, tais conflitos foram exceção. Prova de que a autoridade administrativa pôde confiar nos seus "médicos especiais" e que estes, realizaram bem seu mandato social de guardiães da ordem pública.

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Dufaure, que foi um dos porta-vozes do movimento alienista nas discussões na Câmara dos Deputados, sintetiza as implicações, sobre o plano jurídico, dessa santificação do novo saber, da maneira seguinte: "Na época em que o Código Civil foi feito, não se considerava, não digo o isolamento, mas o aprisionamento dos alienados a não ser como última medida, à qual só se podia chegar após a interdição

46. Desde então,

homens hábeis devotaram-se a cuidar desses alienados com uma admirável filantropia e o estudo das alienações mentais lhe deu a convicção sobre as desordens que o procedimento de interdição poderia produzir nesses doentes. Reconheceram, por outro lado que, em quase todos os casos, o isolamento produzia excelentes resultados: isolar, não interditar: duas idéias novas que a lei vem encorajar e que permitem, na minha opinião, modificar o Código Civil"

47.

A aliança administração-medicina, sem fissura, cede o lugar a um compromisso mais capenga sobre a natureza do "estabelecimento especial". Se a sequestração dos alienados se opera supostamente por razões médicas, deveria realizar-se num meio inteiramente medicalizado. Renaudin, cujo senso jurídico está sempre presente, diz isso claramente: "A sequestração só é legal num asilo"

48. Os alienistas foram, assim,

logicamente levados a tentar fazer prolongar o reconhecimento de seu mandato de peritos certificadores, através da constituição de um serviço completo de estabelecimentos públicos. Com efeito, o asilo não é uma instituição como qualquer outra, nem mesmo um simples "meio terapêutico". Ele não se contenta em hospedar nem mesmo em cuidar de seus internos. Como estes realizam aí uma obrigação legal, sua presença no espaço de enclausuramento define para eles, um pouco como a prisão para os detentos, uma espécie de estatuto legal (ausência de liberdade e de exercício da maior parte dos direitos civis, dependência absoluta com relação à autoridade institucional, etc). Uma tal instituição deveria, portanto, ser regida por regras estritas, e controladas por autoridades munidas de um mandato oficial. O que, parece, só poder se realizar em estabelecimentos ao mesmo tempo especiais e públicos.

Quanto ao caráter especial dos estabelecimentos, os alienistas ganharam. Apesar de manifestações em prol dos estabelecimentos mistos (ou seja, a mistura dos alienados com os doentes comuns) feitas, ao mesmo tempo, em nome do interesse das clínicas privadas, que em sua maioria não recebiam só alienados, e no das famílias, que podem melhor assimilar o caráter infamante da alienação mental quando ela se encontra misturada com outros doentes, as virtudes do isolamento foram, aqui também, reconhecidas. Pois o isolamento não é somente a obrigação de ruptura do alienado com sua família e seu meio social é, igualmente, sua separação absoluta dos outros doentes e das outras pessoas assistidas. A alienação mental não é uma doença como qualquer

46 O que, aliás, é falso: vimos que raramente a interdição era promulgada e que, quando era, ocorria quase sempre após a sequestração. Mas Dufaure afirma nesse caso o direito estrito antes da lei de 1838: todas as sequestrações sem interdição eram, de direito, ilegais, mesmo seja estivessem cobertas por uma espécie de legalidade médica de fato, que se torna agora legal de direito. Exemplo da passagem de um "fato normativo", como diria Gurvitch, para sua sanção legal. 47 Législation sur les alienes et les enfants assistes, op. cit., II, p. 287. 48 E. Renaudin, Commentaires médico-administratifs, op. cit., p. 71.

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outra, trata-se de uma condição antropológica, que exige tratamento em condições institucionais inteiramente específicas: "A comissão do ano passado foi unânime sobre esse ponto; após ter ouvido, durante seis semanas, os homens mais conhecidos e mais instruídos nessa espécie de doença, não restou nenhuma dúvida sobre a necessidade absoluta de um local separado para essa espécie de doença"

49. Pelo menos haverá,

portanto, em todo estabelecimento que trata dos alienados, um pavilhão rigorosamente separado no qual a "arte especial" dos alienistas poderá se desenvolver sem interferência estranha.

Os alienistas quiseram ir mais longe. Se o "médico especial" é, efetivamente, um homem "cuja posição e ciência lhe conferem atribuições legais que fazem dele um agente direto e essencial da autoridade"

50, ele deveria exercê-la numa instituição pública

onde estariam reunidas todas as condições e todas as garantias para a plena realização de um tal mandato. O ante-projeto governamental não havia dado uma importância particular a esse problema do estatuto dos estabelecimentos aos quais se contentava em colocar sob o controle dos prefeitos. Foi sob a forma de uma emenda proposta por Dufaure, desde o início dos debates, que surgiu o que viria a se tornar o principal cavalo de batalha das discussões: a constituição de uma rede completa de estabelecimentos públicos, emanação direta do poder central, dirigida por um verdadeiro corpo de médicos-funcionários sob a autoridade dos prefeitos departamentais. Calemard-Lafayette, um médico próximo dos alienistas, dá um caráter radical à proposta: "Se o sistema, apresentado pela primeira vez pelo Sr. Esquirol, em 1819, ainda é preconizado em 1834, pelo hábil Sr. Ferrus, é porque somente ele pode conduzir a resultados fecundos. A França se divide em vinte e seis divisões judiciárias, vinte e uma divisões militares, treze divisões eclesiásticas, vinte distritos florestais. Tendes as casas de correição, pois bem, seguindo o mesmo princípio, criai estabelecimentos públicos de alienados. Quanto ao seu número, sua situação, é suficiente indicar que será necessário levar em consideração a população de maneira a que cada estabelecimento possa se encarregar de quatrocentos a quinhentos doentes. Para isso, é preciso dividir a França em seções compostas de quatro a seis Departamentos, num dos quais, seria organizado o estabelecimento especial"

51.

Mas isso equivale a não levar em conta, nem a existência de uma forte oposição nas Câmaras, que associa a preocupação de economizar, ao respeito das situações adquiridas em nome dos direitos sagrados da propriedade privada e do comércio, nem a vontade de bloquear um imperialismo médico que ponha em questão os direitos tradicionais das famílias.

Inicialmente, o argumento financeiro, atrás do qual já se anuncia o contexto político conservador dessa posição: "Os estabelecimentos fundados pela administração custam dez vezes mais caro do que os estabelecimentos fundados pelos particulares: e, sobretudo, quando se trata de alienados, existem estabelecimentos religiosos que são

49 Législation sur les alienes, op. cit., 11, p. 518. 50 G. Delasiauve, "La responsabilité des médecins aliénistes", Journal de médecine mentale, 1868, VIII, p. 69. 51 Législation sur les alienes et les enfants assistes, op. cit., p. 149.

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regidos de forma admirável e que se contentam com uma pensão módica, ao passo que os estabelecimentos regidos pela administração entretêm um estado-maior que seria extremamente oneroso para todo o departamento"

52. O marquês de Montalembert,

após ter aparteado vivamente Ferrus que colocara em questão a competência dos religiosos, precisa o que está por trás da controvérsia: "O argumento mais urgente que me leva a combater o papel da autoridade central nesses tipos de questões" é que "elas parecem ser da competência da autoridade local, que reconhece melhor as vantagens apresentadas pelos estabelecimentos religiosos"

53. O que quer dizer isso exatamente?

Que as autoridades locais e os estabelecimentos religiosos podem promover uma outra política com relação à loucura, que leve mais em consideração os interesses das famílias. A loucura é algo privado (e vergonhoso) que se tem interesse em escamotear na medida do possível, fazendo funcionar redes informais de conivências. A maioria conservadora das Assembléias (e a oposição mais forte está na Câmara dos pares), opõe aos alienistas que defendiam um sistema público de socorros, o princípio de uma escolha livre: manter ao máximo o alienado na família, poder, no mínimo, negociar o tipo de estabelecimento no qual ele será colocado, isso, pelo menos, se não tiver feito escândalo na via pública: "Parece-me que, no sistema do Sr. Thénard (que retoma as proposições dos alienistas) a lei se substitui inteiramente às famílias. Concebo muito bem a ação da lei quando ela se aplica aos indivíduos que o governo detém na via pública por causa de alienação mental, aos que ameaçam a tranquilidade pública; ele os interna para o seu próprio interesse nos estabelecimentos de alienados; nada mais natural. Mas uma família, que tem a infelicidade de ser atingida de alienação mental em um de seus membros, tal família, certamente, é livre para manter essa pessoa, se possuir os meios para tanto. (...) De que maneira poderíeis assumir o interesse das famílias melhor do que elas próprias? (...) Acredito que certos médicos, que só vêm o interesse de sua arte, e que gostariam de tratar tudo em grandes dimensões, gostariam muito de ter um grande número de doentes reunidos num mesmo local. Mas creio ao contrário que, no interesse dos doentes é mais útil ter um maior número de estabelecimentos que contenham um pequeno número de doentes (...) Mas, independente dessas teorias, digo que é impossível que a lei chegue ao ponto de retirar das famílias uma liberdade tão inocente, e por que agir-se com um espírito de monopólio e de aglomeração que, certamente, não tem nenhum interesse, nem para a saúde dos doentes nem para o bem do Estado. (...) Solicito, que se deixe às famílias toda latitude, toda liberdade a esse respeito"

54.

A rigor, que se institua um sistema público para os indigentes, já que, como diz um outro deputado, "eles são os únicos que, por sua posição, podem comprometer realmente a tranquilidade pública". Mas "a lei não vai muito longe quando aplica várias de suas medidas aos alienados que não são pobres?" "Quanto aos alienados que não são pobres, (...) eles são cuidados em suas casas, onde seus parentes os mantêm reclusos ou, então, são depositados, sequestrados em casas especiais de saúde. (...) Mas essa sequestração ocorre unicamente sob a responsabilidade de seus parentes, do chefe do

52 Ibid., II, p. 103. 53 Ibid., II, p. 136. 54 Ibid., II, p. 498-499.

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estabelecimento, do médico que os trata. E quanto a essa responsabilidade, seria prudente chamar a administração a assumi-la em parte sem necessidade?"

55.

A controvérsia foi muito ativa porque tocou num núcleo de sensibilidade política: a defesa da intimidade das famílias (das famílias, bem entendido, "que não são pobres") contra o risco de ter um dos seus membros arrancados, em nome da lei ― e, afinal das contas, a possibilidade de submeter essa célula privada às regulações administrativas. Ela terminou por um compromisso duplo. Entre a vontade intervencionista dos alienistas e a preocupação, dos mais in-intransigentes defensores das famílias, de manter o status quo, o estatuto ambíguo da "internação voluntária", na sua. diferença com relação à internação compulsória, possibilita uma abertura para o encargo médico dos problemas familiares (cf. cap. VI). Entre os partidários de um serviço público homogêneo e os defensores do pluralismo absoluto, prevêem-se garantias e controles a fim de associar os estabelecimentos privados ao sistema geral. A emenda Dufaure, que previa o estabelecimento de um asilo por Departamento transformou-se no primeiro artigo da lei. Mas ela própria sofreu uma emenda, num sentido que esvaziou a metade de seu conteúdo: os Departamentos que não possuem asilos não são obrigados a construí-los. Eles podem estabelecer entendimentos com os estabelecimentos públicos ou privados de outros Departamentos ou com estabelecimentos privados do mesmo Departamento. Estes últimos, se forem habilitados e controlados pela administração podem assumir todas as funções dos asilos públicos. Medida cujas consequências foram decisivas para a aplicação (ou a não aplicação) concreta da lei. Esta não foi marco de qualquer impulso decisivo para a construção de asilos públicos. Em compensação, o essencial do sistema privado sofreu uma renovação. Não se trata da pura e simples manutenção do status quo. Mas sim, do fracasso da ambição alienista de promover uma organização homogênea, exercendo um monopólio absoluto do tratamento dos alienados.

Se a administração abandonou parcialmente os alienistas nessa questão da natureza dos estabelecimentos é porque, a seus olhos, o sentido principal da lei não consistia nisso. Em compensação, após ter resolvido, a seu favor, o conflito com a justiça sobre o problema das admissões, ela completou, com a inscrição na lei de um novo estatuto civil do alienado, o empreendimento de tutelarização do louco que tentava se definir desde o período revolucionário.

No plano penal, o alienado já é completamente irresponsável (art. 64). De fato, o alienado criminoso é colocado fora do direito comum: se ele não é julgado, não pode ser sancionado mas, ao mesmo tempo, a duração de sua sequestração no asilo é indeterminada. Também aqui, ele é integralmente definido por sua situação médico-institucional. Sua eventual saída, que seria o equivalente do fim da penalidade, depende da avaliação médica que deve ser ratificada pela autoridade Departamental, já que se encontra em internação compulsória.

55 Ibid., III, p. 192-193.

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No plano civil, a interdição regulava o status do insano assimilando-o ao menor, quanto à sua pessoa e aos seus bens. Mas, na medida em que a interdição intervinha raramente, a maioria dos alienados, de fato, não possuía nenhum status. Pela lei de 1838, recebem um status legal, estritamente definido pela própria internação. A internação num asilo implica num modo original de incapacidade civil, a "administração provisória". O interno, não podendo gerir seus bens, é dotado de um "administrador provisório" (em geral, um dos membros da comissão administrativa do asilo) que pode proceder a atos conservatórios dos bens, tais como recobrar e pagar dívidas, etc. (art. 31). O termo "provisório" assinala a possibilidade de retomar a autonomia civil, no caso de cura, e sem formalidade: ainda nesse caso, é a situação médico-administrativa que define o status. O tribunal pode, além disso, nomear um "tutor da pessoa" de um indivíduo não interditado internado num estabelecimento de alienados, a fim de zelar para que seus bens sejam utilizados no melhorados seus interesses (art. 38). Enfim, a interdição permanece como possibilidade no caso de incurabilidade, mas não é obrigatória.

Os juristas assimilam essas medidas a uma "incapacidade especial"56

. Segundo Demolombe, "a lei de 30 de junho de 1838, introduziu, em nosso Código Civil., uma modificação do estado das pessoas, uma nova incapacidade, ou melhor, uma incapacidade parcial"

57. O relator da lei na Câmara dos Pares estimava que "essa

administração será análoga à tutela que é.conferida a essas mesmas comissões pela lei de 15 pluvioso, ano III, relativa aos menores abandonados"

58. A analogia pedagógica

entre o alienado e a criança, que também rege toda a organização da vida asilar encontra, dessa forma, sua transcrição jurídica.

Enfim, a lei prevê o financiamento dessas medidas de assistência. Os alienados indigentes são obrigatoriamente tomados a cargo pelas finanças departamentais e comunais (art. 28). Pela primeira vez se encontra, assim, reconhecido um direito a tratamento. Mas, paradoxalmente, ele é a contrapartida da ausência de qualquer direito. É na medida em que o alienado é totalmente desprovido humana, civil e financeiramente, que a beneficência pública, necessariamente, se encarrega dele, caso limite de uma obrigação sem nenhuma reciprocidade por parte daquele que é assistido.

Em suma, somente a partir de 1838 é que foi realizado o amálgama: medida de internação+regime interno determinado+incapacidade gestão dos bens+direito a tratamentos, no quadro de uma assistência especial

59. Mas não se trata de uma simples

adição de elementos diversos. Ou melhor, esses elementos heterogêneos estão in-dissocialmente articulados a partir da noção de internação que constitui sua matriz. O fato da internação confere, por si só, esse status completo. Basta que o doente ultrapasse o umbral do asilo para ser um alienado: inteiramente definido por uma dependência indissociavelmente médica, institucional e legal.

56 Cf. G. Delagrange, De la condition des alienes en droit romain et en droit français, Paris, 1876. 57 C. Demolombe, Traité de la minorité, Paris, 1888, II, p. 549. 58 Législation sur les alienes et les enfants assistes, op. cit., II, p. 127. 59 L. Bonnafé, G. Daumezon, "L'internement, conduite primitive de la Societè devant le malade mental", Documents de

l'informations psyquiatrique, 1,1946, p. 83.

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A lógica da tutelarização chega aqui a seu termo. Numa sociedade fundada no contrato, o alienado é aquele que escapa a qualquer tipo de relação contratual. Mas ele deixa, ao mesmo tempo, de ser mácula, já que essa ausência de direitos constitui seu status, Ele é submetido a uma tutelarização unilateral em todos os níveis da relação médica, institucional, jurídica e pública da assistência. O conceito de alienação é a expressão sintética dessa combinatória de dependência. A noção de alienação, ou seja, o produto, a conquista da medicalização do louco. "Medicalizar a loucura" consistiu exatamente na instituição desse status completo de tutela. O relator diante da câmara dos Pares, o marquês de Barthélemy, sintetiza todo esse movimento do seguinte modo: "Senhores, dentre todas as doenças que podem atingir a humanidade, a mais aflitiva sem dúvida, é aquela que priva o homem do uso de suas faculdades intelectuais. Nascido para a sociedade, a perda da razão torna-o incapaz de realizar a missão que seu destino lhe impunha; ele deixa de ser útil para seus semelhantes e pode tornar-se para eles um motivo de pavor. Nessa triste situação, frequentemente sem condições de distinguir o bem do mal, o justo do injusto, as leis não poderiam ser a regra de sua conduta. Mas, apesar de não poder seguir suas prescrições e ser submetido às suas penalidades, elas não devem por isso cessar de exercer sobre ele seu domínio, uma legislação especial deve vir atingí-lo e proteger, ao mesmo tempo, a sociedade, sua pessoa e seus bens"

60.

Essa "legislação especial", que tomou a forma de um juridismo meticuloso, representa, não obstante, o primeiro embaraço para o legalismo. Ela constitui um desvio no princípio da separação dos poderes. Não existe mais, de um lado, a administração, correia de transmissão do poder executivo e guardiã da ordem pública e, de outro, a magistratura, garantia das liberdades, porque possui o monopólio das decisões que podem suspendê-la. Um terceiro poder, médico, legitima-se e assegura o novo equilíbrio entre os outros dois. O caráter sagrado dos princípios do direito cedeu diante dessa racionalidade prática que a perícia representa.

O caráter transgressivo desse modo de intervenção com relação aos princípios do direito não passou desapercebido: "É preciso reconhecê-lo: a lei inova profundamente quanto à situação das pessoas; ela introduz, com relação aos indivíduos atingidos ou ameaçados de alienação mental, um modo de proceder que não existe em nenhuma de nossas leis". E o conde de Portalis insiste, logo, na necessidade de limitar estritamente o alcance de uma tal derrogação: "Admitimos esse sistema, mas só o admitimos com a condição de que ele seja acompanhado de precauções, que são necessárias, quer para que não se afaste do sistema geral de nossas leis civis, quer para que não cause danos às garantias indispensáveis à liberdade individual"

61.

Essas "precauções" (o papel de vigilância do poder judiciário sobre a regularidade do processo das internações) foram, sem dúvida, pouco eficazes em sua aplicação. Mas são, sobretudo, inadequadas em seu princípio. A lei de 1838 não coloca mais, essencialmente, um problema de garantias jurídicas, pois o que coloca é o problema da transformação do regime e da função da própria garantia jurídica.

60 Ibid., II, p. 315. 61 Ibid.. III, p. 102.

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Num certo sentido, a representação de uma sociedade puramente contratual é, efetivamente, um mito: sob as transações legais e os intercâmbios regulados, as sujeições involuntárias, as normas implícitas, as disciplinas inculcadas formam a trama das relações sociais reais. Mas o problema ― ou melhor, um dos problemas principais ― da sociedade burguesa foi o de reinscrever os blocos tradicionais de dependência, e desenvolver os novos modos de dominação, numa matriz jurídico-administrativa que garantisse, ao mesmo tempo, sua justificação legal, sua gestão racional e seu controle eficaz.

A lei de 1838 representa, sem dúvida, a primeira vitória clara e completa desse empreendimento de transmutação de um sistema de relações de poder dados em um sistema de regras legitimadas e desejadas. Nesse sentido, ela pode servir de modelo para a análise desses novos processos de tutelarização que, diferentes das antigas dominações, fundadas nas tradições e nas situações costumeiras (esse "mundo encantado das relações feudais" de que fala Marx, e que, evidentemente, subsiste ainda parcialmente), encontram sua justificação no saber e, sua eficácia, na racionalidade técnica. Não que os desenvolvimentos futuros estejam condenados a reproduzirem a rigidez da lei de 1838. Nessa primeira etapa, a intervenção da competência médica só tem, praticamente, uma incidência sobre o status das pessoas impondo a internação. Redução brutal de praticamente todas as modalidades de controle ao procedimento grosseiro e custoso da sequestração. Mas, quando essa quase identificação do doente mental com o alienado-internado for rompida, a função de perícia médica irá também se liberar da lógica dicotômica que ela herdou no começo. Ela sempre operará uma espécie de tutelarização técnico-legal, mas esta poderá tomar formas bem mais numerosas e insidiosas.

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CAPÍTULO VI A LEI E A ORDEM

Em 1861, o doutor Berthier, médico-chefe em Bourg-en-Bresse, representante bastante típico da maioria silenciosa do novo "quadro" dos médicos alienistas, após ter visitado asilos por toda a França, exclama: "Quanto a nós, nossa tarefa está quase plenamente realizada. Nossas idéias, semeadas por toda a terra, agora só têm que frutificar. Que elas, escoltadas pela caridade e pela inteligência, levem a todos os povos nosso amor pelo belo e pelo bem. Auxerre, Avignon, Chambéry, Grenoble, Toulouse, Quatre-Mares, Marseille, Rennes, Rodez são testemunhos do que pudemos fazer; Paris, por sua vez, apressa-se em mostrar do que é capaz, e temos razões para crer que nossa capital será digna de seu nome, de seu lugar e de sua glória. Visitei grande parte de nossos asilos de França, e sempre retornei me sentindo melhor. Propondo-me a visitá-los todos com um mesmo objetivo: o de esclarecer o meu julgamento, de alegrar meu coração e de melhorar o destino dos doentes que a Providência me confiou"

1.

Esse ditirambo exaltado talvez não esteja isento de segundas intenções publicitárias, e mesmo de reações defensivas. O ano de 1861 é praticamente o marco a partir do qual a medicina alienista começa a ser atacada por todos os lados: seu monumento legislativo, como início das campanhas contra as internações arbitrárias; seu baluarte asilar, com a abertura do debate sobre "as diferentes maneiras de tratar os alienados"; seu fundamento teórico, com a crítica das sintomatologias, através de uma orientação organo-genética inspirada nos trabalhos de Morel sobre a degenerescência. Os alienistas se unem a fim de sustentar um edifício que começa a cobrir-se de rachaduras.

Apesar disso existe um paradoxo. Essa idade de ouro do alienismo, num certo sentido, nunca existiu nos fatos. A exigência mínima do artigo primeiro da lei, um asilo por Departamento, nunca será realizada. Isso sem falar ainda da superpopulação, da miséria moral e material dos asilos, da vida do psiquiatra em meio a seus próprios fracassos, de seus horizontes diminuídos por um isolamento complementar ao de seus doentes, dos pequenos escândalos, dos cálculos e dos lucros menores. Não há com o que se exaltar.

1 Dr. Berthier, "Excursions scientifiques dans les asiles d'aliénés", Journal de médecine mentale, I, 1861, p. 320.

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Não obstante, pessoas como Berthier, que talvez não eram todas ingênuas, exaltaram-se. E sobretudo, cento e trinta anos após, a velha síntese asilar ainda paira sobre toda a paisagem psiquiátrica francesa. Os tecnocratas que me perdoem: uma instituição não é uma empresa cuja sucesso se meça unicamente pela rentabilidade. O asilo foi surpreendentemente competitivo, à sua maneira. Cadáver, talvez, mas como livrar-se dele? Compreender a estranha perseverança do alienismo em sua essência, é também mostrar-se sensível à poesia glacial desses laboratórios-cemitérios em que uma experimentação paciente sobre o homem se realizou à sombra dos altos muros. É também mostrar que existe uma simbólica da exclusão, da rotulagem negativa, da estigmatização que, à sua maneira, pôde pagar tanto quanto os programas positivos de ressocialização e de cura que lhe serviram de cobertura.

