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Casa do Terror - Número 3 - Editora Nona Arte - www.nonaarte.com.br - Página l Casa do Terror - Número 3 - Editora Nona Arte - www.nonaarte.com.br - Página 2 Hobby Estranho Abs Moraes - Ilustração de Jean Okada Os cabelos ajustados com perfeição em um coque na parte anterior da cabeça da mulher no carro ao lado despertaram mais uma vez minhas imaginação e curiosidade. O monturo preto de brilho acetinado denotava correção a toda prova, indicava um comportamento quase compulsivoobsessivo com a aparência. Sim, a aparência. Num mundo regido pela extrema importância dada à superfície, muitas patologias perigosas passam desapercebidas. Seria o caso dela? Ao entrar no prédio de escritórios, cruzei com o boy da agência de turismo. Brincos e piercings adornando a cabeça que culminava num orgulhoso moicano ostentado à custa de paciência diante do espelho e uma quantidade perigosa de gel glicerinado. Na idade dele, o importante é pertencer a um grupo. Dentro de dez anos ele olhará constrangido para fotografias que documentarem suas tentativas de tribalizar-se, mas no momento em que nossas sombras se sobrepuseram no chão encerado do saguão do prédio, pude ler com clareza em seu sorriso metálico a opinião que tinha a meu respeito. Muito desabonadora, claro. Mas sarcasmo não é província exclusiva de adolescentes e "sorriso" é meu jeito eufemístico de demonstrar o meu,

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Casa do Terror - Número 3 - Editora Nona Arte -www.nonaarte.com.br - Página l

Casa do Terror - Número 3 - Editora Nona Arte -www.nonaarte.com.br - Página 2

Hobby Estranho

Abs Moraes - Ilustração de Jean Okada

Os cabelos ajustados com perfeição em um coque na parte anteriorda cabeça da mulher no carro ao lado despertaram mais uma vez

minhas imaginação e curiosidade. O monturo preto de brilhoacetinado denotava correção a toda prova, indicava um

comportamento quase compulsivoobsessivo com a aparência. Sim,a aparência. Num mundo regido pela extrema importância dada àsuperfície, muitas patologias perigosas passam desapercebidas.

Seria o caso dela?

Ao entrar no prédio de escritórios, cruzei com o boy da agência deturismo. Brincos e piercings adornando a cabeça que culminava

num orgulhoso moicano ostentado à custa de paciência diante doespelho e uma quantidade perigosa de gel glicerinado. Na idade

dele, o importante é pertencer a um grupo. Dentro de dez anos eleolhará constrangido para fotografias que documentarem suastentativas de tribalizar-se, mas no momento em que nossas

sombras se sobrepuseram no chão encerado do saguão do prédio,pude ler com clareza em seu sorriso metálico a opinião que tinha a

meu respeito. Muito desabonadora, claro. Mas sarcasmo não éprovíncia exclusiva de adolescentes e "sorriso" é meu jeito

eufemístico de demonstrar o meu,

substantivando assim o esgar dúbio do rapaz. Mais uma vez aaparência é prevalente, mesmo que a patologia ainda não se tenha

manifestado.

Já acomodado em minha mesa e estudando gráficos e planilhasdesenhadas na fosforência verde da tela do computador, não

consegui deixar de olhar insistentemente a cabeça de um colega namesa vizinha. Como um frenologista amador, senti a tentação depedir-lhe permissão para apalpar seu crânio seminu, resultado de

um corte de cabelo popular hoje em dia que, de muitas maneiras, ésimilar à tosa inflingida a animais domésticos para prevenção ou

tratamento de doenças de pele. Seria o toque um instrumento eficazna detecção de uma doença mental? Meus dedos formigariam em

contato com cabelo tão curto quanto uma barba de três dias?

Cabelos ou cortes de cabelo não são facilmente associados aosseus donos e suas idiossincrasias ou, pelo menos, àquelas que vão

além da superfície.

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Hobbies nascem da necessidade de distração das agruras da vidadiária e podem tornar-se tão massacrantes quanto elas, tão

rotineiros e obsessivos quanto o coque perfeito da mulher no carroao lado, à espera do sinal verde para o prosseguimento de seupercurso. O meu consistia da observação atenta dos outros, de

seus tiques, hábitos e aparências e da comparação posterior dosdados levantados com arquétipos literários.

Seu nascimento deu-se em minha fase cervejas-sexo-casual-escatologia-egargalhadas-altas

que coincidiu com a descoberta da literatura polêmica e sexista deCharles Bukowski. A identificação inevitável ocorreu num quarto demotel barato, pós-coito, em que lia o inconseqüente CARTAS NA

RUA que relata, quase autobiograficamente, a relação do autor comuma ninfomaníaca. A descrição de minha parceira do momento (quese lavava no banheiro impessoal, usando miniaturas de sabonete e

saches de shampoo) no livro era perfeita da cabeça aos pés,externa e internamente, e não tinha sido escrita por mim.

