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ANPOF - Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia

Diretoria 2015-2016Marcelo Carvalho (UNIFESP)Adriano N. Brito (UNISINOS)Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros (USP)Antônio Carlos dos Santos (UFS)André da Silva Porto (UFG)Ernani Pinheiro Chaves (UFPA)Maria Isabel de Magalhães Papa-Terra Limongi (UPFR)Marcelo Pimenta Marques (UFMG)Edgar da Rocha Marques (UERJ)Lia Levy (UFRGS)

Diretoria 2013-2014Marcelo Carvalho (UNIFESP)Adriano N. Brito (UNISINOS)Ethel Rocha (UFRJ)Gabriel Pancera (UFMG)Hélder Carvalho (UFPI)Lia Levy (UFRGS)Érico Andrade (UFPE)Delamar V. Dutra (UFSC)

Equipe de ProduçãoDaniela GonçalvesFernando Lopes de Aquino

Diagramação e produção gráficaMaria Zélia Firmino de Sá

CapaCristiano Freitas

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

F487 Filosofiamedieval/OrganizadoresMarceloCarvalho,Roberto

HofmeisterPich,MarcoAurélioOliveiradaSilva,CarlosEduardoOliveira.SãoPaulo:ANPOF,2015.450p.–(ColeçãoXVIEncontroANPOF)

BibliografiaISBN978-85-88072-28-2

1.FilosofiamedievalI.Carvalho,MarceloII.Pich,RobertoHofmeisterIII.Silva,MarcoAurélioOliveiradaIV.Oliveira, Carlos Eduardo V. SérieCDD100

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COLEÇÃO ANPOF XVI ENCONTRO

Comitê Científico da Coleção: Coordenadores de GT da ANPOF

Alexandre de Oliveira Torres Carrasco (UNIFESP)André Medina Carone (UNIFESP)Antônio Carlos dos Santos (UFS)Bruno Guimarães (UFOP)Carlos Eduardo Oliveira (USP)Carlos Tourinho (UFF)Cecília Cintra Cavaleiro de Macedo (UNIFESP)Celso Braida (UFSC)Christian Hamm (UFSM)Claudemir Roque Tossato (UNIFESP)Cláudia Murta (UFES)Cláudio R. C. Leivas (UFPel)Emanuel Angelo da Rocha Fragoso (UECE)Daniel Nascimento (UFF)Déborah Danowski (PUC-RJ)Dirce Eleonora Nigro Solis (UERJ)Dirk Greimann (UFF)Edgar Lyra (PUC-RJ) Emerson Carlos Valcarenghi (UnB) Enéias Júnior Forlin (UNICAMP)Fátima Regina Rodrigues Évora (UNICAMP)Gabriel José Corrêa Mograbi (UFMT)Gabriele Cornelli (UnB)Gisele Amaral (UFRN)Guilherme Castelo Branco (UFRJ)HoracioLujánMartínez(PUC-PR)Jacira de Freitas (UNIFESP)Jadir Antunes (UNIOESTE)Jarlee Oliveira Silva Salviano (UFBA)Jelson Roberto de Oliveira (PUCPR)João Carlos Salles Pires da Silva (UFBA)Jonas Gonçalves Coelho (UNESP)José Benedito de Almeida Junior (UFU)

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José Pinheiro Pertille (UFRGS)JovinoPizzi(UFPel)Juvenal Savian Filho (UNIFESP) Leonardo Alves Vieira (UFMG)Lucas Angioni (UNICAMP)Luís César Guimarães Oliva (USP)LuizAntonioAlvesEva(UFPR)LuizHenriqueLopesdosSantos(USP)LuizRohden(UNISINOS)Marcelo Esteban Coniglio (UNICAMP)Marco Aurélio Oliveira da Silva (UFBA)Maria Aparecida Montenegro (UFC)Maria Constança Peres Pissarra (PUC-SP)Maria Cristina Theobaldo (UFMT)Marilena Chauí (USP)Mauro Castelo Branco de Moura (UFBA)Milton Meira do Nascimento (USP)Osvaldo Pessoa Jr. (USP)Paulo Ghiraldelli Jr (UFFRJ)Paulo Sérgio de Jesus Costa (UFSM)Rafael Haddock-Lobo (PPGF-UFRJ) Ricardo Bins di Napoli (UFSM)Ricardo Pereira Tassinari (UNESP)Roberto Hofmeister Pich (PUC-RS)SandroKobolFornazzari(UNIFESP)Thadeu Weber (PUCRS)WilsonAntonioFrezzattiJr.(UNIOESTE)

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Apresentação da Coleção

XVI Encontro Nacional ANPOF

Apublicaçãodos24volumesdaColeçãoXVIEncontroNacio-nalANPOFtemporfinalidadeofereceroacessoapartedostrabalhosapresentadosemnossoXVIEncontroNacional,realizadoemCamposdoJordãoentre27e31deoutubrode2014.Historicamente,osencon-tros da ANPOF costumam reunir parte expressiva da comunidade de pesquisadoresemfilosofiadopaís;somenteemsuaúltimaedição,foiregistradaaparticipaçãodemaisde2300pesquisadores,dentreelescercade70%dosdocentescredenciadosemProgramasdePós-Gradu-ação.Emdecorrênciadesteperfilpluralevigoroso,tem-sepossibilita-doumacompanhamentocontínuodoperfildapesquisaedaproduçãoemfilosofianoBrasil.

As publicações da ANPOF, que tiveram início em 2013, porocasiãodoXVEncontroNacional,garantemo registrodepartedostrabalhos apresentados por meio de conferências e grupos de traba-lho,epromovemaampliaçãododiálogoentrepesquisadoresdopaís,processo este que tem sido repetidamente apontado como condição ao aprimoramento da produção acadêmica brasileira.

É importante ressaltar que o processo de avaliação das produções publicadas nesses volumes se estruturou em duas etapas. Emprimeirolugar,foirealizadaaavaliaçãodostrabalhossubmetidosao XVI Encontro Nacional da ANPOF, por meio de seu ComitêCientífico,compostopelosCoordenadoresdeGTsedeProgramasdePós-Graduação filiados,epeladiretoriadaANPOF.Apóso términodoevento,procedeu-seumanovachamadadetrabalhos,restritaaospesquisadores que efetivamente se apresentaram no encontro. Nesta etapa, os textos foram avaliados pelo Comitê Científico da ColeçãoANPOFXVIEncontroNacional.Ostrabalhosaquipublicadosforamaprovadosnessasduasetapas.Arevisãofinaldostextosfoiderespon-sabilidade dos autores.

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AColeçãoseestruturaemvolumestemáticosquecontaram,emsuaorganização, comacolaboraçãodosCoordenadoresdeGTsqueparticiparamdaavaliaçãodostrabalhospublicados.Aorganizaçãote-mática não tinha por objetivo agregar os trabalhos dos diferentes GTs. Essestrabalhosforammantidosjuntossemprequepossível,mascomfrequência privilegiou-se evitar a fragmentação das publicações e ga-rantir ao leitor um material com uma unidade mais clara e relevante.

EssetrabalhonãoteriasidopossívelsemacontínuaequalificadacolaboraçãodosCoordenadoresdeProgramasdePós-GraduaçãoemFilosofia,dosCoordenadoresdeGTsedaequipedeapoiodaANPOF,emparticularde FernandoL. deAquino edeDanielaGonçalves, aquem reiteramos nosso reconhecimento e agradecimento.

Diretoria da ANPOF

Títulos da Coleção ANPOF XVI Encontro

Estética e ArteÉtica e Filosofia PolíticaÉtica e Política ContemporâneaFenomenologia,ReligiãoePsicanáliseFilosofiadaCiênciaedaNaturezaFilosofiadaLinguagemedaLógicaFilosofiadoRenascimentoeSéculoXVIIFilosofiadoSéculoXVIIIFilosofiaeEnsinarFilosofiaFilosofiaFrancesaContemporâneaFilosofiaGregaeHelenísticaFilosofiaMedievalFilosofiaPolíticaContemporâneaFilosofiasdaDiferençaHegelHeideggerJustiça e DireitoKantMarx e MarxismoNietzschePlatãoPragmatismo,FilosofiaAnalíticaeFilosofiadaMenteTemasdeFilosofiaTeoria Crítica

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Sumário

Aalmaesuasfaculdades:umahipótesesobreousodostermosem Agostinho

Ricardo Pereira Santos Lima 11 A Construção de uma Teologia Política na Idade Média a dosescritosdoPseudo-Dionísio,oAreopagita

Gerson Leite de Moraes 20

Elementos Cinéticos do Conceito Agostiniano de Pecado Maurizio Filippo Di Silva 29

OsignificadodamenteemSantoAgostinhoSérgio Ricardo Strefling 40

Sobre o ser e a essência em Agostinho Luiz Marcos da Silva Filho 50

VerdadeefalsidadedasficçõesapartirdeSolilóquios de Agostinho Daniel Fujisaka 59

Liberdade e Graça em Santo Agostinho Flavia Formaggio de Lara Azevedo 85

Vontade segundo a obra o livre-arbítrio de Santo AgostinhoDinno Camposilvan Zanella 97

Ordemebelezadouniversonaestéticafilosófico-religiosade Santo Agostinho

Marcos Roberto Nunes Costa 108

AsimetrianaestéticacosmológicadeSantoAgostinhoRicardo Evangelista BrandãoMarcos Roberto Nunes Costa

118Considerações sobre problemas éticos em Pedro Abelardo: Comentários à Epístola de Paulo aos Romanos e a Ética

Pedro Rodolfo Fernandes da Silva 129

As Sumas de Tomás de Aquino no Período Medieval Camila de Souza Ezídio 143

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Houve uma evolução do conceito de virtude em Tomás de Aquino? A proposta de Giuseppe Abbà

Renato José de Moraes 153

O mistério do mal na Suma de Teologia de Tomás de Aquino(Prima pars,questões48e49)

Rodrigo Aparecido de Godoi 165

Oserincausadoearegressãoaoinfinito:um estudo baseado nas cinco vias de Tomás de Aquino

Fábio Gai Pereira 182

RazãoepaixãoemTomásdeAquino.AafetividadenaIa parte da Suma de Teologia

Paulo Ricardo Martines 194

Tomás de Aquino e o problema do Mênon: leitura comparada a partir docomentárioaosSegundosAnalíticos,deAristóteles(ExpositioLibri Posteriorum)

Anselmo Tadeu Ferreira 204

A noção de intelecto na doutrina dos transcendentais de Tomás de Aquino

Matheus Barreto Pazos de Oliveira 213

OproblemadanaturezacomumemTomásdeAquinoAntonio Janunzi Neto 226

Tomás e o problema do movimento elementar: notas sobre In Physica,II,1,n.3,1-8.

Evaniel Brás dos Santos 243

A criação na ética de Tomás de Aquino Bernardo Veiga de Oliveira Alves 261

OprincípiodeindividuaçãonafilosofiadeJoãoDunsScotusThiago Soares Leite 280

A Logica Modernorum na Summulae Logicales de Pedro Hispano Jerônimo José de Oliveira 291

A suppositio como proprietate terminorum em Guilherme deShyreswood,PedroHispanoeGuilhermedeOckham

Laiza Rodrigues de Souza 299

Meister Eckhart e a imagem sem imagem Matteo Raschietti 313

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“Entendo por ‘céu’ a ciência e por ‘céus’ as ciências”: as sete Artes Liberais no “Convívio” (c. 1304-1307) de Dante Aliguieri

Ricardo Luiz Silveira da Costa 333

AfilosofiadaeconomianopensamentobarrocalatinoamericanoAlfredo Culleton 356

OdireitodasgentesemFranciscodeVitoriaFernando Rodrigues Montes D’Oca 375

Resareorreris e resaratitudine nametaf sicadeHenri uede andGustavo Barreto Vilhena de Paiva 392

ermosCategorem ticoseSincategorem ticos:distinçãoterministaeeliminaçãoontol gica

Rafael Antonio dos Santos Sandoval 418

OsfalasifaeaeternidadedomundoEvandro Santana Pereira 428

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A alma e suas faculdades: uma hipótese sobre

o uso dos termos em Agostinho

Ricardo Pereira Santos Lima

Universidade Federal de Uberlândia

Todo o pensamento de Agostinho orbita em volta de dois pon-tos fundamentais: (i) Deus e (ii) a alma. O primeiro ponto se expressa como objeto máximo do interesse agostiniano. É o anseio de buscar, conhecer e amar a Deus que coloca em movimento o pensamento de Agostinho1. O segundo ponto, por sua vez, se expressa como o instru-mento que viabiliza o acesso a Deus; é a alma que descortina a possibi-lidade da elevação do homem a Deus:

Chegamos, agora, ao assunto que nos determinamos a conside-rar: a parte mais nobre da alma humana pela qual se conhece a Deus, ou se pode vir a conhecê-lo. Vamos procurar aí a imagem de Deus. Embora, a alma humana não seja ad mesma natureza que a de Deus, contudo, a imagem dessa natureza – a mais su-blime que se possa pensar –, é preciso procurá-la e encontrá-la em nós, lá onde a nossa natureza possui o que há de mais exce-lente (trin. XIV viii 11).

Com efeito, cabe considerar que Agostinho nunca deixou de es-crever ou de fazer alguma referência – por menor que fosse – à alma, 1 Conformeafirmaofilósofonos Solilóquios: Amo somente a ti, sigo somente a ti, busco

somente a ti, estou disposto a servir somente a ti e desejo estar sob a tua jurisdição, porque somente tu governas com justiça. Manda e ordena o que quiseres, mas sana e abre meus ou-vidos para ouvir tuas palavras; sana e abre meus olhos para enxergar os teus acenos. Afasta de mim a ignorância para que eu te reconheça” (sol. I i 5).

Carvalho, M.; Hofmeister Pich, R.; Oliveira da Silva, M. A.; Oliveira, C. E. Filosofia Medieval. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 11-19, 2015.

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dada sua importância no itinerário do homem em direção a Deus2. Ten-do em vista o destacado papel da alma no pensamento de Agostinho e, mais ainda, na vida do homem, acaba tornando-se essencial fazer uma re e ãosobreoconceito ueéaalmaafinal

A pergunta, aparentemente simples, não encontra – ainda hoje – uma resposta satisfat ria edefinitiva.Odesdobramento contempor -neo dessa pergunta remete aos conceitos de self, consciência e mente, os uaissãoob etosdepes uisade reascomoafilosofia,psicologiaeneu-

rociência. Antes desse desdobramento contemporâneo, vários pensado-res,dentreelesAgostinho,re etiramsobreoproblema.Adespeitodaimportância precursora de pensadores como Platão e Aristóteles no que tange ao tema, é com Agostinho que a questão da alma humana tenta pela primeira vez chegar ao esgotamento3. Por essa razão, não é exagero afirmar ueasconsideraç esagostinianasacercadofuncionamentodapsique humana foram além do seu tempo, e tornaram-se, ulteriormente, referência e aparato de pesquisa para o desenvolvimento da discussão.

Agostinho não só parece conhecer a estrutura responsável pela vida psíquica humana – a qual se denominou alma – como também parecedemonstrarzeloecuidadoaoe porsuasre e esacercadoconceito. Apesar de ter sido professor de retórica e grande conhecedor da língua latina, a cautela agostiniana não concerne apenas ao rigor terminológico ou gramatical, mas também ao rigor conceitual. Embora Agostinhonãotenhafeitoumafilosofiasistem tica–como om sdeA uino–époss velnotarumasignificativaclarezaconceitualemsuasconsideraç esarespeitodaalma.

Numa extensa nota de rodapé de sua Introdução ao estudo de San-

to Agostinho,aofalarsobreaalma, ilson(2007,p.95)afirma ue aterminologiadeAgostinho,a uicomoemoutroslugares,émuito u-tuante”. Não se trata de considerar que a terminologia agostiniana seja 2 Conferimos todas as 111 obras de Agostinho, e em todas elas constatamos a ocorrência dos

termos anima e/ou animus. É necessário esclarecer o que entendemos como obra: Conside-ramos o conjunto das Epistolae, Enarrationes e Sermones como três obras separadas, as quais congregamosrespectivoscon untosdecartas,interpretaç eseserm es.Consideramostam-bém como uma obra separada aquelas que contêm mais de um livro na sua composição. Assim,compreendemos ueostrezelivros uecomp emasConfissões representam, em sua totalidade, uma única obra.

3 Exemplo disso são as obras dedicadas exclusivamente à alma; De Anima et eius Origine contra Vincentium Victorem, De Duabus Animabus contra Manichaeos, De Inmortalitate Animae e De Quantitate Animae.

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incerta ou duvidosa, mas antes inconstante ou variável. Isto é, sua ter-minologia utuaconformeapretensãoouintuitodeapresentare/outornar compreensível uma determinada ideia ou conceito:

O signo é uma coisa que, além da imagem ueprop eaossenti-dos, faz vir de si ao pensamento algo outro. (doc. chr. II i 1)4

O signo é aquilo que tanto se mostra aos sentidos, como além de si mostra algo ao espírito. (dial. V)5

Por esta razão, é na tentativa de mostrar ao seu leitor alguma coisa

além que Agostinho se vale de um leque terminológico tão extenso. Conforme Gilson (p. 95), os termos que fazem parte deste leque são: (i) anima/animus, (ii) spiritus, (iii) mens, (iv) ratio e (v) intellectus/intelli-

gentia.Nessete to,ater-nos-emosespecificamente distinçãoe sre-laç esentreanima/animus e spiritus, de posse da crença de que toda complexidade da discussão advenha daí.

O par de termos anima/animus, cuja tradução para o português é alma, designa, de modo geral, o princípio animador, essencial e vital de todos os seres vivos, sejam eles animais, como um coelho, ou vegetais, como uma rosa. Conforme Agostinho, esse princípio vital recebe sua força de Deus, que é considerado a Vida por excelência. Importa con-siderar que o argumento agostiniano se apoia em dois pontos: o pri-meiroéEscritural,e pressonapassagemem ueDeusafirma Eu sou

a vida” (Jo 14, 6). O segundo ponto, que sustenta e valoriza o primeiro, remonta à noção platônica de participação; um princípio que é respon-s velporvivificarseresfinitosprecisa,necessariamente, recebersuaforça vital de outro princípio mais poderoso. Com efeito, Deus, que é, consoante Agostinho, a Vida por excelência, é o responsável pela força vital das almas:

Não existe qualquer tipo de vida que não seja propriamente vida e, enquanto seja totalmente vida, que não se estenda à suma fon-te e sumo princípio da vida, o qual não podemos confessar ser nenhum outro, senão o Deus supremo, único e verdadeiro. Por-

4 Tradução e destaques por Moacyr Ayres Novaes Filho. Cf.NOVAES,Moac r.A razão em exer-

cício: estudos sobre a filosofia de Agostinho.SãoPaulo:DiscursoEditorial:Paulus,2009.p.44.5 Idem.

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tanto, aquelas almas, as quais os maniqueístas chamam de más, ou carecem de vida, e não são almas, e por isso não querem ou deixam de querer, cobiçar ou evitar alguma coisa; ou se vivem, para que possam ser almas e fazer algo tal qual eles opinam, de nenhum modo podem viver senão pela Vida (duab. an. I; tradu-ção nossa).6

Embora tanto anima quanto animus sejam usados para se referir ao princípio vital que anima os seres vivos, é possível notar que, nos te tosdeAgostinho,e isteumasignificativadistinçãoentreeles.Pre-ferencialmente, o termo anima é empregado para falar sobre a alma animale/ousobreaalmadeumamaneirageral,istoé,nãoespecifica-mente. O termo animus, por sua vez, é empregado para falar sobre a almaespecificamentehumana ue,alémdeprinc piovital,éumprin-cípio racional. Por este motivo, o termo animus é geralmente traduzido como alma racional. Agostinho compreende que todos os seres vivos – justamente por serem vivos – têm uma alma; a diferença fundamental existente entre a alma de um cão e a de um homem é que a alma do primeiro é apenas um princípio vital, ao passo que a alma do segundo é um princípio vital e racional:

E se, aqui, deveras perturbados, tivessem me perguntado se aca-so eu não pensava que a alma [animam] da mosca também era superior a esta luz, eu lhes teria respondido: certamente. E o fato de a mosca ser pequena não me aterrorizaria. Antes, sustenta a minha ideia o fato de que ela possui vida (duab. an. IV, tradução nossa, grifo nosso).7

Ademais, quando raciocinamos, a alma [animus] faz isso. Pois não faz isso a não ser aquele que intelige. [...] Portanto, a alma [animus] humana sempre vive (imm. an. I 1, tradução nossa, grifo nosso).8

6 Nooriginal: nullam esse qualemlibet vitam, quae non eo ipso quo vita est, et in quantum omnino

vita est, ad summum vitae fontem principiumque pertineat: quod nihil aliud quam summum et solum

verumque Deum possumus confiteri. Quapropter illas animas, quae a Manichaeis vocantur malae, aut carere vita, et animas non esse, neque quidquam velle seu nolle, appetere vel fugere; aut si viverent, ut et

animae esse possent, et aliquid tale agere, quale illi opinantur, nullo modo eas nisi vita vivere”7 No original: Atque hic si forte turbati a me quaererent, num etiam muscae animam huic luci praes-

tare censerem, responderem: etiam. Nec me terreret musca quod parua est, sed quod uiua firmaret”.8 No original: Iamvero cum ratiocinamur, animus id agit. Non enim id agit, nisi qui intellegit […]

Semper igitur animus humanus vivit”.

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importanteatentarparaofatode ueotermo alma foiem-pregado para traduzir tanto animam quanto animus. Isto é, foi utilizado umtermoemcomumparatraduzirdoistermos uecarregamnoç esdistintas. No entanto, esse detalhe terminológico pode se tornar irrele-vante desde que o leitor esteja atento aos ensinamentos de Agostinho – e conheça um pouco sobre a língua mãe do autor.

Para se referir ao conceito de alma racional, Agostinho utiliza, além do termo animus, o termo spiritus, cuja tradução para o português é esp rito .Emborase aempregadoemmenorescalado ueanimus, o termo spiritus demanda um pouco mais de atenção, pois, de acor-docom ilson(2007,p.95), otermotemdoissentidosinteiramentediferentes, segundo Agostinho, derivado de Porfírio ou das Escritu-ras .Conformeocomentador,nasignificaçãoporfiriana,spiritus reme-te ao que se denomina imaginação reprodutiva ou memória sensível. Emoutraspalavras,oesp ritoérespons velporreteras impress escausadas pelos sentidos corporais. Impelido pela noção de que as im-press essens veispodemdesviarohomemdeseucursoemdireçãoaDeus, Agostinho evidenciará que é papel do espírito combater o car-nal. Uma vez que o carnal pode ser impresso no espírito, o homem peca ao amar o sensível:

Poderemos então concluir que nem todos querem ser felizes porque há alguns que não querem alegrar-se em Vós, que sois a nicavidafeliz Não todos ueremumavidafeliz.Mascomoa carne combate contrao esp rito e o esp rito contra a carne,

muitos não fazem o que querem”, mas entregam-se aquilo que podem fazer (conf. X xxiii 33).9

Isso não surpreende: Pois somos constituídos atualmente de for-ma que possamos ser movidos ao prazer pelo carnal, e em dire-ção à virtude pelo espírito (duab. an. XIX, tradução nossa).10

9 Nooriginal: Non ergo certum est, quod omnes esse beati volunt, quoniam qui non de te gaudere

volunt, quae sola vita beata est, non utique beatam vitam volunt. An omnes hoc volunt, sed quo-

niam caro concupiscit adversus spiritum et spiritus adversus carnem, ut non faciant quod volunt,

cadunt in id quod valent”.10 Nooriginal: Nec mirum: ita enim nunc constituti sumus, ut et per carnem voluptate affici, et per

spiritum honestate possimus”.

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E por isso diz o Profeta muito acertadamente e por divina inspira-ção: Criaemmim, Deus,umcoraçãopuroerenovaemminhasentranhasoesp ritoderetidão (Sb.50,12).Entendo ueesp ritode retidão é o que impede a alma de se desviar e falsear na pro-curar da verdade. E ele não se renova se antes não tiver a pure-za, ou seja, se o pensamento não se afasta antes de toda paixão, purificando-senorançodascoisasmortais(an. quant. XXXIII 75).

Ainda ueaconceituaçãoporfirianadespiritus se apresente, con-forme Gilson, como distinta da conceituação escritural, regularmente o termo spiritus aparece dentro de excertos que, ou se referem à bíblia ou citam-nadiretamente,o ueéposs veldeserverificado,pore emplo,em beata v. II 1211; mag. I 212; spir. et litt. IV 613 e lib. arb. III xiii 5114.

Conforme Gilson, o sentido escritural de spiritus se assemelha ao conceito de animus. Spiritus édefinidocomooprinc pioracionaldaalma humana (do animus). Conforme fora anteriormente assentado, o animus é o resultado da união entre os princípios vital e racional. Des-tarte, é em virtude do spiritus, isto é, do princípio vital que a alma do homem se difere da alma dos outros animais:

E porque as três coisas são estabelecidas pelo homem: espírito, alma e corpo. Duas são ditas inversamente, pois a alma muitas vezes é nomeada juntamente com o espírito; com efeito, certa parte racional da mesma, que falta às bestas, é chamada de espí-rito; entre nós, o espírito é o principal; depois somos unidos ao corpopelavida aistosechamaalma.Enfim,o ltimoéocorpo,pois o próprio é visível a nós (f. et symb. X 23, tradução nossa). 15

11 Nooriginal: Puer autem ille minimus omnium: Is habet Deum, ait, qui spiritum immundum non habet” (cf. Mt 5, 8).

12 Nooriginal: An apud Apostolum non legisti:Nescitis quia templum Dei estis, et spiritus Dei habi-tat in vobis” (cf. 1 Cor 3, 16.).

13 Nooriginal: Doctrina quippe illa, qua mandatum accipimus continenter recteque vivendi, littera est occidens, nisi adsit vivificans spiritus.Neque enim solo illo modo intellegendum est quod legimus: Lit-tera occidit, spiritus autem vivificat” (cf. 2 Cor 3, 6.).

14 Nooriginal: Et tamen etiam per ignorantiam facta quaedam improbantur, et corrigenda iudicantur, sicut in divinis auctoritatibus legimus: ait enim Apostolus [...] Caro concupiscit adversus spiritum, spiritus autem adversus carnem: haec enim invicem adversantur; ut non ea quae vultis faciatis” (cf. Gal 5, 17.).

15 Nooriginal: Et quoniam tria sunt quibus homo constat: spiritus, anima et corpus, quae rursus duo dicuntur, quia saepe anima simul cum spiritu nominatur; pars enim quaedam ejusdem rationalis, qua carent bestiae, spiritus decitur; principale nostrum spiritus est; deinde vita qua conjungimur corpori, anima dicitur; postremo ipsum corpus quoniam visibile est, ultimum nostrum est”.

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Adstritos ao conceito de spiritus encontram-se os conceitos de mens, ratio e intellectus/intelligentia.Seospiritus é compreendido como o princípio vital, a mens,–geralmentetraduzidapor mente ou pen-samento” – pode ser compreendida como a parte superior, sublime ou excelente deste princípio racional (excellentia animi). Agostinho costu-ma não evidenciar a diferença entre ambos os conceitos e, por vezes, fala deles de modo análogo, como ocorre n’ O livre-arbítrio:

Eiso ueeu uerotee plicaragora:o uep eohomemacimados animais, seja qual for o nome com que designemos tal fa-culdade, seja mente ou espírito, ou com mais propriedade um e outro indistintamente, porque encontramos esses dois vocábulos tambémnos ivrosSagrados– uandopoisesseelementosupe-rior domina no homem e comanda a todos os outros elementos que o constituem, ele encontra-se em perfeitamente ordenado (lib. arb. I viii 18).16

A razão para Agostinho se referir a spiritus e mens de modo símile reside no fato de que a mens é a parte constituinte mais importante do spi-

ritus. Por englobar a mens, pode-se dizer que, quando se fala de spiritus automaticamente se fala da mens, já que o todo sempre se refere à parte.

Em De Magistro, Agostinhoafirma ueamens é a união entre ratio e intelligentia, o que nos permite considerar que a ratio e intelligentia não estão separadas do espírito, mas antes o constituem na forma de mente:

Quando, pois, se trata das coisas que percebemos pela mente, isto é, através do intelecto e da razão, estamos falando ainda em coisas que vemos como presentes naquela luz interior de verdade, pela qual é iluminado e de que frui o homem interior17 (mag. XII 40).

Acitação anterior suscitauma uestão: Se amente é formadapela inteligência e pela razão, é necessário supor que as duas não se-jam a mesma coisa e/ou desempenhem a mesma operação, o que leva

16 Nooriginal: Illud est quod volo dicere: hoc quidquid est, quo pecoribus homo praeponitur, sive

mens, sive spiritus, sive utrumque rectius appellatur (nam utrumque in divinis Libris invenimus), si dominetur atque imperet caeteris quibuscumque homo constat, tunc esse hominem ordinatissimum”.

17 Cum vero de iis agitur quae mente conspicimus, id est intellectu atque ratione, ea quidem loquimur

quae praesentia contuemur in illa interiore luce veritatis, qua ipse qui dicitur homo interior, illustra-

tur et fruitur.

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a crer que tanto uma quanto outra podem ser vistas como faculdades que, embora integrem e formem um mesmo composto, desempenham atividades distintas.

Infelizmente, no entanto, pela escassez de tempo, e em virtude da complexidade do tema, não haverá tempo hábil para explicar e de-finirdemodopormenorizadoasrelaç esentreosconceitosdemens, ratio e intelligentia, razão pela qual nos ativemos aqui a delimitar de modorazoavelmenteprecisoasespecificidadeseae tensãodasno-ç esdealmaeesp ritonasobrasdeAgostinho,certode ueaprofun-didade com que equacionou tais conceitos pôde reverberar, de manei-rasignificativa,nodesenvolvimentodasulterioresdiscuss esacercada natureza e da estrutura do psíquico humano.

A OS INHO,Santo.A Trindade. Tradução e introdução por Agustinho Bel-monte,revisãoenotasporNairdeAssisOliveira.SãoPaulo:Paulus,1995–(Patrística, 7)._____. Confissões. raduçãopor .OliveiraSantos,S. .,eA.Ambr siodePina,S. .SãoPaulo:NovaCultural,197 (OsPensadores)._____. De Magistro (Domestre). raduçãoporAngeloRicci.SãoPaulo:NovaCultural, 1973 (Os Pensadores)._____. O livre-arbítrio. Tradução, organização, introdução e notas por Ir. Nair deAssisOliveira.SãoPaulo:Paulus,1995.(Patr stica,8)._____. La fe y el Símbolo de los Apóstoles. In: Obras completas de San Agustín. Tra-ducción, introducción y notas de Claudio Basevi. Madrid: La Editorial Católi-ca/BAC, 1988. v. 29. Edición bilíngüe._____. La inmortalidad del alma. In: Obras completas de San Agustín. Traducción, introducción y notas de Claudio Basevi. Madrid: La Editorial Católica/BAC, 1988. v. 29. Edición bilíngüe._____. Las dos almas. In: Obras completas de San Agustín. Traducción, introduc-ción y notas de Pio de Luis. Madrid: La Editorial Católica/BAC, 1986. v. 30. Edición bilíngüe._____. Sobre a potencialidade da alma. Trad. por Aloysio Jansen de Faria. Petró-polis: Vozes, 1997.

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A : A

_____. Solilóquios. raduçãoenotasporAdaur Fioro i.SãoPaulo:Paulus,1998 – (Patrística, 11).B B IASA RADA.EdiçãoPastoral. rad.,introd.enotasporIvoStornioloeEuclidesMartinsBalachin.SãoPaulo:Paulus,2005.I SON, tienne.Introdução ao estudo de Santo Agostinho. Tradução por Cris-tianeNegreirosAbbudA oub.SãoPaulo:Paulus,2007.NOVAES,Moac r.A razão em exercício: estudos sobre a filosofia de Agostinho.SãoPaulo: Discurso Editorial : Paulus, 2009.

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A Construção de uma Teologia Política

na Idade Média a partir dos escritos

do Pseudo-Dionísio, o Areopagita

Gerson Leite de Moraes

Universidade Presbiteriana Mackenzie

Durante o período da Baixa Idade Média, a Escolástica se apro-priou de todos os escritos antigos que balizavam seu poderio político. Contudo,nofinaldoperíodomencionado,aobraintituladaDoação de

Constantino, que embasou durante muito tempo o domínio territorial da Igreja no período medieval, foi desmascarada por Lorenzo Valla. Ocorreu um verdadeiro desmonte de uma teologia política que há muito vinha vigorando no ambiente europeu. Mesmo sob escombros, é necessário dar o devido valor a alguns elementos que serviram de baseparajustificaroperíodopolíticomedievaldurantetantotempo.

O que nos interessa neste trabalho é perscrutar uma obra que teve um papel fundamental na construção da teologia política medie-val.Elafoiproduzidaporumfilósofo-teólogodoséculoVdaeracristãqueusouopseud nimodeDionísio,personagemhistóricoconvertidoapósapregaçãodoApóstoloPaulonaocasiãoemqueomesmodis-cursounoAreópagoparaosateniensesávidosdenovidades,masqueem sua maioria não estavam interessados na questão da ressurreição. Dionísio foi uma exceção: ouviu e converteu-se à fé cristã. Este fato estáregistradoemAtosdosApóstolosnocapítulo17.Provavelmente,opseudo-Dionísiovaleu-sedosubterfúgiodeusaronomedeumafi-gurarespeitadanatradiçãocristãporquetinhacomofinalidadegaran-tir a aceitação e difusão de suas obras. Esses escritos representam uma fusãoentreocristianismoeoneoplatonismo,emqueficamevidentes

Carvalho, M.; Hofmeister Pich, R.; Oliveira da Silva, M. A.; Oliveira, C. E. Filosofia Medieval. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 20-28, 2015.

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asin u nciasdePlotinoeProclo(412-485),l dimosrepresentantesdereleiturasdePlatão.

OsescritosdoPseudo-Dion sio,oAeropagita,foramusadospornomesrespeitadosnatradiçãocristã. oãoErigena,Alberto,o randee om sdeA uinosãoalgumasdessasfiguras.São om sdeA uino,pore emplo,mencionouemsuasobrasosescritosdoPseudo-Dion -siocercade1700vezes.Seuvalorsemostratantonocampoteol gico,uantonofilos fico.Na eologia,édesumaimport nciaadistinção

feita entre a Teologia Positiva, também chamada de catafática(dogrego,katáphasis afirmação),eaTeologia Negativa, ou apofática(dogrego,apó-

phasis negação).Apropostada eologiacataf ticaconsisteemafirmarde Deus as perfeições que se encontram nas criaturas, valorizando as mais elevadas, tais como a sabedoria, a bondade, a unidade, a vida etc.

Há, com efeito, uma regra universal de que é preciso evitar apli-car temerariamente alguma palavra, por vezes até algum pensa-mento, à Deidade supra-essencial e secreta, com exceção daquilo que as santas Escrituras divinamente nos revelaram. O desco-nhecimentodestapr pria Supra-essencialidade ueultrapassarazão,pensamentoeess ncia,deveseroob etodaci nciasupra--essencial; portanto, não devemos levantar os olhos para o alto a nãoser medida uesenosmanifestaopr prioRaiode uzdassantas palavras teárquicas, cegando-nos, para receber as mais al-tasluzes,destasobriedadeedestasantidade ueconv maosob-etosdivinos.Comefeito,seforprecisoconfiaremumateologiainteiramentes biaeperfeitamenteverdadeira,és medida ueconvémacadaintelig ncia ueossegredosdivinossemanifes-tameserevelam,poisé pr priabondadeda ear uia(Princípio do divino) ue,emsua ustiçasalvadora,oferecedivinamenteaosseres mensur veis, como realidade infinita, sua pr pria inco-mensurabilidade(PSE DO-DION SIO,2004,p.09-10). Deus é causa e princípio de todas as coisas, abarcando em si mes-

mo todos os nomes, contudo não se confundindo com as coisas cria-das,mastranscendendo-astodas.Percebe-seentão,adificuldadedesefalar sobre Deus, aquele que é inominável,

Enenhumarazãodiscursivapodediscorrersobreo no ueul-trapassa todo discurso, nem alguma palavra pode exprimir algo

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a respeito do Bem que está acima de toda palavra, Mônada uni-ficadoradetodam nada,Ess nciasupra-essencial,Intelig nciainintelig velePalavrainef vel,isentaderazão,deintelig nciaede nome, que não tem ser segundo o modo de algum ser, que é causaontol gicadetodosereaomesmotempo,por ueest si-tuadaalémdetodaess ncia,totalmentee clu dadacategoriadeser, segundo a revelação que ela faz de si mesma em sua mestria eseusaber(PSE DO-DION SIO,2004,p.10-11).

Aindasobrea eologiaCataf tica,oPseudo-Dion sioafirma:

Celebramos as principais afirmaç es da teologia afirmativa,mostrando em que sentido a excelente natureza de Deus é dita una,em uesentidoelaéditatrina,o uesechamanelaPaterni-dadeeFiliação,o ueateologiapretendesignificar uandofaladoEsp rito,omodocomodopr priocoraçãodoBemimateriale indivisível saíram as luzes da bondade, como estas luzes se difundiram ao mesmo tempo permanecendo, graças a seu eterno renascimento, nele mesmo, cada uma em si e todas mutuamente umas com as outras, assim como Jesus supra-essencial revestiu verdadeiramente a natureza humana, e todos os outros misté-rios que os Esboços teológicos celebram segundo o ensinamento dasEscrituras.No ratadodosNomes divinos, mostramos por-ueDeusénomeadoBem,Ser,Vida,Sabedoria,Força,eassimpordiante,paratodososnomesintelig veisdeDeus(PSE DO--DION SIO,2004,p.1 ).

Nãohavendo categorias lingu sticas uepossamdar contadarealidade do ser de Deus, esse ser que é fonte de toda perfeição conduz os homens a recorrerem à Teologia apofática, que consiste em ressaltar elementos da imperfeição conhecida pelos humanos, salientando-se aquilo que Deus não é. Tudo o que os homens veem como errado e imperfeitonomundocriadonãopodefazerpartedaess nciadeDeus.

Agora,pois,penetraremosna reva ue est alémdo intelig -vel, e não haverá maior concisão ainda, mas, ao contrário, uma cessação total da palavra e do pensamento. Onde nosso discur-so descia do superior ao inferior, à medida que se distanciava dasalturas,seuvolumeaumentava.Agora uen ssubimosdoinferioraotranscendente,napr priamedida uenosapro ima-mos do pico, o volume de nossas palavras se retrairá; no termo

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último da ascensão estaremos totalmente mudos e plenamente unidos ao Inefável. Contudo, dirás, por que partir das mais al-tas uandosetratadasafirmaç es,edasmaisbai as uandosetratadasnegaç es Respondo ue,para falar afirmativamenteDa uele uetranscendetodaafirmação,seriapreciso uenos-saship tesesafirmativastomassemapoiosobreo ueest maispr imodele.Mas,parafalarnegativamenteDa uele uetrans-cende toda negação, começa-se necessariamente por negar dele o que está mais distante dele. Com efeito, não é verdade que é mais vida ou bem que ar ou pedra e que se erra muito mais quando o nomeamos rancoroso e colérico do que o supondo exprimível ou pensável (PSE DO-DION SIO,2004,p.1 4-1 5).

Com se diz no texto acima, quanto mais ocorre a aproximação em relaçãoaosuperior,desemboca-senosil nciom stico,naapreensãodi-reta e desnudada da divindade, embora não se possa explicar isso ra-cionalmente,ficandoapenasasensaçãodae peri nciacomoresultado.

Nocampofilos fico,oPseudo-Dion siorepeteastr adesdia-léticasdeProclo,enfatizandooprocesso uevaido noatéomundo,bemcomooprocessoderetornoparao no.Vale-setambémdater-minologia platônica, da emanação para explicar a criação, evitando, é claro, qualquer tipo de panteísmo. O que está por trás da concepção filos ficadoAreopagitaéapercepção ueaIdadeMédiatrazsobrearelação entre Deus e o mundo. O cerne que embasa essa cosmovisão medieval é questão da hierarquia, que é exposta ali pela primeira vez em toda sua extensão no que tange ao seu alcance metafísico, em suas variadaship teseseemsuasdiversasvariaç es.

Chamohierar uiaumaordem,umsabereumatotãopr imosquanto possível da forma divina, elevados à imitação de Deus namedidadasiluminaç esdivinas. ... Ofimdahierar uiaé,portanto, o de conferir às criaturas, o quanto se pode, a seme-lhança divina e de uni-las a Deus. Deus é para ela, com efeito, o mestre de todo conhecimento e de toda ação, e ela não cessa de contemplar sua diviníssima bondade, recebe sua impressão tan-to quanto ele está nela, e de seus seguidores ela faz perfeitas ima-gensdeDeus,espelhosdeplenatranspar nciaesemmanchas,aptas para receber o raio do Fogo fundamental e da Tearquia; depois, tendo santamente recebido a plenitude de seu esplendor, tornam-se, em seguida, capazes, segundo os preceitos da Tear-

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quia, de transmitir livremente esta mesma luz aos seres inferio-res(PSE DO-DION SIO,2004,p.148-149).

Especialmenteostratados uemaise erceramin u nciaforamaqueles que discutiram da hierarquia do céu e da terra.

Aimport nciahist ricadestestratadosconsisteem ueosmes-mos, pela primeira vez, aparecem unidos e se desenvolvem con-juntamente unidos aos motivos e forças capitais que constituem ofundamentodaféedaci ncianaIdadeMédia,alémdisso,valeressaltar também, que neles se cumpre pela primeira vez uma verdadeira e acabada fusão sincrética da doutrina cristã da salva-ção com a especulação helenística. Esta especulação sobre todo o neoplatonismo presenteou ao cristianismo uma outra coisa, a noção e a imagem universal do cosmos disposto em graus.Segundoessa doutrina, o universo divide-se em um mundo inferior e em um mundo superior, em um mundo sensível e um mundo inteli-g vel, uenãoseop ementresi,mas uet mamesmaess ncia,que está baseada nessa negação recíproca, nessa contraposição polar.Porém,acimadoabismodanegação ueseabreentreosmundos,tem-seumv nculoespiritual(CASSIRER,1951,p.2 ).

Interligandoosv riospolos,do noAbsolutoaoaspectoinfor-me absoluto, do imaterial ao material, o vínculo espiritual tem como caracter sticab sicaamediação.Pelamediação,oinfinitopassaaofi-nitoeretornaaoinfinito.Foiassim ueDeus,pararedimiroshomens,encarnou-se em Jesus e voltou para a economia1 da santíssima trinda-de,tendovencidoamorteetornandoessavit riaumapossibilidadereal aos homens.

Aescalagradualdescedocelesteparaoterrestre, ueascen-de deste para aquele num processo sistemático. Mas entre Deus e o homensaparecetambémomundodasintelig nciaspurasedaspuras

1 madasteses ueprocurar demonstraré uedateologiacristãderivamdoisparadigmaspolíticos em sentido amplo, antinômicos, porém funcionalmente conexos: a teologia política, uefundamentano nicoDeusatranscend nciadopodersoberano,eateologiaecon mica,

que substitui aquela pela ideia de uma oikonomia, concebida como uma ordem imanente – doméstica e não política em sentido estrito – tanto da vida divina quanto da vida humana. Doprimeiroparadigmaderivamafilosofiapol tica e a teoriamodernada soberania dosegundo, a biopolítica moderna até o atual triunfo da economia e do governo sobre qualquer outroaspectodavidasocial (A AMBEN,2011,p.1 ).

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forçasespirituais, ueestãodivididasemtr sc rculosdistintos,cadaumdelessearticulandoemtr plice rbita.

Ateologianomeoutodasasess nciascelestescomnovenomesreveladores, uenossodivino iniciadordivideemtr sordens.Aprimeira, diz-se, envolveDeusdemaneira permanente, e atradição quer que esteja unida a ele de modo constante antes de todos os outros e sem nenhuma mediação: estes são os tronos santíssimos e estes batalhões notáveis pelo número de seus olhos e de suas asas, que se chamam em hebraico querubins e serafins, e que estão assentados, diz Hieroteu, segundo a tradição das san-tas Escrituras, imediatamente junto de Deus, em uma proximi-dadesuperior detodososoutros.Estaordemdetr sbatalh esforma, segundo o ensinamento de nosso célebre preceptor, uma s hierar uia,decondiçãoigualeverdadeiramenteprimeira ne-nhuma outra se conforma melhor a Deus, e ela é imediatamente cont gua siluminaç esprimordiaisda ear uia.Asegundaor-dem se compõe, diz-se, dos poderes, das senhorias e das potências. Aterceiraconstituia ltimahierar uiaceleste,aordemdosanjos, dos arcanjos e dos principados(PSE DO-DION SIO,2004,p.158).

Oprimeiroc rculoécompostoporSerafins, uerubinse ro-nos osegundo,porPoderes,SenhoriasePot ncias,eoterceiro,porAn os,Arcan osePrincipados.Demaneira uesepodeafirmar uedeDeus procedem irradiações nesses diversos graus, que os sustentam e que acabam voltando ao centro irradiador, que é o ponto de partida e término de todas as coisas.

Com essa concepção se tinha procurado na ordem eclesiástica uma ustificaçãoeumaverdadeiraepr priateodiceia,poisestaordem,emess ncia,nãoésenãoamaisacabadac piadaordemespiritualc smica ahierar uiadaIgre are eteahierar uiadocéu,ecomore e otem-seaplenaconsci nciadesuapr priane-cessidadeeinviolabilidade.AcosmologiadaIdadeMédiaeafémedieval, a noção de ordem do universo e da ordem moral e re-ligiosadesalvaçãocon uememuma nicavisãofundamental,emumaimagemdesupremasignificaçãoedamaisaltal gicainterior(CASSIRER,1951,p.24).

Essa hierarquia vista no céu deveria ser repetida na Terra, e as-sim se procedeu durante toda a Idade Média, quando os reis eram vis-tos como senhores entre senhores, numa clara compreensão de que o

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poder político medieval estava pulverizado, o que facilitava o domí-nio político da Igreja, já que ela podia ser entendida como um grau da hierarquia divina entre os homens, colocada nesta condição para organizar a sociedade humana, tanto do ponto de vista moral como religioso. Contudo, com as mudanças em marcha desde o início do Renascimento, percebe-se uma contestação importante a essa visãopol ticademundoimpostapelaIgre aCat lica.DanteAlighieri(12 5-1 21)começouaarticularumateologiapol tica uepossibilitouodes-membramento, mesmo que sem ruptura total entre o poder temporal e o poder espiritual.

Afirmo, então, ue o poder temporal não recebedo espiritualnemae ist ncia,nemafaculdade ueéaautoridade,nemmes-mooe erc ciopuroesimples.Recebe,sim,dopoderespiritualaperfeiçoamentosacidentais:agemcommaiorefic ciapelaluzdagraça ueDeus,nocéu,eab nçãodoSumoPont fice,nater-ra, lhe infundem. E, então, o argumento peca na forma, porquan-to o predicado da conclusão não é a extremidade da premissa maior.Raciocina-seassim:aluarecebealuzdosol ueéopoderespiritual; o poder temporal é a lua; logo, o poder temporal rece-beaautoridadedopoderespiritual(DAN E,1984,p.88).

Aindasobreesseassunto,masusandouma terminologiadife-rente, papatus, para o poder espiritual, e imperiatus, para o poder tem-poral, Ernst H. Kantorowicz diz o seguinte:

Tanto papatus como imperiatus, portanto, eram instituições esta-belecidas por Deus para a adequada orientação da humanidade; ambosderivavamdeDeuseambos,em ltima inst ncia, refe-riam-se a Deus. Logo, tornavam-se comparáveis apenas quando reduzidos aDeus, no ual universalmente con uem todas asrelaç es ,outalvezaalgumasubst nciainferioraDeus,algumprot tipo celestial, no ual a deidade aparece de uma formamais particularizada’. Em outras palavras, Dante excluía, com relação a cada um dos cargos, a possibilidade de um interme-diário humano, já que ambos dependiam diretamente de Deus. Ou,sehouvesse intermedi rio,esteseriaum an o ,umprot -tipo celestial de papatus e imperiatus, respectivamente, ‘alguma subst ncia inferior a Deus de cu a universalidade essa formaparticularizadadescendia( AN ORO IC ,1998,p.277-278).

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Ao fazer a distinção entre poder espiritual e poder temporal,mesmo que o segundo se subordine ao primeiro, Dante assegura à rea-lezaumpapeldedesta ue, uepossibilitar aoste ricospol ticosdosséculos seguintes a formulação do poder temporal como um elemento já bem afastado do poder espiritual, cabendo a este uma tutela muito maissimb licado ue,defato,pol tica.

Seuestratagemaerabastante bvio,poisopontoderefer nciaem relação ao qual montava e orientava seu material, ou o deno-minador a que o reduzia, raramente era o fenômeno institucional em si; praticamente era sempre o homem por trás da instituição. Enesse sentido, a imagemdoPr ncipeouMonarca,deDante– ainda que composta de inúmeras tesselas de mosaico empres-tadosdateologiaedafilosofia,deargumentoshist ricos,pol ti-coselegaisdatradiçãocorrente–,re eteumconceitoderealezacentrada no Homem e de uma Dignitas puramente humana que, semDante,estariaausentee,comtodacerteza,teriaficadoau-senteda ueleséculo( AN ORO IC ,1998,p.274).

Os dois cargos estabelecidos por Deus para o bem da humani-dade, o papatus e o imperiatus, aproximar-se-ão e distanciar-se-ão em vários acontecimentos no início da Idade Moderna, principalmente aqueles relativos às questões religiosas. É importante interrogar sobre o vínculo entre teologia e política, portanto, a questão do poder, mas é importante também levantar questionamentos sobre o vínculo en-treteologiaefilosofia,portanto,sobrea uestãodosaber. manovateologia política será consagrada a partir de então e usará elementos teol gicosepol ticos ueinteressemparaasuapr priae ist ncia.

Nãoésemmotivo uefalamosemumaeradeabsolutismo.Oque encontra expressão nessa mudança na forma de dominação política é uma mudança estrutural, como um todo, na sociedade ocidental.Nãoapenasreis isoladose pandemseupoder,mas,claramente, as instituições sociais da monarquia ou do principa-doad uiremnovaimport ncianocursodeumatransformaçãogradualdetodaasociedade,umaimport ncia uesimultanea-mente confere novas oportunidades de poder aos maiores prín-cipes(E IAS,199 ,p.1 ).

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AReformaProtestantetalveztenhasidoomovimento ueme-lhor catalisou a nova teologia política, possibilitando a cada uma de suas vertentes iniciais (luterana, calvinista, anabatista e anglicana)repensar as possibilidades da época e construir regimes políticos que delinearamosrumosdamodernidadeocidental,superandodefiniti-vamente a teologia política anterior.

A AMBEN, iorgio.O reino e a glória: uma genealogia teológica da economia e do

governo: homo sacer II. SãoPaulo:Boitempo,2011.CASSIRER,Ernst. ndividuo y Cosmos en la filosfía del enascimento. BuenosAi-res:EmecéEditores,1951.DAN EA I HIERI.Monarquia. isboa: uimarãesEditores,1984.E IAS,Norbert.O Processo Civilizador: Formação do Estado e Civilização. Vol 2. Riode aneiro:Ed. ahar,199 .AN ORO IC ,ErnstH.Os dois corpos do rei: um estudo sobre teologia política

medieval. SãoPaulo:Companhiadas etras,1998.PSE DO-DION SIO,O areopagita. Obra Completa.SãoPaulo:Paulus,2004.A ES,FrancesA.Giordano Bruno e a tradição hermética.SãoPaulo:Cultri ,1995.

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Elementos Cinéticos do Conceito Agostiniano de Pecado

Maurizio Filippo Di Silva Universidade Federal de Minas Gerais

Oob etivodestacomunicaçãoéodeanalisarseecomonasre e-xões agostinianas concernentes à ação, aparece uma estrutura do agir, coincidente com o mudar ou o permanecer das entidades. Tendo em vistatalfim,oprimeiromomentodestaan lisecoincidir comaindi-viduação das diferentes modalidades da ação, entendidas, por Agosti-nho, como as formas de relação com as entidades. Mais precisamente, luzdaperspectivamencionada,paraalcançaroob etivoser re ue-rida,emprimeirolugar,aan lisedasre e esagostinianasrelativasà luta contra as tentações, assim como elas aparecem no livro X da obra Confessiones (27. 8- 9. 4),o uenospermitir indicarasdireç esdoamor e as relações entre a mens e os desejos da alma e do corpo. Com basenisto,considerar-se- anoçãocinéticadopecadocoincidentecoma negação da forma e da unidade das entidades (Conf., X, 34.53; 29.40), o uenosconsentir esboçar,preliminarmente,a identidadeentrea ação e o movimento. Em segundo lugar, o fato de a determinação dos elementoscinéticosdanoçãodeaçãodependerdaan lisedoconceitode ordo e da relação entre alma e corpo, assim como eles aparecem na obra De libero Arbitrio (I, 7.16-12.24), nóspermitir esclarecercomooagirnãocorrespondeaumaespec fica tipologiademovimento, ine-

Carvalho, M.; Hofmeister Pich, R.; Oliveira da Silva, M. A.; Oliveira, C. E. Filosofia Medieval. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 29-39, 2015.

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rente a um elemento das entidades, mas ao movimento da realidade mesmadas criaturas. Porfim, as an lises sugerirão ue a ação, nassuas formas e na sua natureza, coincide com a corruptio, o permanere e a conversio das entidades (De moribus Manichaeorum, II, 6.8).

Confessiones . - .

Conformeo uefoiesclarecidonasobservaç esinicias,oprimei-ro ponto desta comunicação coincide com a individuação das possíveis formas da ação e, assim, com a determinação das diferentes modalida-des da relação com as entidades. Neste sentido, o ponto de partida da an liseéaindividuaçãoagostinianadocomandodivino,coincidentecom a continência e a pluralidade das suas direções: “Sem dúvida, or-denas-me uecontenhaaconcupisc nciadacarne,eaconcupisc nciados olhos, e a ambição do século” (Agostinho, 2001, X, 30.41, tradução levementemodificada)1. A lei divina, como ordem da continência, su-gere a possibilidade de duas formas de agir, isto é, o conter, ou não, as tentaç esdocorpoedaalma,o uecoincidecomaboaaçãoouopeca-do.Assim,paradeterminarseoagirseriaounãomovimento,ser ne-cess rioaprofundaraan lisedasformasdeaçãoreferidas,tendoemvista tanto as direções do amor uantoarelaçãoentreamens e os de-leites da alma e da carne. Na perspectiva exposta, o ponto de partida daan lisesãoasre e esagostinianasconcernentes stentaç esdacarne, assim como elas aparecem na obra Confessiones (X, 30.41-34.51). Maisprecisamente,emtal mbitotem tico,asre e esagostinianasconcernentes ao amor pelas formas belas obtêm especial valor, sendo uenelasaparecem,muitoclaramente,tantoasformasdoamor uanto

as relações entre a mens e as tentações da carne: “Os olhos amam as for-masbelasevariadas,ascoresvivasealegres.O al estascoisassenãoapoderemdaminhaalma uedelaseapodereDeus ue,naverdade,fezestascoisasmuitoboas.Por ueomeubeméelemesmoenãoes-tas coisas” (Agostinho, 2001, X, 34.51) 2. Como as próprias palavras de Agostinho revelam, se os homens amam as criaturas por si mesmas,

1 Cf.: Iubes certe, ut contineam a concupiscentia carnis et concupiscentia oculorum et ambitione saecu-

li. O texto latino das obras agostinianas citadas nesta comunicação é o da NBA (1965-2007).2 Cf.: Pulchras formas et varias, nitidos et amoenos colores amant oculi. Non teneant haec animam

meam; teneat eam Deus, qui fecit haec bona quidem valde, sed ipse est bonum meum, non haec.

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elespecam mas,seelesasusamparaamaraDeus,fazemo ueébem.Opecadocorrespondeaodom niodocorposobreaalma,aopasso uea boa ação coincide com o controle da mens sobre as tentações da carne.

Oselementosmencionadosnaan lisedasre e esagostinianasreferentes às tentações do corpo também aparecem nas observações agostinianas sobre a curiositas. A curiosidade é, para Agostinho, um apetite da alma, coincidente com o desejo de conhecer e experimentar pormeiodossentidosdocorpotudoo ueest aonossoredor: Aistoacresce outra forma de tentação, perigosa sob muitos mais aspectos. Comefeito,alémdaconcupisc nciadacarne, ueéinerenteaodeleitede todos os sentidos e prazeres, postos ao serviçoda ual perecemos ueseafastamdeti,e istenaalma,disfarçadosobonomedeco-nhecimento e ciência, uma espécie de apetite vão e curioso, não de se deleitar na carne por meio dos mesmos sentidos do corpo, mas sim de sentir por meio da experiência da carne” (Agostinho, 2001, X, 35.54) 3. Assim, seja no caso das tentações da carne seja no da curiositas, a leidivinadefineduasformasdeagir,istoé,acontin nciaeaincon-tin ncia.Cabe agora compreendero ue sãoopecado e aboa açãonaan liseagostinianadacuriosidade.Ainda,naperspectivae posta,oselementoste ricosdaan lisesãoasdireç esdoamor e as relações entre a menseosdeleites: Noentanto, uempoder contaragrandeuantidadedecoisastãoinsignificantesedesprez veis,com uedia-riamenteétentadaanossacuriosidade,e uantasvezesnosdei amoslevar ... E uedizer uando,sentadoemcasa,muitasvezesmeatraia atenção uma osga a caçar moscas, ou uma aranha a enredar nas suas teiasas uenelascaem Acaso,por uesãoanimaispe uenos,nãoéomesmoo uesepassa Passoda aoteulouvor, criadoradmir veleordenadordetodasascoisas,masnãoéparatelouvar uecomeçoa reparar nisso. Uma coisa é levantar-me rapidamente e outra é não cair” (Agostinho, 2001, X, 35.57) 4.Assimcomoaspr priasre e es3 Cf.: Huc accedit alia forma temptationis multiplicius periculosa. Praeter enim concupiscentiam car-

nis, quae inest in delectatione omnium sensuum et voluptatum, cui servientes depereunt qui longe se faciunt a te, inest animae per eosdem sensus corporis quaedam non se oblectandi in carne, sed experiendi per carnem vana et curiosa cupiditas nomine cognitionis et scientiae palliata.