Mas, autonomizar essas dimensões, seria se aventurar a querer exorcizar o lirismo de Berthier por um outro, de gosto igualmente duvidoso. É preciso, portanto, apresentar o leque de todas as direções nas quais a prática alienista se desenrolou. Mas também compreender o que, através de seu próprio sucesso funcionou como armadilha.

A Pseudo-aplicação da lei

A exigência de um enquadramento de todo o território através de um sistema homogêneo de estabelecimentos públicos, como podemos lembrar, era desarticulada na própria letra da lei, por meio da faculdade, atribuída aos Departamentos, de fazer convênio com estabelecimentos públicos ou privados já existentes. Além disso, o financiamento obrigatório da assistência dos alienados indigentes não era inscrito no orçamento central mas devia ser negociado, em proposições não definidas, pelos conselhos gerais e pelos conselhos municipais (art. 28). Renaudin o lastimará, vinte anos mais tarde, nos seguintes termos: "Estamos persuadidos de que a iniciativa do Estado chegaria, em menos tempo, a resultados que seriam maiores, quanto menos fossem discutidos. Existem poucos asilos que" não tenham sofrido com essas discussões, e as lacunas, que ainda hoje se observa em muitos deles, são o vestígio indelével dessa hostilidade sistemática que, desde o princípio, manifesta-se em muitos conselhos gerais, contra a organização do novo serviço"

2.

Sovinice dos eleitos locais, portanto, mas também concorrência da "indústria privada" que "cativa por meio de um baixo custo, cuja significação não se questiona suficientemente"

3. O mais significativo, não obstante, é o fato de que o governo central,

cuja obstinação em querer uma lei já analisamos, logo se tenha desinteressado de sua aplicação efetiva: não somente vão assumindo o seu financiamento, mas também recomendando aos Departamentos uma prudência à qual estes não tinham necessidade de serem incitados. Na circular de aplicação, de 5 de agosto de 1839, o ministro do interior precisa aos prefeitos: "Não deveis perder de vista que, se é desejável, como o

2 E. Renaudin, Commentaires médico-administratifs, op. cit., p. 15. 3 Ibid., p. 20.

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exprimi na minha circular de 28 de julho de 1838, que os Departamentos se ocupem dos meios para criar estabelecimentos especiais que se distinguiriam, sem dúvida, por sua sábia administração e por um maior desenvolvimento dos meios de cura, a prudência exige que essas criações só sejam votadas após um amadurecido exame da situação financeira do Departamento. Em meio a todas as necessidades sociais que se desenvolvem, deve-se temer exagerar os gastos departamentais; e, além disso, é bom não perder de vista que os estabelecimentos departamentais de alienados, só poderiam, na maior parte dos casos, cobrir seus gastos, se recebessem internos dos Departamentos vizinhos: donde a consequência de que a multiplicação exagerada desses

estabelecimentos lhes traria um prejuízo recíproco. Portanto, não é de forma alguma desejável que cada Departamento se sobrecarregue com o peso de estabelecer e manter um hospício especial consagrado aos alienados"

4.

Tudo se passa como se, uma vez votada essa lei "de beneficência e de humanidade", com as dificuldades ou as contradições jurídicas e administrativas que motivavam o interesse do governo formalmente resolvidas, ele se desinteressasse de sua aplicação concreta.

Em todo o caso, a votação da lei não proporcionou nenhum impulso decisivo para a construção ou mesmo para a instalação dos asilos. De 1818 a 1838, sem a ajuda da iniciativa central, a situação, não obstante, já tinha melhorado muito (cf. cap. IV). De 1838 a 1852, estabeleceram-se somente sete asilos novos, dos quais somente três representaram verdadeiras criações. Em quase todas as partes os conselhos gerais improvisaram, derrubando ou construindo algumas paredes, restaurando alguns velhos pavilhões de hospício para estar de acordo com a letra da lei, que exige a separação dos alienados dos outros doentes. Sobretudo, fizeram convênio o mais frequentemente possível pelo menor custo (a famosa questão dos "preços das diárias") com os estabelecimentos públicos ou privados existentes. Ainda em 1874, apenas quarenta Departamentos (em oitenta e oito), possuem estabelecimentos especiais

5.

É verdade que o número de alienados "assistidos" aumentou consideravelmente. Mas, por um lado, essa progressão foi surpreendentemente regular, sem nunca apresentar bruscas rupturas, seguindo um ritmo de mais ou menos 800 alienados suplementares por ano: 10.000 internados em 1834, 16.255 em 1844, 24.524 em 1854, 34.919 em 1864, 42.077 em 1874

6: nada, nas estatísticas, permite identificar o efeito

próprio da lei. Por outro lado, esse aumento dos lugares disponíveis mal consegue acompanhar o aumento da "demanda" ― de fato consequências da crise da sociedade rural e dos progressos da urbanização. Ainda em 1872, o número dos "alienados em domicílio" recenseados ultrapassa o dos alienados em asilo

7. Apesar do serviço público

4 Législation sur les alienes et les enfants assistes, op. cit., 1, p. 61. É a reiteração de um conselho sobre o qual já se insistira na primeira circular de 28 de julho de 1838, um mês após a votação da lei. Cf. ibid., 1, p. 48. 5 Drs. Constans, Lunier e Dumesnil, Rapport sur le service des alienes en 1874, op. cit., p. 54-62. 6 Ibid., p. 63-64. 7 Recenseamento in The Roussel, Rapport au Sénat de la commission relative à la révision de la loi du 30 juin 1838, Paris, 1884, p. 5. Em 1872, Roussel calcula 51.004 alienados em domicílio (dos quais 20.020 "loucos propriamente ditos" e 30.984 "idiotas e cretinos"), contra 36.964 alienados em asilo (dos quais 32.815 "loucos propriamente ditos" e 4.149 "idiotas e cretinos").

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nos asilos ser, efetivamente, o modelo dominante da assistência psiquiátrica, nunca teve um monopólio absoluto. As antigas práticas com relação à loucura continuam a ter uma existência mais ou menos subterrânea. No que diz respeito às famílias ricas, o isolamento, no contexto doméstico, sob a vigilância de servidores, a velha tradição das viagens de diversão com ou sem acompanhamento médico e, sobretudo, a negociação direta com casas de saúde privadas, como veremos, perpetuaram-se. No que diz respeito aos pobres, os circuitos de vizinhança, principalmente no meio rural, asseguram, ainda, um encargo direto de, inúmeros alienados, sobretudo quando calmos.

Os alienistas, se insurgem, evidentemente, diante dessas limitações ao seu empreendimento. A campanha que fazem, para denunciar a periculosidade dos doentes aparentemente inofensivos se inspira, em grande parte, nesse motivo. Existe toda uma literatura sobre os idiotas, a fim de demonstrar que eles não são tão inofensivos como parecem. Mas, de duas coisas, uma. Ou eles são abandonados a si mesmos ou vêm saturar os asilos. A superpopulação dos serviços é uma constante da história da psiquiatria. Mas, quando se fala em superpopulação fala-se também em indiferenciação, portanto, impossibilidade de operar classificações médicas, bloqueios da tecnologia alienista e, finalmente, renúncia à vocação terapêutica reivindicada por esses estabelecimentos.

Através dos problemas de aplicação (ou de não-aplicação) material da lei, assiste-se, portanto, a uma transformação de suas finalidades. E isso em razão de uma paralisia daqueles dispositivos técnicos que teriam podido, talvez, fazer dela uma lei mais "médica". Em particular, a preponderância das internações compulsórias sobre as internações voluntárias bloqueou, de fato, todo o processo de instauração pelos alienistas.

Essas duas modalidades de admissão não têm, com efeito, o mesmo alcance, em relação às possibilidades de desenvolvimento, que elas proporcionam à medicina mental. A internação compulsória é a resposta social às manifestações mais espetaculosas da alienação mental. Ela se relaciona com a antiga representação da digressão ou da "divagação" do louco. Ela diz respeito, antes de mais nada, ao "furioso" ― e também ao indigente e/ou o desenraízado a quem, a ausência de recursos e de redes sociais de apoio expõe à intervenção direta da força pública. A lei é, efetivamente, nesse caso uma lei "de administração e de polícia". Ela visa, antes de mais nada, neutralizar um indivíduo perigoso. Só posteriormente, quando o recluso é supostamente tratado no estabelecimento especial, é que o médico intervém. Esta disposição é a que melhor se assemelha às antigas "ordens do rei".

O processo de internação voluntária é muito mais sutil e deixa mais ampla margem à intervenção médica. A iniciativa da internação, nesse caso, cabe à família ou a pessoas próximas, cuja demanda é necessariamente apoiada num certificado médico. O médico do estabelecimento deve, igualmente, ratificar o diagnóstico, na entrada, a fim de garantir a regularidade da sequestração. A medida de internação repousa, portanto,

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numa colaboração entre a instância familial e a instância médica, sem intervenção direta do poder público. Ela pode, então, encarregar-se dos distúrbios que ainda não atingiram o limiar de emergência social. Enquanto a internação compulsória draga a superfície do patológico, captando somente um número limitado de casos espetaculosos, em nome de uma concepção da ordem pública destituída de sutileza, o processo de internação voluntária permite apreender manifestações patológicas mais discretas ― portanto, frequentemente também mais precoces e mais leves. Esboça-se, dessa forma, a possibilidade de intervenções médicas mais numerosas, mais diversificadas, mais sutis e, no final das contas, de ação preventiva. Na medida em que a origem do distúrbio psíquico será cada vez mais relacionada a uma patologia intra-familiar, a internação voluntária poderia oferecer a possibilidade de alcançá-lo in status nascendi, antes que ele se objetive no cenário social e a fortiori na via pública, onde apenas a internação legal pode intervir. Como vemos, essa linha traça o caminho dos futuros desenvolvimentos da medicina mental. Porém, mal esse processo se esboça, logo é bloqueado.

O princípio de uma extensão médica da lei repousa num de seus parágrafos (art. 25 § 2): "Aí, serão igualmente admitidos os alienados cujo estado mental não comprometa a ordem pública ou a segurança das pessoas, nas formas, nas circunstâncias e nas condições à serem reguladas pelo Conselho Geral, por proposição dos prefeitos aprovadas pelo ministério". Deixa-se, assim, toda liberdade de apreciação aos Conselhos Gerais e à administração que dela farão o uso que se pode imaginar. Posição diametralmente oposta à dos alienistas, impacientes em se introduzirem o mais profundamente nessa brecha: "Para nós, abstraindo-se a questão financeira, cuja importância reconhecemos inteiramente, gostaríamos que as admissões não fossem limitadas; que se pudesse receber, em suma, nas casas de alienados, qualquer indivíduo, indigente ou não, cuja alienação tenha sido constatada, e que se apresente ao diretor munido dos documentos justificatórios exigidos pela lei. (...) Os asilos, em minha opinião, deveriam estar abertos aos alienados como os hospitais o são aos doentes comuns, isto é, sem entraves nem limites"

8.

Mas as instruções ministeriais têm exatamente a mesma significação restritiva do que quando se tratava de criar novos estabelecimentos: "Sem dúvida, Sr. Prefeito, não se deve abrir indistintamente os asilos criados ou subvencionados pelos Departamentos a quem quer que se apresente como alienado: tal facilidade daria lugar aos abusos mais graves, e comprometeria as finanças departamentais". "Os Conselhos Gerais, precisa a circular de 14 de agosto de 1840, deveriam ser, a esse respeito, os primeiros juízes a consultar"

9. Juízes que são parte ao mesmo tempo, já que são os principais alocadores

de recursos.

Assim, o número de internações compulsórias sempre ultrapassou de longe o das internações voluntárias. Em 1853, havia 80% em Paris e, dentre as admissões do ano em

8 H. Aubanel, "Rapports judiciaires et considérations médico-légales sur quelques cas de folie homicide", Annales médico-

psychologiques, 1846, VII, p. 240. 9 Circular de 5 de agosto de 1839, reiterada também em 14 de agosto de 1840, se bem que de maneira mais nuançada; cf. Législation sur les alienes, op. cit., I, p. 46 e p. 97.

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toda a França, 6.473 contra 2.609 internações voluntárias10

. Esse desequilíbrio ainda se agravará na medida em que certos Conselhos Gerais decretam disposições engenhosas a fim de limitar ao máximo o número das admissões. Assim; "sendo o primeiro dever de uma administração preocupada com seus interesses o de regulamentar a admissão dos alienados nos asilos, de maneira a só receber neles os que a lei aí autoriza a internar legalmente, e se opor, assim, à rápida progressão das entradas", o Conselho Geral de Meurthe, cria no hospício de Epinal um centro de triagem, de forma a só encaminhar para o asilo de Mareville os alienados que "tivessem sido reconhecidos como perigosos para a moral pública ou para a segurança das pessoas e das propriedades". A. Pain, além de afirmar que "os alienados são, certamente, as crianças mimadas da filantropia moderna", exalta o procedimento da seguinte forma: "Só podemos aplaudir os resultados fornecidos por essa medida: em 1861, o número de admissões tinha sido de 47; ele baixou para 16 em 1862 e para 15 em 1863"

11.

Diante dessas práticas, inúmeros alienistas se habituam a solicitar uma internação compulsória para todo doente cujo acesso ao tratamento pretendam garantir. Esse costume se perpetuará por muito tempo (somente em 1838 é que a conversão das internações compulsórias em internações voluntárias, com parecer médico ratificado pelo prefeito, será autorizada

12. Haussmann denuncia a "tendência universal a declarar

perigosos até os dementes mais inofensivos, a fim de isentar a assistência focal e certificar o estado de indigência desses infelizes. Foi-me necessária muita firmeza para reagir contra esse duplo abuso"

13.

Constatamos aí, portanto, uma retomada precoce do controle pelos responsáveis administrativos, contra uma propensão dos alienistas para deturpar a letra da lei a fim de defender seu espírito "médico". Mas, apesar de ser inspirada por motivos humanistas, essa tendência dos médicos não favoreceu, é o mínimo que se pode dizer, a liberalização da psiquiatria. A supremacia da internação compulsória sobre a internação voluntária mantém a rotulação quase exclusiva da doença mental como periculosidade. O asilo não é em nada um hospital como qualquer outro, mas o último recurso para os indivíduos que se vêm rejeitados de toda a parte.

Assim, desde antes dos anos 60, momento em que haverá uma mudança, começa-se a ler avaliações pessimistas da situação psiquiátrica: "Hoje, como antes (o autor faz referência à situação anterior a 1838), o serviço médico é absolutamente nulo na maior parte dos asilos. Abranda-se o destino dos alienados mas nada se faz para a sua cura. Eles são amontoados em prédios insuficientes para recebê-los. Confinados em suas celas, não têm espaço nem ar. São confundidos em vez de serem divididos em categorias distintas, categorias cuja necessidade a ciência demonstrou. Os alienados são misturados

10 Cf. A. Brière de Boismont, "Appréciation médico-légale du regime actuel des alienes en France", Annales médics-

psychologiques, 1865. 11 A. Pain, Des divers modes de l'Assistance publique aplliquée aux alienes, Paris, 1865, p. 15. 12 Cf. M. Henne, "Introduction à l'étude des questions administrativos", Information psychiatrique. Janeiro de 1960. 13 B. Haussmann, Méinoires I, Paris, 1890, p. 464. Isso se refere ao tempo em que o barão de Haussmann foi prefeito departamental em Auxerre, onde colaborou estreitamente com o alienista Girard de Cailleux, a quem nomeou inspetor geral do serviço dos alienados, quando chegou em Paris, a fim de renovar com ele o serviço do Sena; cf. G. Biéandonu, A. Le Gaufrey, "Naissance de l'asile, Auxerre-Paris", loc. cit.

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aos epilépticos; há promiscuidade entre os sexos e entre a infância e a idade madura. Alienados com doenças acidentais ou repugnantes não possuem lugar distinto; tudo isso é verdade, mesmo nos asilos mais afamados"

14. Sem dúvida, esse autor dessa avaliação,

católico integrista, é antes de mais nada, hostil às teses alienistas. A literatura propriamente psiquiátrica oscila entre o tom de exaltação de Berthier, quando faz suas "excursões" maravilhadas nos asilos de França e o tom mais comedido de Renaudin, que qualifica a nova legislação de "instituição que mais honra a administração francesa"

15,

mas se insurge contra os obstáculos técnicos, administrativos e financeiros que entravam sua plena aplicação. Assim, têm-se o direito de falar, em todo caso, de pseudo-aplicação da lei: ela não criou nenhuma prática verdadeiramente nova, contentou-se em sancionar e coordenar procedimentos anteriores, sem mesmo marcar uma etapa decisiva no seu desenvolvimento.

Da eficácia: Real, administrativa e simbólica

Por que então todos esses discursos em tomo da lei, essas discussões que duraram um ano e meio diante das duas Câmaras, e a função de modelo que" ela representou, inspirando a maior parte das legislações européias? Talvez seja porque a lei não deve ser "realmente" aplicada para preencher sua função: resolver formalmente as contradições jurídico-administrativas que a suscitaram, fornecer um organograma coerente a partir do qual a medicina e a administração possam colaborar, a fim de gerir tecnocraticamente um problema espinhoso. É nesse sentido preciso que Renaudin dirá: "Consagrada por vinte e cinco anos de experiência, após ter sido preparada pelos trabalhos de mestres ilustres, a legislação dos alienados é uma daquelas de que a administração francesa pode, em pleno direito, orgulhar-se, e à qual os países estrangeiros fizeram inúmeros empréstimos. Vivificada cotidianamente pela sabedoria e pela vigilância da administração superior, ela agora constitui uma verdadeira ciência"

16.

Por que? "O serviço dos alienados repousa numa idéia que, defendida inicialmente por Pinel, Fodéré, Esquirol, acabou se tornando uma idéia governamental"

17. Falret vai ainda

mais longe: "Acreditamos que esses argumentos e essas provas, que repousam nos princípios gerais da legislação dos alienados, não perderam seu valor e sua atualidade; que eles seriam aplicáveis em todos os tempos e em todos os países, tão indeléveis quanto a própria alienação"

18.

Substancíalismo ingênuo? Não, se compreendermos essa permanência, esse caráter "indelével" a partir das dimensões administrativo-médicas de sua gestão tais como foram estabelecidas acima (cf. cap. V). As concepções propriamente teóricas da doença mental podem modificar-se e Falret, que contribuiu para promover tais mudanças, não é suficientemente inconsequente para ignorá-lo. Não obstante, existem "princípios" do encargo da doença mental, na conjunção entre o que o saber médico

14 Martin-Doisy, Dictionnaire d'économie charitabk. Paris, 1855, artigo "Alienes". 15 E. Renaudin, Commentaires médico-administratifs, op. cit., Prefácio, p. 1. 16 Ibid., p. 391. 17 Ibid., p. 391. 18 J. P. Falret, Des alienes et des asiles d'aliénés, op. cit., p. 713.

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conhece sobre a natureza da loucura e o que a sociedade exige para gerir os loucos. A posição de Falret expressa menos um eternismo do saber médico do que a consciência dessa cumplicidade, ilustrada por toda a história da medicina mental, entre a posição médica face à loucura e a posição administrativa. Num sentido, a história não o contradisse, pelo menos durante um século. O conteúdo do saber médico pode ter mudado profundamente; já a postura do médico face à problemática da loucura raramente se desligou dessa solidariedade com as exigências de gestão.

Compreende-se, assim, que a lei tenha podido modificar muito pouca coisa na prática e, não obstante, transformar a natureza dos discursos dos responsáveis, e isso, sem dever se referir a uma vaga função da "ideologia" oposta à "realidade". Realidade da ideologia, ou melhor, eficácia particular a um certo tipo de discurso, que também transforma o mundo, porque trabalha essa dimensão específica do "administrativável" cuja importância tentamos estabelecer aqui. Após 1838, cedo se encontra inúmeras e por vezes profundas críticas do novo dispositivo. Não se encontra mais o tipo de discurso catastrófico, que deplorava a ausência de um regime dos alienados que as contradições jurídicas, institucionais e financeiras impediam de realizar. O incontestável sucesso da lei de 1838 foi o de responder, simultaneamente, a todas essas exigências. "Agrupamento de elementos variados com conteúdo fixo" como diz Daumézon

19, na base do estatuto

da internação ela distingue um registro unificado e coerente do encargo. Em outras palavras, após 1938 os problemas permanecem, mas não há mais contradições abertas, aporias. A loucura continua a provocar dificuldades. Ela cessou de ser um desafio. A loucura continua a provocar dificuldades. Ela cessou de ser um desafio. Essa conciliação formal dos antagonismos, que os desloca e poupa sua real solução se realiza em todos os níveis:

no plano do direito, legalizando a sequestração sem interdição dos alienados ― mesmo se as garantias de um controle judiciário a posteriori, cuidadosamente previstas no papel, permanecem inoperantes;

no plano administrativo, definido as atribuições precisas dos diferentes responsáveis pelas admissões ― mesmo se sua coordenação real dá margem ao arbítrio;

no plano institucional, absorvendo a disparidade dos lugares de reclusão (prisões, depósitos de mendigos, hospícios, hospitais, casas de saúde privadas) ― mesmo se a aparente homogeneidade do "estabelecimento especial" ― recobre realidades concretas tão diferentes como o asilo público, o pavilhão do hospício e os estabelecimentos particulares sob o controle bastante fictício da administração;

no plano financeiro, designando um modo de financiamento obrigatório dos gastos com os indigentes através das comunas e dos Departamentos ― mesmo se estes, em geral, cumprissem suas obrigações com uma tal má-vontade que fizeram do asilo o meio mais miserável para os mais miseráveis.

19 Cf. G. Daumézon, "Méthode pour rédiger une nouvelle loi sur les alienes", loc. cit.

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Temos o direito de dizer, portanto, sem nenhum finalismo que era preciso que a lei existisse, mesmo que sua aplicação permanecesse amplamente fictícia: o princípio de realidade não é o mesmo para os gestionários e para os que eles administram. Em última instância, que os alienados não tenham tirado nenhuma vantagem da existência da lei (o que não é inteiramente exato) não confirmaria em nada sua "excelência" administrativa. Sem dúvida, não é um paradoxo exclusivo dessa lei. Não obstante, neste caso, a prestidigitação se fez através de e por meio da medicalização: o rótulo médico permitiu a conciliação formal de contradições reais. O que qualifica exatamente o mandato social da medicina mental.

Mas, e quanto à eficácia propriamente médica, a da terapêutica? Para responder a uma tal questão seria preciso poder avaliar os resultados efetivos desse tratamento moral que supostamente constitui, na época, o essencial da atividade terapêutica asilar. Empreendimento difícil, para o qual algumas estatísticas discutíveis são de pouca valia. O que se pode constatar não é animador. Mas talvez seja preciso, antes de mais nada, compreender que, também nesse caso, a rentabilidade do "encargo" não se mede somente por meio de seus resultados positivos avaliados em índices de cura. Pode haver uma eficácia simbólica do funcionamento institucional que projete a imagem invertida de uma eficácia propriamente terapêutica.

O tratamento moral toma sentido, como já insistimos, no quadro de uma vasta analogia pedagógica que faz do asilo uma casa de educação de caráter especial. "Efetivamente, as casas consagradas ao tratamento da loucura são mais relacionadas com as instituições de educação. (...) É preciso não esquecer que os alienados são crianças grandes, sempre prontas a se furtarem à disciplina e ao regime que se lhes impõe"

20.

"Crianças grandes" sobretudo, porque eles manifestam a maior distância em relação às normas que se lhes quer inculcar. Nisso, consistiria a única originalidade do tratamento moral na ordem pedagógica: ele não inova na verdade, no nível dos meios instaurados, já que estes retomam a gama das técnicas disciplinares. Mas precisa duplicar seu caráter coercitivo. Enquanto a educação comum está em continuidade com a socialização familiar, a ruptura profunda exibida pela loucura exige a concentração e a intensificação da eficácia pedagógica: separação do quadro social-familiar, transplantação num meio especial, maximização das técnicas disciplinares. Nisso consistiria essa "educação especial e laboriosa através da qual o médico tenta reformar, reconstituir de certa forma, o espírito do doente"

21.