Daí por diante, não pude deixar de reconhecer o amigo louco,bêbado, infame e inteligente que correspondia ao Neal Cassady

descrito por Kerouac em ON THE ROAD ou minha própriasimilaridade com os detetives de clássicos como Chandler, Hammet

ou MacDonald.

O salto perigoso entre literatura e realidade fora dado mas euestava longe de entender o quanto uma pode afetar a outra.

Fui rejeitado, na adolescência, por todos os grupos aos quais quispertencer. Minha falta de aptidão para os esportes foi um dos

fatores determinantes para que isso acontecesse. A religiosidade deminha família, outro.

Quando entendi que os adultos com que tinha contato não seinteressavam por mim e minhas fantasias juvenis, resignei-me aatravessar esta fase da vida com o mínimo possível de contato

humano (é claro que, com a chegada da puberdade, desejei todo ocontato humano possível com o sexo oposto). Isso significou tersempre à mão algo para ler nos intermináveis vinte minutos de

recreio e não houve repelente mais eficaz contra os outros pré-pubescentes de plantão.

Em casa, porém, o mesmo expediente não funcionava tãoinfalivelmente e, dentro de minha cosmologia maniqueísta em quetudo se devia à vontade combustível de Deus, agradeci aos céus

quando o primeiro gato de rua fixou residência.

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Seria mais preciso se dissesse gata e acrescentasse um adendo:recémparida, sua cria alojada numa das cestas de roupas da áreade serviço coberta. Pareceu estranha a indiferença de minha mãeaos animais e foi bizarro descobrir que ela os alimentava e, depois

de uns poucos dias, que transferiria a tarefa a mim. Semimpecilhos, sem é-pecado-e-você-vaiqueimar-no-inferno-por-isso.

Eu cumpria satisfeito a nova obrigação. O animal adulto já havia serecuperado o bastante para desaparecer por horas a fio e o filhote,

já quase desmamado, era gracioso com seus modos felinos einstintivos ainda não domesticados. Assim, ao descobrir que as

pálpebras

do bichinho amanheciam grudadas por uma secreção amarelada,dispusme, entre mordidas e arranhões, a limpá-los com água

corrente e paciência até que pudessem ser abertos sem dor. Nosapegamos um ao outro e com o crescimento a panterinha passou a

ser bem mais importante que qualquer outro animal que tive emqualquer outro momento de minha vida. Até, é claro, que o dito

momento passou e como todos os gatos adultos suas prioridadesmudaram de conforto e brincadeiras para conforto e procriação.Assim como as minhas, claro. O interesse crescente pelo que se

escondia sob as saias de uniforme e shorts de ginástica dascoleguinhas de escola foi só o primeiro sinal de mudança.

O contato com o gato, claro, nunca saiu de minha memória. Naverdade, recentemente manifestou-se com muita força devido a

uma associação livre de idéias

decorrente de meu hobby.

IV.

Há pouco mais de um ano comprei uma edição em inglês de contose poemas de Edgar Allan Põe, meu companheiro mórbido, entre

outros mais alegres, da hora do recreio. Relendo os contosaleatoriamente, fixeime na narrativa estranha e familiar de 'The

black cat". Nela, conduzido por um narrador-personagem que falade seu amor pelos animais e subsequente mudança

comportamental atribuída ao consumo do álcool, descobri que meuhobby de equalizar pessoas e personagens era um tanto limitado.

Quantos foram os indivíduos que passaram por grandes mudanças,extremas até, de comportamento que conheci em anos recentes?

Um punhado? Dezenas? Mais, certamente muitos mais.

Como, então, encontrar um que correspondesse ao narrador doconto de Põe? Eu não tinha os meios para isso e a frustraçãocresceu e tornou-se motivo de insónia e sonhos acordados.

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A revelação veio com a percepção do corte padronizado de cabelode meu colega de trabalho. Havia, então, um elemento comum, um

elo de ligação entre todas as pessoas que deixaram convicçõesarraigadas de lado para adotar a imprudência suicida como novo

modo de vida.

V.

No mundo literário, no cerne da mimesis, tudo é perfeito, todas asengrenagens giram sem espaço para a aleatoriedade, o mecanismo

do relógio universal cartesiano se realiza em todo seu potencial.

No mundo de Põe, em particular, havia a necessidade de que oculpado fosse punido, mesmo que seu crime tivesse sido acidental.A narrativa funcionava com uma lógica interna própria, inalienável.