4 Cf.: Verum tamen in quam multis minutissimis et contemtibilibus rebus curiositas cotidie nostra temte-tur et quam saepe labamur, quis enumerat? [...] Quid cum me domi sedentem stelio muscas captans vel aranea retibus suis inruentes inplicans saepe intentum facit? Num quia parva sunt animalia, ideo non res eadem geritur ergo indem ad laudandum te, creatorem mirificum atque ordinatorem rerum omnium, sed non inde esse intentus incipio. Aliud est cito surgere, alid est non cadere.Em ueconcerne relaçãoentre curiositas e ciência no pensamento agostiniano, cf. também: Confessiones, V, 3.3-4.7.

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agostinianas sugerem, se os homens procuram o conhecimento pelo dese odeconheceredee perimentar,elespecam aocontr rio,seoshomensbuscamosaberparalouvarDeus,elesagememrespeito leidivina. O pecado é, portanto, o domínio da curiositas sobre a mens, isto é, o controle de um desejo da alma sobre a alma mesma; a boa ação, ao contr rio,coincidecomodom niodamens sobre a curiosidade, isto é, com o controle da alma sobre si mesma e sobre os seus desejos.

Oselementose postosnaan lisedasre e esagostinianasso-bre as tentações da carne e sobre a curiositas também aparecem nas observações relativas à soberba. Assim como a curiosidade, a soberba é um apetite da alma e corresponde, precisamente, ao desejo de ser temido e amado pelos humanos. À luz da ordem da continência, trata--sedeesclarecer uaisformasdeagircorrespondemaoconterounãoasoberba.Maisespecificamente,oob etivodaan liseécompreendero ue o pecado e a boa ação são nas re e es agostinianas sobre aambitio mundi, tendo em vista tanto o motivo do amor uantoasrela-ções entre a mens e os desejos da alma: “E assim, como, por causa de certosdeveresdasociedadehumana,énecess rioseramadoetemidopeloshomens,oadvers riodanossaverdadeirafelicidadenãonosd tréguas, espalhando por toda a parte nos seus laços um «muito bem! muitobem ,para ue,en uantorecebemosavidamenteestesaplau-sos, sejamos apanhados incautamente, e desliguemos a nossa alegria datuaverdade,eacolo uemosnafalsidadedoshomens,enosagradeser amados e temidos, não por causa de ti, mas em vez de ti” (Agosti-nho, 2001, X, 36.59)5. Assim como as palavras de Agostinho nos suge-rem, uandooshomensamamascriaturasporsimesmas,elespecam mas, uandoasamamporcausadeDeus,elesrespeitamaleidivina.O pecado é, assim, o domínio da ambitio mundi sobre a mens, isto é, o controle de um desejo da alma sobre a própria alma; a boa ação, ao contr rio,coincidecomodom niodamens sobre a soberba, isto é, com o controle da alma sobre si mesma e sobre os seus desejos.

luz das an lises desenvolvidas, podem-se reconhecer duastipologiasdaação,istoé,opecadoeaboaação,as uaiscorrespondem

5 Cf.: taque nobis, quoniam propter quaedam humanae societatis officia necessarium est amari et timeri ab hominibus, instat adversarius verae beatitudinis nostrae ubique spargens in laqueis euge, euge,

ut, dum avide colligimus, incaute capiamur et a veritate tua gaudium nostrum deponamus atque in

hominum fallacia ponamus, libeatque nos amari et timeri non propter te, sed pro te.

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aoconter,ounão,osdeleitesdacarneedaalma.Alémdisso,no ueconcerne às direções do amor, o pecado revelou-se o amor pelas cria-turasemsimesmas,aopasso ueaboaaçãocorrespondeaoamorporDeus.Enfim,noplanodarelaçãoentreamens e as tentações da carne e daalma,aan liseesclareceu ueopecarcoincidecomodom niodosdesejos do corpo e da alma sobre a mens,aopasso ueaboaaçãoé,aocontr rio,ocontroledamens sobre as tentações referidas. Com base nisto, podem-se agora indicar, se bem só preliminarmente, os aspec-tos cinéticos da noção de ação. A identidade entre agir e o movimento aparece, emprimeiro lugar, nas re e es deAgostinho sobre o pe-cadoentendidocomoanegaçãodaforma.Nestesentido, uandooshomenspecam,elesdestroemaforma ueDeuscriou aocontr rio,uandoelesfazemobem,elesaguardam: ue inumer veiscoisas

acrescentaram os homens às tentações da vista com as variadas artes e re uintesnovestu rio,nocalçado,nosutens lios,emoutrosprodutosdomesmogénero,naspinturaseesculturasv rias uemuitoultra-passamoseuusonecess rioee uilibradoeoseupiedososignificado,seguindoe teriormentea uilo uecriam,abandonandointeriormentea uele ueoscriou,edestruindoemsia uilo ueeleosfez (Agos-tinho, 2001, X, 34.53) 6. A coincidência de ação e movimento aparece tambémnas re e es agostinianas sobre a ação comoanegaçãodaunidade das entidades. Neste caso, o pecado revela-se, para Agosti-nho, como a negaçãodaunidadeda entidade, ao passo ue a açãoconforme à lei divina coincide com a custódia da unidade: “Efectiva-mente, pela continência saímos da dispersão e somos reconduzidos à unidade,da ualnosdissip mosemmuitascoisas.Naverdade,ama-temenosa uele ue,aomesmotempo ueati,amaalgumacoisa, uenão ama por causa de ti” (Agostinho, 2001, X, 29.40) 7.

Combasenisto,parece,claramente, ueaação,nasuad plicemodalidade, corresponde ao movimento e ao permanecer da forma das entidades: “Tarde te amei, beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei Eeis ueestavasdentrodemimeeufora,ea teprocurava,eeu,

6 Cf.: Quam innumerabilia variis artibus et opificiis in vestibus, calciamentis, vasis et cuiuscemodi fabricationibus, picturis etiam diversisque figmentis atque his usum necessarium atque moderatum et piam significationem longe transgredientibus addiderunt homines ad inlecebras oculorum, foras sequentes quod faciunt, intus relinquentes a quo facti sunt et exterminantes quod facti sunt.

7 Cf.: er continentiam quippe colligimur et redigimur in unum, a quo in multa de uximus. Minus enim te amat qui tecum aliquid amat, quod non propter te amat.

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deforme,precipitava-menessascoisasbelas uetufizeste. uestavascomigo e eu não estava contigo” (Agostinho, 2001, X, 27.38, tradução levementemodificada) 8.Nesta perspectiva, a ual parece sugerir aideiade ueoagir seriaummovimento inerenteapenasaalgumasualidadesdacriatura,aparece,contudo,ae ig nciadeumaan lisedacoincid nciadeformaeordemdasentidades,a ualpermite,aomesmotempo,esclarecer ualelementoest su eitoaomovimentoedeterminaro ueaação,en uantomovimento,seria.

De libero Arbitrio . - .

Asre e esagostinianassobreaformaeaunidadedoshomens,en uantoentidades,aparecemnasan lisescontidasnaobraDe libero Arbitrio e, precisamente, nas observações agostinianas relativas ao con-te dodaleidivina.Nesteconte to,Agostinhoesclarece ueoconteras tentações da carne e da alma corresponde ao guardar a ordem en-tre a mensosdese osreferidos.Emprimeirolugar,Agostinhodefineodomínio da mens sobre as tentações nos termos de uma relação entre o ueémaiseo ueémenosforte,sugerindo,assim,apresençadeumahierar uiaentreoselementos uenosconstituem.Nestesentido,uandooshomenspecam, o ueneles émenorpredomina sobre oueémaior aocontr rio, uandoelesagemconforme leidivina,oueémaiornelese erceseucontrolesobreo ueémenor: A- Pensas ueapai ãoémaispoderosado ueamente, ualreconhecemostersidoconfiado,porleieterna,odom niosobreaspai es Eu,defacto,demodoalgumpenso ueassimse a.Enãoseriaabsolutamenteor-denado ueasrealidadesmaisfracasdominassemasmaisfortes.Porisso, ulgo ueénecess rio ueamentese amaispoderosado ueodese odesenfreado,precisamentepor ueérectoe usto ueelaodo-mine” (Agostinho, 2001, I, 10.20) 9. A relação de ordem aparece, ainda maisclaramente,nasre e esagostinianasconcernentesaodom nioda mens sobre a curiositas e a ambitio mundi. Nesta perspectiva, Agosti-8 Cf.: Sero te amavi, pulchritudo tam antiqua e tam nova, sero te amavi! Et ecce intus eras et ego foris et

ibi te quaerebam et in ista formosa, quae fecisti, deformis inruebam. Mecum eras, et tecum non eram.9 Cf.: A- Putasne ista mente, cui regnum in libidines aeterna lege concessum esse cognoscimus, poten-

tiorem esse libidinem? Ego enim nullo pacto puto. Neque enim esset ordinatissimum, ut inpotentiora

potentioribus imperarent. Quare necesse arbitror esse ut plus possit mens quam cupiditas, eo ipso quo

cupiditati recte iusteque dominatur.

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nhodefineocontroledamens sobre os desejos irracionais da alma nos termosdeumarelaçãoentreo ueémaiseo ueémenosperfeito.Nestesentido, uandooshomensagemconforme leidivina,o uenelestemumgraudeperfeiçãomaiordominasobreo uetemumn -veldeperfeiçãomenor mas, uandooshomenspecam,o ueémenosperfeitodomina sobreo ueémaisperfeito: A-Emsuma,dir-se- ueoserhumanoest ordenado, uandoarazãodominasobreestesmovimentosdaalma.Defacto,nãoseh -defalardeumarectaordemou, se uer, de ordem, onde as realidades superiores estão sub uga-das às inferiores. Não te parece? E- É evidente. A-Portanto, uandoesta razão– mente ou espírito – governa os movimentos irracionais da alma,entãodomina,noserhumano,a uilo ueneledevedominar,deacordocoma uelalei uedescobrimossereterna (Agostinho,2001,I,8.18) 10.Parece,portanto,claramente, ueaação,nasuad plicemoda-lidade, não coincide apenas com o movimento inerente a algumas das ualidadesdasentidades,mascomomovimentoeaperman nciada

ordem axiológica delas. Contudo,talcompreensãodocar tera iol gicodaaçãore uer

umaan lisedadimensãoontol gicadarelaçãoentreamens e as ten-tações, de modo a esclarecer a coincidência do agir e do movimen-to. A noção agostiniana de ordem coincide, de fato, com o conceito deess ncia,o uesugere,portanto, ueoshomens,comoentidades,correspondemaumarelaçãohier r uicadoselementos ueoscom-p em.Nestesentido, uandooshomenspecam,elesdestroemapr -prianatureza contudo, uandoelesagememrespeito leidivina,elespreservam a própria essência: “A-O ueeu uerodizeréoseguinte:se al o ueforissopelo ualoserhumanosesobrep eaosanimais,uerselhechamementeouesp rito,ou,demodomaisade uado,am-

bas as coisas – de facto, encontramos uma e outra nos livros divinos -, sedominareimperarsobreasdemaisrealidadesde ueoserhuma-nosecomp e,entãoeleestar perfeitamenteordenado (Agostinho,

10 Cf.: A- Nemo autem cuiquam miseria se praeponendum putavit. Hisce igitur animae motibus cum ra-

tio dominatur, ordinatus homo dicendus est. Non enim ordo rectus aut ordo appellandus omnino est,

ubi deterioribus meliora subiciuntur. An tibi non videtur? E- Manifestum est. A- Ratio ista ergo vel

mens vel spiritus cum inrationales animi motus regit, id scilicet dominatur in homine, cui dominatio

lege debetur ea quam aeternam esse comperimus.

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2001, I, 8.18) 11. Com base nisto, mostra-se claro, ueaaçãonãoéummovimentoinerente s ualidadessingularesdasentidades,maséopr priomovimentodoserdelas,sugerindo,assim, ueaformanãoé uma das propriedades das criaturas, mas a essência delas: “A- Por conseguinte,a uelemovimentodeaversão, uereconhecemosseropecado,namedidaem ueéummovimentodedefecçãoe uetodaadecad nciaprovémdonada,reparabemna uiloa ueeleserefere,enãoduvides uenãopertenceaDeus (Agostinho,2001,II,20.54)12.

Nestaperspectiva,a ualsugereaideiade ueoagiréummovi-mento inerente ao ser das entidades, apresenta-se, também, a exigência deumaan lisedasformasdecoincid nciadeaçãoedomovimento,uepermitaesclarecer,combasenaidentidadeentreagirenegaçãooucust diadasentidades, uaisseriamasformascinéticasdaação.

3. De moribus Manichaeorum .

Combasenosresultadosdaprimeiraedasegundafasedestaan -lise,cabe,agora,e aminar uaisseriam,paraAgostinho,asformasdemovimentoeassimdeterminaro ueseriaaaçãoen uantomovimento.Oselementosmencionadosaparecemnasre e esagostinianassobrea corrupção, a permanência e a conversão, contidas na obra De moribus

Manichaeorum. Neste contexto, Agostinho analisa tanto as modalidades cinéticascitadas uantooseuestatutoontol gicoea iol gico.

O primeiro ponto da an lise agostinianamencionada é a cor-rupção,a ualcoincide,paraAgostinho,comanegaçãodaess nciae do ser das criaturas. Mais precisamente, a corruptio é o movimento ue,negandooselementosessenciaisdasentidades,istoé,amedida,

a forma e a ordem, nega, assim, o ser das criaturas: “Quare ordinatio

esse cogit, inordinatio ergo non esse; quae perversio etiam nominatur atque

corruptio (Agostinho, 1997, II, .8). O segundo elemento da an li-se agostiniana corresponde, por outro lado, à permanência. Uma tal forma cinética coincide, mais precisamente, para Agostinho, com o

11 Cf.: A- Illud est quod volo dicere: hoc quidquid est, quo pecoribus homo praeponitur, sive mens sive

spiritus sive utrumque rectius appellatur – nam utrumque in divinis libris invenimus -, si dominetur

atque imperet ceteris, quibuscumque homo constat, tunc esse hominem ordinatissimum. 12 Cf.: A- Motus ergo ille aversiosnis, quod fatemur esse peccatum, quoniam defectivus motus est, omnis

autem defectus ex nihilo est, vide quo pertineat, et ad deum non pertinere ne dubites.

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subtrair-se à corruptio. Neste sentido, a permanência revela-se como o permanecer da estrutura ontológica da entidade: “Deficiunt autem om-

nia per corruptionem ab eo quod erant et non permanere coguntur, non esse

coguntur. Esse enim ad manendum refertur” (Agostinho, 1997, II, 6.8). A terceira forma cinética analisada por Agostinho corresponde à conver-são,a ualrevela-secomoomovimentodereconstituiçãodaess nciae do ser das criaturas: “Nam quod mutatur in melius, non quia manebat

mutatur, sed quia pervertebatur in peius, id est ab essentia deficiebat” (Agos-tinho, 1997, II, 6.8). A tais formas cinéticas correspondem, além disso, no plano ontológico e axiológico, diferentes graus de valor e realidade. Acorrupçãocoincide,defato,comomaleonão-ser,aopasso ueapermanência e a conversão correspondem ao bem e ao ser.

Combasenistoenasan lisesconcernentes smodalidadesdaação,pode-se,agora,determinaro ueéoagiren uantomovimento.Em primeiro lugar, se o pecado coincide com a negação da ordem on-tol gicadasentidades,torna-seevidente ueelecoincidecomacor-rupção,sendo ueacorruptio corresponde à negação da essência da en-tidade. Em segundo lugar, se a boa ação coincide tanto com a custódia uantocomareformaçãodaordemontol gicadasentidades,torna-seevidente ueelatem uecorresponder perman nciae conversão,en uantomovimentosdecust diadoser. luzdestaan lise,torna-seclara a coincidência das modalidades da ação e dos sentidos agostinia-nosdomovimento,o uesugereae ig nciadeume amedosgrausedos níveis da relação mencionada.

Conforme an lisedesenvolvida,pode-seconcluir ueaaçãoé,para Agostinho, o movimento da forma e da unidade da entidade, isto é, o movimento do ser das criaturas. Neste sentido, a ação não corres-pondeaomovimentoinerente s ualidadessingularesdasentidades,mas ao movimento da essência e às suas diferentes modalidades, isto é, a corrupção, a permanência e a conversão. Assim como a própria terminologia agostiniana sugere (Agostinho, 1997, 7)13, torna-se claro, 13 Cf.: Creaturis autem praestantissimis, hoc est rationabilibus spiritibus, hoc praestitit Deus ut si no-

lint, corrumpi non possint, id est si obedientiam conservaverint sub Domino Deo suo ac sic incorrup-

tibili pulchritudini eius adhaeserint. Cf. também: Agostinho, 1997, 37.

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portanto, ueaidentidadeentreaaçãoeomovimentoécompletaeintr nseca,o ueindicaae ig nciadeume amedaéticaemtermoscinéticos. À luz dos resultados expostos, o objetivo das próximas in-vestigaç es ser , assim, ode e aminar a ética agostiniana en uantoexpressão da ontologia e dos seus conceitos fundamentais, isto é, as noções de matéria e forma.

Agostinho, Confissões, trad. pt. A. do Espírito Santo, J. Beato e M.C. de Castro--Maia de Sousa Pimentel, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001 (te tolat.,Roma,Ci Nuova,2007)-De moribus Ecclesiae catholicae et de moribus Manichaeorum, in: Sant’Agostino, Polemica con i Manichei,trad.it.A.Piere i,Roma,Ci Nuova,1997.-De Natura Boni, in: Sant’Agostino, Polemica con i Manichei, trad. it. L. Alici, Roma,Ci Nuova,1997.-Diálogo sobre o livre arbítrio, trad. pt. P. Oliveira e Silva, Lisboa, Imprensa Na-cional-CasadaMoeda,2001(te tolat.,Roma,Ci Nuova,1992).Beierwaltes, W. (1995). Agostino e il neoplatonismo cristiano, trad. it.A. ro a,Milano: Vita e Pensiero. Be etini,M.(1994).La misura delle cose: Struttura e modelli dell universo secondo Agostino d ppona. Milano: Rusconi.Bezançon, J.N. (1965). Le mal et l’existence temporelle chez Plotin et saint Au-gustin. Recherches Augustiniennes, 3, pp. 133-160.Bochet, I. (1982),SaintAugustinet ledésirdeDieu.Paris: Institutd tudesAugustiniennes.d Onofrio, . (1991). uodestetnonest .Ricerchelogico-ontologichesulproblema del male nel Medioevo pre-aristotelico. Doctor Seraphicus, 38, pp. 13-35.DeCapitani,F.(1980). Corruptio negliscri iantimanicheidiS.Agostino.I.

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si ifi ado da e e e a o os i o

io i a do efliUniversidade Federal de Pelotas

1.

Antes de tudo, devemos considerar que os termos em San-toAgostinhosão utuantes,enamedidaem uevamosad uirindofamiliaridade com os seus textos, então percebemos que cada termo podeterv riossignificadosecadasignificadoécorrelatoaoutros. o caso da mente (mens) relacionada com a razão (ratio), bem como, às vezes, identificadacoma intelig ncia (intelligentia) e com o intelecto (intellectus). Para entendermos estes termos não podemos dei ar delembraraderivaçãodosmesmosapartirdetr spalavraslatinas ueo autor hiponense grafa, a saber: anima, animus e spiritus. ilson(2007,p.95)nosadverte sobrea import nciadeconsiderarmososdiversossignificadosdase press esacimacitadas.

O termo anima designa o princípio animador dos corpos conside-randoafunçãovital uenelese erce,issosignifica ueohomempos-suiumaalmasemelhanteaosdemaisanimais.Comotermoanimus, Agostinho quer preferencialmente designar a alma humana, ou seja, umprinc piovital ueéaomesmotempoumasubst nciaracional(De

civitate dei, VII,2 ).Nessesentido,animuséomaiorgraudaalma,e svezes, parece confundir-se com mens (De civitate dei XI, ). otermospiritus possui dois sentidos inteiramente diferentes, podendo ser deri-

Carvalho, M.; Hofmeister Pich, R.; Oliveira da Silva, M. A.; Oliveira, C. E. Filosofia Medieval. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 40-49, 2015.

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O S A

vadodePorf rio(De civitate dei,X,9,2)oudasSagradasEscrituras(De

anina et ejus origine,II,2,2).Nadesignaçãoporfiriana,spiritus designa bem o que denominamos imaginação reprodutiva ou memória sensí-vel portanto,ésuperior vida(anima) e inferior ao pensamento (mens) humano (De enesi ad litteram, XII,24,51).Nosentidob blico(De fide et symbolo, X,2 ),spiritus designa a parte racional da alma e, por conse-guinte,torna-seumafaculdadeespec ficadohomeme ueosanimaisnãopossuem( I SON,2007,p.95).

A mens, uepodemos traduzirpormenteoupensamento, é aparte superior da alma racional e o que existe de mais excelente na criaturahumana,éela ueadereaosintelig veiseaDeus(Enarratones

in psalmis , ).EmDe trinitate(XV,7.11e27,49)encontramosafamosadefiniçãoagostinianadamente: amentenãoéaalma,masnela,oque há de excelente” (Non igitur anima, sed quod excellit in anima, mens

vocatur).Agostinhoaoe plicarsobreae cel nciadamenteadenomi-na presidentedehonra ,nosentidode ueacimadelaencontra-sesomenteDeus,a uemeladevesesubmeter.Amentecontémnatural-mentearazãoeaintelig ncia.Algumasvezesotermomenteée uipa-rado a animus.

Ma he saotratardodualismomente-corpositematizaosar-gumentos apresentados no De trinitate e enfatiza que a lista de Santo Agostinhodeindubit veisfunç esmentaisconverte-seemsuacarac-terizaçãodo ueéumamente.Assim: umamenteéalgo uevive,recorda,entende,dese a,pensa,conhecee ulga (2007,p.71-7 ).Ve a-mos o raciocínio do próprio Agostinho:

Ora,certoshomensduvidaramseafaculdadedeviver,recor-dar, entender, querer, pensar, saber, julgar, não provinha do ar,dofogo,docérebro,dosangueoudos tomos,ouaindase,alémdesses uatroelementosmaisdefendidos,outalvez,deumuintoelementodenaturezaignorada.Outambém,seaestrutu-

ra ou constituição de nosso próprio corpo era que realizava todas essasatividades. nsdefenderamtalopinião,outrostaloutra.uem,porém,podeduvidar ueaalmavive,recorda,entende,uer,pensa,sabee ulga Pois,mesmoseduvida,vive seduvi-

da lembra-se do motivo de sua dúvida; se duvida, entende que duvida; se duvida, quer estar certo; se duvida, pensa; se duvida, sabe que não sabe; se duvida, julga que não deve consentir teme-

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S R S

rariamente.Ainda ueduvidedeoutrascoisasnãodeveduvidardesuad vida.Visto uesenãoe istisse,seriaimposs velduvi-dar de alguma coisa” (De trinitate10.10.14).

Vimos, portanto, que o autor africano procura estabelecer esta lista mostrando que a própria tentativa da mente de duvidar de que desempenha ual uerdessasfunç esé,decertomodo,umefeitocon-tr rioao uesedese ava.

Convémagoradefinirumoutrotermorelacionadocomamente,esseéaratio.Aratio, uetraduzimosporrazão,éomovimentopeloqual a mens passa de um dos seus conhecimentos a outro associando--os ou os dissociando (De ordine II,11, 0).Arazãoéamelhorpartedenossaalma(Acad.1.2.5 retr.1.1.2)Arazãoénecess riaparaaféeparaoamor,por uearazãoéa ueapreendeosob etosdeambos.Devemosaindalembrar ueosdoistermosintellectus e intelligentia fo-ramimpostosaAgostinhopelasEscrituras,eambossignificamumaatividadesuperior razão.Intelligentia éa uilo ueh nohomem,por-tanto, na mens, de mais eminente (De libero arbitrioI,1, ),epelamesmarazão, confunde-se com intellectus (Enarrationes in psalmos 1,9).

Cabe agoradefinir o ueAgostinho entendepor intellectus.Ointelectoéumafaculdadedaalma,pr priadohomem, uepertencemais particularmente à mens,e ueéiluminadadiretamentepelaluzdivina (In Joannis evangelium tractatusXV,4,19).Ointellectuséumafa-culdadesuperior razão,poiséposs velhaverrazãosemhaverinteli-g ncia,masnãointelig nciasemhaverprimeiramenterazão e,por ueohomemtemarazão,ele ueralcançaroentendimento.Aintelig nciaéumavisãointeriorpela ualopensamentopercebeaverdade uealuz divina descobre para ele (Enarrationes in psalmis 2,22). apartirdo intellectus,vistoemsuaformamaiselevada, uevimos ueafééopre mbulonecess rio( I SON,2007,p.9 ).

SegundoHan e (2001,p.88 ),obispodeHipona entende que amentenãoéummeroaspectodeseuseroudesuarelaçãocomouniverso.Amenteimortaldefineohomem,etrata-sedeumainfinitu-deterrivelmentefascinantena ualohomemest imerso.Agostinhoafirmaissoapartirdeumae peri nciaoucompreensãodesipr prio(Confessiones10.17.2 ),ena ualelee ploraincessantementecomumacont nuasensaçãodeseralgomaravilhoso.Conhecerplenamenteoser

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humano,ofazsupremamentefeliz,poisissosignificabuscarauniãocomo bemdivinona contemplação.Avisão é a realizaçãoda uiloque o amor busca; o amor está percebendo constantemente (De trinitate 8.4. 11. .10).OconheceraDeuseoconheceran smesmossãocoisasueseachamindissoluvelmenteunidas.OconheceraDeusdependede uesechegueaentender ueamenteéimateriale ueéimagemdoDeustrinit rio(Confessiones.7.1.1 De trinitate1.1.1 2.18.54 .1.1 10,10.15.1 ).AmenteécomumaDeuseaohomem,éomeio(medium) infinitoem ueelesseencontram.

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Afilosofia,nomundohelen sticoao uepertenceopensamentode Agostinho, tinha se voltado para si mesma, e o bispo de Hipona foi essencialparacomunicaraoOcidentelatinoestavirada.CompreenderparaAgostinhoéalgo uedependedaapreciaçãodadecisão ueéestadireçãomentalparao interior. Somentevoltando-separao interior,afastando-sedosens vel,ser poss velirdeencontrodaVerdade.EmConfessioneslivro7,atormentadopelad vidasobreaorigemdomal,Agostinhore etesobrealuzdosalmo 7ediz:

Contudo,iaaoencontrodoteuouvidotudoo uerugiaporcau-sa do gemido do meu coração, e diante de ti estava o meu desejo, ealuzdosmeusolhosnãoestavacomigo.Estavadentrodemim,mas eu fora, e ela não estava em um lugar” (Confessiones7.7.11).

Mais adiante, em Confessiones livro7, onossoautor suplicaosocorrodivinoparafraseandoosalmo101eafirma uesomenteliber-tando-sedosaguilh esinteriores,conformealinguagemdaEneidadeVirgilio,epormeiodaintuiçãointerioré uepoderemosnoscertificardae ist nciadeDeus.Nossoautorsuplica:

Eimpelias-mecomosteusaguilh esinteriores,para ueesti-vessein uieto, até ue,atravésdavisãointerior,tuparamimfosses uma certeza”(Confessiones.7.8.12). NaobraDe Trinitate, o autor declara que propriamente nosso co-

meçoenossofimsãocomoconhecimentodesimesmo.Amentese

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conhece sempre a si mesma, porque sempre está imediatamente pre-senteemsimesma,e,portanto,émelhorconhecidaparasimesma uepossa ser-lo qualquer outra coisa (Trinitate8. .9 9. . 9. .11 10,7.10-10.10.1 ).ArelaçãocomDeusecomtodososdemaisest contidanoverdadeiroconhecimentodesimesmo.Nãonecessitamosacrescentarnada.Ademais,devemossubtraira uilo ueacrescentamoserronea-mentepornossaauto-imersãonosens vel ueest porbai odamente.O autor de Confessionesdefineamem riacomofaculdadedamente,onde encontram-se as imagens corpóreas e, lembra-nos que quando sesubtraemasconfus esresultantesdessascondiç es uedei amamente obscura, então a mente chega a ter um conhecimento de sua pr prianaturezaousubst ncia(Confessiones.10.8.15 10.9.1 ).

A mente, quando chega ao verdadeiro conhecimento de si mes-ma,chegaaDeus.AVerdadeéamentedivinaouVerbo( rin.1.10.20 4.1.2 4.18.24 7. .5 12.14ss).Aliamenteseencontracomo ueésupe-rior a ela (Confessiones7.7.10 Trinitate8ss ).Aauto-re e ãoéomeiopela qual acontece a relação com tudo o mais, e em oposição aos neo-platônicos pagãos, isto segue sendo verdade para Agostinho, inclusive no uedizrespeitoauniãocomDeus.Paranenhumoutropensadornatradiçãoplat nicacom ueohiponenseseidentificaasimesmo,omundomentalémaisinclusivo.Nenhumpagãoobedeciamaiscom-pletamente ueAgostinhoaordemdadapeloor culodeDelfos: Co-nhece-te a ti mesmo!” (Confessiones10. . ). uandoamentepensandoemsi,v -se,elasecompreendeesereconhece.Eisaalmaagindosobresimesma.Essaéasuamaisperfeitaoperação,poisoob eto uev nãolheéestranhocomoalgodefora.

Oautorafricanodescobriutambémascontradiç eseauto-decep-ç es uehavianaintrospecçãomental.OpapeldecisivodeAgostinhonadeterminaçãodocar terespec ficodoOcidentelatinoédeimpor-t nciacr ticaparaaformaçãodesuastend nciasaodualismomente--corpo,aointelectualismoabsolutoeparaaintrospecçãopsicol gica.

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Para ueamentese aomediumatravésdo ualDeuseohomemseencontrem,ter uesermais ueconhecer.Amenteéserinterco-

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nectado, conhecimentoevontade,ou,melhordito, amente éo ueconstituiasatividadestotalmenteinter-relacionadaseauto-re e ivasderecordar,entendereamar.(Confessiones.10.10.1 1 .11.12 De civi-

tate Dei11.2 De trinitate14.8.11).Assim,pore emplo,amentenãoésomenteaprofundidadeinconscienteem uesed auniãocomosprincípios de sua operação (De trinitate.8.9.1 11.7.11 12.2.2 12. , 12.15.24). igualmenteumaconceitualizaçãocompar velaofalarumapalavra, um conceber em que o ser da mente se expressa a si mesmo parasimesmo. tambémumamorauto-movidoporémauto-trans-cendente, comparável ao peso de um corpo (De civitate Dei11.28 Con-

fessiones4.14.22 14.9.10).Cadaumdostr saspectosdamentecontémaos demais (De trinitate14. .8 14.14.18 15.21.40 15.21.41).Atr adedamemória, do entendimento e do amor se acha presente em cada uma dastr satividadesdamente.Assim,pore emplo,h umconhecereum amar dentro da memória antes que o conhecimento seja projetado paraaconsci ncia.

uando essas tr s atividades estão plenamente dirigidas paraDeusindividualmenteecomoumatotalidade,Deuseohomemestãofinalmenteunidosnasupremabem-aventurança(De trinitate15.12.21).A capacidade da mente se julga por esta visão de si e do destino e da finalidadedohomem.Istosignifica ueaess nciadeDeusest dadainteiramente nopensamentodivino e na vontadedivina, e tambémueamentehumanachegaauniãocomaess nciadeDeus,talcomoédadaassimnopensamentoenoamor.Arepresentação ueAgostinhotem do futuro teleológico da mente humana e, por tanto, de sua capa-cidade e de sua relação com o ser, se acha em vivo contraste com a que predominanatradiçãocristãgrega,masédeterminantenateologia,filosofiaeculturadoocidentelatino,considerandoaestruturaontol -gicaeteol gicadesuametaf sica.

Noentanto,acone ãodedepend nciaem ueseachaamen-tehumanaemsuasatividadesessenciaiscomrespeitoaoDeustrini-t rio nãofica reservadapara a vida nomundo futuro. Est semprepresente.Asatividadesdamentedependemdailuminaçãodivina.Amem riadependedeDeusparaosprinc piosinatos ueelapodeevo-carnaconsci ncia.Segundoae peri nciahist ricadeAgostinho–namem riaeleretémumarelaçãocomo ueelees ueceu(Confessiones

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10.1 .25)ecomosubconsciente.Assim,novastoemaravilhosomundodamem ria, amenteencontraaDeusdentrode simesmo.Amen-te,aopensar,re eteaconcepçãodivinadeumapalavrainterna.Noconhecimentoverdadeiro,amentetocaev aDeussobresimesmo.odosseus u zossefazemassimemrelaçãocomanormadaVerdade

divina, de tal maneira que Agostinho pode considerar-se a si mesmo como sempremovido emovente em relação comela.Nodese odafelicidade,amente–conscienteouinconscientemente–émovidaporDeus. uandoesteamorentendedevidamenteanaturezadofim ueasatisfaz,entãochega uniãocomDeus.Agraçaearevelaçãorestau-rame levamparaaautoconsci nciaa imagemdivinadanificadaouprejudicada, mas nunca perdida (De trinitate14.8.11).

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Emsuarelaçãocomosentido,osentidocomumeaimaginação,amenteéreceptivacomrespeitoaosens vel ueh debai odela,oconduz unidadeeoorganizareconstruindocriativamente.Ascoisastemporais e sensíveis são realidades inferiores que, por sua mutabili-dade,e istemreduzidamente.(Confessiones12.9.9-12.19.28).Pormeiodosentidoamenterecuperaoautoconhecimento.

SegundoHarrison(2001,p.1185),aanalogiadoscincosentidoséutilizadaporAgostinhoemformafiguradaparadescobrirao homeminterior”, pelo qual ele entende primordialmente a alma racional e a suarelaçãocomDeus.Atravésdossentidosespirituaisaalmaapren-de sobreDeus e cr , ou tem conhecimentodeDeus.Empregando aanalogiadavista,aalmav econhecepela iluminaçãodivina, toda-via,oautorafricanoadmitealgumasvezes ueesteconhecimentoémaisafetivoesensitivo ueracionaleintelectual. rata-sedeumtocaroue perimentar.EmDe civitate Dei(11.27),Agostinhoserefereaumsentidointerior comumaoshomenseaosanimais, ueésuperioraossentidoscorporais,ao ualsãoreferidasaspercepç esdoscincosentidos,sendo ueestas,atécertoponto,são ulgadaseinterpretadas.

Em enesi ad litteram12,Agostinhodefinetr sclassesdevisão:Aprimeira, a visão corporal (visio corporalis),éavisãocomosolhosdo

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corpo e a percepção sensorial; a segunda, a visão espiritual (visio spiri-

tualis),éapercepçãointerior,emfunçãodasimagensarmazenadasnamente ou na memória, do que foi sentido externamente; a terceira, a vi-são intelectual (visio intellectualis),épuramenteo ueamenteconheceev interiormente,semmediaçãoalgumadepercepçãosensoriale ternaesemimagenscorp reas.Pore emplo,emrelaçãocomomandamentoAmar saoteupr imocomatimesmo ,Agostinhocomenta:

Eis ue, uandosel neste nicopreceito:Amarás o teu próximo com a ti mesmo,encontram-setr sclassesdevis es:uma,median-teosolhos,pelos uaissev emasletras umasegunda,pormeiodoesp ritodohomem,pela ualsepensano ueépr imoenoueéausente aterceira,peloolhardamente,pela ualsecon-

templa o próprio amor” ( enesi ad litteram12.7.15).

Hankey enfatiza que, conforme o autor de Confessiones, pela gra-ça da encarnação, a mente destinada a ocupar-se com a externalidade sensível, por que esquecida de si mesma, tem a revelação de sua es-truturatrinit riaepodechegaraumasupremacomunhãocomDeus.

Arazão ulgaasatividadesinferioresdaalma.Arazão,umter-mobastantegeralemAgostinho,éapot ncia uedefineoserhumano,ou seja, não somente separa os animais dos homens, mas que ademais, distingueamentehumanadaintelig nciaangélicaedaintelig nciadivina.Atravésdaci ncia,arazãoconheceocorp reoeproporcionaabaseparadirigi-lo.Comointelig nciaesabedoria,amentechegaatéombitodoserverdadeiro ueésuperioraosdemaisseres.(Confessiones 7.9.10 De trinitate12).

Amentehumanaémut vel,maspodetocaroimut vel ueest sobre ela, pois se encontra em relação com todas as formas de ser nos seus mais diversos graus (Confessiones 7.5.7ss 9.10.24 10.1 .25ss 1 .11.12 De trinitate.5.2. ).O simesmo humanoeseudestinoestãodeterminados pelo nível de realidade onde a mente volta para si mes-ma no amor pelo qual se move (Confessiones.12.9.9ss 1 .9.10).Amentehumanaémut veletemporal,masnasuaestruturaeoperaçãodepen-deessencialmentedaverdadeimut veleeterna.Amenteest criadade tal maneira que, ao recordar-se, entender-se e amar-se a si mesma e ao recordar, entender e amar todos os demais, termina propriamente no ser, conhecer e amar divino (Confessiones 11; De trinitate15).

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B écioeosagostinianosmedievaiscomoEri genaeBoaventu-ra desenvolveram esta doutrina agostiniana para reconciliar o huma-no com o universo ou inclusive para construí-lo e, como diz o próprio Agostinho,paraguiaraalmaatéDeusatravésdosn veisordenadosdarealidade.

Agostinhopode ser considerado ofil sofo fundadorda intro-versão.Comeleaprendemos ueomododecompreenderanaturezadamentehumanaéolhardentrodesimesmoeprestarrigorosaaten-çãoaos fen menosdaconsci ncia introspectiva. enn observa ueosfil sofosdae troversãopartemdocomportamentoobserv veldossereshumanose investigamoscritériospelos uaisatribu mosparaoutros,capacidades,estadoseatividadesmentais.Estessãorepresen-tadosporArist teles, om sdeA uinoe i genstein,en uantoosfil sofosdaintroversão,no ualAgostinhoéumprecursor,podemseridentificadosparadigmaticamenteatravésdeDescarteseHume.

Agostinho, freqüentemente, fala do homem interior e do homem e teriore,semnegaraimport nciadavidasens vel,afirma ueoho-meminterioréanossamelhorparte,istoé,amentecu astarefasin-cluem a memória e a imaginação, bem como o juízo racional e a espe-culaçãointelectual( rin,12,1- ).Pasnauafirma:

dif cilimaginarumin ciomaisimpressivoparaopensamentomedieval sobre a natureza humana do que os escritos de Agos-tinho. Recuse-seairparafora ,aconselhavaele, Retorneparasimesmo.Averdaderesidenointerior (De vera religione 9.72).Observaç es comoessasanunciaramumamudança importan-t ssimanopensamentefilos fico.Emvezdeolharparaomundofísico em busca de verdades fundamentais ou para um abstrato reinodeFormas,Agostinhopropunhaummétododeprimeirapessoa.Olheparaointerior (2008,p.250).

A OS INHO,Santo.Confessiones. Contra academicos, De anima eius et origine,

De civitate dei, De fide et symbolo, De genese ad litteram, De libero arbitrio, De ordi-

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ne, De trinitate, Enarrationes in psalmis, In Joannis evangelium tractatus, Retracta-

tiones. Coleção B.A.C. Madrid:EditorialCat lica,19 0.I SON,E.Introdução ao estudo de Santo Agostinho. rad.CristianeNegreirosAbbudA oub.2.ed.SãoPaulo:Paulus,2007.HAN E , .Mente.In:FI ERA D,A.Diccionario de San Agustín.

Burgos:MonteCarmelo,2001.HARRISON,C.Sentidosespirituales.In:FI ERA D,A.Diccionario de San

Agustín. Burgos:MonteCarmelo,2001.ENN ,A. ilosofia Medieval. rad.EdsonBini.SãoPaulo: o ola,2008.MA HE S, .Santo Agostinho. A vida e as ideias de um filósofo adiante de seu tempo. rad.AlvaroCabral.Riode aneiro:2007.PASNA ,R.Mente,corpoealma.In:Mc RADE,A.(org.). ilosofia Medieval. Aparecida:Ideiase etras,2008.

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Sobre o ser e a essência em Agostinho

Luiz Marcos da Silva Filho*Universidade Federal Lavras

A palavra existentia não pertence ao vocabulário de Agostinho, nem muito provavelmente ao latim clássico em seu sentido ontológi-co1,porémnafilosofiaagostiniana oestadodacriaturadispersanotempo, com a mistura de ser e de nada que a caracteriza, corresponde mais ou menos ao que se nomeou mais tarde de ‘existência’”2. Um dos momentos e emplaresdaobra agostinianapara agraroverbo esse

comsentidode e istir éodaapariçãodochamadocogito agostiniano ( si enim fallor, sum”). Todavia, a evidência de que existo contraditoria-mente, pois existo em erro, em engano (ego fallor), somente é certeza decomposiçãoouparticipaçãofraturada entre essência e existência se nãohouvernoe istenteracionaldin micadeprogressivaa uisiçãodeseroudeess ncia.Afinal,dofatode ueohomemnãoencontraemsimesmoarazãosuficientedesuae ist ncianãosesegue ueeste a Somosgratosaoau lioconcedidopelaFundaçãodeAmparoaPes uisadoEstadodeMi-

nas erais-FAPEMI .1 A l poque d Augustin, le mot ne se rencontre pas encore, du moins em ce sens d fini. ien loin de

connoter le changement, le verbe sisto, qui en est l origine, signifie s arreter. n composition avec ex,

qui marque l’idée de sortir, il forme exsisto, qui signifie sortir de, na tre, et par cons quent appara tre ou se manifester. l ne semble pas qu existentia appartienne à la langue classique; s’il s’y rencontre,

ce doit tre une raret et la date de sa premi re apparition semble assez tardive. I SON, . Notessur l’être et le temps chez saint Augustin ”, p. 210.

2 L’état de la créature dispersée dans le temps, avec le mélange d’être et de néant qui le caractérise, cor-

respond peu pr s ce que l on a nomm plus tard l existence .” d. Notessurl treetletempschez saint Augustin ”, p. 210.

Carvalho, M.; Hofmeister Pich, R.; Oliveira da Silva, M. A.; Oliveira, C. E. Filosofia Medieval. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 50-58, 2015.

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emcondiçãodesnaturalizada.Dessemodo,procuraremosinvestigar,em um primeiro momento, em que sentido a alma humana é imagem esemelhançadeDeuspara,emumsegundomomento,e aminarseafratura dela mesma pode ser compreendida como cisão entre essência e existência.

Emn sencontramos imagemdeDeus, istoé,daSuma rinda-de, ue,emboranãose aigual,maspelocontr rio,muitodistantedela, não coeterna com ela e, para dizê-lo em poucas palavras, não damesmasubst ncia ueEle,é,pornatureza,detodasascriatu-rasamaispr imadeDeus,ainda uepreciseseraperfeiço velporumareformação,paraserpr imatambémporsemelhança3.

Analisemosacitaçãoacimaressaltando inicialmenteadistinçãoagostinianaentre imagem e semelhança .Antesdemaisnada,h noserhumanoumainade uaçãoentrea imagem ea semelhança ueeleguardacomodivino.Afinal,anaturezahumanaaindaécertaimagem da rindade,masfraturadapor uenãomais semelhança ,

de forma que necessita de uma reformatio.Ae pressão reformatione per-

ficiendam ,dedif ciltradução,parecenãosignificarapenas ueaalmahumana deva ser aperfeiçoada por reformação , no sentido de ueapós a reformatio anatureza tenhaalcançadoaperfeição,dei andodeser perfectível, isto é, não se caracterizando como dinâmica permanen-teemdireção perfeição.Aalmanecessitadeumareformatio para que volteasernovamenteperfect vel.Assim,acon ugaçãoentre imagem e semelhança d aentender ueasubst nciadohomem,emestadodeintegridade,éser imagem infinitamentemais semelhante subs-tância divina, de tal modo que a natureza humana deva ser compreen-dida, não a partir de um estatismo, mas segundo um dinamismo em direçãoaoser,dinamismoaserrecobradopelareformatio4.

3 t nos quidem in nobis, tametsi non aequalem, immo valde longeque distantem, neque coaeternam et, quo brevius totum dicitur, non eiusdem substantiae, cuius Deus est, tamen qua Deo nihil sit in rebus

ab eo factis natura propinquius, imaginem Dei, hoc est illius summae Trinitatis, agnoscimus, adhuc

reformatione perficiendam, ut sit etiam similitudine proxima. A S IN S. De civitate dei,XI,vi. raduçãodeOscarPaes emecommodificaçãonossa.

4 Si ergo Deo quanto similior, tanto fit quisque propinquior: nulla est ab illo alia longinquitas quam eius dissimilitudo. ncorporali vero illi aeterno et incommutabili tanto est anima hominis dissimilior, quanto rerum temporalium mutabiliumque cupidior.” bid.,IX, vii.

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Assim, o dinamismo que a imagem do divino no homem deve guardarsomentesed emcon unçãocomasemelhança ueatornar infinitamentemaissemelhante. Infinitamente por ue,seDeuséin-finitudedeser5,entãoadin micadavidahumanaétend nciaaDeus,tend ncia perfeição,massemnuncaatingi-lacompletamente,poisdada a incompletude da criatura, que nem absolutamente é, nem to-talmente não é6,oprocessoemdireção perfeiçãoéinfinitoporneces-sidade:pormaispr imaesemelhante ueaimagemhumanase adeDeus,elasempreestar infinitamentedistante,simplesmentepor uedoinfinitosempreseest infinitamentedistante,o uenãosignificaimpossibilidadedeapro imaçãodele,namedidaem ueh infinitaeprogressivaa uisiçãodesereperfeição.

Qual é, porém, a imagem da substância divina que o homem possui e que por natureza é dinâmica cada vez mais semelhante ao ori-ginal Dentreasv riasformulaç esagostinianas,umaprivilegiadaéapresentada por meio da tríade constituída por esse, nosse e amare, poissomos, conhecemos que somos e amamos esse ser e esse conhecer”7; trata-sede imagempor ueDeuséunidade formadapor sse, Nosse e Amare,n Elee istentesemgrauabsoluto.Alémdisso, nastr sver-dadesapontadasnãonosperturbafalsaverossimilhançaalguma 8, na medida em ue são tr s certezas, tr s verdades em relação s uaisnenhuma dúvida pode incidir. Com efeito, não são verdades apreendi-das a partir de coisas exteriores, das quais as fantasias provêm e podem ser enganosas, como os acadêmicos pretendiam9. As três certezas são indubit veispor ueéumaevid ncia ueeue isto. Pois,semeenga-no,e isto ( Si enim fallor, sum”10).Sesei uee isto,sei ueconheço,istoé,aomenosaminhae ist nciaconheço,porissonãomeenganoemrelaçãoao fatodee istir.Alémdomais,amoe istireconhecer.antoéverdade, uenãoh ninguém uenão ueirae istir,como

5 ... vidi te infinitum aliter”. d. Confessionum,VII, iv,20.6 t inspexi cetera infra te et vidi nec omnino esse nec omnino non esse: esse quidem, quoniam abs te

sunt, non esse autem, quoniam id quod es non sunt. d enim vere est, quod incommutabiliter manet.” bid.,VII, i,11.

7 Nam et sumus et nos esse novimus et id esse ac nosse diligimus.” d. De civitate dei,XI, vi.8 n his autem tribus, quae dixi, nulla nos falsitas veri similis turbat.” bid., loc. cit.9 ... sine ulla phantasiarum vel phantasmatum imaginatione ludificatoria mihi esse me idque nosse

et amare certissimum est.” bid., loc. cit.10 bid., loc. cit.

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não há ninguém que não queira existir”11.Enissoserevelacertaunida-de na tríade entre esse, nosse e amare,poisumtermoe isteemrelaçãodereciprocidadecomooutro.Paraser,ohomemprecisaconheceredese ar,paraconhecer,deveseredese ar,paradese ar,sereconhecer.

A primeira de todas [as verdades] é a de que eu sou. Com efeito, uma vez que a dúvida e também o erro nos aparecem atestando a existência do pensamento que duvida, podem atestar não menos evidentementeeimediatamenteae ist nciadeDeus.Euduvidoesei ueduvido logo,conheçocertamentepelomenosumaver-dade, uenãopossoduvidarde ueduvido eseestoucertodisto, sei porque existe uma verdade primeira, que ilumina todo homem que veio a este mundo. Se duvido, sou; logo, se é verda-de ueduvido,Deusé–aevid nciadae ist nciadopensamen-toimplicaaevid nciadae ist nciadeDeus.12 Assim,seacertezademinhae ist nciaremete e ist nciade

Deuscomorazãosuficienteda uilo uesoueconheço,épor ueacer-teza ou conhecimento de minha existência não acompanha a certeza daposseefetivademinhaess ncia.Maisprecisamente,adescobertaédeumacertezapositivaedeoutranegativa: untamentecomacertezade que existo, encontro a certeza de sou em processo de ruptura com a minhaess ncia.Não toa,aimagemdasubst nciadivinanohomemprecisa sofrer uma reformatio.Maspor ueapardacertezapositivade que existo encontro a certeza negativa de que sou em processo de rupturacomaminhaess ncia Por ueaevid nciademinhae ist n-cia é evidência de que existo contraditoriamente, isto é, destituído de identidade13.Afinal, a imagemdivinada criatura racional fratura-se11 am porro nemo est qui esse se nolit, quam nemo est qui non esse beatus velit.”. bid., loc. cit.12 I SON, . ntrodu ão ao estudo de santo Agostinho, p. 45.13 Aopasso ueDescartespretender atingir, comaperformanceda cogitatio, a existência

do ego, mas também o conhecimento de sua essência, santo Agostinho experimenta que a performance da cogitatio atinge apenas a certeza da existência, mas testemunha sobretudo a inacessibilidadedaess ncia.Elesubstituiportantoofatoindiscut veldodese oincondicio-nado e universal da vita beata,perfeitamenteconhecido(comoumaess ncia),mascu apos-sessãoefetiva(e ist ncia)restaperfeitamenteproblem tica. Au lieu que Descartes prétendra atteindre, avec la performance de la cogitatio, l’existence de l’ego, mais aussi la connaissance de son essence, saint Augustin expérimente que la performance de la cogitatio n atteint que la certitude de l existence, mais atteste surtout l inaccessibilit de l essence. l lui substitue donc le fait indiscutable du désir inconditionné et universel de la vita beata, parfaitement connu (comme une essence), mais dont la possession e ective (existence) reste parfaitement probl matique. MARION, - .Au lieu de soi: l approche de Saint Augustin.Paris:P F,2008,p.1 8-1 9. rifodoautor.

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quando paralisa a progressiva obtenção de semelhança, a dinâmica em direção ao único Ser capaz de conferir ser e identidade, de modo que a ruptura de uma criatura com o Ser resulta em uma existência, inver-samente à dinâmica por natureza, condenada à permanente perda de identidadeeaquisiçãodecontradiçãoecon ito. EmDeus nossosernão estará sujeito à morte, nosso conhecimento, ao erro, nosso amor, ao desregramento”14.

Empreendida a análise do significado da alma humana comoimagemesemelhançadeDeus,trata-seagoradeexaminardiretamen-te se a distinção entre natureza - na qual há progressiva adequação entre imagem e similitude - e condição desnaturalizada - na qual há progressiva inadequação entre imagem e similitude -, concede discer-nir no ser humano cisão entre essência e existência, do lado da condi-çãodesnaturalizada.Arigor,acomposiçãoentreessênciaeexistência,bemcomoentresubstânciaeacidentes,étraçodafinitudenaturaldetodososseres,comexceçãodeDeus.Comotraçonatural,nãoétraçode miséria e de imperfeição: na exata medida em que são aquilo que devem ser, na exata medida em que cumprem a natureza, a essência, comqueforamcriadas,todasascriaturassãoperfeitas.Issoquerdi-zer que a imperfeição ou a miséria ou o mal apenas têm emergência quando uma criatura, em recusa à própria natureza de criatura, ousa rompercomseuCriadoresupõe-secapazdeordenar-seasimesmaeaomundoconformeasuavontade.Comefeito,éapartirdessafaltaoriginalqueohomemdeixadeserimagemesemelhançadeDeusereclama uma reformatio.

Todavia, se por natureza há identidade no homem a despeito de haver composição, não fratura, entre essência e existência, é preci-so perguntar de que modo há identidade juntamente com composição entreessênciaeexistência Dequemodopodehaveridentidadeemumacriaturacujanaturezaédinâmica Are exãoagostinianasobreodesejo parece ser expediente privilegiado para a explicitação de que o homem, por natureza, guarda identidade, não obstante a composição entreessênciaeexistênciaserconstituintedele.Aliás,ésomentepor-que a composição é constituinte que o homem pode ser compreendido comoumserperfectível.

14 Ibi esse nostrum non habebit mortem, ibi nosse nostrum non habebit errorem, ibi amare nostrum non

ha e it o ensione ”AUGUSTINUS.De civitate dei,XI,xxviii.

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Maisprecisamente,podehaver identidademesmoemcriaturacarentedeplenitudedeseremarcadaporumadin micadea uisiçãode ser porque a natureza do homem, na medida em que é voluntas, guarda identidadeemfunçãodaade uaçãoentrea uilo ue uerea uilo uepode uerer.Issonãoe uivaleadizer,porconse u ncia,que por natureza não suceda ao homem conquista permanente de iden-tidade.Comotend nciaouprocessoemdireçãoaoSer,aprogressivaa uisiçãodeidentidadeoudeseroudesemelhançadaimagemdivi-nanão se realizapelaobtençãode identidade continuamentemaiorentre uererepoderepeladiminuiçãode ual ueralteridadeentreambos,comosesetratassededuas urisdiç esoucon untos uenãoserecobrem. certo uecomcon uistadeserosantosetorna,comoum atleta, capaz de feitos cada vez mais gloriosos15, mas o alargamento do poder ocorre em simultaneidade, em unidade e inseparabilidade comodo uerer, uepoder amoschamarde poder uerer ,progres-sivamente maior voluntas e potestasnãodohomem,masdeDeusnohomem uesedissolveprogressivamenten Ele16.

Em outras palavras, é poss vel defender ue ha a processo deruptura entre essência e existência na criatura racional a partir da pa-ralisaçãodadin micadepermanentecon uistadaess nciapeloe is-tente, ou, inversamente, a partir da progressiva perda de ser por parte dacriatura, uandosetorna,emcondiçãofraturada,imagemcadavezmaisdessemelhanteaooriginal.Nadimensãodo uerer,ari asema-nifestacomoocon itopaulino,relidofilosoficamenteporAgostinho,entre querer e não-querer, entre querer e poder, entre querer o que não se pode/faz e poder/fazer o que não se quer, o contrário da unidade e inseparabilidade entre querer e poder comentada acima. A desobe-diência de si mesmo contra si mesmo, dessa forma, é a consequência contraproducentedodese odohomemdeordenar-seasimesmonocosmo. Ao pretender ordenar-se, o ser humano instaura desordem em si mesmo que é, por assim dizer, abertura para sucessão de desordens decorrentes da primeira, isto é, da falta original, experiência arquetípi-cadetodasasdemaisdahumanidade.Afinal,ainauguraçãodafalta

15 ... athletam Christi, doctum ab illo, unctum de illo ( l , ), crucifixum cum illo ( l , ), glo-

riosum in illo”. bid., XIV,i ,2.Arefer nciaéaPaulo.16 ... cupientem dissolvi et esse cum Christo”. bid., loc. cit.Muitoprovavelmente se tratade

citaçãoindiretadeFl1,2 .

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e igir suareiteraçãoouinsist ncia,porumpontodevista,no mbitoontológico, como ausência que aspirará completude pelos meios ilícitos doprimeiroato, uandoAdãoensoberbeceu-sedesiedese oufruirdesi mesmo para fazer-se princípio e, por outro ponto de vista, no âmbito moral, como vício, como falta que sintomaticamente é e será cometida portodososhomens,detodasasgeraç es(da a uedaserinfinita).

Detodomodo,seh progressivaa uisiçãodeidentidadeporna-turezaeprogressivaa uisiçãodecontradiçãonacondição,seh ,se aemumcaso,se aemoutro,umprocessodeapro imaçãoouafastamen-todoe istenteemrelaçãoasuaess ncia,éprecisoconceber ueaes-s nciadacriaturaracionalfundamenta-seemDeus.Porconse u ncia,a essência perfectível do homem em estado de integridade expressa-se comoprogressivaeinfinitaade uaçãoentreoser(ouae ist ncia)dohomemeasuaess ncia,presenteemDeuscomoIdeiaouForma17.

Issosignifica,portanto, ueaontologiaessencialistadeAgos-tinho,parautilizarovocabul riode ilson,privilegiaemperfeiçãoaess ncia,nãooserouae ist ncia.Anecessidadeeaperfeiçãoemgrausuperlativo se encontram do lado da essência, que, em última análise, é A uele ueé aconting nciaeaperfeiçãoemgraurelativoseencon-tramdoladodae ist nciaoudo uase-ser 18. Algo muito diferente se passa, por exemplo, na ontologia tomasiana, para a qual a existência dosseresé atodeser , atodee istir (actus essendi), e se é ato, atu-alidade,érealizaçãodepot ncia,demodo ueae ist nciaacrescentaperfeição ess ncia.Emtalontologia,aess nciaémenosperfeitadoque a existência porque se encontra do lado da ordem da potência, e o ser, do lado da ordem do ato. Agostinho, porém, não mobiliza n’A cida-

de de Deusosconceitosdeatoepot ncia,emboraanoçãodae ist nciacomorealizaçãodaess nciaofereçae pedienteparaumaleitura ue,primeiravista,guardariacompotencialdeatualizaçãopro imidade

17 deas igitur latine possumus vel formas vel species dicere, ut verbum e verbo transferre videamur. Si autem rationes eas vocemus, ab interpretandi quidem proprietate discedimus; rationes enim Grae-

ce logoi appellantur non ideae: sed tamen quisquis hoc vocabulo uti voluerit, a re ipsa non abhorrebit. Sunt namque ideae principales quaedam formae vel rationes rerum stabiles atque incommutabiles,

quae ipsae formatae non sunt ac per hoc aeternae ac semper eodem modo sese habentes, quae divina

intellegentia continentur. t cum ipsae neque oriantur neque intereant, secundum eas tamen formari dicitur omne quod oriri et interire potest et omne quod oritur et interit. A S IN S.De diversis

quaestionibus octoginta tribus,X VI,2( uaestioDeIdeis).18 quasi-être . I SON, . Notessurl treetletemps ,p.219.