"Reconstituição", portanto, e não somente novos enxertos sobre um fundo de natureza racional. Por trás desse projeto, uma espécie de utopia construtivista: a pedagogia asilar implica na instauração do que seria um verdadeiro programa de

20 H. Girard, "De l'organisation et de l'admistration des établissements d'aliénés", Annales médico-psychologiques, 1843, t. II, p. 243. 21 Ch. Lasègue, A. Morel, "Etudes historiques sur l'aliénation mentale", Annales médico-psychologiques, 1844, II, p. 243.

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recondicionamento. Controlando todas as variáveis do meio, aplicando constantemente um conjunto coerente de meios racionais a fim de vedar todas as brechas pelas quais se manifesta a desordem, recompor-se-á completamente o homem doente com um perfil normalizado, "pois a ordem exterior revela a ordem interior e já dissemos que esta última era a maior expressão da razão que se deve fazer predominar na loucura"

22.

Maiêutica muito desenvolvida, portanto, porém justificada pela amplitude do vazio a ser preenchido a fim de restaurar a natureza racional do homem. O autoritarismo violento, longe de estar em contradição com o humanismo proclamado pelos primeiros alienistas, é seu instrumento. A filosofia do tratamento moral participa certamente do otimismo pedagógico do Iluminismo.

Mas ele representa também o ponto de aplicação onde esse otimismo pode ter a experiência de seus próprios limites. A loucura não é somente um mundo obscurecido pelos preconceitos, erros, excessos passionais que os meios racionais poderiam dissipar sem mais. Não somente porque a dificuldade da tarefa a ser realizada justificasse a priori um índice "razoável" de fracassos. Formou-se progressivamente uma tomada de consciência cada vez mais profunda da distância que existe entre a loucura e a razão, no decorrer do processo de sua medicalização. Ela traduz uma lenta transformação da concepção do patológico que se desenrolou por mais de meio século.

Toda uma corrente de pensamento aplicou, no início, o otimismo do Iluminismo diretamente à problemática da loucura: esta nada mais é do que um erro de julgamento que será eliminado pelo progresso do pensamento; a patologia recuará na medida do desenvolvimento da civilização e será definitivamente afastada por ela

23. A posição da

escola alienista foi conquistada, em parte, contra, essa orientação: a loucura marca uma ruptura mais grave do que um simples distúrbio do julgamento ou do que um puro excesso passional. Por exemplo, Falret: "A experiência atesta que não é preciso tratar as doenças mentais como simples aberrações dos sentimentos ou erros da inteligência. O raciocínio tem um poder muito limitado para corrigir os distúrbios doentios do entendimento"

24. Não obstante, os alienistas permanecem a meio caminho nessa crítica

do intelectualismo. A condição de aplicação do tratamento moral é que o alienado

22 H. Girará, "De 1'organisation et de Padministration des établissements d'alié-nés", Annales médico-psychologiques, 1843, II, p. 245. 23 Encontrar-se-á ainda em 1831 uma expressão caricatural dessa orientação in M. Pierquin, De l'Arithmétique de la folie, Paris. Ela também é muito visível em Foderé, Essai médico-légal sur la folie, op. cit. Demos pouca atenção a essa corrente que se poderia chamar de "pré-alienista". Ela representa a aplicação direta da filosofia de Locke à teoria da alienação mental que influenciou, igualmente, Pinel e os seus sucessores. Mas em Pinel, a acuidade da percepção clínica retificou, em parte, esse pré-conceito filosófico no sentido de dirigir a atenção às manifestações da loucura mais perturbadoras para uma concepção intelectualista. Sobre essa hesitação de Pinel, ver os textos citados na discussão sobre a monomania, capítulo IV. Assim também, o jovem Esquirol, em sua primeira concepção da etiologia moral da loucura ("Dissertation sur les passions considérées comme causes, symptômes et moyens curatifs de l'aliénation mentale"), representou-a, inicialmente, como um simples excesso passional. Notemos, enfim, que a importância e a duração das discussões sobre o tema loucura-civilização se explica, em parte, por essa implicação: ela nasce do escândalo de constatar um aumento dos distúrbios patológicos paralelo ao progresso do conhecimento. Compreende-se que a explicação a que os alienistas tendem seja do tipo rousseauista: "desnaturação" do homem associada ao artifício da vida civilizada, etc. 24 J. P. Falret, Des alienes et des asiles d'aliénés, op. cit., p. 73. Falret deduz diretamente, dessa distância entre loucura e razão a necessidade do isolamento, já que seu texto continua do seguinte modo: "Sem negligenciar esse meio, é preciso sobretudo, recorrer à diversão. Divertir os sentimentos e as idéias mórbidas não é combatê-los através de uma lógica concisa ou através de uma linguagem apaixonada, é simplesmente estancar as impressões exteriores que fomentam as desordens do entendimento e, posteriormente, chamar a atenção para outros objetos".

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guarde um fundo racional, que pode ser restaurado através do emprego de meios judiciosos: "A arte de procurar dar uma outra dimensão à vontade exclusiva dos alienados, de racionar com eles e de fazer sentir sua dependência, supõe que eles não estejam totalmente desviados da razão"

25. O relatório de 1874 dirá ainda: "Mas a maior

parte (dos alienados), na maioria dos casos, sabe perfeitamente quando faz o mal, e não haveria tratamento moral nem disciplina possível se não se lhes fizesse senti-lo"

26.

Porém ― e trata-se da terceira etapa desse processo ― as discussões sobre a monomania (cf. cap. IV) descobrem um núcleo patológico que pode ser totalmente irredutível a uma pedagogia racional. Esse pessimismo se acentuará na linha das pesquisas sobre as degenerescências, as perversões constitucionais, as deficiências orgânicas, etc.

Em relação a essa implicação, essencial, porque condiciona o alcance da analogia pedagógica sobre a qual repousa o tratamento moral, o asilo ocupa uma posição ambígua. Por assim dizer, ele joga em duas frentes. Máquina pedagógica paradoxal, ele se propõe explicitamente a curar. Mas suas características já apresentam, invertidos, os traços de um sistema educativo normal, prestando-se à transposição da progressividade das aprendizagens em exemplaridade negativa do fracasso:

seleção negativa contra seleção positiva: a entrada no sistema, em vez de ser uma promoção, sanciona uma situação de proscrição do homem desprovido dos atributos da razão;

contabilização invertida da duração da passagem na instituição: enquanto um aluno aumenta suas chances objetivas de sucesso em função da duração de sua inculcação pelo aparelho escolar, a duração da estadia no asilo compromete, cada vez mais, as chances de readaptação do alienado;

notação diversa da filiação institucional: se o aluno participa do prestígio da escola (e tanto mais quanto "maior" ela for) o alienado carrega o estigma de sua passagem pelo asilo;

significação contrastada da "saída": a expulsão da instituição escolar significa, para o aluno, a expulsão para as trevas exteriores, onde ele encontra, assim, o pólo negativo do dualismo cultura-barbárie; ao contrário, o alienado curado reintegra o pólo positivo da oposição normal-patológico.

Portanto, o funcionamento da pedagogia alienista não concerne somente à lógica cumulativa das aprendizagens de saberes e de saber prático pela qual o aluno progride ao longo de uma escala quantitativa, do menos da incultura ao mais da cultura. Ela também pode ser lida na lógica da exclusão simbólica, o estigma substituindo a aquisição

25 Ph. Pinel, Traité médico-philosophique sur l'aliénation mentale, op. cit., p. 218. 26 Constans, Dumesnil, Lunier, Rapport sur le service des alienes en 1874, op. cit., p. 186.

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cultural27

. Pode-se, portanto, compreender que o fracasso aparente dessa empresa pedagógica, a incurabilidade do doente, possa realizar uma de suas finalidades. O alienado que morre alienado num asilo de alienados, após uma longa vida de alienado, exibe em seu destino todas as características negativas da alienação mental. Ele simboliza, com a perfeição de uma personagem trágica, a exclusão social e humana da loucura. Se alguma coisa pode dissuadir de ser louco, essa coisa é, efetivamente, a visão de uma vida de louco, ou seja, da vida que se dá aos loucos nesses asilos, onde entretanto, são-lhes dispensados, como se diz, todos os cuidados da ciência e todos os recursos da filantropia.

Assim, o sistema ganha sempre. Sem dúvida, ele cura às vezes e tanto melhor: são mais pessoas que entram no reino da razão. Isso ocorre frequentemente ou é raro? Talvez esta não seja a questão principal. Em todo caso, não é a única questão. Pois os próprios fracassos podem ter uma significação pedagógica mais sutil e, talvez, mais exemplar: eles revelam o que se paga por transgredir as normas.

Os asilos, essas pesadas construções plantadas nos confins das cidades, também pairam, portanto, sobre uma paisagem moral. O consenso social sai reforçado por sustentar assim, nas margens da comunidade, uma representação, ao mesmo tempo discreta e espetacular, do destino daqueles que falharam. Os asilos, como as prisões, até em sua arquitetura e sua localização geográfica, fechados mas visíveis, imponentes mas recuados, com formas comuns mas, em sua austeridade, majestosas, assumem essa função de esconder/exibir o inconfessável

28.

Não se trata de uma fantasia, ou então ela opera universalmente. Em cada região existe uma locução popular que expressa, numa forma mesclada de zombaria e de horror, a vivacidade dessa percepção: "voltar de Charenton", "estar bom para ir para Charenton" ― o que não se deseja nem ao pior inimigo.

As "pineleiras" do grande filantropo não se contentam, portanto, em limpar a superfície do corpo social livrando-o desses indesejáveis que são os doentes mentais. Elas também montam guarda nas fronteiras entre a razão e a loucura. Para isso, elas não têm necessidade de curar principalmente, nem mesmo de sempre enclausurar. Mesmo só havendo alguns loucos, eles ensinariam a todos o quanto é bom e prudente ser normal. Eficácia simbólica, talvez, imaginário social se se prefere, mas que não se deve subestimar para compreender também essa espécie de duração supra-histórica da forma asilar.

27 É evidente que pode haver, nesse caso, o uso simbólico dos signos culturais, que também servem como traços de distanciamento e, em última análise, de exclusão com relação aqueles que deles são desprovidos. Sobre esse ponto ver os trabalhos de P. Bourdieu e de J. C. Passeron, em particular a teoria da violência simbólica em La Reproduction, Paris, 1971. Mas no caso da instituição escolar é a positividade das aquisições da acumulação pedagógica que marca negativamente os que delas são desprovidos. No que concerne à passagem pela forma psiquiátrica, o sujeito em sua pessoa é que é estigmatizado, confortando, ao contrário, os de fora, na representação positiva de si mesmos. Sobre o funcionamento simbólico das instituições repressivas, cf. também J. Donzelot, "Le troisiême âge de la répression", Topique, nº 6, 1972 fracassos podem ter uma significação pedagógica mais sutil e, talvez, mais exemplar: eles revelam o que se paga por transgredir as normas. 28 Em certas cidades, por exemplo em Auxerre, as duas construções se situam face a face como duas colunas de sacrifício de um templo da virtude.

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O paradigma da internação

A herança mais pesada da lei de 1838 foi, entretanto, a maneira como bloqueou as possibilidades de expansão da medicina mental. É incontestável que os problemas de intendência contribuíram amplamente para conduzir à pseudo-aplicação da lei no plano das realizações materiais e para fazer, do asilo, um modelo negativo. Contudo isso não autoriza a opor, como o fizeram os historiadores-psiquiatras, uma utopia médica inspirada por motivos generosos, ao egoísmo da administração e dos poderes políticos e à indiferença, e mesmo à hostilidade da população em geral com relação à loucura. Um certo número de "bloqueios" funcionou através e por intermédio dos dispositivos da lei "médica", como a relação entre as internações compulsórias e as internações voluntárias. Foi o próprio espaço médico-asilar que foi investido negativamente. Mas, sobretudo, esses "brancos" na aplicação e esse funcionamento do asilo como despejo traem uma contradição central inscrita no cerne da lei, contradição constituída pela aporia fundamental à qual está presa a medicina mental da primeira metade do século XIX.

Lembremos que uma das implicações da discussão sobre a natureza pública ou privada dos estabelecimentos de assistência consistira na defesa da "honra das famílias". Mas essa posição da intimidade familiar como santuário face a uma instância de controle ainda é mais diretamente ameaçada pelo perigo que representaria uma medicina mental dotada do poder de decidir quem deve ser sequestrado, em função de seus próprios critérios: "Vosso honrado colega supõe que se irá apreender no seio da família um homem que tem a infelicidade de sofrer de alienação mental, que é cuidado pela família, um louco que não divaga e que, por consequência, não compromete a segurança pública. Pois bem, pergunto se é esse direito de ir arrancar um infeliz dos cuidados piedosos de sua família que se pretende estabelecer? Nesse caso, votarei contra todos os artigos de onde se possa induzir semelhante extensão do direito da administração. Solicito, portanto, que fique bem claro que o direito da administração não diga respeito aos alienados mas, somente, enquanto eles comprometem a segurança pública"

29.

Aqui também compromisso, pois a lei não se contenta em fazer sequestrar através da internação compulsória esses "alienados que comprometem a segurança pública", ou seja, frequentemente os indigentes, ou pelo menos aqueles que já tenham rompido os controles familiares. Ela prevê a possibilidade de uma intervenção médica em direção às famílias, cujos defensores mais intransigentes não o desejavam. É o procedimento da internação voluntária. Mas essa estranha qualificação de "voluntária", para uma internação, tão coercitiva quanto a outra, em relação ao alienado, significa que, nesse caso, a família mantém em princípio a liberdade de fazer apelo ao alienista ou de recusar sua participação. A consequência disso é que a família conservaria o direito de tratar ela própria um alienado, mesmo perigoso, com a condição que possa neutralizar os efeitos de seu comportamento sobre a ordem pública

30. Ela também pode solicitar a

29 Legisialion sur les alienes et les enfants assistes, op. cit., II, p. 250. 30 Esta também é a interpretação que os juristas deram para a lei. Cf. C." Demolombe, Traité de la minorilé, op. cit., I, p. 540 e ss.; A. Valette, Atribution du préfet d'apres la loi de 1838 sur les alienes, Paris, 1898; cf. também Recuei! Dalloz, V, "Alienes", sec. III, art, 2, nº 156.

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saída do alienado, mesmo contra o parecer médico (art. 14). Mas, se o médico do estabelecimento não estiver de acordo ele pode solicitar ao prefeito departamental a transformação da internação voluntária em internação compulsória (mesmo artigo 14) e o alienado cai, então, no regime comum. Dessa forma, a divisão entre os três poderes familiar, administrativo e médico, que estão em concorrência para o controle do alienado está mal partilhada. A introdução do médico tornou mais complexa a velha instituição dos "prisioneiros de família", pela qual a instância familiar se dirigia diretamente à autoridade pública a fim de lhe solicitar o encargo de seus membros incontroláveis (cf. cap. I). Mas o tipo de autonomia de que é dotado o novo aparelho, a medida na qual o diagnóstico médico é soberano ou permanece subordinado, seja ao acordo da administração, seja ao da família, permanecem mal definidos. Às vezes, o poder médico serve de cobertura às ordens do prefeito, às vezes ele legitima uma demanda cuja iniciativa permanece com a família.

Como por ocasião do debate sobre a natureza pública ou privada do estabelecimento especial (cf. capítulo V), os alienistas gostariam de ir além desse compromisso capenga. Se se trata realmente de doença o diagnóstico médico deveria ser o elemento soberano de apreciação em função do qual deve desenrolar-se toda a carreira do doente mental. Assim, Lisle, apesar de ainda permanecer no quadro dessa oposição "internação compulsória" ― "internação voluntária", propõe "impor aos prefeitos a obrigação de sequestrar compulsoriamente, não somente todos os indivíduos cujo estado de alienação comprometesse de uma maneira iminente a segurança pública, mas também todos aqueles que lhes fossem assinalados como possuindo sinais evidentes de loucura e sobre os quais suas famílias não quisessem ou não pudessem exercer uma vigilância suficiente"

31. A perícia médica teria, portanto, por si mesma, valor coercitivo:

impondo a intervenção do poder público, ela desapropriaria a família de todos os seus direitos. Um pouco mais tarde, num dos projetos mais elaborados de reforma da lei de 1838, Théophile Roussel pretende ir ainda mais longe. Ele denuncia, no poder residual das famílias de opor-se à intervenção médico-administrativa, "a grande lacuna da lei" e pretende "estender a autoridade e a ação da lei até ao domicílio do alienado, até em seu lar"

32 ― mas logo lastima que "as opiniões dominantes" repugnem a um passo tão

audacioso.

É certo que a maioria dos alienistas era mais avançada do que essas "opiniões dominantes". Eles anteciparam a possibilidade de um novo dispositivo de controle que poderia penetrar no tecido familiar, encarregando-se dos malogros de sua socialização. Em última análise, esboça-se o projeto que consiste em fazer dessa estrutura familiar o alvo privilegiado da intervenção médica: tratar a própria família e/ou (no nível dos indivíduos) os mecanismos que impliquem numa má socialização familiar, nisto consiste quase todo o programa dos "progressos" futuros da medicina mental, inclusive da psicanálise.

31 A. Lisle, Examen medical et administratif de la loi du 30 juin 1838 sur les alienes, Paris, 1847, p. 60. 32 Th. Roussel, Rapport au Sénat de la commission relative à la révision de la loi du 30 juin 1838, Paris, 1884, p. 337.

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Mas essas opiniões, no final do século, representam apenas antecipações e, ao que parece, por duas séries de razão. Por um lado, a problemática do controle social ainda não ê tal, que deva utilizar estratégias tão sutis. O quadro de referência dominante ainda é o legalismo: definição objetiva de um sistema de regras e correção de sua infração por autoridade-coerção em vez de intricação de um conjunto de normas e anulação de suas transgressões por meio de persuasão-manipulação. Ainda não soou a hora das tecnologias brandas: nem nos asilos, nem nas prisões, nas fábricas, nos quartéis ou nas escolas. Particularmente, e se é verdade que uma importante parte dessas novas estratégias passará por uma ação sobre as famílias, ao mesmo tempo alvo e retransmissor do poder de normalização, uma tal política das famílias supõe um conjunto complexo de condições que ainda não existem

33.

Por outro lado, e principalmente, o dispositivo objetivo da medicina mental, tal como é cristalizado na lei de 1838, torna-o incapaz de realizar um programa intervencionista fora do asilo. Somos tentados a dizer que a vitória alienista é boa demais: conseguindo a medicalização completa da loucura, a lei de 1838 lhe impôs condições tais, que vão esterilizar as possibilidades de desenvolvimento futuro. "Ou se é alienado ou não", exclama o ministro do interior na discussão

34: isto é mais do que uma

tautologia, ou então, é a tautologia fundadora do alienismo. Um alienado não é somente um doente, mesmo mental, trata-se de alguém que deve ser internado. Inversamente, um doente ao qual não cabe internação não é, propriamente dito, um doente mental, ou, em todo caso, não lhe cabe praticamente nenhuma técnica psiquiátrica de intervenção, intervir é internar. A legislação institui essa lei do tudo ou nada: ou se é alienado ou não, ou se é internado ou não, o caso cabe à medicina mental ou não. Ainda em 1965, Raynier e Beaudoin, não encontrarão outro recurso para definir o alienado do que o de identificá-lo à medida legal que impôs sua internação: "O alienado é um indivíduo de um ou de outro sexo que, apresentando distúrbios psíquicos devidamente estabelecidos, passageiros ou duráveis, perigosos ou não, foi objeto de uma medida de internação tal como a lei de 1838 a define. A saída do interessado coloca um fim ao caráter da alienação propriamente dita"

35.

Umbral ultrapassado: de um dia para o outro torna-se alienado pelo fato de ser internado num estabelecimento especial; de um dia para o outro deixa-se de sê-lo, ao sair. Não há nenhum meio de dissociar o estado psíquico do doente da situação administrativo-legal que define a internação. Daí, as seguintes consequências, ruinosas para um programa médico coerente: atividades como a prevenção ou a pós-cura, que se revelarão cada vez mais essenciais, não possuem um status propriamente médico, porque elas não encontram lugar nesse funcionamento dicotômico. Do mesmo modo, a possibilidade de uma intervenção em direção das famílias se encontra esterilizada em seu princípio. Para conquistar esse terreno, é preciso doravante obter a internação do elemento perturbador, ou seja, romper o vínculo familiar. Atomizando, assim, a família,

33 Abordaremos, num próximo livro, esse deslocamento geral da problemática do controle, o que ele implica como transformação das tecnologias de poder e o que deve especialmente à medicina mental. Cf. também J. Donzelot, La políce des families, op. cit. 34 Législation sur les alienes et les enfants assistes, op. cit., II, p. 523. 35 J. Beaudoin e P. Raynier, Assistance psyquiatrique française. Paris, 1965, t. V, p. 200.

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esse procedimento torna impossível o projeto de tratá-la, ou seja, de se imiscuir na estrutura familiar in vivo

36.

Uma tal definição substancialista da alienação já está, portanto, em atraso com relação aos conhecimentos médicos da época. Nas próprias discussões da lei de 1838, faz-se referência a manifestações patológicas que não podem ser abarcadas por essa concepção da alienação mental. "Não se pode considerar como alienados, no sentido da lei, todas as pessoas portadoras de afecção que altera o uso ou o" exercício de suas faculdades intelectuais"

37. Mas todos esses distúrbios psíquicos já conhecidos ―

"congestões cerebrais, acessos de delírio, histerias que perturbam a razão e obscurecem a inteligência"

38 ― correm o risco de sairem do campo de uma medicina mental, cuja

ação reconhecida começa e termina com a internação. Da mesma forma, as discussões sobre a monomania (cf. cap. IV) mostraram que os alienistas não somente percebiam outras dimensões do patológico que não as da alienação "clássica", mas também colocavam uma parte importante de suas ambições no projeto de assumir seu encargo. Porém, face aos monomaníacos (e logo, à massa dos perversos, psicopatas, anormais, etc), estarão colocados diante de um desafio impossível, ou enclausurá-los todos, ou deixá-los cometer seus "delitos" em liberdade. Consequências paradoxal dessa definição tão elaborada, mas tão rígida, do alienado: ela corre o risco de levar a qualificar a contrário de perfeitamente normais todos os perfis psicopatológicos que não entram nesse molde da internação. Implicação evidentemente inaceitável para, uma medicina mental preocupada em realizar na íntegra sua "missão", devendo, para isso, conquistar novos territórios. Mas, a fim de anexar esses terrenos ainda virgens ser-lhe-á preciso romper o quadro asilar.

Entretanto, destruir o paradigma da internação é arriscar-se a deixar à deriva todo o sistema alienista: legislação, contexto da prática, fundamento teórico do conhecimento, concepção do tratamento... O que explica que, durante mais de um século, poucos alienistas tenham tido a coragem de tentá-lo: "A lei de 1838 chegou, nesse ponto, a uma forma de sucesso: a partir de elementos disparatados no início, ela constituiu Uma noção que doravante se imporá de forma absoluta à maior parte daqueles que, na França, abordam o problema da assistência aos doentes mentais"

39. Foi

o próprio "sucesso" que se fechou como uma armadilha.

Essa contradição interna irá, assim, condicionar toda a história da medicina mental. Há como que duas faces da lei, ou melhor, ela desemboca em dois espaços antagônicos entre os quais ela funciona como permutador. Para o exterior ela filtra os que são da competência da medicina mental. Filtro rígido e, em última instância, esterilizante, que corre o risco de paralisar todo o sistema, apesar da flexibilidade

36 Ver, por exemplo, no alienista que foi mais sensível às relações alienação-família, U. Trélat, La folie lucide, op. cit. a que ponto esses limites bloqueiam: Trélat pode apenas dar conselhos, embora, esteja ansioso para intervir. 37 Législation sur lesmliénês et les enfants assistes, op. cit., II, p. 513. 38 Ibid., p. 5J3. 39 G. Daumézon, "Méthode pour rédiger une nouvclle loi sur les malades mentaux", Annales médico-psychologiques, 1946, II, p. 218.