O cadáver oculto no final de 'The black cat" tornaria o crime donarrador perfeito, sem pistas, exceto que... isso não seria permitido.

Se fosse, eqüivaleria no mundo real a ignorar a lei da gravidadesem o uso de nenhum aparato mecânico, pela simples força de

vontade. O culpado comete o crime porque quer ser apanhado e, nofim, ao perceber que isso pode não acontecer, reage de modo a

entregar as provas incriminadoras às autoridades. É assim em 'Theblack cat" e em outras narrativas do mesmo autor. No conto citado,

no entanto, o gato emparedado com a esposa assassinada funcionacomo alarme para a polícia.

O gato era o padrão, descobri logo a seguir.

VI.

Durante as intermináveis horas de análise e consultoria contábil,costumo navegar pela rede

inconseqüentemente, um recurso funcional para manter-me em diacom o mundo além dos números, borderôs, faturas e planilhas. A

informação que faltava para completar o quebra-cabeçasangustiante em que meu hobby se transformara chegou a mimdurante a leitura de notícias num site de divulgação científica.

"O manipulador", dizia o link em que cliquei quase porato reflexo.

Assim aprendi rapidamente a respeito do Toxoplasma Gondii, omanipulador citado no cabeçalho do texto. Segundo pesquisadoresda Universidade Carlos, em Praga, o toxoplasma é um parasita que,

depois de infectar o hospedeiro, esconde-se do sistemaimunológico no cérebro. Não era nenhuma novidade, haja visto quese trata de um dos parasitas humanos mais comuns no mundo, já

tendo infectado entre 30 e 60% da população global. A opiniãomédica sempre insistiu que o toxoplasma é

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quase sempre inofensivo, com potencial para afetar apenasmulheres grávidas e pessoas com o sistema imunológico

enfraquecido. Ou era isso o que se pensava... Jaroslav Flegr e seuscolaboradores descobriram que roedores, os "hospedeiros

intermediários" do parasita, podem ser manipulados por ele demodo a comportarem-se mais imprudentemente, tornando-se mais

ativos e menos temerosos de coisas novas e até sentindo atraçãopor urina de gatos, o que os torna mais vulneráveis a ataques

felinos, exatamente o que o "manipulador" quer. Afinal, otoxoplasma precisa infectar o gato, o "hospedeiro definitivo", para

completar seu ciclo vital e espalhar seus genes.

Gatos. Mudança de comportamento. Padrão.

Prossegui a leitura. A pista encontrada não validava minha teoria,não completava o quebra-cabeças, não me fazia sentir que o saltoentre literatura e realidade de que consistia meu hobby fora dado.

Faltava algo ou assim pensei até descobrir que a pesquisa seestendeu de ratos para homens. Apesar do pouco incentivo

evolutivo que o toxoplasma teria na manipulação de cérebroshumanos, os pesquisadores pensaram em como há semelhanças

entre estes e os dos roedores e deram o passo mais lógico,passando a conduzir uma série de testes com voluntários, algunscom a infecção latente e chegando a um resultado assustador: oshomens infectados reproduziam um aspecto da manipulação em

roedores. Eles tendiam a ser mais independentes e

ousados. A pesquisa se encerrava com a inevitável coleção denúmeros. Flegr e equipe testaram amostras de sangue de 146

pessoas envolvidas em acidentes de automóvel, parcial outotalmente responsáveis por eles, e de outras 446 pessoas num

grupo de controle. Havia mais portadores do toxoplasma no grupode acidentados. A ligação óbvia com a imprudência e tempo dereação retardado dos roedores foi como um estalo em minha

cabeça. Todos os dados se alinhavam, todas as peças, finalmente,encontravam seu lugar na imagem que formavam.

O narrador de Põe teria sido infectado pelo gato preto e, por isso,inconscientemente talvez, buscou vingar-se do animal? A pergunta

foi feita, o salto, dado.

VII.

"A por centagem alta me preocupa", eu disse enquanto trabalhavaem Edna. Por algum motivo ela não respondeu. Talvez tivesse a vercom a broca de furadeira elétrica partida e no meio do percurso em

direção à sua massa encefálica, não sei dizer. Os espasmosmusculares iam e vinham, mas eu não sabia se devia atribuí-los aalgum desequilíbrio químico do cérebro causado pelo composto decontrole mental do parasita, à broca, ou às marteladas que desferia

contra sua cabeça na

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tentativa de descobrir o manipulador escondido na matéria cinzenta.Edna, assim

como suas auxiliares Ana Cristina, Eriça, Michele e Juliana, era umadas pessoas mais dadas a mudanças de comportamento queconheci. Talvez isso se devesse ao cargo que ocupava e suainépcia em coordenar os trabalhos, usando as outras como

corroboradoras e disseminadoras de mentiras que culminavam como prejuízo moral dos funcionários comprometidos com a empresa...

era o que todos diziam. Ao investigá-la, logo depois de tertrabalhado em suas ajudantes, descobri que, como as outras,

também tinha um gato. Tinha que ser a infecção.