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comaconcepçãoaristotélicademovimento.EmAgostinho,todavia,aessência não pode ser concebida como pura potencialidade, porquanto não se trata de essência ou forma imanente, instanciada na matéria, masdeess nciatranscendente,Ideiapresentena mentedeDeus ,daualohomem,pornatureza,apro imariaprogressivaeinfinitamen-tepormeiodamisteriosanoçãode participação ,mas,emcondiçãodesnaturalizada, distancia-se progressiva e infinitamente em funçãodecertafraturada participação doseremsuaess nciadivina.Eiso initium de um modo de existência humana que a criatura racio-nal criou livremente para si, inaugurando possibilidades de experiên-ciasdegozo i detudoa uilo ueéinterditado fruição(frui)–porguardar a natureza de bens de uso (uti), as criaturas não devem ser dese adasporsimesmasedominadas –e ii emumatemporalidadedispersivatambéminéditanaordemdacriação.Emsuma,adepravatio

proporciona o sentimento mentiroso20deserDeusaoserhumanoso-berbopormeiodevariaç esemodalidadesdev cios(istoé,do mes-mo ueoes uecimentotorna diferente )comoacontecimentos.

A S IN S.Confessionum libri tredecim.Patrologia atina omus 2. ur-nhout: Brepols, 1992.____________. De civitate Dei( ibriI-X).CorpusChristianorumSeries atinaX VII. urnhout:Brepols,1955.

19 Proinde causa beatitudinis angelorum bonorum ea verissima reperitur, quod ei adhaerent qui sum-

me est. Cum vero causa miseriae malorum angelorum quaeritur, ea merito occurrit, quod ab illo, qui summe est, aversi ad se ipsos conversi sunt, qui non summe sunt; et hoc vitium quid aliud quam

superbia nuncupetur? Initium quippe omnis peccati superbia. Noluerunt ergo ad illum custodire fortitudinem suam, et qui magis essent, si ei qui summe est adhaererent, se illi praeferendo id quod

minus est praetulerunt. ic primus defectus et prima inopia primumque vitium eius naturae, quae ita creata est, ut nec summe esset, et tamen ad beatitudinem habendam eo, qui summe est, frui posset,

a quo aversa non quidem nulla, sed tamen minus esset atque ob hoc misera fieret. A S IN S.De civitate dei,XII,vi.

20 Non enim habendo carnem, quam non habet diabolus, sed vivendo secundum se ipsum, hoc est

secundum hominem, factus est homo similis diabolo; quia et ille secundum se ipsum vivere voluit,

quando in veritate non stetit, ut non de Dei, sed de suo mendacium loqueretur, qui non solum men-

dax, verum etiam mendacii pater est. rimus est quippe mentitus, et a quo peccatum, ab illo coepit esse mendacium. A S IN S.De civitate dei,XIV,iii,2.

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____________. De civitate Dei( ibriXI-XXII).CorpusChristianorumSeries a-tinaX VIII. urnhout:Brepols,1955.____________. A cidade de Deus. (contra os pagãos).2volumes. rad. eme,O.P.Petr polis,R :Vozes,2002.I SON,E. ntrodu ão ao estudo de santo Agostinho. rad.A oub,C.N.A.SãoPaulo:DiscursoEditorial Paulus,200 .

. Notessurl treetletempschezsaintAugustin ,Recherches Au-

gustinienne , p.205-22 .EtudesAugustiniennes,Paris,19 2.MARION, - .Au lieu de soi: l approche de Saint Augustin.Paris:P F,2008.

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Carvalho, M.; Hofmeister Pich, R.; Oliveira da Silva, M. A.; Oliveira, C. E. Filosofia Medieval. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 59-84, 2015.

e dade e alsidade das i es a a i de Solilóquios de os i o

a iel F isa aUSP

Tendo o último diálogo de Cassicíaco reconhecido a cisão en-tre conhecimento do mundo e conhecimento da verdade1 – Solilóquios pressupõem o colhimento dos resultados do Contra os Acadêmicos –, pretendemos demonstrar que é possível encontrar nesse diálogo da uventudeindicativosde ueAgostinho,no uadrodopreceitodélficode conhecimento de si2, além da descoberta da interioridade espiri-

1 cf. referência estoica acerca da possibilidade de conhecimento seguro por representação com-

preensiva (phantasia kataleptiké). Agostinho refere em Retratações que a oposição contra a nova academia não deveria ser absoluta e considera igualmente válido que o título do diálogo fosse De Academica (Sobre os acadêmicos). O desenvolvimento da tese passará, então, por levantar os argumentos céticos contra a noção infabilidade (inconcunssum) da representação sensível (i.e.: cf.div. u.IX),afimde abrircaminho paraarecepçãodo espiritualismo neoplat nico.VerMarsola, M. Plotino e o Ceticismo. In: Dois Pontos, Curitiba: 2007 ,vol.4,n.2, p.247-273

Sobre o caráter mediado do conhecimento sensível, cuja imagem do objeto é representa-ção acataléptica, consultePEPIN, . ne curieusedéclaration idéalistedu De enesi adi eram desaintAugustin,etsesoriginesplotiniennes:remar uessurunecitationpauli-niennedes Confessions desaintAugustin.Paris:In:Revue de d’histoire et de philosophie reli-

gieuses,1954: Ilresortdecete amen ue,pourPlotincommepourAugustin,laconnaissancesensibleestuneconnaissancemediate p. 8 . ambémE.Bermon,Le cogito.,cap.IV.

2 sol.I,2,7:RA IO. uidergoscireuis A S IN S.Haecipsaomnia uaeoraui.RA IO.Breuitereacollige.A S IN S.Deumetanimamscirecupio.RA IO.Nihilneplus A -

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tual (cogito) comoacesso verdade (definidacomo identidade,quod

ista est, cf. Solilóquios II,7), também se esforça em resgatar o papel da criatura na relação entre verdade transcendente e o sensível imanente (o que aparece, videtur3).Comefeito, adescobertada interioridadeespiritual ,porviadoinstrumentalmetaf siconeoplat nico,parecedi-rigir a estratégia de apresentação do mundo sensível à alma em modo imagético (phantasi ), como sensível interiorizado, possibilitando o en-quadramento da falso (falsum) como polo integrante da atividade de acesso à verdade (cf. Solilóquios II,6,10 et seq.). Destarte, pretendemos e plorarosSolilóquios como um diálogo no qual, ao falar consigo mes-moeeminterlocuçãocomapr priaRazão,Agostinhoe perimentar o caráter aporético do procedimento cognitivo de autoconhecimento e descobrirá os limites da razão e do intelecto quanto ao alcance da verdade4. Ao retomar os argumentos céticos contra o dogmatismo cor-poral,ofil sofoavançaemgradual tomadadeconsci nciadanatu-rezaintelig veltantodaalma uantodaVerdade(Deus).Esseduploconhecimento se dá pela investigação do procedimento do intelecto. Os sentidos, no entanto, dão ocasião e oportunidade para que a alma intelectiva dê assentimentos sobre as representações corporais (phan-

tasia), conduzindo a alma à introspecção de si por via da estrutura do

S IN S.Nihilomnino.R:Portanto,o uetu ueressaber A: udoissomesmo ueorei.R: Resume brevemente. A: Desejo conhecer a alma e Deus. R: Nada mais? A: Absolutamente nada.A RE I SA S IN S.SO I O IA.Bibliothe ueAugustinienne,OeuvresdeSaintAugustin.V.Dialoguesphilosophi ues.II.Dieuetl ame. e tede ditionBénédic-tine.Ed.dePierrede abriolle,Desclée,DeBrou eretCie.19 9.Todas as traduções do latim que não tenham referência ao tradutor são de minha responsabilidade.

3 5. 8.R. - Defini ergo verum. A. erum est quod ita se habet ut cognitori videtur, si velit possitque cognoscere.– R: ogo,defineoverdadeiro A.-Verdadeiroéa uilo ueétalcomoapareceaosu eitoconhecente,seelepodee uerconhecer .Algumaslinhasdepois,Agostinhodefineaverdade de forma categórica: A. rgo illud dico et sic definio, nec vereor ne definitio mea ob hoc improbetur, quod nimis brevis est: nam verum mihi videtur esse id quod est.Definição,entretatno,que não é conclusiva, uma vez que, conforme anota a Razão: Nihil ergo erit falsum, quia quid-

quid est, verum est. Assim, de II,6,9 à II,12,22, o diálogo é estruturado de modo a demonstrar o caráter ambivalente do falso, conforme pretendemos demonstrar adiante.

4 cf. sol II, 1, 1. A . estabit quaerere de intelligendo ( R: restará investigar pelo intelecto). Noentanto,AgostinhoreconhecenofinaldolivroII ueatarefadeinvestigarpelointelectoainda não se realizará nos Solilóquios. (sol. II, 20, 36. ) o que ressalta o caráter aporético do diálogo.

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mundo corporal que, uma vez interiorizado na alma, pode ou ser fator de instrução ou de engano. Tal ambivalência será problematizada na base conceitual de semelhança e dissemelhança, tomados em regimedeinterioridade,demodo ueaalmapassar pelae peri nciadecon-versão Verdadeporreconhecimentodesuapr prialimitude5.

P

Nossa hipótese inicial de trabalho considera que Agostinho te-nhadedicadoespaçosignificativoemobrasiniciaisafimdeelaboraruma teoria do falso (falsum) no quadro geral da preocupação em ade-uararecepçãodo espiritualismo 6neoplat nico(ontologia) e pe-

riência do verdadeiro/falso contida na compreensão (comprenhensum) da criatura. Nesse sentido, autoriza-se analisar a questão da verdade e falsidade dos corpos – suas imagens - a partir da reelaboração agosti-nianadanoçãodesemelhançaedissemelhança,conformedefiniçãodofalso em SolilóquiosII,VI,10:

R: Primeiramente, o que é o falso? Eis uma questão que venti-lamos insistentemente ( A . rius quid sit falsum, etiam atque etiam uentilemus).A:Euficariaadmiradoseo falso fosseoutracoisa que isto que não é tal como aparece (quod non ita est ut videtur). R: Atenção. Interroguemos primeiramente os próprios sentidos. Pois, certamente, isto que os olhos veem não é dito falso a não ser que tenha alguma semelhança com o verdadeiro7.

5 Essa é tese forte de alguns estudos recentes dos Soliloquia.VerB.Stoc .Augustine the reader: meditation, self no ledge, and the ethics of interpretation.1998.Stoc pretendedemonstrar ueodi logolançaasbasesdaidentificaçãodesinoprocessodenarrativahist ricaediscursointerior (inner dialogue), tendo como ponto de partida a análise de si, em primeira pessoa (cogito). ( he boo s organization is intended to re ect this progressively developing concern ith soliloquium, narratio historica, and personal identity. p. 2). Não estamos totalmente convencidos que os Solilóquios lançam as bases conceituais da narrativa pessoal como identidade de si. A princípio, parece-nos que o estudioso força os resultados do diálogo, mas é objetivo de nossapes uisaesclarecera tesedeStoc . necess rionotar também ueoutrosestudoscaminhamnadireçãodee plorarodi logocomoumescritodereconhecimentodadist nciadointelectoeverdade/Deus.Cf. efort(2011), . e el(2011)eCon beare(200 ),I. uiles(1954). Reconhecimento que também nós tomamos como ponto de partida da pesquisa.

6 VerMadec, .Conversion, eSpiritualismeAugustinen.In: etites tudes Augustiniennes. 19947 sol.II, ,10:RA IO.Prius uidsitfalsum,etiamat ueetiamuentilemus.A S IN S.

Miror si uid uamaliuderit, uam uodnon itaestutuidetur.RA IO.A endepotius,et ipsos sensus prius interrogemus. Nam certequod oculi uident, non dicitur falsum, nisi habeat aliquam similitudinem ueri.

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Ofalsoéintroduzidonomovimentodote tocomoa uilo ueétalcomoaparece....ese asemelhanteaoverdadeiro 8. Inicia-se,

assim, longo desenvolvimento das relações possíveis entre verdade e falsidade. Antes de avançarmos para a densa análise que Agostinho faz do falso, feita a partir da interrogação sobre as propriedades dos sentidos (sensus interroguemus)-temacaronahist riadafilosofiaan-tiga/helênica, ocupando lugar de destaque nas disputas em torno da verdade entre estoicos e céticos da nova academia -, é preciso dar a devidaatençãoauma importantemarcação tem tica: etiamat ueetiamventilemus .

admir vel ue a uestãodo falso insista em retornar à pau-ta da discussão, justamente, porque o passo conceitual que a antece-de fora ponto substancial do pensamento do hiponense: a descoberta da verdade indubitável e imediata que o conhecimento de si fornece, tendo como alcance a noção de incorporeidade da alma – comumente conhecido como cogito agostiniano. Ora, o problema que se coloca é de saber por qual razão Agostinho insiste na conceituação da falso quan-do, aparentemente em capítulos anteriores, a verdade fora resolvida no campo do intelecto (intelligentia).Afimesclarecertaldilema,nossaleitura parte da hipótese de que Agostinho esforça-se dialogicamente einteriormente( Agostinho com Agostinho”9) para introduzir dois cam-pos de compreensão, inteligíveis e sensíveis ou alma e corpo, que ao finaldevemsecompletarnoalcancedaverdade.

Desde o início, os Solilóquios, então, parecem manejar um conjun-to de teses que lidam com as mesmas preocupações céticas que domi-navam o diálogo anterior, os Contra Acadêmicos, mas que são acresci-das, defendemos, de interesse ontológico quanto à natureza do corpo e da alma em relação ao procedimento do conhecimento da verdade – lembre-se de que a busca que anima o diálogo é a imortalidade da alma. A alma que busca o conhecimento da verdade pelo conhecimen-to de si e de Deus considera a si mesma e terá como interlocutor não

8 idem.9 cf.A S IN S,EpistolaIII.: uippediumecuminlectosituscogitavi,at uehaslo ue-

las habui, Augustinus ipse cum Augustino.

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maisumadoutrinae terna(i.e.dogmatismoestoicoouceticismoaca-dêmico), mas a si mesma, em análise intelectual/interior. Nesse sen-tido,odi logoéae posiçãodomovimentodapr priarazão.Mais,éae posiçãodoe erc cioracionalemanseiodabuscapelaverdade-umae peri nciaintelectualerr tica,aporéticaeprof cua10,e ibidanos vaivéns argumentativos que “Agostinho tem com Agostinho”11.

I. C

Na CartaIII,escritaaNebr dioem 87desdeCassic aco,Agos-tinho medita sobre a admiração que o amigo lhe concedia a partir dos primeiros te tosproduzidosemretiro ( ida eliz, Contra Acad micos, e Sobre a Ordem). Reconhece que o entusiasmo do amigo se enlevaria muito mais se tivesse lido seus Solilóquios e apresenta seu conteúdo:

De que consistimos? De alma e corpo. Qual desses é melhor? Evidentemente a alma. O que há de louvável no corpo? Não vejo outra coisa senão a beleza. O que é a beleza dos corpos? A proporção (congruentia) das partes com cores suaves. Esta for-ma é melhor quando verdadeira ou falsa? Quem dúvida que é melhor quando é verdadeira? onde est o verdadeiro vidente-

mente na alma. Portanto, a alma é mais amada do que o corpo. Mas em que parte da alma esta verdade está? Na mente e na

inteligência. O que está oposto a ela? Os sentidos. Logo, deve--se resistir aos sentidos com toda força da alma? Claro. E se o sensível causa muito prazer? Faça que não haja deleite. Como fazer isso? Pelo hábito de fazer sem tais deleites e pelo desejo de coisas melhores. E se a alma morre? A verdade, então, morre ou a inteligência não é a verdade ou a inteligência não está na alma ou algo pode morrer em que outro que é imortal. Ora, nada disso é possível. Nossos Solilóquios já contém isso e está satisfa-toriamenteprovado masdevidoanãosei ueh bitomalnosamedrontamosetitubeamos.Enfim,mesmoseaalmamorrer,

10 cf.Dupu - rudelle,p.1199 Vertambém e el(2011).11 cf. CartaIII.Vernotaacima.

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o que não vejo de modo algum acontecer, todavia a vida feliz não consiste no deleite dos sensíveis – isto foi satisfatoriamente e ploradona uele cio.12

Nessebreveresumodaobra,Agostinhoe p esinteticamenteasprincipais linhas de força do diálogo. O homem, composto de alma e corpo, está situado em região intermediária entre dois polos na cadeia hierárquica de seres (animus igitur magis amandus quam corpus). Por um lado, o corpo percebe a beleza dos corpos pela proporção (congruentia) daspartes,pelasuavidadedascores poroutro,ograudeverdadedes-sa beleza, contudo, não se encontra no corpo belo, mas na alma, preci-samente, na mente ou intelecto (mens atque intelligentia) ueidentificaabeleza verdadeira. O intelecto é habitação da verdade e o lado oposto (versatur) dos sentidos13 e, por essa razão, a vida feliz não pode consis-tir no deleite dos sensíveis (laetitia sensibilium) que não reconhece sua fonte, mas é resultado do conhecimento que emerge da relação interior entre imortalidade e verdade, em conjunto com os devidos louvores (laudes) às belezas corporais. Assim sendo, o lugar da verdade é dentro de si, dentro alma. O resultado é a interiorização da verdade e conse-quente interiorização do falso, que marcam o projeto dos Solilóquios do começoaofim.

12 A S IN S. pistola III. nde constamus - e animoet corpore. uidhorummelius

uidelicet animus. quid laudatur in corpore? nihil aliud uideo quam pulchritudinem. quid est corporis pulchritudo? congruentia partium cum quadam coloris suauitate. haec forma ubi uera melior, an ubi falsa? quis dubitet, ubi uera est, esse meliorem? ubi ergo uera est? in animo scilicet. animus igitur magis amandus quam corpus. sed in qua parte animi est ista ueritas? in mente atque intellegentia. quid huic ad- lo uersatur? sensus. resistendum ergo sensibustotisanimiuiribusli uet. uidsisensibilianimiumdelectant fiat,utnondelectent.undefit consuetudinehiscarendiappetendi- uemeliora. uidsimorituranimus ergomoritur ueritas aut non est intellegentia ueritas aut intellegentia non est in is animo aut po-testmoriali uid,in uoali uidinmortaleest.nihilautemhorumfieriposseSolilo uianos-traiamcontinentsatis uepersuasumest sednescio uaconsuetudinemalorumterritamurat uetitubamus.postremoetiamsimorituranimus, uodnulomodofieriposseuideo,nonessetamenbeatamuitaminaolaetitiasensibiliumhocotiosatise ploratumesthisrebusfortasse atque talibus. CESL. Corpus scriptorum ecclesiasticorum Latinorum ( ). ol

13 cf.Sol.I, ,8. 14 Ver rudellep.1199.citasol.I,1 -21e2 .Métododeeducação(menoso ue alcançou,

maiso ueresta) fazaan lisedaspai escomoe peri nciadaerr nciaintelectual-reco-nhecimentodadist nciaentreaverdadeeohomem.

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Conhecimento de si é posto desde as primeiras linhas do diálogo:

Durante longo tempo, enquanto eu dava voltas com meus diver-sospensamentos portantosdiaseuprocuravacomtodoempe-nhoamimmesmo buscavameubemeomalaevitar, uandodes bitoalguémmefala eraeumesmo Eraumavozforademimou dentro de mim? Eu não sei e é isso mesmo que eu, com grande esforço, busco conhecer15.

Agostinho procurava a simesmo (quarenti memetipsum) . E,enquanto seus pensamentos davam voltas, a voz da Razão lhe falava. Opontocruciala uiéesclarecerae ig ncia uepossibilitaencontrara si mesmo ou conhecer a si mesmo. Em outras palavras, é necessário identificardeondeaRazãofala:deforaoudedentro(intrinsecus sive extrinsecus) Aoresponder nãosei (nescio), Agostinho dá o tom da investigação que norteará todo o diálogo: a busca pelo conhecimento de si pelo e erc cio da razão (di logo com a Razão), investigandopossibilidades e limites dessa mesma razão enquanto maneja os da-dosfornecidos almaemdoisplanos:e terioridadeeinterioridade.

Adiante, no início do livro II, o conhecimento de si é imediata-mente associado ao conhecimento de Deus, conforme oração do pró-logo: A S N S. Deus semper idem, nouerim me, nouerim te. ratum est. (A: Deus, sempre o mesmo, que eu me conheça, que eu te conheça. Assim eu rogo). Solilóquios II, 1, 1.

Ora, tal associação, o conhecimento da alma e deDeus, e igeum procedimento. Agostinho dá um passo importante ao se perguntar sobre a possibilidade conhecer a alma de seu amigo, Alípio16. Rejeita ueoconhecimentosens velse asuficientementeseguropara uesealcanceosintelig veiscomo,pore emplo,aalmadeoutrapessoaama-da. Aponta que a fase dos astros celestes tem mais regularidade do que acomida uecomemosonteme ho enãoe iste.E,aindaassim,nadagarante ue,por e emplo, oSol,por impedimentodealguma força

15 sol. I,1,1Voluentimihimultaacuariamecumdiu,acpermultosdiessedulo uaerentimemetipsumacbonummeum, uiduemalieuitandumesset aitmihisubito,siueegoipse,siue alius uis e trinsecus, siue intrinsecus,nescio:namhoc ipsumest uodmagnoperescire molior

16 cf.sol.I, ,8

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maior, não nasça amanhã. Conclui-se que, mesmo no mais alto grau deconst nciasens vel,nãoh segurançadoconhecimentoverdadeirona mutabilidade. De fato, os Solilóquios estão repletos de argumentos que vão derruindo a noção de verdade como aparecimento (videtur) da coisa sensível. Recusa-se, assim, o testemunho dos sentidos como critério de conhecimento imutável: A . espuis igitur in hac cause omne testimonium sensuum A S N S. rorsus respuo. (Portanto, tu recusas neste caso todo testemunho dos sentidos? A: Recuso abso-lutamente) SolilóquiosI, ,8.Arecusadossentidoscomoverdade,noentanto, é aqui um movimento temporário. Como demonstraremos, todotratamentoda phantasia comoverossimilhança verdadefar ustamenteoresgatedamediaçãodo testemunhodossentidos (tes-timonium sensuum) como caminho ao conhecimento. O que se anuncia é, pois, a relação dos sentidos dos copos e do intelecto na compreensão do inteligível, o que constituirá verdadeiro conhecimento.

necess rio,então,conheceroolhodaalma–osimesmo-,bemcomo a luz que mostra o objeto e revela a si mesma no ato da visão17. Nesse quadro, as primeiras linhas do segundo livro dos Solilóquios revelamaestratégiadefi açãodoprimeiroconhecimentodointelec-to, dado imediatamente enquanto pensamento que pensa a si mesmo (cogito18).

Etienne ilson,em er ledel penseémédiévaledanslafor-mationdus st mecartésien19, cap. ‘Le cogito e la tradition auguti-nienne ,éespecialmenteesclarecedoraocompararDescarteseAgos-tinho pelas passagens da IIe. Méditation, t. IX com o De Trinitate, X. Afimdeafastar ual uercasualidadedocogitonopensamentode17 cf. sol. I, 6, 1218 A e pressão cogito guarda tanto apro imaç es uanto profundas dist ncias do cogito

cartesiano.Sobreotema,consulte-seBermon,Emmanuel.Le Cogito Dans La ens e De Saint Augustin.Paris:Vrin,2001. ayne Han e ,Bet eenandBe ondAugustineandDescartes:More than a Source of the Self; Augustinian Studies 2:I2001 Moac rNovaes,Eternidade,in-terioridade sem sujeito. Analíticavol9(1).2005 Marion, ean- uc.Au Lieu De Soi: L approche De Saint Augustin,2008.pp.89-148,225-229 Blondel,Maurice. e uinzi mecentenairedelamort de saint Augustin. evue de m taphysique et de morale ano:1930 vol.:37.

19 df. Paris 1930

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Agostinho, ilsonelenca retomadasdoargumentonopensamentodobispo,afimderecusaraopiniãodePascalde ueoargumentonão tivesse peso conceitual importante.H , de fato, diversas refe-r nciasaocogitonocorpusagostiniano:DeBeataVita2.7,Soliloquia II.1.1, De Libero Arbitrio I.7.16, II.3.7, De era Religione 39.73, De Dua-

bus Animabus 10.13, Confessiones XIII.11.12, De Civitate Dei XI.26, and De TrinitateX.10.14eXV.12.21.Oestudiosodemonstraaestratégiacomum da imediação do puro pensamento que pensa a si em contras-te com a necessária mediação discursiva do pensamento quanto aos corpos. Assim, não compartilha da opinião que Agostinho estivesse se aventurando (refer nciaaPascal) uandofezusodoargumentodocogito: En sestamosigualmentelongedeter uetratara ues-tão de uma palavra dita por Agostinho como aventura, pois, assim como em Descartes, todo seu argumento se apoia na oposição entre a consciência imediata que o pensamento tem de ser pensamento e a ausência de toda consciência imediata que ela tem de ser um corpo ounadadisso uepertenceaoscorpos 20.

Para esse projeto, cabe analisar brevemente os Solilóquios II, 1, 1.

R: Tu queres conhecer a ti, sabes que tu és? A: Sei R: De onde sabes? A: Não sei R: Sentes a ti como um ser simples ou múlti-plo? A: Não sei R: Sabes que tu moves? A: Não sei R: Sabes que pensas? (cogitare te scis) A: Sei. R: Portanto, é verdadeiro que tu pensas A: verdadeiro.R:Sabes ueésimortal A:NãoseiR:Dentre todas as coisas que disseste ignorar, qual preferes saber primeiro? A: Se sou imortal21.

20 Cf.E. ilson,operacit. Etnoussommeségalementloind avoira aire un motditparsaintAugustin l aventure,puis ue,commeceluideDescartes,toutsonraisonnements ap-puiesurl oppositionentrelaconscienceimmédiate uelapenséead trepenséeetl absencede touteconscience immédiate u elleaitd treuncorpsouriendece uiappartientaucorps p.198

21 R. - Tu qui vis te nosse, scis esse te? A. - Scio. R. - Unde scis? A. - Nescio. R. - Simplicem te sentis, anne multiplicem? A. - Nescio.

R. - Moveri te scis? A. - Nescio. R. - Cogitare te scis? A. - Scio. R. - Ergo verum est cogitare te. A.-Verum.R.-Immortalemteessescis

A.-Nescio.R.-Horumomnium uaetenesciredi isti, uidscirepriusmavis A.- trumimmortalis sim.

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Desse trecho inicial, é importante ressaltar a relação entre conhe-cimento verdadeiro e ser. O ato de conhecimento de si é imediato e a priori, ou seja, o pensamento ao se pensar não faz referência aos corpos, nem recorre as etapas lógicas para alcançar a verdade indubitável de se saber ser e pensante. Resta, no entanto, compreender se tal pensa-mento é imortal. Evidentemente, a mutabilidade e natureza do pensa-mento estão no horizonte do argumento, pois, caso se demonstre que o pensamento-que-se-pensa-e-sabe-que-é é imortal, saberá também que sua própria natureza não é corporal, visto que todo corpo é evidentemente mutável e mortal. Ora, se há amor pela vida, há percepção que se vive, mas de nada vale a vida sem conhecimento, de modo que o amor pela vidaéresultadodoamorpeloconhecimento: R:Massechegarmosà conclusão de que a própria vida é tal que nela não possas conhecer nada mais além do que já sabes, reterás as lágrimas? A: Ao contrário, sentirei tanto ao ponto de que a vida já nada valerá. R: Então não gos-tas de viver por viver, em si, mas para saber (scire). A: Concordo com tuaconclusão 22 Solilóquios II, 1, 1. Não se trata, contudo, de entronizar osaber,masdeencadearaconhecidatr adeplat nica,ser-viver-saber,em relação indissociável.

Atr ade temantecedentesbemdocumentados.Valer apenaalgum esclarecimento da questão. Ser-viver-inteligir/saber são ele-mentos que constituem a base do conhecimento imediato de si e faz partedeumatradiçãofilos fica ueteriachegadoaAgostinhopor

22 sol. II, 1, 1. R. - Quid, si ipsa vita talis esse inveniatur, ut in ea tibi nihil amplius quam nosti, nosseliceat temperabisalacr mis A.-Imotantum eboutvitanullasit.R.-Nonigiturvivere propter ipsum vivere amas, sed propter scire. A. - Cedo conclusioni.`

Nota de tradução. Em outras passagens, Agostinho utiliza os verbos noscere, scire e intelli-gere comsignificadosdistintos uanto anaturezaontol gicadoob etodo conhecimento.Pore emplo,em rin.XII,17 Agora,sobrea uelapartedarazãoconcernente ci ncia (scientia), isto é, ao conhecimento das coisas temporais e mutáveis, necessárias para o desem-penho das atividades dessa vida... Sem dúvida, o sentido do corpo sente as coisas corporais, en uanto ue a razão concernente sabedoria intelige (intelligere) verdadeiramente as coisasespirituaiseimut veis .Assim,aprimeiraviadeinternalizaçãorefere-se percepçãodossens veispelotermo terci ncia (scire), enquanto que a segunda via faz a compreensão dointelig velpara conhecer (nosse) verdades imutáveis e espirituais. Na passagem dos sol. II, 1, 1, que analisamos, os verbos referidos não parecem fazer a distinção quanto à natureza dos objetos dados ao conhecer, saber ou ter ciência.

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Plotino.Hadotindica uePlotino,porsuavez,teriarecebidoatr a-de de duas tradições. A primeira remontaria ao Sofista, 248e,em uePlatão faz uso da tríade para combater as teorias imobilistas do puro ser, seremsi (einai): sendoconhecidopeloconhecimento,name-dida em que for conhecido se movimentará em virtude de sua pró-pria passividade, o que não poderia dar-se, conforme dissemos, com o ueest emrepouso 23.Afimdedefenderateseda vitalidadedosercontraoidealismo 24, Platão reconhece que, para ser conhecido, o ser deve partir do movimento, associando assim conhecimento e ser em movimento, vivo portanto. O embate de Plotino é de outra ordem. contraomaterialismoestoico uePlotino relaciona ser evida, conforme a formulação na n adasV,4 7 ,2: avidanãoéumcad ver,por ueh vidaeintelig ncia .Emoutrapassagem,Plotinoassocia ser, vida e intelecção com o caráter substancial incorporal do enteperfeito: mavez ueoenteéperfeitamente,nãoprecisadenada para conservar-se e para ser, mas ele é a causa de que as demais coisas, as que parecem ser, pareçam ser. Com efeito, se tais coisas são ditas corretamente, é necessário que o ente seja em vida e em vida perfeita 25. A perfectibilidade do ente incorporal garante sua impas-sibilidade diante dos corpos. O corpo, então, não afeta o ente incor-poral, mas é ele mesmo efeito do ente de vida perfeita. Stephen Ma-c ennaesclarece,aocomentarotratado2 ,Sobre a impassibilidade dos

incorporais, que é importante para Plotino, no interior da discussão da apatheia est ica, ueaalmadevaservistacomototalmentelivredeserafetadaoumodificadapelasin u nciascorporais 26. Com efeito, a tríade do Sofistaservea uiparaconcluir ue osernãoénemcor-po,nemsubstratodecorpo 27.

Aristóteles é outra tradição que chegaria a Plotino. Na Metafísi-

ca 1072b 27, a interpretação do Sofista248eéacrescidadavida ue nãoéidentificadaaoser,mas intelecção: avidaseriacomoa uela

23 Platão, Sofista248e. raduçãodeCarlosAlbertoNunes, FB1980.24 Hadot,P.Le Sources de lotin,1957,p.108.25 Plotino. n adasIII, 2 ,10- 2.26 thatthesoulshouldbeseenasentirel freefrombeinga ectedormodifiedb e ternal

(bodil )in uences. .StephenMac enna, he nneads. d ed. London: Faber and Faber, 1962, localização virtual 5777

27 Plotino. n adasIII, 2 , 2.

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uedorme(senãopensasse) 28.ConcluiHadotacercadasduastradi-ç esdatr ade: uandoPlotinoseinspiravanoSofista,avidaapareciacomooatodoser.Agora,sobain u nciadeArist teles,elaidentifi-ca-se intelecção,ela torna-seoatoda intelig ncia 29. Com efeito, a visadaplotinianadavidasofreduplain u ncia uecompor atr a-de: seoseréumavida,como uerPlatão,opensamentoétambémumavida,como uerArist teles 30.Aotentaridentificarnaprimeiraintelecçãotantooserdesubst nciaincorporal uantoopensamentofunde-seemunidade ser-vida-intelecção ue,porsuavez,ser to-mada como elementos constituintes da questão do conhecimento de si, como veremos, tanto em n adasV, 49 comoemte tosdeAgostinhoem ueconheceréconhecerasicomo primeirasubst ncia ueest emato 31 um intelig vel animado , vivo (zoe ), que se conhece na imediata identidade entre o pensamento, o ato do pensamento e alma intelectiva que pensa a si mesma.

De volta aos SolilóquiosII,1,1,aRazãomostrar naspr imaslinhas o resultado da investigação interior no modo triádico de ser--vida-intelecção:

R: Já vejo o tudo o que desejas: uma vez que crês que ninguém se torna infeliz pelo conhecimento, é provável que o intelecto (intelli-gentia) torne alguém feliz. Mas ninguém é feliz a não ser que viva e ninguém vive se não é. Tu queres ser, viver e entender, mas ser para viver e viver para entender. Portanto, sabes que és, sabes que vives, sabes que entendes. (esse uis, uiuere et intelligere sed esse ut uiuas, uiuere ut intelligas. rgo esse te scis, uiuere te scis, intelligere te scis). No entanto, desejas saber se essas coisas subsistirão pra sem-pre ou se nada subsistirá ou se alguma dessas coisas permanecerá e alguma outra perecerá ou se todas essas coisas permanecerão, se elas possam ser diminuídas ou aumentadas ... Resta investigar sobre o intelecto (Restabit quaerere de intelligendo)33

28 Aristótoles, Met fisica1072b27 apudHadot.idem.P.112.29 Hadot,idem,p.11 .30 Hadot,idem,p.11 .31 Plotino, n adasV, 49 ,5, - 7.32 H umadistinçãoentrebio e zoe. Puech, ntretiens ardt ,19 0,p.154.: bios é uma vida da

e ist ncia,hist ricaecontingente,aopasso uezoee prime avidarealizadaeestabilizadaemsuaplenitude,odesabrochardaliberdadeetotalidadedoente. apudBaracat,p.151.

33 sol. II, 1, 1 R. - Iam video totum quod cupis. Nam, quoniam neminem scientia miserum essecredis,e uoprobabileestutintellegentiae ciatbeatum beatusautemnemonisi

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Ao recusar que a infelicidade esteja contida no conhecimento, segue a probabilidade de que conhecimento e felicidade sejam pró-priosda intelligentia .Assim,ser,vidaeintelectoseguemumagra-dação: u ueresser,vivereentender,masserparavivereviverparaentender .Evidentemente,ointelectoéopontofinaldacadeiatri dica.EmII, , ,torna-seclaroaestratégiadeinteriorização: R:Agora, eu gostaria que respondesses para mim se parece para ti que a alma ou o corpo que sente? A: Parece que é alma. O quê? Parece que para ti o intelecto pertence a alma? A: Sim, absolutamente. R: Somente a alma ou a qualquer outra coisa: A: Não vejo que esteja emnenhumaoutracoisasenãonaalma anãoser ueemDeus,emuem,creio,ointelectopossaestar 34. Então, entre os sentidos, que

fazem a ligação aos corpos, e Deus, a alma situa-se medianamente poisdeumladotemapercepçãosensorial deoutroéolugarpr priodointelecto,pelo ueest maispr imodosersumamenteintelig -vel, Deus. O argumento, no entanto, parece ser apenas uma hipótese detrabalho,poisoverbo credo indicaoplanodetrabalhodo ualAgostinho parte para a investigação acerca do intelecto (Restabit qua-

erere de intelligendo). entamente,então,odi logovaiintensificandooproblemaentreverdadecomoe terioridade,aumentandoumfossopara logo a seguir ser preenchido – assim defendemos – com os mo-dos das análises da relação entre falso e percepção sensível.

A alma que sabe que é e vive (tríade: ser-vida-intelecto) em nada dependeu dos sentidos para saber-se viva, pois o pensamento de si é umaatividadee clusivado intelectoouesp rito (mens)35, que se co-nhece intuitivamente e imediatamente. Agora, é possível interpretar

vivens,etnemovivit uinonest:essevis,vivereetintellegere sedesseutvivas,vivereutintellegas. Ergo esse te scis, vivere te scis, intellegere te scis. Sed utrum ista semper futura sint, an nihil horum futurum sit, an maneat aliquid semper, et aliquid intercidat, an minui et augeri haec possint, cum omnia mansura sint, nosse vis.A. - Ita est.R. - Si igitur probave-rimus semper nos esse victuros, sequetur etiam semper futuros.A. - Sequetur.R. - Restabit quaerere de intellegendo.

34 cf. sol. II, 3, 3 RATIO. Nunc respondeas mihi uelim, utrum tibi sentire anima uideatur, an corpus A S IN S.Animauidetur.RA IO. uid intellectusuideturtibiadanimampertinere A S IN S.Prorsusuidetur.RA IO.Adsolamanimam,anadali uidaliud A S IN S.Nihilaliuduideopraeteranimam,nisiDeum,ubiintellectumessecredam

35 cf.anunciava-seemsol.I, ,8

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o cogito como a recusa da representação sensível como verdade. Não por acaso, abundam no diálogo os argumentos céticos tomados do combateciceronianoaodogmatismoestoico.E ercema uiopapelderecusaro abraço daverdadesens vel, conduzindoaverdadeparao campo da interioridade da alma intelectiva. Em vista de construir o caminho de interiorização do verdadeiro e falso, Agostinho fará uso do embate bastante conhecido entre céticos neoacadêmicos e estoicos. Dentre tantas referências contidas no diálogo, referimos a esse, ainda no início do livro II:

R: E te parece que todas as coisas corpóreas, isto é os sensíveis, podem ser compreendidas (compreendi) pelo intelecto? A: Não me parece. R: E te parece que Deus se serve dos sentidos para co-nhecerascoisas A:Nãoousotemerariamenteafirmarisso,maso quanto me é dado supor, de modo algum Deus usa de sentidos. R: Portanto, concluímos que somente a alma pode sentir36.

Otermo comprenhensum éreconhecidamenteprovenientedafilosofiaestoica, uechegaaAgostinho,possivelmente,pormeiodeC cero: enão não atribu a credibilidade a todas as impres-s es,mas apenas uelas ue trou essemconsigo amanifestaçãopr priadosob etospercebidos essaimpressão, ueépercebidaporsi mesma, a chamaremos de compreensível 37. Cite-se outro testemu-nhodeC cero uee p eadefiniçãodotermosegundoafilosofiadoPórtico. Em Sobre os fins dos bens e do mal ,oromanoafirmapelavoz de Catão:

36 sol.II,4, RA IO.Videnturnetibi uae uecorporea,idestsensibilia,intellectupossecom-prehendi A S IN S.Nonuidentur.RA IO. uidillud uideturtibisensibusutiDeusadrescognoscendas A S IN S.Nihilaudeodehacretemerea rmare sed uantumconiicere datur, nullo modo Deus utitur sensibus. RATIO. Ergo concludimus non sentire possenisianimam. rifonosso.

37 Visisnonomnibusadiungebatfidemsedissolum uaepropriam uandamhaberentde-clarationemearumrerum uaeviderentur idautemvisumcumipsumpersecerneretur,comprehensibile. Cícero, Academica I,11, 41. Trad.. Lorenzo Mammì In: handout de aula, 201 , grifonosso. Sobre a teoria o critériodeverdadena representação compreensiva ,consulte-se tambémCarlos év .Cicero academicus recherches sur les Académiques et sur la

philosophie cicéronienne.,,, 1992, pp. 223 et seq.

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As cognições das coisas, por sua vez, que nos seja lícito chamar compreensões, ou percepções ou, se essas palavras não agradam ou são pouco inteligíveis, catalépseis elas,portanto, ulgamos uedevem ser admitidas por si próprias, porque possuem algo em si que abraça, por assim dizer, e guarda consigo a verdade 8.

C ceroescolhe comprehensiones aut percepciones paratraduziro termo grego catalépseis.A ui,tomaremosotermo compreensão ,visto que é o termo utilizado por Agostinho no trecho que analisa-mos. Ademais, o termo compreensão em nosso vernáculo conota o assentimento intelectual, o que não estaria longe da doutrina do pór-tico,visto ue uempercebealgo,assenteimediatamente (Cicero.AcademicaII,XII, 8).Catalepsis é, pois, uma etapa do conhecimento ued otestemunhofieldaverdade ueseimp e forçadarazão.Na cognição estoica, o abraço cataléptico segue a percepção dodado sensorial e é anterior ao teste feito pela razão. Liga-se ao assen-timento, à phantasía, que é a representação.

AfilosofiadoP rticolançaosfundamentosdaepistemologiadeuma doutrina que não permite a separação entre percepção e ver-dade,diantedo ueBrehierafirmar ,acercadoestoicismo, uea verdade e certeza estão na percepção”39. Em uma palavra, o co-

nhecimento parte da empeiria das coisas para abraçar a verdade imediatamente assentida por dignidade própria e sem interme-diação. Por tudo isso, para o estoicismo, a representação apreen-siva é critério de verdade, a chave que permite abrir o verdadeiro e falso. As representações compreensivas trazem em si a marca

8 Rerum autem cognitiones, quas vel comprehensiones vel perceptiones vel, si haec verba autminusplacentautminusintelleguntur, appellemuslicet,easigituripsaspropter se adsciscendas arbitramur, uod habeant uiddam in se uasi comple um etcontinensveritatem).Cicero,Definibusmalorumetbonorum,III trad. IMA,S.C., NI-CAMP, 2009, p. 426.

39 cf.Brehier,Emile. athéoriedelaconnaissanceconsisteprécisément fairerentrerdanslesensible le domaine de la certitude et de la science que Platon en avait soigneusement écarté. avéritéetlacertitudesontdanslesperceptionslespluscommunes,etellesn e igentau-cune ualité uidépassecelles uiappartiennent touthomme,m meau plusignorants lascience,ilestvrai,n appartient u ausage maisellenesortpaspourceladusensible,etellerestea achée cesperceptionscommunesdontellen est uelas stématisation.His-toiredelaphilosophieI. Anti ueetleMo en ge. ibrairieFéli Alcan,Paris:1928,p. 00

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distintiva de sua verdade (cf. Academica I.§41). Portanto, é ‘ver-dadeiraetal uenãopoderiatornar-sefalsa (Se tus.Adversus MathematicosVII,152)40.

Evitando desenvolver a questão em detalhes, tracemos as linhas geraisdoestudodeE.Bermon41, que tenta demonstrar como Agosti-nho teria se apropriadoda representação compreensiva (phantasia

kataleptiké) dando-lhe outro sentido. Para o estudioso, Agostinho apro-pria-se do termo, que no dogmatismo materialista estoico sustentava otestemunhodaverdadeindubit veldoob eto,afimdedaraocogitoestatuto de primeiro conhecimento seguro. Mas será necessário passar pelo argumento cético para deslocar o conceito estoico de phantasia ka-

taleptikeparaaconcepçãode suspensão (epoche) da nova academia, aceitando estrategicamente a acatalepsiauniversal ouse a,aimpossi-bilidadedeassentiraosdadosdossentidoscomocritériosuficientedeverdade42. Agostinho aceita a crítica cética contra o critério de verdade dafilosofiadoP rtico43, mas afasta-se em seguida do ceticismo neoa-cad mico uando,parabuscaraverdade,recuperaa representaçãocompreensiva emoutraregião,asaber,ointelectualouinterior.

Nesse sentido odesafiode elaboraruma investigação sobreo intelecto (Restabit quaerere de intelligendo)44, conforme projeto dos

40 VerBolzaniFilho,R.Acad micosversuspirr nicos.In:sképsis, ano iv, no.7, 2011, p.20.41 Bermon,Emmanuel. eCogitoDans aPenséeDeSaintAugustin.cap.IV.Paris:Vrin,2001.42 Cf.Cicero, uculus,1 ,41ConsultarC. év .Cicero academicus, 1992, p. 234.43 cf. div. qua. 9 Si igitur sunt imagines sensibilium falsae, quae discerni ipsis sensibus ne-

queunt, et nihil percipi potest nisi quod a falso discernitur, non est constitutum iudicium veritatis in sensibus. Quamobrem saluberrime admonemur averti ab hoc mundo, qui pro-fecto corporeus est et sensibilis, et ad Deum, id est, veritatem quae intellectu et interiore mente capitur, quae semper manet et eiusdem modi est, quae non habet imaginem falsi, a qua discerni non possit, tota alacritate converti. (Logo, se são imagens falsas de coisas sen-síveis que não podem ser discernidas pelos próprios sentidos, e se não pode ser percebido nada senão o que é discernido do falso, não há critério de verdade que reside/se encontra/ (constitutum)nascoisassens veis.Porconse u ncia,salutarmente,somose ortadosa uenos afastemos deste mundo, que certamente é corpóreo e sensível, até Deus, isto é, somos e ortadosaconvertermoscomtodoardorparaaverdade ueécapitadapelamenteinteriore pelo intelecto, que sempre permanece e deste mesmo modo é que não possui imagem falsa que não possa ser discernida)

44 sol. II, 1, 1.

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Solilóquios é esclarecida na demonstração da impossibilidade de con-ceber a relação de verdade/verdadeiro a partir crítica acadêmica ao modelo perceptivo.

A investigação acerca do intelecto, contudo, não prescinde da análi-se da representação corporal, ainda que se recuse o caráter cataléptico. Ora, investigar sobre o intelecto é trilhar o caminho da interioridade, paradentrodesimesmo,parapr priaalma: Pensas ueointelectopertence alma Evidente uesim .( A . Quid intellectus uidetur tibi ad animam pertinere A S N S. rorsus uidetur)45. Acontece ueossentidossãotambémpr priosdaalma: Agoragostaria ueme

respondesses se para ti o corpo ou a alma que sente. A: Penso que seja a alma ( A . Nunc respondeas mihi uelim, utrum tibi sentire anima uideatur, an corpus A S N S. Anima uidetur)4647. A alma, portan-to, encontra-se em região intermediária, entre sensíveis e inteligíveis, e a investigação sobre o intelecto torna-se investigação acerca do as-sentimento que o intelecto dá as coisas sensíveis como verdadeiras ou falsas.Oproblemaa seratacadodeve serode identificar seo falsoencontra-se nos corpos, nos sentidos ou no intelecto.

45 sol. II, 3, 3.46 sol. II, 3, 3.47 .SobreotemadaalmaemPlotino,consultar avaud, aurent, adi noiamédiatriceentre

lesensibleetl intelligible .In: tudesplatoniciennesIII: meamphibie- tudessurl meselonPlotin.200 ,pp.29-55 especialmenteocap.V. a uestiondu ugementfau (cf.Enn.I,1(5 ),9).Sobreacomple idadedaantropologiaagostinianaeneoplat nica,consultar .Pepin (Idées grecs... pp. 95-101). O autor busca a fortuna da antropologia do rimeiro Alcibia-des(1 0a-c)dePlatão.Emprimeiromomento,acomple idadedaantropologiaplotiniana-composto de corpo e alma, partes da alma em superior e inferior, verdadeiro homem, ho-memeternoeengendrado,homeml decimaea uidebai o-parecesedistanciardaideiacentral do rimeiro Alcibíades,visto ue ohomemtodointeiroédefinidopelasuaalma (p.79), ounaspr priaspalavrasdePlatão: Conhecer-se a simesmoéofimdohomem,ueconsisteemconhecer-seasimesmoen uantoalma (...) Ohomeméaalma (Alcib.1 0c-1 2b).Pepinconclui ueacomple idadedaantropologiadePlotinonãofazsenãoen-ri uecer infinimentl anthropologiedeI.erAlcibiades,cesdi érentestraitsmontrent uec esd elle ui lpart .p.100.Agostinhoéassimherdeirodatradiçãoplat nica,mantendoasdistinç esinternasdaalmaaceitosnointeriordafilosofia

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ARazão,então,prop eoseguintee erc cio: sealguémtedis-sesse ueestaparedenãoéparedemas rvore,o ueacharias (Sitibiquispiam istum parietem non esse parietem, sed arborem diceret, quid putares)48. Agostinho responde que há duas possibilidades que causa-riatalengano:ouossentidosenganamouchama-sede rvore o ueé na realidade parede. O primeiro caso é mais interessante e a Razão indaga o que aconteceria no caso da mesma coisa aparecer de modo distinto à duas pessoas. Agostinho diz que nesse caso alguém foi enga-nado pelos sentidos e cometeu o erro por imaginação (imaginationem). Essa passada permite recusar que o julgamento do intelecto em relação ao falso/verdadeiro da coisa seja descolado da corpo sensível, fazendo--o depender necessariamente da coisa mesma – embora não sejamos autorizados a dizer que o falso esteja in rebuscomodeclarouO Dal 49.

As linhas seguintes, contudo, parecem levar à conclusão con-trária, pois aqueles que reconhecem (agnoscere)o falso– ue falsose adiferenteda uilo ueaparece (aliud uobis uideri quam est) -, não podem ser enganados (fallimini).Ora,dissoresulta ue ofalsopossasera uilo uesev ,enãoestaremfalsidadea uele uev ( otest igitur et falsum esse quod uidetur, et non falli cui uidetur). Logo, o falso não está nos sentidos, mas no ato do assentimento (do intelecto) de quem sente. (Confitendum est igitur noli eum falli qui falsa uidet, sed eum qui assentitur falsis). Ora, tal conclusão leva à duas camadas do falso: a primeirareferenteaossentidos asegundoaointelecto ued assen-timento. Essa última, no entanto, conduz à interiorização radical do falso,demodo uetodoofalsoestariaconfinado almaintelectivaueassentee,assim, nadaéfalso,senãoh alma a uemacoisaapareça (Si ergo non sint quibus uideatur, nihil est falsum). Evidente-mente, Agostinho deve recusar tal absurdo, pois se seguiria que ou tudo que aparece aos sentidos seja verdadeiro ou que tudo que apa-rece à alma seja uma criação intelectual.

De fato, a questão sobre o falso terá longo desenvolvimento – fato que anima nossa pesquisa. Mas o parágrafo II, 3, já nos permitiu abrir alguns elementos referenciais do diálogo. O trecho encerra-se condu-zindoaumimportanteavanço: umacoisasomosn s,outracoisao

48 sol. II, 3, 3.49 Vernota5

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sentido,pois uandoeleseengana,n spodemosnãonosenganar (Conficitur ut aliud simus nos, aliud sensus siquidem, cum ipse fallitur, pos-

sumus nos non falli).H ,portanto,necessidadedee plorarosalcancesueadefiniçãodefalso/verdadeiroter .Nesseitiner rioinvestigativo

já é possível tomar como ponto de partida que a alma está centralizada nodebate: R:Masnãoh sentidossemaalma,enenhumafalsidadeseossentidos.Ouéaalma ueageouaalmacooperacomafalsidade ( A . At nullus sensus sine anima, nulla falsitas sine sensu. Aut operatur igitur anima, aut cooperatur falsitati). Assim, ainda que não se saiba ao certo o estatuto do falso como referente ao verdadeiro, sabe-se que a investigaçãodeveseaternon cleodoconhecimentore e ivodaalmae, portanto, no intermédio de dois polos, corpos e inteligíveis50.

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randepartedolivroIIdosSolilóquios é dedicado às análises dofalso ueimpressionampelafinezadesuasformulaç es51, como manejo de argumentos céticos da nova academia acrescentados de elementosplat nicos.Algunse emplos:asan lisesdofalsonocon-te todaformulaçãodoparado odocomediante,adistinçãodoesta-tutoepistemol gicodado sficç es,arelaçãocomdisciplinasliberais,especialmenteadialética,desafiamoestudioso compreensãodasan lisesagostinianassobreofalso. ,pois,precisobuscarasraz espelas quais Agostinho faz o falso passar como etapa intermediária do conhecimento da verdade. Apesar do longo espaço que a análise do falsoocupanote to,arespostanãoseencontrar demaneiraclaranodiálogo. De fato, a questão do falso, tomada como problema isolado, se revelará aporética:

ParaAgostinho, falsum refere a uma real qualidade de certas ações e objetos. Falsidades (falsa) são encontradas em anima ou em sensu, bem como in rebus. alsaocorreremdefato.Masadefini-ção do falsumécomplicadae,em ltimainst ncia,impossibilita-

50 cf. Epistola III, supra cit. 51 VerBAI HACHE,Patrice.Notesurl argumentationdesSolilo uesdeSaintAugustinsur

l immortalitéde l me.In:Augustinus: evista rimestral ublicada or Los adres Agustinos Recoletos 39:61-74 (1994)

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da pelo estatuto metafísico de verdade e sua relação com a anima. Pois, se a verdade é essentia e essentia não tem contrário, falsitas não pode ser simplesmentedefinida comonegaçãodaverdade.Noentanto,asoutrasdefiniç es,envolvendosimilitudo e dissimilitudo, comprovadamente não podem abraçar a variedade de falsa 52

Aan lisefinadeO Dal indicaa complicaçãodadefiniçãodefalsum ereforçaadificuldadedeleitura ueencontraremosaopas-sar pelos Solilóquios. No entanto, nos arriscamos a nos posicionar leve-mentediferentedasan lisesdeO Dal ,por uedefendemos ue,paraalém das aporias, o hiponense logra a abertura de uma investigação uesemostrar prof cuanopr priodi logo,bemcomoemoutroste -

tos, mesmo aqueles de sua maturidade53. Parafinsdessepro eto,nãodemonstraremostodososmovimen-

tos argumentativos ue levaramo estudiosoa tal conclusão. sufi-ciente aqui indicar breve problematização do falso quanto à possibili-dadedeenlevaçãooudescensãonousodepoesiasdeficção.EcomoAgostinhovairetomara uestãonoconte todasConfissões54,afimdeesclarecer que as aparentes aporias agostinianas não são simples pro-etosfracassados,masacumulaminstrumentalfilos ficopararicasela-borações, muitas vezes, recuperadas em problemas bastantes distintos.

A partir de Solilóquios II, 6, 9, a elaboração do falso passará pelo conceito de semelhança e dissemelhança. Importa, então, notar que a noçãode semelhança (similitudo) é deslocada para o campo da falsi-dade, o que fornecerá ocasião para um tratamento ontológico da per-cepçãodofalso–ofalsoe iste,temnatureza (falsum est). Em Solilóquios

52 O Dal .Anima,Error,andFalsuminAugustine.In: latonism agan and Christian: Studies in lotinus and Augustine.2001.. ForAugustine,falsumconnotesareal ualit ofcertainactionsandob ects.Falsaarefoundinanimaorinsensu,as ellasinrebus.Falsapatentl occur:butthedefinitionoffalsumiscomplicated,andultimatel madeimpossibleb themetaph sicalstatusoftruthanditsrelationtotheanima.Foriftruthisessentiaandessentahasnocontrar ,falsitascannotsimpl bedefinedasthenegationoftruth. ettheotherdefinitions,involvingsimilitudoandsimilitudo,demonstrabl cannotembracethevariet p.VII,7

53 Pore emplo,De mendacio, iniciado em 395 e retomado em 420.54 Não temos espaço nesse projeto para desenvolver as relações com as Confissões. Essa análise

encontra-seemnossadissertação,ainda uedeformaincipiente.VerseçãoI,1,1SobrePai-eseEspet culos,pp.2 - .In:F ISA A,D. Agostinho e os maniqueus: an lise a a partir das

duas almas .2014.228f.Dissertação (Mestrado)–FaculdadedeFilosofia, etraseCi nciasHumanas.DepartamentodeFilosofia, niversidadedeSãoPaulo,SãoPaulo,2014.

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II, 15, 29, Agostinho desenvolve as relações possíveis entre verdade e ficção.Ap sasaporias uemostravamoslimitesdarelaçãoentrever-dade e semelhança (cf. Solilóquios. II, 6, 12), o diálogo retoma a relação entre verdade e as disciplinas nos parágrafos 21 e 29. Agostinho está surpresopelaRazãoassociarfalsidade ficção,especificamenteo voodeMedéia .Afinal,em uesentidoo ueabsolutamentenãoe iste,omonstroaladopore emplo,podeimitaroverdadeiro,visto ueéditoverdadeirosomenteo uedependeeseidentificacomaverdade ra-ta-sedee aminarem uesentidoofalsoéreabilitadocomopassagemverdade,afimdeelaboraroestatutodofalsocomopossibilidadede

conhecimento verdadeiro. Após as aporias que mostravam os limites da relação entre ver-

dade e semelhança (cf. Solilóquios. II,12), o diálogo retoma a relação entre verdade e as disciplinas no parágrafo 21 e 29. Agostinho está sur-presopelaRazãoassociar falsidade ficção,especificamenteo voodeMedéia .Afinal,em uesentidoo ueabsolutamentenãoe iste,omonstroaladopore emplo,podeimitaroverdadeiro,visto ueéditoverdadeirosomenteo uedependeeseidentificacomaverdade

R: Por acaso há alguma coisa que se diga verdade senão aquilo que por ela é verdadeiro o que há de verdadeiro? A: De modo algum. : Acaso não se chama, com razão, verdadeiro aquilo que não é falso?55

Se tudo que é verdadeiro é dito verdadeiro em razão da verdade, o falso, sendo oposto do verdadeiro, não deriva da verdade. Ora, tal re-sultado é apenas um assentimento provisório, pois é dito também que é próprio do falso manter certa semelhança com alguma coisa. Ade-mais, é também correto dizer que o falso afasta-se da verossimilhan-ça, justamente porque a verossimilhança é próprio do verdadeiro56.