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esboçada pela diferença entre internação compulsória e internação voluntária. Entretanto, se os alienistas, por tanto tempo, foram tão pouco sensíveis à esse perigo de paralisia, é porque, em compensação, para o interior, a lei lhes proporcionava, no asilo, uma realeza quase absoluta. O regulamento de aplicação de 18 de dezembro de 1839, artigo 8, precisa: "O serviço médico, em tudo o que concerne a regime físico e moral, à boa ordem e à política médica e pessoal dos alienados, fica colocado sob a autoridade do médico, nos limites do regulamento interno mencionado no artigo precedente"

40. Uma

vez respeitadas algumas exigências administrativas mínimas, o médico dispõe de uma autoridade praticamente sem limite: "Uma casa de alienados é um pequeno Estado em tutela com seu mundo, suas leis, seus hábitos, seus costumes, sua linguagem. Essencialmente monárquico, o governo não admite divisão dos poderes que proporcionaria urna fonte de conflitos prejudiciais"

41.

Mais do que uma fantasia de poder, trata-se do exercício real de soberania que as sociedades contratuais já não permitem. Mesmo no Antigo Regime, a liberdade do administrador de uma casa de detenção era limitada pela autoridade que procedera à internação que, em geral, decidia também sobre o regime interno (regime de "força", "força parcial" e "liberdade") e sobre a duração da estadia. Agora, é a organização de toda a vida cotidiana do doente que está sob a responsabilidade do "sistema dos pavilhões" descritos por Parchappe

42 e analisado por Goffman

43: o doente progride ou

regride na hierarquia dos serviços em função de um julgamento "médico" que sanciona, de fato, frequentemente, a docilidade que ele experimenta em relação à regras e aos valores da instituição. Quanto á duração da estadia ela depende amplamente do médico na dupla modalidade da internação compulsória e da internação voluntária: é ele quem solicita ao prefeito departamental a saída, no primeiro caso; é ele quem decide, no segundo, ou que, ao contrário, pode solicitar a transformação da internação voluntária em internação compulsória, quando a família pede a saída contra o seu parecer ― e os seus julgamentos são quase sempre ratificados pelo prefeito. Se não de um direito de vida e morte, trata-se, pelo menos, do direito de dar ou tirar a liberdade, de suspender todas as garantias civis de que gozam "normalmente" os cidadãos, e isso por uma duração indefinida.

De que forma o psiquiatra renunciaria à direção desse novo tipo de "falanstério"? "Os alienados reunidos num asilo devem, como dissemos, realizar até certo ponto, a utopia, aliás irrealizável em qualquer outra parte, do falanstério, no qual o trabalho de cada um concorre para o bem estar de todos"

44.

O asilo se propõe, assim, como uma realização, pelo menos aproximada, dos sonhos perfeccionistas dos reformadores sociais que abundam na época (Cabet, Fourrier, as tentativas de comunas agrícolas anarquistas, etc). Curiosa reviravolta através da qual a tentativa mais deliberada de sujeição dos homens assume ares de modelo para

40 Législation sur les alienes ei les enfanls assistes, op. cit., 1, p. 68. 41 Dr. Berthier, "Le surveillant d'aliénés", Journal de médecine mentale, III, 1863, p. 49. 42 M. Parchappe, Des príncipes à suivre dons la conslruction des asiles d'alienes, Paris, 1851. 43 E. Goffman, Asiles, op. cit. 44 A. Foville, Des alienes, op. cit., p. 199.

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as tentativas de redução libertária. Desenvolve-se, nessa base, uma abundante literatura psiquiátrica relativa ao trabalho, que deixaremos de lado, aqui, para não tornar a exposição enfadonha. Via que conduz à moderna terapia ocupacional. A ideologia do tratamento moral fornece uma racionalização direta às tentativas de rentabilização econômica do asilo. O trabalho, na medida em que é aprendizagem da ordem, da regularidade, da disciplina (e logo se dirá que ele é "ressocializante"), irá constituir cada vez mais, o eixo do tratamento moral. Os "benefícios secundários" de ordem econômica serão, evidentemente, benvindos.

Por exemplo, Berthier apresenta, do seguinte modo, a dupla racionalidade do trabalho terapêutico: "Tal é o objetivo primitivo e fundamental do trabalho em nossas casas de saúde: distrair, regularizar, ocupar, pois, na expressão de Franklin, quem nada faz está próximo de fazer mal. Só posteriormente é que surgiu a idéia econômica. (...) O que, no início, era apenas um meio de recreação ou de disciplina tornou-se, assim, por uma feliz extensão, uma preciosa fonte orçamentária"

45. Ainda uma feliz coincidência.

Poder-se-ia fazer uma tipologia dessa literatura psiquiátrica sobre o trabalho, em função da importância que atribui a um ou outro desses pólos. Inspirada numa preocupação de moralização, de rentabilidade, ou nas duas, a referência a Benjamin Franklin e ao "espírito do capitalismo" são o x do problema.

Essa justificação médica da super-exploração dos doentes irá orientar os aspectos mais odiosos da organização da vida asilar: chantagem sobre o doente através da distribuição ou da retenção de pequenos privilégios, reclusão perpétua dos "bons doentes" cujo trabalho gratuito é indispensável ao equilíbrio econômico da instituição, etc. Essas práticas foram denunciadas recentemente." Elas mantiveram uma espécie de utopia autárquica, segundo a qual, esse "pequeno governo absoluto" poderia prover, por si mesmo, a todas as suas necessidades. Assim, o espírito tecnocrático avant la lettre do barão Haussmann concebeu um plano de equilíbrio financeiro dos asilos baseado, ao mesmo tempo, no trabalho dos doentes e na admissão de um número judicioso de internos pagantes

46. Só a auto-reprodução do sistema não é garantida, já que as relações

sexuais são rigorosamente proibidas. Não obstante, o recrutamento é sempre certo.

Não se trata de um simples sonho de administrador (aliás, aparentemente, Haussmann não era um sonhador). Os psiquiatras associaram-se amplamente à idéia, manifestando, assim, mais uma vez, seu apego ao mandato de gestionários responsáveis. Em termos mais gerais eles se identificaram com "essa organização formada artificialmente e que apresenta uma força de coesão irresistível que acaba, cedo ou tarde, vencendo todos os obstáculos"

47. Como poderiam agir diferentemente, já que ela

nada mais faz do que multiplicar-lhes o próprio poder?

Assim, o movimento alienista, em sua maioria, será levado a pensar suas possibilidades de desenvolvimento através do simples crescimento quantitativo do modelo asilar. Mesmo se esse programa tivesse sido seguido ― o que não foi o caso por

45 Dr. Berthier, "Du travail com me élément de thérapeutique mentale", Journal de médecine mentale, 1863, III, p. 119. 46 B. Haussmann, Mémoires, op. cit., p. 229. 47 E. Renaudin, Etudes médico-psychologiques sur l'aliénation mentale. Paris; 1854, p. 8.

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razões administrativas e financeiras, que evocamos acima ― ele estava condenado a deixar escapar dimensões qualitativas do patológico cuja proporção, em relação aos "casos" que implicam em internação iria se revelar cada dia maior.

O modelo asilar condiciona, assim, por sua vez, uma espécie de modelo ideal de doente que compete à psiquiatria: indigente, com grandes episódios patológicos espetaculares, perigoso ou incurável. Tal será o pedestal da prática alienista e, em suma, seu material privilegiado. Basta descrevê-lo para dar-se conta a que ponto ele é limitado, Psiquiatria para pobres, mas também pobre psiquiatria, que é obrigada a "escolher" seus sujeitos em função de critérios essencialmente negativos: os que estão mais afastados da cultura médica, os que têm mais chances de se revelar incuráveis, os que são os mais pobres, tanto em dinheiro como em "insigth", para recompensar o médico por suas penas. Este já devia estar sonhando com o Yarvis syndrom

48. Em todo caso, devia

observar com pesar o aumento dos "maluquinhos": toda uma clientela mais rica, mais interessante, mais gratificante, mais numerosa, que teria que abandonar à prática privada ou universitária

49.

Público-privado

Existiram, sem dúvida, às margens do sistema, algumas regulações que tornaram um pouco mais flexível o caráter caricaturalmente rígido de seu funcionamento. Inicialmente, o doente modal, anteriormente situado no asilo é, efetivamente, um tipo ideal: seguramente existiam casos mais "interessantes", do ponto de vista médico e social, inclusive no serviço público. Mas foi sobretudo o embrião de um setor privado que começou a drenar um outro tipo de população. Trata-se de uma organização já complexa, apesar do caráter fragmentário das informações que se tem sobre seu funcionamento real.

Em primeiro lugar a instituição, hoje esquecida, dos internos pagantes nos asilos públicos. Somente os indigentes se beneficiam da gratuidade da assistência. Mas os outros doentes podem pagar um preço da diária, e, por isso, entrar em uma das três ou quatro classes, cujos privilégios aumentam em função do preço da pensão

50. Se a última

classe difere pouco do regime comum, na primeira, os alienados afortunados podem ter até seus próprios serviçais. Fenômeno que não deve ser negligenciado, mesmo do simples ponto de vista quantitativo. Em 1874, dentre 40.804 reclusos nos "estabelecimentos especiais" (excluídas as casas de saúde privadas) os inspetores gerais Constans, Lunier e Durnesnil calculam 5.067 que não estão no regime comum

51.

Esses internos ajudam a garantir o equilíbrio financeiro do estabelecimento. Mas eles se beneficiam, também, de um regime mais personalizado. Em que medida seu

48 Young, Attractive. Rich, Verbal, Intelligenl, Sophistlcated, "Yarvis", sigla utilizada na América do Norte para significar o cliente ideal da psicanálise, tipo exatamente inverso do paciente de asilo. 49 Freud teve a lucidez de ver nela um mercado a assumir e a honestidade de reconhecê-lo como uma motivação para "inventar" a psicanálise. Cf. o início de Atavie et la psychanalyse. 50 Renaudin recomenda três categorias de internos nos asilos públicos e descreve sumariamente suas características: Commentaires médico-administratifs, op. cit., p. 327-328. 51 Constans, Lunier e Durnesnil, Rapport sur le sertice des alienes en 1874, op. cit., p. 153.

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"quadro clínico" seria diferente de todos os outros doentes? É difícil responder com certeza, já que não existe qualquer documentação precisa sobre a questão. Mas é muito provável que essas facilidades deveriam encaminhar para o asilo populações cujas características não somente sociais mas também psicopatológicas, diferiam das dos indigentes.

A flexibilidade do regime era ainda mais manifesta nas casas de saúde privadas, especializadas no tratamento de alienados. O mesmo relatório de 1874 repertoria vinte e cinco dessas casas, em 1874. Agrupam, então, 1.632 internos, quase sempre à razão de menos de cem por estabelecimento

52. Elas também compreendem classes

53. Algumas

delas foram fundadas por alienistas e não dos menores: a de Esquirol, perto do Jardin des Plantes, transferida em seguida para Ivry, e que ele dirigia com seu cunhado Mitivié; a casa de saúde de Vanves, fundada por Falret e Voisin; uma outra em Paris, dirigida por Brière de Boismont... Um certo número de alienistas se divide, portanto, entre a prática privada e a pública. Outros se dedicam exclusivamente à prática privada como o sobrinho de Pinel, Casimir, que possui e dirige o castelo Saint-James em Neuilly. Outros estabelecimentos, enfim, pertencem a particulares, mas empregam médicos residentes ou os que aí dão consultas, como a pensão Belhomme, onde Pinel dava plantões antes da Revolução, ou a casa de saúde Blanche onde Auguste Comte e Guy de Maupassant foram tratados

54. Negócios lucrativos, sem a menor dúvida, já que o preço da pensão, na

casa de saúde de Esquirol era de 6.000 francos por ano, soma que deve ser comparada com o preço da diária do regime comum nos asilos públicos que era de franco a 1,25 francos (6.000 era também o salário anual de um médico-diretor de asilo de primeira classe).

Existia, ainda, um terceiro tipo de estabelecimento, cuja função é difícil de definir por falta de documentos: as casas de saúde privadas não especializadas no tratamento de alienados. Sabe-se que são numerosas, da ordem de duzentas em Paris. Não são regidas pela lei de 1838 e, portanto, em princípio, não podem receber alienados. Mas ― como ainda acontece atualmente ― algumas dentre elas deviam acolher um certo número de,alienados de boa família, evitando-Ihes esse rótulo. E elas deviam, sobretudo, drenar nas classes afortunadas uma parte dessa patologia mais leve, que não implica na alienação no sentido estrito definido pela lei de 1838.

Enfim, os alienistas deviam desempenhar, frequentemente, um papel de consultores junto aos seus confrades: membros da comissão administrativa do hospital ou do Conselho Geral, relações mundanas, etc, que podiam pedir-lhes conselho quando um membro da família ou alguém de suas relações manifestavam distúrbios psíquicos.

52 Ibid., p. 154. 53 C. Pinel, "De Pisolement des alienes sous le rapport hygiénique, pathologiquc e legal", Journal de médecine mentale, 1861, I, p. 221. 54 Cf. na rubrica "Variétés" do Journal de médecine mental, 1863, III, p. 398-399, a lista das casas de saúde privadas que, "na capital ou no subúrbio oferecem um refúgio para os internos das classes elevadas", com o nome dos diretores. Constata-se, assim, por exemplo, que três casas tinham o nome da família Brière de Boismont.

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Esboço da constituição de uma prática psiquiátrica privada, cuja história, aparentemente, não foi feita

55.

Qual teria sido o impacto desse sistema privado sobre o sistema público? Casimir Pinel, que é, aliás, ao mesmo tempo juiz e parte, não esconde suas preferências: "Apesar da grandiosidade das construções, da boa administração e da sábia direção médica, por seu próprio destino que é de receber os pobres, os asilos públicos não poderiam, quando a opção é possível, entrar em competição com as casas de saúde privadas"

56. Entretanto,

apesar dessa concorrência, limitada aliás, já que os dois sistemas não se dirigem à mesma população, o privado chegou a ter uma função de modelo, acentuada pelo fato de certos alienistas terem os dois tipos de prática. O próprio Philipe Pinel esboçou um quadro particularmente elogioso da casa de saúde de Esquirol: "No estabelecimento, tão conhecido e tão digno de sê-lo, do Doutor Esquirol, cada alienado tem um empregado exclusivamente vinculado a seu serviço, que dorme sempre a seu lado e até no seu quarto quando se julga necessário"

57. "E durante as visitas familiares ou o passeio que o

Doutor Esquirol aplica, com habilidade, o tratamento moral, no declínio da loucura ou durante a convalescência. Ele consola um, encoraja outro, conversa com um melancólico e procura dissipar suas quiméricas ilusões. (...) Logo que o alienado manifesta sinais inequívocos de convalescência, ele é admitido à mesa comum com o médico. (...) Reúnem-se para tomar o café da manhã, para jogar bilhar, para realizar certos jogos; uma parte da tarde se desenrola num vasto salão, no prazer da música, e quando não se vê inconveniente se dá liberdade ao convalescente para ir passear com seu empregado no Jardin des Plantes ou então de carro, no campo"

58.

A psiquiatria tem grande apreço pelas "experiências-piloto" (cf. atualmente "a experiência do XIII arrondissement" ou a clínica de La Borde) que servem frequentemente como cobertura para uma situação geral muito menos brilhante. O tratamento moral teria tido, aos olhos dos médicos, uma tal credibilidade se não tivesse sido pensado, pelo menos em parte, em função desse prisma miniaturizado? Não seria uma extrapolação aventurosa ― ou uma racionalização vantajosa ― transportá-lo, como tal, para asilos cada vez mais populosos?

59.

55 Na falta de documentos da época, citemos uma opinião recente, mas autorizada, sobre uma situação cujos vestígios ainda encontramos atualmente, sobretudo na província: "(O psiquiatra) difunde, numa certa medida, seu saber psiquiátrico e o delega, em geral, aos diversos notáveis a quem, normalmente, é levado a freqüentar, no exercício de suas próprias funções de notável na província. Em geral, ele é ao mesmo tempo diretor do asilo departamental; por isso, ele mantém contatos com os conselheiros gerais que são, ao mesmo tempo, prefeitos municipais, para a discussão do orçamento do hospital. Assim também os diferentes chefes de serviços departamentais estão em contato com ele; o inspetor da Academia fala da professora primária que apresenta distúrbios mentais, os prefeitos municipais lhe falam, etc". G. Daumézon, in Histoire de la psyquiatrie de secteur, Recherches, nº 17, março de 1975, pf 22. 56 C. Pinel, "De l'isolement des alienes", loc. cit., p. 221. 57 Ph. Pinel, Traité médico-philosophique..., op. cit., p. 227. 58 Ibid., p. 374-375. 59 Cf. G. Lanteri-Laura, "La chronicité dans la psyquiatrie française moderne", Annales, 1972, III. Como os historiadores da psiquiatria Lanteri-Laura tende, entretanto, a acentuar demasiadamente a oposição entre uma primeira psiquiatria esquiroliana, humanista e liberal e sua degradação nos grandes asilos do final do século XIX, quando o organicismo levou os médicos a se resignarem com a incurabilidude dos doentes. Essa evolução não é desprezível (cf. infra, cap. Vil), mas as características essenciais da prática alienista (e, em primeiro lugar, o autoritarismo do médico e o tratamento em massa dos doentes), já estão dadas desde Pinel.

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Aliás, não foi somente para o tratamento moral que essa função de modelo pôde funcionar. É assim que se sabe, ao acaso de uma leitura (já que não existem fontes específicas sobre as casas de saúde privadas) que o "estabelecimento de Ivry fundado por Mitivié e Esquirol, e sobretudo o pavilhão dos agitados, construído inteiramente, serviu durante muito tempo como modelo para os médicos especiais e para os arquitetos e foi o ponto de partida para as melhorias que foram feitas, a partir dessa época, na construção dos asilos de alienados"

60.

A existência embrionária de um setor privado, no que podemos julgá-la, deve ter tido, portanto, um papel mais importante do que se diz em geral, no que se refere ao equilíbrio da totalidade do sistema. Ele permitiu aos mais ricos, escapar à miséria do regime comum. Ele deve ter atendido, nas classes mais altas, quadro clínicos mais "leves" do que os apresentados pelo grosso da população asilar: alienados sem dúvida, menos perigosos em geral, apresentando sintomas que se aproximavam mais dos distúrbios neuróticos. Enfim, ele forneceu "modelos" de organização e esquemas de tratamento que ajudaram a cobrir com um véu pudico a grande miséria dos asilos públicos.

Casimir Pinel opõe, assim, os asilos públicos, nos quais "é sobretudo com a higiene e a perfeita disciplina que é preciso contar", às clínicas, nas quais, "só tendo que cuidar de um pequeno número de doentes, o médico, ajudado por um ou dois assistentes, pode muito bem excercer sobre eles uma ação direta e constante: em outras palavras, unir para eles á totalidade das influências higiênicas com os benefícios do tratamento moral"

61. Sem dúvida. Mas a habilidade dos alienistas foi fazer dessas

"influências higiênicas" e das exigências disciplinares que comandavam o tratamento em massa dos alienados indigentes, uma parte integrante e, mesmo, a parte essencial do próprio tratamento moral. E, se existem certas diferenças entre esses tratamentos disciplinares coletivos e uma intervenção personalizada, Falret chegará a fazer dessa disparidade, que se explica por uma diferença de classe entre as populações atendidas, um atraso com relação ao saber: "O tratamento moral pode ser dividido em tratamento geral ou coletivo e em tratamento individual. (...) Se a ciência estivesse mais avançada, o tratamento individual poderia ocupar o primeiro plano. (...) No atual estado de nossa medicina, o tratamento coletivo é o nosso recurso mais precioso. O tratamento individual colocado como sistema exclusivo conduziria, se não se prestasse atenção, à negação de qualquer regra geral na terapêutica, à negação de qualquer ciência; transformando, assim, a Ciência em arte, abandonaríamos o doente aos caprichos do instinto ou da inspiração do momento"

62. Em compensação, o tratamento coletivo "é

aplicável a todos os doentes pois ele visa disposições comuns a todos"63

. Oscilação significativa: o que acaba de ser apresentado como uma quase superioridade do tratamento coletivo aparece, agora, como um déficit do ponto de vista do saber: "Desejaríamos que os Senhores tivessem a firme convicção de que, se a ciência especial

60 Ch.Loiseau, "Eloge de Mitivié", Annales médico-psychologiques, março de 1872, p. 124. 61 C. Pinel, "De l'isolement des alienes", loc. cit., p. 224. 62 J. P: Falret, Des alienes et des asiles d'aliénés, op. cit., p. 682. 63 Ibid., p. 686.

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que cultivamos está, infelizmente, atrasada na relação individual, pelo menos possuímos alguns princípios de tratamento geral, aplicados com sucesso nos asilos mais bem dirigidos de todos os países"

64. Evidentemente, a conciliação real ― que permite estar

"seguro" ― é de ordem social e política: cuidados personalizados para aqueles que os pagam, arregimentação das massas de pobres. Medicina "liberal" e medicina coletiva, tudo é melhor no melhor dos mundos. Para o comum dos homens, "a visão da submissão geral prepara para a obediência individual"

65, ao passo que o rico já começa a

liberar sua subjetividade numa relação dual. Esse duplo registro é o que sempre funcionou na medicina mental. Sabe-se que não saímos desse regime que qualifica a prática psiquiátrica e psicanalítica como práticas de classe

66. Mas sua

complementaridade se dissimula atualmente, com a psicanálise, por meio de racionalizações mais sutis do que a de Falret.

Os corretivos e mesmo os modelos que o embrião de uma prática de tipo privado traz para o sistema geral não são, portanto, negligenciáveis. Entretanto, eles permanecem relativamente marginais. O centro de gravidade das atividades psiquiátricas é, efetivamente, e de longe, o asilo, o hospital para os pobres, os loucos graves e os crônicos, espaço inteiramente dominado pelas coerções rígidas da internação. O que explica, ao mesmo tempo, a extraordinária permanência e a fragilidade da síntese asilar. Ela atravessou toda a história da psiquiatria como "boa forma" no sentido gestáltico da palavra. E, com isso, ela ofuscou, e duplamente, os olhos de seus partidários.

Já no mundo da internação, o caráter sistemático da coerência asilar inspirou uma espécie de racionalismo mórbido que serviu de tela face a situações reais cada vez mais degradadas: superpopulação, miséria material, ausência de atividades terapêuticas, violência cotidiana, etc., foram como que sublimadas por um discurso racional próximo ao delírio sobre os benefícios do isolamento, o rigor médico das classificações, a eficácia do tratamento moral... Longo sono dogmático do psiquiatra que continuou a se acreditar médico quando nada mais era do que o guardião da ordem asilar, esse imenso cemitério que tragou milhões de existências desesperadas.

Também fora do asilo a dominação da forma asilar deixou sem status reconhecido todo um conjunto de práticas, através das quais, a medicina mental podia igualmente, sem dúvida, melhor, satisfazer suas ambições. Contudo, como já vimos, os investimentos extra-hospitalares da psiquiatria são praticamente contemporâneos de sua vitória asilar. Mas eles serão obrigados a se desenvolver de uma maneira, senão clandestina, pelo menos subordinada àquelas pelas quais a lei de 1838 confisca a legitimidade oficial.

64 Ibid., p. 699. 65 Ibid., p. 707. 66 Uma característica muito pouco observada corrige o funcionamento de classe da psiquiatria, mas somente para os doentes mais graves e em detrimento deles. Quanto mais longa e seriamente doente estiver uma pessoa, mais perderá seus privilégios de classe. A família se cansa de consultar sumidades médicas e de pagar, sem resultado, contas hospitalares proibitivas. O louco de boa família pode se tornar, assim, um crônico de asilo, mas depois de um processo mais lento e menos necessário do que o do indigente.

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CAPÍTULO VII A PASSAGEM: DA IDADE DE OURO AO AGGIORNAMENTO.

Em suma, tentamos recompor a articulação de uma máquina. De que maneira a disposição das peças do complexo asilar e ó emaranhado de suas tramas produz um certo número de efeitos: ela conquista um mercado, promove seus agentes e seleciona seus pacientes, codifica comportamentos, trabalha um tecido institucional, traça fronteiras e estabelece cabeças de ponte em direção a outras instâncias, etc. A continuação consistirá em operar a mesma montagem/desmontagem do aparelho contemporâneo. Portanto, propósito que, mesmo em seu recurso à história não é propriamente de ordem histórica e cuja realização não implica em seguir o desenvolvimento cronológico de todas as etapas que levaram à metamorfose atual.