A tarefa a que decidi me dedicar depois da descoberta era maisinteressante ainda que meu hobby, pois me deu um novo propósito

e trabalho para a vida inteira.

Eu livraria meus iguais dos sofrimentos trazidos pela influência doparasita.

A possibilidade de ser apanhado foi uma de minhas preocupaçõesquando resolvi levar a cabo minha missão.

Mas eu tinha o álibi perfeito.

Também possuíra um felino.

FIM

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Purificação

Gian Danton - Ilustração de António Eder

Eu vi a face da morte. Eu vi a fraqueza e a força. Eu sou o anjopurificador. Este mundo está podre. Bichas andando pelas ruas.

Ecologistas clamando contra o direito sagrado de explorar anatureza. Tudo é podridão e decadência. Minhas mãos tremem

quando o metal penetra na pele. Ela grita e a coisa... a coisa ruimem mim fica rija. Jovens se beijando impudicamente na frente detodos. Eu sou clemente e bondoso. Eu fecho seus olhos para queela não veja o lixo... a podridão., a decadência... ela grita como setivesse um orgasmo... então eu desenho um retrato do mundo em

sua pele.

Sérgio regurgitou pedaços de cebola, pão e carne de hambúrguer.

- Ah, droga! Eu não deveria ter comido aquele sanduíche...

Carlos olhou à volta, incomodado com os curiosos. Chamou umpolicial e ordenou:

- Diga para as pessoas se afastarem e isole a área.

Os dois policiais estavam em um terreno baldio. No meio do mato,caída e despida, havia uma mulher morta.

Sérgio pegou um lenço e limpou a boca.

- E então, o que acha?

Carlos coçou o cavanhaque.

- Ele trabalhou nela durante toda a noite. Ela estava viva o tempotodo. Ele retirou as vísceras, mas teve o cuidado de não tocar emnenhum órgão vital. Ele a queria viva. Creio que ele não usou uma

mordaça.

- Às vezes me pergunto como você consegue descobrir essascoisas, como consegue entrar na mente desses doentes...

Carlos sorriu.

- Fui treinado para isso.

- Por que ele costurou os olhos dela, e não a boca? Não seria maisracional fazer com que ela se calasse?

- Não. O homem que fez isso tem um visão própria do mundo. Elequeria que o corpo dela fosse um reflexo de como ele vê a

realidade. Mas não

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queria que ela visse, por piedade. No entanto, ele sente prazer como que faz e queria ouvir os gritos dela. Muitas vezes, a reação dealguém sentindo dor é parecida com a de uma pessoa tendo um

orgasmo. Prazer e dor estão juntos desde o início da humanidade.Pinturas nas cavernas mostram um casal copulando e seespancando. Ele queria sentir o prazer de vê-la sofrendo.

- Isso é doentio. - cortou Sérgio.

- Isso significa que nosso homem tem um local isolado, ondeninguém pode vê-lo ou ouvir o que ele faz.

Sérgio puxou o outro para longe do corpo.

- Vamos sair daqui. Cibele vai fazer almôndegas e eu não queroperder o apetite. Precisamos ir para a delegacia. Vamos deixar olegista terminar o serviço. Rapaz, eu gostaria de saber o que está

acontecendo com o mundo...

Eu sei. Eu vi a face do mundo e conheci suas vísceras. Ele estápodre por dentro. Eu vi um grupo musical fazendo propaganda da

maconha. Eu vi mulheres defendendo o aborto. Eu vi um ex-guerrilheiro tornar-se ministro. Somos um país fraco. Fraco. Fraco.

Agora todos podem falar, em uma orgia de opiniões. Ninguémmanda. Ninguém dá ordem ao mundo. Os bons tempos se foram.Naqueles tempos, quem ousasse discordar, era cortado como um

dedo com gangrena. Eu sei. Eu vi. Eu vi o caos para o qual estamosindo. Mas vou consertar as coisas. Eu sou o anjo purificador. Ele-ela

se contorce sob meus instrumentos. Agora não há mais diferençaentre homens e mulheres. São todos iguais e o caos toma conta domundo. É o fim. É o fim. Eu via a face da morte. E vi a fraqueza e aforça. Eu sou o anjo purificador. Eu sou misericordioso e, além deseus olhos, costuro seu membro. Agora não é nem ele, nem ela. Éapenas um corpo, pronto para ser purificado. Pego meu estilete e

começo minha obra.