55 sol.II,XV,29 . - Numquidnam ergo dicitur veritas, nisi qua verum est quidquid verum est?

A. - Nullo modo. . - Numquidnam recte dicitur verum, nisi quod non est falsum?. – As traduções dos Solilóquios estão cotejadas pela tradução de P. Labriolle, In: Ouvres de Saint

Augustin. . Dialogues philosophiques.Biblioth ueAugustinienne,volV,1948.56 Aessaapar ncia contradiçãoO Dal refere ue thedefinitionof falsum is complicated,

andultimatel madeimpossibleb themetaph sicalstatusoftruthanditsrelationtotheanima. ,operasupracit.p.VII,7

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Assim, o falso é mantido numa região intermediária entre semelhança e dissemelhança, pois, por um lado mantém relação com o verdadeiro porimitação poroutro,afasta-sedoverdadeiro, ustamentepor ueseafasta da verossimilhança:

: Acaso não é falso aquilo que se assemelha a alguma coisa sem, contudo, ser aquilo a que se assemelha? A: Não vejo outra coisa a que chamar de falso. Mas costuma-se também chamar de falso aquilo que está longe da verossimelhança. R: Quem o nega? En-tretanto, ter alguma imita ão em rela ão ao verdadeiro. A: Como?57

AafirmaçãodaRazãode ue ofalsoter algumaimitaçãoemrelaçãoaoverdadeiro (sed tamen quod habeat ad verum nonnullam imi-

tationem) é tão surpreendente que Agostinho propõe o caso da poesia deficção: Por uandosediz ueMedéiavoouemserpentesaladasatreladas,nãoh comoistoimiteoverdadeiropor ue,pornãoe istir,nãopodeimitaralgoumacoisatotalmenteine istente .Em uesen-tido a poesia imita o verdadeiro quando o conteúdo de suas palavras nãoremetemaalgoe istente,comopore emplo,omonstroaladodeMedéia Defato,nãofazsentidodizer monstrofalso ,poisomonstro,uenãoe iste,nãopodeimitarnada58. ogo,nocasodaficçãopoética,a imitaçãoemrelaçãoaoverdadeiro deveestaremoutrolugar:

R:Certamente.H algo uetupodesdizerserfalso.A: O quê? R: A sentença enunciada no próprio verso. A:Afinal, ualéaimi-tação que ela apresenta em relação ao verdadeiro? : Porque ela seria enunciada do mesmo modo, ainda que Medéia realmente

57 sol.II,XV,29. . - Num falsum non est quod ad similitudinem alicuius accommodatum est, neque id tamen est cuius simile apparet? A. - Nihil quidem aliud video quod libentius fal-sum vocem. Sed tamen solet falsum dici, etiam quod a veri similitudine longe abest. . Quis negat? sed tamen quod habeat ad verum nonnullam imitationem.A. - Quomodo?

58 sol.II,XV,29 . -Rectedicis sednona endiseamrem uaeomninonullasit,nefalsum ui-dem posse dici. Si enim falsum est, est: si non est, non est falsum.A. - Non ergo dicemus illud de Medea, nescio quod monstrum, falsum esse? . Nonuti ue namsifalsumest, uomodomonstrum est?A. - Miram rem video: itane tandem cum audio:Angues ingentes alites iunctos

iugo (Cicerone, De inv. 1, 19, 27)non dico falsum?R: (Tem razão. Mas não percebes que o que étotalmenteine istentetampoucosepodechamarfalso Poisseéfalsoe iste.Senãoe iste,não é falso. A: Então, não sei se diremos que no relato de Medéia se trata de um monstro falso. R: Certamente não. Se é falso, como é monstro? A: estranho.Acaso uandoouço: Imensasserpentesaladasporum ugoatreladas ,nãodigo ueissoéfalso )

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o tivesse feito. Portanto, uma sentença falsa, pela simples enun-ciação, imita sentenças verdadeiras. Se ninguém acredita nisso, elaapenasimitaverdadeirassentençasaosee pressarassim eapenas é falsa, mas não enganadora. Mas se leva consigo credibi-lidade, ela imita também sentenças verdadeiras59.

Aficçãopoéticaécompostadesentençasfalsas ueimitamsen-tençasverdadeirase,porisso,entende-seasficç espoéticassemenga-no, pois é justamente por ser composta de falsas sentenças que é ver-dadeiraficção.Comefeito,naficçãopoética,assimcomoemtodaobrade arte, o falso e o verdadeiro se coincidem, isto é, a poesia é verda-deira enquanto falsa sentença60.Aocontr riodaficçãopoética,aficçãoenganadoranãoreconheceafalsidadedassentenças: Eseninguémacreditanisso,elaapenasimitaverdadeirassentençasaosee pressarassim apenaséfalsa,masnãoenganadora.Masseelare uerafé,en-tãotambémimitasentençasverdadeiras uesãocridas 61. Essa análise será de grande valor para o esclarecimento do uso que Agostinho fará dasficç es,pore emplo,emConfissões III, 6, 11.

O

Pensamos,assim,termos ustificadosatisfatoriamenteavalidadede uma pesquisa acerca da Interiorização do falso/verdadeiro no procedi-

mento de conhecimento de si em Solilóquios de Agostinho. Como anunciado ao longo da problematização, nosso objetivo é defender a tese principal de que a interiorização do falso/verdadeiro nesse diálogo de juventude dofil sofohiponensesemostrar prof cuonomovimentoargumenta-tivodopr priodi logo,alémdeservirdeimportanterecursofilos -ficorecuperadopelofil sofodeHiponaemformulaç esposteriores.59 sol.II,XV,29 . Dicis plane: est enim quod falsum esse dicas.A. - Quid, quaeso? . Illam

scilicet sententiam quae ipso versu enuntiatur:A. - Et quam tandem habet ista imitationem veri? . Quia similiter enuntiaretur, etiamsi vere illud Medea fecisset. Imitatur ergo ipsa enuntiatione veras sententias falsa sententia. Quae si non creditur, eo solo imitatur veras uoditadicitur,est uetantumfalsa,nonetiamfallens.Siautemfidemimpetrat,imitatur

etiam creditas veras60 cf.sol.II,X,1861 sol. II,XV,29 uaesinoncreditur,eosolo imitaturveras uoditadicitur,est uetantum

falsa,nonetiamfallens.Siautemfidemimpetrat,imitaturetiamcreditasveras.

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Destarte, podemos marcar alguns objetivos da pesquisa: a) demons-trar o modo em que a alma se investiga a si mesma ao se conhecer em e erc cioracional,deformaaprocedera investigaçãosobreointelec-to c)e,assim,verificarcomoémane adoacompreensãoimediataeaprioridosintelig veis(cogito) d)aomesmotempoem uesetentarecuperar o estatuto do falso como passagem necessária pelos corpos (suas imagens- phantasia)afimdealcançar verdade/imortalidadedaalma. e) Devemos indicar a presença de ontologia madura, retomando os ganhos de Contra Acadêmicos, mas acrescidos da interlocução com a metaf sicaneoplat nica e)e plorarnosSolilóquios alguns movimentos argumentativos uemostramapreocupaçãodeAgostinho,peloe er-cício da razão, em mostrar os limites dessa própria razão e, assim, nos afastar de leituras que dividem as obras agostinianas em duas fases: aprimeiramaisfilos ficaeotimista uanto pot nciaascensionaldarazão, marcadamente os diálogos de Cassicíaco62 asegunda,a ueladoAgostinhomaisreligiosoepessimista,e igindoaconversãodavonta-depelagraçaeemreconhecimentodecisãointerior.f)E,finalmente,verificarahip tesedodi logointeriorde AgostinhocomAgostinho comodiscursofilos fico uevisaaoconhecimentodesipelanarrativadesuaerr nciaintelectual63 – sabidamente um recurso que ganha no-toriedade em suas Confissões.

ásicas

AntigasA S IN S(latim).Oeuvres de Saint Augustin. e tedel editionBénédic-tine.In: abriolle.Biblioth ueAugustinienne.Vol.IV(1948)Traduções de Soliloquia:P. ABRIO E(1948),A.FIORO I (1998), .PF-FENRO H(2000),S.D P - R DE E(1998)CÍCERO, Academica. raduçãodeSEABRA(2012)

62 Sobreleituracontinu stadosdi logosditosfilos ficoscomopensamentogeraldeAgosti-nho,consultarCon beare(200 )

63 Como referido acima, tal parecer ser a tese forte de estudos recentes dos Solilóquios.cf.B.Stoc .Augustine the reader: meditation, self no ledge, and the ethics of interpretation.1998.Noentanto, não estamos totalmente convencidos, ainda que caminham na mesma direção tra-balhosrecentesde efort(2011), . e el(2011)eCon beare(200 ).

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V S A .

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Liberdade e graça em Santo Agostinho

Flavia Formaggio de Lara AzevedoUniversidade Federal de São Paulo

Os conceitos de graça e liberdade designados por Agostinho em suas obras foram redirecionados à medida que o autor se aproximava do episcopato1. A abragência da questão não se esgotará no presente trabalho, delimitando-se ao período entre o escrito das Confissões e O

Livre-Arbítrio, enfatizando a experiência pessoal de Agostinho, até o seu envolvimento com a controvérsia pelagiana, em obras posteriores.

1 Dois momentos distinguem a transformação do pensamento agostiniano com relação à gra-ça: os momentos anteriores e posteriores à sua obra Ad Simplicianum, escrita em 396/397 d.C. Em suas obras anteriores, especialmente sua interpretação à Epístola aos Romanos, de 394 d.C., o mérito da fé não era visto, com clareza, como uma dádiva de Deus; ou seja, não havia uma investigação sobre a graça preveniente/operante e sua atuação no início da fé, no desejar o bem. De acordo com O Livre-Arbítrio, livro III, escrito um pouco antes de Ad Sim-

plicianum, “o homem não está inelutavelmente entregue ao mal hereditário da ignorância e da incapacidade, mas continua possuindo a faculdade de se decidir livremente a favor ou contra a reinvidicação do auxílio divino” (BRACHTENDORF, 2012, p.177). A partir do ano 396 d.C., Agostinho continua a admitir a graça cooperante/subsequente, ou seja, a graça se-guinte à fé e cooperante na determinação na vontade; porém, compreende que o início da fé já é atuação da graça, sendo está preveniete/operante. Há posições contrárias quanto ao es-tágio da doutrina da graça nas Confissões, escritas em 398 d.C. Johannes Brachtendorf (2012) entende que as Confissões se encontram no mesmo estágio em que foi escrito o livro III de O

Livre-Arbítrio; contudo, Etienne Gilson (2006) compreende o estágio da graça, nas Confissões, como atuante desde o início da fé, conforme registrado em Ad Simplicianum.

Carvalho, M.; Hofmeister Pich, R.; Oliveira da Silva, M. A.; Oliveira, C. E. Filosofia edie al Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 85-96, 2015.

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A experiência pessoal de Agostinho, sobretudo quanto à sua con-versão,in uenciouaformulaçãodeseusconceitosacercadavontadee da necessidade de um elemento superior a ela que lhe restaurasse a liberdade. Em sua obra Confissões, Agostinho narra seus anos de luta até chegar ao conhecimento da verdade, os quais foram marcados por uma cisão em sua vontade, em que o querer não era poder. A experi-ência agostiniana, de fato, já comprovara o que viria expôr posterior-mente, em suas respostas à controvérsia pelagiana, que a vontade é impotente, em consequência do pecado original e que sua relação com a graça seria determinante no processo de restauração.

Sendo assim, este artigo tem por objetivo analisar como a experi-nciadeSantoAgostinhoin uenciousuasnoç esdeliberdadeegraça,assimcomoacontrovérsiapelagianadeuocasiãoparaareafirmaçãodos conceitos pelo bispo de Hipona em obras posteriores, principal-mente nos seus Tratados sobre a Graça2.

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Noano 8 d.C.,emMilão,Agostinho,pelain u nciadecris-tãos que o mostraram que era possível e necessária uma mudança interior, encontrou nos textos paulinos a resposta para sua agonia, que o acometia por anos e que deu ocasião à sua conversão à fé cató-lica. De fato, a experiência da conversão de Santo Agostinho não ape-nasrevelouumaimport nciaespiritualemsuavida,masin uencioudiretamentesuapercepçãoacercadosconceitosfilos ficos uanto vontade e sua liberdade.

Emsuatra et ria,Agostinhoe perimentouafilosofiadosmani-queus, a qual dedicou diversas obras em sua refutação; foi instigado pelo neoplatonismo e envolvido em prazeres de sua vida temporal, que o prendia em um ciclo de vícios. Nos momentos que anteceram sua conversão, narrados nas Confissões, o bispo constatou que embora convencido que a vida cristã era melhor que a vida que levava, sua vontade se dividia entre um querer e um não querer; um querer impo-tente e um não querer escravizado. O autor tinha a consciência de que

2 Serão trabalhados nessa pesquisa: A natureza e a graça, O espírito e a letra e A graça de Cristo e

o pecado original; considerados também como obras antipelagianas.

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Deus era a fonte da beatitude, mas sentia-se preso pelo hábito: “[…] mantinha-me preso em dura escravidão”. (AGOSTINHO, 2001, p.182).

Napol micacontraosmani ueus,oautor haviadefinidoaori-gem do mal moral e a sua relação com a vontade livre. Em sua obra O Livre – Arbítrio, é enfatizado que o pecado não provém de Deus, sendo um mau uso do livre-arbítrio da vontade (AGOSTINHO, 1995). Em suas Confissões, Agostinho amplia o argumento, pois aponta uma relação de escravidão da vontade má com o hábito: “Porque da vontade pervertida nasce o desejo e, quando se obedece, nasce o hábito, e, quando se não resiste ao hábito, nasce a necessidade”. (AGOSTINHO, 2001, p.182).

A responsabilidade humana advém do livre-arbítrio da vontade, em escolher livremente se envolver no pecado, tornando-se dependen-te: “Pois é a lei do pecado a violência do hábito, que arrasta e prende o espírito mesmo contra a sua vontade, sendo isso merecido, porque é voluntariamente que nele caí” (p.184). A vontade é livre por possuir o livre-arbítrio, mas não possui a liberdade. Agostinho distingue os dois termos de modo que, no livro III de O Livre-Arbítrio, o autor deixa claro que o homem não possui o poder para se tornar bom, devido ou à sua ignorância por não reconhecer sua condição, ou à ausência de forças, devido suadefici ncia–conse u nciadopecadooriginal.

Ainda nessa questão, nas Confissões, Agostinho faz uso do tex-topaulino, indentificando-ocomasuacondição,na ualobem uequeria fazer não fazia, e o mal que não queria fazer, este realizava3. O autor queria se entregar ao amor divino, mas sentia o peso das paixões que o dominavam. Sua alma era capaz de ordenar ao corpo e esse o obedecia, no entanto era desobediente a si própria. “Agostinho enfati-zou essa experiência da força do hábito por ter passado a achar que tal experiência provava, de maneira conclusiva, que a mudança só podia ocorrer mediante processos que escapavam totalmente a seu controle” (BROWN, 2006, p.201).

Agostinho, através de sua experiência, deduziu que há uma re-lação entre vontade e poder. A alma quer, mas não pode, por estar presa. Da mesma forma que um corpo preso não pode andar, uma alma presa, mesmo querendo, não pode executar sua vontade. M. No-vaes (2002, p.73) entende que “um livre-arbítrio sem liberdade é uma vontade livre por natureza e atada por si mesma. Só está atada porque

3 Cf. CARTA AOS ROMANOS 7.19,20

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sua natureza é livre, mas carece de liberdade porque renunciou volun-tariamente ao seu peso natural”.

A cisão entre a vontade é entendida como uma doença da alma. A experiência agostiniana mostrou que essa doença necessitava de uma cura. Agostinho sentia-se impotente e entendia que por si só era incapaz de obter uma vontade plena (AGOSTINHO, 2001). O homem “[…] mesmo que queira se voltar para o bem, permanece preso numa fusão fundamental, que ele sozinho não pode superar. Sem o auxílio divino, a vontade para o bem não consegue superar a vontade para o mal” (BRACHTENDORF, 2012, p.166).

Era certo, para o autor, a necessidade do auxílio divino. Esse au-xílio viria no sentido de restaurar o poder da vontade, ou seja, res-taurar-lhe a liberdade que outrora havia no homem antes do pecado original4. Agostinho entendeu que, após a queda, essa liberdade foi perdida (AGOSTINHO, 1995) e, pela sua experiência, comprovou que realmente não a possuía por não poder obter o que desejava.

O encontro com a graça divina, em sua conversão, foi o elemento que consolidou a plenitude de sua vontade. Agostinho, através da con-fissãode uemeleeraedoreconhecimentodesuasmisériasteveacessoà graça divina que curou sua vontade, permitindo-lhe amar livremente a justiça (AGOSTINHO, 1998). Contudo, a atuação da graça antecipa-se ao querer humano ou é posterior a um desejo pelo bem, produzido pela própria vontade humana? Johannes Brachtendorf (2012) entende que, as-sim como é tratado no Livro III de O Livre-Arbítrio, está pressuposto que o homem, pelas suas forças, não pode chegar a fazer o bem, mas tem a capa-cidade de querer o bem. O ato de querer o bem é o que permite ao homem receberoau liodivino. Significativonessaconcepçãoéofatodagraçaser concecida por causa da resolução do homem para o bem” (p.177).5

4 Neste sentido, DOLBY (2002) relaciona a restauração da liberdade à restituição da imagem de Deus no homem. Assim como os gregos, desde os pitagóricos, empenharam-se na temá-ticadapurificaçãoatravésdeumarestauraçãomoraldohomem,Agostinhosituaamesmaperspectiva, porém acrescentando um elemento cristão: a imagem de Deus degenerada pelo pecado e que necessita de uma restauração.

5 Neste mesmo pensamento, MARTÍNEZ (1946, p.63) considera que “a graça é apenas uma ajuda, e como tal temos de pensá-la. O ajudado é a vontade, é o livre-arbítrio, para que me-reça a liberdade. Pois bem: se ela é ajuda, se ela é um dom que se recebe, na recepção mesma desse dom não se suprime a nossa autodeterminação: pelo contrário, o fato mesmo de ser a graça algo recebido supõe a vontade que recebe. Deus quer que recebamos seu convite livremente. A graça é, pois, convite, é apresentação a uma vontade livre. O homem pode livremente consentir ou rechaçar esta ajuda”.

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Contudo, Agostinho, no Livro VIII das Confissões, chega à con-clusão de que a alma não manda totalmente em si mesma porque não quer totalmente. A ausência de uma vontade plena era o que o impedia de realizar o bem, era uma doença da alma. Dessa forma, pode-se en-tender que o poder está intrinsecamente ligado ao querer: o poder im-plica em um querer total. Sendo assim, a graça, que cura a vontade da conscupiscência, devolve-lhe o poder não somente de realizar o bem, mas também de o querer, ou seja, uma vontade total.6

A diferença entre o homem que tem a graça e aquele que não tem não está na posse ou não posse de seu livre-arbítrio, mas em sua efici ncia.A ueles uenãot magraçareconhecem-sepelofatode seu livre-arbítrio não se aplicar em querer o bem ou, se eles querem, em serem incapazes de realizá-lo; ao contrário, aqueles que têm a graça querem fazer o bem e obtém sucesso nisso. As-sim,agraçapodeserdefinida:o ueconfere vontadese aafor-ça para querer o bem, seja para realizá-lo. Ora, esta força dupla é adefiniçãodeliberdade( I SON,200 ,p. 0 )7.

Neste sentido, a posição de Étienne Gilson sobre a atuação da graça assemelha-se à concepção agostiniana posterior à obra Ad Sim-

plicianum, em que o querer o bem, produzido por Deus, não deixa de ser um ato da vontade efetuado pelo homem, mas a causa do ato e o movimento da vontade ao bem são atuação de Deus (BRACHTEN-DORF, 2012). Anterior à questão do poder, a relação entre a liberdade da vontade e a graça está na fé. A fé precede o poder para fazer o bem, pois ela é elemento necessário para que haja reconhecimento da con-dição humana, que é anterior à liberdade. Neste sentido, pode-se con-

6 Diferente deste conceito, anos após a controvérsia pelagiana, Agostinho enfrentou o deno-minado semipelagianismo, que colocou em questão um pensamento sobre a graça seme-lhante ao de suas primeiras obras. A compreensão de que o primeiro movimento em direção graçavemdopr priohomemfoimodificadaporAgostinhoemsuasobrasposteriorese

condenada pelo Concílio de Orange, em 529 d.C. 7 Considerando o início da fé, isto é, o querer o bem, como uma ação da graça, Etienne Gilson

(1995, p.155) completa este pensamento: “Sem dúvida, ela (a graça) nasce da fé, mas a pró-pria fé é uma graça. É por isso que a fé precede as obras, não no sentido de que as dispensa de consumá-las, mas porque as boas obras e seu mérito nascem da graça, e não inversamen-te. Por outro lado, não se deve esquecer que a graça é um socorro outorgado por Deus ao livre-arbítrio do homem; ela não o elimina, portanto, mas coopera com ele, restituindo-lhe a efic ciaparaaobem .

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siderar tanto uma graça preveniente, quanto uma graça cooperante. É preveniente pois a fé é uma graça, é um dom de Deus; assim como a graça coopera com a imposição da decisão na vontade. O livre-arbítrio da vontade e a fé vinculados à graça são as condições necessárias para ohomempoderfazerobemealcançarofimsupremo:abeatitude.

A cisão entre as vontades se encerra na plenitude de uma única vontade, que se relaciona com a graça não somente no aspecto do desejar, mas do poder realizar. “A liberdade consiste em usar bem o livre-arbítrio” (SARANYANA, 2007, p.77). A alma que antes não se obedecia, por razão de seu aprisionamento, é liberta e tem poder de realização. A graça não anula a liberdade (AGOSTINHO, 1998), mas a consolida, a restaura. “Com a graça não temos o nosso livre-arbítrio mais o poder da graça, mas é o próprio livre-arbítrio que, pela graça, se torna potência e conquista sua liberdade.” (GILSON, 2006, p.386).

A conversão de Santo Agostinho foi uma exaltação à necessidade da graça divina. Tal experiência evidenciou a ausência da liberdade em virtudedadefici nciahumana.Agraçasobrevémcomoumau lio vontade que é movida a querer fazer o bem, restaurando-lhe o poder para agir de tal forma. Até o momento das Confissões, os escritos agosti-nianos enfatizavam a atuação da graça na vontade, o problema do mal e as questões de liberdade e livre-arbítrio, em um contexto apologético contra os maniqueus. Com a controvérsia pelagiana, por volta de 412 d.c., os Tratados sobre a Graça reiteram a necessidade da graça, porém emumaperspectivadereafirmaçãodacondiçãodeca dadohomem,tendo em vista o pecado original e suas consequências.

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Pode-seepilogarafilosofiapelagianaatravésdopensamentodeque é possível e exigido ao homem atingir a perfeição em vida por intermédio de seus próprios esforços. “Pelágio nunca duvidou, nem por um momento, de que a perfeição fosse obrigatória; seu Deus era, acima de tudo, um Deus que ordenava obediência sem questionamen-to.” (BROWN, p. 427). Para Pelágio, o homem criado por Deus tem sua natureza determinada para atingir a perfeição.

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A implicação deste pensamento se dá sobretudo nas questões acerca do resultado do pecado original, da liberdade e da necessidade da graça. Se para o homem é possível atingir a perfeição, logo sua na-turezanãoédeficiente.Seavontadenãosofreudefecçãoemrazãodopecado original, a graça torna-se dispensável.

adoutrinadePel giodefineopecadocomosendoapenasum mau uso do livre-arbítrio; não diminui nem sua liberdade nem sua bondade natural, nem, consequentemente, seu poder de fazer o bem. Se é assim, o socorro da graça não tem que se aplicar à vontade, que, não estando corrompida, não tem essa necessida-de; ele se reduz, consequentemente, ao perdão da ofensa feita a Deus pela realização do ato mau (GILSON, 2006, p. 299).

Seguindo essa compreensão, não há defeito inerente à natureza humana. Os erros humanos são de responsabilidade pessoal e podem ser curados pelo esforço. “Como poderia a alma ‘nova em folha’ de um indivíduo ser considerada culpada do ato distante de uma outra pes-soa?” (BROWN, 2006, p.429). Pelágio leu as Confissões de Agostinho, e o relato da experiência do bispo o desagradou no sentido de que a impot nciadavontade significariaum impedimentode se chegar perfeição que, no seu ponto de vista, era obrigatória.

Em sua obra De Natura,escritaem414d.C.,Pel giodefiniuumhomem que goza de pleno equilíbrio moral. O homem pode pecar, ao usar mau seu livre-arbítrio, mas o pecado não atinge a natureza, de forma que pecando torna-se culpável de seu erro, mas recebendo o perdão, volta ao seu estado de perfeição. Parece que o intuito de Pelá-gio viria contra àqueles que não viviam uma vida correta, alegando a fraqueza da natureza humana e sua inclinação para o mal (AGOSTI-NHO, 1998). Neste pensamento, o livre-arbítrio requereria um esforço para buscar a Deus e adquirir seus méritos. Destarte, a graça coroaria o homem com o perdão, não sendo uma dávida, mas um mérito.

O pelagianismo negou radicalmente a experiência pessoal de Agostinho. Para Etienne Gilson (2006), a tese fundamental das Con-

fissões consistianaafirmaçãode uenãopodeaohomemofereceraDeus o que ele exige a não ser que ele o tenha previamente dado. A experiência agostiniana mostrou que os seus esforços não o levaram a

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beatitude, mas sim a graça de Deus que o alcançou. Agostinho se viu por longos anos, embora lutando, sem poder cumprir com a Lei de Deus, pois estava preso no hábito e no vício do erro.

A controvérsia pelagiana levou Agostinho a rebater veemente-mente os argumentos que iriam contra a sua própria experiência. De in cio,Agostinhodefiniusuaposiçãocomcautela,poisdizer ueana-tureza humana era má, seria cair no erro dos maniqueus. A natureza humana, de fato, é boa, uma vez que tudo o que Deus criou era bom, porém essa natureza agiu de maneira má (EVANS, 2006). Sendo assim, segundo Agostinho, se Deus não criou a natureza com o vício, deve-se concluir uealgoadanificou:

A natureza do homem foi criada no princípio sem culpa e sem nenhum vício. Mas a atual natureza, com a qual todos vêm ao mundo como descendentes de Adão, tem agora a necessidade de médico devido a não gozar de saúde. O sumo Deus é o criador e autor de todos os bens que ela possui em sua constituição: vida, sentidos e inteligência. O vício, no entanto, que cobre de trevas e enfraquece os bens naturais, a ponto de necessitar de iluminação e de cura, não foi perpetrado pelo seu Criador, ao qual não cabe culpa alguma. Sua fonte é o pecado original que foi cometido por livre vontade do homem. Por isso, a natureza sujeita ao castigo atrai com justiça a condenação (AGOSTINHO, 1998, p. 114).

Em suas obras antipelagianas, Agostinho defende que a condi-ção do pecado original é o que traz a necessidade da graça, como obra redentora. O homem, como descendente de Adão e pelo seu pecado, traz consigo umanatureza danificada. Pel gio admitia o pecadodeAdão, porém não admitiu a hereditariedade da culpa. Entendendo o mal como o nada, Pelágio se questionava em “como poderia o que falta à substância (o mal, que é o nada), enfraquecer ou mudar a natureza humana?” (PELAGIO apud EVANS, 2006). A graça, para Pelágio, era perdoadora, era um mérito para quem a recebia. Agostinho enfatizou a gratuidade da graça, uma vez que ela “[…] não é dada em conside-ração aos merecimentos, mas gratuitamente, o que caracteriza a con-cessão da graça” (AGOSTINHO, 1998, p115). Segundo o referencial

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paulino, o homem pecador está privado da glória de Deus8, por isso necessita desse dom.

A máxima de Agostinho em considerar o pelagianismo um char-latanismo era o fato deste pensamento anular a cruz de Cristo (AGOS-INHO, 1998). se as forçasdo livre-arb trio fossem suficientes

para se saber como se deve viver e para bem viver, então Cristo morreu

em vão (Gl 2,21), portanto, estaria eliminado o escândalo da cruz (Gl 5,11)” (AGOSTINHO, 1998, p.157).

A graça divina, nos escritos antipelagianos, está estritamente ligada ao pecado original. Partindo do pressuposto de que a nature-za humana é doente, há a necessidade de um médico. Agostinho não nega que o homem possa viver a beatitude, mas não admite uma per-feição sem a graça. Entende-se que cabe ao homem realizar o bem e é para isso que vive, mas o poder para tal ação é dado por algo externo à vontade, a saber a graça, que foi concretizada no sacrifício de Cristo. Logo, a fé, na relação entre liberdade e graça, é elemento primordial.

Mas o fato de o ser humano viver sem pecado pertence à esfera humana e é a ação mais excelente, visto que por ela se realiza a plena e perfeita santidade na sua máxima expressão. Portanto, é inacriditável que tenha existido ou possa existir alguém que tenha realizado esta ação, na hipótese de que o ser humano a possa re-alizar. Mas deves ter em conta que esta obra, embora pertença ao homem realizá-la, é também uma obra divin; assim, não tenhas dúvida de que é uma obra divina (AGOSTINHO, 1998, p.19).

Em linhas gerais, o pensamento de Pelágio abarcou a ideia da possibilidade da vida sem pecado e de que Deus quem outorgou ao homem este poder em sua natureza (AGOSTINHO, 1998). O esforço agostiniano em rebater o pensamento fez-se claro também em compre-ender tal raciocínio: “Por isso, devemos ter em conta que ele (Pelágio) não crê no auxílio divino para a vontade e a ação, mas somente para a possibilidade da vontade e da ação” (p.218). A distinção clara entre Pelágio e Agostinho em relação à liberdade e graça é uma questão de natureza. A natureza para Pelágio quer e pode, já para Agostinho ela só quer e pode mediante a graça de Deus. E é nesse sentido que a graça atua na liberdade, com intuito de restauração.

8 Cf. CARTA AOS ROMANOS 3,23.

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A descrição ulterior das consequências do pecado sobre a natu-reza humana mostra de maneira clara que a mente de Agostinho voltou-se para a sua experiência pessoal nos anos anteriores e imediatamente posteriores à sua conversão. […] Agostinho ten-tarae pressar uandoescreveuasConfiss essobreamaneiradeDeus agir no homem para convertê-lo à dependência da ajuda divina, sem a qual sequer pode pensar com clareza e, nem se diga, viver retamente (EVANS, 2006, p.179-180).

Tanto nos escritos antipelagianos quanto nos anteriores, a graça, para Agostinho cooperava com o bem na natureza humana. A graça agia como cura para a vontade enferma. “O que Pelágio ensina, sem perceber o alcance de sua própria doutrina, é que o homem pode fazer o que um poder divino foi requistado para criar” (GILSON, 2006, p.310). Ainsist nciadeAgostinhoemreafirmaragraça,emdiversasobras ueenalteceram a dádiva divina, foi justamente pelo fato de que, para ele, não havia compreensão da liberdade sem que houvesse a graça.

Os eventos abordados nesta pesquisa contribuíram para a for-mação do pensamento inicial de Agostinho na relação entre liberdade e graça. De fato, a leitura bíblica da Epístola aos Romanos imbuiu a noçãoentre uererepoder.Agostinhoidentificou-secomopaulinis-mo, no qual foi introduzida a ideia “[…] de que seria possível fazer o mal a despeito do correto conhecimento de Deus” (BRACHTENDORF, 2012, p.167).

Através da experiência, Agostinho comprovou a impotência de sua vontade e de que através da graça, tendo sua vontade liberta, era possível amar a justiça em uma relação de dependência com a própria graça. Mais uma vez, os textos paulinos se associavam ao pensamento agostiniano, em que a vontade era livre da escravidão do pecado, mas serva da justiça.9

Em sua negação ao pelagianismo,Agostinho afirmou sua e -peri ncia, negou o poder da natureza humana e reafirmouo poderda graça. A preponderância da graça sobre a vontade exime o mere-cimento. Agostinho foi considerado Doutor da Graça, pois através de

9 Cf. CARTA AOS ROMANOS 6,18

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suasafirmaç es,colocouohomememseudevidolugar.En uantoopelagianismo enaltecia o homem na realização de sua perfeição, insen-tando a culpa original e a possibilidade de uma restituição à perfeição merecidamente, mesmo quando pecar, através do perdão de Cristo; Agostinho demonstrou a fragilidade humana, tendo como modelo sua própria luta. A graça é libertadora, “longe de abolir a vontade, a graça refaz uma boa vontade, liberta-a; do livre-arbítrio sempre intacto em sua essência, ela refaz uma liberdade. (GILSON, 2006, p.311).

O objeto de deleitação do homem livre é a própria liberdade (p.308). Posto isto, a síntese dos conceitos abordados nesta pesquisa foi demonstrada por Agostinho na relação do livre-arbítrio com a fé, a fé com a graça, a graça com a liberdade e a liberdade com a beatitude:

Pois o cumprimento da lei depende da liberdade (livre-arbítrio), maspela leiseverificaoconhecimentodopecadoe,pelafé,asúplica da graça contra o pecado; pela graça, a cura da alma dos males da concupiscência; pela cura da alma, a liberdade; pela li-berdade, o amor da justiça; pelo amor da justiça, o cumprimento da lei. (AGOSTINHO, 1998, p.78).

AGOSTINHO, Santo. Confissões. Trad. Arnaldo do Espírito Santo, João Beato e Maria Cristina de Castro-Maia de Sousa Pimentel. Lisboa: Imprensa Nacional –CasadaMoeda,2001._____. A graça de Cristo e o pecado original. In: A ra a ( ). Trad. Frei Augus-tinho Belmonte. 2ed. São Paulo: Paulus, 1998. _____. A natureza e a graça. In: A ra a ( ). Trad. Frei Augustinho Belmonte. 2ed. São Paulo: Paulus, 1998._____. O espírito e a letra. In: A Graça (I). Trad. Frei Augustinho Belmonte. 2ed. São Paulo: Paulus, 1998._____. O livre-arbítrio. Trad. Nair de Assis Oliveir. São Paulo: Paulus, 1995.BRACHTENDORF, J. Confissões de Santo Agostinho. 2 ed. São Paulo: Loyola, 2012.BRO N,P.SantoAgostinho:umabiografia.Riode aneiro:Record,200 .CARTA AOS ROMANOS. In: A íblia de erusal m. São Paulo: Paulus, 1995

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DOLBY, M. del Carmen. l hombre es imagen de Dios: visión antropológica de San Augustín. Navarra: 2002. EUNSA. EVANS, G.R. Agostinho: sobre o mal. São Paulo: Paulus, 2006. GILSON, E. ntrodu ão ao pensamento de Santo Agostinho. São Paulo: Paulus, 2006._____. A ilosofia na dade M dia. São Paulo: Martins Fontes,1995NOVAES, M. Vontade e Contravontade em Avesso da Liberdade. São Paulo: Cia das Letras, 2002. MARTÍNEZ, Agustín. San Agustín: ideario: selección y estudio. 2.ed. Buenos Aires: ESPASA/CALPE, 1946.SARANYANA, JOSEP-IGNASI. La ilosofía Medieval: desde sus orígenes pa-trísticos hasta la escolástica barroca. 2 ed. Navarra (Espanha): 2007, EUNSA (Edicones Universidad de Navarra S.A.

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Vontade segundo a obra

O Livre-Arbítrio de Santo Agostinho

Dinno Camposilvan Zanella

Universidade federal de pelotas

No presente artigo, pretende-se apresentar como Santo Agosti-nho usa o termo “vontade” (voluntas) na obra “De Libero-Arbítrio”. Na busca de uma possível relação entre vontade, desejo de escolha como sendo o resultado desta ação humana o bem ou o pecado e a culpa que advém da ação realizada pela má escolha humana. Ressaltando que esta escolha feita pela pessoa é uma escolha deliberada por uma von-tade livre tendo como resultado o bem universal desejado por todos os seres ou o pecado que acarretará na culpa do individuo. E o livre--arbítrio da vontade que consideraremos por hora como ato livre de agir conforme a verdade.

Agostinho trabalha neste livro em questão, dois aspectos. Um sobre o movimento da culpa que sentimos quando cometemos erros devido às escolhas que fazemos por meio da vontade, ou melhor, da manifestação dos nossos desejos concupiscíveis que naquele momento são mais atrativos, ou nos são mais agradáveis, do que a ação prove-niente da reta ordem ou o dito bem maior, superior. Pretende-se ana-lisar as questões acerca da culpa, na relação entre escolha, ou vontade livre e o pecado. Ou seja, quando o ser humano inverte a ordem na-tural das coisas, dando um valor maior ao que é particular e um valor menor ao que é universal.

Carvalho, M.; Hofmeister Pich, R.; Oliveira da Silva, M. A.; Oliveira, C. E. Filosofia Medieval. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 97-107, 2015.

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Ofil sofo africano tenta sustentar o uso do livre-arb trio davontade pela presciência divina. Pois, por Deus ter o conhecimento do passado, presente e futuro, não interfere nas escolhas que o homem deve fazer. Essas escolhas que o ser humano faz dependem somente do seu desejo, da sua vontade manifestada pelas emoções ou pelo co-nhecimento da verdade. Assim, o homem age de forma livre, fazendo o uso correto ou incorreto desta vontade livre.

As ações humanas partem da escolha de uma vontade livre, ou seja, uma escolha realizada entre dois bens. Um bem maior que é para Agos-tinho a escolha correta a ser realizada pelo individuo; e um segundo tipo de bem, conhecido como inferior que o leva a culpa e por consequência ao pecado, porque é um bem particular e subverte a ordem natural das coisas, por ser um bem corporal. Por pertencer ao sentido exterior que engana a vontade livre1, por sua vez, é fruto do “Livre-arbítrio”2, ou, na modernidade chamada de “liberdade da vontade”. À vontade quando é livreésegundoofilosofoafricanoum Dom de Deus”3, é um bem uni-versal e imutável. Pois, trata-se da vontade escolhida pela pessoa, não ocorrendonenhumtipodecoação ueinterfiranasuavontadedefazeraquela decisão livremente. Decisão que é prevista por Deus que conhece a ação livre que assumimos antes dela ser realizada.

Para o filho deM nica amanifestação da vontade ocorre pe-las afeições da alma, pelas manifestações das paixões, pela vontade

1 Vontade livre é segundo Agostinho de Hipona um ”Dom de Deus”, um Bem universal e imut velserealizaraação uelevaagraça.Masseapessoaoptarporagirconformeumbem particular a vontade livre que é um dom de Deus tornar-se-á um pecado culminando na culpa do homem, por ter agido errado.

2 É para Agostinho o livre uso de seus desejos, mas de forma que a sua ação leve a felicidade. Nada pode forçar o homem a obedecer às paixões, de modo que a culpa do homem pecar não pode ser do livre-arbítrio, pois, este homem não é escravo das paixões. Ou seja, o livre--arbítrio não é um mal, é, pois um bem entregue por Deus aos homens. E por meio dele os indivíduos escolhem entre os diversos tipos de bens que podem surgir. Bens que são: “bens inferiores” que levam ao pecado e “bens superiores” que levam a felicidade. O livre-arbítrio éconsideradopelofilhodeM nicacomosendoum bemmédio ,umaterceiracategoriadebem, pois com ele temos a liberdade de poder acertar ou errar em nossas ações mediante o uso da nossa vontade livre, por termos liberdade de escolha.

3 Termo usado em: DLA III. 1, 1.

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Vontade segundo a obra O Livre-Arbítrio de Santo Agostinho

pr pria. Os afetos básicos da alma humana, que nos impulsiona em nossas

escolhas por meio da realização da nossa vontade sendo ela boa ou má, são

os desejos, a alegria, o medo e a tristeza4”. Contudo, a nossa vontade é a realização, manifestação, inclinação para estes sentimentos da alma, ueser escolhidopelavontadepr pria,pormeiodenossosimpulsos

emocionais que pode ser uma ação boa ou má, dependendo da minha vontade naquela determinada situação.

Todas as pessoas a todo instante deparam-se com um problema e tem que fazer uma escolha. Deste problema a ser resolvido, surgem duas possibilidades, os dois tipos de bens descritos acima, o (bem uni-versal) e o (bem particular). No momento em que o homem escolhe o “ato livre5”, ou seja, será sempre conforme a vontade, pois será feita conformeacrença,hist riadevidaeoutrastantasmotivaç eseemo-ções que o indivíduo adquire conforme o tempo, conforme os aconteci-mentos da vida. Com efeito, devido o resultado da ação, pode ocorrer ueosu eitoescolhaporsuapr priavontadeaoutraação,baseado

nos mesmos critérios para a realização da ação anterior.

Ev. Vejo já, claramente, que é preciso contar a vontade livre entre os bens, e não dos menores. Portanto, precisamos reconhecer a vontade como dom de Deus e quanto foi conveniente ela nos ter sido dada. Nessas condições, desejo agora saber de ti, caso o julgues opor-tuno, de onde procede a inclinação pela qual a mesma vontade afasta-se daquele Bem universal e imutável, para se voltar em direção a bens particulares, alheios e inferiores, todos, aliás, su-jeitos a mutações. Ag. E o que te parece necessário saber? Ev. O seguinte: uma vez que a vontade nos foi dada de tal for-ma que essa inclinação aos bens inferiores lhe seja natural, en-tão ela tem necessariamente de se voltar para tais bens. Ora, não se pode descobrir culpa alguma onde a necessidade e a na-tureza dominam6.

4 ZANELLA, Liberdade humana no pensamento Agostiniano, 2014, p: 192.5 É O bispo entende por ato livre como sendo a livre escolha, que é punida pela justiça quando

realizada uma má ação que seja voluntária, por mais que nenhum ser humano queira reali-zar está má ação.

6 AGOSTINHO. O livre-arbítrio. III, 1, 1.

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Em Agostinho o homem se aproxima da felicidade cada vez que age corretamente. Porque está agindo conforme manda o conhecimen-to verdadeiro, pois ele foi capaz de agir como ordena a “verdade inte-

rior”, verdade por excelência que esta sempre iluminando o caminho deste para a boa ação. O seu contrário, é a ação realizada por uma von-tade emocional que é agir pelo impulso do desejo sem controle, pela paixão desregrada. Isso ocorre quando escolhemos o bem inferior e por tanto acabamos pecando. Logo, o resultado da vontade, do desejo de escolher uma ação impulsionada por motivações que distanciem a pessoa da boa ação, ação virtuosa, faz com que acabe pecando. Tendo como “telos”fimaculpa.Poiséaculpa ueresultadeumam ação,ouseja, da escolha inferior, a escolha pelo pecado.

Consequentemente, quando a vontade — esse bem médio — adere ao Bem imutável, o qual pertence a todos em comum, e não é privativo de ninguém, do mesmo modo aquela Verdade da qual temos dito tantas coisas, sem nada termos podido falar dignamente — quando a vontade adere ao Sumo Bem, então o homem possui a vida feliz.

Ora, essa vida feliz mesma é o que o espírito sente quando adere ao Bem imutável. Este torna-se para o homem como um bem privativo, o principal de todos. Ele possui então, além do mais, todas as virtudes, das quais não é possível usar mal7.

Qual inclinação faz com que a mesma vontade afaste o Bem supe-

rior, inclinando-o para um Bem inferior de maneira natural? Esta inclina-ção ocorre quando abandonamos os bens imutáveis, tendo os bens mu-táveis como desejo momentâneo sendo ressaltado que esta ação trata-se de uma ação não natural, mas voluntária, pois foi deliberada pela von-tadelivredoagente,ouse a,apessoaagiuporvontadepr pria,agindoconforme sua liberdade ordenou. No caso, o desejo ordenante foi o bem inferior que resulta no pecado. Tendo o pecado como resultado, levará o homem à culpa que é o sofrimento da alma por ter realizado uma má escolha. A culpa é uma tristeza decorrente da má ação, advinda de uma má escolha, pois torna o homem infeliz distanciando-o da verdade e da felicidade que almejava alcançar com a realização desta ação.

7 AGOSTINHO. O livre-arbítrio. II, 19, 52.

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Assim, pois, a vontade obtém, no aderir ao Bem imutável e uni-versal, os primeiros e maiores bens do homem, embora ela mesma não seja senão um bem médio. Em contraposição, ela peca, ao se afastardoBemimut velecomum,parasevoltarparaoseupr -prio bem particular, seja exterior, seja inferior. Ela volta-se para seu bem particular, quando quer ser senhora de si mesma; para um bem exterior, quando se aplica a apropriar-se de coisas alheias, ou de tudo o que não lhe diz respeito; e volta-se para um bem in-ferior, quando ama os prazeres do corpo. Desse modo, o homem torna-seorgulhoso,curiosoedissoluto eficasu eitoaumtipodevida a qual, em comparação à vida superior anteriormente descri-ta, é antes morte. Apesar de tudo, é claro que sua vida continua submissa ao governo da Providência divina, que põe todas as coi-sas em seu lugar e retribui a cada um conforme os seus méritos8.

Agostinho nos mostra que não há culpa onde a necessidade e a naturezadominam.Pois,avontadelivretemporfinalidadeinclinara pessoa ao bem imutável. Quando isso não ocorre, é porque a pessoa escolheu um bem mutável a distancia da necessidade e da natureza, criando em si um sentimento de culpa. Esta culpabilidade questio-nada pelo autor no dialogo “De Libero Arbitrio”, livro III, aparece o problema da “culpabilidade, como sendo um movimento da alma9”. Nadapodesu eitar-seoesp rito pai ão,senãoapr priavontade,porque um agente superior ou igual a colocaria em um vexame, seria injusto; e um agente inferior não possui poder para tal ação. A vonta-de é a única coisa pertencente ao homem, pois é por intermédio dela que queremos e conseguimos o que queremos e também o que não queremos. Com efeito, se eu comento uma má ação, não posso culpar outro ser senão eu mesmo. Não podemos culpar Deus porque ele é bomedeleprovéms coisasboas.Como terdadoavontadepara

8 AGOSTINHO. O livre-arbítrio. II, 19, 53.9 “... Ag. a vontade livre nos foi dada de tal forma que este movimento lhe é natural, então

volta-se ele, necessariamente, para tais bens mutáveis, e não se pode reconhecer falta al-guma onde a natureza e a necessidade dominam. Entretanto, a vontade não nos foi dada dessa forma 9e disso não deverias duvidar de modo algum, já que não duvidas que tal movimento é culpável. Ev. Eu disse considerar esse mesmo movimento culpável e ser por isso ueelemedesagradava.Nãopossoduvidar uenãose arepreens vel.Masnego uea alma, levada por qualquer movimento que a distancie do Bem imutável, em direção as coisas mutáveis, possa ser culpada, caso seja ela impulsionada, necessariamente, por sua pr prianatureza (D AIII.1,1).

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fazermosobempornossaspr priasescolhas,mesmoscritériosparaa realização da ação anterior.

Certamente, quem me fez é um Deus bom e, como não posso praticarnenhumaboaaçãoanãoserporminhavontade,fica,pois, bastante claro que é acima de tudo para fazer o bem que a vontade me foi dada por esse Deus tão bom. Quanto ao movi-mento pelo qual a vontade se inclina de um lado e de outro, se não fosse voluntário e posto em nosso poder, o homem não se-ria digno de ser louvado quando sua vontade se orienta para os bens superiores, tampouco ser inculpado quando, girando, por assim dizer, sobre si mesmo, inclina-se para os bens inferiores. Nesse sentido, não se deveria exortar a desprezar os bens tran-sit riosparaad uirirosbenseternos Earenunciar m vidapara viver honestamente? Ora, quem quer que estime não haver motivo para serem dadas aos homens essas espécies de adver-tência merece ser excluído do número dos viventes10.

A culpa se da no uso indevido da nossa faculdade da vontade. Comefeito,éaescolhaporumbem ueédeficiente,ouse a,umade-fici ncianolivre-arb trio ueresultanopecado ueculminanaculpaque o indivíduo sente por ter subvertido a ordem natural das coisas e o resultado deste sentimento que entristece a alma é o pecado. O pecado é o resultado da falha cometida, que é para o bispo o “mal11”, conhe-cido por mal moral. O pecado é, portanto, o cumprimento da justiça manifestada por Deus, na certeza que as pessoas que pecarem serão castigadas conforme o peso do pecado cometerem.

P

Como possível resposta ao problema da culpabilidade porque as pessoas escolhem o mal, com a “Presciência Divina”. Agostinho obser-va que muitos não creem na divina Providência, qual dirigiria com sua 10 AGOSTINHO. O livre-arbítrio. III, 1, 3.11 MalnosentidodemalmoralemAgostinho,poisomalf sicoéo uepertenceaumaordem

corporal e se traduz pelo sofrimento. O mal moral por sua vez é a violação voluntaria e livre da ordem desejada por Deus. Estamos portanto, trabalhando o mal moral, porque se trata das escolhas que fazemos nas inúmeras situações que nos são apresentadas todos os dias.o mal moral é por natureza o pecado, surgido do pecado original e das más escolhas que faze-mos quando somos impulsionados pelos desejos das paixões exteriores.

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bondade as ações das pessoas por toda a vida, também não aceitam que as suas ações são as realizadoras dos seus atos. Assim, julgam não serem os responsáveis pelos atos cometidos, mas que seria, portanto, o pr prioDeusculpado.Então,sepecam,épor ueforamforçadosatalato. Descartando o destino e lançando-se a ação a toda a sorte de vícios, desprezando a justiça divina e fazendo pouco caso da humana.

Ocorre, porém, que Deus criou o homem sabendo que ele viria a pecar, mas por amar a sua criação o criou bom. O pecado surge não para macular, ou prejudicar a Deus. Surge para manifestar o desejo de Deus ustiça. omododeDeusmanifestarasuagrandemiseric rdia,salvando os que agem conforme a ação boa que leva ao bem superior e punindo os pecadores por terem subvertido a ordem.

Ev. Assim sendo, sinto-me sumamente preocupado com uma questão: como pode ser que, pelo fato de Deus conhecer anteci-padamentetodasascoisasfuturas,nãovenhamosn sapecar,sem ueissose anecessariamente Defato,afirmar ue ual ueracontecimento possa se realizar sem que Deus o tenha previsto seria tentar destruir a presciência divina com desvairada impie-dade. É porque, se Deus sabia que o primeiro homem havia de pecar — o que deve concordar comigo todo aquele que admite a presciência divina em relação aos acontecimentos futuros —, se assim se deu, eu não digo que por isso ele não devesse ter criado o homem, pois o criou bom, e o pecado em nada pode prejudicar a Deus. Além do que, depois de Deus ter manifestado toda a sua bondade criando-o, manifestou sua justiça, punindo o pecado, eaindasuagrandemiseric rdia,salvando-o.Dessemodo,nãodigo que ele não devia ter criado o homem, mas, já que previra seupecadocomofuturo,afirmo ueissodeviainevitavelmenterealizar-se. Como, pois, pode existir uma vontade livre onde é evidente uma necessidade tão inevitável? 12.

Deus conhece todas as coisas por ser a Verdade, o Sumo Bem de onde emanam somente coisas boas. A conciliação entre presciência divina e o pecado acontece no que diz respeito ao homem, Deus sabe que o indivíduo irá pecar, pois é capaz de prever este acontecimento futuro que será porventura um pecado necessário. Não ocorre então uma decisão voluntaria. Pois, se está determinada a ação, a vontade

12 AGOSTINHO. O livre-arbítrio. III, 2, 4.

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livre não tem escolha, a não ser seguir o que esta determinada. Deste racioc nio surge a seguinte conclusãodofil sofo africano: ou negar

em Deus, impiamente, a presciência de todos os acontecimentos futuros, ou

bem, caso não possamos negá-lo, de admitir que pecamos, não voluntária, mas

necessariamente. Mas haverá outro motivo de tua perplexidade?13 Mas apresciência divina determina que Deus sabe o que irá acontecer, mas ele não interfere no livre-arbítrio. Pois Ele entregou aos homens para que pudessem escolher por sua vontade livre o que desejam. Pois não éDeus uefazofuturo,massimn s.

Ag. Por que, pois, como justo juiz, não puniria ele os atos que sua presciência não forçou a cometer? Porque, assim como tu, ao lem-brares os acontecimentos passados, não os força a se realizarem, assim Deus, ao prever os acontecimentos futuros, não os força. E assim,comotenslembrançadecertascoisas uefizeste,todavianãofizeste todasas coisasde ue te lembras,domesmomodoDeus prevê tudo de que ele mesmo é o autor, sem contudo ser o autordetudoo ueprev .Masdosatosmaus,de uenãoéoau-tor, ele é o justo punidor. Compreende, destarte, com que justiça Deus pune os pecados: pois ainda que os sabendo futuros, ele não é quem os faz. Porque se não tivesse de castigar os pecadores por-que prevê os seus pecados, ele não teria tampouco de recompensar os que procedem bem. Visto que não deixa de prever tampouco as suas boas ações. Reconheçamos, pois, pertencer à sua presciên-cia o fato de nada ignorar dos acontecimentos futuros. E também, vistoopecadosercometidovoluntariamente,serpr priodesuajustiça julgá-lo, e não deixar que seja cometido impunemente, já que a sua presciência não os forçou a serem cometidos14.

A presciência não força as ações, porque Deus ao prever os acon-tecimentos não os força a acontecer, mas tem por dever punir os atos maus. Embora pecadores por causa do mau uso da vontade livre, a vontade é um bem, o homem erra e é punido por Deus por meio do sentimento de culpa. Se Deus interferisse na escolha humana estaria impedindo o ser humano de realizar a sua vontade livre de escolher o que deseja. Pois, se Deus tivesse criado o homem para querer somen-te a verdade ele não teria liberdade de escolha, porque estaria condi-cionado a um determinismo. Embora o pecado seja uma privação do

13 AGOSTINHO. O livre-arbítrio. III, 3, 6.14 AGOSTINHO. O livre-arbítrio. III, 4, 11.

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livre-arbítrio ainda é um bem, bem inferior, porque é melhor pecar pela vontade livre, do que pecar pela falta dela.

Neste breve artigo buscou-se compreender como Agostinho de-senvolve o problema da vontade na obra “De Libero Arbitrio”. Podemos perceber que o livre-arbítrio é um bem médio, segundo o exposto pelo autor no livro II da obra, pois possui as seguintes características: a pos-sibilidade de escolhermos entre dois bens. São eles, o bem maior que leva a felicidade, é o bem imutável, universal. O outro é o bem menor que leva ao pecado e a culpa. O livre-arbítrio é, portanto, de um bem dado por Deus aos homens para que possamos escolher, por mais que a escolha possa ser a errada.

Outro ponto trabalhado neste texto foi o pecado e a culpa, ambas oriundas da má escolha, ou melhor, do uso indevido do livre-arbítrio, por escolher um bem particular, invertendo a ordem natural do que se deve desejar. Que consiste na liberdade da pessoa de poder seguir seus instintos, as manifestações dos seus desejos passionais desordenados. Mastemumresultado ueéosofrimentodaculpaeoremorsodope-cado por ter cometido tal falha contra a ação boa.

Concluímos com a presciência divina, resposta de Agostinho para livrar Deus da responsabilidade dos atos humanos. Visto que Deus é Bom e conhece o passado, presente e o futuro de nossas ações. Mesmo tendoo conhecimentodestasaç esElenão interferenases-colhas para não interferir no livre arbitro do homem. Qual é um bem médio que serve para mostrar ao homem as diversas possibilidades de escolhas que podemos fazer. Escolhemos por meio da vontade livre na intençãodesermosfelizes.Masnemsempreconseguimospor ueaca-bamos subvertendo a ordem natural do universo ao escolhermos um bem particular e assim maculamos a alma com o pecado. Pecado que para o bispo africano tem origem no pecado original.

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Obras Complementares:ABBAGNANO, Nicola. Dicion rio de ilosofia.SãoPaulo:MartinsFontes.1998.BONI, Luis Alberto de. ilosofia Medieval. Textos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.__________. Idade Média: Ética e Política. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.COS A,MarcosRobertoNunes. Consequências da problemática relação en-tre o livre-arbítrio Humano e a Providência Divina na solução Agostiniana do Mal. In: Studium, Recife: v.6, Nº 12, p. 43-54, Dezembro/2003.ZANELLA, Dinno C. Liberdade humana no pensamento Agostiniano. In: ANAIS DO III CONGRESSO INTERNACIONAL DE FILOSOFIA MORAL E

POLÍTICA - SOBRE RESPONSABILIDADE - ANTIGUIDADE E MEDIEVO -

VOLUME I. Orgs: EI E NIOR,PedroeSI VA, ucasDuarte.Pelotas:Ne-pfilonline,2014,p:191–204.Dispon velem:h p://nepfil.ufpel.edu.br/studia/acervo/studia-6.pdf. Acesso em: 18 out. 2014.HINRICHSEN, Luís E. A Estética de Santo Agostinho: OBeloeaFormaçãodoHumano.PortoAlegre:ES EF,2009.HORN, C. Agostinho: conhecimento, linguagem e ética. Porto Alegre: EDIPU-CRS, 2008.

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Ordem e beleza do universo na estética filos fi o eli iosa de a o os i o

Marcos Roberto Nunes CostaUniversidade Federal de Pernambuco

Assim como emmuitos outros pontos da filosofia,AgostinhoherdoudaAntiguidadeCl ssicaoconceitodebelo,o ual,emcon-frontocomosprinc piosda radiçãob blica udaico-cristã,ganhouumnovosignificado.