Entretanto, a novidade da situação psiquiátrica contemporânea se originou lentamente das trilhas deixadas pela antiga organização. As inovações mais imprevistas aparentemente, marcam igual número de tentativas de escapar às antigas contradições. É nesse sentido preciso que a pré-história e a história da medicina mental são condições necessárias para a compreensão de sua modernidade. Nem é mesmo certo que uma alternativa que abstraísse inteiramente do antigo complexo asilar pudesse ser pensada atualmente. Em todo caso, é a partir dessa herança que ela deverá se constituir. Portanto, é preciso, pelo menos, indicar as principais linhas de decomposição e de recomposição que conduzem à organização atual da paisagem psiquiátrica.

Primeiras dificuldades

Já em 1864, Jules Falret escreve: "Ataca-se, de todos os lados, á lei de 1838 e os asilos de alienados. Na imprensa, nos livros, rios congressos científicos, procura-se combater os princípios que servem de base aos nossos asilos há sessenta anos. Propõe-se derrubar e destruir tudo, e o que se quer é nada menos do que estabelecer uma reforma radical nas idéias e nos fatos. Há alguns anos, homens sensíveis e convictos, mas que não conhecem suficientemente os alienados, pregam uma verdadeira cruzada contra a organização atual dos estabelecimentos de alienados, e a onda aumenta a cada dia, ameaçando invadir tudo e realizar uma verdadeira revolução nos princípios que dirigem os médicos e os administradores dos asilos de alienados desde o começo deste século"

1.

1 Discussion à la Societé médico-psychologique, in Annales médico-psychologiques, 1865, p. 248.

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A partir de 1860 aparece, com efeito, uma série de críticas que, apesar de não serem combinadas, atingem simultaneamente a todos e a cada um dos elementos da síntese alienista.

1. A lei

"A lei de 1838 foi muito bem recebida no momento de sua promulgação: durante vinte anos ela foi elogiada sem reservas e várias potências estrangeiras a copiaram. Em torno de 1860 se produziu uma reviravolta no público; críticas ardentes foram dirigidas contra essa lei que tinha sido ratificada pela opinião pública e, a fim de responder às reivindicações que se manifestavam insistentemente, o governo criou, em 1869, uma comissão encarregada de estudar as reformas que podiam ser utilmente introduzidas"

2.

Esse será o primeiro dos vinte projetos de reformas, cujo ciclo ainda não terminou pois, no momento em que este livro é publicado, a Comissão das liberdades da Assembléia Nacional retomou o problema. Verdadeira serpente marinha, mas cujo exame reserva, no entretanto, alguns ensinamentos.

O problema foi levantado pela denúncia de internações arbitrárias. Tentativa de vingança por um poder judiciário brutalmente destronado pela lei. Mas também existe um fundo político: a imprensa, amordaçada pelo Império, procura alvos indiretos a fim de condenar o absolutismo do regime. Assim, a primeira questão surge em torno de um certo Sandron, internado quando dizia poder comprometer, por meio de cartas que estariam em seu poder, uma importante personalidade que recentemente aderira ao Império

3. Perigoso perseguido-perseguidor, ou opositor político a quem se faz calar?

Contudo, não se trata claramente de um conflito da "esquerda" contra a "direita". Pouco depois, uma enfermeira do asilo de Châlons-sur-Marne lança uma petição que denuncia "a onipotência médica exercida sem controle sério". Entretanto, o inquérito, ou o que dele relatam os alienistas, descobre que a enfermeira teria sido inspirada pelo capelão do hospital. "Obscurantismo religioso" contra as "luzes da ciência": novo episódio

4.

Não obstante, o Senado toma a petição a sério, nomeia uma comissão de inquérito, mas seu relator isenta a lei em 1867

5. Entretanto, a oposição retoma a

questão e uma primeira proposição de revisão da lei é apresentada diante da Câmara dos Deputados em 1870 pelo próprio Gambetta. Não levará a nada por causa dos acontecimentos que irão provocar a queda do Império. O problema é que todas as que se seguem também não levarão a nada, quaisquer que sejam as razões conjunturais para o adiamento.

Essa primeira tentativa de revisão era, no entanto, uma das mais audaciosas. Diferenciando-se da maior parte das que virão em seguida, ela não se contenta em

2 M. Proust, "Rapport sur Ia législation relative aux ãliénés criminels", Bulletin de la Societé générale des prisons. Dez. 1879, p. 882. 3 Cf, H. Desruelles, "Histoire des projetos de révision de la loi de 1838", Annales médico-psychologiques, 1938, p. 585 e ss. 4 Cf. C. Pinel, "Quelques mots sur les asiles d'aliénés èt la loi de 1838 à propôs d'une pétition au Sénat", Journal de médecine

mentale 1864. 5 Cf. Th. Roussel, Rapport au Sénat de la commission relative à la révision de la loi du 30 juin 1838, op. cit.

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propor o reforço da autoridade judiciária. Ela propõe a constituição de um verdadeiro júri que teria o poder de decidir soberanamente sobre as admissões

6. Contém,

igualmente, violentos ataques contra "a resistência obstinada da medicina alienista que fez a lei, que a aplica e que dela vive". Daí à escola alienista a permissão de elevar à dignidade de princípio de jurisprudência esse aforismo que pode ir longe demais ― a loucura só é visível para o homem da arte ― e dizei que francês está seguro de não ir dormir esta noite em Charenton"

7.

É inútil entrar nos detalhes dos projetos sucessivos de revisão. Quase todos se caracterizam por seu juridicismo. Trata-se de fazer novamente do poder judiciário, por meio de variantes técnicas, um parceiro ativo no processo de seleção. Essa crítica jurídica suscita acusações, algumas vezes violentas, contra a escola alienista. Mas a caça ao arbítrio focaliza a atenção dos contestatários. O que se procura é um conjunto indiscutível de garantias que deveriam ser inscritas na letra da lei e retificar o deslocamento de poder que os legisladores de 1838 ratificaram sob a pressão dos alienistas. Esquematicamente poder-se-ia, portanto, interpretar essas polêmicas como tentativas, por parte do poder judiciário e das orientações legalistas que o sustentavam, de ir à forra em relação a 1838.

Face a esses questionamentos a posição dos psiquiatras em defesa da lei é notavelmente homogênea ― no interesse dos doentes, evidentemente. Lembremo-nos da opinião de Falret, para quem as disposições da lei eram "aplicáveis em todos os tempos e em todos os países, tão indeléveis quanto a própria alienação"

8. Com o passar

dos tempos, alguns alienistas admitem alguns retoques, algumas adaptações técnicas menores, exclusivamente no que diz respeito às condições de aplicação. Mas a lei permanece excelente "em seu princípio". Sobre isso não há a menor dissonância:

"Não nos cansamos de dizer que a loucura cria, para quem dela sofre, condições bastante excepcionais. (...) A lei de 1838 é boa: se houve abusos, e M. de Bosredon pôde dizer que não houve nenhum indicado pela comissão, é porque a lei não fora rigorosamente executada. Ela responde às necessidades da sociedade moderna, protege o indivíduo através das precauções que ela acumulou em torno da admissão, através das facilidades que propiciou para as saídas. Os legisladores que a prepararam, as Câmaras que a aceitaram, quiseram que dominasse em toda linha a idéia de doente a tratar, a curar. Dando ao médico o direito de decidir o que seria útil, oportuno de ser feito, eles deram ao corpo médico francês um testemunho de alta confiança, da qual ele sempre se mostrou digno"

9.

Portanto, diálogo de surdos, mas que se deve ao fato de que o problema ainda é reduzido às suas dimensões mínimas: reforçar as garantias legais da aplicação da lei.

6 Os alienistas ridicularizaram muito a proposta de constituir um júri que incluísse profanos. Contudo, esse foi o procedimento que se impôs em todos os Estados na América do Norte; cf. B. Ennis, L. Siegel, The Righls of Mental Patienls, New York, 1973. 7 Citado in Th. Roussel, Rapport au Sénat de la commission relative á la révision de la loi du 30 juin 1838, op. cit., p. 298-299. 8 J. P. Falret, Des alienes et des asiles d'aliênés, op. cit., p. 713. 9 A. Motet, "Des alienes et de la responsabilité médicale", discurso pronunciado na Sociedade de Medicina de Paris, Journal de médecine mentale, X, 1870, p. 87.

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Somente marginais como Garsonnet10

colocam em questão seu princípio: "Coisa estranha: permitiu-se à medicina alienista fazer uma lei e não se cuidou de perguntar-lhe se ela possuía uma ciência. (...) O que é, definitivamente, a lei dos alienados? Nada mais do que a terapêutica alienista elevada à dignidade de instituição; julgando-se a terapêutica, julga-se também a lei"

11. Mas é somente a partir do século XX que as críticas

começarão a levar em consideração essa relação entre a legislação e o problema da natureza da doença mental. Um certo número de psiquiatras compreenderá, então, que a lei impõe uma definição demasiado estreita de alienação e, a questão de sua revisão abrirá um debate interno no movimento

12.

2. O dispositivo institucional

A crítica institucional cedo marcou incisões mais profundas na construção alienista pois foi mais interna e revelou contradições que começavam a se colocar ao nível da prática cotidiana.

Na sessão de julho de 1860 da Sociedade Médico-Psicológica13

surge uma discussão a propósito da famosa colônia agrícola de Gheel na Bélgica que, desde a Idade Média, recebia alienados em regime de liberdade parcial, mantidos sob a responsabilidade de camponeses. A Sociedade decide que uma comissão vá a Gheel e Jules Falret lê o relatório na sessão de 30 de dezembro de 1861. Belo monumento de etnocentrismo alienista: "Fica-se verdadeiramente estupefato e assustado quando se vê os camponeses deixarem circular livremente os alienados no seio de suas famílias, de suas filhas e das crianças, confiar-lhes armas e ferramentas. (...) O sentimento que predomina em Gheel (...) é a confiança, na verdade exagerada, nos alienados e em seu caráter inofensivo"

14. "Mesmo desse ponto de vista do tratamento geral exercido pelas

localidades e pelas pessoas, a ausência total da ordem, da regra e da disciplina, às quais

10 Garsonnet, mestre de conferências na Ecole Normale, teve duas estadias em Cha-renton, por causa, diz ele, de "desvios momentâneos". Tem a impressão de que teria permanecido lá indefinidamente sem as intervenções amigáveis devidas à sua posição social. Ele representa, como mais tarde J. Lemoine, autor de um outro eloqüente panfleto contra a lei de 1838 (Le regime

des alienes et la liberte individuelle, op, cit.), esses "privilegiados" que, introduzidos no aparelho psiquiátrico, conseguem se safar graças às suas relações; somente eles, também, dentre as vítimas do sistema, conseguem fazer com que seus testemunhos ultrapassem os muros do asilo. O tom e o nível de sua crítica são inteiramente diferentes das dos profissionais e dos administradores. Garsonnet, especialmente, articula todos os elementos que iremos encontrar nas contestações mais modernas da psiquiatria. Se a originalidade da antipsiquiatria foi, efetivamente, em comparação com as críticas técnicas, de denunciar esse novo tipo de relações-de-força que a medicina instaura por sob as relações-de-sentido das racionalizações terapêuticas, Garsonnet é, efetivamente, sem nenhum anacronismo, um antipsiquiatra que denuncia, em todos os níveis da prática alienista, "essa autoridade médico-legal exorbitante, esse despotismo ilimitado que ultrapassa o do plantador colonial sobre os negros" (La loi des alienes, necessite d'une reforme, Paris, 1869, p. 27). Porém, o fato mais significativo é que tais críticas ficaram sepultadas durante um século, destruídas pela cumplicidade de um público indiferente e de um corpo de profissionais dedicado à defesa dos seus privilégios. 11 M. Garsonnet, La loi des alienes, necessite d'une reforme, op. cit., p. 41 e 43. 12 Essa questão será tratada num próximo livro. 13 A Societé médico-psychologique agrupava os principais alienistas. Reunia-se todos os meses e discutia questões da atualidade, em geral, baseada num memorial lido por um dos membros ou por um correspondente da província ou do estrangeiro. Certas discussões sobre pontos-chave (a monomania, a influência da civilização sobre a loucura, a degenerescência, os diferentes modos de assistência aos alienados, etc).ocuparam várias sessões e ressurgiram várias vezes. Os relatórios das sessões encontram-se nos Annales médico-psychologiques e constituem uma das melhores fontes para uma análise refinada da evolução do meio psiquiátrico. A revista tem sido publicada sem interrupção desde 1843, a Sociedade Médico-Psicológica ainda realiza suas sessões, porém, após 1945, passou a agrupar a corrente mais conservadora da profissão. O Journal de médecine mentale, dirigido por Delasiauve também ê uma fonte preciosa, mas só foi publicado durante dez anos (1860-1870). 14 Annales médico-psychologiques, 1862, p. 15.

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todos os médicos alienistas atribuem tanta importância, deve ser considerada como uma lacuna bastante lastimável da organização interior em Gheel"

15.

Não obstante, como é obrigado a reconhecer que não há acidentes, Falret não pode condenar inteiramente a fórmula. Portanto, conclui salientando as analogias entre a colônia agrícola e o asilo e preconizando o reforço do controle médico: "Gheel só pôde e só poderá se aperfeiçoar aproximando-se dos asilos fechados. Estes, por sua vez, só poderão melhorar caminhando, com prudente lentidão, no sentido da liberdade. (...) Gheel tem mais a ganhar se aproximando dos asilos do que estes se aproximando de Gheel"

16.

Mas a discussão reaparecerá em 1864. Dessa vez o pretexto é a leitura da comunicação de um obscuro médico de província, nem mesmo alienista, que elogiava a pequena fazenda-asilo, pouco medicalizada, de Leyme, na qual os alienados, voltados para os trabalhos nos campos, gozavam de uma certa liberdade. A discussão durará um ano inteiro, e os principais representantes da escola intervirão, ampliando progressivamente o debate. A tendência geral é sempre de repreender o relator por sua ingenuidade e por sua ignorância dos princípios alienistas. Aparecem, porém, surdas inquietações. Em particular, Morel intervém com vigor acentuando a superpopulação e, sobretudo, a indiferenciação dos serviços: "Esses estabelecimentos se tornaram inteiramente insuficientes. Mas não é nisso que consiste o mais grave de uma situação já tão deplorável. Não somente estamos assoberbados pelos alienados, como também por categorias de enfermos que poderiam ser tratados em hospitais ou em hospícios comuns. (...) Os idiotas, os imbecis, os cretinos, os epilépticos, em outras palavras, uma multidão de não-valores sociais tendem a fluir para os asilos onde se imobilizam e tomam o lugar dos verdadeiros alienados"

17.

Entretanto, essa é uma opinião minoritária. Significativamente, é um médico estrangeiro, Mundy, quem desenvolve um novo "sistema familiar" o qual pretende substituir ao dos asilos: "A vida em família sob controle de um médico, a liberdade regulada e o trabalho facultativo ao ar livre, eis portanto, os pontos capitais do novo sistema"

18. Não é ouvido. Aliás, ele atenua seu pensamento diante da douta assembléia.

Num escrito publicado logo após, denuncia "esses antros horríveis onde os infelizes loucos são condenados à incurabilidade e à morte"

19. E um outro médico, este francês,

mas não psiquiatra, afirma em 1864, para apoiar a petição ao Senado contra a lei de 1838, que o asilo croniciza e mata

20. Opiniões extremas que não deixam de ser, como as

críticas à lei do tipo da de Garsonnet, posições de marginais. Jules Falret possui, quanto aos asilos, uma posição que é estritamente análoga à que seu pai defendia quanto à lei: "Uma reforma radical seria um passo para trás, e não para frente. Depois de tantos ataques que partem de todos os lados, os asilos de alienados permanecerão de pé

15 Ibid., p. 28. 16 Ibid., p. 31. 17 Annales médico-psychologiques, 1864, p. 137 e 143. 18 Ibid., p. 291. 19 G. Mundy, Sur les divers modes d'assistance publique appliquês aux alienes, Paris, 1865. 20 L. Turck, L´êcole alíêniste française, l'isolement des fous dam les asiles, l'influence détestable de cevx-ci, Paris, 1864.

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porque respondem a necessidades sociais e médicas que são comuns a todos os tempos e lugares e, embora se transformando e se aperfeiçoando sucessivamente, permanecerão embasados nos mesmos princípios gerais que, realmente, se relacionam com as verdadeiras necessidades dos alienados. (...) Os outros modos dê assistência (...) nada mais serão do que modos acessórios e complementares, agrupados em torno do sistema principal representado pelos asilos fechados"

21.

Não obstante, o germe está lá. Se analisarmos melhor, duas linhas se esboçam através dessas primeiras críticas institucionais dos anos sessenta (ou três, se contarmos a posição dos tradicionalistas partidários do status quo). Há uma crítica técnica do isolamento, que visa tornar mais flexível suas modalidades de aplicação. Assim, Moreau de Tours emite um julgamento positivo sobre Gheel, que é percebido por ele como meio de aperfeiçoar o quadro asilar, de lhe propiciar, se podemos dizer assim, ar puro, anexando-lhe um sistema de colônias agrícolas. E, por trás dessa modificação institucional o que é visado é a maior flexibilidade dos princípios alienistas, fiel a seu verdadeiro espírito: "Seria mesmo necessário internar os doentes a fim de isolá-los? As duas palavras, estão longe de serem sinônimos no seu sentido gramatical; e o são ainda menos na acepção científica. Isolar um alienado é romper completamente os hábitos no meio dos quais surgiu sua loucura, é afastá-lo das localidades, das coisas e das pessoas que não são completamente estranhas aos distúrbios de sua inteligência. (...) Em Gheel, todas essas condições são fielmente preenchidas. Os lugares em que o doente mora, os indivíduos com os quais se relaciona diariamente, os trabalhos, as distrações, tudo é novo para ele. Não está separado de toda a sociedade, e não pode deixar de encontrar, nessa de que se torna membro, impressões capazes de constituírem digressões mais felizes para suas idéias delirantes"

22.

Posição propriamente reformista. Trata-se de recuar em relação a interpretações demasiado excludentes, caricaturais, da doutrina, como a identificação absoluta do isolamento à internação num espaço fechado. Mas o dispositivo institucional, assim adaptado, permanece o instrumento adequado para a terapêutica da alienação mental. Nessas mesmas bases pode-se, assim, estabelecer distinções mais flexíveis, como por exemplo entre a loucura recente e a que tende a se tornar crônica, entre os alienados capazes de trabalhar e os que não o são, etc. Linas tem o mesmo parecer: "Sob muitos aspectos (disciplina, vigilância, isolamento) ele /o asilo/ convém particularmente à loucura recente, aguda ou paroxística. Fora disso, ele é notoriamente insuficiente e imperfeito"

23. Posição mais nuançada que, porém, não está em contradição com a de

Jules Falret: prolongar o asilo através de colônias agrícolas, e até mesmo de colocações em famílias ― cuja idéia também começa a aparecer ― é permanecer fiel ao espírito do sistema.

Não obstante, nasce paralelamente a suspeita de que o asilo poderia não ser esse "espaço medicalizado" concebido por Pinel e seus sucessores. Não foi por acaso que foi

21 Discussões na Societé médico-psvchologique, Annales médico-psychologiques, 1865, p. 249. 22 J. Moreau de Tours, "Lettres médicales sur la colonie d'aliénés de Gheel", Annales médico-psychologiques, 1865, VI, p. 265. 23 A. Linas, Le passe, le prisent et l'avenir de la médecine mentale en France, Paris, 1863, p. 44.

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precisamente Morel quem, no seio da escola, assumiu a posição mais critica em relação à instituição. Fazer do asilo um espaço medicalizado supõe uma homogeneidade da alienação mental a partir da qual a classificação só separe sub-espécies de loucura (cf. cap. II: "a tecnologia pineliana"), Ora, uma reviravolta profunda da própria concepção da doença mental mina essa representação de uma ordem indissociavelmente espacial (a distribuição no espaço hospitalar) e o teórico (as classificações nosográficas). Se o conceito de alienação se esfacela, o asilo corre o risco de apenas justapor populações heterogêneas, doentes e "não-valores sociais" de todas as espécies. Também corre o risco de ser como que uma nova versão do antigo Hospital Geral, no qual a eficácia médica se perdia face à indiferenciação desses grupos que nada mais teriam em comum do que o fato de serem reclusos.

3. O código teórico

Já insistimos (cap. III) sobre esse golpe de força pelo qual, desde o começo, a escola alienista elaborou sua concepção reativa e psicogênica da doença mental, ao largo das pesquisas da medicina clínica. Evidentemente, a distância entre uma "medicina psicológica", denominação que se torna cada vez mais pejorativa e uma medicina geral cada vez mais segura de deter o monopólio de cientificidade, só veio a se acentuar. O mal estar, sensível desde a fundação da escola, cresce nos anos cinquenta.

Um certo número de alienista se esforça, num primeiro momento, em escapar aos dilemas: causas morais-causas orgânicas, descrição dos sintomas-estudo da sede da doença, a fim de estabelecer uma inteligibilidade da doença em função de sua evolução, e não mais em função da descrição de seus sintomas. Assim, Lasègue isola o delírio de perseguição em 1852

24. J. P. Falret e Baillarger descobrem simultaneamente, em 1854, o

que um chama "loucura circular" e, o outro, "loucura de forma mista"25

. Essas entidades nosográficas não se contentam em descrever um sintoma ou mesmo um grupamento de sintomas. Fazem, de cada sintoma, um signo que remete, com outros signos, a uma inteligibilidade oculta da doença, desenvolvida num certo período de tempo. Passa-se, assim, de uma sintomatologia, simples fenomenologia descritiva, para uma semiologia, através da qual a doença adquire um sentido subjacente às suas manifestações exteriores, ao mesmo tempo que um potencial evolutivo.

Um passo a mais se dá quando se vincula esse aspecto subjacente e essa evolução a uma causa objetiva. É a passagem da semiologia para a etiologia realizada pela concepção de Morel sobre a degenerescência. Lasègue dirá: "Sua patologia diz respeito, muito menos à fenomenologia do que à gênese, ela é mais inquisitiva do que descritiva. Nisso reside a superioridade de seu talento. (...) Morel empreendeu com resolução, essa viagem de descoberta e dedicou a melhor parte de seus trabalhos ao alienado em potencial"

26.

24 Ch. Lasègue, "Du delire de persecution", Archives générales de médecine, 1852. 25 Cf. Bulletin de L´Académie de médecine, 1854, L. XIX, cf. também J. P. Falret, Leçons cliniques de médecine mentale. Paris, 1854, p. 249. 26 Ch. Lasègue, "Morel, sa vie médicale et ses oeuvres", Archives générales de médecine, maio de 1873, p. 8.

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As degenerescências são desvios doentios em relação ao tipo normal da humanidade, transmitidas hereditariamente. Elas podem ter diversas causas e o plano do Traité des dêgénérescences de Morel se ordena em função dessa diversidade: intoxicações diversas, influências do meio social ou da hereditariedade, doenças adquiridas ou congênitas... Mas, uma vez que a doença se instala, ela segue seu curso e se transmite aos descendentes até a extinção da linhagem.

Importa menos aqui, apreciar, em si mesma, a teoria da degenerescência, que exercerá, sobretudo por intermédio de Magnan, uma influência decisiva sobre o futuro da psiquiatria. O importante é tomar consciência da reviravolta que ela opera em relação à concepção da alienação mental que prevalecerá até então. Buchez, abrindo um grande debate sobre a, noção, que ocupará oito sessões da Sociedade Médico-Psicológica, de 12 de novembro de 1860 a 27 de maio de 1861, assinala de início que essa concepção "patogênica" esbarra nos hábitos de "classificar as formas de loucura a partir dos sintomas"

27. E Morel precisa na discussão: "A predisposição, a causa determinante que

faz funcionar essa predisposição e, enfim, a sucessão e a transformação dos fenômenos patológicos, que se engendram e que se ordenam sucessivamente, determinam, através de processo genesíaco ou patogênico o lugar que o indivíduo deve ocupar no quadro nosológico"

28. A inteligibilidade da doença não é mais dada pelo grupo a que pertencem

seus sintomas, mas em referência a uma causalidade oculta.