- Oh, meu Deus! Ainda vou abandonar esse emprego. - disseSérgio. Se não fosse pela aposentadoria... Carlos, antes era uma

prostituta... agora um travesti... quem é o maluco que está fazendoessas coisas?

O travesti estava aos pés deles. Seus cabelos longos e loiros seespalhavam pelo mato, tingidos de vermelho. Seus olhos

costurados pareciam ter fitado a morte. Haviam se passado apenasdois dias desde que encontraram a prostituta.

- Carlos, na época da ditadura as coisas eram muito mais fáceis.Estávamos lutando contra terroristas. Nós batíamos um pouco neles

e eles falavam. Tudo se resolvia...

- Você deve se acostumar aos novos tempos.

Sérgio estava agachado, ao lado do corpo, examinando-o.

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- Veja, há alguma coisa aqui. - pegou no corpo do cadáver e trouxena ponta do dedo um pouco de pó amarelo. Cheirou. É enxofre.

- Enxofre? Isso significa alguma coisa?

- Havia enxofre no corpo da prostituta assassinada...

Sérgio enrugou a testa. Carlos puxou-o.

- Vamos sair daqui. Precisamos de um mapa da cidade.

Foram até o carro. Carlos dirigiu até a delegacia. Sérgio pareciaabalado e incapaz de dirigir.

- Enxofre. - disse, depois de algum tempo. Parece que ele cometeuum erro...

- Psicopatas nunca cometem erros. - corrigiu Carlos. Eles nãodeixam pistas. Só são apanhados quando querem... Talvez aquele

rapaz que encontramos no mês passado tenha algo a ver comisso...

Havia um grande mapa da cidade na delegacia. Eles odesenrolaram sobre uma mesa e começaram a marcar os locais em

que haviam sido encontrados os corpos. A união dos três pontosformava um triângulo perfeito.

Estou preparado para meu próximo ato. Minha próxima vítima. Elagritará, contorcendo seu corpo flácido, prejudicado por anos de

ócio. Eu posso ver o caos, posso senti-lo tomando cada canto destemundo. Posso sentilo no ar. Eu sou o instrumento da ordem. O gritode minhas vítimas é como um hino. Um hino de horror. Eu vi a face

da morte. E vi a fraqueza e a força. Eu sou o anjo purificador eestou esperando, impaciente, pelo meu trabalho...

Sérgio acordou com o telefone tocando. A mulher, ao seu lado nacama, roncava placidamente. Ele ligou o abajur e atendeu.

- Alô, Sérgio? Aqui é Carlos. Desculpe incomodar a essa hora, masacho que descobri onde está o nosso homem. Não era um

triângulo. Era um A. O ponto que faltava era exatamente no meiopara formar a letra A. Descobri que existe uma velha fábrica de

pólvora nesse ponto. Para fazer pólvora é necessário enxofre, porisso as vítimas tinhas enxofre no corpo. Aquelas pessoas foram

mortas na fábrica. Se nos apressarmos, talvez consigamos salvaruma vida.

Sérgio foi de carro até o ponto marcado, mas não encontrou Carlos.Havia, de fato, uma velha fábrica abandonada. O policial pegou suaarma e entrou. Súbito sentiu uma pancada na cabeça. Então tudo

ficou escuro.

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Eu vi a face da morte. Eu vi a fraqueza e a força. Eu sou o anjopurificador. Acorde, vamos, acorde! Psicopatas não deixam pistas.

Eles não se deixam apanhar. Minha vítima abre os olhos.

- Você? Carlos, Meu Deus! Que brincadeira é essa? Medesamarre...

Psicopatas deixam apenas rastros de pão ao longo do caminho...para que a vítima caía na armadilha.

- Carlos, por que você está fazendo isso? Por favor, largue essaagulha!

Eu vi a face do mundo. Eu olhei para o globo e vi seu rostodistorcido. Vi cabeludos drogados, vi homens que se vestem comomulheres, vi subversivos se tornando ministros e até presidentes, vipoliciais esquecerem seu dever de manter a ordem e a paz. Você

deveria estar do meu lado, SÉRGIO, cortando os membroscancerosos da sociedade. Mas não. Você se tornou complacente,deu ouvidos à libertinagem. Seu corpo está podre e eu vou tirar a

podridão de você. Eu vi a face da morte. Eu vi a fraqueza e a força.Eu sou o anjo purificador.

O grito ecoou pela fábrica. Sérgio ainda sofreria muito antes de serpurificado.

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Paraíso Perdido

Mareio Massula Jr. - Ilustração de Aníbal

Minha mulher não falava comigo havia dias.