Segundo mbertoEco, aofalardeproblemasestéticoseaopro-porregrasdeproduçãoart sticas,aAntiguidadeCl ssicatinhaoolharvoltadoparaanatureza 1,a ualapareceaosolhosdosAntigoscomobela.C cero,pore emplo,noseuDe Natura Deorum,diz ue nadaémelhoremaisbelo ueocosmo .Dessavisão naturalista dobelo,geram-se,basicamente, tr sconcepç esdeestética:uma,sensualista,ue fazdaarteum instrumentode transformaçãodanaturezaparaodeleitoousatisfaçãodosdese ossensitivosdohomem.Outra, uead uireumcar term stico-religiosodeadmiraçãooucontemplaçãodanaturezaen uantodivinaemsi,ao uechamamosmodernamente

1 ECO, mberto.Arte e beleza na estética medieval. rad.deMarioSabinoFilho.Riodeaneiro:Editora lobo,1989.p.15.

Carvalho, M.; Hofmeister Pich, R.; Oliveira da Silva, M. A.; Oliveira, C. E. Filosofia Medieval. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 108-117, 2015.

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deimanitismo.E,finalmente,umaterceiraconcepção,filos fico-espe-culativo-racionaldobelosens vel,comoparticipaçãodometaf sico,oual,porsuavez,assumepelomenostr sfaces:

1. idealista,protagonizadapeloplatonismo, ueconcebeobelosens velcomore e o,sombraouparticipaçãonoBelointe-lig velouideal2.NoBanquete,pore emplo,Platão, falandopelabocadeDiotima, identificaoBeloemsicomoAmor--Bem(195-212),o uals podesercontempladopeloesp ri-toourazão.PosiçãoigualmenteassumidanoFédon,em uedescartaapossibilidadedeencontrarmosoBelonomundosens vel,mas tão somente nomundo intelig vel.Mas é noFedro(249-251)enoHipias Maior uePlatãodiscorreacercada relação entre o belo sens vel e o Belo intelig vel, sendoestefonteda uele,em uediz ueabelezasens vels ébelapor uenosfazrecordaraBeleza ueaalmacontemplounomundodasidéias ,sendoabelezasens velre e o,sombraouparticipaçãodoBelo intelig vel.Por isso,maistarde,naRepública e nas Leis,Platãofazseverascr ticasaartesens vel,uepodedespertarprazeresperniciosos(sensualistas)na u-ventude.Narealidade,o uePlatãocondenanãoéarte,masaarteporsis ,ouaartepelaarte.

2. realista, propagada pelo aristotelismo, o ual, partindodoprinc piode ueamudançananaturezanãoésenãoomovi-mentodosseresembuscadaperfeição,proporcionadapelapassagemdapot nciaaoato, ue temseu picenaFormaperfeita–Deus–oMotorIm vel, uenumalinguagemes-téticaad uireonomemetaf sicodeBeloperfeito.Ouse a,obelosens velnãoésenão formação oudeterminaçãodamatéria–a ueArist teleschamade monstrofeio , uevaiad uirindoformaoubeleza,gerandoosseressens veis

. emanentista,desenvolvidapeloneoplatonismo, ue,fazendouma unçãodoidealismoplat nicocomorealismoaristoté-lico,identificaoBelocomoUno,supra-sens veleintelig vel,

2 A uiPICCO OMINI,Remo.Introduzione.In:A OS INO,Santo.La belezza – sel.dite-sti.IntroduzioneenotediRemoPiccolomini.Roma:Ci Nuova,1995.p.10,comenta: Agrandenovidade introduzidaporPlatão, em relaçãoaonaturalismo ueoprecedeu, é ae ist nciadeummundosupra-sens veldasideais .

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M R N C

uenoseudesdobramento(emanação)divide(semperder)asuabondadeoubelezagerandohip stasesinferiores,atra-vésdas uais,nomeadamente,daAlma do Mundo,atinge-seomundosens vel,dandoforma matériaindeterminadaein-forme,ao uePlotinochamade bolofeio ,gerandoosseres(oubelos)sens veis,deforma ueosseressens veist msuabeleza medida ueparticipamdoBelometaf sico–oUno. Plotino,nasEnéadas,afirma ueabelezasens veltemorigemnoBeloemsi, ueédenaturezaespiritual.Amatériaouaartedeladecorrenteébelaapenassere etirouparticipardoBeloemsi.Ouse a, éoincorp reo ueéBeloeconferebele-zaao ueécorp reo (En., III),ou énocéu ueoBeloe istesubstancialmente,etudo ueh debelonaterraédel ueprocede(En.,VIII,7)3.Paratal,diferentementedePlatão uefazumarelaçãodiretaentreobeloeoAmor-Bem,Plotinorelacionaobelocomadisposiçãoentreasparteseo todo,definindoobelocomoaunidadeouatotalidade–oUno.

Contrao sensualismo e/ou imanitismo dosAntigose cor-rigindo a concepção filos fico-especulativo-racional dos plat nicose,principalmente,dosneoplat nicos, ue tiveramgrande in u nciano seu pensamento,Agostinho imprime uma concepção de estéticade cunho cosmol gico-filos fico-religiosa voltada para o intelig velen uantosertranscendental–Deus,Belezaabsoluta,razãodeserdetodasascoisasbelas,promovendoumaapropriação/superaçãodaes-téticacosmol gico-filos fico-racionaldosgregos4.3 Essaidéiateriagrandein u ncianopensamentodeSantoAgostinho, ueemumadesuas

Epístolasdamaturidade,fazendoumacomparaçãoentreoBeloemsi(Pulchro)eoconveniente(apto),diz: Obeloéconsideradoeamadoporsimesmo,ao ualseop eotorpeedisforme,en uantooapto,cu ocontr rioéoinapto,dependedeoutro,ao uesevincula-quasi religatum –enãoé ulgadoporsimesmo,senãopora uelea ueseachaunido (Ep.1 8,1,5).

4 Comentadoain u nciadePlatãoePlotinosobreAgostinhoe,conse entemente,asupe-raçãodesteemrelaçãoa uelesapartirdesuaconversãoaoCristianismo,dizPICCO O-MINI,1995,p.9: NãosepodefalardebelezaemAgostinhosemfazerrefer nciaaa uiloueemseuargumentotenhaditoPlatãoePlotino ... .Comoprimeiro,defato,superouoceticismo uenegavaae ist nciadaverdade comosegundo,omaterialismo uelheimpe-diade ver omundoespiritual ... .Aconversãomudasuavidademodosignificativo:comessa, apai ãofilos ficasetransformaempai ãopelafé ... .AluzdestaescolharadicalabelezasevestedeespiritualidadeeéinterpretadaparasignificarDeus–Paidetodabeleza .

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A e nihilo A

Agostinho,partindodoprinc pio udaico-cristãoex nihilo,segun-doo ualtodasascoisasdouniversoforamcriadasesãogovernadasporDeus,defende ue todanaturezacriadaporDeusnãopodesersenãoobem/belo.NoSobre a Natureza do Bem, pore emplo,diz:

odasascoisasboas, uergrandesoupe uenas,em ual uerdosseusgraus,nãopodeme istirsenãoporDeusetodanature-za,en uantonatureza,éumbem(De nat. Boni, 1).

Maisdo ueisso,s obem/beloe iste ou,numsentidoinverso,ondenãoe istirobem/belonãoe isteoser,evice-versa:

Ascoisasem ueomodo,aespécieeaordemsãograndes,sãograndes bens as coisas em ue são pe uenas, são pe uenosbens ondenãoe istem,nenhumbeme iste.Finalmente,ondeestastr scoisassãograndes,sãograndesasnaturezas ondesãope uenas,sãope uenasasnaturezas ondenãoe istem,nenhu-manaturezae iste. ogo,todaanaturezaéboa(Ibid., ).

Agostinhoadmitesim,ae emploda teoriadaparticipaçãodePlotino, uenouniversoe istemgrausdiversosdeperfeiç es.Primei-ro,por ueDeusnãofeztodasascoisascomomesmograudeperfei-ção ueEle.Sumamenteperfeitos Deus.Ascoisascriadast mseugraudemaioroumenorperfeiçãoemsuaparticipaçãoNele.

Assim,nahierar uiadescendentedevalores,

os seres ue t malgode ser e uenão sãoo ueDeusé, seuautor,sãosuperioresaosviventesenão-viventes,comoos uet mforçagenerativaouapetitiva,aos uecarecemdestavitali-dade.E,entreosviventes,ossencientessãosuperioresaosnão--sencientes,como s rvoresosanimais.Entreossencientes,osuet mintelig nciasãosuperioresaos uenãoat m,comoaosanimaisoshomens.E,ainda,entreos ue t m intelig ncia,osimortaissãosuperioresaosmortais,comoaoshomensosan os(De civ. Dei, XI,1 ).

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M R N C

Emsegundolugar,comoconse nciadaprimeira,ascoisassecorrompemoumudam,conformeresumeAgostinhoemumpe uenotratado,Sobre a Verdadeira Religião:

-Aomeob etares:-Por uefenecemascriaturas -Respondo:-Pelofatodeseremmut veis.-Por uesãomut veis -Por uenãopossuemaSumaperfeição.-Por uenãopossuemaSumaperfeição -Porsereminferioresa uemoscriou.- uemascriou -OSerabsolutamentesoberano.- ueméele -Deus,aimut vel rindade, uecominfinitasa-bedoriaasfez,ecomsumabenignidadeasconserva ... (De vera rel., 18, 5)5.

Assim,partindodanoçãoplotinianadedegradaçãooudespoten-cializaçãodobemnosseres,Agostinhoadmiteumahierar uiadevalo-resentreosseresdouniverso,s ue,conformevimos,contrariamenteaosAntigos ueconcebiamamatériacomoomal/feio(caos,monstrooubolofeio)afirma uetambémestaéumbem/belo,e uepormaiscorrompida ueeste a,ouen uantohouvernatureza,haver bem/belo:

odanatureza uepodesercorrompidaétambémcertobem naverdade,acorrupçãonãoapoderiapre udicar,anãoserretiran-dooudiminuindoo ueébom(De nat. boni, ).

Ouse a,pormenoroumaiscorrompida uese aanaturezadeumser,continuae istindonelacertograudenúmero, peso e medida (numerus, pondus et mensura), o ue lhe concedeo estatutode ser e,conse entemente,certograudebondade/beleza.Princ pioeste ueAgostinhovaibuscarnoLivro do Gênesis,o ualdiz uedepoisdeterfeitotudo,nose todia, Deusviu uetudo uefizeraerabomebelo (1, 1), uenainterpretaçãodeAgostinhosignificava ueemtudo ueDeuscriouimprimiucertonúmero, peso e medida(numerus, pondus

et mensura),categoriasontol gico-cosmol gicasestas uenortearãoofazerartenaIdadeMédia,nasuabuscademanifestaroBonum meta-f sicooutranscendental.

5 Igualmente,noSobre a Natureza do Bem: S Eleéimut vel,todasascoisas uecriou,pelofatodeastercriadodonada,sãomut veis (De nat. boni, 1).

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Para Agostinho, bem/belo, natureza e ser são sinônimos. Onde não existir um, não existirá o outro. E onde existir um, necessariamente existirá o outro.

2 T :

Mais do que isso, Agostinho diz que a existência de graus diver-sos de perfeição entre os seres, seja por disposição natural (inferiores e superiores), ou por se corromperem, em nada atrapalha a harmonia ouordemdouniverso.Pelocontrário,serveparaconfirmá-la,comodizRipanti: “A desordem é concebível só no interior da ordem: a ordem não nasce da desordem, mas vice-versa ‘há desordem porque há ordem’6”.

A imperfeição, ou melhor, a diferença entre os seres só é perce-bida quando comparados uns com os outros, e estes com a perfeição suprema de Deus. Mas, tomados individualmente e no seu conjunto, todos são perfeitos:

Todas as coisas que são pequenas, quando comparadas com as maiores, recebem os nomes que a elas se opõem. Assim, com-parada à forma do homem, que é maior e mais bela, a beleza do símio pode dizer-se disforme. Isto engana os imprudentes, que dizem que aquela é um bem e esta um mal, não atendendo, no corpo do símio, ao seu modo próprio, à simetria de um e de outro lado dos membros, à harmonia das partes, ao cuidado de sua conservação e outros detalhes que seria prolixo enumerar ou descrever (De nat. boni, 14).

Ou seja, o universo é perfeito em suas partes e no conjunto. Por isso, conclui:

6 RIPANTI, Graziano. Ermeneutica del male. In: V SEMINARIO DEL CENTRO DI STUDI AGOSTINIANI DI PERUGIA - “ istero de a e e a i ert ossi i e ett ra dei dia oghi di

gostino” (ROMA: 1994). ATTI. Sezione di Studio I. Roma: Institutum Patristicum “Agusti-nianum”, 1994. p 108. E o próprio Agostinho no So re a idade de e s, fazendo uma analogia com um poema: “Assim como a oposição dos contrários contribuem para elegância da lin-guagem, de semelhante modo se adorna a formosura do universo com certa eloquência, não de palavras, senão de obras, opondo-se as coisas contrárias” (De civ. Dei., 11, 18).

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N sdizemos uenãoe istenenhummalnatural,senão ueto-dasasnaturezassãoboase ueomesmoDeuséasumanature-zaeasdemaissãonaturezasporEle.Een uantosão,todassãoboas,por ueDeusfeztodasinteiramenteboas,masordenadasemseusgrausdistintos,detalmodo ueumassãomelhores ueoutras,eassimsecompletacomtodaestaclassedebensesteuni-verso,o ual,tendoalgunsseresperfeitoseoutrosmenosperfei-tos,étodoeleperfeito(De Gen. contra man., II,29,4 )7.

Portanto,Agostinhonão temd vidade ueaordemdanatu-rezaéperfeita,notodoeemsuaspartes.Oproblemaé ue,segundoele,n s,homens,sereslimitados,cu avisãoest ofuscadapelopecado,pornãovermosouniversonoseucon untoounatotalidade,mastãosomenteempartes,somostentadosavercertaspartescomom s/feias,oua ulgar,deacordocomnossosinteressesparticulares(soberba),de-terminadaparteisoladacomodesordenadaoudesproporcional,masue, uandoencai adasnatotalidadesãoperfeitamenteordenadas8.

Etodososseresdouniversoestãoordenados belezadouniver-so(Cf.De ord.,I,I )detalmaneira ue,o uenoschocaemumdetalhe,nãopoderia senãonos agradar e tremamente se consider ssemosotodo.Narealidade,nãoe istemal/feiuranouniverso,n sé ue ulga-mos,deacordocomnossosinteresses,ascoisascomom s/feias.Masemsimesmaselassãotodasboas/belas.

Porisso,Agostinhodiz ue,pornãosabermospor ueDeusfezdeterminadascoisas,nãodevemosdestru -las, ulgando-ascomom soufeias,pois,certamente, uandocolocadasnocon untodouniverso,sãoperfeitamenteboase teis.7 Nolivroanterior haviadito: odaformosuracompletaresultamuitomaisagrad velno

con unto ueemcadaumdeseuselementosporseparado (De Gen. contra man.,I,21, 2).EnoSobreaOrdem: Nestemundosens velseh deverbem uerse aotempoeolugar,paraueo ueagradanapartedelugardetemposeentendamelhornotododo uena uelaparte (De ord.,2,19,51).

8 ParaBE E INI,Maria. a misura delle cose: stru uraemodellidell universosecondoAgostinod Ippona.Milano:Rusconi,1994.p.7 , aidéiacentralemtornoda ualgiratodaacosmologiadeAgostinhoéanoçãodeordine, na ualaprincipalcaracter sticaéatotalidade .Cf.também, SCHO , osef. Dio & il bello in sant’Agostino. Milano:Edi-zioneAres,199 .p. 8-45, ueinsistenaidéiadetotalidadeouunidadecomomeiodeseentenderaidéiadeordemoudebeloemAgostinho. RE A NA, uis. u es lo

ello introducci na aestéticadeSanAugust n.Madrid:Instituto uisVives deFilo-sofia,1945.p. ,diz: IgualaPlatão,Agostinhoidentificaobelocomprinc piosupremodoBem,eaomesmotempoesteBemsupremoseconfundenele,comoemPlotino,comamaispuraunidade, ueéo totumperfeito .

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O - S A

Portanto, o ue chamamos de feio ou desordem no universo,paraAgostinhonãopassadedéficit, ignor nciaoufaltadeconheci-mento,porpartedohomem,desuasverdadeirascausas.Oumelhor,falta-nosumavisãodecon unto,oudetotalidadedouniverso ueéumdosimportantesprinc piosdacosmologia/estéticaagostiniana,es-pecialmenteemsuaobraSobre a Ordem,I,I, 9.

3 N

ParaAgostinho,Deusimprimiuemtudo uecrioun mero,pesoemedida(numerus, pondus et mensura),ouumaOrdem,havendoharmo-niaouigualdadedaspartesentresiedestasemsuarelaçãoaotodo10,formandoaharmoniaouaunidadenadiversidade,ouunidadeorg -nica,a ualtemporfinalidadeteleol gicalevarohomemaentraremharmoniaconsigomesmo,comouniverso,comosoutroshomensecomDeus,ouse a,ordeméaregradomundoeessaregravemdeDeuseconduzaDeus.Porisso,noSobreaCidadedeDeus,Agostinhocolocaaordemcomoprinc pionorteadordohomemedasociedade,aodizer:

A paz do corpo é a ordenada conc rdia disposição dos seusmembros.Apazdaalmairracional,aordenada uietudedeseusapetites.Apazdaalmaracional,aordenadaconformidadeentre

9 SegundoSVOBODA, arel. a es ica de san Agus n sus uen es. rad.de uisRe Altuna.Madrid: ibrer aEditorialAugustinus,1958.p.47,oDe OrdineéosegundotratadoestéticodeSantoAgostinho,visto ueantesdaconversãoesteescreveuumtratadoespec -ficosobreotema,oDe Pulchro et Apto, ueseencontraperdido,mas ue,nosegundo-oDe

Ordine -,encontra-sebasicamenteasmesmasidéiasdoprimeiro,nomeadamenteoprinc piodaunidadeoutotalidade, ueéapedraangulardoestéticaagostiniana.IgualmenteRE A NA, uiz. aestéticadeSanAgust n.In:ORO RE A, . A DINORODRI O, .A.(orgs). l pensamien o de san Agus n pra el mundo de o lafilosof aagustiniana.Valencia:EDICEP,1998.p. 2 ,falandoacercadoDe Ordine, diz: osegundosistemaes-téticodeAgustinho–oprimeiroseencontravanumescritoperdido–maséveross mil ueambossistemastenhampontosdecontato–arelação,aunidade,otodo–e ueAgustinhorepetiu no De OrdinecertasidéiasdoDe Pulchro et Apto uelheeram ueridas

10 Emdiversasoutrasobrasagostinianasencontramosaordemcomosin nimodeharmoniaouigualdadeentreaspartes,como,pore emplo,noSobre a Música: Acasonãosed umaigualdade harm nica uando os membros se correspondem simetricamente (De mus.,,1 , 8),noSobre o Gênesis ao Pé da Letra: antoémais formosoumcorpo uantomaissemelhantes se amaspartesde ueconsta (De en. ad litt., 1 ,59)enoSobre a Verdadeira

Religião: Emtodasas artesagradaaharmoniapela ualseconservamesãobelastodasascoisas (De vera rel., 0,55).

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oentendimentoeavontade.Apazdocorpoedaalma,avidaharm nicaeasa dedovivente.Apazdohomemmortal,acon-cordeobedi ncianafé,soba eieterna.Apazdoshomens,aor-denadaconc rdia ... .Apazdetodasascoisas,atran ilidadedaordem,eaordem,adisposiçãodascoisasiguaisedesiguaisued acadaumoseulugar(De civ. Dei,19,5-7).

A OS INHO,Santo.A cidade de Deus: contraospagãos. .ed. rad.deOscarPaes eme.Petr polis:Vozes SãoPaulo: FederaçãoAgostinianaBrasileira,1991.v.IeII.

. A verdadeira religião. 2.ed. rad.enotasNairdeAssisOliveira.SãoPaulo:Paulinas,1987.

.A natureza do bem. rad.deCarlosAnc deNougué.Riode aneiro:SétimoSelo,2005.

.Comentário literal ao Gênesis – Sobre o Gênesis, contra os maniqueus – Co-

mentário literal ao Gênesis, inacabado. rad.deAgustinhoBelmonte. SãoPaulo:Paulus,2005.

.Cartas(2o):Ep.124-187. In: Obras completas de san Agustín. Ed.bilin-gue. rad.,introd. notasde opeCilleruelo.Madrid: aEditorialCatolica/BAC,1987. omoXIa.

.Escritosvarios(1o): amusica.In: Obras completas de san Agustín. Ed.bilingue. rad.introd.de opeCillerueloet al.Madrid: aEditorialCatolica/BAC,1988. omoXXXIX.

.Escritosfilos ficos(1o):Delorden.In: Obras completas de san Agustín.

Ed.bilingue. rad. org.VictorinoCapanaga.Madrid: aEditorialCatolica/BAC,1994. omoI.BE E INI,Maria. amisuradellecose: stru uraemodellidell universose-condoAgostinod Ippona.Milano:Rusconi,1994.ECO, mberto.Arteebelezanaestéticamedieval. rad.deMarioSabinoFilho.Riode aneiro:Editora lobo,1989.PICCO OMINI,Remo.Introduzione.In:A OS INO,Santo. abelezza–sel.di testi. Introduzione enotediRemoPiccolomini.Roma:Ci Nuova,1995.RE A NA, uis. uéeslobello:introducci na aestéticadeSanAugus-t n.Madrid:Instituto uisVives deFilosofia,1945.

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. aestéticadeSanAgust n.In:ORO RE A, . A DINORODRI-O, .A.(orgs).ElpensamientodesanAgust npraelmundodeho (I):lafilosof aagustiniana.Valencia:EDICEP,1998.RIPAN I, raziano.Ermeneuticadelmale.In:VSEMINARIODE CEN RODIS DIA OS INIANIDIPER IA- Il mistero del male e la libertà possi-

bile: lettura dei dialoghi di Agostino (ROMA:1994).A I.SezionediStudioI.Roma:InstitutumPatristicum Agustinianum ,1994.SVOBODA, arel. aestéticadesanAgust n susfuentes. rad.de uisRe Altuna.Madrid: ibrer aEditorialAugustinus,1958.SCHO , osef. Dio ilbelloinsant Agostino.Milano:EdizioneAres,199 .

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A simetria na estética cosmológica de Santo Agostinho

Ricardo Evangelista BrandãoMarcos Roberto Nunes CostaUniversidade Federal de Pernambuco

1. A Sem dúvida alguma a aequalitas (simetria) entre as partes, é um

ualificativo estético com bastante relevo na cosmologia de SantoAgostinho,seelaéofundamentodabelezasens velaan lise uefa-remosdoravantenosdir .Sãoin merasasvezes,emdiversasobras,ueoFil sofofazusoestéticodotermoob etodenossaan lise,porémnoSobre a música ivroVI,1 , 8temosresumidasasmaisrelevantesideiasacercadoassunto.Noconte todamencionadapassagem ueaonossoentendercomeçanoVI,12, 4atéVI,12, 9,oHiponenseestu-dandoaorigemdasharmonias,edosritmosdam sicaepoesia,per-cebe ueasharmoniaspresentesnasmentesdoshomens uecantame comp em sicas e versos, nãoprovémdamentehumana apenas,masamem riaguardaemseutesouroessasharmonias, ueporsuavezestãol pelocontatocomasharmoniaseternaspresentesemDeus,fontede todasasharmonias.ComoafirmaoFil sofo: Mestre: -Deonde,pois,sedevecrer uesecomunicaaalmaalgoeternoeimut vel,senãovemdeDeus,o nicoeternoeimut vel (De mus.,VI,12, ).Ouse a,asharmoniasr tmicaspresentesnamem riahumanat masuauniversalidadee plicadapelocontatocomasharmoniaseternaseimut veis,evisto ueunicamenteDeuséeternoeimut vel,Eleéafonteprimeiradetodasasharmoniaspresentesnamem ria.

Carvalho, M.; Hofmeister Pich, R.; Oliveira da Silva, M. A.; Oliveira, C. E. Filosofia Medieval. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 118-128, 2015.

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Ritocont nuo,Agostinhotentae plicaropor u deaalmaten-doacesso belezaeternaeimut vel,eemteseportanto,podercon-templ -laconstantemente,sevoltaparaasbelezasinferiorespresentesnocosmos.Ahip tese ueeleapresentanodi logoéade ueobelopossuiumaatraçãosobreohomem,deforma ueeste ltimonãocon-segueamaroutracoisa uenãoobelo: Mestre:-Diga-me,terogo,ouepodemosamarsenãoascoisasbelas ... (De mus.,VI,1 , 8).

Destarte,SantoAgostinhoumavezconcluindo uebuscamosasbelezassens veisaoinvésdepermanecermosnacontemplaçãodabe-lezaeternaporcausadenossoamoraobelo,passaresponderpor ueessasbelezasinferioresnosatraem1,efazendoissoe plicitaopapeldaaequalitasemsuaestéticadocosmos:

Mestre:-Emconse ncia,estascoisasbelasagradamporsuaordenação,a ual temosdemonstrado ueseest buscandoardentementeaigualdade.Por ueestanãoseencontraapenasnabelezaconcernenteaosentidodoouvidoenomovimentodoscorpos,senãotambémnasformasvis veis,a ualdemodocor-rentesechamadebeleza.Cr stu uee istaoutracoisasenãoaharmoniosaigualdade, uandoosmembrossecorrespondemiguaisdedoisemdois,e uandoos uesãos s,cadaumocupaumcentropara ue,emcadaladoseguardemintervalosiguais (De mus.,VI,1 , 8).

Assim sendo, a uestão investigadanaper cope citada é a se-guinte:é fato ueoscorposbelosnosatraempor termosuma incli-naçãoparaabeleza,mas uepropriedadeestéticaest presentenes-sescorposparaosconsiderarmosbelos ueseobservarmoscomum

poucomaisdeatenção,essa uestãotrabalhaem ueconsistemasbe-lezassens veis,oupelomenosem ueelasconsistemnopontodevistadoobservador,poisaperguntaépor uenosagradam.

Agostinhoafirma ueentreasm ltiplasformasdebelezassen-s veis, ueno casodo fragmento citado são as belezas relacionadasaoouvir(aures pertinet),aosmovimentosdoscorpos(motu corporum)

1 emosarepetiçãodo uestionamento uefomentouodi logoDe pulchro et apto(Cf.Conf.,IV,1 ,20).

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easformasvis veis(visibilibus formis),emtodaselasest presenteumv nculocomum, ueas tornambelas.EmboraoFil sofoafirme ueessapropriedadeestética ueanalisaremosest presentenessas tr sformasdebelezasdomundo,faz uestãodeadvertir uetratar es-pecificamentedasvisibilibus formis,porseremaoseuentendero uemaiscorrentementeéinvestigado uandooob etodeinvestigaçãoéabelezasens vel2. ogo,afirma uetodosessesm ltiplostiposdebele-za,mas,principalmenteapresentenasvisibilibis formis,nosagradamporseunumero, ueentreosdiversossignificadosdessesubstantivolatino,os uesãomaisapropriadossegundooconte todapassagemédedisposição,ordem,harmonia(Cf.,SARAIVA,200 ,p.792).Ouse a,o ueébelonosagradaporsuaconvenienteouharmoniosaordenaçãoentreassuasv riaspartes. uandosomosatra dosporessaade uadaordenação(numero)presentenascoisasbelas,segundoAgostinhoes-tamosbuscandoaigualdade(aequalitatem appeti).Portanto,deacordocomofragmentoanalisado,umaformavis velnosagradaporsuaor-denação,eestaob etivaouapontaparaaigualdade,comoseoob etodessaordemnaestruturadascriaturas, esteticamente falando, fosserealizaraigualdade.Mas,aaequalitasnãoéumtermo uetransmitainformaçãoemsimesmo,pois,visto uese tratadeumtermorela-cional, uandodizemos ueonumeronasformassens veisconduzaaequalitas,prontamentesurgeapergunta:igualdadecomo u

OFil sofoafricanonãonospermitepermanecercomestad vida,e logotratadee plicitaro uepretendedizercomaequalitatem nume-

rosam (harmoniosaigualdade).Segundoeleessaigualdadeserefereaigualdadeentreosmembrosdeumcorpo,ouse a, uandoosparesdemembrossecorrespondemumcomooutroemumarelaçãodeigualda-de,essaigualdadeproporcionaldeummembrocomoseupar,éo uetornaumcorpobelo.Assim,nãoh d vidadeo u oFil sofoest ue-rendodizercomaequalitas,nadamaisdeé ueasimetriaentreaspartes.2 Agostinho entendehaver certahierar uia entreos sentidos, sendomais elevadosos ue

estãomaispr imosdaintelig ncia.Assim,avisãoporestarmaispr imaaintelig nciaestariaemprimeiro lugarseguidadaaudição: Perceboduascoisasem ueapot nciaeforçadarazãopodeseofereceraosmesmossentidos:asobrashumanas uesãovistaseaspalavras ueseouvem.Emambasamenteseutilizadeumduplomensageiroemproldasnecessidadesdocorpo:odosolhoseooutrodosouvidos (De ord.,II,11, 2). alveztenha-mosnessahierar uiaae plicaçãodopor ueasformasvis veisteremaproemin nciadiantedasbelezascaptadasporoutrossentidos.

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Assimsendo,asimetriaéumacategoriaestéticamuitoimpor-tante uerevelaabelezanaformadascriaturas,demaneira uetantooscorposcontidosdepartesoumembros,aigualdadedessaspartesagregabelezaaessecorpo,emesmoumcorpounonosentidodesempartesoucomposiçãodemembros,tambémtembelezaagregadapelasimetria,namedidaem uesãoconstitu dospordist nciassimétricasapartirdoseucentro.Neste ltimocaso,dabelezadocorpouno,abelezasens velmaisperfeitasimetricamenteéadaesfera,poremseupr prioconceitoconsistiremdist nciase idistantesapartirdocen-tropara ual uere tremidadeanalisada. ogo,podemosdizer uenamedidaem ueasemelhançaeaigualdadesãocategoriasdebeleza,uantomaissimétricoocorposens velfor,masbeloeleser .

Asimetriaen uantocategoriaestéticaéconsideradatãoimpor-tanteparaAgostinho,apontodeeledeclararemblematicamentenoDe

ordine ue uandon scontemplamosalgonãosimétrico,ofendemosnosso u zoestético,visto ueonãosimétricocausaestranhezaanossavisão.ComodissertaoHiponense:

uando observamos bem cada parte deste edif cio, não podedei ardecausar-nosestranhezaofatodevermosumaportaco-locadanoladoeoutrapertodocentro,masnãonocentro.Nascoisas fabricadas, não havendo nenhuma necessidade, pareceueadesigualdadenaproporçãodasdimens esdaspartesdealgummodofereapr priavisão(De ord.,II,11, 4).

Noconte todacitadaper cope,SantoAgostinhoapartirdoDe

ord.,II,11, 0ob etae plicararacionalidadepresentenomundo,pois,deformasemelhanteaPlotino ueentendiaomundocomoumtra-balhoracionaldaPsychê (Almadomundo), uemoldouocosmosco-piandoosprot tiposeternospresentesnoNous(Intelig nciaouEsp ri-to), ueéaHip staseconceituadacomointelig nciaperfeita,omundoporparticipaçãoéumaobraracional(Cf.,En.,V,9,5,15-25, 5-45 V,1,2,1-10 ,5-10 4,1-10,20-25).OFil sofodeHiponasemelhantemente,defendendoacreatio ex nihiloentende ueomundonãoéumob etodoacaso,masumaobraracionalvistotersidocriadoporumserracional .

Adespeitodofatode uepossamosencontrarmuitassimilaridadesentreascosmologiasdePlotinoeSantoAgostinhocomoaracionalidadedocosmos,aorigemdomundoosseparam,pois,paraPlotinoaorigemdamatéria uefoiformadaemformatodecosmosprovémda

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ogo,seomundoéumaconcretizaçãodeumpro etoracional,ara-cionalidadedessepro etoéreveladanosm nimosdetalhesdocosmos,nestesentidoasimetriaentranadiscussãocomoumadasm ltiplasformasdemanifestaçãodarazãoordenadoranocosmos,bemcomodaNaturezacomomatériaracionalmenteordenada.

Assim, no ltimo te to citadoAgostinho ao contemplar umacasa, possivelmente a ue os participantes do di logo estavam ha-bitando em Cassic aco, a maneira como as portas (ostium) estavam distribu dascausavaestranhezaanossavisão. Nocasoemparticu-lare emplificadopeloHiponense,umaportaestavacolocadaemumlado,eoutrapr imaaocentro, uandonom nimopoderiaestarnomeioguardandoumadist nciaproporcionaldaportadolado,eadoladoguardandoamesmaproporçãoentreofimdaparedeeaportadomeio.Estamaneiradeorganizarosespaçosentreasaberturasdacasanoso endi.Overbolatinoo endi,passaaideiadebatercontraalgo,desechocarcontraumob etoencontrandoassimresist ncia,logo, uan-donossavisãocontemplaalgonãosimétrico,ela sechocacomalgouelhecausaestranheza.Oolhohumano,porsuapr priainclinaçãodebuscarobeloeconse uentementeoracional,re eitaonãosimétrico.

Agostinhotambémenfatiza uenasin rebus fabricatis(nascoisasfabricadas),comonacasadeCassic acodoe emplo,mesmo uandonãoh necessidadedehaversimetriaentreasv riaspartes uecom-p eacasapara uese acasa,e,porconseguintecumpraafunçãodeue todasascasas t m uecumprirpara uese aconsideradacasa,mesmoassim, uandoasimetrianãoest presentenassuasdiversaspartes,esteticamenteessaassimetrianosfere,causainc modoanossavisão.Neste caso,mesmonas coisas fabricadaspelohomem, aondeautilidadedascoisas resumemassuasess ncias,visto ueelassãoa uiloparaafinalidade ueservem,oestéticonãoest necessariamen-teligadoao til,visto uemesmoseumdeterminadoob etocumprirae atafunçãoparao ualfoicriado,podeesteticamenteterumagra-daçãomuitoinferiordebelezadevidoadiminutasimetriaouaoutracategoriaestética.

emanaçãodastr sHip stasesiniciais,enoFil sofoCristãoomundofoicriadoex nihilo,nãoe istindoassimnenhumacontinuidadesubstancialentreocosmosesuafonte(Cf.,Cf.En.,IV, ,17 V,2,1 V,1, V, ,1 4,1 VI,9, ,5-14 Conf.,XIII, ,48 XI,4, 5,7 De Gen. contra

man.,I, ,10).

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2 A

Dianteda import nciadaaequalitas na estéticado sens vel emAgostinho,surgeumanatural uestão:bastaasimetriaestarpresenteemumdeterminadoob etoparaesseserbelo Nacontinuaçãodote tosobanossaan lise,SantoAgostinhonosd aentender uenemtodaasimetriaésumariamenteconsideradabelapornosso u zoestético,mas uandooselementoscomponentesdestasimetriaencontram-seforadeseulugarpr prionãoagradaaonossoolhar,damesmafor-macomoo ueéassimétricoofendeanossavisão,e,porconseguinte,ofendeanossaalma ueéarealportadoradenossossentidos:

Sesefizerumaest tuadeV nuscomasasedeCupidocobertocomummanto, embora isto lhes confiragraçapelaadmir velproporçãoedisposiçãodosmembros,parece ueistorepugnaaos olhos e, através dos olhos, mente ual sãomostradosa ueles sinais da uelas coisas pois os olhos se ofenderiam senãohouvessemovimentoharmonioso(De ord.,II,11, 4).

Segundoo te to supra, seumescultorfizerumapennatam Ve-

nerem (V nus alada) eumCupidinem palliatum (Cupido coberto comummanto),visto ueessasduasest tuasestariamdisformescomasrepresentaç esdessasdivindadesdopanteãoRomano,ofender nossavisãoemente.V nuséumadeusadopanteãoromano,e uivalentenopanteãogregoaAfroditedeusadoamoredabeleza.ArepresentaçãomaiscorrentedeV nuséadeumamulherseminuaounua,cobertaempartedeseucorpoporummanto(Cf.,BRAND O,2009,p.22 -227).OCupidoéigualmenteumdeusdopanteãoRomano, uecorrespondeaodeusgregoEros,odeusdoamor.ArepresentaçãomaiscomumdoCupidoéadeumacriançaaladacomumarcoe echanasmãos(Cf.,BRAND O,2009,p.198-199 RIMA ,1982,p.2 ).Entendemos uediante desses esclarecimentos a ideia do Pensador africano torna-seclara,pois,mesmo uese asimetricamenteproporcionalesculpirumaV nuscomasasasdoCupido,eumCupidocomomantodadeusaV nus,osnossosolhosre eitamtalsimetria,epormeiodenossosolhosanossaalmaconse uentementenãoaaceitar ,oudizendodeoutra

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forma,namedidaem uenossossentidossãoapenasve culosdanos-saalmanaapreensãodomundo,nossaalmanãoaceitaamencionadasimetria.Estasimetriaére eitadaporn s,por ueadespeitodasasasestaremsimetricamentedispostasnascostasdeV nus,asasasnãoes-tãoemseulugarpr prio, ueseriaascostasdoCupido,eomesmofatosed comomantodeV nusnoCupido.Assim,essasimetriacomelementos foradeseu lugarpr prionos repugna,ao invésdegeraradmiraçãoestética.

A simetria sem dúvida alguma, na medida em que é um quali-ficativoestéticocomcertaimport ncianabelezadasformassens veisdo cosmos agostiniano, é bela e demaneira algumapode ser con-sideradafeia. odavia,pelosmotivosanalisadossupra,elanãoéofundamentodabelezasens vel,visto ueessefundamentoteria uedarcontadetodasasformasposs veisdebelezasdocosmos,sememmomentoalgumserconsideradocomumabelezadegraudiminutoeofensivaaonosso ulgamentoestético,comonoe emplodaV nuse doCupido ue citamos. ogo, se a simetria fosse o fundamentodabelezasens velnoPensadordeHipona,tudo ueébelo,paraserbeloteria uepossuirsimetria,ee istemmuitasbelezassens veisemAgostinho uenãoestãonecessariamenteligadas simetria,comoabelezanarelaçãoentrepartesdessemelhantesouabelezadoscon-trastes,pore emplo.

Portanto,alémdessesimpedimentoscitadospara ueasimetriase aofundamentodabeleza,igualmentepesouaconsider velin u-nciaPlotinianaacercadoassuntonacosmologiadeAgostinho.PoisPlotinoe p easuacompreensãoacercadateseest ica,de ueasi-metria ouproporçãodaspartes é o fundamentodabeleza4, em seu 4 randes estudiosos da estética plotiniana concordam em ue asEnéadas I, , trata-se de

umtratadoconstru doemoposiçãoateseest icade ueasimetriaéabelezaessencial(Cf.BA ER,1995,p.77,78 A BEN EInCH E E ,197 ,p.204 DEBR NE,19 ,vol.I,p. 99-401 FERREIRA,2010,p. ). mclaroe emplodasimetriapresentenoestoicismo,podemosencontrarnasTusculanae disputationesdeC cero.MesmosendoC ceroeclético,eportantoterabsolvidooneoplatonismoeoestoicismo,muitopreservoudoestoicismoemseupensamento,deforma ueéposs velperceberacitadateseest icapelosseuste tos.Naobracitada,otribunoromanoafirma ueabelezaest presentenoe uil briosimétricoentreasa dedocorpoeaproporçãodeseusmembros,portando,éasimetriaen uantoe uil brioproporcional uetornaumcorpobelo: Ecomonocorpoaconformaçãoharmoniosadosmembros, acompanhadade certa suavidadede cor énomeadodebeleza, assimnaalmachama-sebelezaauniformidadeeoacordodaideiacomo u zo,emcombinaçãocomumafirmezainatac vel ... (Tusc.,IV, 1).

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primeirotratadoestéticosegundoaordemestabelecidaporPorf rio,elevandoemconsideraçãoaordemcronol gicaoprimeirodetodosostratadosdasEnéadas,aEn.,I, (Cf.BA ER,1995,p.77).Nopresentetratado, Plotino semelhantemente aodi logoHípias Maior de Platão(Cf.Hípias Maior,287d-e),principiaasuainvestigaçãose uestionandoualorealfundamentodabelezasens vel,paracomasuadescobertapassarparabelezasmaiselevadas,comoalguém ueutiliza-sedeumaescadaparaalcançarumlugarmaiselevado.Assimsendo,Plotinoaoe poroproblemaaserinvestigado,igualmentee p eatese ueemsuaépocatornou-secorrente,de ueabelezaconsistenasimetriadaspartes.Ve amosote todasEnéadas:

O ueé ueatraioolhardoespectadorparaosob etosbelosefazcom uesealegrecomasuacontemplação Seencontrarmosacausadisso,talvezpossamosnosservirdelacomoumaescadapara contemplar as outras belezas. uase todomundo afirmaueabelezavis velresultadasimetriadaspartes,umasemre-lação soutraseemrelaçãoaocon unto,e,alémdisso,decertabelezadesuascores(En.,I, ,1,18-24).

Colocadooproblema,Plotino,emtotalcoer nciacomasuateseontol gicadaprocessãodetodasascoisasapartirdoUno,e ue,por-tanto, tudoo ue e istir ter unidade emalgumgrau, e por conse-u ncia,ter asuaestaturaontol gicamedidapelamaioroumenorparticipaçãoontol gicanaunidadeprimordial.Emhip tesealgumapoderia aceitar ue simetria ue consiste em sua compreensão, namultiplicidadedepartes ue se e uivalem em igualdade e empro-porção, poderia ser o fundamento da beleza sens vel.Assim sendo,doravantenotranscorrerdotratadoanalisado,olicopolitanoelencar argumentos ueprovem ueofundamentodabelezasens velnãoéasimetriacomoafirmavamosest icos, ueaconsideravacomoabelezaessencial(Cf.DEBR NE,19 ,vol.I,p. 99).

Desta forma,Plotinoafirma uea tesede ueasimetriaentreasparteséofundamentodabelezasens vel,nãoécapazdesustentarsimesma,visto ueenvolveumaauto-contradição.Pois,seateseeman lisefosseverdadeira,osseressimples,unos,oudizendodeoutromodo, não compostos por partes, não seriambelos por obviamentenãopossu remsimetriadepartes.Contudo,para ueasimetriase a

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de fato bela é necess rio ue seres simples se ambelos, visto ue éimposs vel uedeumasimetriadepartesfeias,sur aumsercompostobelo(Cf.En.,I, ,1,25- 0). ogo,namedidaem uepara ueasimetriase abela,sefaznecess rio ueaspartesunasse amigualmentebelas,asimetriaporsimesmanãogarante uealgose abelo,nãosendoelaofundamentodabeleza.Nopresentecasoanalisadonoargumento,emuesediscutearelaçãoentreaspartesdealgosimétrico,abelezadaspartessimplessãoontologicamenteanteriores belezadocompostosimétrico, pois, como discorremos, esse composto s ser belo sesuaspartesforembelas.Assim,nestecaso,abelezadosimples,tendoumaanterioridadeontol gicaemrelação belezadocomposto, éofundamentodabelezadosimétrico.

Alémdabelezadocompostodepartessimétricas,dependeremdabelezadaunidadeparaserembelos,e istemcoisasnocosmos uesãounos,oumelhor,simplesnosentidodenãocompostosporpartes,uesãoigualmentebelos,comoluzdosol,ascores,orel mpago,etc.,(Cf.En., I, ,1, 0- 5).Essese emploscitadossãobelos,evisto uesãosimples,nãosãobelosgraças simetriadaspartes.Alémdosdoisargumentoscitados,ambosbaseadosnabelezadealgosimples,oli-copolitanocitaoutro, ueemcertoaspectolembraoescritoporSantoAgostinhonoDe ord., II, 11, 4 acercadaV nus alada edoCupidocommanto ue analisamospar grafosatr s,de forma uevaleapenareproduzirofragmentodasEnéadas: Eseénot rio ue uandoumrosto,cu asproporç espermanecemid nticas,mostra-se svezesbelo, svezesfeio,podemosteralgumad vidade ueabelezase aalgomais ueasimetriadessasproporç es,de ueacausadabelezadorostobemproporcionadose aoutra (En.,I, ,1, 5-40).

Naper copecitada,Plotinoargumentatomandocomoe emploorostosimétrico, uemesmoalgosimetricamenteproporcional,podeemalgumascircunst nciasserconsideradofeio.Nocasodoe emploe presso,poder amosespecular ueadespeitodorostodeumade-terminadapessoasersimétrico,comcadapartecorrespondendopro-porcionalmente outra, bastaum estadode esp ritodiferente, umatristeza ual uer,oumesmoumanoitemaldormidapordecorr nciadealgumproblema,para ueessemesmosimétricorosto ueoutroraconsider vamosbelo,setornarfeio.Possibilidadeessa, ueseriaim-poss velseasimetriafosseofundamentodabelezasens vel.

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Diante do até a ui e posto acerca da compreensão acerca dasimetria nas Enéadas I, ,semd vidaalgumaestetratadotevealgu-main u ncianadecisãodeAgostinhoemnãoacatarasimetriacomofundamentodabeleza. odavia,devemosdestacarofatode ueemmomentoalgumnocitadotratadoénegado ueasimetriase adefatobela(Cf.DEBR NE,19 ,vol.I,p. 99),mas ueapenaselanãopodeserpelosmotivoselencadosaess nciadabeleza,e istindoassimalgopelo ualasimetriase abela.EntendimentoessecompartilhadoporAgostinho,pois,paraeleasimetriaéumacategoriaestéticadeelevadaimport ncia,e,portantoserdefatobela,emmomentoalgumelaéde-claradacomoofundamentodabeleza,deforma uecabe uestionar:senãoéasimetriaofundamentodabeleza,o uefazasimetriaeasdemaisbelezasnãosimétricasserembelas Ofundamentodabelezatem uedarcontadasemelhançaesimetriadaspartes,bemcomodonãosemelhante,doassimétrico,dodesproporcional,emsumaofun-damentodabelezasens veltem uecontemplarasentidadesc smicasconsideradasdespidasdebelezasegundoosmani ueus.

A OS INHO,Santo.Sobreo nesis, contraosmani ueus. In:Comentário

ao Gênesis. rad.deAgustinhoBelmonte.SãoPaulo:Paulus,2005.p.499-591(ColeçãoPatr stica,n.21).

.Confissões. 5.ed. rad.deMaria uiza ardimAmarante.SãoPaulo:Paulinas,1984.418p.

. A ordem. rad.deAgustinhoBelmonte.SãoPaulo:Paulus,2008.(Co-leçãoPatr stica,n.24).A S IN,San. am sica. In:Obras completas de San Agustín. ed.biling e.rad. introd. notas de Alfonso Ortega. Madrid: a Editorial Cat lica /BAC,1988.tomoXXXIX,p.49- 1.

.Delorden.In:Obras completas de San Agustín. .ed.bil ng e. rad.in-trod. notasdeVictorinoCapanaga.Madrid: aEditorialCat lica /BAC,1994.tomoI,p.587-772.A BEN E, Pierre. Plotino e oNeoplatonismo. In: CH E E , François(org.). istória da filosofia:ideias,doutrinas. rad.deMaria osédeAlmeida.Riode aneiro: ahar,197 .v.1.p.199-214.

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R E B M R N C

BA ER,Ra mond.História da estética. rad.de oséSaramago. isboa:Edito-rialEstampa,1995.459p.BRAND O, unitodeSouza.Mitologia grega. Petr polis:Vozes,2009.Vol.I,4 5p.C CERONE.Le Tusculane. ediçãobil ng e atimItaliano. raduzioneCh. a-bre.Milano:ArnoldeMondadoriEditori,19 2.DEBR NE Edgar. istoria de la est tica: laantiguedad riega Romana.rad.deArmandoSuarez.Madrid: aEditorialCat lica/BAC,19 .tomoI,48 p.FERREIRA,AnaRitadeAlmeidaAra oFrancisco.Dobelo:aestéticaaugus-tinianavista luzdasEnéadas.Revista Signum. isboa,v.11,n.1,2010,p. -25.RIMA ,Pierre.A mitologia grega. rad.deCarlosNelsonCoutinho.SãoPau-lo:Brasiliense,1982.122p.Platão.H piasmaior. In: latão:di logosII. rad.deEdsonBini.SãoPaulo:Edipro,2007.p.2 1-270.P O INO. Enéadas. Introducciones, traducciones notasde es sIgal.Ma-drid:Editorial redos,1982.liv.I,IV,V,VI.SARAIVA,F.R.dosSantos.Dicionário Latino – Potugês.BeloHorizonte: ivra-ria arnier,200 .1.297p.

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Considerações sobre problemas éticos

em Pedro Abelardo: Comentários à Epístola

de Paulo aos Romanos e a Ética

Pedro Rodolfo Fernandes da Silva

Universidade Federal de São Carlos

Frequentemente os trabalhos dos pensadores medievais eram retomados para revisões, correções, ampliações e, muitas vezes, rees-critos em parte ou até integralmente, recebendo ou não novos títulos. Consequentemente, questões, problemas e conceitos eram também re-tomados, revisados, ampliados ou mesmo substituídos. Nesse sentido, ao escrever a obra Comentários à Epístola de Paulo aos Romanos (Commen-

taria in Epistolam Pauli ad Romanos)1, provavelmente entre 1133-1137, Abelardo reservara para uma obra futura algumas ideias e um con-teúdo mínimo que seriam tratados na sua obra Ética (Ethica) 2, escrita provavelmente entre 1138-1139.

Dessemodo,oquesepretendeverificarécomoAbelardoreto-mou na Ética os problemas apresentados nas três passagens dos Co-

mentários. A primeira passagem expõe o problema da relação da graça divina e dos méritos humanos3; a segunda passagem é sobre o dever de amar o próximo mesmo que ele esteja no inferno ou destinado à

1 ABAELARDUS, Petrus. Commentaria in Epistolam Pauli ad Romanos. Corpus Christianorum Continuatio Mediaevalis, 1969. Para essa obra, as referências indicarão as páginas e as linhas.

2 ABAELARDUS, Petrus. Scito te ipsum. Corpus Christianorum Continuatio Mediaevalis, 2001. Dessa obra, serão referenciados o livro, o parágrafo e as linhas.

3 ABAELARDUS, 1969, p. 126, lin. 124-141.

Carvalho, M.; Hofmeister Pich, R.; Oliveira da Silva, M. A.; Oliveira, C. E. Filosofia Medieval. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 129-142, 2015.

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condenação4. Na terceira passagem Abelardo discute a propósito da oraçãodeCristoaoPaipeloperdãodos ueocrucificaram,ouse a,o problema de como pode ser perdoado aquele a quem não pode ser imputada culpa por causa da reta consciência com a qual agiu5.

A

Com relação à obra Comentários, há três manuscritos e três edi-ções. Os três manuscritos são: (A) Angers, Public Library, do século XII; (O) Oxford, Balliol College, datado do século XIV; e o (R) Vatica-nus Reginensis latinus, que consiste originalmente de quatro distintos manuscritos,todosdofinaldoséculoXIIouin ciodoXIII.Haviaaindao manuscrito do Monte São Michel, o qual se encontra perdido e no ual as ediç es forambaseadas.H tr s ediç es completas, asduas

últimas dependem unicamente da primeira. São eles: 1) A. Duchesne; 2) J.P. Migne e 3) V. Cosin6.

Quanto à organização da obra, esta se divide em prólogo e qua-tro livros. aldivisãodos livrosébastanteartificial se comparada divisão moderna da Carta aos Romanos. Assim se estruturam os Co-mentários: Prólogo; Livro I no qual discute as passagens Romanos I, 1 a III, 18; Livro II, no qual discute Romanos III, 19 a VI, 18; Livro III, dis-cute Romanos VI, 19 a IX, 5 e Livro IV, discute Romanos IX, 6 a XVI, 27.

Os Comentários de Abelardo são uma interpretação literal da Car-ta aos Romanos, como foi entendido na época, mas com certas ques-tões teológicas ou teológico-exegéticas intercaladas, de modo que a originalidade dos Comentários reside mais nas questões inseridas do que na sua própria exegese.

A obra Comentários tem dois grandes temas: 1) a exaltação da graça divina, em detrimento do mérito humano, a qual é recorrente-mente lembrada por Abelardo no prólogo7, mas também ao longo de todo texto, de modo a alertar para o perigo do homem se vangloriar de suas obras; 2) o serviço a Deus por amor e não por temor8.4 ABAELARDUS, 1969, p. 293, lin. 239-246.5 ABAELARDUS, 1969, p. 307, lin. 341-348.6 Cf. BUYTAERT, 1969, p. 03-16.7 ABAELARDUS, 1969, p. 43, lin. 79-95.8 Nondicosimpliciteromnibus uisuntRomae,tamfidelibusscilicet uaminfidelibus,

tam electis quam reprobis: sed his tantum qui per conversionem suam jam amicitiam cum Deo inierunt, subjecti jam ei more Christianorum, id est ex amore potius quam timore...” ABAE-LARDUS, 1969, p. 59, lin.422-26. O tema do serviço por amor é tratado, sobretudo, no livro III.

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AC P A :C E P R

As autoridades que guiam Abelardo nesse trabalho exegético são,sobretudo,Agostinho,Or genes, er nimo,Ha modeAu erreeSanto Ambrósio. Porém, se forem relacionados os legítimos autores aoste toscitados,ase u nciaéentão:Agostinho,Or genes,Ha modeAu erre,Ambrosiastroe er nimo,comAmbr sioficandoatr sen-tre as menores autoridades que, de acordo com a frequência na qual ele aparece, são: João Diácono, Teodoro de Cantuária, Gregório Magno e Isidoro, Boécio, Ambrósio e Fulgêncio, seguido por uma dúzia de autores eclesiásticos os quais normalmente não são citados mais que uma vez. Alguns escritores pagãos também são citados, como Cícero, Hor cio, uvenal, ucan,Ov dio,Platão, uintiliano, er ncio,Virg -lio, implicitamente Aristóteles e Macróbio9.

No Prólogo dos Comentários, Abelardo explica que o Novo Tes-tamento, depois da publicação dos Evangelhos, inclui necessariamente a Carta de São Paulo aos Romanos porque esta, como os Evangelhos, ensina o que é necessário para a salvação10. Discute também o motivo da conversão dos romanos. Apresenta ainda as razões pelas quais a Car-ta aos Romanos, embora cronologicamente não seja a mais antiga carta dePaulo,foicolocadaemprimeironaescritura efinalmenteAbelardoindica que a Epístola foi escrita em Corinto e encaminhada a Roma por meio de Febe.

Os livros seguem rigorosamente o texto da Carta, mas são fre-quentemente interrompidos por questões cujas respostas normalmen-te são dadas imediatamente, à exceção daquelas questões cuja solu-ção Abelardo remete a outros trabalhos, alguns dos quais ainda não tinham sido escritos. Essas questões revelam que problemas teológicos ocupavam a mente de Abelardo no momento da redação dos Comentá-

rios, ou seja, mostra que o autor estava ativamente preparando a Suma da Sagrada Doutrina, anunciado no prólogo da Theologia Scholarium (1133-1137). Adotando-se o próprio esquema de Abelardo de dividir a teologia em questões relativas à fé, à caridade e aos sacramentos, os Comentários podem ser organizados como segue: Livro I – Introdução

9 Cf. BUYTAERT, 1969, p. 17.10 “Cum itaque, ut dictum est, evangeliorum intentio sit ea quae sunt saluti necessaria nos

docere, hanc intentionem epistolae tenent ut ad obediendum evangelicae doctrinae nos mo-veantvelnonnullaetiamadamplificandamueltutiusmuniendamsalutemtradant .ABE-LARD, 1969, p. 43, lin. 79-83.

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geral; Livro II – Questões sobre a fé (Deus, Cristo, redenção); Livro III – Questões sobre a caridade e Livro IV – Questões sobre os sacramentos.

Como mencionado, em três passagens dos Comentários Abelardo se refere à Ética que provavelmente estaria em fase de planejamento. Os assuntos anunciados pelos Comentários nessas três passagens são efeti-vamente tratados na Ética, o que implica dizer que Abelardo tinha em mente problemas teológicos que abordou concomitantemente na Theo-

logia Scholarium, nos Comentários, e na Ética. Disso tem-se que as obras de Abelardo podem ser divididas em duas grandes fases: a primeira de teormaisl gico-filos ficoeasegundadeteormaisfilos fico-teol gico,no sentido de uma explanação da doutrina cristã. Nesse segundo perío-do incluem-se os Comentários, a Theologia Scholarium e a Ética.

A conclusão aparentemente lógica dos estudiosos foi que Abelar-do escreveu as obras em questão na seguinte ordem: Theologia Schola-

rium I-II, Comentários, Theologia Scholarium III e Ética. Mais tarde, quan-do se descobriu que a Theologia Scholarium tinha diferentes redações, e que as duas primeiras redações não tem uma divisão em livros, a conclusãodosautoresfoimodificadaparaafirmar ueosComentários foram escritos na época da terceira redação da Theologia Scholarium, após a composição dos livros I e II, mas antes que o livro III.

Quanto a Ética, esta possivelmente foi pensada para ser parte da Suma da Sagrada Doutrina, sobretudo da sua principal seção sobre a ca-ridade. Possivelmente ela era somente preparatória para a elaboração de tal seção. De igual modo, a Tropologia e a Antropologia, das quais Abelar-do fala nos Comentários, eram seções da Suma, por exemplo, da segunda ou terceira subdivisão da seção principal sobre a fé. Não são poucas as dificuldadesencontradaspelospes uisadores uantoaoestabelecimen-to das datações das obras de Abelardo, sobretudo porque, como já men-cionado, elas recebiam mais de uma redação ou então não eram escritas de uma só vez. Sem pretender avançar nesse tema, o que parece bastante razoável é tomar como ponto de partida que os Comentários foram escri-tos antes da Ética, inclusive porque Abelardo faz remissão à segunda na primeira obra, e entender que a maior parte da Theologia Scholarium foi escrita concomitantemente à redação dos Comentários enquanto parte de um projeto maior, qual seja, a redação da sacrae eruditionis summa, quase

diuinae Scripturae introductio, a pedido de seus alunos.