A descoberta de Morel aliás, nada mais é do que a manifestação que teve mais repercussão no interior de uma transformação geral da concepção da alienação mental, e que os contemporâneos mais inventivos promovem, cada qual à sua maneira

29. Assim

o Trai té pratique des maladies mentales de Marcé, publicado em 1862, parte de uma crítica das classificações sintomatológicas de Esquirol e de uma discussão de Morel. Ele propõe focalizar a loucura como uma doença (o título Traité já é significativo, em relação à concepção clássica da alienação) buscando, na base de cada uma de suas manifestações, uma lesão "especial e constitutiva": "Não hesito em dizer que todo método fundado principalmente na psicologia deve ser rejeitado de maneira absoluta. (...) Se quisermos fazer dela um ponto de partida para um estudo da loucura perder-nos-emos certamente em divagações nebulosas e desprovidas de qualquer interesse prático"

30.

No início do século XX, quando triunfa o organicismo, o Traité de pathologie mentale de G. Ballet, que adquire grande autoridade, resume da seguinte maneira o movimento teórico que leva, segundo ele, à concepção patogênica que ele defende através da pesquisa das lesões morfológicas ou histológicas: "Alguns (Pinel, Esquirol, Guislain e, numa certa medida Griesinger, Baillarger, Marcé) limitaram suas observações

27 Relato in Annales médico-psychologiques, VI, 1860, p. 613. 28 Ibid., p. 616. 29 Sobre a contribuição, para esse debate, das pesquisas sobre a paralisia geral, cf. cap. III. 30 E. Marcé, Traité pratique des maladies mentales. Paris, 1862, p. 34. Marcé, morto aos 36 anos, dois anos após a publicação do seu Traité, não teve tempo de fazer frutificar suas idéias, que iam no sentido do organicismo: "A maneira de focalizar a medicina mental, que não exclui o estudo do elemento moral, mas o examina, menos nele próprio do que em suas relações com o organismo, é que presidirá à redação deste livro (Traité, p. 36). Mas ele influenciou, entre outros, Magnan, que foi seu interno (cf. P. Sérieux, V. Magnan, sa vie et son oeuvre, Paris, 1921).

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à fisionomia exterior dos síndromes e agruparam esses últimos, mais ou menos artificialmente, sem se preocuparem suficientemente com as causas e com a evolução dos diversos distúrbios: suas classificações são exclusivamente sintomatológicas ou melhor, sindrômicas. Outros, sobretudo os autores mais modernos (Morel, Magnan) esforçaram-se, pelo contrário, em considerar, na constituição dos tipos e dos grupos nosológicos que admitiram, a etiologia e a evolução das afecções mentais. (...) Mesmo imperfeita, como foi a classificação de Morel, por exemplo, ela é sem dúvida muito superior à de Pinel e de Esquirol"

31.

Talvez julgamentos de valor que não devemos ratificar enquanto tais. Mas assinalam o deslocamento decisivo operado em relação a essa primeira "psiquiatria social" estudada no capítulo III. A concepção "teórica" da doença mental não se vinculava mais diretamente à fenomenologia social da desordem. Inversamente, ela tende a se aproximar do tronco comum da medicina, cujas tendências organicistas se acentuam. Perspectiva na qual Morel inscreve conscientemente sua obra: "Procurei seguir minha idéia predominante que era a de vincular, de maneira mais vigorosa do que se tinha feito até então, a alienação mental à medicina geral"

32. E, numa discussão

consagrada ao no-restraint, isto é, a uma questão prática colocando em questão a concepção tradicional do tratamento moral, expõe a ampliação da definição da doença mental que resulta de sua abordagem: "Elaborei todo um livro a fim de ampliar o estudo das causas especiais da alienação, acrescentando nele, as causas de degenerescências intelectuais, físicas e morais da espécie humana"

33. É porque, de fato, uma tal

transformação da concepção "científica" da patologia mental não pode deixar de ter uma profunda repercussão sobre a prática.

4. A tecnologia

Imagem talvez discutível mas esclarecedora: o tratamento moral forma uma espécie de triângulo disciplinar que coloca em relação o médico, o doente e a instituição. É a relação hierárquica e regulada entre esses três pólos que constitui seu dinamismo e explica a eficácia que se lhe atribui. Um sujeito todo-poderoso impõe sua vontade racional a um sujeito completamente desmunido, por intermédio de suportes institucionais agenciados para repercutir e multiplicar esse poder: pessoal subalterno, regulamentos, emprego do tempo, atividades reguladas, etc. Compreende-se, portanto, que a modificação de pelo menos dois dos elementos dessa trilogia, o dispositivo institucional e a concepção do doente e da doença, desordena profundamente tal regime.

Sob o ângulo da modificação da concepção do patológico e, portanto, do doente, pareceria, à primeira vista, que a transformação que se opera nos anos sessenta deva conduzir à dissolução do tratamento. Se é verdade que este supõe uma educabilidade do

31 G. Ballet et al, Traité de pathologie mentale, Paris, 1903, Introduction, p. VI-VII. 32 B. Morel, Traité des dégénerescences physiques, intellectuelles et morales de l´espéce humanine, Paris, 1857, lntroduction, p. XII. 33 B. Morel, Le no-restraint, Paris, 1860, p. 95.

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homem, mesmo alienado, o conjunto das noções que substituem progressivamente a desordem do espírito produzida diretamente pelas influências exteriores controláveis, por um fundo perverso, por determinações hereditárias ou lesões orgânicas, deveria reduzir muito o campo de aplicação de uma tecnologia racional. O prognóstico de incurabilidade deveria substituir a esperança de devolver o alienado à razão, intervindo ativamente a fim de anular os processos patogênicos.

Essa tendência existe efetivamente, mas a ela se superpõe um outro movimento que visa transformar profundamente o próprio tratamento moral e deslocar seu campo de exercício para fora do asilo. A frase de Morel, citada anteriormente, que expressa sua intenção teórica de promover uma medicalização mais extensa se termina por essa vontade de universalizar o tratamento moral: "Procurei seguir minha idéia predominante que era a de vincular (...) a alienação mental à medicina geral, e de fazer emergir de seu estudo uma aplicação mais fecunda e mais universal do tratamento moral".

Em que consiste a mudança? Até o momento, segundo Morel, a sociedade nada mais fez do que instaurar uma "profilaxia defensiva", sequestrando os indivíduos perigosos ou doentes, e tratando-os de maneira mais ou menos eficaz em espaços fechados. "Ela deve realizar a profilaxia preservadora, tentando modificar as condições intelectuais, físicas e morais daqueles que, por razões diversas, foram separados dos outros homens; deve, antes de devolvê-los ao meio social, armá-los, por assim dizer, contra eles mesmos, a fim de atenuar o número de reincidências"

34.

A profilaxia se propõe assim, a "combater as causas das doenças e a prevenir seus efeitos"

35. Nisso, o programa da ciência alienista confunde-se com o da higiene física e

moral. Amplia-se em direção a possibilidades insuspeitáveis a fim de, em última instância, recobrir a totalidade social: "Compreende-se que o objetivo a ser atingido na aplicação dos meios terapêuticos e higiênicos tenha aumentado consideravelmente. De fato, não estamos mais diante de um homem isolado, mas sim na presença de uma sociedade, e o poderio dos meios de ação deverá ser proporcional à importância do objetivo"

36.

Mas apesar da sociedade inteira estar no horizonte de uma intervenção preventiva, são evidentemente seus pontos fracos, os focos de desordem e de miséria, que serão prioritariamente visados. É sobretudo para uma "moralização das massas" que a medicina mental deve contribuir ajudando no encargo dessas "classes declinantes que mal entrevêem o movimento ascendente das classes superiores e que não podem atingí-lo se forem abandonadas às suas próprias forças"

37.

Não foi por acaso que Morel construiu sua concepção da degenerescência a partir da observação do proletariado super explorado da região de Ruão e das populações agrícolas da periferia (ele era médico-diretor do asilo de Saint-Yon). Mas também não foi por acaso que ele escreveu ao senador-prefeito do Baixo Sena a fim de lhe oferecer seus

34 Morel, Traité des dégénêrescences.,., op. cit'., p. 691. 35 Ibid., p. 690. 36 Ibid.-, p. 76-77. 37 Ibid., p. 687.

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serviços e propor um verdadeiro plano de vigilância das populações miseráveis: 1º) Qual é a moralidade dos habitantes num determinado meio (...), o número de filhos ilegítimos, o dos atentados contra as pessoas e contra a propriedade (...) os suicídios, a extensão da prostituição, o número das mortes naturais e acidentais, etc. 2º) Qual é a alimentação e a higiene dos habitantes? (...) 3º) Qual a situação da instrução primária em cada uma das comunas? (...) 4º) Qual é, sobretudo, a proporção do alcoolismo, em que quantidades se consomem bebidas alcoólicas? (...) Em muitos casos, é necessário penetrar no interior das famílias, ver de perto o modo de vida dos habitantes de uma localidade, colocar-se a par de sua higiene física e moral. Trata-se, compreende-se facilmente, de uma missão delicada e que não pode ser convenientemente realizada sem a proteção da autoridade. Não acredito que possamos obter de outro modo a estatística moral desse importante Departamento e fornecer, assim, à autoridade, documentos úteis sobre as causas do aumento dos alienados e sobre os meios higiênicos e profiláticos mais apropriados para prevenir uma tão grave enfermidade"

38.

Vale a pena precisar que Morel representa a corrente mais liberal entre os alienistas, partidário do "no-restraínt", ou seja, da limitação máxima do emprego dos meios coercitivos com relação aos alienados.

Extraordinária extrapolação da função médica. O médico em seu asilo é prisioneiro de um quadro demasiado estreito, frequentemente reduzido à Impotência porque intervém muito tarde e em escala demasiado reduzida, sobre um material que já não é receptivo à sua ação. Porém, mesmo o predomínio dos incuráveis não deve levar ao pessimismo e, ainda menos, a renunciar à vontade de intervencionismo médico: é preciso saber deslocar o ponto de aplicação dessa intervenção. "Tudo nos leva a sair da falsa posição em que nos colocam, e a não permanecer como contempladores inativos de tantas causas destruidoras da espécie humana. Devemos provar que, qualquer que seja a dificuldade da situação, a medicina, longe de ser impotente, como pretendem alguns de seus detratores, pode ainda, apesar da predominância dos casos incuráveis, tornar-se para a sociedade um precioso meio de salvação. Somente ela pode, efetivamente, avaliar a natureza das causas que produzem as degenerescências na espécie humana, somente ela pode dar a indicação positiva dos remédios a serem empregados"

39.

Essa extensão formidável do papel médico é ao mesmo tempo uma profunda transformação de sua modalidade de exercício. O médico não será mais, como no asilo, o agente exclusivo, nem mesmo o operador direto das ações em que é parte interessada. Poderá aconselhar, inspirar, esclarecer a totalidade dos "decisores", todos aqueles cuja função profissional e/ou cuja posição na hierarquia social levam a exercer uma ação política em direção às massas: "Sua pretensão não é a de se colocar como uma força mediadora exclusiva, ela convoca para essa obra de regeneração todos aqueles a quem são confiados o bem estar e os destinos das populações, todos aqueles que detêm os

38 Carta reproduzida in Le no-restraint, op. cit., p. 102-103. 39 Ibid., p. 78.

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meios de realizar os projetos de melhoramentos que a ciência médica submete a seu exame"

39bis.

Trata-se justamente de antecipar a função que os partidários da preventive psychiatry irão pretender realizar, reivindicando um lugar em todos os lugares de decisão da comunidade

40. Que toda comissão tenha seu psiquiatra consultor, que toda

assembléia se refira ao parecer do especialista competente. A função de perito, como vemos, está em vias de se fragmentar, disseminando o velho sonho platônico do rei filósofo. Devemos lembrar-nos ― a República de Platão o comprova ― que tais utopias só se desenvolvem nas sociedades de classes. E também ― nossa sociedade nô-lo mostra ― que é justamente lá que elas se realizam. "Por que, pergunta Morel num outro texto, seria impossível estender para fora o que se faz em nossos asilos?"

41. Infelizmente

é o que se precisa também perguntar.

A transformação do fundamento teórico da doença mental irá, desse modo, produzir um duplo efeito em contraste mútuo. Por um lado, os prognósticos pessimistas comandados por uma etiologia orgânica, o aumento do número dos incuráveis, o aparecimento dos ineducáveis, irão fechar a noite asilar sobre si mesma. Enormes "morredouros" onde a referência médica se torna cada vez mais paródia. Por outro lado, abre-se um campo infinito de intervenções: prevenção, profilaxia, despistagem... o médico oferece seus serviços e se multiplica, quer estar presente em todas as linhas de frente onde emerge um risco de desordem. Para essas novas atividades Morel conserva o rótulo de "tratamento moral" que lhe "parece uma feliz designação"

42. Por causa da

referência a uma "lei moral" que satisfaz, sem dúvida, sua sensibilidade de antigo seminarista. Não é certo que ele tivesse razão, pois o termo tratamento moral é profundamente enraizado na tradição asilar clássica. Mas a palavra tem menos importância do que a coisa. Em outras palavras, continuamos a lidar com o que não deixa de ser, em última análise, uma estratégia de tutelarização.

Assim, o hiato tão importuno, no período precedente, entre as estratégias de sujeições dos filántropos e a tecnologia asilar (cf. cap. III), parece poder ser superado. Mas com a condição de desligar a prática médica de seu ponto de fixação privilegiado no asilo. Para chegar aí é preciso ainda percorrer um longo caminho,

A Dupla linha de recomposição

Em oposição a uma representação comum da história da psiquiatria não foi, portanto, numa época recente (em 1945? por volta de 1960, com a setorização?) que surgiu uma crise profunda da organização tradicional. Não somente nos anos de 1860 nenhum desses elementos foi poupado, como começaram a emergir relações entre

39bis Ibid., p. 78. 40 Cf. G. Caplan, Principies of Preventive Psychiatry, op. cit. 41 B. Morel, Considérations sur les causes du goitre et du crétinisme endêmique à Rosières-aux-Salines, Paris, 1850. 42 Morel, Traité sur les dégénérescences, op. cit., p. 685.

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essas diferentes críticas43

. Assim, Morel coloca em questão as nosografias clássicas, com a degenerescência, a indiferenciação interna da instituição asilar, sua rigidez que bloqueia as possibilidades de agir no exterior, ao mesmo tempo que a confiança nas técnicas clássicas de disciplinarização já que ele adere ao "non-restreint" de Conolly. Pára a psiquiatria, a questão não é, portanto, a que em geral os acontecimentos históricos suscitam, por seu caráter inesperado. Ela é inversa: por que a mudança tardou tanto? ― e até: teria, na verdade, ocorrido? Não responderemos aqui com uma fórmula. Daremos apenas o quadro da argumentação que será desenvolvido em outro contexto.

1. A partir das críticas dos anos sessenta, as tentativas de reformas irão se orientar segundo duas direções divergentes. Essa clivagem rompe com a síntese frágil entre a trama médica e a trama social estabelecida pelo alienismo em sua idade de ouro (cap. III). Acentuando o desajuste entre as práticas hospitalares e as práticas extra-hospitalares ela prorroga por muito tempo a possibilidade de elaborar uma nova organização de conjunto.

Uma primeira tentativa se dedica a recompor o espaço asilar a fim de torná-lo um meio verdadeiramente médico. Trata-se, em suma, de recomeçar sobre outra base a operação realizada no Hospital Geral três quartos de século mais cedo. Pois o asilo começa a ser percebido como o era o Hospital Geral pelos primeiros alienistas: indiferenciação e superpopulação reintroduzem o amontoamento, a promiscuidade e a justaposição de categorias heterogêneas de reclusos. Com a mesma implicação: a impossibilidade de medicalizar populações que não representam diferentes classes de doenças já que, em última instância, possuem um único traço em comum que é o de estarem enclausuradas.

Mas, a fim de reconstituir grupos susceptíveis de serem tratados à parte, é necessário começar por transportar um certo número deles para outro lugar. É preciso desembaraçar o asilo dos crônicos, dos senis, dos indigentes que nele se introduzem, dos epilépticos, dos alcoólatras, dos alienados criminosos, etc. Portanto, dissociar, enfim, a medicina científica da assistência, só guardando os "verdadeiros" doentes que, então, poderão receber tratamento intensivo.

Essa orientação dirigiu um certo número de iniciativas práticas, da deportação de crônicas da região parisiense para asilos-depósitos de província, a partir de 1844, até a criação de colônias familiares agrícolas no centro da França no fim do século XIX, e à abertura de secções especiais para homens epilépticos (Ville-Evrard, 1892) e mulheres (Maison-Blanche, 1910) e para alienados criminosos (o serviço Henri-Colin em Villejuif,

43 Nem mesmo o quase-monopólio dos alienistas sobre o conjunto dos problemas da medicina mental. Se sua autoridade permaneceu sem contestação no asilo, seu prestigio no exterior parece começar a se degradar mais ou menos nessa época, se bem que seja difícil datá-lo com precisão. Em todo caso, em 1877, o universitário B. Bali pretere o alienista Magnan para ocupar a cadeira de doenças mentais na Faculdade de Medicina. Estudaremos posteriormente esse conflito entre alienistas e universitários e o papel cada vez mais importante dos serviços universitários em comparação com os asilos, pelo menos enquanto focos de inovação.

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1910)44

. Ela também inspira projetos de reorganização geral da assistência psiquiátrica, limitadas inicialmente à região parisiense como o novo plano de implantação dos asilos inspirados por Haussmann em 1860

45 e, em seguida, mais ambiciosos, como o relatório

de Sérieux em 190346

ou os projetos de Toulouse47

. Inspiração que conduzirá à criação de "serviços livres" nos hospitais psiquiátricos, ao desenvolvimento dos serviços neuro-psiquiátricos nas faculdades, até a tendência atual de vincular os novos "setores" a hospitais comuns. Essas tentativas correspondem a uma vontade de medicalização no sentido técnico da palavra: a alienação é uma doença quase como qualquer outra, que deve ser tratada através de meios que se aproximem, na medida do possível, dos da medicina comum, em lugares que se assemelhem o mais possível aos hospitais que tratam de outras doenças. Trata-se, portanto, de romper com o caráter "especial" da prática asilar, a fim de resituar a psiquiatria no âmbito da medicina.

Mas essas reformas são obrigadas a operar sob um modo seletivo: elas rejeitam para fora do campo médico todos aqueles que não podem ser tratados como "verdadeiros" doentes, ou seja, aqueles que não podem ser atentidos em instituições altamente especializadas. A dualidade medicina-assistência se prolonga, assim, em heterogeneidade institucional: serviços especializados por um lado, estabelecimentos de abrigo por outro. Uma tal fórmula não pode, portanto, fornecer uma solução unificada à totalidade dos problemas cobertos pelo rótulo de "alienação mental". Ela também apresenta inconvenientes para uma estratégia de expansão da medicina mental: não podendo tratar todas as populações a serem atendidas segundo um esquema médico mais exigente, ela deverá abandoná-las para outras instâncias de encargo.

Uma segunda linha de recomposição tende, ao contrário, a romper a relação privilegiada da prática psiquiátrica com o espaço hospitalar. Não se trata de medicalizar o asilo mas, em última instância, de poupá-lo, intervindo diretamente sobre as "superfícies de emergência" da loucura, nessas instituições não-médicas que são a escola, o exército, a família... É a linhagem da prevenção, da profilaxia, da despistagem. Aqui, o dispositivo institucional é mínimo: por exemplo, um dispensário implantado na cidade. Também o caráter da intervenção se transforma profundamente. Trata-se, menos, de curar do que prevenir, avaliar os perigos, despistar anomalias, testar aptidões. Também não se trata tanto de agir sobre o indivíduo, mas de modificar o meio através de programas de higiene que não são necessariamente medicalizados. A função médica se dissemina. O especialista é, ao mesmo tempo, menos visível e presente em toda a

44 Cf. G. Daumézon, "Essai d'historique critique de l'appareil d'assistance aux malades mentaux dans le département de la Seine depuis le début du XIXe. siècle", Information psychiatrique, Jan. 1960. 45 Cf. Rapport de la commission institué pour la reforme et l'amélioration des services d'alienes du département de la Seine,

Paris, 1860. O relatório prevê um asilo central em Paris (Saint-Anne) para as loucuras recentes e o ensino clínico, ao qual se vincula um serviço de admissão para a distribuição dos alienados, um cinturão de asilos periféricos e asilos especiais para epilépticos. 46 P. Sérieux, Rapport sur l'assistance des alienes en France, en Allemagne, en Italie et en Suisse, Paris, 1903. Sérieux admite francamente o atraso da França e preconiza um sistema bastante diferenciado: asilos-colônias, clínicas psiquiátricas, hospitais urbanos, sanatórios para "nervosos", asilos especiais para alienados criminosos, alcoólatras, epilépticos. 47 Ver as polêmicas provocadas pela abertura, em 1922, do serviço Henri Rousselle en Saint-Anne, in L´aliéniste français, especialmente os anos 1932 e 1933.

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parte. Também o tipo de população atendida se transforma profundamente, do ponto de vista quantitativo e qualitativo. Tom impressionantemente moderno da crítica a Toulouse feita por um de seus opositores, um alienista clássico: "Ele deseja uma Federação das repúblicas psiquiátricas onde os cidadãos comuns seriam examinados em série no início de suas principais atividades pelo exército dos "profilactores", grandes e pequenos orientadores, sexólogos de todos os coturnos, especialistas em suicídio, em coriza, em direção de automóveis e em estatística, em suma, por todos os sub-produtos da "Noologia" surgidos ou que venham a surgir de sua imaginação criadora"

48.

Oposição entre uma medicina tecnicista e de uma medicina social? Como veremos, essa dicotomia, é demasiado esquemática. Existem também, por trás dessas modalidades de intervenção, um esquema médico técnico, o da luta contra a tubersulose e contra as doenças venéreas, generalizadas em luta contra os "flagelos sociais". Não obstante, o que se rompe nesse contexto é a unidade instável do alienismo como primeira "medicina social". A síntese um tanto grosseira e já capenga entre a tecnologia asilar, um código nosográfico mal separado de uma fenomenologia social da desordem e um projeto de assistência de tipo "filantrópico" (cf. cap. III), resistiu tanto menos a um modelo de cientificidade médica mais exigente, quanto mais bloqueada foi a instituição asilar, que servia de matriz a todas essas práticas. Com isso, a unidade da medicina mental corre o risco de se perder. No seu lugar se esboça um sistema de dois pólos: por um lado, o trabalho sobre populações pré-selecionadas tratadas no hospital e, por outro lado, atividades de prevenção, seleção e avaliação com fraco suporte institucional.

A divergência entre essas duas linhas, o fato de que, a despeito dos esforços para misturá-las, como o de Toulouse por volta de 1920, elas tendam a se sistematizar cada qual por sua conta, explicita, em grande parte, o longo período que separa as primeiras críticas do sistema asilar da descoberta de uma nova fórmula global. A psiquiatria de setor será precisamente o esforço para reconciliar essas tramas, para reencontrar, sob o impulso dos médicos do "quadro" dos hospitais psiquiátricos, herdeiros dos antigos alienistas e, contra a vontade dos "universitários", a inspiração unitária da primeira psiquiatria, levando em conta ao mesmo tempo, as exigências do trabalho "extra-hospitalar". Antecipemos aqui, somente para sugerir de que maneira a apreensão das linhagens históricas pode ajudar a desemaranhar as confusões contemporâneas.

2. Apesar dessa hipótese ser bastante esclarecedora, não pode, entretanto, dar contas do processo de transformação da medicina mental em sua totalidade. Ou melhor, essas modificações correm ainda o risco de serem interpretadas como uma evolução interna do aparelho psiquiátrico, quando elas traduzem, ao mesmo tempo, a mudança de suas relações com outras instâncias de poder e, mais que isso, com o conjunto das práticas de controle e de normalização. Uma mudança na problemática da medicina

48 Reposta do Dr. Gouriou a "Une enquéte sur les services ouverts", inquérito confiado a E. Toulouse pelo Ministro da saúde pública, Laliéniste français, nov. 1932, p. 563.

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mental se realiza na confluência entre essas duas séries de transformações, "internas" e "externas".