Isso me incomodava.

Era estranho passar uma semana sequer sem receber algum tipode advertência do meu chefe, na verdade variações muito

pequenas e nada sutis da frase "mais uma dessa e cê tá no olho darua!".

Isso me incomodava.

O dinheiro ficava cada vez curto. Era nosso aniversário decasamento e a única coisa na qual eu pude pensar que se

encaixava na faixa de preço permitida pelas minhas posses erauma coletânea do TEARS FOR FEARS. Aquela que todo mundo

tem.

E eu nem sabia se ela gostava daquela música ou não.

Isso me incomodava.

Eu estava a ponto de explodir.

O problema todo começou quando meu organismo, que a essasalturas do campeonato também estava contra mim, interpretou de

maneira bastante subjetiva meu estado de espírito.

Eu havia acabado de entrar no shopping, procurandodesesperadamente pelo banheiro mais próximo.

Passei, pelos meus cálculos, meia hora ali, sentado, reduzido anada, descarregando toda a sorte de sentimentos "negativos" que

havia dentro de mim da única maneira que me era possível.

Dentro de uma privada.

Isso, com certeza, me incomodava.

Mas, pasmem, nem nesse momento de introspecção eu tinha paz!

Vendo as coisas hoje, acho que era pedir demais mesmo.

O cubículo ao lado também estava ocupado.

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Meu "companheiro de labuta", se é que posso chamar assim, nãoconseguia simplesmente deixar que o sistema fisiológico agisse porconta própria. Não. Para ele, devia haver um ritual ou procedimento

misterioso que envolvia uma sucessão infindável de grunhidos,tilintares metálicos, tossidos e mais um ou dois tipos de ruído queum ser humano pode emitir mediante potencial constrangimento.

Ou foi isso que pensei na hora a respeito do meu mais novoinimigo.

E isso me incomodava. Muito.

Consegui sair antes dele.

Fiquei ali, lavando minhas mãos por dois ou três minutos,aguardando o sacripanta abrir a portinha do cubículo.

Sentia-me como um predador.

Projetei minha consciência até as savanas africanas. Eu lá,majestoso, imponente, espreitando, aguardando a hora certa de dar

o bote, enquanto uma equipe extasiada de fotógrafos ecinegrafistas da NATIONAL GEOGRAPHIC, protegidos pela

distância proporcionada pelo zoom de suas máquinas,documentava toda a selvageria implícita numa simples refeição.

Então, minhas preces foram atendidas.

Eu queria dar uma olhada naquele homem, só uma. Ver pelo menosuma vez o brilho de seus olhos, antes de...antes de...bem, até

aquele momento, eu ainda não havia decidido o que fazer com ocara.

Ao que parece, ele não pensava da mesma maneira. Saiu e nemprestou atenção em mim. Como se isso não bastasse, não lavou as

mãos.

Fui atrás dele, o mais rápido que pude. Uma menina de blusavermelha passou por mim e por alguns segundos, o olhar que

recebi dela me distraiu da minha busca.

Segundos esses mais que suficientes para que minha cabeça fosseatravessada por dois projéteis de fuzil (austríaco, calibre 5,56mm

OTAN, modelo compacto, 30 projéteis no pente, 400 tiros por

minuto, munição hollow point, a mais nova sensação entre ostraficantes e ladrões de carro forte) que arrancaram boa parte do

lado direito do meu crânio, assim como meu cérebro. Fui a segundavítima, levando o segundo e terceiro tiros. Uma senhora já tinha

sido alvejada antes, mas a providência fez com que o tiro pegassenum dos braços. Ela sobreviveu. Teve que amputar um braço, mas

sobreviveu.

Além de mim e da velha maneta, mais oito vítimas fatais e trêsmutiladas. O idiota estava tão alucinado que ainda tentou se

suicidar com a arma

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descarregada. Nem preciso dizer que assim que perceberam que ocara era, ou melhor estava, inofensivo, caíram em cima dele, comonaquele filme que saiu há pouco tempo, aonde mais de cem caras

sobem em cima de outro. Só que este cara não consegui jogar todomundo pra cima. Desculpem, sinceramente não me lembro do

nome do filme. Depois daquilo ficou meio difícil lembrar das coisas.

O fato é: a vida após a morte não é, definitivamente, o que euesperava.

Nada de sujeitinhos de branco tocando harpas e trombetasenquanto você sobe por uma escada rolante, branquíssima, para

chegar lá em cima e encontrar um velho barbudo e bonachão,também de branco, com um livro muito semelhante a um catálogo

telefónico, sem páginas amarelas, claro, que encontraria seu nome,daria-lhe os parabéns, um tapinha nas costas e deixaria você entrar

por uma porta alvíssima e muito brilhante, terminando assim, deforma digna, ma carreira de bons serviços prestados a humanidade.