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Por que Abelardo deixa para tratar na Ética as questões anterior-mentemencionadas Abelardomesmo afirma ue tais uest es sãopertinentes à Ética e isso já se constitui numa resposta. Mas, além dis-so, tais questões implicam em discutir aquilo que é o cerne da ética abelardiana: a intencionalidade. Dessa forma, somente na obra Ética Abelardo estabelece a intencionalidade como fundamento da moral de modo que, então, a partir disso, poderá responder aos problemas apre-sentados. A julgar correta tal compreensão, pode-se também inferir que, como Abelardo tinha o projeto de escrever uma suma da doutrina sagrada da qual fariam parte os Comentários, a Theologia Scholarium e também a Ética, então a intencionalidade é também um dos fundamen-tos de sua leitura teológica.

A

A primeira remissão que os Comentários fazem à Ética encontra--se no livro II, o qual trata da fé, na passagem em que apresenta a discussão sobre a graça de Deus e os méritos humanos11, questionando quais são nossos méritos junto a Deus quando todos os bens devem ser atribuídos à graça dele, que em nós opera o querer e o fazer conforme a boa vontade, como testemunha o próprio Apóstolo Paulo12. Assim, questiona em que consiste o mérito humano, a saber, se apenas na von-tade ou também na ação. Segue perguntando a partir de três orações subordinadas interrogativas indiretas introduzidas por um “utrum”: 1) seacasoavirtudeparaabeatitudeésuficientemesmo uenãosereali-ze em ação; 2) se acaso a obra exterior, que segue a boa ou má vontade, 11 ABAELARDUS, 1969, p. 126, lin. 124-141: “Quaestio de gratia Dei et meritis hominum hoc loco

se ingerit, quae sint apud Deum uidelicet merita nostra, cum omnia bona eius tantum gratiae tribuenda sunt, qui in nobis operatur, eodema estanteApostolo, et uelle et perficere pro bona uoluntate. Unde et alibi ait: Quid autem habes quod non accepisti? Si autem accepisti, quid gloriaris

quasi non acceperis? Quaerendum etiam in quo merita nostra consistant, in uoluntate uidelicet tantum an etiam in operatione, id est quid ad gloriam siue poenam Deus in nobis remuneret; et utrumuirtusadbeatitudinemsu ciatetiamsiinoperationemnonprorumpat etutrumopusexterius quod bonam uel malam uoluntatem sequitur, meritum augeat; et cum omnis uirtus sit animi et in ipso fundata consistat, utrum omne peccatum similiter animi sit; et quid inter uitiumanimietpeccatumdi eratet uotmodispeccatumdicatur -Sed uiahocma imeadethicampertinetconsiderationem,etdiutiusinhisdefiniendisimmorandumesset uambreuitas expositionis postulat, nostrae id Ethicae discussioni reseruemus”.

12 1 Fil. 2,13.

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aumenta o mérito; 3) como toda virtude está na alma e nela consiste, se acaso de modo semelhante todo pecado é da alma, ao qual acrescenta 3.1) o que há de semelhante entre vício da alma e pecado; 3.2) o que difere vício da alma e pecado e 3.3) de quantos modos se diz pecado.

Apesar de ter sido acusado de pelagianismo por Bernardo, tam-bém para Abelardo a graça divina é a única garantia da salvação. Desse modo, como Deus distribui igualmente as graças13, da parte do homem o que conta não são as obras, mas a intenção que o guia na execução da obra. Entende o Palatino que ninguém age bem sem a graça14 e é justamente a partir dessa convicção que ele interpreta o texto em que o ap stoloPaulo,citandoMala uias1,2- -passagemna ualDeusafir-materamado ac eodiadoEsa –levantaumadificuldadecombasena ideia de que Deus porque não predestinou Esaú, julgou-o digno de ódio, antes mesmo de que fosse capaz de merecer alguma graça. Assim, Esaú não seria culpado de ser mau já que Deus não estava disposto a dar-lhe a graça pela qual ele teria sido capaz de agir corretamente15.

A dificuldade surge ustamente por ue Abelardo entende uegraça é necessária para a ação correta. Assim, por sua própria vontade e não pelos méritos humanos, Deus escolhe os que se salvam. E esse poder de escolha não é arbitrário porque não causa injustiça, antes, Deus tira bom proveito até mesmo da ação má, como é o caso da traição de Judas.

Portanto, a graça é oferecida igualmente a bons e maus, porém, enquanto os primeiros a aceitam, os últimos a rejeitam. Mas, parece que para que estes últimos a aceitem, a graça já se faz necessária, como no caso de um médico que oferece o remédio ao doente que por suas próprias forças é incapaz de ingeri-lo, dependendo, portanto, do auxí-lio do médico para que tome do medicamento16.Assim,Abelardoafir-ma que não é necessário que Deus ofereça nova graça para cada boa ação, de modo que não há nenhuma maneira pela qual alguém possa fazer o bem ou desejá-lo sem o dom prévio da graça divina17. Ao que

13 ABAELARDUS, 1969, p. 242, lin. 343-361.14 ABAELARDUS, 1969, p. 234, lin. 85-88.15 ABAELARDUS, 1969, p. 235, lin. 117-144.16 Cf. ABAELARDUS, 1969, p. 240, lin. 287-300.17 ABAELARDUS, 1969, p. 240-241, lin. 301-307: “Dicimus itaque non esse necessarium in

singulis bonis operibus nouam nobis gratiam a Deo impertiri, ut nequaquam scilicet bona operari uel uelle possimus sine nouo diuinae gratiae praeeunte dono; sede saepe, Deo ae-quale gratiae suae donum aliquibus distribuente, non eos tamen aequaliter operari contingit, immo saepe eum minus operari qui plus gratiae ad operandum susceperit”.

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parece,umavez recebidaagraça, estanãoesgotaa suaefic cia emuma única boa ação.

De fato, para Abelardo, a única graça que Deus tem de conce-der previamente é a revelação da beatitude prometida e os meios para alcançá-la18. Por meio de tal graça, oferecida a bons e maus, estes sãos instruídos para a prática do bem, de modo que a partir da mesma gra-ça recebida, um é incitado às boas obras e outro é tornado imperdoável por sua negligência. Assim, enquanto nos eleitos a graça da fé é tor-nada ativa pelo amor, nos réprobos ela se torna inerte e não dispõe o indivíduo a antepor a vontade de Deus a sua própria.

Quanto à analogia estabelecida anteriormente sobre a graça de Deus como um médico que embora disponha o medicamento ao pa-ciente,estenãotemforçassuficientesparatom -loporsimesmo,Abe-lardo entende que a graça da fé, ponto de partida para todas as demais graças, é uma oferta divina de um bem que temos o poder de aceitar, ou seja, por mais debilitado que esteja o doente, a aceitação ou não do remédio que lhe é oferecido estará sempre sob seu arbítrio.

Na Ética, Abelardo apresenta e discute o problema do mérito humano em várias passagens19. Em todas elas, porém, o fundamento da tese de Abelardo é a de que o mérito humano consiste na intenção de antepor a vontade de Deus a nossa própria vontade20. Ainda, para Abelardo a realização das obras não tem nenhuma relação com o mé-rito, como a doação de uma esmola ao pobre se a caridade já dispôs a isso. De igual modo, uma vez que há a intenção de tal ato, mesmo que algo impeça de concretizá-lo, em nada diminui o mérito21, pois, com efeito, as obras que convém ou não fazer igualmente são realizadas 18 ABAELARDUS, 1969, p. 242, lin. 343-350: “Ad desiderium itaque nostrum in Deo accen-

dendum et ad regnum caeleste concupiscendum, quam praeire gratiam necesse est, nisi ut beatitudo illa ad quam nos inuitat et uia qua peruenire possimus exponatur atque credatur? Hancautemgratiam tamreprobis ipse uamelectispariter impertit,utros ue scilicetadhocae ualiterinstruendo,ute eademfideigratia uamperceperunt,aliusadbonaoperaincitetur, alius per torporis sui negligentiam inexcusabilis reddatur”.

19 ABAELARDUS, 2001, I, §8, lin. 192-198; I, §13, lin. 371-377; I, §16, lin. 457-460; I, §17, lin. 470-473.20 ABAELARDUS, 2001, I, §8, lin. 194-197: “Cum uero uoluntatem eius nostre preponimus, ut

illius pocius quam nostram sequamur, magnum apud eum meritum obtinemus, iuxta illam ueritatis perfectionem: Non ueni facere uoluntatem meam, set uoluntatem eius, qui misit me”.

21 ABAELARDUS, 2001, I, §16, lin. 457-460: “Nichil quippe ad meritum refert, utrum elemosi-nam indigenti tribuas. Et te paratum tribuere caritas faciat et presto sit uoluntas, cum desit facultas, nec in te remaneat facere quod potes, quocumque prepediaris casu”.

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por homens bons ou maus, separados apenas pela intenção, pois Deus pesa antes o espírito que a ação na remuneração, nem a ação acrescenta coisa alguma ao mérito, quer venha de uma vontade boa ou má. Dessa forma, uanto s uest es1(seacasoavirtudeparaabeatitudeésufi-ciente mesmo que não se realize em ação) e 2 (se acaso a obra exterior aumentaomérito),paraAbelardoaretaintençãoéumavirtudesufi-ciente para a beatitude mesmo que não se concretize em ação, pois as ações são moralmente indiferentes, nada acrescentando ou diminuin-do ao mérito humano.

Com relação à questão 3 (se todo pecado é da alma), Abelardo definepecadocomooconsentimentono uenãoconvémepelo uea alma se faz merecedora de condenação ou ré perante Deus22. O con-sentimento no que não convém torna a alma culpada porque despre-za e ofende a Deus, os quais são os únicos meios pelos quais se pode ofendê-lo, pois ele é o sumo poder que não pode ser diminuído por nenhum dano. Assim, o pecado é da alma que consente no que não convém de modo a ofender ou desprezar Deus.

Em se tratando de vício da alma e pecado da alma, questões 3.1 e .2,Abelardoafirma uealémdosv ciosdaalma,h muitosoutrosque não se referem à moralidade, portanto, não tornam a vida humana nem mais, nem menos digna de louvor, ou seja, são moralmente indi-ferentes. E por isso tais vícios são comuns a bons e maus, como o em-botamento do espírito ou a velocidade de engenho, ser desmemoriado ou ter boa memória, a ignorância ou a ciência. A isso acrescenta que os vícios da alma são aqueles que nos tornam propensos às más obras, ou seja, que inclinam a vontade para algo que não convém ser feito. Desse modo, Abelardo não considera a possibilidade de que em alguma me-didacertosv ciosoubensdocorpopossamfavoreceroudificultaravivência moral23, pois o critério do qual se utiliza aqui é de que se são comuns a bons e maus, não pertencem à composição dos costumes mo-rais24. Assim, nesse ponto, Abelardo estabelece que os vícios da alma

22 ABAE ARD S,2001, I, , lin.58- 0: Huncueroconsensumpropriepeccatumnomina-mus, hoc est culpam anime, qua dampnacionem meretur, uel apud deum rea statuitur”.

23 Essa cisão entre vícios e bens do corpo e vícios e virtudes da alma, parece remeter a concep-ção ética de Abelardo mais ao modelo ético estoico do que ao aristotélico, o que parece bas-tante plausível uma vez que Cícero e, sobretudo Sêneca, são modelos de heróis da virtude para Abelardo. Além disso, o Palatino não conheceu os tratados éticos de Aristóteles.

24 ABAELARDUS, 2001, I, §1, lin. 14-16. “Quae quidem omnia, cum eque reprobis ut bonis conue-niant,nichiladmorumcompositionempertinentnecturpemuelhonestame ciuntuitam .

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pertencem à moral, distinguindo-os dos vícios do corpo cuja aprecia-çãonãointeressaaotratadoético.Porfim,osv ciosdaalmasãodefini-dos em função do fato de que nos tornam propensos às más obras, isto é, exercem sobre a vontade algum tipo de poder de modo a conduzi-la para algo que pouco convém ser feito. Por oposição, os vícios do corpo não agem sobre a vontade e pertencem igualmente a bons e maus, ou seja, são relativos à compleição física e moralmente indiferentes25.

Segundo Abelardo, vício da alma não é o mesmo que pecado e nem este o mesmo que ação má. O vício está na alma, como, por exem-plo, a ira que inclina impetuosa e irracionalmente a mente a executar algo que pouco convém, mesmo quando não é movido à ira, tal como a claudicação do qual se diz a pessoa claudicante, mesmo que não anda claudicando, porque o vício está presente ainda que a ação esteja au-sente26. Assim, o vício está presente não só quando em ato, mas uma vez adquirido, permanece em potência na alma inclinando-a ao que não convém. Portanto, muitos pela própria natureza ou compleição corporal tornam-se propensos à luxúria e à ira, mas nem por isso pecam porque são de tal modo, senão que nessa sua natureza encontram matéria de luta e uma vez vencendo a si mesmos, recebem o mérito pela vitória.

Quanto à questão 3.3, de quantos modos se diz pecado, Abelardo afirma ueopecadosedizdediversosmodos27, porém, propriamente, entende-se por pecado a aversão a Deus ou o consentimento no mal. Diz-se também pecado: 1) a vítima pelo pecado, segundo o qual Je-sus se fez pecado pela salvação dos homens; 2) o castigo do pecado se chama pecado ou maldição, segundo o que se perdoa o pecado, isto é, se perdoa a pena, como no sentido em que se diz que Jesus carregou os pecados da humanidade, isto é, a pena dos pecados, ou suportou as que deles provinham; 3) o pecado original, ou que todos pecaram em Adão, é como se dissesse que do pecado dele tenha sobrevindo a

25 ABAELARDUS, 2001, I, §3, lin. 51-7. “Non enim homini seruire set uicio turpe est, nec corpo-ralis seruitus set uiciorum subiectio animam deturpat. Quicquid enim bonis pariter et malis commune est, nichil ad uirtutem uel uicium refert. Vicium itaque est, quo ad peccandum pronie cimur,hocestinclinamuradconsenciendumei, uodnonconuenit,utilludscilicetfaciamusautdimi amus .

26 ABAE ARD S,2001,I, 2,lin.2 - 0: Hocautemuiciuminanimaest,utuidelicetfacilissitad irascendum, eciam cum non commouetur ad iram, sicut claudicacio, unde claudus dicitur homo, in ipso est, eciam quando non ambulat claudicando, quia uicium adest, eciam cum actio deest”.

27 Sobre os modos de se dizer pecado, cf: ABAELARDUS, 2001, I, §38, lin. 966-1165.

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origem de nossa pena ou a sentença de condenação. Igualmente, as 4) obras do pecado às vezes se dizem pecado, ou porque não se sabe reta-mente ou porque se quer; 5) dize-se ainda que se peca por ignorância, isto é, entende-se como pecar o que não convém fazer não na aversão, mas na obra.

Abelardoaindaafirma uesecometepecadodetr smodos28: pela sugestão, pela deleitação e pelo consentimento, como aconteceu aos pri-meiros viventes. De fato, primeiro foi a persuasão do demônio quando prometeu a imortalidade por meio do provar o fruto proibido; depois a deleitação, quando a mulher, vendo o fruto entendeu-o agradável para comer,in amando-sedeseudese o,eporfimoconsentimentointeriorpelo qual a mulher se dispôs interiormente a provar do fruto.

A

A segunda passagem dos Comentários29 remissiva à Ética insere--se no Livro IV, Questões sobre os Sacramentos, no contexto em que Abelardo discute sobre o dever de caridade para com o próximo ainda ueeleeste adestinado condenação.CitandoAgostinho,afirmaAbe-

lardo: “Tenha caridade e faz o que quiseres30”, apontando o contexto no qual o problema da prescrição da lei e da intenção deve ser pensa-do. Portanto, a discussão é sobre saber se a caridade está na intenção ou na própria ação.

Assim, na Ética31,ap safirmar ueopecadonãoconsistenaação,mas sim na intenção e no consentimento que o antecede – argumen-

28 ABAELARDUS, 2001, I, 21, lin. 556-560: “Cum ergo dicimus peccatum uel temptacionem tri-bus modis peragi: suggestione scilicet delectacione consensu, ita est intelligendum, quod ad operacionem peccati per hec tria frequenter deducimur, sicut in primis contigit parentibus”.

29 ABAE ARD S,19 9,p.29 ,lin2 9-24 : SeddicisilludAugustini: Habecaritatemetfacuid uiduis ,etrecordarisilludHieron mi: Caritasmensuramnonhabet . ndesaepeca-ritasmodumnositae cederecompellit,utfieriuelimus uodfierine ua uambonumestautiustum,etecontrarionollefieri uodfieribonumest,sicutinterficisanctosuela igi,quae etiam eis cooperantur in bonum.- Sed hanc Ethicae nostrae reseruamus discussionem”.

30 Habe caritatem et fac quidquid uis. ABAELARDUS, 1969, p. 293, lin. 239.31 ABAELARDUS, 2001, I, §16, lin. 445-454: “... ita nec prohibicio de opere, set de consensu est

accipienda, ut uidelicet, cum dicitur: ‘Nec facias hoc uel illud’, tale sit ‘ne consencias in hoc uel in illo faciendo’, ac si dicatur ‘ne scienter hoc presumas’. Quod et beatus diligenter considerans Augustinus omne preceptum uel prohibicionem ad caritatem uel cupiditatem pocius quam ad opera reducens ait: “Nichil precipit lex nisi caritatem et nichil prohibet nisi cupiditatem”.

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tando que quando a lei mosaica determina uma série de proibições, proíbe não a obra, mas o consentir na obra - conclui citando Agostinho segundo o qual ‘a lei nada preceitua a não ser a caridade e nada proíbe, a não ser o apetite’32. Portanto, para Abelardo, as obras que convém ou não fazer, igualmente são realizadas por bons ou maus, separados apenaspelaintenção,como,pore emplo,nacrucificaçãode esus.Aentrega do Filho foi feita por Deus Pai, foi feita também pelo Filho, como foi feita pelo traidor, quando o Pai entregou o Filho e o Filho a si mesmo, e Judas ao Mestre. Fez, pois, o traidor o mesmo que Deus, mas por acaso fez bem? De fato, fez o bem, mas não de modo bom33. Portanto, Deus não pesa as coisas que se fazem, mas o espírito com que se fazem; nem o mérito do que age está na obra, mas na intenção, pois, frequentemente faz-se o mesmo por diversas pessoas, por justiça de um e perversidade de outro, como dois homens que condenam à forca um réu: o primeiro pelo zelo de justiça e o outro por ódio de antiga inimizade. Embora pratiquem a mesma ação, entretanto, pela diversi-dade de intenções no mesmo ato, faz-se o mal e o bem.

A citação de Agostinho (Tenha caridade e faz o que quiseres) usada por Abelardo nos Comentários para dar a tônica pela qual en-fatiza que a caridade está na intenção e não na ação, surge na Ética34 no contexto em que Abelardo questiona por que se pune mais a ação dopecadodo ueaessemesmo.Napassagem,afirmaAbelardo uealguns se incomodam muito ao ouvir que não se pode chamar propria-mente de pecado a operação de pecado, ou que esta não aumenta em nada o pecado.

Isso porque os homens não julgam as coisas ocultas, mas somen-te as manifestas e por isso não pesam tanto a intenção quanto o efeito da ação. Só Deus, que não pesa o que se faz, mas o espírito com que se faz, avalia com veracidade a intenção e por isso dele se diz ‘perscru-tador do coração e dos rins35’e aquele que ‘vê o escondido36’. Vê clara-mente onde ninguém vê; ao punir o pecado, não pesa a operação, mas 32 Cf. AUGUSTINE, De doctrina christiana, iii. 10, n. 15 (CCL 32, p. 87, ou PL 34.71).33 ABAE ARD S,2001,I, 17,lin.4 7-471: Cumetpaterfiliumtradiditetfiliusseipsum,ut

apostolus meminit, et Iudas magistrum, fecit ergo proditor, quod et deus fecit. Set numquid ideo bene fecit? Aut si bonum, non utique bene uel, quod ei prodesse debuerit”.

34 ABAELARDUS, 2001, I, §24, lin. 649 – I, §26, lin. 698.35 Jer. XX, 1236 Mat. VI, 4

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o espírito, ao passo que os homens, ao inverso, pesam não o espírito que não veem, mas a operação que conhecem. Por isso, frequentemen-te, por erro ou por coação da lei, punem-se os inocentes ou absolvem--se os culpados37.

N

Na terceira passagem38, o contexto em que Abelardo faz remis-são à Ética é a propósito do perdão daqueles a quem não pode ser imputada culpa por causa da reta consciência com a qual agiram, ou em outras palavras, questiona-se se pode haver pecado senão contra a consciência. Pergunta Abelardo: onde a culpa não precedeu, o que é necessário ser perdoado? Com efeito, se a ignorância ou ainda a fé des-culpa completamente de culpa aquele que erra, os judeus ou gentios ou uais uerinfiéisnãoserãocondenadosporsuainfidelidade uan-docadaum ulgaserfielasuafé,pois, uemespontaneamentepersisteem sua fé a qual acredita errônea, ou escolhe para si a pior parte?

Assim, na Ética, Abelardo reserva uma passagem para discutir sobre o pecado contra a consciência39 na qual pergunta se os perse-guidores dos mártires e de Cristo pecaram ao fazer o que acreditavam ser agradável a Deus, ou se eles poderiam, sem pecado, abandonar o ueelespensavam uenãopoderiaserdefinitivamenteabandonado.

De acordo com a descrição de pecado como desprezo de Deus ou co-sentimento naquilo que não convém, responde Abelardo que não se pode dizer que eles pecaram nisto, nem que a ignorância fosse pecado oumesmoainfidelidade,pela ualninguémnãopodesersalvo.Nãopecaram porque não agiram contra a própria consciência a qual não entendia como desprezo de Deus ou consentimento no que não con-vém o ato de perseguir os mártires e o próprio Cristo.

37 ABAELARDUS, 2001, p. § 25, lin. 689-694.38 ABAELARDUS, 1969, p. 307, lin. 341 – 347: “Ubi enim culpa non praecessit, quid est opus

ignosci Sienimignorantiaueletiamfideierrore cusetpenitusaculpa,undeIudaeiuelgentilesaut uilibet infidelesde infidelitatesuadamnandisunt, cumunus uis uefidemsuamrectamesseputet uisenimsponteineapersistatfide uamerroneamcredat,autsibi partem eligat deteriorem? De talibus tamen Veritas ait: Qui non credit, iam iudicatus est. - Sed huius rei discussionem Ethicae nostrae reseruamus”

39 ABAELARDUS, 2001, I, 37, lin. 941-964.

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Da mesma forma, aqueles que não conhecem Cristo e, portanto, rejeitam a fé cristã porque a creem contrária a Deus, e acreditam fa-zer isso por causa de Deus, portanto, julgam que fazem o bem. Nesse mesmo sentido, diz o Apóstolo: se nosso coração não nos repreende, temosconfiançaparanosdirigirmosaDeus40. Como se dissesse: onde nós não presumimos contra nossa consciência, nosso medo de ser jul-gado culpado diante de Deus é infundado. Igualmente, a ignorância não deve ser imputada pecado, como, por exemplo, no caso em que oSenhororoupelos ueo crucificavamdizendo: Pai, perdoai-lhes,pois eles não sabem o que fazem41’, ou ainda Estevão, instruído por este exemplo, dizia ao orar por aqueles que o apedrejavam: ‘Senhor, não lhes impute esse pecado42’. Assim, parece não haver necessidade de perdoar onde não houve culpa, e a culpa só pode advir do pecado praticado contra a consciência.

Abelardoconsidera uearetaconsci nciaérazãosuficienteparadesculpar alguém de pecado, o que se mostra coerente com a tese de que o pecado é o consentimento no que não convém e o desprezo a Deus. Portanto, a única forma pela qual o pecado se realiza é pela dis-posição interior do indivíduo em pecar consciente de que assim age.

Em três passagens dos Comentários Abelardo apresenta temas que permearam boa parte da obra Ética, na qual tais questões foram discutidas, revisadas e ampliadas, o que revela, entre outras coisas, que o Palatino tinha em mente a elaboração de uma suma que servisse aos seus alunos como introdução ao estudo da sagrada escritura.

O que há de comum entre as passagens remissivas e o texto da Ética é que para Abelardo toda a discussão ética deve partir do pres-suposto de que a intencionalidade do agente fundamenta o agir ético. Assim, o mérito humano só pode residir na intenção e jamais na obra, pois estas são moralmente indiferentes. O pecado, por sua vez, tam-bém se encontra na alma que consente no que não convém de modo a ofender ou desprezar Deus, diferentemente do vício que não é pecado, 40 I Jo. III, 21.41 Luc. XXIII, 3442 At. VII, 59

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P R F S

pois está no homem enquanto o inclina a consentir no que não convém e se constitui em inclinação contra a qual se deve lutar.

A caridade, pela qual intencionamos antepor a vontade de Deus a nossa, por sua vez, deve ser o critério pelo qual devemos agir e julgar as ações, pois a caridade, como a intencionalidade, é da esfera interior, pessoal, subjetiva, de modo que somente Deus e o indivíduo podem conhecê-la. Consequentemente, não há pecado senão contra a consci-ência, pois é a partir dela que o indivíduo se dispõe, pela intencionali-dade, a agir praticando a caridade ou contra a caridade.

ABAELARDUS, Petrus. Commentaria in Epistolam Pauli ad Romanos. Petri Abaelardi Opera Theologica: Corpus Christianorum Continuatio Mediaeva-lis. Tomo XI. Cura et studio E. M. Buytaert. Typographi Brepols Editores Pon-tificii: urnholti,19 9.BUYTAERT, E.M. Cura e Studio. IN: ABAELARDUS, Petrus. Commentaria in Epistolam Pauli ad Romanos. Petri Abaelardi Opera Theologica: Corpus Chris-tianorum Continuatio Mediaevalis. Tomo XI. Cura et studio E. M. Buytaert. pographiBrepolsEditoresPontificii: urnholti,19 9.

ABAELARDUS, Petrus. Scito te ipsum. Petri Abaelardi Opera Theologica: Cor-pus Christianorum Continuatio Mediaevalis. Tomo IV. Edidit Rainer M. Il-gner. pographiBrepolsEditoresPontificii: urnholti,2001.WILLIAMS, Thomas. “Sin, Grace, and Redemption”. In: The Cambridge Com-

panion of Peter Abelard. Cambridge University Press, pp. 259-278.

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Carvalho, M.; Hofmeister Pich, R.; Oliveira da Silva, M. A.; Oliveira, C. E. Filosofia Medieval. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 143-152, 2015.

s as de o s de i o o e odo Medieval

a ila de o a dioUniversidade Estadual de Maringá

A G

Não se sabe exatamente a data em que Suma Contra os Gentios foi escrita, Jean Pierre Torrel segue algumas indicações de Pe. Gauthier, segundo o qual os 53 pergaminhos da primeira parte da CG Tomás redigiu em Paris antes do verão de 1259, na Itália ele revisou essa pri-meira parte e escreveu todo o resto da obra; para Gauthier a redação do capítulo 84 do livro III não é anterior a 1261 e os livros II e III ainda eramumesboço,olivroIVnãofoiterminadocertamenteantesdofinalde 1263 ou início de 1264, mas antes de 1265 – 1267 estava terminado (TORREL, 2004, p. 120).

Tomás distingue na CG as verdades sobre Deus e as criaturas que podem ser estabelecidas pela razão independentes de qualquer revelação e também aquelas verdades que podem ser provadas pela autoridade bíblica ou por algum ensinamento da igreja, vejamos a di-visão da obra,

O primeiro livro é sobre a natureza de Deus, o segundo é sobre o mundo criado e sua produção por Deus e o terceiro livro é sobre o caminho pelo qual as criaturas racionais encontram sua felici-dade em Deus. (trad. nossa)1

1 hefirstboo isaboutthenatureof od,thesecondisaboutthecreated orldanditspro-ductionb odandthethirdboo isaboutthe a in hichrationalcreaturesaretofindtheir happiness in God KENNY, Anthony. Aquinas on Being,Ne or :O ford niversit Press, 2002; p. 82.

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C S E

Tomás sintetizou Aristóteles, as autoridades bíblicas e os pen-sadores udeuse rabes,unindo todosemumaobrafilos ficacomalicerce teológico.

Na tradução brasileira da CG temos uma introdução escrita por Dom Odilon Moura que nos ajuda a compreender um pouco mais so-bre esta obra, que junto com a Suma Teológica podem ser consideradas asmaioresconstruç esdafilosofiade om sdeA uino.SegundoD.Odilon a CG é,

[...] uma obra formalmente teológica, não obstante a ênfase dada aos temas filos ficos usados como instrumentos do sa-ber teológico, os principais mistérios da fé com profundeza e critériocient ficosãoanalisadosedeles tiradosasconclus esinferidas pela razão. 2

Na obra Toward understanding Saint Thomas, M. Chenu discorre sobre vários aspectos referentes à construção da CG e a argumentação ueacomp e.SegundoeleaC sediferenciadasoutrasobrasde o-

más por não ser uma obra que depende do ensino, ou melhor, ela não é uma obra que é resultado daquilo que acontecia na universidade. Ela foiescritaapedidodoconfradede om sSãoRaimundodePenaforteque estava assustado com a presença dos Mouros na Espanha e a pos-sível conversão das pessoas ao Islamismo; dessa forma sua argumenta-ção tem o mesmo caráter de tantas outras obras de Tomás, não fugindo daquilo que era próprio do período medieval, no entanto foi escrita comumafinalidadediferente,sendoassimumainiciativapessoaldeom s(CHEN ,19 4,pp.288-289).SegundoChenu,

Oproblemaé,portanto,descobrirosfinsemétodosparaentrarna perspectiva do autor no ponto de vista do autor. Quem são os gentioscontraos uaisescreveSão om s O ueelefazparadirigirosleitorescontraeles Por uestãode uecausaede ualob eto (trad.nossa)3

2 OM SDEA INO, uma on ra os Gen ios, I. Trad. D. Odilon Moura e D. Ludgero Jas-per,rev. uisAlbertodeBoni.PortoAlegre,EscolaSuperiorde eologiadeBrindes:Sulina Ca iasdoSul, niversidadedeCa iasdoSul,1990 introd.,p. .

3 The problem is, therefore, to discover these ends and methods in order to enter into the per-spectiveof the author. ho are thegentiles against homSaint homas rites o hatreadersdoesheaddresshimselfagainstthem Forthesa eof hatcauseandof hatob ect CHEN ,MarieDomini ue,OP. o ard unders anding ain omas Translated by rev. Albert M. Landry, O.P. and Dominic Hughes, O.P. Henry Regnery Company, 1964; p. 288.

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As Su as de o s de A uino no eríodo edieva

A CG foi escrita na metade do século XIII em um momento de confronto entre o Cristianismo e o Islamismo, assim a obra de Tomás é fonte de um momento histórico, a expressão em forma de escrita da-quilo que estava acontecendo, trazendo uma doutrina que se fez histó-rica e que se fez da história daquele período.

uementãopodemosentendercomo entios Segundoopa-dre Orlando Vilela “gentiles queria dizer errantes, ou seja, os pagãos, os judeus, os muçulmanos, os heréticos, todos presentes e ativos no clima intelectual da época.” 4 A CG é um livro para os missionários frente ao Islamismo, todavia, a obra não tem apenas o caráter de um manual de instruções, ela também carrega o intuito de dirigir-se à elite da época; devido ao método como Tomás a escreveu que dirige--se também à universidade, às pessoas instruídas que tinham condi-ç esdeestareminseridasnoensinodaépoca.(CHEN ,19 4,p.291). Para Chenu,

Ela (CG) se oferece como uma defesa do corpo inteiro do pen-samentocristão,confrontadocomaconcepçãocient fica recorabedouniverso,portantoreveladapeloocidente.ASumaé

uma teologia apologética. (trad.nossa) 5

A CG é uma obra teológica baseada em argumentos racionais que podem ser reconhecidos exclusivamente pela razão na discussão com os não - cristãos. E isso é possível mediante o fato de que a teolo-gia é uma ciência que permite o acolhimento de outras ciências, como pore emplo,afilosofia(ST q.1, a.4 resp). Tomás assume a tarefa de partir daquilo que a fé católica professa para discutir o que se opõe a ela.Sabendo ueodebateacercadas uest esdefénãoéalgosimples,Jean Pierre Torrel diz que,

4 VILELA, Orlando. omás de A uino Opera Omnia BeloHorizonte:F MARC P CM ,1984; p. 101.

5 Ito ersitselfasadefenseoftheentirebod ofChristianthought,confronted iththescien-tific recoArabicconceptionoftheuniversehenceforthrevealedtothe est. heSummais an apologetic theolog CHEN ,MarieDomini ue,OP. o ard unders anding ain

omas p.292.

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(...) com o objetivo de esclarecer essa verdade, podemos, todavia propor certos argumentos por verossimilhança, nos quais a fé dosfiéispodesee ercitareseapoiar,sem uese amdenaturezaconvencer os adversários.6

AC éobra ueretrataafilosofiade om s ueseerguenoali-cerce da teologia trazendo consigo o grande objetivo de ensinar o que era necessário para aqueles que iriam debater com os não – cristãos, no entanto , “[...] se o adversário não acredita em nada das verdades reve-ladas, não resta nenhum modo de provar com argumentos os artigos dafé:pode–seapenasrefutarosargumentos ueoporia fé. 7

Segundo orrel, sefizermosuma leituraprimeirodaS , vere-mos que Tomás na CG ampliará a discussão e os argumentos, mas a estrutura de ambas as obras é a mesma. A CG é organizada da seguinte maneira:no ivroI, om sabordaa uestãodae ist nciadeDeus,noLivro II, a saída das criaturas a partir de Deus e o terceiro e mais volu-moso livro trata da providência Divina (TORREL, 2014, pp.131-133).

É reconhecido que Tomás escreve em diversos gêneros literários como comentários às obras de Aristóteles e Boécio e questões dispu-tadas.Podemosinterrogara ualg neropertenceaC Alémdisso,elapodeserconsideradaumaobrafilos ficaouteol gica Pordiscu-tirnosprimeiroscap tulos uest esfilos ficasaC pareceserumaobradefilosofia,noentanto,seaolharmoscomoumtodo,vemosocar terapologéticodeumaobradeteologia.São om strou eparaaC te tosdasagradaescrituraafimdecomporsuaargumentaçãosobre temas ligados à fé cristã como pecado, graça divina e milagres (MO RA,1990,p.14in: CG, introd.). Além disso, o texto da CG não é umcoment rio,nemumadisputade uest escomoaS ,asuaescritare eteaestruturalineardaobra,na ualaconclusãodeumcap tuloleva à construção do próximo; Tomás não expõe primeiro a sua tese ou seus argumentos, mas pelo contrário, ele expõe a opinião de seus ad-vers riosparaentãorefut -las,afimdefazercom ueseuadvers riocompreenda porque sua opinião não é correta.

6 TORRELL, Jean Pierre. niciação a an o omás de A uino sua pessoa e o ra. Trad. Luiz PauloRouanet.SãoPaulo,Ediç es o ola,1999 p.127.

7 Siveroadversariusnhilcredateorum uaedivinitusrevelantur,nonremanetampliusviaadprobandum,art culosfideiperrationes,sedadsolvendumrationes,si uasinducitcontrafidem. OM SDEA INO, Suma Teológica I, q.1, a.8, resp.

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Para Chenu, Tomás escreve a CG com o pensamento de que se ensina de forma diferente de acordo com as verdades, ou seja, deve-mos adequar o modo de ensino de acordo com o assunto, pois quando falamosdeverdadesno mbitodafilosofiaconsideramosascriaturasem si mesmas para levá-las a conhecer Deus; já no âmbito da fé não consideramos as criaturas a não ser em sua relação com Deus. Não se deve pensar de maneira alguma que as verdades de fé são adequações razão,ométodo ue om sutilizaafimdeescreveraC édeumafé

amiga da razão, lembrando que o conhecimento mais obscuro de Deus é melhor que o conhecimento mais perfeito das coisas do mundo. As-sim a CG se resume em algumas palavras em uma obra de contempla-çãodaverdadecomoduplocar termission rioedoutrinalre etindoemcadap ginaumpoucodahist riadomundomedieval(CHEN ,1964, pp. 293-294).

Com uma visão da obra a partir da primeira via podemos ter as seguintesconclus es: om sdeA uinoescreveuaC emumper ododo século XIII de profunda agitação não só dentro da universidade, mastambémforadela.Aobrare eteumpoucodahist riadoséculoXIII, escrita com o objetivo de debater por meio de idéias e não de armas as objeções dos gentios e de todos aqueles que levantam ques-tionamentosemrelação fécristã. maobra uemantémaestruturafilos ficade om s,mas uesediferenciadeoutrasdoautorpor uenão é comentário, ou uma disputa, mas é um debate que traz primeiro o argumento do adversário e só depois a refutação do mesmo, constru-dapor om sapartirdas ntesedasautoridadesfilos ficaseb blicas.

A

A obra mais conhecida de Tomás de Aquino, a saber, a Suma Te-

ológicafoiescritadurantea ltimapartedoper odoem ueofil sofofoimestrenoconventodeSantaSabinaemRoma.Nasp ginasiniciaisda tradução feita para o português publicada pela editora Loyola, a obra tem a introdução escrita por Marie Joseph Nicolas, que nos traz algumasdatasacercadacomposiçãodaS foiporvoltade12 5 ueTomás assume um convento de estudos dominicanos e a Suma Teoló-

gica começa a tomar forma de acordo com aquilo que ela representava

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para om s:umlivropara instruiros iniciantes.Ofil sofodese avauma nova maneira de ensinar, as longas disputas, os manuais de di-fícil interpretação e os comentários não satisfaziam à necessidade dos estudantesdaépoca. om sentãosepreocupouaoescreveraS coma ordem e a síntese dos argumentos para transforma - la em um texto did ticoeacess vel(NICO AS,2001,p.28in ST, introd.).

AsdatasdaredaçãodaS sãoumproblemaentreosestudiosos,issopor uenãosetemdadose atos.Segundo orrelduranteaper-manência de Tomás em Roma até setembro de 1268, Tomás redigiu a Prima pars; o problema é a Prima secundae que admite-se não ter sido iniciadaantesdoretornode om saParis.SegundoainterpretaçãodeGauthier a Prima secundae foi escrita em 1271, isso porque Tomás usou a RetóricadeArist teles,a ualtevecontatonofimde1270.O ueparaorreléumproblemanaafirmaçãodessasdataséofatodesobrecarre-gar om snos ltimosmomentosemParis,issopor ueofil sofoteriaredigido dessa forma em 18 meses a Prima secundae, a Secundae secun-

dae e iniciado a Tertia pars,segundo orrelsãopoucoconfi veisessasdatas,masnãoh comonegarosfatos ueasevidenciam.Nofinalde1271 – 1272 em Paris e depois em Nápoles deu-se a redação da Tertia

pars, até dezembro de 1273 quando Tomás deixou de escrever. A parte conhecida como Suplemento foi escrito por seus discípulos a partir de seucoment riosobreasSentenças( ORRE ,2004,pp.171-172).

mainterpretaçãomaisconcisadessasdatasaparecenaintrodu-çãodaS aprimeirapartedaobraestavaconclu daporvoltade12 9,quando Tomás é chamado a Paris. Ao voltar à universidade as coisas estavam agitadas, devido ao acolhimento pela faculdade de artes das obras Aristotélicas interpretadas pelos averroístas, o que deixa Tomás temeroso, pois a interpretação feita era de um Aristóteles totalmente naturalista e racionalista, o que acarretaria a exclusão dessas obras da universidade. E foi durante este tumulto que Tomás escreve a segun-dapartedaS .AoserenviadoaN polesafimdefundarumcentroteológico dominicano Tomás em seus últimos anos de vida escreve a terceirapartedaS ,masadei aincompleta.(NICO AS,2001,pp.28-29 in ST, introd.).

Os teólogos em seu ensino na universidade buscavam tornar a teologia algo sistemático, bem como, conceitualizar seu objeto de es-

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tudo. O processo pelo qual a teologia passou para tornar-se ciência organizou seus objetos de estudos de maneira ampla emprestando princípios da razão, que por sua vez trabalhava sob a luz da fé (CHE-N ,19 4,p.299). ASumaéumdosresultadosdesteprocesso,elaéresultado de uma síntese de assuntos que permeavam o século XIII, sendo uma evolução do seu gênero literário,

ApalavraSumadesignaumaobra liter riacomumprop sitotriplo:primeiroe por,demaneiraconcisaeresumidaotododeumdadocampocient ficodeconhecimento(esteéosignificadooriginal da suma); segundo, organizar, além da análise pouco a pouco, os objetos deste campo de conhecimento de modo sintéti-co finalmenterealizaresteob etivodemodo ueoresultadose aadaptado para o ensino dos estudantes. (trad.nossa)8

Segundo frei Carlos osaphat, a Suma Teológica foi construída diante de um processo de pesquisa e interpretação dos textos bíblicos e Aristotélicos dentre outros. Ela foi a tentativa de compreender as coi-sas por meio de analogia da fé. A obra foi responsável por harmonizar e sintetizar saberes, integrando-os sagrada doutrina ( OSAPHA ,2012, pp. 25-26).

AsSumasforamconstru daspormeiodeumprocessodeevo-lução ahist riadapalavraSumanosa udaacompreenderseunasci-mento no século XII; ela era um completo e sintético estudo que apre-sentavaemformadesentençasadoutrinaCristã. madasprimeirasobras neste modelo foi a Summa SententiarumdeHugodeSãoVictor.(CHEN , 19 4, p. 298). Em 1120/1121 PedroAbelardo introduziu ométodo dialético do sim e do não; no século XIII Guilherme de Auxer-re criou o artigo de fé na Suma ÁureaeassimasSumaspassaramdesentenças às questões disputadas que é a forma como Tomás a escreve. A originalidade de Tomás surge nas questões disputadas (quaestios dis-

putatas) todavia, nem por isso a ST fez sucesso logo que escrita, pois os

8 he ordSummadesignatesaliterar or underta en ithathreefoldpurpose:first,toe pound,inconciseandabridgedmannerthe holeofagivenscientificfieldof no ledge(this is a original meaning of summa); second, to organize, beyond piecemeal analysis, the ob ectsofthisfieldof no ledgeinas nthetic a finall torealizethisaimsothattheproductbeadaptedforteachingstudents.CHEN ,MarieDomini ue,OP. o ard under-s anding ain omas p.299.

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alunos estavam acostumados aos velhos manuais e comentários bíbli-cos, a obra somente foi inserida no ensino universitário no século XIV ( OSAPHA ,2012,p.29).

SegundoChenuh relatosdodisc pulode om s,PtolomeudeLuca de que as diversas questões que eram disputadas, suas repeti-ções e o seu tamanho causavam a aversão dos alunos ao estudo; além disso, o sistema de ensino não era satisfatório, na medida em que, a leitura e os comentários à sagrada escritura impediam que a men-te construísse livremente algum conhecimento. Era necessário que houvesse um sistema de ensino na teologia, no qual a fraqueza do intelecto humano fosse levada em consideração, todavia indicando como ele pode construir um conhecimento sob a luz da fé. Tomás então propôs a ordo disciplinae que traduzido seria algo como ordem da

disciplina; ele precisava estabelecer uma ordem de ensino e para tanto eranecess rioumob etodeestudo.Foiapartirdisso ue teologiatendo como objeto de estudo Deus e tudo aquilo que se relaciona com Elepassouaterumcar terdeci ncia.Assim, om sescreveuaS ,com suas divisões, partes, questões e argumentos que formam um grande projeto, que traz em si uma unidade que permeia toda a obra; alémdisso,comobemobservaChenuaS nãotems umplano,mastambémummovimento ued vida suaestrutura(CHEN ,19 4,pp. 300 – 301).

Como Tomás integrou a história sagrada que faz parte do ensino no período medieval à ordem de uma disciplina, que é característica daci ncia SegundoChenu,apalavradeDeusreveladanoste tosdassagradas escrituras é perfeita somente no pensamento de Deus de for-ma que é necessário uma ordem para que o intelecto humano conheça essas verdades, levando em consideração a fraqueza do mesmo, bem como apresentando as maneiras que ele deve prosseguir sob a luz da fé para alcançar algum conhecimento. O grande problema é organi-zar a sagrada doutrina em um sistema, ou seja, transforma-la em uma ciência. Para tanto, Tomás utilizou dois conceitos platônicos o de ema-nação e o de retorno, vejamos

Alémdomundocient ficoaristotélico,São om sapelaparaotema platônico da emanação e retorno. Visto que a teologia é ci-ência de Deus, todas as coisas serão estudadas em sua relação

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comDeus,se aemsuasproduç esouemseusfins,emsuaexitus e reditus (saida de e volta para). (trad.nossa)9 A história sagrada é a própria descrição do conceito de emana-

ção, Deus criador governa suas criaturas nas quais está o homem que por meio de seus atos busca retornar a Deus. O próprio movimento deescritadaS re eteessa uestão:a I parte tratadeDeuse seusprinc pios,aemanação aII partedoretornoparaDeuseaIII partetratadascondiç esparaesteretorno.OplanodaS éumplanoteo-lógico, no qual a ciência de Deus é formalmente o princípio da ciência do homem, fornecendo a ela seu objeto e seu caráter de necessidade (CHEN , 19 4pp. 04- 05).Assim comodiz opr prio om s, nadoutrina sagrada, tudo é tratado sob a razão de Deus, ou porque se trata do próprio Deus ou de algo que Ele se refere como a seu próprio fim(trad.obra) 10, as coisas que são tratadas na sagrada doutrina ou são acerca de Deus em si mesmo ou dependem dele de algum modo.

Assim om sfazdaS ,

[...] uma rede harmoniosa e bem estruturada de questões, cuja unidade é o artigo e cujo conjunto se organiza em tratados e em seções, integrando-se o todo nas três partes que compõe a totali-dadecuidadosamenteordenada,daSagradaDoutrina.11

ComaconstruçãodasSumassurgeumnovoparadigma,ouse a,um novo modelo de teologia que se faz original pela questão e que integra os saberes disponíveis no mundo acadêmico da época; que tem a pretensão de trazer para o corpo da questão o passado e o presente manifestospormeiodosfil sofoseautoridadesda igre ae uevisa

9 Be ondthescientific orldAristotle,Saint homasappealstothePlatonicthemeofema-nationandreturn.Sincetheolog isthescienceand od,allthings illbestudiedintheirrelationto od, hetherintheirproductionorintheirfinalend,intheire itusetreditus(goingoutfromandcomingbac to)CHEN ,MarieDomini ue,OP. o ard unders and-ing ain omas p. 304.

10 Ominia autem pertractantur in sacra doctrina sub ratione Dei vel quia sunt ipse Deus; vel uiahabentordinemadDeumutadprincipiumetfinem. OM SDEA INO,ST I, q.1, a.7,res.SãoPaulo:Ediç es o ola,2001,p.148.

11 OSAPHA ,Carlos,OP.Paradigma eológico de omás de A uino sa edoria e ar e de ues ionar erificar de a er e dialogar c a es de lei ura da uma de eologia SãoPaulo:

Paulus, 2012, p. 30.

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verificara uilo ueéfavor veledesfavor velemrelaçãoaotemadecada uestão( OSAPHA ,2012,pp.21– 1).

NaS om sre etenaescritasuaposiçãofrente teologiae filosofiadecriar umavia intermedi riaentreelas,dando teologiaum estatuto de ciência; por meio da interpretação de diversos textos, om s,nãodemaneirapassiva,mascr tica, retrataosproblemasfi-los ficos–teol gicosnas uest esdisputadas seupapelfoiodeler,interpretarereelaboraraherançafilos ficadopassado,integrando–acom o ensino da universidade.

OM SDEA INO,Suma Contra os Gentios I. Trad. D. Odilon Moura e D. udgero aspers,rev. uisAlbertodeBoni.PortoAlegre,EscolaSuperiorde e-ologiadeBrindes:Sulina Ca iasdoSul: niversidadedeCa iasdoSul,1990. __________________, Suma Teológica I. SãoPaulo:Ediç es o ola,2001.CHEN ,MarieDomini ue,OP.Toward understanding Saint Thomas. Trans-latedb rev.AlbertM. andr ,O.P. and DominicHughes,O.P.Chicago:Henry Regnery Company, 1964. TORRELL, Jean Pierre. Iniciação a Santo Tomás de Aquino, sua pessoa e obra. Trad. uizPauloRouanet.SãoPaulo:Ediç es o ola,1999.

VILELA, Orlando. Tomás de Aquino, Opera Omnia. BeloHorizonte:F MARCP CM ,1984.

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Houve uma evolução do conceito de virtude em Tomás de Aquino?A proposta de Giuseppe Abbà

Renato José de MoraesUniversidade Federal do Rio de Janeiro

Em seus trabalhos, Giuseppe Abbà1 tem defendido que Tomás de A uinoevoluiusignificativamenteemsuaconcepçãosobreavirtude.Assim, a Secunda Pars da Summa Theologiae trariaumaapresentaçãodaéticacentradanavirtude, uead uireentãoumaposiçãobastantemaisdestacadado uea uegozavaemescritosanteriores.Essaelaboraçãodaética,realizadapor om semseusescritos ltimos,seriadiferenteda uelarealizadaporeleemoutrasobras,bemcomodaposiçãodeou-trosautores ueoantecederamousucederam.Enfim,estar amosdiantedeumavisãooriginaldaética, ueteriasintetizadoaspectospresentesnopensamentodeAgostinhocomumarcabouçoprimordialmentearis-totélico,concedendo virtudeumpapelpreponderante.

Neste artigo, examinaremos alguns dos argumentos brandidos por iuseppeAbb , e procuraremos confirm -los,matiz -los ou, seforocaso,desmenti-los.Issoérelevante,por ueessefil sofotrazpon-deraç es uemodificariamamaneiradecompreenderopensamentomoralde om s,levandoaume amediferenciadodasv riasobras

1 Cf.ABB , iuseppe.Lex et virtus. Studi sull evoluzione della dottrina morale di San ommaso d’Aquino.2.ed.Roma:Fontanadi reviEdizioni,2010 Felicità, vita buona e virtù.2.ed.Roma:AS,1995.

Carvalho, M.; Hofmeister Pich, R.; Oliveira da Silva, M. A.; Oliveira, C. E. Filosofia Medieval. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 153-164, 2015.

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dofreidominicano,deacordocomaépocaem ueforamproduzidas,o ueaslevariaarepresentarumest giodeterminadonatra et riadoautor,cu asposiç esseaperfeiçoariamemaspectosimportantes.

Portanto,analisaremosalgumasdasafirmaç esdeAbb evere-mosseasuaconsideraçãodaoriginalidadedaSecunda Pars e da evolu-çãonopensamentode om séconvincenteefundamentada.

1 A u er ententiis

Oscoment riosde om saoLivro das Sentenças2, de Pedro Lom-bardo, foramconclu dos uandooautor tinhaporvoltade 2anos.Neles,odominicanotratae tensamentedavirtude,desuaconceitu-açãoedofuncionamentodoorganismomoral,o uenãoserepetir emoutroste tos,atéaépocaem ueeleescreveuaSumma Theologiae .

Aoversarsobreanecessidadedosh bitosnasoperaç eshuma-nas4, om sescreve ueabondadedosentesedasaç esdecorredeseconformaraumaregra,a uelaestabelecidaporDeusemSuasabedo-riaparaa uelarealidadeconcreta.Emrelação spot nciasracionais–aintelig nciaeavontade–eaosapetitessens veis,elesnãoselimitamaum nicoob etooumododeoperar, uerepresentariaasuaretidãoeconformidadecomaregradivina antes,podemapresentardiversasretid esemodosdealcanç -las. aispot nciasnãopodemdeterminarasimesmasparaoretoeparaobom,masprecisamserretificadasporuma qualidade que inere nelas (modum qualitatis inhaerentis).Havendoessaretificação,elaspoderãooperaroconvenienteebomdemaneiraf ciledeleit vel.

Essa ualidadeouforma ueretificaapot nciadaalma,incli-nando-aadeterminadosob etosoumodosdeoperação,chama-sedis-

2 Sancti HOMAEDEA INO.Scriptum super Sententiis. e todaediçãodeParma,189 ,dispon velnos tio .corpusthomisticum.com,editadoporA ARC N,Enri ue.Apar-tirdeagora,citadocomoSuper Sent..

om sescreveasQuestiones disputatae de virtutibusporvoltade1271e1272,mesmaépocadoComent rio ticaaNic macoedaSecunda Pars da Summa Theologiae.Paraadataçãodasobrasde om s,seguimos ORRE , ean-Pierre.Iniciação a Santo Tomás de Aquino:suapessoaeobra.trad.de uizPauloRouanet.2.ed.SãoPaulo:Ediç es o ola,2004,p. 8 -418.

4 Cf.Super Sent.,lib. d.2 .1a.1.Ot tulodoartigoé:Utrum indigeamus habitibus in opera-

tionibus humanis.

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ouve u a evo u o do on eito de virtude e o s de A uino A ro osta de iuse e Abb

posição, uandoimperfeita casose aconsumadaetenhasetornadouaseumanatureza,denomina-seh bito.Oh bitodificilmenteéalte-rado osinalde ueelefoiad uiridoéodeleitenaobrarealizada,poiso ueéconvenienteparaanaturezaéapraz velef cil.

Oh bitofacilitaetornaagrad velapr ticadoato,masnãoéim-prescind velpara ueestese abom,poissuabondadevemdaconfor-midadecomaordemdasabedoriadivina.Apot nciadaalmacarecedoh bitoparaseinclinaraobemdeformaest veleduradoura,masnãooe igeparaarealizaçãodecadaatoperfeitoehonesto5.Comavirtude,apot nciatendeaoatobompormododasuanatureza con-se uentemente,oatoser apraz vel,deacordocomanaturezaaper-feiçoadapeloh bito .

As virtudes no Super Sent.sãoconsideradasapartirdo es ue-madireção-e ecução 7,segundoo ualaprud nciaeosdemaish bi-tosoperativosbonsparticipamdadeterminaçãodomeiodavirtude(medium virtutis)demodosdiversos:aprud nciadetermina-oatravésdodirigiredoindicar(dirigentis et ostendentis), enquanto as virtudes moraisfazem-nopeloe ecutareinclinarparaotalmeio8.

uandoapot nciainferiornãoest determinadaparaoatoper-feito, pornãohavernela oh bito virtuoso, é entãodeterminada aomeio e celente através da pot ncia superior, a razão9.Ocorre entãoumaespéciedeobedi nciadaspot ncias inferioresemrelação ra-zão,pot nciasuperior.Aprimaziadarazãopr tica,aperfeiçoadapeloh bitodaprud ncia,émarcante. lapidaradefinição: Importaterasvirtudesmoraisparae ecutara uilo ueaprud nciadeterminou 10.Asvirtudesdavontade,dos apetites concupisc vel e irasc vel repri-memaspai es,para uenãoperturbemarazão11, mas essas virtudes nãot mumafunçãopropriamenteativaoupositiva.

5 Cf.ABB , iuseppe,Lex et virtus. Studi sull evoluzione della dottrina morale di San ommaso d’Aquino,p.24.

Cf.Super Sent., lib.2d.27 .1a.1co.7 Essa terminologiaépropostaporABB , iuseppe,Lex et virtus. Studi sull’evoluzione della

dottrina morale di San ommaso d Aquino,p.28.8 Cf.Super Sent.,lib. d.2 .1a.4 c.2ad4.9 Cf.Super Sent.,lib. d.2 . a.2co.Importanteaan lisedeABB , iuseppe,Lex et virtus.

Studi sull evoluzione della dottrina morale di San ommaso d Aquino,p.29.10 Super Sent.,lib. d. .2a.2 c.2co.: “Quia ergo oportet virtutes morales haberi ad exequendum

illud quod prudentia decrevit11 Super Sent.,lib. d. .2a.4 c.2co.

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No Super Sent.,h passagensem ue om spareceatribuirmaiorimport ncia svirtudesmorais,como uandoafirma ueporelasaobradohomemrecebeobem,e uetodapot ncia ueéprinc piodaobrahumanadeveconterumh bitodevirtude.Emoutra uestão,arespeitodacaridade,sustenta ueéimposs velconceber ueoatoper-feitoembondadevenhadeumapot ncianãoaperfeiçoadapeloh bi-to12.Porém,mesmoessestrechoseoutrossemelhantesestãoinseridosno es uemadireção-e ecução , uediluemarelev nciadasvirtudesnaspot nciasemfavordofortalecimentodarazãopr tico.Osh bitossãonecess riosparaaperfeição,nosentidodafacilidadeeprazeraoagir,masnãoparaapr priasubst nciadoatohumano.Obemdasaç esest naade uaçãodelas leidivina,re e odasabedoriaincria-da avirtudeest emfunçãodalei,enãoocontr rio1 .

2 A De eritate umma contra entiles

As uest esdisputadasDe veritate foram escritas entre 125 e125914. Elasnos interessampor ue om svai tratardaparticipaçãodascriaturasracionaisnabondadedivina,o uetemestreitarelaçãocomavidamoral.Suasvinteenove uest esbuscamdemonstrar ueaverdadeeobemencontramemDeusasuafonteprincipaleradical,apartirda ualpodemserconhecidoseamadospelascriaturasespiri-tuais:osan oseossereshumanos15.

Osprimeirosprinc piosdoconhecimentosãoumaparticipaçãonaverdadeeterna, ueserealizaatravésdae emplaridade.Oserhu-manoalcançaessesprimeirosprinc piosdoconhecimentonãoatravésdein uisiç es,poiselesseinseremnaturalmentenele(“homini natu-

raliter inesse”), sendomais certos e est veis ue outros conhecimen-tos.Paralelamenteaoh bitodaintelig nciadosprinc pios,no ualseapoiaoconhecimento te rico,h orelativoaosprimeirosprinc pios12 Super Sent.,lib.1d.17 .1a.1co.1 Cf.ABB , iuseppe,Lex et virtus. Studi sull evoluzione della dottrina morale di San ommaso

d’Aquino,p.42-4,emumaan lisebastanteagudaeesclarecedora,ainda uesepudessemmatizaralgumasdesuasposiç es.