Como vimos, as reformas da justiça e da administração, operadas no final do século XVIII e na primeira metade do século XIX, não constituem, em relação à medicina mental, um cenário exterior usado por um diretor escrupuloso como pano de fundo para enquadrar as evoluções de sua personagem. A psiquiatria também não se contenta em "responder", por sua própria conta, a "dificuldades" vindas do exterior. A estrutura interna de suas respostas depende de suas exigências "exteriores". Por exemplo, a natureza intrínseca do certificado de admissão é a de um "ato médico-legal", como diz Renaudin, inteiramente construído para responder ao problema da nova divisão de competências entre a administração e a justiça. Da mesma forma, o conceito de monomania não tem nenhum sentido se não for referido a um cenário judiciário preciso, etc. Um acontecimento na história da medicina mental deve, assim, ser situado na recomposição do conjunto das práticas de normalização, das quais a tutela médica não representa senão um setor ― é verdade que cada vez mais predominante.

Vejamos por exemplo, a transformação do tratamento moral em relação terapêutica. Temos presente o paradoxo de Leuret. Leuret é o médico que levou ao máximo o caráter coercitivo do tratamento moral, empreendendo um verdadeiro combate contra o delírio do alienado, no qual quase tudo era permitido, violência física, dissimulação e mentiras. Mas foi também quem melhor ajustou seu método ao caso pessoal do sujeito, conduzindo longas psicoterapias individuais, seguindo o doente incansavelmente, até fazê-lo confessar o caráter ilusório do seu delírio. O quadro da prática de Leuret não permite decidir o que ela deve exatamente à estrutura asilar. Tem-se a impressão de que, às vezes, Leuret é prejudicado por agir nesses lugares impessoais, no seio da pesada atmosfera,do asilo. Além do mais, os traços mais originais de sua prática só excepcionalmente podem ser exercidos, por falta de tempo, já que ele é ao mesmo tempo responsável, como chefe de serviço, pelo tratamento de centenas de alienados.

A distinção que Falret faz entre o tratamento moral individual e o tratamento coletivo (cf. cap. IV) revela a mesma ambiguidade. Ela seria provocada, sobretudo, como ele diz, por um desnível da ordem do saber ou pelas condições da prática asilar? Sem dúvida por um e por outro. A hipótese mais verossímel seria a seguinte: o modelo da relação terapêutica como relação de tutela se constituiu no asilo. Ele pôde se edificar porque a relação de poder que o constitui apoiou-se em suportes institucionais. Instalou-se de maneira quase que exclusiva na forma do tratamento coletivo porque, desse modo, corresponderia melhor à verdadeira "destinação social" dos asilos, povoados sobretudo por indigentes e, nos quais, centenas de alienados ficavam confiados à responsabilidade de um único médico. Entretanto, a obstrução da instituição psiquiátrica paralisa o jogo dessas regulações maciças que supostamente tratavam a totalidade dos reclusos. O tratamento moral morre no asilo, mas uma estrutura flexível surge dessa ganga. Ela tenta, já com Morel, tornar-se intervenção profilática. O tratamento moral (digamos, agora, a relação terapêutica) guarda certos, traços essenciais de sua matriz

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asilar. A relação funciona sempre sobre a base de um desnível fundamental entre duas personagens das quais, uma possui o saber e o poder e representa a norma. Entretanto, as fixações objetivas e visíveis desses privilégios se dissipam. Consequências: em primeiro lugar, a relação é doravante mais flexível, mais móvel, facilmente transponível e transportável, praticamente, para qualquer lugar; além disso, a violência, que ela implica sempre, é mais discreta e, em última análise, invisível. Na verdade, o tratamento moral realmente mudou. A prova está em que o nome desaparecerá e em que muitos não reconhecerão seus traços e, sobretudo, não o reconhecerão aqueles que praticam a relação terapêutica sob as formas de uma prática "liberal". Quase não existe mais suportes objetivos da relação médico-paciente nos consultórios particulares, e, em todo caso, não existem duchas sobre o divã. Mas, sobretudo, se pensarmos que existe uma eficácia simbólica, seria escandaloso fazer a hipótese de que, nessa relação,'possa também haver uma violência de interpretação?

Um deslocamento do lugar de exercício do tratamento moral impôs, assim, uma transformação de seus traços arcaicos em dispositivos sofisticados. Porém, através dessa transferência, as condições de tutelarização se aproximam das de contratação. Um contrato de tutela, seria uma invenção tão maravilhosa como a que embasbacava o marquês de Barthélemy quando "constatava" a reconciliação, através do isolamento terapêutico, entre o rigor e a humanidade, entre os interesses da sociedade e os da pessoa doente. Veremos que foi isso que a psicanálise promoveu. Mas a aclimação da behaviour modification na França, o remanejamento do meio de vida em espaço contínuo de vigilância em certas fórmulas de psiquiatria de setor, as técnicas de exame e de avaliação de desempenhos, do nascimento até a morte, etc, instauram outros procedimentos mais ou menos sutis de "encargo" que são outras tantas modalidades de tutelarização. O processo de tutelarização, cuja gênese acompanhamos aqui, relança-se, com isso, em nova órbita.

A fim de fazer um novo inventário das dependências dever-se-ia romper com o galocentrismo que talvez tenha parecido inspirar o presente trabalho. De fato, além de nos ser mais fácil nos falimiarizarmos com a situação histórica francesa, a sobrecarga que resultaria do exame simultâneo das outras situações nacionais no século XIX, não seria compensada por um acréscimo substancial em dados novos. A desadaptação dos antigos aparelhos de controle, a reorganização da justiça, a racionalização da administração, os começos de uma urbanização selvagem, o desbloqueio do mercado do trabalho etc, impuseram, nos diferentes países ocidentais, uma reestruturação da política da assistência que propiciou fórmulas bem próximas. Mas a violência da crise aberta na França pela Revolução endureceu esses antagonismos e explicitou essas implicações até a "solução" da lei de 1838, cuja exemplaridade foi percebida por todos os contemporâneos

49.

49 G. Rothman, in The Discovery of lhe Asylum, New York, 1971, tentou explicar a implantação do sistema asilar nos Estados Unidos a partir das características da sociedade pós-colonial. Entretanto, o mais notável nesse artigo é a presença com uma certa defasagem em sua instauração ― dos mesmos elementos que caracterizam a situação européia. Assim também, as estratégias

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Apesar de se exportar a psiquiatria de setor, como se diz, da mesma forma que o Concorde, a função modelar da situação francesa é atualmente menos evidente. Portanto, será preciso buscar também, em outros países, em particular nos Estados Unidos, elementos que possam relacionar as transformações da medicina mental com esse "exterior" trabalhado pela psiquiatria e que se revela ser, também, o seu "interior".

Com efeito, por que essas relações de dependência, estabelecidas de forma tão evidente na situação do século XIX, desapareceriam bruscamente, a fim de dar lugar à nova "função psi" em situação de total extra-territorialidade social? As tecnologias atuais se automatizaram melhor, os códigos teóricos se refinaram, os dispositivos institucionais tornaram-se mais sofisticados? Sem dúvida: não encontraremos mais a bela transparência do século XIX. As relações de dominação na sociedade contemporânea são mais complexas e nos falta distância para objetivá-las? Sem dúvida: buscaremos ajuda, portanto, no modelo que a análise de uma situação menos confusa nos permitiu construir.

Com prudência, entretanto. Se a antiga política da assistência nos parece hoje em dia um tanto ingênua é porque ela ainda diz explicitamente o que ela tem por função dissimular: a diferença entre as classes. Permitanos citar uma canção de Théodore Botrel como expressão ideal-típica dessa atitude:

"Dormireis em paz, oh ricos vós e vossos capitais enquanto os indigentes tiverem migalhas onde enfiar suas facas".

Não somente não se escreve mais assim, como também não se procede mais dessa forma. Não existem mais indigentes nem ricos, mas parceiros sociais que dividem, entre si, os benefícios da expansão. A nova "assistência social" rompe, portanto, os vínculos que ainda existiam entre a antiga caridade e a beneficência pública. Esta última assistia populações desmunidas realçando os signos visíveis de sua dependência, reproduzindo, assim, a clivagem entre as classes. Doravante, trata-se de ajudar todos os parceiros, cada qual em função de seu lugar, evidentemente, a permanecerem nó circuito da produção-consumo, reconstituindo a estrutura sócio-econômica em sua totalidade. Compreende-se, portanto, o interesse político dos modos de controle que dissimulam as rupturas, apagam os princípios objetivos de oposição, a fim de manter a continuidade entre diferenças qualitativas.

O alienismo e o seu modelo de internação representaram a versão medicalizada da concepção segregativa da assistência. As tecnologias de relações na comunidade correspondem a uma concepção participacionista da integração. Ela supõe que se rompa a dicotomia entre normal e patológico e a separação dos espaços onde ocorre o "encargo", como também deve ser superada, no plano social, a ruptura entre as classes. A tanto se dedicam os melhores espíritos.

através das quais os psiquiatras ingleses impuseram seu monopólio sobre o tratamento dos alienados por volta de 1820 (cf. A. Schull, "From madness to mental illness", loc. cit.) são análogas às que analisamos aqui.

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Assim como a análise das funções do asilo não implica no desejo de voltar às casas de detenção, também a intenção, aqui, não é de condenar sistematicamente aqueles que assim inovam. Também não é de subestimar a importância qualitativa do deslocamento que eles operam. Gostaríamos, ao contrário, de revelar as possibilidades bem vertiginosas que essas novas estratégias abrem ― portanto, também, fazer justiça à novidade das tecnologias que lhes servem de suporte. Entretanto, se uma tal abordagem comporta, apesar de tudo, um risco de reducionismo, teremos que corrê-lo. O discurso da autonomia da especialidade é monótono. Pouco diminui os riscos e conforta os profissionais na boa consciência: a psiquiatria progride cada vez mais para a realização de sua verdadeira vocação terapêutica, o inconsciente dá acesso a um outro cenário, cujas implicações não são mais conectadas com o destino social e político, o médico é um operador neutro que trata de problemas técnicos, etc. Trata-se, também, de um discurso vão, salvo na medida em que desenvolve o potencial de intervenção do especialista competente. Compreende-se, portanto, que este último tenha interesse em mantê-lo. É seu direito. Deveria ser também um direito, tentar outro discurso, pois corresponde a uma intenção inteiramente diferente. Não mistificar o ponto de vista da especialidade e da competência técnica, mas começar a avaliar essa proliferação de especialidades, essa multiplicação de peritos que, mesmo quando dizem renunciar ao projeto de curar (o que, aliás, nunca foi crime) avaliam, selecionam e normalizam à sombra de sua competência. Continuar, depois e com outros a circunscrever essas estratégias menos visíveis de um poder de dominação que se tornou poder de manipulação. Pois ele se infla por manter-se escondido.

Do paradigma da internação ao intervencionismo generalizado, do paternalismo violento à violência simbólica da interpretação: tentar-se-á descrever essa metamorfose, sem a dupla facilidade, proporcionada aqui, pelo fato de tomar um material histórico, tendo esperado a morte dos que o produziram.

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Cronologia e lei de 30 de junho de 1838.

Como a divisão dos capítulos não segue uma cronologia estrita, agrupamos em ordem cronológica

os principais fatos históricos mencionados e que conduzem à votação da lei de 30 ât junho de 1838,

sobre os alienados.

ASSISTÊNCIA E CONTROLES MEDICINA MENTAL

1784 - Circular de Bréteuil, Ministro da casa real, regulamentando e limitando o emprego das lettres de cachet.

1785 - Regulamento real reorganizando os depósitos de mendigos.

- Previsto um pavilhão especial para os insanos em cada depósito de mendigos.

- Instruction sur la manière de gouverner les insensés et de travailler à leur guérison dans les asiles qui leur sont destines, de J. Colombier e F. Doublet.

1788 - Plano de reorganização dos hospitais de Paris, por Tenon.

- Regulamento real prescrevendo o desenvolvimento das oficinas de caridade para indigentes.

- Tenon recomenda reservar um pavilhão especial para 200 alienados curáveis num novo hospital de 1000 feridos e febris, que deve ser construído em Saint-Anne.

1790 - Lei de 27 de março abolindo as lettres de cachet.

- Começo dos trabalhos do Comitê de Mendicância da Assembléia Constituinte, presidido pelo duque de La Rochefoucault-Liancour*

- A Asymbléia Constituinte decreta que a assistência aos pobres é um dever nacional e projeta a nacionalização dos bens hospitalares.

- Abertura de vastos trabalhos de aterro em Paris para ocupar os indigentes.

- Reorganização da justiça criminal.

Jurados eleitos.

- Observations sur les Hôpitaux, de Cabanis.

- Artigo 9 da lei de 27 de março: as pessoas detidas por causa de demência serão interrogadas pelos juizes, examinadas pelos médicos e, se forem reconhecidas insanas, tratadas em hospitais.

- Lei de 24 de agosto, que "confia à vigilância dos corpos municipais os acontecimentos deploráveis que poderiam ser ocasionados por insanos ou furiosos em liberdade ou por animais nocivos e ferozes".

- Inquérito solicitado pelo chefe de polícia ao governo dos hospitais sobre a situação dos insanos. Uma comissão do Comitê de mendicância, com La Rochefoucault-Liancourt, visita igualmente os estabelecimentos parisienses onde estão enclausurados os insanos

1791 - Criação do Comitê da Assistência Pública da Assembléia legislativa, presidida por Tenon, que sucede ao Comitê de Mendicância. Ele agrupa uma maioria de médicos.

- Instituição dos tribunais de família.

- Fechamento das oficinas de obras públicas para os indigentes na tegião parisiense.

- A lei de 21 de julho torna passível de penas correicio-nais "aqueles que deixarem divagar os insanos ou furiosos ou animais nocivos ou ferozes".

- Relatório de Cabanis ao Departamento de Paris sobre "o estado das loucas detidas na Salpêtrière".

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- Abolição dos privilégios e isenções dos hospícios « hospitais.

- Supressão das corporações e interdição das associações operárias.

1792 - Supressão das Congregações Religiosas.

- "Rapport sur l'organisation générale des secours publics et sur la destruc-tion de la mendicité" de B. d'Airy que dá ênfase à assistência a domicílio e prevê casas departamentais de repressão para os mendigos incorrigíveis.

1793-94

Ano II da República

- Nova Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, artigo XXII: "A assistência pública é uma dívida sagrada e cabe à lei determinar sua natureza e aplicação"

(29 de maio).

- A pátria se encarrega dos órfãos pobres e dos menores abandonados

- (28 de junho).

- Lei de 24 vindimário, ano II, elaboração da noção de domicílio de assistência como condição da participação na assistência pública; transformação dos de-Ipósitos de mendigos em casas departamentais d* repressão.

- A lei de 22 florea'. ano II, decreta a inserção dos indigentes^" "grande livro da Ber^tícência Nacional" e rxjnsagra a assistência a domicílio. "Chega de esmolas, chega de hospitais" (Barère). Instituição de um corpo de oficiais de saúde pagos pelo Estado.

- Lei de 23 messidor, ano II: os bens hospitalares são postos à venda como bens nacionais.

- Pinel é nomeado para Bicêtre.

- Charenton é fechada.

- Lei de 24 vindímário, ano II: "Aqueles que estão atualmente enclausurados por causa de demência, às custas da nação, serão transferidos para as novas casas de repressão e continuarão à cargo do poder público".

ANO III - Após Termidor, a 9 frutidor, ano III, a Convenção suspende a venda do patrimônio hospitalar.

- No quadro da criação da Escola de Medicina de Paris, Pinel é nomeado professor adjunto, depois professor.

ANO IV - Relatório de Delecloy sobre a "organização da assistência pública", que critica a obra das Assembléias Revolucionárias e coloca o princípio da privatização e da municipali-zação da assistência.

1794

ANO V

Diretório

- O Diretório decide que os bens hospitalares vendidos como bens nacionais serão substituídos (16 vindimário, ano V).

- As religiosas começam a se reinstalar nos hospitais e nos hospícios.

- Lei de 7 frimário, ano V: serviços de beneficência com recursos limitados e locais, substituem a inscrição dos indigentes na lista da beneficiência nacional.

- O Diretório reabre Cha-renton para o tratamento dos alienados curáveis.

- Os leitos para loucos no Hôtel-Dieu, assim como as "petites maisons" que recebiam os incuráveis, são suprimidos.

- Pinel é nomeado para a Salpêtrière.

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- Instalação das comissões administrativas hospitalares (lei de 16 vindimário, ano V) que consagram a municipalização da assistência hospitalar (mas elas serão colocadas sob o controle dos sub-prefeitos no ano VIII).

ANO VIII - A Constituição do ano VIII coloca os princípios da reorganização política, judiciária e administrativa da França, cujo espírito será definido por Guizot {Histoire générale de la ci-vilisation en Europe XVe. Leçon, Bruxelas, 1839): "A administração, de um ponto de vista mais geral, consiste num conjunto de meios destinados a fazer chegar, mais prontamente e da maneira mais segura possível, a vontade do poder central a todas as partes da sociedade, e a fazer voltar para o poder central, sob as mesmas condições, as forças da sociedade, seja em homens, seja em dinheiro". - Nomeação dos prefeitos departamentais.

ANO IX - Criação do Conselho Geral da Administração dos Hospícios de Paris.

- Criação de tribunais criminais especiais, especialmente contra os vagabundos.

- Traité médico-philosophique sur l'aliénation mentale de Pinel.

ANO X - Esquirol reune-se a Pinel na Salpêtrière.

ANO XI - Ressurgimento da "Socie-té de charité rnaternelle" fundada antes de 1789 por um grupo de filantropos.

- Pinel é nomeado médico-consultor do Imperador e recebe a Legião de Honra no ano seguinte.

ANO XII - Código civil.

- Restabelecimento e desenvolvimento do Ministério da Polícia Geral.

- Código civil, artigo 489: "O maior de idade que se encontrar em estado habitual de imbecilidade, de demência ou de furor deve ser interditado, mesmo quando esse estado apresenta intervalos lúcidos".

- Artigo 509. O interditado é assimilado ao menor quanto à sua pessoa e seus bens. As leis sobre a tutela dos menores se aplicarão à tutela dos interditados.

ANO XIII - Os membros dos serviços de beneficiência e das comissões dos hospícios são nomeados pelo ministro do interior por indicação do prefeito departamental.

1806 - Renovação de Bicêtre e da Salpêtrière. Abertura de pavilhões de tratamento.

1808 - Decreto imperial sobre a extinção da mendicância. Instituição de um depósito de mendigos por Departamento.

- Organização da Universidade Imperial que assume o monopólio do ensino público.

- Código de processo criminal.

- Circular do ministro do Interior lembrando a necessidade de interditar os insanos.

1809 - Restabelecimento das Congregações religiosas e das fundações privadas.

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1810 - Código Penal.

- O decreto de 3 de março de 1810 reconhece a prática das internações administrativas e dá existência legal às prisões do Estado para as "pessoas detidas sem que seja conveniente levá-las diante dos tribunais nem, colocá-las em liberdade".

- Código penal, artigo 64: "Não há crime nem delito quando o acusado estava em estado de demência no momento da ação ou quando foi coagido por uma força contra a qual não pôde resistir".

- Artigo 475, nº 7 e 479, nº 2: reiteração das leis de 24 de agosto de 1790 e de 21 de julho de 1791.

1811 - O decreto de 19 de janeiro de 1811 prescreve a constituição de um hospício para os menores abandonados em cada distrito.

1813 - Instituição de 23 prisões centrais. - Circular do ministro do interior prescrevendo aos prefeitos departamentais a realização de um inquérito sobre a situação dos insanos.

1814 - Projeto de estabelecimento de asilos regionais pela administração napoleônica. Fundação do primeiro deles em Mareville perto de Nancy.

1817 - Esquirol inicia um curso de clinica das doenças mentais na Salpêtrière,

1818 - Relatório de Esquirol ao ministro do interior: Des é-tablissements consacrés aux alienes en France et des moynes de les améliorer.

1819 - Guizot é nomeado diretor da Administração Departamental e Municipal e prepara um programa de reformas nos diferentes domínios da assistência.

- Fundação da Sociedade Real para a Melhoria das Prisões.

- Circular de Decazes, ministro do interior, prevendo a organização de um sistema de estabelecimentos especiais para os alienados.

- Artigo "monomania" de Esquirol.

1820 - Queda de Guizot e tomada do poder pelos extremistas após o assassinato do duque de Berry.

- Le visiteur du pauvre, do barão de Gerando.

- A comissão médica nomeada pelo ministro do interior para a organização do serviço dos alienados interrompe seus trabalhos.

1821 - Fundação da Sociedade de Moral Cristã sob a presidência do duque de La Rochefoucault-Liancourt.

1822 - Desenvolvimento do sistema privado de assistência sob controle religioso.

- Relações entre o movimento filantrópico e a oposição liberal constitucional na Sociedade de moral cristã.

- Pinel não é reintegrado em sua cadeira na Faculdade de Medicina.

- Fundação de asilos privados (o irmão Hilarion).

- Polêmicas sobre a monomania e a perícia psiquiátrica nos tribunais.

1825 - Bayle: Nouvelle doctrine des maladies mentales.

1827 - Tradução comentada por Esquirol do Traité de médecine légale de Hoffbauer.

1828 - Circular do chefe de polícia de Paris regulamentando o regime das casas de

Page 213: CASTEL, Robert. A Ordem Psiquiátrica - A Idade de Ouro do Alienismo

saúde particulares.

1829 - Criação dos Annales d'hygiène publique et de médecine légale.

1831 - Tocqueville vai aos Estados Unidos estudar o regime penitenciário.

1832 - Reforma do código penal. As circunstâncias atenuantes.

1833 - Lei Guizot sobre o ensino primário. - Inquérito do ministro do interior sobre a situação dos alienados.

1834 - Relatório de Ferrus ao Conselho Geral dos hospícios: Des alienes.

1835 - O ministro do interior submete a questão dos alienados à deliberação dos Conselhos Gerais.

1836 - Pârent du Chatelet, De la prostitution dans la vllle de Paris et hygiène publique.

- Ferrus é nomeado inspetor geral do serviço dos alienados.

- O orçamento de 1836 inscreve as despesas dos alienados nas despesas variáveis dos Departamentos

- O Conselho de Estado prepara um projeto de lei.

1837 - Debate parlamentar abortado sobre reforma penitenciária.

- Início da discussão da lei sobre os alienados na Câmara dos deputados.

1838 - L. Moreau-Christophe: De la reforme des prisons en France basée sur la doctrine du système penal et le príncipe de 1'isolemenl indivi-duel. e Ch. Lucas: De la reforme des prisons.

- Esquirol, Des maladies mentales considérées sous les rapports medicai, hygiè-nique et médico-légal.

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Lei de 30 de junho de 1838 sobre os alienados

Título I - Dos estabelecimentos de alienados

Artigo 1. - Cada Departamento é obrigado a ter um estabelecimento público especialmente destinado a receber e a cuidar dos alienados, ou manter entendimentos, para esse fim, com um estabelecimento público ou privado, quer desse Departamento, quer de outro. ― Os contratos efetuados com os estabelecimentos públicos ou privados deverão ser aprovados pelo ministro do interior.

Artigo 2. - Os estabelecimentos públicos destinados aos alienados ficam sob a direção da autoridade pública.

Artigo 3. - Os estabelecimentos privados destinados aos alienados ficam sob a vigilância da autoridade pública.

Art. 4. - O prefeito departamental e as pessoas especialmente delegadas para esse fim por ele ou pelo ministro do interior, o presidente do tribunal, o procurador do rei, o juiz de paz, o prefeito municipal (*) ficam encarregados de visitar os estabelecimentos públicos ou privados destinados aos alienados. ― Eles receberão as reclamações das pessoas neles internadas e tomarão a seu respeito todas as informações convenientes para conhecer seu estado. ― Os estabelecimentos privados serão visitados, em dias indeterminados, pelo menos uma vez em cada trimestre, pelo procurador do rei do distrito. Os estabelecimentos públicos o serão da mesma maneira, pelo menos uma vez por semestre.