É claro que nunca tive coragem de admitir isso enquanto eu eravivo.

Você sente a dor. Então, tudo escurece. Então, você acordanovamente, no meu caso, em um beco escuro no centro da cidade.

Estava chovendo, não havia ninguém na rua. Eu me levantei efiquei ali, sem saber o que fazer. Então, aparece um cara e me

chama pelo nome. Pergunta se sou eu mesmo, ao que respondo"sim". Então o cara me vem com um papo de que eu já tinha

morrido, coisa e tal, mas como não tinha sido um bom menino, nadade "descanso" (assim mesmo, bem irónico). Eu ia ter que ficar por

aqui mesmo enquanto minha situação era reavaliada. Então, óbvio,perguntei o que ele queria dizer com descanso. E ele me disse que

não fazia a mínima idéia.

Um adendo:

Suas tripas estavam expostas, penduradas na cratera que havia emsua barriga. E o mais incrível é que aquilo não incomodava. Não do

jeito normal, quero dizer. Nos poucos momentos que passamosjuntos, tentei tomar coragem e perguntar como ele fazia para nãotropeçar nos intestinos, mas em nome dos bons modos, deixei a

idéia de lado.

Outro adendo:

O tempo, depois que você passa dessa pra melhor, ou melhor,daquela pra essa, não funciona exatamente da mesma maneira.

Bem, o que importa é que estávamos em meu enterro. O caixãoestava fechado. Segundo ele, aquela era a última chance que eu

teria de ver todas as pessoas pelas quais eu sentia alguma pontadade amor ou simpatia. Esses momentos de catarse-atávica-coletiva

funcionam como uma espécie de droga para nós.

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Uma droga que você experimenta apenas uma vez.

Tudo depende da proporção de pessoas para quem você foi dealguma forma importante. Se foi bem quisto pelos parentes e

amigos, ótimo. Se ninguém vai ao seu enterro, o problema é seu.

Mais um dos estranhos mecanismos que rege o lado de cá.

Próximo passo: diversão.

Embora eu esteja, tecnicamente, pagando meus pecados, algunsdireitos básicos ainda me são garantidos.

Um deles é assombrar o cara que me matou.

Depois do tiroteio e do suicídio fracassado, o cara foi preso e atelevisão transformou tudo num circo, como sempre. Algo fez com

que o rapaz, jovem, profissional liberal e rico ficasse com um

parafuso solto e passasse os últimos dois meses antes do tiroteiono shopping alvejando mendigos e traficantes (palavras dele) pelacidade. E ninguém se deu ao trabalho de ligar os pontos até que o

sujeito metralhou algumas pessoas numa área nobre cidade.Coisas da vida.

Virgílio - esse era o nome do extripado que me acompanhou.Bêbado profissional. Morto por um casal de Pit Bulis entediados -

disse que eu não precisava fazer muito. Só meu aspecto, que era ode quando morri (já disse isso?), já seria suficiente para fazer o cara

se borrar todo. Eu resolvi ir um pouco mais além.

Costumo visitá-lo todos os dias.

É uma técnica bem simples. Eu sou cordial e calmo num dia, e nooutro me transformo numa aparição bestial (a flexibilidade

ectoplásmica em ação) e sádica, saída do próprio inferno (figura delinguagem). Não tem erro.

As vezes trago notícias do lado de fora, sobre a família que oignorou, sobre as famílias que ele destruiu, etc. Não funcionoumuito das primeiras vezes, ele se preocupava mais em gritar e

chamar os enfermeiros do que ouvir o que eu tinha a dizer. Depois,com o tempo, parece que ele foi se acostumando com a idéia elimitava-se a ficar encolhido num canto, chorando, tremendo e

rezando.

Ah! E não sou apenas eu que visito o cara. Lembram da menina dablusa vermelha?

O engraçado é que realmente o cara surtou na época dosassassinatos, ou seja, foi um caso de insanidade temporária. Não,

eu não sei os detalhes técnicos.

Casa do Terror - Número 3 - Editora Nona Arte -www.nonaarte.com.br - Página 18

Ele, teoricamente, está são nesse momento, mas digamos queminhas visitas contribuíram para que os enfermeiros e psiquiatras

pensassem diferente. E agora até o próprio sujeitinho estápensando que pirou.

Vocês podem até achar que é maldade minha, que ele já estápagando pelo que fez, que ele pirou e etc. e tal, mas a verdade é

que não há muito o que fazer aqui.

Bem senhoras e senhores, é isso.Desculpem a minha tagarelice,mas eu não costumo ver muita...gente por aqui, ainda mais assim,

em grupos. O ônibus caiu aonde mesmo?