14 ORRE , ean-Pierre.Iniciação a Santo Tomás de Aquino:suapessoaeobra,p. 90.15 Cf.ABB , iuseppe,Lex et virtus. Studi sull evoluzione della dottrina morale di San ommaso

d’Aquino,p.70.

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ouve u a evo u o do on eito de virtude e o s de A uino A ro osta de iuse e Abb

naturaisdaação, uesãoosprinc piosuniversaisdodireitonatural,eesteh bitoéasindérese. antoaintelig nciadosprinc pios uantoasindéreseinserem-senarazãohumana1 .

Seasindéresepermitealcançare reterosprimeirosprinc piosueguiamaaçãohumana,aaplicaçãodetaisprinc piosgeraisaopar-ticulard -sepormeiodo u zodeconsci ncia.Consci nciasignificaaaplicaçãodaci nciaaalgo,eéopr prioatopelo ualseaplica ual-uerh bitoou ual uerconhecimentoadeterminadoatoparticular17.

Aretidãodeumaaçãodependedasuaconformidade regra,atravésda ualaigualdadeearetidãoda ustiçasãoconstitu dasnascoisas.Avontadedohomemnãoéaprimeiraregra,maséreguladapelaregradivinaeprimeira.

O De veritateanalisaoconhecimentomoralapartirdeDeus,enãodohomem trata-sedeumconhecimentocomunicadoporDeuse uetemnEleoseuprinc pio18.ODe veritatenadadizderelevantearespeitodavirtude,sendoelareduzidaaumtemalateral,secund rio,cabendo intelig ncia,na ualinereasindéreseeocorreailuminaçãopelaparticipaçãonabondadedivina,opapeldeprotagonista.

OconceitodevirtudesegueemsegundoplanonaSumma contra

gentiles, uefoielaboradaentre1259e12 519.Nestaobra,a nfaseest nogovernodomundoporDeus, emespecial amaneira comoele ée ercidosobreosseresracionais.Afinalidadenãoée plicarcomooserinteligenteproduzseusatosereconheceobem.H avalorizaçãodalei uegovernaouniverso,enãotantodaautonomiadoserhuma-no, ueencontranoseguiraDeusasuaplenitudeebondade.

3. A ecun a ars umma heolo iae

Opro miodaSegundaPartedaSumma Theologiaee plica ue,depoisdehavertratado,naPrimeiraParte,deDeusedo uedElepro-cede,oautorvolta-seagoraparaanalisaraimagemdeDeus,istoé,ohomem,en uantoesteéopr prioprinc piodassuasoperaç es,por

1 De veritate, .1 a.1co.17 De veritate, .17a.1co.18 Cf.ABB , iuseppe,Lex et virtus. Studi sull evoluzione della dottrina morale di San ommaso

d’Aquino,p.57.19 ORRE , ean-Pierre.Iniciação a Santo Tomás de Aquino:suapessoaeobra,p. 88.

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ter livre arbítrio e poder sobre as suas ações20. Temos aqui uma altera-ção de foco relevante: a Secunda Pars chega ao Criador e governante do universo através do homem, imagem da divindade por ser espiritual, invertendo a direção adotada em escritos anteriores, em que se alcan-çava a criatura racional a partir de Deus e Suas perfeições.

Na análise dos atos humanos, a razão deixa de exercer um papel tão dominante no ato livre, sendo apontados outros fatores concor-rentes a ela, como as paixões sensíveis, a própria vontade do sujeito e Deus21. Daí que Tomás realize um amplo tratado da ação humana, tentando demonstrar como funciona o mecanismo de nossas decisões voluntárias. De modo especial, impressiona o estudo das paixões, no qual se intenta distinguir o papel delas no comportamento do homem e sua relação com a moralidade dos atos.

A respeito dos hábitos, o Aquinate sustenta que são princípios intrínsecos dos atos humanos, ao lado das potências da alma22. Deixam de ser um mero aperfeiçoamento que facilita a prática dos atos voliti-vos e ganham o papel de princípio, de causa dos atos humanos. Estão relacionados à natureza do sujeito, isto é, são determinações deste em relação à sua natureza, e não algo meramente acidental ou relacionado à quantidade23.

Os hábitos se distinguem enquanto são ou não ordenados à na-tureza do sujeito. Se dispõem e inclinam para atos convenientes à na-tureza do agente, são bons; já os hábitos maus inclinam para o que seja inconveniente à natureza. Os atos de virtudes convêm à natureza humana por serem conformes à reta razão24. Para Tomás, o que está de acordo com a razão é conforme com a natureza humana, pois o ho-mem é um ser racional. Como podemos observar, a potência racional da alma continua a ter uma posição de destaque, que agora será har-monizada com as demais potências, que serão valorizadas.

Por meio da razão, podemos alcançar parte da lei eterna, a qual deriva diretamente da sabedoria divina. Contudo, o ser humano não

20 Sancti THOMAE DE AQUINO. Summa Theologiae. Texto da Edição Leonina, Roma, 1891, disponível no sítio www.corpusthomisticum.com, editado por ALARCÓN, Enrique. Iª-IIae pr. A partir de agora, citado como ST.

21 TORRELL, Jean-Pierre, Iniciação a Santo Tomás de Aquino: sua pessoa e obra, p. 285.22 ST Iª-IIae q. 49 pr.23 Cf. ST Iª-IIae q. 49 a. 2 co.24 Cf. ST Iª-IIae q. 54 a. 3 co.

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ouve u a evo u o do on eito de virtude e o s de A uino A ro osta de iuse e Abb

serestringeaparticipardaverdadeeterna,comosesua intelig nciafossetotalmentedependentenatarefadeconhecerasdisposiç esdaintelig nciadivina.Afinal,apr priasabedoriadeDeus uis ueoserhumanotivesseumaintelig ncia uelhepossibilitassecompreendereseade uar ordemencontradaemtodaarealidade25.Arazãohumanaéregradobemhumano,por ueporelaoserracionalcompreendeouedevefazereo uelheconvém.

Na ST, osh bitosnão sãoapenasparadeterminarad unum, e simparaestabelecerumaboadisposiçãonaspot nciasem uesein-serem2 .Pareceumadiferençape uena,maséprenhedesignificado.Aboadisposiçãoéfrutodiretodopr prioh bito,por ueesteaperfei-çoaanatureza.Osh bitosvirtuosost memsiaforçaparainclinaraspot nciasaumaboadisposição,enãoseencontramtãosubordinadosaçãodarazão,comoseestafosseasua nicaguiaeluz.Nãoémaisarazão uetrazemsi tudoo ue importaparatornarumatobom,impondo-sesobreaspot nciasinferiores,masestast mcertaautono-miadevido suapr prianatureza.

Essamudançanaposiçãode om ssedeveaumaconcepçãodife-renteacercadavontadelivre, uepodeserdatadadeapro imadamente1270.Ofil sofopassaaconsiderar ueapot nciaapetitivaespiritualdisp edeuma tend ncia constitutivapr prianatural enecess ria aobemuniversal,nãodependendomaisdoconhecimento27.Apot nciadavontadenãoprecisaserdeterminadaad unum,comoseriaocasoseelafosse totalmente indeterminada, porque ela já possui em si mesma uma inclinaçãoaobemuniversal(bonum in communi)egenérico, ueposte-riormenteser particularizadaeespecificadatambémpeloh bito28.

Anaturezaeacapacidadenaturaldeaçãosãoinsuficientesparagarantiraperfeiçãodoatohumano.Aoseremindividualizadasemumhomemdeterminado,ascapacidadesoperativasperdemumaparcelado ueintegraascapacidadesoperativasdaespécie.Emoutraspala-vras,nemtudoo uerepresentaumaperfeiçãodaespécieéencontra-25 Cf.ST I -IIae .19a.10co.2 Cf.ABB , iuseppe,Lex et virtus. Studi sull evoluzione della dottrina morale di San ommaso

d’Aquino,p.188.27 Cf.ST I -IIae .10a.1co.: Hoc autem est bonum in communi, in quod voluntas naturaliter tendit,

sicut etiam quaelibet potentia in suum obiectum, et etiam ipse finis ultimus .28 Cf.ABB , iuseppe,Lex et virtus. Studi sull evoluzione della dottrina morale di San ommaso

d’Aquino,p.189. mte toimportanteéST I -IIae .10a.1ad .

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donamesmamedidaemtodososindiv duos cadaumdelesapresen-tar aspectosdessaperfeição,en uantolhefaltarãooutros.

Portr sdessaconcepção,est aindividuaçãodosseresmateriaisatravésdauniãodaformasubstancial matériaprima.In merosindi-v duosdeumamesmaespéciecompartilhamdeumaformasubstan-cial, ueserepeteemtodoseles,maséindividuada,particularizadaemumamatériaespec fica. alindividuaçãoacarretaaatualizaçãodepartedaspotencialidadesdaespécie, ue seachavamna forma,emgrausdiversos,sendo uealgumasdessaspotencialidadespodemseapresentarbastantelimitadasnoindiv duoconcreto.

Aspot nciasoperativasnosindiv duos,id nticasnasuaess n-cia,sãodiferentes,emtermosdeplenitude,emcadaente uepossuiamesmaformasubstancial.Haver sereshumanoscomoapetiteirasc -velin amado,en uantooutrostenderãoaumamaiorcalma oprazerrepresentar umapelomaispoderosoacertoshomens,en uanto uepara outros ele ser menos chamativo as intelig ncias são bastantediversas,apesardetodasseremhumanas,assimcomoocorrecomavontade dos seres humanos singulares29.

Nosentesparticulares,h disposiç es uev mdanaturezadaespécie, provenientes da forma, e disposiç es pr prias da naturezada uele indiv duo, relacionadasdiretamente matériaprima.Essasdisposiç esterãoin u nciasnosh bitos, ueentãosediferenciarão,demodosignificativo,nosv riosindiv duos 0.

Asvirtudessãoh bitosoperativosbons,conformeumadefiniçãouesetornoucl ssicaeomnipresentenaobra ueestamosestudando 1.

4. O umma heolo iae

Ossereshumanosapresentamaptid esnaturais, ueseencon-tramnaalmacomoumprinc pio,umatend ncia,erepresentamcertapresençadavirtudepor forçadanatureza.Para seatingiravirtude29 Sobreaindividuaçãodosentesnafilosofiade om s,h umae posiçãodetalhadaem IP-

PE , ohnF..The metaphysical thought of Thomas Aquinas:fromfinitebeingtouncreatedbeing.ashington: heCatholic niversit ofAmericaPress,2000.p. 51-75.

0 Cf.ST I -IIae .51a.1co.1 Cf.,dentrev riosoutroste tos,STI -IIae .55a. co. mae plicaçãoesclarecedorasobrea

virtudeem om sest em ORRE , ean-Pierre.Santo Tomás de Aquino:mestreespiritual, p. 18-22.

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ouve u a evo u o do on eito de virtude e o s de A uino A ro osta de iuse e Abb

consumada,taistend nciassãoinsuficientes,poisanaturezaédeter-minadaaalgo nico,en uantoaconsumaçãodasvirtudesnãosed segundoapenasummododeação,masdediversosmodos,deacordocomasdiferentesmatériasnas uaisasvirtudesoperamecomasdis-tintascircunst ncias ueenvolvemosatoshumanos 2.

Avirtudepressup e ueha aaparticipaçãodarazão.Omeroacontecimentodevido natureza,sem ual uerinterfer nciadainte-lig nciahumana,da ualdependeapr pria liberdadeeautonomia,não éumatovirtuoso .Asvirtudesnão t m comoprincipal carac-ter sticalevara ueoagentecumpraatoscomdeleiteefacilidade obomcumprimentodeumatosignificafaz -losegundoaeleiçãoreta,oueacontecepormeiodoe erc ciodaprud ncia.Da ue,semapru-d ncia,nema ustiçanemafortalezapodemservirtudesperfeitas 4.Nãobastae ecutarumaaçãoboa,éprecisofaz -labem,pelosmotivoscertosedentrodeumaordemcorreta ouse a,segundoaeleiçãoreta,enãosomentepor mpetooupai ão 5.Aprud nciaée igidaemcadaatovirtuoso,nãobastaaforçadarazãopr tica.

Nãoseriaobastante ueavirtudetornasseoagentealguém uetivesseavontadeprontapararealizarcoisas ustas antes,oato ustodevesercumpridojustamente,no mbitodamaneiradeagir.Dizemosque o homem age bem, em sentido estrito, quando tem uma vontade boa, uedealgummodocomandatodaasuavidamoral.Avontadeéiluminadapelaintelig ncia,maséela,avontade, uemdeterminaecomanda aspot nciasdasensibilidadeeapr priaintelig nciasãomovidas pela vontade .

ComoassinalaAbb ,cabe virtudemoralopapeldefazeruti-lizarcorretamenteasfaculdades,especialmenteno ueconcerne es-colhareta, istoé,oato interiordosu eito uecomandaa realizaçãoe terna da ação virtuosa 7. Sem a virtude, o agente ser incapazde

2 Cf.STI -IIae . a.1co. Cf.STI -IIae .58a.4ad .4 Cf.ST I -IIae . 5a.4co.5 Cf.STI -IIae .57a.5co. Cf.ST I -IIae .5 a. co.7 Cf.ABB , iuseppe,Lex et virtus. Studi sull evoluzione della dottrina morale di San ommaso

d’Aquino,p.201.

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determinar come atidão epelosmotivos corretos ual é amaneiramaisperfeitadesecomportaremdeterminadasituação 8.

Aosereconhecernavontadeumainclinaçãonaturalaoseufim,uenãoprecisariaserantecedidapelaintermediaçãodarazão,avon-tade se tornaa fonteprimeiradaação 9.Paraagir e chegar escolhaconcreta,elanecessitar daparticipaçãodasoutrasfaculdades,demodoprincipaldarazão,mastambémdasoutraspot nciasapetitivasdaalma.

Essae plicaçãodoatohumano tememcontaa comple idadeueoenvolve,eatribuir svirtudesumafunçãoprimordial.Elassãodemandadaspara ueosu eitotenhaumaretainclinaçãonassuasfa-culdades,demodo ueestastransmitam intelig nciaelementosim-portantespara ueeladiscirnaobem.

Aprud ncianãopodee istirsemasvirtudesmorais,por ueéarazãoretanoagir,nãoapenasnouniversal,mastambémnoparticular,ondeseencontramasaç es.Arazãoretapressup eprinc piosapartirdos uaiseladiscorre,tantouniversaiscomoparticulares.Osprinc piosuniversaisdaaçãosãoalcançadospelaintelig nciadosprinc pios,oh -bitopelo ualohomemconhece uedeveevitaromalefazerobem.Pararaciocinarsobreoparticular,esseh bitointelectualnãoésuficien-te ohomemnecessitaseraperfeiçoadoporh bitos,pelos uaissetornecomo ueconatural ulgarretamentesobreofim.Eistoocorrepelavir-tudemoral,eovirtuoso ulgaretamentesobreofimdavirtude40.

A ST avançaao indicarpara asvirtudesuma funçãopositiva,dedescobrimento edesvelamentodobemnas aç es concretas.Elasgarantemaoagenteumainclinação,umdiscernimentoporconaturali-dadedo uese ao timoemumasituaçãoespec fica.

Nãoéposs velpossuirplenamenteumavirtude,nemproduziratosbonsnosentidoestritodapalavra,sem ueha aapresençadeto-dasasoutrasvirtudes.Paraproduzirumaaçãoplenamenteade uada,tantoemseuob eto uantonomodocom uefoifeita,éprecisoe istirnoagentetodaumaestruturadevirtudes ueaperfeiçoesuaspot n-cias.Semessaestrutura,oagentepoder realizarumatoe ternamentecorreto,mas uenãoser virtuosoemsentidoestrito,ouporfaltarnele

8 Cf.E DERS, eo.La vie morale selon Saint Thomas d’Aquin:uneéthi uedesvertus.Paris: di-tionsParoleetSilence,2011.p.1 1.

9 Cf.ST I -IIae .9a. co.40 Cf.ST I -IIae .58a.5co.

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ouve u a evo u o do on eito de virtude e o s de A uino A ro osta de iuse e Abb

algoderacionalidade,ounãotersidoidentificadoperfeitamentepelosu eitocomoo timonasituaçãoconcreta,ouporhaversidomotivadodemaneiraimpr pria.Osu eitoacertar poracidente,ouporraz ese uivocadas,o uemanchaeentorpeceaperfeiçãodoato.

Pelasimplese posiçãofeitaacimasobreaSecunda Pars da Sum-

ma Theologiae, acredito ue fi ue clara as diferenças em relação aosescritosanterioresdoA uinate uetratavamdobem,emconcretooSuper Sententiis, o De veritate e a Summa contra gentiles. Houveumaevoluçãosignificativanoconceitodevirtude,nosentidodesercadavezmaiorarelev nciadelanavidamoral.Osdiferentesh bitosopera-tivosbonsnaspot nciasracionaisesensitivaspassamaserre ueridosparao agente ad uirir a conaturalidade comobeme, assim,poderen erg -loeserguiadoporele,tambémcomaintervençãodarazão.

chamativo uepoucosestudiosostenhamseapercebidodessaevolução,tãobemdemonstradapor iuseppeAbb .Oreconhecimen-todoamadurecimentodopensamentode om sdeA uinoacercadavirtudeéumaspecto importanteparacompreendera ri uezadesseautor,bemcomoparadar-secontado uantosuaobratemdeoriginaledesafiador.Elepartedenoç esprevalentesemseutempo,parache-garposteriormenteaposiç esnas uaisseencontrar sozinho,sendopoucocompreendidoinclusivepelosseusdisc pulosimediatos.

Aelaboraçãodafilosofiamoralemtornodasvirtudesdesapa-recer , sendopraticamente e tinta poucasdécadas ap s amortedeom seapenassendorecuperadano ltimoterçodoséculoXX.Nesseper ododeeclipsedasvirtudes,a nfaseser colocadanaleimoralounas regrasdecondutauniversais, enãomaisnosh bitosdo indiv -duo ueopermitemdistinguireagirdeacordocomobemconcretouedescobrediantedesi.Mesmososautores ueinsurgirãocontraamoraluniversalista,comoNie chee ier egaard,pore emplo,nãoretornarão svirtudes,masfarãoantesumtrabalhodedemoliçãodasleisracionaisedevalorizaçãodavontade.

H ind ciossegurosde ueumresgatedaéticatomista,talcomoapresentada na Segunda Parte da Summa Theologiae,este aacontecen-

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dodemaneiraconsistentenosdiasdeho e41,o ueabreumcampodeestudoricoe instiganteparaos uepretendemseaprofundarnafilosofiamedievalenamoral.

ABB , iuseppe.Lex et virtus. Studi sull evoluzione della dottrina morale di San To mmaso d’Aquino.2.ed.Roma:Fontanadi reviEdizioni,2010.29 p.

.Felicità, vita buona e virtù.2.ed.Roma: AS,1995. 58p.

.Quale impostazione per la filosofia morale Roma: AS,199 . 28p.PINC AERSOP,Servais.Las fuentes de la moral cristiana:sumétodo,sucon-tenido,suhistoria.trad.de uan osé arc aNorro. .ed.Pamplona:E NSA,2007.544p.Sancti HOMAEDEA INO.Questiones disputatae de veritate.Operaomniaiussu eonisXIIp.m.edita.Roma:EditoridiSan ommaso,1970-197 .t.22.Dispon velnos tio .corpusthomisticum.com,editadoporA ARC N,Enri ue. ltimoacessoem22demaiode2014.

.Suma contra los gentiles.Edici nbiling eendosvol menes.2.ed.Madrid:Bibliotecadeautorescristianos,19 8.

.Summa Theologiae. e todaEdição eonina,Roma,1891.Dispon -velnos tio .corpusthomisticum.com,editadoporA ARC N,Enri ue.ltimoacessoem22demaiode2014.

.Scriptum super Sententiis. e todaediçãodeParma,189 .Dispo-n velno s tio .corpusthomisticum.com,editadoporA ARC N,Enri-ue. ltimoacessoem22demaiode2014.ORRE , ean-Pierre.Iniciação a Santo Tomás de Aquino:suapessoaeobra.trad.de uizPauloRouanet.2.ed.SãoPaulo:Ediç es o ola,2004.4 2p.

.Santo Tomás de Aquino:mestreespiritual.trad.de .Pereira.2.ed.SãoPaulo:Ediç es o ola,2008.504p.IPPE , ohnF..The metaphysical thought of Thomas Aquinas:fromfinitebeing

touncreatedbeing. ashington: heCatholic niversit ofAmericaPress,2000. 0p.

41 evepapeldestacadonarenovaçãodosestudossobreaéticatomista, ueservedebaseparaestetrabalho,olivrodePINC AERSOP,Servais.Las fuentes de la moral cristiana:sumétodo,sucontenido,suhistoria.trad.de uan osé arc aNorro. .ed.Pamplona:E NSA,2007.

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O mistério do mal na Suma de Teologia de

Tomás de Aquino (Prima pars, questões 48 e 49)

Rodrigo Aparecido de Godoi

Universidade Federal de São Paulo

C

O problema do mal consiste em como conceber a existência de substâncias imperfeitas, deficientes, más” que são oriundas de umCriadorsumamenteperfeitoebom.Destemodo,cientedodesafioedacomplexidadedeumaconciliaçãoentreaaçãocriadoradeDeuscomapresençadomalemsuasobras,TomásdeAquino (1224/25–1274),grandeexpoentedatradiçãocristã,ocupou-secomatemáticadomalemváriosdeseusescritos1.

Entre os textos tomasianos que tratamdesse assunto, pode-semencionar,sobretudo,asquestões48e49daPrima pars da Summa The-

ologiae,nasquaisoAquinaterealizaumaprofundaediligenteanálisedoproblemadomal,enfrentando-oemtodasuaamplitude:suanatu-reza;seusujeito;suadivisão;suacausa.

1 ...citadosporordencronológico,sonlossiguientes:Comentario al Il libro de las Sentencias, dis-tinción34.Enestadistinciónexponeelproblemadelmalentodasuextensión.Siguenotrasdistincionesenlasqueestudiaelmalmoraloelpecado.Fuéescritoenlosa os1254-1256.Sigueluegoel Comentario al “De Divinis nominibus”deDionisio,quefuéescritoem1261,ycujocapítuloIVestádedicadotambiénengranpartealestudiodelmal,puesocupalaslecciones13-22.EnellibroIIIdelaSuma Contra Gentes,escritoemlosa os1261-1264,dedicóloscapítu-los4-15asimismoaestudiarelproblemaencuestión.EnlaPrimeraPartedelaSuma Teológica, escritalosa os1266-1268,lededicadoscuestiones:la48yla49. porúltimolacuéstionpri-mera de las Disputadas “De Malo”,escritasen1269”(SAURAS,1953,p.596).

Carvalho, M.; Hofmeister Pich, R.; Oliveira da Silva, M. A.; Oliveira, C. E. Filosofia Medieval. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 165-181, 2015.

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Sendoassim, considerando uea situaçãodos te tosé impor-tanteparaacompreensãodotratamentodadopor om sdeA uinoaomistériodomal,opresentetrabalhoseprop eapresentar,emumprimeiromomento,olugarocupadopelas uest es48e49naar ui-tetônica da Suma de Teologia.Numsegundomomento,visa-se,ainda,elucidar ue,aoseocuparcomoproblemadomal,oAngéliconor-teou-sepelapreced nciaontol gicadobem,aoconceber uesomenteessepossuisubst ncia,en uantoomalsecaracterizapelaaus nciadamesma,umaprivaçãodeumbem(privatio boni),ouse a,umaespéciedenão-sernoser.

1 A 48 49 rima ars umma heolo iae

Nopr logoda uestão2daPrima pars, om sdeA uinoas-sinala ueoob etivoprincipalda eologiaconsisteem transmitiroconhecimentodeDeusnãoapenasao ueeleéemsimesmo,mastam-bémen uantoéprinc pioeofimdascoisas,especialmentedacriaturaracional (2001,p.1 1).Pararealizaresseprop sito,oAngélicoesta-beleceuoplanogeraldesuaobra,organizandosuae posiçãoemtr spartes:aprimeiratratadeDeus asegunda,domovimentodacriaturaracionalparaDeus aterceira,doCristo, ue,en uantohomem,éparaoserhumanoocaminhoparadirigir-seaDeus.

Depois de explicitar as três partes de sua Suma, em seguida, eleapresentaaestruturadaprimeiraparte, uetratadeDeus,a ualtambémsedivideemtr sseç es:

O ueépertinente ess nciadivina(ea quae pertinent ad essentiam

divinam: .2–2 )O ueépertinente distinçãodaspessoas(ea quae pertinent ad

distinctionem personarum: .27–4 )O ue épertinente aoprocederdas criaturas apartirdele de

Deus (ea quae pertinente ad processum creaturarum ab ipso: .44–119). Constata-seassim ueo con untode uest es ue seocupam

comamaneirapela ualascriaturasprocedemdeDeus ( .44–119)aparece, dentrodo es uemadaSuma de Teologia, depois do bloco de uest es uetratadeDeussegundoo ueeleéemsimesmo(secundum

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O S A (P , 48 e 49)

quod in se est),ouse a,nofimdaPrima pars. Desta forma, para se compre-enderosentidodessaestruturaestabelecidapor om sdeA uino:

Esprecisotenermu presente ueelpuntodevista, uedeter-minanos loelordene positivo,sinotambiénelcontenido suspontos de referencia, es, en la Summa Theologiae, estrictamente teol gico.Esto uieredecir ueSto. om s,antesdeemprenderelestudiodelarealidaddadaalae perienciahumanaensufi-nitud,haasentadolae istenciadeDios elconocimientodelosatributosdivinos, ,mu enespecial,lavidaintratrinitaria.Nopretende,portanto,Sto. om sdemonstraranecesidaddead-mitirlacreaci nalavistadelmundoenelhombreseencuentra,sinodee ponerlanecesidadde ueelmundoprocedadeDios de uémanera(BARRENECHEA,1994,p.425).

Porconseguinte,aconsideraçãodaprocessãodascriaturasapartirdeDeustambémser tripartida,umavez ueoA uinatetrata:emprimeirolugar,daproduçãodascriaturas emsegundolugar,dadistinção entre elas em terceiro lugar, da sua conservação edogo-vernodasmesmas. aisseç es,porsuavez,tambémsesubdividem,sendoposs velestabelecer,apartirdaspr priasconsideraç esde o-m sdeA uino, o presente es uemapara essa seção formadapelasuest es44–119:

1)PROD ODASCRIA RAS( .44–4 ) A)acausaprimeiradosentes( .44) B)omododeemanaçãodascoisasdoprimeiroprinc pio( .45) C)oprinc piodeduraçãodascriaturas( .4 )2)DIS IN ODASCRIA RAS( .47–49) A)adistinçãodascoisasemgeral( .47) a dis inção do em e do mal C)adistinçãoentreacriaturaespiritualecorporal( .50–102)

-criaturasespirituais:osan os( .50– 4) -criaturascorporais:ouniverso( . 5–74) -criaturascompostasdecorpoeesp rito: ohomem( .75–102)

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)CONSERVA OE OVERNODASCRIA RAS( .10 –119):A)Ogovernodascoisasemgeral( .10 )B)Osefeitosdogovernodivinoemparticular( .104–105)

-aconservaçãodae ist nciadascoisasporDeus( .104)-amutaçãodascriaturasporDeus( .105)

C)amoçãodosserespelamediaçãodeoutrascriaturas( .10 -119)

-aaçãodascriaturasespirituais( .10 –114)-aaçãodospuroscorpos( .115-11 )-aaçãodoshomens,compostosdenaturezaespiritualecorporal( .117-119)

Combasenessees uema,torna-see pl cito uenessaseção,o

A uinateseocupa,emprimeirolugar,comaaçãodivinaprimordial,uefezsurgirtodasascoisasapartirdonada,ex nihilo. Dessa manei-ra,na uestão44,cu ot tuloé utrum Deus sit causa efficiens omnium entium ,oAngélicodemonstraanecessidadede uetudoa uilo uede ual uermodoe istaéfeitoporDeus.Issose ustificapelofatodeue, segundoacompreensão tom sica,Deuséopr prioser subsis-tenteporsi(esse ipsum subsistens),cu aess nciaéoseupr prioser2. osentesfinitos,os uaissesecaracterizamporumanão identidadeentre essência e ser ,nãosãooser,mast moserporintermédiodoato2 Anoçãode ueemDeusess nciaeserseidentificamédecapitalimport nciaparaopensa-

mentode om sdeA uino,visto ueamesmaéumaconstanteemtodasuaobra,podendoserencontradanosseusdiversosescritoscomo,pore emplo:O ente e a essência – Algoh ,comoDeus,cu aess nciaéoseupr prioser.Porisso,fil sofosh ueafirmamDeusnãoteruididadeouess ncia,por ueasuaess nciaoutracoisanãoé ueoseuser ( 1 1981,p.8 ) Suma contra os Gentios– todacoisa uerecebeoserdeumacausadistintaécausado,enãoé,conse uentementecausaprimeira.Ora,Deuséaprimeiracausaincausada(...).Dondea uididade uerecebesseacausadeoutronãosera uididadedeDeus. ogo,oserdeDeusidentifica-senecessariamentecomasua uididade( ivroI,XXII 1990,p. 0) Compêndio de Teologia– emDeus,porém,nãoéumacoisaoque é ouse a,oquod est ou essência], e, outra coisa, o pelo que é algo istoé,oquo estoue ist ncia ,pois,comon Elenãoh composição,comofoidemonstrado,tambémnãoh d Eleoutraess ncia ueoseupr prioser (199 ,p.40) naSuma de Teologia ver,sobretudo,artigo4daterceira uestãodaPrima pars.

A bibliografia ue se refere distinção real entre ess ncia e ser é vast ssima, devido asgrandescontrovérsiasgeradasportalconcepção,as uaisseformaramlogoap samortedoA uinateeprosseguiramaolongodosséculosdaescol stica.Acredita-se,noentanto, ueateoriadadistinçãorealentreess nciaesertenhasidoafirmada,pelaprimeiravez,pelofil sofo rabeAlfarabi.Noentanto,esteconcebeae ist nciacomosendoumacidentedaess ncia( I SON,1998,p.429).Emconson ncia,Avicenatambémafirma ueae ist ncia

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causaloriundodeDeus,ouse a,ascriaturasnãodet moserdefor-ma absoluta, mas participamdoser,pois,docontr rio,algoseriaasuapr priacausaeficiente,produzindo-seasimesmonoser,o ueparaoA uinateéimposs vel.

Resulta,portanto, uetudoo ueédistintodeDeusnãoéseuser,masparticipadoser. necess rio,porisso, uetodasascoi-sas ue se diversificam conformeparticipamdiversamente doser,sendomaisoumenosperfeitas,se amcausadasporumenteprimeiro,absolutamenteperfeito(S. h.I, .44,a.1).

Na uestão45,porsuavez,oAngélicopassaa e ponerelpe-culiarsentidoen uelacausalidadedivinasee erceenlaproducci ndetodalarealidade (BARRENECHEA,1994,p.424).Nessemomen-to, eledefende ue a emanaçãode todosos entes apartirda causauniversal, ueéDeus,a ualsedesignacomonomedecriação, implica aproduçãototaldarealidadedonada,ex nihilo,semnenhumpressu-posto,pois nada significanenhumente (2002,p.4 ).Sendoassim,aaçãodeDeusnãopressup esu eitoalgum,poisanoçãodecriaçãoimplicaaine ist nciadeumacausamaterialnaproduçãodomundo:acriação ueéaemanaçãodetodoser,éapartirdonão-ente ueéonada (2002,p.47)4.

Porconseguinte,aotratardotemadacriação, om sdeA ui-no se defronta com outra problem tica: a relação da criação com atemporalidade.As controvérsias em torno do começo no tempo domundocriadooudaeternidadedomundoproduziramcalorosasdis-cuss esduranteaIdadeMédia.Dessemodo,na uestão4 ,aoseocu-

éumacidentepredicamentaldaess ncia.Porconseguinte, om sdeA uino,desdeoin ciodemagistério,o uepodesercomprovadopelastesesdoseuescritode uventude,O ente e a essência,sempreafirmouadistinçãorealentreess nciaeser. odavia,longedereduziroseraummeroacidentedaess ncia,paraoA uinateédopr prioatodoesse ueaess nciarece-beaperfeição ltima,ouse a, oessetomistaéopr prioatoemvirtudedo ualaess nciaé.Ae ist nciaatualnãopodesersimultaneamenteaperfeiçãoconstitutivaouatodaess nciaeseuacidente ( I SON,19 2,p. ).

4 importanteressaltar ueembora om sdeA uinoutilizeotermoemanação para designar acriação,aaçãodivinade produzirascoisasemseuserapartirdonada (cf.S. h.I, .45,a.2,respondeo),eleentendenãoumprocesso ueocorrenecessariamente,semliberdade.Pelocontr rio,trata-sedeumatoeminentementelivre,conscienteeamorosoporpartedeDeus.Nesseprisma,nãosetrataa uidacompreensãodefendidapeloemanatismoneopla-t nico,o ual permanecesobosignodanecessidadenaProcessãodaPrimeiraIntelig ncia,nãoobstantealiberdadereconhecidaao no (VA ,2002,p.1 7-1 8).

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parcomesseassunto, om sdeA uinodefendeaorigemtemporaldomundocriado,emboraadmita ue,dopontodevistaracional,ambasas teses–adeumacriaçãonotempoeadeumacriaçãosemin ciotemporal–possamseraceitas,ouse a,nãoh nenhuminconvenienteracional ueimpossibiliteaafirmaçãodacriaçãodomundoab aeterno.

Depreende-sedoe posto ueaafirmaçãodaorigemtemporaldomundonãoéresultadodeargumentosracionais,s comarazãonãoseéposs velprov -la,trata-seassim,paraoA uinate,deumar-tigodefé,comoelemesmoafirmanosegundoartigoda uestão4 :

S pelafésesustenta ueomundonãoe istiusempre(...).Defato,arazãonãopodeconhecerdavontadedeDeussenãoo ueéabsolutamentenecess rio ueDeus ueira(...).Avontadedi-vina,entretanto,podemanifestaraohomempelarevelação,naualsefundaafé.Portanto, ueomundotenhacomeçadoéob-etodeféenãodedemonstraçãooudeci ncia(2002,p.71).

Outrossim,encerradaaabordagememtornodaproduçãodascriaturas( .44–4 ),passa-se segundapartedessaseção,a ualseocupacomadistinçãodascriaturas( .47–49).

Na uestão47, om sdeA uino tratadadistinçãodascoisasemgeral,determinando lacausadetaldistinci n(a.1),lacausadesudesigualdade(a.2) elorden uereina,apesardetalesdiferenças,enelmundo (BARRENECHEA,1994,p.42 ).Naverdade,nessa ues-tão, om sdeA uinoapresentaumaconcepçãodeuniversoprofun-damenteharmoniosa.Deacordocomsuae posição,omundocriadoéumtodoordenadoeunificadoe,emborae istaumapluralidadedecriaturas, nãoh umadispersão cacofônica, mas sim uma unidade de ordem,umaverdadeiraharmonia(MA DAM ,2002,p.77,notaa).

Além disso, ele também insiste na bondade radical da obradeDeus, umavez ue ele afirma ue Deus produziu as coisas noserpara comunicar suabondade s criaturas, bondade ue elasde-vemrepresentar 5. alfinalidadee plicaapr priadiversidadeentreascoisascriadas,assimtambémcomoamultiplicidadedasmesmas.Issoocorrepor ueuma nicacriaturanãoseriacapazderepresentarabondadedeDeussuficientemente,sendonecess riascriaturasm l-

5 Cf.S. h.I, .4,a. eS. h.I, .20,a.2.

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tiplasediversasparaseatingirtalfim,segundoargumentaopr prioA uinate:

Donde se pode afirmar ue a distinção entre as coisas, assimcomo sua multiplicidade, provém da intenção do agente pri-meiro ueéDeus.Comefeito,Deusproduziuascoisasnoserparacomunicarsuabondade scriaturas,bondade ueelasde-vemrepresentar.Comouma nicacriaturanãoseriacapazderepresent -lasuficientemente,Eleproduziucriaturasm ltiplasediversas, afimde ue o ue falta aumapara representar abondadedivinase a supridoporoutra.Assim,abondade ueest emDeusdemodoabsolutoeuniformeest nascriaturasdeformam ltiplaedistinta.Conse uentemente,ouniversointeiroparticipa da bondade divina e a representa mais perfeitamente ueumacriatura, ual uer uese aela(S. h.I, .47,a.1).

as uest es48e49versamsobreumadasformasdedistinção

dascoisasemparticular:a dis inção en re o em e o mal. Com base no uesee p satéomomento,torna-see pl cito ueessas uest es en-contram-sesituadasemumlugarbastanteprecisoeimportantenaar-uitet nicadaSuma de Teologia:A)pertencemaocon untode uest esuetratamdaprocessãodascriaturasapartirdeDeus( .44–119) B)encontram-sesituadas,maisespecificamente,ap saconsideraçãodadistinçãogenéricadosentes( .47),comoumaspectoespec ficodetaldistinção C)sãoanteriores pr priadistinção uesed entreacriatu-raespiritualeacriaturacorporal( .50–102).

Constata-se,então, ueé ustamentenessemomentobastantesignificativodae posiçãotom sica,depoisdaconsideraçãodouni-versocomoobradaaçãocriadoradeDeusedoestabelecimentodoprinc piode ueafinalidadedacriaçãoémanifestarecomunicarabondadedivina scriaturas, ueemergeatem ticadoproblemadomaldeummododesafiador,pois: Seapalavra Deus temums sentido,s podesignificarumserperfeito,autorrespons veldeto-dasascoisas.(...)Comoconciliaraimperfeiçãodaobracomaperfei-çãodoobreiroecomoremediarisso ( I SON,200 ,p.271).Aindamais,comosustentaratesede ueouniversoe istepara ueDeuscomuni uesuabondade scriaturasdiantedapresençadomalemsuas obras.

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Diantedacomple idadeda uestão,adistinçãoentreobemeomalfiguracomoaprimeira ueseestudanaSuma de Teologia, antes dapr priadistinçãoentreacriaturaespiritualecorporal,conforme sealudiuacima.DeacordocomBarrenechea(1994,p.42 ) lapriori-dade uesedaaestadistinci nobedecea uelaoposici nentrebienmaleslaoposici nm sradical,nos lofrenteaDios,considerado

como el ser perfectísimo, sino tambíen frente a la unidad ordenada del mundo .

Destamaneira,paraenfrentaressegrandedesafio,na uestão48, om sdeA uinobuscadefiniro ueéomal. al uestãoécom-postaporseisartigos,asaber:

1. Omaléumanatureza2. Omalseencontranascoisas. Omalest nobemcomoemseusu eito4. Omaldestr itotalmenteobem 5. Divide-seomalsuficientementeempenaeculpa. emmaisrazãodemalapenaouaculpa Na uestão49,porsuavez,eleseprop eainvestigaracausa

domal,apartirdetr sartigos:1. Obempodeseracausadomal 2. Osupremobem, ueéDeus,écausadomal . H umsupremomal uese aacausaprimeiradetodososmales .

Aan liserealizadanas uest es48e49daPrima pars da Suma de

Teologia oferece uma verdadeira síntese dos elementos fundamentais dadoutrinatom sicasobreomistériodomal,constituindo, untamen-te com as Questões disputadas sobre o mal(De Malo),opensamentodefi-nitivode om sdeA uinoarespeitodessa problem tica.

Porfim,depoisde ter realizadoessesapontamentosacercadolugarocupadopelas uest es48e49daPrima parsnaar uitet nicada Suma de Teologia,not picosubse uente,buscar-se- ressaltar,es-pecialmente, ueao inseriressas uest esno mbitodasconsidera-ç esgenéricasdascriaturas,concebendoadistinçãoentreobemomalcomosendoaprimeiradivisãoespec fica, om sdeA uinodefendeaimpossibilidadedeomalserumasubst nciaoucertanatureza.

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Aoinvestigaracercadanaturezadomal,oA uinatepartedaafirmaçãodaidentidadeentresereente,a ual haviasidorealizadana uestão5daPrima pars.Emvirtudedisso,naS. h.I, .5,a.1,aoresponder pergunta obemsediferenciadoentenarealidade ,eledeixa claro ente e bem se convertem ,ouse a, ueentrebemeentenãoh umadistinçãoreal,massomenteumadistinçãoderazão,ouse a,trata-sedeumadistinção entreduas noç esdeumamesma coisa,(...)umnãodifererealmentedooutro,masapenasdiferem uanto ssuasnoç es(rationes) (A EVEDO NIOR,2007,p.44).Issoocorre,por ueotermobemacrescentaalgo uenãoée plicitadonoconceitodeente,istoé,obemacrescentaanoçãode uetodoenteéapetec vel,dese vel,comoe plicitaopr priote tode om sdeA uino:

O bem e o ente são id nticos na realidade eles s se diferemuanto razão.Eisaprova:arazãodobemconsisteem ueal-gumacoisase aatrativa.Porissomesmo,oFil sofo,nolivroIda tica,assimdefineobem: A uiloparao ualtodasascoisastendem .Ora,umacoisaatrainamedidaem ueseéperfeita,pois todosos seres tendempara apr priaperfeição.Alémdomais,todoseréperfeitonamedidaem ueseencontraemato. certo,portanto, uealgoébomnamedidaem ueéente,poisoseréaatualidadedetodasascoisas,como seviu. entãoevi-dente ueobemeoentesãoid nticosnarealidade masotermo

Nesteponto,est sefazendorefer nciaaobemontol gico.Sendoassim,éimportanteassina-lar ue,nopensamentotom sico,h umadiferençaentrebemontol gicoebemmoral.Este éobem ueohomeméchamadoacumprircomaspr priasaç es.En uantoobemontol gicoéobem ueseencontraob etivamentenascoisaseécolocadoematoporDeusse adiretamentese aatravésdealgumascriaturas,obemmoraléobematuadopelohomemmesmomedianteopr prioagir,egraçasao ualohomemmesmotorna-semoralmentebom.Nascriaturasprivadasderazãoabondadeontol gicaétudo nohomem,aoinvés,abondadeontol gicaé apenaso in cio,opressupostodobemmoral.Osentesprivadosde razão sãobons ohomem,pelocontr rio,temoprivilégiodetornar-sebom(oumau)medianteoe erc ciodaliberdade (MONDIN,2000,p.100). apartirdesseviés, ueoA uinateafirma: Realmente,comodeumladoobemconsistepropriamentenoatoenãonapot nciae,deoutraparte,oato ltimoconsistenaoperaçãoounousodascoisas uesepossui,obemdohomemconsistepropriamentenaaçãoboaounobomusodascoisas uepossui.Ora,usamostodasascoisaspornossavontade. emrazãodaboavontade,graças ualusabemascoisas uepossui,ueumhomemédeclaradobom,en uantosuavontadem otornamau.Poisa uele uetemvontadem podeusarmalmesmoobem uetem (S. h.I, .48,a. ).

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bome primearazãode atrativo ueotermoentenãoe prime(S. h.I, .5,a.1).

Ademais,tomandocomoprinc pio uetudoo ueédese veléumbem,deve-seconsiderar uetodanaturezadese asuapr priae is-t nciaesuapr priaperfeição7,ouse a, laperfecci n elserdetodanaturalezason,pues,verdaderamentebienes ( I SON,1951,p.222).Aindamais,algoéperfeitosomenteseenamedidaemseencontraemato.Ealgoéemato,namedidaem ueéente. ogo, a uilo uetodasascoisasapetecem( ueéobem),ouse a,a uilo ueéapetec vel,somenteoénamedidaem ueforente 8(A EVEDO NIOR,2007,p.44).

Dada a convertibilidade entre ente e bem9,a ualpermiteafir-mar uetodososentessãobons,resulta ueoopostoaobem,ouse a,7 odoser ente ,comotal,ébom,istoé,suscet veldesatisfazerodese odeumoutroser

ente edelhecomunicaraperfeição uelhefalta. esteaspectodebondade uechamamosbondade ativa (bonitas activa).–Mastodoser ente tem,tambémemsi,umabondadeintr n-seca, ue chamaremosde bondade formal (bonitas formalis), e ue consiste em suapr priaperfeição,istoé,nopr prioser ueé possui (e,segundoograudeste).Estaperfeição(ouesteser),todososseres entes aamame ueremconserv -la.Da oa iomatodoser ente ébomparasi(omne ens bonum sibi) ( O IVE ,19 5,p.252).

8 odoente,en uantotalébom,poistodoente,en uantotalseencontraemato,edealgummodoéperfeito,por uetodoatoécertaperfeição.Ora,operfeitotemrazãodeseratrativoedebem,comoconstadoacimae posto.Porconseguinte,todoente,en uantotal,ébom (S. h.I, .5,a. ).

9 Ali s,nesteponto,éprecisoressaltar ueoBonum(Bom) untamenteaoUnum ( m),aoVerum (Verdadeiro), Res(Coisa)eaoAliquid(Algo)constituemogrupodostranscendentais do ente. Naverdade,ostranscendentaissãopropriedades ueconvématodasascoisasde ual uerg nero.Dessaforma,elesformamumtodocomoente,sendoe uivalentesaele,sãoconvers -veis com o mesmo, a ponto de se distinguirem apenas conceitualmente dele, exprimindo mo-dos uenãosãoe pressospelo nicoconceitodeente( O IVE ,19 5,p.24 ).ParaForment(200 ,p. 9), lostrascendentalescumplentrescondiciones.Enprimerlugar,poridentificarsetotalmenteconelente,todoslostrascendentalessonidénticosabsolutamenteentres .Deah ue seane uivalenteso convertiblesen lasproposiciones.Puedenpermutar-seentreellos,comosu eto predicado.Ensegundolugar,sedaundesarrolloconceptualdeloimpl citoaloe pl cito.Aun uelostrascendentalesseidentificanrealmenteentres ,sinembargo,cadaunodesusconceptoscorrespondientessondistintos, a uetodoconceptotrascendentale plicitaunmatizdiferentedelconceptodeente. asnocionestrascendentalesserefierenalamismarealidad,perolamanifiestancadaunodeellosenunaspectodistinto.Por ltimo,laterceracondici nesladerivaci ngradualdelaspropriedades. osconceptostrascendentalesresultandeunprocesosucesivoordenado .Sobrea tem ticadostranscendentaiscf.aindaQuestões

Disputadas sobre a Verdade .1,a.1–In: OM SDEA INO,santo.Verdade e Conhecimento:uest esdisputadas Sobreaverdade e Sobreoverbo e Sobreadiferençaentreapalavradivinaeahumana .São Paulo:MartinsFontes,1999.p.1 8-157.

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o mal10nãopodepossuirnemformanemser. ogo,aoinvésdeumenteouumanatureza,otermo mal designaumadeterminadaau-s nciadebemedeser,umaespéciedenão-ser. nessesentido ueoA uinate,aoverificarseomalpossuiumanatureza,assevera ue:

mdosopostoséconhecidopelooutro,comoatrevapelaluz.Porisso,paraconhecero ueémal,éprecisosaberarazãodobem.Ora,dissemosacima ueobemétudoo ueédese vel.Assim, como todaanaturezadese a seu ser e suaperfeição, éprecisodizer ueosereaperfeiçãodetodaanaturezat mrazãodebondade. portantoimposs vel ueomalsignifi uecertoseroucertanaturezaouforma.Resta,portanto, ueotermomalde-signecertaaus nciadebem.Eispor uesedizdomal ue neme iste,neméumbem por uesendooentecomotalumbem,nãosenegaumsemooutro(S. h.I, .48,a.1).

Conse uentemente,s obempossuisubst ncia,en uanto ueomalsecaracterizapelaaus nciadamesma,nãotendoenemsendoumanatureza, poisestasedizapenasdoque é ser,masomalnãoéser,senãoprivaçãodeser 11(FAI ANIN,2005,p.5- ),possuindoas-simumae ist nciaapenasnosentidodediminuiçãodobem.Omal,portanto,nãosendoumasubst ncia,nãoéumarealidadepositiva,es-tandonascoisasnãocomoalgoreal,visto ueo nomine mali significet quaedam absentia boni (S. h.I, .48,a.1).

Contudo,aosedizer ueomaléumnão-ser, om sdeA uinonãoest negandoa e ist ncia dosmalesnomundo.Issose ustifica,pelofatode ueo não-ser podesertomadoemduplosentido:comonegação ou como privação. No primeiro sentido, o não-serécompreen-dido comoabsoluta aus nciade ser, acepção esta uenãopode seraplicadaaomal,pois:10 Omalédefinidocomoo ueseop eaobem(...). embremos ueeml gica,e istem uatro

modosdeoposição:1.aoposiçãodecontradição,na ualumdostermosaboleooutro 2.aoposiçãodeprivação, ueaboleuma ualidadegenéricapossu daporumdostermosedei asubsistirosu eitocomum .aoposiçãodecontrariedadeentreduas ualidadesdomesmog nero 4.aoposiçãoderelação, uenãosup enenhumafalta,mascertarelação.(...)Sto. om smostra ueomaléaprivaçãodobem (Maldamé,2002,p.84,notad).

11 Elmalnoes,pues,unapositividadnatural noesunser.Silofuese,nopodr anidesear,niserdeseado, porconsecuencia,nopodr aniobrarnimoverse por uetodaacci ne e-cutadaorecebidasee erceenvistadeunfin,lo uee uivaleadecir:envistadeunbien (SER I AN ES,194 ,p.72).

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Comofoidito,omalimplicaaaus nciadobem.Masnãoé ual-ueraus nciadobem uesedizmal.Aaus nciadobempodesertomadaoucomoprivaçãooucomonegação.Aaus nciadebemtomadacomonegaçãonãotemrazãodemal,pois,casocon-tr rio seriamm s as coisas uenão e istemdenenhumama-neira,e todacoisaser m pelofatodenãoterobemdeumaoutra.Pore emplo,ohomemseriamaupornãoteraagilidadedacabraouaforçadoleão(S. h.I, .48,a. ).

Segue-se,então, ueosentidodenão-ser aplicado ao mal deve serosegundo,ouse a,odeprivação.Estanãoconsistenumanegaçãoabsoluta,nãodenota ueomalnão-ésimplesmente,masapontaparaofatode ueomaléafaltadealgo,umacar nciaemumsu eito: Aau-s nciadobemtomadacomoprivaçãoéchamadademal.Pore emplo,aprivaçãodavistaéchamadacegueira (S. h.I, .48,a. ). mpoucomaisadiante,emoutrapassagem, om sdeA uinoassevera ue:

...deve-sedizer uepor ueomaléaprivaçãodobemenãoumasimplesnegaçãocomoacima foidito,nemtodadefici nciadobemémal,masadefici nciadobem uesedeveterpornature-za.Adefici nciadavisãonãoémalparaapedra,masoéparaoanimal,poisécontraarazãodapedrapossuiravista(S. h.I,.48,a.5,ad.1).

Esteéosentidopr priodeprivação uandoseafirma ueomaléaprivaçãodeumbem,istoé,a car nciada uilo uedeveserpossu -doemalgumtempoedealgummodo,evidentementechama-sedem acoisa uecarecedaperfeiçãodevida (Compêndio de Teologia I,CXIV).ParaoA uinate,então,omaléaprivatio boni, a ausência de um bem devido12: acarenciadealgunaperfecci nogradodeseresdebidoal12 Emsuaabordagemsobreomal, om sdeA uinodei a-senortearpelosensinamentosda

radição cristã, seguindo os passos dos ilustres pensadores ue o antecederam, fazendoressoar,sobretudo,astesesdeAgostinhodeHipona( 54–4 0), ueconcebeomalnãocomoumasubst ncia,mascomodefici ncianumasubst ncia,comoprivatio boni: omaléapenasprivaçãodobem,privaçãocu o ltimotermoéonada (Confissões III,7 2010,p.50).Destarte,aconcepçãodomalcomoprivação haviasidoesposadaporpensadorescristãoscomoCle-mentedeAle andria(150-220d.C.),Or genes(185-25 d.C.),Atan sio(295- 7 d.C.),Bas liodeCesaréia( 19- 79d.C.),Ambr sio( 9- 97d.C.).DeacordocomSanford(1988,p.1 9-170), Or genes,pore emplo,denominouomalde faltaacidental deperfeição.Emoutraspalavras,omalpassouae istir uandoacriaçãosedesvioudaperfeição ueDeusalme ava(...).Oin uentete logodoOriente,Bas liodeCesaréia,afirma: Omaléumaprivaçãodobem...Omal,portantonãosefundamentaemsuae ist nciapr pria,masdecorredamu-

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su etodetalcarenciaporformarpartedesuconceptoperfecto.Estoeslo ueentendemosporprivaci n,inclusoenellengua evulgar (VA -B ENA,1948,p.819).

Dessamaneira,ofatodomalnãoserumasubst ncia,nãoim-plica ueelese aumailusão,por ueaoseafirmar,pore emplo, ueumhomemécego,essacegueira,en uantoprivaçãodeumbemdevi-doaosu eito,ouse a,avisão,mesmonãosendoumenteporsimes-ma,imp e-secomoumafaltaefetivadestafaculdadenasuaforma.Apartirdestefoco,pode-seafirmar ueomaléreal, umavez ueéaprivaçãodeumbemre ueridopara ueosu eitotenhasuaplenitude.Realmente tal beméprivadodeumadas suaspartes constitutivas (MA DAM ,2002,p.88,nota ).

Noentanto,dei ando-seguiarpelasafirmaç esacima,én tidoue uandoseafirma omale iste ,nãoseest dizendo ueomale istedemodoefetivonarealidade, ueconstituioenteporsi1 , pois comosendoumaprivaçãodeumbemdevido,omal e iste comoca-

tilaçãodaalma .Aspalavrasgregastraduzidascomo privação e mutilação sãostéresis e promasin.Aprimeiratambémsignifica perda ,easegundaéorigin riadoverbogregoperáo, uesignificaalei arouincapacitar .Emconson ncia,Atan siotambémafirma ue omaléaprivação(steresis)dobem(...).Ambr sioresponde ueeleéacar nciadeumbem(De Isaac et Anima7, 0e 1) omalnãoéuma subst nciaviva,masumaperversãodoesp ritoedaalma (Hexaemeron, 8, 0e 1) (F RE ,2002,p.872).Paraummaioraprofundamentodaconcepçãoagostinianasobreomistériodomalvertambém: RACIOSO, oel.A relação entre Deus e o mal segundo santo Agostinho.SãoPaulo:PalavraePrece,200 A MADA, eonardoFerreira.Sentido ontológico do mal em santo Agostinho.2005.157f.DissertaçãodeMestrado–niversidadeFederaldoRiode aneiro,Riode aneiro,2005 COS A,MarcosRobertoNu-

nes. O problema do mal na polêmica antimaniquéia de santo Agostinho.PortoAlegre:EDIP CRS/NICAP,2002 EVANS,R. ..Agostinho sobre o mal.SãoPaulo:Paulus,1995.

1 Nesteponto,deve-seconsiderar ueoentesedizdediversasmaneiras, e–dado ueoentesedizdetantosmodos–émanifesto ue,entreeles,oenteprimeiroéo o ueé ,o ualpre-cisamente,designaaess ncia(...),aopasso ueosdemaisitenssedizementesporserem,doente ueédestemodo, uantidades, ualidades,afecç esoualgodiverso (ARIS E ES,Met.,VII1028a10,2005,p.17). Comisso,sobcertoaspectopode-seafirmar ueomal é ,oénãocomoumentereal uee istedemodoefetivonarealidade,poisporserumaprivação,ele pode ser tomado como um ente de razão,ouse a,elenãoconstituiumenteporsi,demodoefetivo,maséumenteen uantopossuirealidadeob etivanoentendimento,énestesentidoue om sdeA uinocoloca ue deve-sedizer ueo ueé sedizdedoismodos.Deummodo,en uantosignificaumanaturezadedezg neros assim,oentenãoémal,nempriva-ção,nemalgo.Deoutromodo,en uantoresponde uestãodese é assim,omalé, como igualmente a cegueira é.Nãoobstante,omalnãoéalgo,umavez ueseralgonãosignificas o ueseresponde uestãodese é,mastambémo ueseresponde uestãodeque é(...),deve-sedizer uecertamenteomalest nascoisas,mascomoprivação,nãocomoalgoreal nãoobstante,est narazãocomoalgointeligido eporistopodedizer-se ueomaléumentederazãoenãodacoisa,dado uenointelectoéalgo,masnãonacoisa (De Malo .1,a.1).

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r ncia,feridaoumutilaçãodoser.Comoresultado,parae istir,omaldepende da existência de um ente real, precisa de uma substância para ocorrer,istoé,s podehaverprivaçãoseumenteéprivadodealgo,ouse a,aprivaçãosempreser emumente: AN OAO2 ,deve-sedizer ueonão-ente, tomadocomonegação,nãore uerumsu eito.Ora,aprivaçãoéumanegaçãonumsu eito,comosediznolivroIVdaMetafísica.Omaléestenão-ente (S. h.I, .48,a. ,ad.2).

Emvirtudedisso,paraoA uinate,omalsefundamentanobemcomoemseusu eito.Contudo,osu eitodomal uesedizserumbem,nãoé,naturalmente,obemao ualomalseop eedo ual ustamenteéprivação.Emoutrostermos, omalnãoest nobem uelheéopos-to,comoemseusu eito,masemalgumoutrobem.Assimosu eitodacegueiranãoéavista,masoservivo (S. h.I, .48,a. ,ad ).

Outrossim,arelação ueseestabeleceentreomaleobemocorredetalmodo uepormais uesemultipli ueomal,este amaispoder destruirpor completo o bem: omalnãopode consumir completa-menteobem (S. h.I, .48,a.4).Defato,combasenacompreensãotom sica,seomalsuprimissetotalmenteobem,acabariaporsuprimirasimesmoaoeliminarseusuporte: Si ueriendocegaraunhombreselemata, anoha ciego sialmatarlesepudierasuprimirsuma-teria,nohabr aall m s uelanada, enéstanoha nibiennimal (SER I AN ES,1951,p.2 2).