Art. 5 - Ninguém poderá dirigir ou formar um estabelecimento privado destinado aos alienados sem a autorização do governo. Os estabelecimentos privados destinados aos tratamentos de outros doentes não poderão receber as pessoas portadoras de alienação mental, a menos que fiquem num local inteiramente separado. ― Esses estabelecimentos deverão, para esse fim, ser especialmente autorizados pelo governo e serão submetidos, no que concerne aos alienados, a todas as obrigações prescritas pela presente lei.

Art. 6. - As condições em que serão outorgadas as autorizações enunciadas no artigo precedente, os casos em que elas poderão ser retiradas, e as obrigações às quais serão submetidos os estabelecimentos autorizados, serão determinadas por regulamentos da administração pública.

Art. 7. - Os regulamentos internos dos estabelecimentos públicos destinados, no todo ou em

parte, ao serviço dos alienados, serão submetidos, nas disposições relativas a esse serviço, à aprovação do ministro do interior.

* N. do T.: Traduzimos por prefeito departamental o préfet, funcionário do governo central, encarregado da administração de um Departamento (província), enquanto maire é traduzido por prefeito municipal.

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Título II. - Das internações realizadas nos estabelecimentos de alienados

Secção I - Das internações voluntárias

Art. 8. - O chefes ou prepostos responsáveis pelos estabelecimentos públicos e os diretores dos estabelecimentos privados e destinados aos alienados não poderão receber uma pessoa portadora de alienação mental, se não lhes for apresentado: 1º Uma solicitação de admissão contendo os nomes, profissão, idade e domicilio, tanto da pessoa que a formule como daquela cuja internação se solicita, e a indicação do grau de, parentesco ou, na ausência deste, a natureza das relações que existem entre elas. ― A solicitação será escrita e assinada por aquele que a formular e, se não souber escrever, ela será recebida pelo prefeito municipal ou pelo comissário de polícia, que a averbará. ― Os chefes, prepostos ou diretores, deverão se assegurar, sob suas responsabilidade, da individualidade da pessoa que tiver formulado a solicitação, quando essa solicitação não tiver sido recebida pelo prefeito ou pelo comissário de polícia. ― Se a solicitação de admissão for formulada pelo tutor de um interditado, ele deverá fornecer, como prova, um extrato do julgamento de interdição. ― 2º Um certificado médico, constatando o estado mental da pessoa a ser internada, e indicando as particularidades de sua doença e a necessidade de tratar a pessoa designada num estabelecimento de alienados, e nele mantê-la enclausurada. ― Esse certificado não poderá ser admitido se for expedido mais de quinze dias antes de ser apresentado ao chefe ou diretor; se for assinado por um médico vinculado ao estabelecimento, ou se o médico signatário for parente ou aliado, até o segundo grau inclusive, dos chefes ou proprietários do estabelecimento ou da pessoa que efetuar a internação. ― Em caso de urgência, os chefes dos estabelecimentos públicos poderão dispensar a exigência do certificado médico. ― 3º O passaporte ou qualquer outro documento próprio para constatar a individualidade da pessoa a ser internada. ― Far-se-á menção de todos os documentos apresentados num boletim de entrada, que será remetido, em vinte e quatro horas, com um certificado do médico do estabelecimento e a cópia do acima mencionado: em Paris, ao chefe de polícia; nas capitais de Departamento ou de distrito, ao prefeito ou ao sub-prefeito departamental; e, nos outros municípios, aos prefeitos municipais. O sub-prefeito departamental ou o chefe da administração municipal, envia-lo-ão imediatamente ao prefeito departamental.

Art. 9. - Se a internação for realizada num estabelecimento privado, o prefeito departamental, nos três dias a partir da recepção do boletim, encarregará um ou vários homens da arte de visitar a pessoa designada no boletim, para constatar seu estado mental e relatá-lo imediatamente. Ele poderá designar alguma outra pessoa para acompanhá-lo.

Art. 10. - No mesmo prazo, o prefeito departamental notificará administrativamente os nomes, profissão e domicílio, da pessoa internada e da que solicitou a internação, e as causas da internação: 1º ao procurador do rei do distrito do domicílio da pessoa internada; 2º ao procurador do rei do distrito onde o estabelecimento estiver situado. Essas disposições serão comuns aos estabelecimentos públicos e privados.

Art. 11, - Quinze dias após a internação de uma pessoa num estabelecimento público ou privado, será endereçado ao prefeito departamental, conforme o último parágrafo do artigo 8, um novo certificado do médico do estabelecimento; esse certificado confirmará ou retificará, se for o caso, as observações contidas no primeiro certificado, indicando o retorno mais ou menos frequente dos acessos ou dos atos de demência.

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Art. 12. - Haverá, em cada estabelecimento, um registro numerado e rubricado pelo chefe da administração municipal, no qual serão imediatamente inscritos os nomes, profissão, idade e domicílio das pessoas internadas no estabelecimento; a menção do julgamento de interdição, se foi pronunciado, e o nome do tutor; a data de sua internação, os nomes, profissão e residência da pessoa, parente ou não, que a tiver solicitado. Serão igualmente transcritos nesse registro: 1º o certificado médico anexo à solicitação de admissão; 2º os que o médico do estabelecimento deverá endereçar à autoridade, conforme os artigos 8 e 11. ― O médico será obrigado a consignar nesse registro, pelo menos a cada mês, as mudanças operadas no estado mental de cada doente. Esse registro constatará igualmente as saldas e as mortes, ― Esse registro será submetido às pessoas que, segundo o artigo 4, terão o direito de visitar o estabelecimento quando se apresentarem para fazer a visista; após seu término, tais pessoas oporão, no registro, seu visto, sua assinatura e, se for o caso, suas observações.

Art. 13. - Toda pessoa internada num estabelecimento de alienados deixará de ficar detida no mesmo tão logo os médicos do estabelecimento declararem, no registro enunciado no artigo precedente, que a cura foi obtida. - Se se tratar de um menor de idade ou de um interditado, será dada ciência imediata da declaração dos médicos às pessoas a quem ele deverá ser entregue e ao procurador do rei.

Art. 14. - Antes mesmo dos médicos declararem a cura, toda pessoa internada num estabelecimento de alienados deixará igualmente de ser retida desde que a saída seja requerida por uma das pessoas abaixo designadas, a saber: 1º o curador nomeado conforme o artigo 38 da presente lei; ― 2 º o esposo ou a esposa; ― 3 º se não houver esposo ou esposa, os ascendentes; ― 4 º se não houver ascendentes, os descendentes; ― 5 º a pessoa que assinou a solicitação de admissão, a menos que um parente tenha declarado se opor a que ela use dessa faculdade sem o assentimento do conselho de família; ― 6 º qualquer pessoa autorizada pelo conselho de família. ― Se ficar constatado, por notificação ao chefe do estabelecimento por quem de direito, que existe desacordo, quer entre os ascendentes, quer entre os descendentes, o conselho de família estatuirá. ― Entretanto, se o médico do estabelecimento for de opinião que o estado mental do doente poderá comprometer a ordem pública ou a segurança das pessoas, ele dará prévio, conhecimento do fato ao prefeito municipal, que poderá ordenar imediatamente uma suspensão provisória da saída, com a obrigação de notificar, dentro de vinte e quatro horas, o prefeito departamental. Essa suspensão provisória deixa plenamente de vigorar expirados quinze dias, se o prefeito departamental, nesse prazo, não der ordens em contrário, conforme o artigo 21, desta lei. A ordem do prefeito municiapl será transcrita no registro mantido em obediência ao artigo 12. Em caso de menorida-de ou de interdição, somente o tutor poderá requerer a saída.

Art. 15. - No decorrer das vinte e quatro horas após a saída, os chefes, prepostos ou diretores notificarão, sobre a mesma, os funcionários designados no último parágrafo do artigo 8 e lhes informarão do nome e residência das pessoas que tiverem retirado o doente, seu estado mental no momento da saída e, na medida do possível, do lugar a que for conduzido.

Art. 16. - O prefeito departamental poderá sempre ordenar a saída imediata das pessoas internadas voluntariamente nos estabelecimentos de alienados.

Art. 17. - Em todos os casos o interditado só poderá ser entregue a seu tutor, e o menor somente àqueles sob cuja autoridade estiver colocado pela lei.

Secção II - Das internações ordenadas pela autoridade pública

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Art. 18. - O chefe de polícia, em Paris e, nos Departamentos, o prefeito departamental, ordenarão compulsoriamente a internação, num estabelecimento de alienados, de qualquer pessoa, interditada ou não, cujo estado de alienação comprometa a ordem pública ou a segurança das pessoas. ― As ordens dos prefeitos departamentais deverão ser justificadas e enunciar as circunstâncias que as tornaram necessárias. Essas ordens, assim como as que forem dadas conforme os artigos 19, 20, 21 e 23, serão inscritas num registro semelhante ao que é prescrito pelo artigo 12, acima, cujas disposições serão totalmente aplicáveis aos indivíduos internados' compulsoriamente.

Art. 19. - Em caso de perigo iminente, atestado por certificado médico ou por notoridade pública, os delegados de polícia, em Paris, e os prefeitos municipais nas outras comunas, ordenarão todas as medidas provisórias necessárias, referentes a pessoas portadoras de alienação mental, com a obrigação de notificar, em vinte e quatro horas, o prefeito departamental que estatuirá sem delongas.

Art. 20. - Os chefes, diretores ou prepostos responsáveis pelos estabelecimentos, serão obrigados a dirigir aos prefeitos departamentais, no primeiro mês de cada semestre, um relatório redigido pelo médico do estabelecimento sobre o estado de cada pessoa que nele estiver retida, sobre a natureza de sua doença e os resultados do tratamento. ― O prefeito se pronunciará sobre cada uma individualmente, ordenará sua permanência no estabelecimento ou sua saída.

Art, 21. - Com respeito às pessoas cuja internação tiver sido voluntária, e no caso em que seu estado mental possa comprometer a ordem pública e a segurança das pessoas, o prefeito departamental poderá, nas formas determinadas pelo segundo parágrafo do artigo 18, baixar uma ordem especial, a fim de impedir sua saída do estabelecimento sem sua autorização, a não ser para interná-la num outro estabelecimento. ― Os chefes, diretores ou prepostos responsáveis serão obrigados a se submeterem a essa ordem.

Art. 22. - Os procuradores do rei serão informados de todas as ordens dadas em virtude dos artigos 18, 19, 20 e 21. ― Essas ordens serão notificadas ao prefeito municipal do domicílio das pessoas submetidas à internação, que, imediatamente dará ciência às famílias. Contas serão dadas ao ministro do interior. ― As diversas notificações prescritas pelo presente artigo serão feitas nas formas e nos prazos enunciados no artigo 10.

Art. 23. - Se, no intervalo que decorrer entre os relatórios ordenados pelo artigo 20, os médicos declararem, no registro mantido em obediência ao artigo 12, que a saída pode ser ordenada, os chefes, diretores ou prepostos responsáveis pelos estabelecimentos, serão obrigados, sob pena de serem processados, conforme o artigo 30, abaixo, de notificar o prefeito imediatamente, o qual estatuirá sem delongas.

Art. 24. - Os hospícios ou hospitais civis são obrigados a receberem provisoriamente as pessoas que lhes forem enviadas, conforme os artigos 18 e 19, até que elas sejam dirigidas para o estabelecimento especial destinado a recebê-las, nos termos do artigo 1º, ou durante o trajeto que tiverem que fazer para chegar até lá. ― Em todos os municípios onde existam hospícios ou hospitais, os alienados só poderão ser depositados nesses hospícios ou hospitais. Nos lugares em que eles não existam, os prefeitos municipais deverão prover seu alojamento, seja numa estalagem, seja num local alugado para esse fim. ― De forma alguma os alienados poderão ficar ou ser conduzidos com os condenados ou os acusados, nem poderão ser depositados numa prisão. ― Essas disposições são aplicáveis a todos os alienados dirigidos pela administração para um estabelecimento público ou privado.

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Secção III - Despesas do serviço dos alienados

Art. 25. - Os lienados, cuja internação for ordenada pelo prefeito, e cujas famílias não solicitarem a admissão em um estabelecimento privado, serão conduzidos para o estabelecimento pertencente ao Departamento, ou com o qual o Departamento tiver entrado em entendimento. ― Os alienados cujo estado mental não comprometa a ordem pública ou a segurança das pessoas serão igualmente admitidos nesses estabelecimentos, nas formas, nas circunstâncias e sob as condições que forem regulamentadas pelo Conselho Geral, por proposta do prefeito departamental, aprovadas pelo ministro.

Art. 26. - Os gastos de transporte das pessoas conduzidas pela administração aos estabelecimentos de alienados serão estabelecidos pelo prefeito nos memoriais dos agentes prepostos a esse transporte. ― Os gastos com a estadia, a manutenção e o tratamento das pessoas internadas nos hospícios ou estabelecimentos públicos de alienados serão regulados segundo uma tarifa estabelecida pelo prefeito. ― A despesa com a manutenção, a estadia e o tratamento das pessoas internadas pelos Departamentos nos estabelecimentos privados, será Fixada pelos contratos feitos pelos Departamentos conforme o artigo 1º.

Art. 27. - As despesas enunciadas no artigo precedente ficarão a cargo das pessoas internadas; na sua ausência, ficarão a cargo daqueles a quem se puder solicitar alimentos, nos termos dos artigos 205 e seguintes do Código Civil. ― Se houver contestação no que diz respeito à obrigação de fornecer alimentos, ou quanto à quota que couber, o tribuanl competente estatuirá, aos cuidados do administrador designado em obediência aos artigos 31 e 32. ― A cobrança das somas devidas será feita e executada aos cuidados da administração de registro e dos patrimônios.

Art. 28. - Na sua ausência, ou em caso de insuficiência dos recursos enunciados no artigo precedente, tais recursos provirão dos cêntimos atribuídos, pelo orçamento, às despesas comuns do De-' partamento ao qual o alienado pertence, sem prejuízo do concurso do município de domicílio do alienado, segundo as bases propostas pelo Conselho Geral, ouvido o prefeito departamental e aprovadas pelo governo. ― Os hospícios serão obrigados a uma indenização proporcional ao número dos alienados cujo tratamento ou manutenção esteja a seu encargo e que sejam internados num estabelecimento especial para alienados. ― Em caso de contestação o Conselho Departamental estatuirá.

Secção IV- Disposições comuns a todas as pessoas internadas nos estabelecimentos de alienados

Art. 29. - Qualquer pessoa internada ou retida num estabelecimento de alienados, seu tutor, se for menor, seu curador, qualquer parente ou amigo, poderá em qualquer momento, apelar diante do tribunal do lugar do estabelecimento que, após as verificações necessárias, ordenará, se for o caso, a saída imediata. ― As pessoas que solicitaram a internação e o procurador do rei, ex officio, poderão apelar com os mesmos fins. No caso de interdição, essa solicitação só poderá ser formulada pelo tutor do interditado. ― A decisão será tomada em função de um simples requerimento, na câmara do conselho e sem delongas; ela não precisará ser justificada. ― O requerimento, o julgamento e os outros atos a que a reclamação dê lugar, serão visados com timbre e levadas a débito. ― Nenhum requerimento, nenhuma reclamação dirigida, quer à autoridade judiciária, quer à autoridade administrativa poderão ser suprimidas ou retidas pelos chefes de estabelecimentos, sob as penas previstas no título III, abaixo.

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Art. 30. - Os chefes, diretores ou prepostos responsáveis não poderão, sob pena de infringirem o artigo 120 do Código Penal, reter uma pessoa internada num estabelecimento de alienados, desde que sua saída tenha sido ordenada pelo prefeito, nos termos dos artigos 16, 20 e 23, ou pelo tribunal, nos termos do artigo 29, nem quando essa pessoa se encontrar entre os casos enunciados nos artigos 13 e 14.

Art. 31. - As comissões administrativas ou de supervisão dos hospícios ou estabelecimentos públicos de alienados exercerão, com respeito às pessoas não interditadas que neles sejam internadas, as funções de administradores provisórios. Elas designarão um de seus membros para cumpri-las; o administrador assim designado procederá à arrecadação dás somas devidas à pessoa no estabelecimento e ao pagamento de suas dívidas, passará contratos de arrendamento que não poderão ultrapassar três anos, e poderá até, em virtude de autorização especial dada pelo presidente do tribunal civil, realizar a venda dos bens móveis. ― As somas provenientes, quer da venda, quer das outras arrecadações, serão vertidas diretamente à caixa do estabelecimento e serão empregadas, se for o caso, em proveito da pessoa internada no estabelecimento. ― A caução do coletor será alocada em garantia às ditas quantias em prioridade às dívidas de qualquer outra natureza. ― Contudo, os pais, o esposo, a esposa, as pessoas internadas em estabelecimentos de alienados dirigidos ou supervisionados por comissões administrativas, as próprias comissões, bem como o procurador do rei, sempre poderão recorrer às disposições dos artigos seguintes.

Art. 32. - Por solicitação dos pais, do esposo ou da esposa, da comissão administrativa ou por iniciativa ex offício do procurador do rei, o tribunal civil do lugar de domicílio poderá, em conformidade com o artigo 496 do Código Civil, nomear, em Câmara do Conselho, um administrador provisório dos bens de qualquer pessoa não interditada internada em um estabelecimento de alienados. Essa nomeação só terá lugar após deliberação do conselho de família e em função das conclusões do procurador do rei. Tal nomeação não será sujeita a apelação.

Art. 33. - O tribunal, por solicitação do administrador provisório, ou por iniciativa do procurador do rei, designará um mandatário especial com o fim de representar em justiça qualquer indivíduo não interditado e internado em um estabelecimento de alienados, que esteja engajado em uma contestação judiciária no momento da internação, ou contra o qual seja movida uma ação posteriormente. ― O tribunal poderá, também, em caso de urgência, designar um mandatário especial com o fim de mover ação mobiliária ou imobiliária, em nome desses mesmos indivíduos. O administrador provisório poderá, nos dois casos, ser designado como mandatário especial.

Art. 34. - As disposições do Código Civil, sobre as causas que dispensam da tutela, sobre as incapacidades, as exclusões ou as destituições dos autores, são aplicáveis aos administradores provisó-riosnomeados pelo tribunal. ― Por solicitação das partes interessadas ou do procurador do rei, o julgamento que nomear o administrador provisório poderá constituir, sobre seus bens, uma hipoteca geral ou especial, até uma soma determinada pelo dito julgamento. ― O procurador do rei deverá, dentro de prazo de quinze dias, inscrever essa hipoteca no serviço da conservação; ela datará apenas do dia da inscrição.

Art. 35. - No caso em que um administrador provisório tiver sido nomeado por julgamento, as notificações à pessoa internada em um estabelecimento de alienados serão feitas a esse administrador. ― As notificações ao domicílio, de acordo com as circunstâncias, poderão ser anuladas pelos tribunais. ― O artigo 173 do Código de Comércio não fica prejudicado.

Art. 36. - Na ausência de administrador provisório, o presidente, por requerimento da parte mais diligente, designará um tabelião para representar as pessoas não interditadas internadas em

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estabelecimentos de alienados, nos inventários, contas, partilhas e liquidações em que estejam interessadas.

Art. 37. - Os poderes conferidos em virtude dos artigos precedentes deixarão plenamente de vigorar do momento em que a pessoa internada num estabelecimento de alienados nele não esteja mais retida. ― Os poderes conferidos pelo tribunal em virtude do artigo 32 deixarão de vigorar expirado um prazo de três anos; eles poderão ser renovados. ― Esta disposição não se aplica aos administradores provisórios outorgados às pessoas mantidas pela administração em estabelecimentos privados.

Art. 38. - Por solicitação do interessado, de um de seus pais, do esposo ou da esposa, de um amigo, ou por iniciativa ex officio do procurador do rei, o tribunal poderá nomear, em Câmara de conselho, por julgamento não sujeito a apelação, além do administrador provisório, um curador da pessoa de qualquer indivíduo não interditado, internado em um estabelecimento de alienados, o qual deverá velar para: 1º que seus rendimentos sejam empregados para melhorar sua situação e acelerar sua cura; 2º que o dito indivíduo seja devolvido ao livre exercício de seus direitos, tão logo sua situação o permita. ― Esse curador não poderá ser escolhido entre os herdeiros presuntivos da pessoa internada em um estabelecimento de alienados.

Art. 39. - Os atos de uma pessoa internada em um estabelecimento de alienados, durante o tempo em que nele estiver retida, sem que sua interdição tenha sido pronunciada ou proposta, poderão ser denunciados por razão de demência, conforme o artigo 1.304 do Código Civil. ― Os dez anos da ação de nulidade, no que concerne à pessoa retida que tiver subscrito a tais atos, decorrerão a partir da notificação que lhe tiver sido feita, ou do conhecimento que tenha tomado após sua saída definitiva da casa de alienados; e, no que diz respeito aos seus herdeiros, a partir da notificação que lhe tenha sido feita ou do conhecimento que tenha tomado a partir da morte do autor. ― Quando os dez anos tiverem começado a correr contra este, continuarão a correr contra seus herdeiros.

Art. 40. - O ministério público será ouvido em todas as questões que interessem às pessoas internadas em um estabelecimento de alienados, mesmo que não estejam interditadas.

Título III - Disposições gerais

Art. 41. - As contravenções às disposições dos artigos 5, 8, 11, 12, do segundo parágrafo do artigo 13, dos artigos 15, 17, 20, 21 e do último parágrafo do artigo 29 da presente lei, e aos regulamentos estabelecidos em virtude do artigo 6, cometidas pelos chefes, diretores ou prepostos responsáveis pelos estabelecimentos públicos ou privados de alienados, e pelos médicos empregados nesses estabelecimentos, serão punidos com de cinco dias a um ano de prisão, e com uma multa de cinquenta francos a três mil francos, ou com uma ou outra dessas penas. ― Pode-se aplicar o artigo 463 do Código Penal.

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A ORDEM PSIQUIÁTRICA

A idade de ouro do alienismo

A ordem psiquiátrica, de Robert Castel, é um passo a mais, e decisivo, na análise das condições concretas em que o fenômeno da loucura é apropriado como objeto de real saber e poder legítimo por instituições socialmente reconhecidas. Reconhecidas precisamente pelo domínio que exercem sobre a insanidade e seus efeitos nos indivíduos e coletividades.

Em seu livro anterior, O psicanalismo (Graal, 1978), Castel traça a evolução dos sistemas psiquiátricos, nas suas relações com o saber médico e com os aparelhos repressivos, que resulta num processo de "psicologização" da sociedade. Mostra que o dispositivo institucional da psicanálise ― na relação entre o analista e o paciente, fonte de seu saber e de seu poder de "cura" ― é cúmplice desse processo.

Enfoque inovador, pois críticos e defensores da psicanálise contentavam-se em focalizar conceitos isolados. A questão é, assim, deslocada de uma sociologia das instituições e do dispositivo teórico-prático que reproduz um modo de conhecimento e de poder.

O que Castel agora retrata é a institucionalização de uma estratégia que toma por objeto as classes subordinadas. A tarefa da burguesia em ascensão incluía limpar o terreno dos imprestáveis e disciplinar os demais para o trabalho.

Desenvolve magistralmente o projeto iniciado em Eu, Pierre Rivière... (publicado nesta biblioteca), de desvendar de que maneira um domínio das condutas sociais torna-se patológico e subordinado à medicina, não por obra e graça de um progresso do saber, mas pela inserção dos psiquiatras nas engrenagens do poder.

Não é de se estranhar que a medicalização da desordem mental, dentro de um paradigma científico e legislativo, viesse a confundir, numa grande mixórdia, metáforas, conceitos e coisas, lutando em todas as frentes da noção de lei e de ordem. A psiquiatria nascente acaba não sabendo se deriva sua ação sobre a doença mental das normas científicas em que pretensa-mente se baseia, do contraste entre essa ação disciplinar e o disparate da loucura, ou da legislação, que legitima sua autoridade sobre a doença mental e, particularmente, sobre os doentes mentais.

História do saber psiquiátrico, a obra de Robert Castel é também uma micro-física da ordem social e das estratégias que mantêm a desordem sob controle, oferecendo um notável contraponto para a extraordinária reconstituição da história da psiquiatria no Brasil, publicada em Danação da Norma, por Roberto Machado e seus colaboradores, nesta mesma biblioteca.

J. A. Guilhon Albuquerque