Bem, divirtam-se, mais tarde eu encontro vocês, certo? Agora,tenho uma visitinha a fazer...

Casa do Terror - Número 3 - Editora Nona Arte -www.nonaarte.com.br - Página 19

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Lâmina na névoa

Josiel Vieira - Ilustração de Alexandre Lima

A escuridão vai esmaecendo, torna-se pardacenta e vira uma névoaentremeada de ventos e chuviscos. Está chuviscando; olho para

meu reflexo numa poça d'água. Estou de terno. Eu sei que sou umprofessor e estou vindo da aula. Engraçado; há alguns momentos

poderia jurar que eu era outra pessoa. Mas sou um professor. Sintoas gotas geladas batendo em meu rosto, sinto o vento de vez em

quando tentando arrancar meu chapéu. Ouço o ecoar metálico dosmeus sapatos lustrosos na calçada.

Mas o vento pára e de repente um gigantesco silêncio se abatesobre as coisas. Está tudo tão silencioso que tenho dificuldade até

para respirar. Olho ao redor; estou dentro de um parque. Vejo oestilo do coreto e dos bancos, em art noveau. As árvores de tronco

negro salpicado de liquens brancos e rosas formam uma únicaabóbada verdejante sobre mim; a folhagem move-se lentamente, e

algumas gotas caem. Mas não há ruído algum.

Deus, o que está acontecendo com o mundo? Sinto o ar opressivo;por uns instantes tenho uma vertigem a desabo num banco de ferropintado de branco. Estava molhado, e os fundos de minhas calças

se molham de maneira bem desagradável, como a me chamar paraa realidade. Mas sequer sei se é manhã ou tarde.

Meu coração começa a bater com força; trinco os dentes e olho aoredor, desesperado. Tenho a sensação de fim de mundo. Acho queme matei há pouco. Em que ano estou? Quantos anos eu tenho?

Meus pulmões são feras dentro do meu peito, acuadas pelasdúvidas que iam brotando à minha frente. As dúvidas sempre forampessoas para mim, pessoas que nunca me abandonaram na minha

miséria pelo existir.

O verde das árvores tem refulgências cristalinas, e começa a meofuscar. Com a visão embaçada, vejo uma pessoa se aproximar -antes duvido realmente que esteja vendo uma pessoa. Mas ela se

senta ao meu lado. Eu não esboço nenhuma reação; não acumprimento nem nada. Só o suor e a agonia saem de meu rostode dentes entrecerrados. Sinto a pessoa desabotoar meu paletó eajeitar meus cabelos molhados. Olho para ela. É uma menina bem

jovem, tem uns dezoito anos, e veste um vestido branco que vai atéos pés.

- O senhor está melhor?

- Estou... obrigado.

Casa do Terror - Número 3 - Editora Nona Arte -www.nonaarte.com.br - Página 21

- É professor?

- Sim, como soube?... ah, claro, são os livros que eu carrego.

Olho para ela, ainda com a visão embaçada. O vestido dela eramuito bonito, mas não parecia... digamos... atual. Bem, o que

importa? Como seu o meu terno fosse moderno! Quanto mais eume esforço para parecer um adulto, usando roupas sérias, mais eu

pareço um moleque. E odeio isso.

- Não deveria odiar tanto as coisas - ela disse vendo o quanto euamassava inconscientemente os livros de psicologia entre a palma

da mão

- além disso, você parece ser atormentado por dúvidas.

- Como sabe? - eu pergunto olhando o pequeno crucifixo douradono pescoço sensual dela. Eu gostaria que essa garota fosse algumfantasma do século passado ou retrasado; ou então que eu tivessevoltado ao passado. Porque eu gostei realmente dela. Daria tudo

para chupar aquele pescoço. Mas conforme eu tentei dialogar comela, a minha voz se tornou um murmúrio de bêbado e minha línguase enrolou de uma forma análoga à maneira como o corpo dela foise enrolando no vestido branco até virar um apavorante casulo. Eu

estava sentado ao lado de um casulo que abrigava um bichoignorado.

Apanho os meus livros e o meu chapéu e vou-me embora, como sefosse a coisa mais normal do mundo deixar para trás da gente uma

incógnita.

Algo cortante... uma lâmina na névoa.

Quando pequeno, quando questionavam se eu sabia de cor a lição,eu costumava dizer que deu um "branco". E dizia assim, como sefosse a coisa mais normal do mundo, responder às dúvidas com o

esquecimento.

P.S: talvez no outro dia alguém leia no jornal sobre o cadáver deuma menina embrulhado em seu próprio vestido. Talvez...

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