Desta maneira, se o mal tem sempre como fundamento um bem e amaisocorrompetotalmente,logo,nãopodehaverumacoisa uese aessencialmentem ,istoé,nãoe isteosumomal.Assim,napers-pectivatom sica,todasubstantivaçãooupersonificaçãodomalcarecedesentido.Comtaisargumentos,oAngélicore eitaasdoutrinasdecunhodualista,as uaispostulamapresençadedoisprinc piospri-mordiais–oBemeoMal– ueregemacriaçãoeahist ria,defendoae ist nciadeumsupremomal ueseriaacausaprimeiradetodososmales.Portanto,segundooA uinate:

Oprinc pioprimeirodosbenséobemsupremoeperfeito,emuepree istetodabondade,como foidemonstrado.Ora,nãopodehaverummal supremo,por ue, como foidemonstrado:mesmo ueomalsemprediminuaobem, amaisopoderiades-truirtotalmente.Comosemprepermaneceobem,nãopodeha-

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veralgointegraleperfeitamentemau.Porisso,ofil sofodiznolivroIVda tica: Seomalfossecompleto,elesedestruiriaasimesmo ,poissuprimindotodoobem(o uesere uerpara ueomalse acompleto)suprimir-se-iatambémopr priomal, uetemobemporseusu eito(S. h.I, .49,a. ).

Depreende-sedoe posto ue,o tratamentodadopor om sdeA uinoaoproblemadomal,nas uest es48e49daPrima pars da Suma de Teologia, o ualsepautapelaafirmaçãode ueomalnãoéumarealidadeemsi,masumaprivaçãodebem,emumsu eito uetemal-gumabondade,nãosignifica ue om sdeA uinodefenda ueomalconsisteemalgoilus rio,mas permite uesefaça usaocar terrealdomal,semdiminuirsuaimport ncia (MA DAM ,2002,p.92,notam).

Porfim,pode-seassegurarainda ue,aoseocuparcomatem -ticadomal,emnenhummomento,oAngélicoabandonouaconvicçãode ueno princípio está o bem, ou se a, ele sempre sedei ounortearpelapreced nciaontol gicadobem,o ualé tomadocomoachavedecompreensãoparaomistériodomal,visto ue en uantoomale iste,elesomentepodee istirvivendodobem,enãoporsipr prio (SANFORD,1988,p.179).

r

O A D O D A NOOM SDEA INO,santo.Compêndio de Teologia.PortoAlegre:EDIP CRS,199 .______. O ente e a essência:te tolatinoeportugu s.Riode aneiro:Presença,1981.______. Sobre o Mal (De Malo).Riode aneiro:SétimoSelo,2005.______. Suma Contra os Gentios: IVROSIII eIV .PortoAlegre:EDIP CRS/Ediç esES ,199 ,v.2.______. Suma Teológica. SãoPaulo: o ola,2001/2001.v.1ev.2.

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R A

O ras gerais

A OS INHO,santo.Confiss es.SãoPaulo:FolhadeS.Paulo,2010.ARIS E ES.Metafísica: ivros VII e VIII. Campinas: NICAMP/IFCH,2005.A EVEDO NIOR,NapoleãoSchoellerde.O mal no universo segundo santo

Tomás de Aquino.2007.107f.Dissertaçãodemestrado– niversidadeFederaldoRio randedoSul,PortoAlegre,2007.BARRENECHEA, oséMariaArtola. ratadodelacreacionoproducciondetodoslosseresporDios–Introducci nalascuestiones44a49.In.: OM SDEA INO, santo.Suma de Teologia. 2. ed.Madrid:BibliotecadeAutoresCristianos(BAC),1994.p.425–440.F RE ,S.Folgado.Mal.In:BERARDINO,AngeloDi(Org.).Dicionário Patrísti-

co e de Antiguidades Cristãs. Petr polis:Vozes,2002.p.871-872.FORMEN ,Eudaldo.Introducci n.In: OM SDEA INO,Santo.El orden

del ser. Madrid:Editorial ECNOS,200 .p.19-191.I SON, tienne.A exist ncia na ilosofia de S. om s.SãoPaulo: ivrariaDuasCidades,19 2.______. A ilosofia na dade M dia. SãoPaulo:MartinsFontes,2001.______. El Tomismo: Introducci nalafilosofiadeSanto om sdeA uino.5.ed.BuenosAires:EdicionesDesclée,DeBrou er,1951.______. Introdução ao Estudo de Santo Agostinho.SãoPaulo:DiscursoEditorial/Pau-lus,200 .p.271- 14.O IVE ,Régis. ratado de ilosofia:Metaf sica.Riode aneiro: ivrariaAgir,19 5.MA DAM , ean-Michel.ODeusCriador: introduçãoenotas. In: OM SDEA INO,Santo.Suma Teológica. SãoPaulo: o ola,2002.v.2.p. -105.MONDIN,Ba ista.Bene(morale).In: .Dizionario Enciclopedico del pen-

siero di San Tommaso D’Aquino. 2. ed.Bologna, Italia: ESD (Edizioni StudioDomenicano),2000.p.100-102.

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D’Aquino.2.ed.Bologna,Italia:ESD(EdizioniStudioDomenicano),2000.p.408-411.SANFORD, ohnA.Mal, o lado sombrio da realidade. SãoPaulo:Paulinas,1988.SA RAS,Emilio.Elmalseg nSanto om s.La Ciencia Tomista.Salamanca,AnoX V,n.249,p.591- 2 ,out./dez.195 .

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SER I AN ES,A.D.El problema del mal: Hist ria.Madrid:EPESA,1951.______. Santo Tomas de Aquino.BuenosAires:EdicionesDESC E,194 . omoI.VA B ENA, esus. Introducciona lascuestionesX VIII–X IX. In: OM SDEA INO,Santo.Suma Teologica: ratadodelaSantisima rinidad/ rata-dodelacreacionengeneral.Madrid:BibliotecadeAutoresCristianos(BAC),1948. omoII.p.818–824.VA ,Henri ueCl udiode ima. scritos de ilosofia : Ra zesdamoderni-dade.SãoPaulo, o ola,2002.

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se i a sado e a e ess o ao i fi i o um estudo baseado nas cinco vias de Tomás de Aquino

Fábio Gai PereiraUniversidade Federal do Rio Grande do Sul

1.

Para uma melhor compreensão, é importante ler o resumo1 da minha apresentação no XVI Encontro Nacional da ANPOF (Associa-çãoNacionaldeP s- raduaçãoemFilosofia)antesdeprosseguiralei-turadesteartigo.Oresumoe pressaumdospontoscentraisdaminhatese de doutorado que, na versão em que se encontra, leva o mesmo t tulodesteartigo. antooresumocomoote to uesegue,sãopartesdote tointegraldatese uepretendo,atualmente,defender.Prova-velmente,ote tofinaldateseser umaversãoe pandidaerevisadatantodoresumocomodesteartigo.Osmeusestudosnodoutoradoini-ciaram no primeiro semestre de 2014; são, portanto, ainda muito inci-pientes.Contudo,gostariadecompartilharcomosleitoresumelemen-to ueproponhoparaviabilizarumaleituraplaus veldoargumentocosmol gico, ueemboranãoconcluanadasobreae ist nciadeumserincausado,podeaomenosfornecerumachavedeleituraafavorde uma reabilitação da crença racional a respeito da possibilidade da e ist nciadeumserincausado.Essaleiturasemostracomoumaalter-nativaimposs veldeserverificada,masplaus vel,emcontrastecoma1 Segueo lin deacessoao resumo:h p:// .anpof.org/portal/inde .php/pt-BR/agenda-

-encontro-2/user-item/475-sergiomariz/1 9-agenda- vi-encontro/9994-o-ser-incausado-e-a--regressao-ao-infinito-um-estudo-baseado-nas-cinco-vias-de-tomas-de-a uino

Carvalho, M.; Hofmeister Pich, R.; Oliveira da Silva, M. A.; Oliveira, C. E. Filosofia Medieval. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 182-193, 2015.

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O : A

outraalternativa, ueimplicacontradição.Alémdisso,investigocomoelapodeafetaraargumentaçãode om sdeA uinosobreoproblemadaeternidadedomundo.

H poucasdécadas, alguns autores contribu ramparao in ciodeumreavivamentodosestudosdafilosofiadareligião.Notadamen-te illiamRo e,RichardS inburneeAlvinPlantinga.Essesautorestentam,comoaparatoatualdafilosofiaanal tica,analisarargumentosue fre uentemente estiveramno centro das discuss es da filosofiadareligiãoemdiferentesépocas-emuitasvezesdateologiamedie-val2-et mcomoob etivoanalisarcomoaindapodemserlidosessesargumentosnosdiasdeho e,seaindat malgoanosdizer,senovasperspectivas podem criar chaves de leitura que lhes permitam ser rele-vantesnomundocontempor neo.Aseguir,transcrevoumtrechodolivro ntrodu ão ilosofia da eligião(2011),de illiamRo e.

maideiapopularmasincorretadecomoodefensortentamos-trar uealgoest erradonestaperspectiva,aperspectivade uetodooserpodedependerdeoutro,éade ueare eitacomoseguinteargumento:emdehaverumprimeiroserparainiciar ual uersérie.Setodooserfossedependentenãohaveriaumprimeiro ser para iniciarasériecausal.ogo,Nemtodooserpodeserdependente.

2 Aprop sitodeumadistinçãoentrefilosofiadareligiãoeteologia,transcrevoumae pli-caçãosignificativaaesserespeito: Ateologiaéumadisciplinaemgrandemedidainterior religião.Comotal,desenvolveasdoutrinasdeumaféreligiosaparticulareprocurafun-dament -las uernarazãocomum humanidade(teologianatural) uerinternamente,napalavrareveladadeDeus(teologiarevelada).Emboraafilosofiadareligiãoseinteressefun-damentalmenteporestudaramaneiracomoaspessoas uet mcrençasreligiosasas usti-ficam,oseuinteresseprim rionãoé ustificarourefutarumcon untoparticulardecrençasreligiosasmasavaliarosg nerosderaz es ueaspessoasdadas re e ãot mapresentadoafavorecontraascrençasreligiosas.Afilosofiadareligião,aocontr riodateologia,nãoéfundamentalmenteumadisciplinainterior religião,masumadisciplina ueestudaareli-giãodeumpontodevistaabrangente. (RO E,2011,p.15-1 ).Portanto,ateologiacons-tr ieanalisaargumentosdentrodointeressedealgumareligião. afilosofiadareligiãoconstr ieanalisaargumentossobretemascaros teologia,massemumcomprometimentocomadefesade ual uer corpoespec ficode crenças religiosas,pautando-seapenas emumaan liseracionallivreeindependentedecompromissoscom uais uerpressupostosdeuais uersistemasreligiosos.ComoaindaafirmaRo e,afilosofiadareligiãoé oe amecr ticodascrençasedosconceitosreligiososfundamentais (RO E,2011,p.1 ).

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Embora este argumento se a dedutivamente v lido e a segun-dapremissa se averdadeira,a suaprimeirapremissa ignoraapossibilidade distinta de uma série causal infinita, sem qualquer primeiromembro.Assim,seregressarmos nossasériedeseresA, onde cada A depende de outro A, tendo sido produzido pelo Aprecedentenasériecausal,é bvio ueseasériee istissenãoteria um primeiro membro; para cada A na série haveria um A precedente que o produziu, ad infinitum.Aprimeirapremissadoargumentoapresentadopressup e ueumasériecausaltemdepararnumprimeiromembro,alguresnopassadodistante.Masparecenãohaverumaboa razãoparapressupor isto. (RO E,2011,p.47)

Noresumo ueapresentei,h umachavedeleitura ueprocuraindicar que talvez ha a uma boa razão para pressupor isto. ustamenteaimpossibilidadede uesepercorraumasérieinfinitaatéume istenteatual ual uer.Se a um ser existente chamado A, como aceitar que possa ser o resultado de um percurso causal infinito que percorrer o infinito at o ponto no tempo que registra a exist ncia atual de um ser Se fosse assim, um ser atualmente existente indicaria o fim de um percurso infinito. Mesmo que esse ponto no tempo se a mais adiante seguido por outro ponto, a exist ncia atual vem após uma s rie infinita. sso não possível.Portanto,oubemh um ser incausado que causou o início da série causal de cada ser ou temosacontradiçãodofimdo infinito, uepodesere pressacomoae ist nciaatualdeumelemento ueéo resultadodeumacadeiacausalinfinita.Semumelementoprimeironasérie,comoasérieteriachegadonoagora Anossamentetrabalhacomanoçãodecausalida-deparaentenderosurgimentodeumente ual uer.Sealgoe iste,outroalgoocausou.Nessase u nciacausal ueviabilizouae ist nciado ente atual e do elemento anterior que o causou, somos levados a conceberumaregressãoaoinfinito.Masaomesmotempo ueanossacapacidadedepensarnosconduzaissoelanãoconseguedarcontadadificuldadeeme plicarcomoume istenteatualpodeseroresultadodopercursodeuma série causal infinita.Nafilosofiamoderna, porumaoutrarazão,baseadaemlimitaç esdoaparatocognitivohuma-no, a impossibilidadede saber sobrea e ist nciadeDeus ser umadasantinomias antianas.Fazendoumparalelocomoproblemaapon-tadoa ui,dado uese aplaus velae ist nciadeumser incausado

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O : A

como solução do problema da série causal, isso nada conclui sobre a suae ist ncia.Nãoh umprocedimento uepermitadeterminarumarespostaconclusivasobreasuae ist ncia.Emboraanossarazãopossaselecionarideias uesugeremessapossibilidade.Eoimpasse,assim,permanece.H raz esparacrer,masparecenãohaverprocedimentoconfi velparaverificarahip tese.Masacrençaracionalnapossibili-dadedae ist nciadesseserficareabilitada.Ademais,alémdepassar-mospelafilosofiadareligião,vamosnoscentrartambémnoterrenodafilosofiamedievaleanalisarcomoessachavedeleiturapoder trazerpara om sdeA uinoalgumasimplicaç esbastanteimportantes.

EmboraRo eafirme ue (...)parecenãohaverumaboarazãoparapressuporisto ,nasp ginasseguinteseleabordaumaversão ra-bedoargumentocosmol gico,chamadadeargumento alam.Ve amos.

maversãodoargumentocosmol gico uetemasuaorigemnafilosofia rabetemsidotambémalvodeatençãonafilosofiacon-tempor neadareligião.Aocontr riodaversãodeSamuelCla-r e, ueadmiteapossibilidadedeumasérieintermin veldeacon-tecimentos ueseprolongueinfinitamentenopassado,segundooargumento alam é impossível uee istauminfinito efetivo.(...)Istonãosignifica uenãopossahaverumaseriepotencialmente infinita, uma série que em qualquer momento em que a consi-deramoséfinitamas ual sepodeadicionarsucessivamenteelementos ad infinitum.(RO E,2011,p.58)

Ouse a,umasérieinfinitadopassadoemdireçãoaopresenteéimposs vel,maspensarumasérieinfinitadopresenteemdireçãoaofuturoéposs vel.Emseguida,Ro eaprofundaoargumento alam.Ospassosserãoapresentadosagoradeformamaisdetalhada.

Maspor uerazãoseafirma ueéimposs velumasérieinfini-ta efetivadeacontecimentos uelevamdopassadoaopresente Considere-se tal série intermin vel de acontecimentos do pas-sado. Suponha-se ue cadaumdestes acontecimentosdemoraumacerta uantidadedetempo,pormuitope uena uese a,aocorrer.Porpou u ssimotempo uecadaacontecimentoleveaocorrer,afirma-se ue,dadonãohaver ual uerprimeiro aconte-cimento na série de acontecimentos do passado, nunca se poderia chegaraopontoondeestamos,opresente.

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Seconcedermosaimpossibilidadedeuminfinitoefetivo,pode-mos ter a certeza de que o nosso universo teve um come o.Poisseo nosso universo nunca teve um começo, então a série de aconte-cimentosem ueconsisteasuae ist nciatemporaldopassadoconstituiriauminfinitoefetivo.(...)Podemosagoraenunciaroprimeiropassodoargumentocosmo-l gico alamdoseguintemodo:Se o nosso universo nunca teve um começo, ocorreu uma série infinitaefetivadeacontecimentos.masérieinfinitaefetivadeacontecimentosnotempoéimpos-

s vel.ogo,Onossouniversoteveumcomeço.(RO E,2011,p.58-59)

Eentãopercebo uenãoh originalidadenomeupontosobreoargumentocosmol gico.Infelizmente. illiamRo e,entretanto,nãoe ploraofatode ueaalternativaaoargumento alam é uma contra-dição,comoe pus.Eesseéumpontoe tremamenteforte.Alémdisso,essapoderia seruma formadiferentedemostraraantinomia ueégeradaapartirdeumare e ãosobreae ist nciadeDeus.Ademais,apartirdisso,asimplicaç espara om ssãomuitoimportantes.

2 O

radicionalmente,chama-seargumento cosmológico,a ueleargu-mento uetemporob etivoprovar ueDeuse iste,sugerindo ueae ist nciadesseserénecess ria,poisseriaacondiçãoparasolucionaroproblemadasériecausal, ueconsistenofatode ueumae plicaçãocausaldae ist nciadecadaserconduzaumaregressãoaoinfinito.Sobreoargumentocosmol gico,ve amos.

Historicamente, remontaaosescritosdosfil sofosgregos,Pla-tãoeArist teles,masofundamentalnoprogressodoargumentodeu-senos séculosXIII eXVIII.No séculoXIII, São om sdeA uinoapresentoucincoargumentosdistintosafavordae is-t nciadeDeus,dos uaisosprimeirostr ssãovers esdoargu-mentocosmol gico.Noprimeiro, om scomeçapelofatodeha-vercoisasnomundo uesofremmudançaseconclui uetemde

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O : A

haverumacausa ltimadamudança, uese aelapr priaimu-t vel.Nosegundo,começapelofatodehavercoisasnomundocu ae ist nciaéclaramentecausadaporoutrascoisaseconcluiuetemdehaverumacausa ltimadee ist ncia,cu ae ist nciase aincausada.Noterceiroargumento, om scomeçapelofatodehavercoisasnomundo uenãotemse uerdee istir,coisasuee istemmas uefacilmenteimaginamos uepoderiamnãoe istir,concluindo ueh umser uetemdee istir, uee isteeuenãopoderianãoe istir.(RO E,2011,p.40.)

Entretanto,casoesseserincausadoe ista,da nãosesegueana-liticamente que ele tenha os atributos que caracterizam o Deus teísta, comopore emplo,aonipot ncia,abondadesupremaeaonisci ncia.maestratégiaadotadapordefensores foidividiroargumentocos-

mol gicoemduaspartes.Naprimeiraparte,oob etivoéprovar uee isteumsernecess rio,imut veleincausado,o ualsolucionaopro-blemadasériecausal.Asegundapartedoargumentoser provar ueesseseréoDeuste sta.Astr sprimeirasviassãovers esdaprimeirapartedoargumentocosmol gico(Ro e,2011,p.41).Asegundapartedoargumento seriadeinteressemaispr priodateologiarevelada.Contudo,sobopontodevistafilos fico,elucidaç esparaoproblemada série causal, mesmo que restritas ao âmbito da primeira parte do argumentocosmol gico, trariamumavançoe tremamentesignifi-cativo.Para om s,caberessaltar,oargumentocosmol gicoprovariaaums tempoae ist nciadoserincausadoedoDeuste sta,o uelhevaleusucessivascr ticasbastantecontundentes.

3. D

Podemos perceber v rias dificuldades com o vocabul rio e omodocomo om sprocedenasprovas.Aseguir,at tulodee emplo,vamosanalisaralgunsaspectosdasegundavia.

Asegundaviapartedarazãodecausaeficiente.Encontramosnasrealidadessens veisae ist nciadeumaordementreascau-saseficientes masnãoseencontra,neméposs vel,algo uese aa causaeficientede sipr prio,por uedessemodo seria ante-

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riorasipr prio:o ueéimposs vel.Ora,tampoucoéposs vel,entreascausaseficientes,continuaratéoinfinito,por ueentretodas as causas eficientesordenadas, aprimeira é a causadasintermedi riaseasintermedi riassãoacausada ltima,se amelasnumerosasouapenasuma.Poroutrolado,supressaacausa,suprime-setambémoefeito.Portanto,senãoe istisseaprimei-raentreascausaseficientes,nãohaveriaa ltimanema inter-medi ria.Massetivéssemosdecontinuaratéoinfinitonasériedascausaseficientes,nãohaveriacausaprimeira assimsendo,nãohaveriaefeito ltimo,nemcausaeficiente intermedi ria,oueéevidentementefalso. ogo,énecess rioafirmarumacausaeficienteprimeira,a uetodoschamamDeus.(Summa, 1ª parte, uestão2,artigo )

Acausaeficiente,sobopontodevistaimediato,trata-sedoagenteparticular respons velpelosurgimentodae ist nciadecadaente.Naperspectivaaristotélica,oagentecausaldeste ente é sempre particular, nãoest emseu uadrodean liseumacausadatotalidadedosseres4.

Cumprenotar,alémdisso, uealgumascausaspodemsere pres-sasemtermosuniversaiseoutrasnão.Osprinc piosimediatosdetodas as coisas são o ser determinado, que é imediato em ato, e umoutro ueéimediatoempot ncia.Nãoe istem,portanto,ascausasuniversaisde uefal vamos.Oprinc piooriginadordosindiv duoséoindiv duo. Homem seriaoprinc piooriginadordohomemuniversal,masohomemuniversalnãoe iste.Peleuéoprinc piooriginadordeA uiles,teupaideti,eesteBempar-ticulardesteBAparticular,emboraoBuniversalse aoprinc piooriginadordoBAemgeral(Metafísica,1071a15-25).

Noin ciodasegundavia, om schamaaatençãoparaaimpos-sibilidade de um ser causar a si mesmo, o que conduz à necessidade dehaversempreumagenteanterior ueatuecomocausadasuae is-t ncia.Sobopontodevistal gico,éumargumentocogente.Dado ue

DeacordocomatraduçãodasEdiç es o ola,p.1 7.4 Na Summa,1 parte, uestão45,artigo1, om sdefineacriaçãocomo emanationem totius

entis a causa universali, quae est Deus ,ouse a, aemanaçãode todososentesapartirdacausauniversal, ueéDeus (DeacordocomatraduçãodasEdiç es o ola,p.4 ).Deus,portanto,éacausadatotalidadedosseres,segundo om s.ParaArist teles,entretanto,nãoh criação,atoem ueatotalidadedoservem e ist ncia.H gera ão, processo natural em ue,porintermédiodecausaeefeito,torna-seseposs velumenteparticulargeraroutro.

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todo o ente (o qual estamos tomando aqui por um ser em particular)écausadoporoutro(premissaplaus vel),entãonãoseriaposs velaumentecausarasimesmo,poiseleteria uee istirantesdecausarasuae ist ncia. ,portanto,umarefutaçãodapossibilidadedacausa sui.

No passo seguinte da segunda via, om s argumenta a favordaideiade uenãoéposs vel ueumasériedecausaseficientesor-denadasregressemaoinfinito.Eleargumentaafavordanecessidadeumagentecausalprimeiro,poisoagentecausalprimeiroécausadosagentes intermedi rios ue,porsua,vezsãocausadosagentes lti-mos.Portanto,casonãotivessee istidoumagentecausalprimeironãoe istiriamosagentes causaismais recentesda série. Issopor ue seumefeitoAécausadoporB, ueécausadoC,emumasérieinfinita,entãooagentecausalnecess rioparaovir-a-serdeCteria uepercor-rerumadist nciainfinitaatéchegaraC. nessesentido ue om sargumenta ueoefeito ltimoAse uerchegaria e ist ncia,poisde-penderiadacausaeficienteintermedi riaB,a ualtambémteriade-pendidodacausaeficienteintermedi riaC, ueparavir e ist nciadependeriadae ist nciadacausa ltima,a ualseriaa ltimadeumasérieinfinita.Ora,comoseriaposs velumacausa ltimadeumasérieinfinita Emoutraspalavras,comoseriaposs veldopontodevistadeumenteatual,suporumenteprimeirodeumasériecausalinfinita Se-rianecess rio ueoenteprimeirodasériecausaltivessedesencadeadoumasucessão ueteriapercorridooinfinitoatéoenteatual.O ueéabsurdo.Esseéopontob sicodasegundavia.

Entretanto, h uma sutileza ue passa despercebida em umaan lise ueseconcentretão-somentenote todasegundavia. om srefere-seacausas eficientes ordenadas.EmoutrapassagemdaSumma, podemosver ue om saceitaapossibilidadel gicadeumoutrotipodesériedesériecausalinfinita.Ve amos.

Deve-se dizer que por si é imposs vel chegar ao infinito, se setratadecausaseficientes:comoseascausas ueporsisãone-cess riasparacertoefeitofossemmultiplicadasaoinfinito.Pore emplo,seapedrafossemovidapelaalavanca,estapelamão,eassimaoinfinito.Mas,por acidente,nãose ulgaimposs velche-garaoinfinito,sesetratadeagentesacidentais:comosetodasascausas uesemultiplicamaoinfinitoocupassemolugardeumacausa nicaesuamultiplicaçãofosseacidental.Pore emplo,um

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artesãoseserveacidentalmentedev riosmartelospor ueelesse uebramumap soutro. portantoacidentalparatalmarteloentraremaçãoap soutromartelo.Domesmomodo,éaciden-talaestehomem,en uantogera,tersidogeradoporoutro.Defatoelegeraen uantohomemenãoen uantoéfilhodeoutrohomem. odososhomens uegeramt mamesmaposiçãonascausaseficientes,asaber,adegeradorparticular.Da nãoserim-poss vel ueumhomemse ageradoporoutro,aoinfinito.Issoporémseriaimposs velseageraçãodestehomemdependessedeoutro homem e também de um corpo elementar, e do sol, e assim aoinfinito.(Summa,1 parte, uestão4 ,artigo2)5

Portanto, om sdistinguedoistiposdeséries. masérieinfinitaessencialmenteordenada, ueeleargumentaserlogicamenteimpossível.Euma série infinita acidentalmente ordenada, ue ele argumenta serlogicamentepossível.

Uma s rie causal infinita essencialmente ordenada é aquela que re-uerae ist nciaatualdecadaumdoselementos ueacomp e,demodo uepara ueoefeitoAe ista,devee istirsimultaneamenteacausadasuae ist ncia,B.Epara ueBe istadevecoe istiracausaCdasuae ist ncia,eassimpordiante.Issoconduz impossibilidadel gicadeconceberumacausa ltimadessasérie,poisécontradit riosupor que uma causa que inicie a série e que ao mesmo tempo e sob o mesmoaspectose aprecedidaporoutracausa ueacausou.Essaéumasérie, portanto, que descreve um infinito atual.

uma s rie causal infinita acidentalmente ordenada é aquela que nãore uerae ist nciaatualdecadaumdoselementos ueacomp e.Noe emplodadopor om sageraçãodofilhoacusaanecessidadedopaicomoagentecausal ue,porsuavez,acusaanecessidadeumpaiparaasuageraçãoeassimpordiante.Entretanto,nãoénecess rioueoav tenhaumae ist nciaatualpara ueonetose agerado.Essa

é uma série, portanto, que descreve um infinito potencial.Poisoatodageraçãodonetosup enecessariamenteacausaatual(opai), uepo-tencialmentepoderiacausarofilho.Oav estavanasérie,causandoopai.Masénacondiçãoderealizadordeumapot ncia ueoav estavanasérieenãosobumacondiçãonecess riadee ist nciaatualsimul-t nea geraçãodoneto.5 DeacordocomatraduçãodasEdiç es o ola,p.7 .

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Entretanto,ser mesmo ueumasériecausalinfinitaacidental-menteordenadaélogicamenteposs vel Entraa uiopontodoargu-mento alam. masérieatualmenteinfinitacorrespondeaumasérieinfinitaessencialmenteordenada. om sargumentacome atidãoaoindicar ueumasérieem ueoefeitosempree istasimultaneamentee ist nciadecadaumadascausas uelheantecederanasérieseriaumabsurdo.Sefossesemprenecess riaacoe ist nciaentreoagentecausalparticularecadaumdosefeitos uelhesucedem,entãoserianecess riosuporae ist nciaatualdeumasérieinfinita.Issoimplica-riaemaceitar ueumasérieinfinitaemdireçãoaoanterior,ondetodosos elementos da série são atualmentee istentes.Ora,nãoéocaso ueascoisasnãose amdestru das.Ossentidosnosfazemperceberades-truiçãodosseresmateriais. ogo,éabsurdosupor ueseresmateriaisfadados destruiçãocomosão,se amelementosdeumasériecausalformadaporelementosatualmentee istentesemumacadeia ueseestendeaoinfinito. odavia,nocasodeumasériepotencialmenteinfi-nita,comonocasodageraçãodosfilhos,apossibilidadel gicatambémpodeser uestionada,pelosmotivose postosnoin ciodestete to.Ems ntese,oproblemaé:sesupomos ueatéageraçãodofilho, uee isteatualmente,percorreu-seumcaminhoinfinito,entãoadmite-se ueoagora marca um fim do infinito.O ueéabsurdo.Ouentão,mesmo uelevemosemconta ueoagoraésempreseguidodeoutroagora,reafir-mamosa uiopontodoargumento alam:comoéposs velumagora omemosemperspectiva uesetratadeummomentoatual uesurgeap sumasucessãodecausas,emumpercursoinfinito.Seocorreuumpercursoinfinitodoanterioratéoagora,entãonãoh comoconsiderarum in ciodessepercurso,pois seé infinito sempreéposs vel supormais um anteriornasériecausal ueviabilizouoagora.Portanto,comooagoraéposs velseeleveioap sumpercursosemin cio Comofoiposs velalcançaroagoranessestermos

ma investigação acercada impossibilidade l gicado infinitopotencialseriadee tremarelev nciaparaosestudosdosistemato-mista,poisessepontoguardarelaçãocomadefesatomistadapossi-

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bilidadel gicadacriaçãodomundoex nihilo(donada).NaSumma, 1ª parte, uestão4 ,artigo2,opontoé ustamenteeste:videtur quod mun-

dum incoepisse non sit articulus fidei, sed conclusio demonstrabilis.Ouse a,parece ueofatode ueomundotenhacomeçadonãoéumartigodefé,masumaconclusãopass veldedemonstração . om sargumenta,portanto, uetendoemvistaapossibilidadel gicadeumasériecausalinfinitaacidentalmenteordenada,Arist telesconcluiudemaneiraab-solutamentel gicano ivroVIIIda ísica que o mundo é eterno, pois dado um ente, sempre é possível supor a sua causa, causa essa que é causadaporoutracausaeassimemumasérieinfinitaemdireçãoaoanterior,concluindo ueomundonãotemcomeço. om sadmiteessapossibilidadel gicaeconclui ueéporféaaceitaçãode ueomundotenhatidoumin cio,sendologicamenteposs vel ueDeustenhacria-do o mundo ex nihilo,poiséumapot nciaativaabsoluta.Eénessesen-tido ueprovarae ist nciadeDeuséumanecessidadenãosomentereligiosa,masnecess rianosistematomista,afimde ue om spossapreservar a economia conceitual de Aristóteles, conciliando-a com a fécat lica, ueafirmaacriaçãoex nihilo.Contudo,seasérieinfinitaacidentalmenteordenadaforlogicamenteimposs vel,nãoéocaso ueacriaçãodomundose aaceitaporfé,comoalternativa opçãoem uesepoderiaconceberlogicamenteaeternidadedomundo.Se uerasu-posiçãodaeternidadedomundoserialogicamenteposs vel.Portanto,a impossibilidadeabsolutado regressoao infinito (comoe pressaoargumento alam)acabaria,inclusive,fortalecendoaposiçãotomista,ue,dessemodo,romperiadefinitivamentecomatesearistotélicadaeternidadedomundo.

A INO, om sde.Suma eológica.2 edição. raduçãodeAle andreCor-r a.PortoAlegre:EscolaSuperiorde eologiaSão ourençodeBrindes, i-vrariaSulinaEditora Ca iasdoSul: niversidadedeCa iasdoSul,1980.A INO, om sde.Suma eológica. raduçãodeAldoVannucchi,Bernardi-noSchreiber,BrunoPalma,Carlos- osaphatPintodeOliveira,CarlosPalacio,CelsoPedrodaSilva,Domingos amagna,Eduardo uirino,Francisco a-borda, ilberto orgulho,Henri ueC.de imaVaz,Irineu uimarães, oão

raduçãominhaapartirdaediçãoleonina( ditio Leonina).

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B. ibanio, oséde vila, osédeSouzaMendes, uizPauloRouanet,MarcioCouto,MarcosMarcionilo,Maur lio . Camello,Maurilo Donato Sampaio,OdilonMoura,OrlandoSoaresMoreira,Oscar ustosa,RomeuDale, voneMariadeCampos ei eiradaSilvae aldemarValleMartins.2 edição.SãoPaulo:Ediç es o ola,200 .PEREIRA,F bio ai.Sobre a cria ão do mundo: um estudo baseado em om s de Aquino e alguns dos seus pressupostos gregos.Dissertaçãodemestrado( FR S,2012).OrientaçãodoProfessorDr.AlfredoCarlosStorc .http:// .lume.ufrgs.br/bitstream/handle/1018 / 1712/0008 5098.pdf se uence 1Acessoem28/10/2014.RACHE S, ames. roblemas da ilosofia. raduçãodePedro alvão.2 edição.isboa:Editora radiva,2010.RO E, illiam . ntrodu ão ilosofia da eligião. raduçãodeV tor uerrei-ro. isboa:EdiçãoBabel,2011.SI EIRA,CassianoMedeiros.Deus e o primeiro movente: uma an lise lógica da primeira via de om s de Aquino.Dissertaçãodemestrado( FR S,2012).OrientaçãodoProfessorDr.FernandoPiodeAlmeidaFlec .http:// .lume.ufrgs.br/bitstream/handle/1018 /71940/000880257.pdf se uence 1Acessoem02/10/201 .

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Razão e paixão em Tomás de Aquino.

A afetividade na Ia parte da Suma de Teologia

Paulo Ricardo Martines

Universidade Estadual de Maringá

Are exãodeTomásdeAquinosobreaafetividadeédegrandeimportânciaparaacompreensãodanaturezahumana.Oestudodoschamadosapetitessensíveis(concupiscíveleirascível)eosseusatos,explicitamocontatodiretodohomemcomomundo,namedidaemqueesteentendeoqueocerca, queraquiloque julgaumbem,tememoçõesquesãodeterminadasporalgoqueestásensivelmentepre-senteeéapreendidocomobomoumau,ereagediantedeumbemdifícilde alcançar.Na consideraçãodos apetites sensíveis edaquiloquehierarquicamente lhes é imediatamente superior,osapetites es-pirituais(avontadeearazão)vamosreencontraraanálisedeTomásacercadarelaçãoentrepaixãoerazão,indicadademodosumárionaIapartedaSuma de Teologia,nochamadotratadosobreohomem.Vere-mosqueTomásdeAquinoédevedordeAristóteles,especialmentedeumaideiaquerecolhedaPolíticaequeéampliadaparaosdomíniosdapsicologiadoserhumano:odoexercício político darazãosobreosapetitessensíveis.Oqueestáemjogoaquieaideiadedominium,darelaçãodesubordinação,entreumapartequeobedeceeoutraquemanda,comoaquelapresentenocontextodosenhoredoescravo.Talrelaçãodesubordinaçãonaesferapolíticaexpressa,dapartedaquelequedirigehomenslivres,apreocupaçãocomobemprópriodaquelequeédirigido.Naesferapsicológica,dominaraspaixõesrevela-sedefundamental importânciaparamantera integridadedoserhumano

Carvalho, M.; Hofmeister Pich, R.; Oliveira da Silva, M. A.; Oliveira, C. E. Filosofia Medieval. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 194-203, 2015.

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e abondadede seuato. Se apaixão éumcomponentedanaturezahumanaéporque,emprincípio,elaédominável. Atéquepontoaspaixõespodemsercontroladaspelarazão,ecomoéanaturezadessecontrole Ouainda,épossívelain uênciadaafetividadeinferiorso-brearazãoevontade

Numa filosofia reconhecidamente intelectualista, como é a deTomás deAquino, não devemos nos surpreender pela importânciaqueassumeasfunçõespsíquicasinferiores,comoéocasodaimagemna abstração, ao se falar de conhecimento humano, ou dos apetitesnoestadoafetivosensível.NovocabuláriodeTomásapareceotermoappetitus (sejaelesensíveleespiritual),quedescreveuma inclinaçãooutendênciadoser,sendoassim,decertomodo,aquiloqueosgregosentendiampororéxis.Paratratardarelaçãoentrepaixãoerazão,estacomunicaçãotratarádasquestões80-81,daprimeirapartedaSuma de

Teologia,deTomásdeAquino.Estasduasquestõesfazempartedeumare exãosobreaspotênciasapetitivas(q.80-83),pertencentes,porsuavez,aoestudodanaturezahumana(q.75-89).Ohomeméentendidocomoumcompostodesubstânciaespiritualecorporal,nãonosentidodeduascoisasseparadas,masdaquiloquedáaunidadeaoserhuma-no.OhomeméaquivisadoenquantoumacriaturaqueveiodeDeus,eosatospelosquaisperfazemasualiberdade–oseuretornoaDeus–seráotemadaSegundapartedaSuma de Teologia.TomásdeAquinoafirmaqueoestudodanaturezahumana,paraoteólogo1,dizrespeitoalmahumana,sendoocorporalconsideradoapenasnamedidaemque se refere alma,demodoquenão compete a ele o estudodasquestõespropriamentecorporais,atinentes fisiologia.Acrescente-seaisso,queoestudodaalmahumanaserárealizadoapartirdatripar-tiçãodionisiana(Hierarquias celestes,XI,20),istoé,cabeestudaraalmaquanto suaessência,potênciaeoperações.Otratadosobreanaturezahumanaéumpreâmbulo análisedapráxishumana.

1 TomásdeAquino,Suma de Teologia, I,q.75,prólogo.AscitaçõesemportuguêsdotextodeTomásdeAquinoreferem-se ediçãobrasileira:Suma teológica.SãoPaulo:ediçõesLoyo-la,2002.UtilizoaediçãolatinaSancti Thomae Aquinatis Opera omnia.Roma:Leoninaeditio.Abreviaturas:ST:Summa Theologiae(v.4-12);SCG:Summa Contra Gentiles(v.43);InEth:Sen-tentialibri ethicorum (v.47);InPolit:Sententialibripoliticorum(v.48);InSent:Scriptum super

libros sententiarum(ediçãoP.Mandonnet.Paris,1929).

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Aquestão 80 discute a afetividade a partir da noção geral depotênciaapetitiva,aoinvestigar(1)seelaéumapotênciaespecialdaalma(art.1),istoé,seoapetiteéfundamentalmentedistintodascapa-cidadescognitivas,discutidasanteriormente(q.78-79);e, (2)comosedáadivisãodoapetite(art.2).

Oreconhecimentodaafetividadecomoumapotênciaespecialdaalmatemumaformulaçãoaparentementeaxiomática: todaformasegueumainclinação”2.Dadoqueaformaencontra-sedemodosuperiornosseresqueparticipamdeconhecimentoquenosquecarecemdele,temos:umapetitenaturalqueinclinaalgoaseufim,semquesetenhaconsciên-ciadessefim,eumapetiteelícito,cujobemoufimsãoapreendidos.

Reconhece-seassimqueháumapotênciasensíveldoapetecerqueédistintadapotênciaespiritual.Dasduaspotênciasdoconhecimento,decorremdoisgênerosdepotênciasapetitivas:assensíveis,queseguemoconhecimentosensível,eavontade,quesegueoconhecimentointelec-tual.Sãoassimosapetitesclassificadosemnaturais,sensitivoseintelec-tuais.Tomástememcontaumprincípiodeordemmetafísico,noqualanoçãodeinclinaçãoaobemnãoéumsimplesdadodefato,masexprimeumaintençãodivina,umaleinaturaldoser,expressanaorientação suarealização.Aexpressãoaristotélicanasuaversãolatina(quod omnia

appetunt),diz-nosTomásdeAquino,refere-senãoapenas srealidadesquetêmcognição,equeporissosãocapazesdeapreenderobem,mastambémdascoisasquecarecemdeconhecimento,poistendempeloape-titenaturalaobem,pelaordenaçãodointelectodivino3.Ainclinaçãodetodaequalquercoisaexistenelasegundoomododeserdestacoisa.Assim,ainclinaçãonaturalestádeummodonaturalnascoisasnaturais;ainclinaçãoqueéoapetitesensívelestádeummodosensívelnosseresdotadosdesentidos;eigualmente,ainclinaçãointelectualqueéoatodavontade,estádeummodointeligívelnoserinteligente,comoemseuprincípioesujeitopróprio.Maisdoqueisso,oapetiteanimalquesegueoconhecimento,desejaalgonãoporqueconvémaumdeterminadoatoespecífico(comoavisãoparaavista),mas porqueissoconvémabsolu-tamenteaoanimal”4.

2 TomásdeAquino,ST,I,q.80,a.1.3 TomásdeAquino,In EthicaI,1,1-18.4 TomásdeAquino,ST,I,80,1,ad.3.

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Aquestãoacercadavontadeéintroduzidanoartigo2odaques-tão80,mesmoquenãoapareçao termovoluntasdemodoexplícito.NesteartigoTomásdistingueoapetitesensitivodoapetiteintelectual.Oquedeveserdestacadocomoessencialnaformulaçãotomásicadizrespeitoaomodopeloqualosobjetossãoconcebidosporcadaumades-saspotências: éprecisodizerqueoapetiteintelectualéumapotênciadistintadosensitivo.Umapotênciaapetitivaéumapotênciapassiva,cujanaturezaésermovidapeloobjetoapreendido.Emconsequência,o objeto desejável apreendido é princípio de movimento sem sermovido,enquantoqueoapetitemovesendomovido”(ST,I,80,2).

TomásdeAquinodescreveoapetitecomopassivo,eofazapar-tirdomododeapreensãodoseuobjeto,comoalgoapreendido,capazpor si demover o apetite. Este objeto pode ser descrito como exer-cendouma causalidade sobreavontade,talcomoumametaaqualavontadeestádirecionada.Napassagemcitadamaisacima,Tomásestáaressaltarumaambiguidadeprópriadoobjetoapetecíveldecor-rentedasuaapreensãoporcadaumadaspotências,sejaelasensívelouracional: deve-sedizerquenãoéacidentalaoobjetodesejávelseraprendidopelossentidosoupelointelecto,masissolheconvémporsimesmo,poisoobjetodesejávelnãomoveoapetiteanãoserenquantoéapreendido.Emconsequênciaasdiferençasdoobjetoapreendidosãoporsimesmasasdiferençasdoobjetodesejável”.

uanto determinaçãodaquiloqueéalcançadopelapotênciaespiritual,umadistinção importantedeve ser feita5.Noque se refe-re ao conhecimento, a especificaçãode seu atoocorregraças aumasemelhança (similitudo) que tornapresenteoobjetona faculdadedeconhecer.Omesmonãoocorrecomavontade,umavezqueoseuatoserealizaporcertaadaptaçãodeordemafetiva(coaptatio)aoobjetoqueestáforaaparaoqualmeinclino.

OtermodeTomásparaexplicitaroapetitesensitivoésensualitas.Estetermoédifícildesertraduzido,porqueelenãorecobreinteiramen-teaquiloquepodemosatribuir sensibilidadeesensação,umavezquenestaúltimasepodenãoapenasreconhecerotraçocognitivodasensa-ção(externaeinterna),comotambéaorigemdomovimentoapetitivosensível.Alémdisso,otermocarregaumaconotaçãomoralpejorativa,

5 AespecificidadedaspotênciassuperioreséexpressanaSCG,IV,19.

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namedidaemqueaeleestáassociadoumainclinaçãodesordenadadasensibilidade,tradicionalmentesimbolizadapelafiguradaserpente.

Tomásconsideraasensualitasexclusivamentecomoapetitesensi-tivo.Oapetitesensitivosecompletaquandoodesejotendeparaaquiloqueédesejado,assemelhando-seaummovimento,diferentedaapre-ensãointelectualquesecompletaquandooqueéapreendidoestánoqueapreende,assemelhandodessemodoaorepouso.Omovimentodasensibilidadeéumaespéciedeinclinação,melhordizendo,quan-dodesejamososobjetosqueossentidosnosfazemconhecer.Assim,pode-sedizerqueossentidossãocomoopreâmbulodasensibilidade.

A descrição dos apetites a partir de seus objetos reconheceráumadistinçãofundamentalnapotênciasensitiva:apresençadoape-titeconcupscíveledoapetiteirascível.Apotênciaintelectualtemso-menteacapacidaderacional.Aconcupiscíveleairascívelsãodefini-dasnamedidaemqueos seusobjetosnos inclinamparaalgo:pelaprimeiraaalmaéinclinadaaperseguiroqueéagradávelerejeitaroqueéprejudicial;jáasegunda,impeleoanimalaresistir quiloqueselheopõe.Tomásvale-sedoseguinteargumento: éprecisoconsideraroseguinte:ascoisascorruptíveisdanaturezadevemternãosóumain-clinaçãoparaconseguiroquelhesconvémefugirdoquelhesénocivo,masaindaumainclinaçãopararesistir scausasdacorrupçãoeaosagentescontráriosquepõemobstáculo aquisiçãodoqueconvém,eproduzemoqueédanoso”6.

Issoposto,háalgoaserexplicado:porqueasdistinçõesentreasinclinaçõesdeprazereresistênciaaalgoforneceadivisãodoapetitesensitivo, enquantoque avontadepermaneceunificadapela razão Tal respostaaparecemaisadianteaoTomás investigar seavontadepodeserdistinguidaemconcupiscíveleirascível.Arespostaénega-tiva,porqueavontadeunificatudoaquiloqueeladeseja sobacon-cepçãogeraldebem”,eoapetitesensitivoéincapazdefazerisso,poiséincapazdealcançarosuniversais: oapetitesensitivosediversificasegundoasdiferentesrazõesdebensparticulares.Assim,aconcups-cívelserefere própriarazãodebem,enquantoéagradávelaossen-tidos,econcerne natureza.Airascível,porsuavez,serefere razãodebem,enquantorepeleecombateoqueéprejudicial.Masavontade

6 TomásdeAquino,ST,I,81,2.

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serefereaobemsobarazãouniversaldebem”7.Adiferençadegêne-roassimestabelecidaentreaspotênciasapetitivas,mostraadiferen-çafundamentaldecomocadaapetiteopera:julgamentobaseadosobuma concepção comumde bemproduzdesejos diferentes daquelesprovenientesdeestímulossensitivos.

Seoapetitesensitivopodeserentendidocomoumarespostaacertoestímulo,oapetiteracionalavaliae julgasedeterminadaalter-nativa(aserescolhida)satisfazaconcepçãodaquiloqueéentendidocomoumbem.Avontadeéumapetiteracionaleasaçõesvoluntáriasdevemserescolhidaspelavontade.Tomásrelacionaodesejodavon-tadecomoagirsegundorazões,oqueparecetornarplausívelofatodequeaçõesvoluntáriassãoescolhidaspelavontade.Mais:aescolhavoluntáriaimplicarazão,demodoqueéimpossívelumaescolhasemconhecimento,masnãodeixadesersumapetite,umdinamismointer-nodesuanatureza,alteradopelarazão.

Ditodeoutromodo:avontadeéumacapacidadequepermiteaoseupossuidorinclinar-seaobjetosintelectualmenteapreendidoscomobonseafastar-sedeobjetosreconhecidamentemaus.Asaçõesdetalvontadesãoprecedidasdecertacogniçãointelectual,nãonosentidodequeentenderproduzavolições,masdequearazãopossaforneceracausalidadefinal/formalqueespecifiqueosmovimentosnosquaisopróprioapetitefazemrespostaafinsouformasconhecidas.

O

Comoaspaixõesconcupiscíveleirascívelsecomportamemfacedeumapotênciaespiritualquelhesésuperior Hásubmissãodaspaixõesrazão Nãoédifícilconstatar,pelaautoridadebíblica,anãoobediên-ciadosapetites razão,sejapelasimbolizaçãodaserpente(Gn3,1-7),evocadamuitasvezesporAgostinho,sejanocombatedocorpocontraoespírito,comoemS.Paulo(Rm7,23).Seconsiderarmosaprópriaconsti-tuiçãodanaturezahumana,ondeafaculdadesensíveléinferior razão,mesmoassimnãoserádifícilossentidosnãoobedecerem razão,umavez quenãovemosnemouvimossegundonossavontade”8.

7 TomásdeAquino,ST,I,82,5.8 TomásdeAquino,ST,I,81,3,obj.3.

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TomásdeAquinonãoaceitaráaideiadecárizestóicodapaixãocomodoençaouperturbaçãodaalma,mas,antes,aoreconsiderarcriti-camenteestaposição,mostraráquesomentepodemosassimconcebê--la quando as paixões carecemdamoderaçãoda razão (cum carente

moderatione rationis)9.Essafunção,noâmbitodarazão,seráoutorgada cogitativa/estimativa.O apetite sensitivonos animaismove-se na-turalmentepelaestimativa(comonoclássicoexemplodaovelhaquefogeaoverolobo).Nohomem,acogitativaocupaolugardaestima-tiva, sendoumaespéciede razãoparticular , cujo traçodistintivoécompararasrepresentaçõesindividuais.Oapetitesensitivoémovidoporessa razãoparticular .

Acogitativatemcomofontedeseuexercíciosejaodadosensí-velexterior,sejamasimagensutilizadaseevocadaspelainteligência,sendooseuatoprimordialaqueledefazerasíntesedasrepresentaçõesconcretas: ela comparaosdados adquiridos comosdadosdomun-dosensível. importanteoaspectoontológico10quedá cogitativa, imaginação, afetividadesensível,acondiçãodesermaisperfeitanohomemquenosanimais:éestainfl entia dasfaculdadesespiritu-ais–inteligênciaevontade–quedaráaessascapacidadesconcretasumamaiorsuscetibilidade.Estaafinidadeastornaráaptasacolaborarcomas faculdades espirituais a fimde receber delas sua in uência.Podemosreconhecer emnósaexperiênciadamoderaçãodenossasemoções,quandoaplacamosacóleraquenosabate,ouomedoquenosaflige;ou,demodocontrário,quandoampliamosessasemoções.

Aafetividade sensível é submetida vontadenaquiloquedizrespeito execuçãopropriamentedita:demodoimediatonosanimais,umavezqueomovimentosegueimediatamenteoapetite,porexem-ploaovelhaquefogeimediatamenteaoavistarseusupostopredador;edemodonãoimediato,comoocorrenohomem,aoesperaraordemdoapetitesuperior,aqueledavontade.AideiaqueestáemjogoaquivemdeAristóteles (De anima, iii,11,3),segundoaqualnaspotênciasordenadas,asegunda(inferior)nãosemovesenãoemvirtudedapri-meira(superior).

9 InformaçãoimportanteparaonossopropósitoqueapareceemSTI,II,24.a.3.10 Wéber,J.L’âme humaine. Somme Thélogique(I,q.75-83).Traduction,introductionetappéndi-

ces,p.376.Paris:Descléedebrouwer–Revuedesjeunes,1928( )

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comoauxíliodevocabuláriopolíticoqueTomásdeAquinopensará não apenas a submissão das paixões razão,mas tambémo seu limite. O político serve para pensar o psicológico: é precisoconsiderarnoanimal,umpoderdespóticoeumpoderpolítico:aalmadominaocorpoporumpoderdespótico,ointelectodominaoapetiteporumpoderpolíticoerégio”11.Opoderdespóticoéprópriodaquelequecomandaescravos,osquaisnãotêmcapacidadederesistir or-demsuperior,porquenadatêmdepróprio(quia nihil sui habent).Porsuavez,opoderpolíticoerégioéaquelequecomandahomenslivres,quemesmo submetidos aumchefe, têmalgopróprioque lhesper-mitem resistir ao superior (tamen habent aliquid proprium, ex quo pos-

sunt reniti praecipientis imperio).Vejamosparaocasodasensibilidade.Aalmadominaocorpodeummododespótico,osseusmembrosnãoresistem,movendo-setãosomentesegundoosdesejosdaalma,comoasmãosepésquerecebemumimpulsodavontade.Agora,arazãocomandasobaformadeumpoderpolíticooapetitesensívelquetemalgodepróprioequeporissoécapazderesistir razão(quia appetitus

sensibilis habet aliquid proprium, unde potest reniti império rationis).Oraaafetividadepodeentraremaçãonãoapenassoboimpulsodacogitati-vanohomem(estimativanoanimal),mastambémpelaimaginaçãoepelossentidos(ab imaginativa et sensu).Pelanossaexperiênciasabemos,dizTomás,queosapetitesconcupiscíveleirascívelseopõem razãoquando sentimos ou imaginamos algo como agradável que a razãoproíbe,oualgodesagradávelquearazãoprescreve.

A

Oapetitesensitivoatravésdaspaixõesnãopodeagirdiretamentesobre umapotênciaespiritual, sendoesta imaterial e superior,mas

11 TomásdeAquino,ST,I,81,3,ad2.OexemploaparecenaPolítica(I,1254b5-7)apartirdaideiadecomandoeobediência,daalmasobreocorpoetambémentreaspartesdaalma.Oapetite(orexis)écorrelatopráticodaafirmaçãoenegação,istoé,indicaaquiloquedeveserbuscadoeevitado.Apresençadeumelementointelectualsobreoapetitegaranteasuacorreção,umavezqueporsimesmooapetitedirige-seaumbemqueéaparente.Cf.Aristóteles,Política.Trad.AntónioCampeloAmaraleCarlosdeCarvalhoGomes.Lisboa:Veja,1998.Nocomen-tário Política(In politicorum,cap.3)Tomásatem-se definiçãodepoderdespóticoepolíticonosmesmostermosdeAristóteles.

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P R M

podefazê-lodeummodoindireto,pelossentidoseimaginação,sub-vertendoarepresentaçãodobem,exprimindocomobomedesejáveloobjetoqueoatrai.IssoéatestadodemodocrucialporS.Paulo(Rm,7,15),elidaeinterpretadaporAgostinhonas on ss es (VII,5)comocertamonstruosidade.Jávimosqueaquiloqueéapreendidosobara-zãodebemeconveniente,moveavontade,a títulodeduascausas,pelacondiçãodoquesepropõeedaqueleaquemsepropõe(eius quod

proponitur et eius cui proponitur).Oqueéconvenientesedizdosdoisextremos.Agora,sobumapaixão,ohomemvolta-separaalgoparti-cular:vêcomoconvenienteparasioquenãoveriasempaixão,comooqueparecebomaumhomemenraivecidoenãooéparaaquelequeestátranquilo(I,II,9,2,c). dedoismodosqueacontecetalmudançanumhomemdominadopelapaixão:1)arazãoestáatalpontoligada(ratio ligatur),apontodenãopoderusá-la,comacontececomaquelestomadosporuma fortíssima iraou concupiscência (propter vehemen-

tem iram vel concupsicentiam)tornam-sefuriosos.Talpaixãonãoocorresemtransmutaçãocorporal(non sine corporali transmutatione);2)nou-trasvezesarazãonãoétotalmentedominadapelapaixão,demodoapermaneceralgumjuízolivredarazão(iudicium rationis liberum),per-manecendoassim,algummovimentodavontade(nessesdoiscasosapaixãonãomovenecessariamenteavontade).

Umatesesobreacondiçãodanaturezahumana,decomooho-memestádispostosegundoassuasdiversaspartesdaalma,explicitaarelaçãoentrepaixãoerazão.Oatodoapetitesensitivonãoestáto-talmenteempoderdoagente,nosentidodequenãosesubmetetotal-menteaoimpériodarazão,poisnumapotênciadeórgãocorporaloseuatodependenãoapenasdapotênciadaalma,masdadisposiçãodoórgãocorporal,comoéocasodavisãoquedependedapotênciaparaveredaqualidadedosolhos,quepodemcriaralgumobstáculoconsecuçãodoatodever.(Cf.I,II,questão17,art.7).Porconstardeduasnaturezas(duae naturae),aintelectualeasensitiva,podeocorrerencontrarmos(1)umaalmanaqualapartesensitivaestejatotalmentesubordinada racional,comonosvirtuosos(virtuosis),ou(2)quandoarazãoestácompletamentedominadapelapaixão,comonosdemen-tes (in amentibus),ou(3)apenasparcialmente,quandoarazãoainda

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queobnubiladapelapaixão,permanecelivredealgummodo,eassimpoderepelirtotalmenteapaixãoouseabsterdesegui-la.12

Tomás não aceita preliminarmente o papel dominante que asemoçõesoupaixõesexercemsobreacondiçãodohomem.Elepare-ceindicar(postular)queodomíniodaspotênciasespirituaissobreasensibilidadeporintermédiodasvirtudes,sejaacoragemouatempe-rança,sãoindicadoresdeumaeducaçãointerior,nãocoercitiva,masformativa.Omesmoépossívelpensaracercadavirtudedaprudência,aquemcabeoimpériodarazão,quetemumpapelimportanteade-sempenharnodomíniodaação.

Asensibilidadenãoseriaextirpadaounegada,masapuradaefortalecidanaaçãomoral.Aspaixõessãoumdadoincontornáveldanaturezahumana,poisporelasamamos,nosdeleitamoscomcertosobjetosquedesejamos,mastambémnosencolerizamosquandosenti-mosodesejodevingarmosumamanifestaçãodedesprezo,dehumi-lhaçãoouinsultograve,ouaindaodiamos,quandoaqualquerpreçodesejamosadestruiçãodealguém.Nodomíniopropriamentemoral,alguémnãoé julgadobomoumaupelapaixãoque tem,maspelasescolhasquefazem.Nãoescolhemosaspaixões.Somosresponsáveisapenaspelomodopeloqualelassesubmetem nossaação. aquiquepensoquedevemosencontraraformadopensamentoéticodeTomásdeAquino:avirtudedohomem,asuaexcelênciamoral,éemgrandepartedeterminadapelasuacapacidadedereagir paixões,maisdire-tamente,decomoelepodetemperá-las.Daíopapelcentraldaraciona-lidadeedeseudomíniopolíticosobreasemoções.

Aristóteles (1998), Política, trad.António Campelo. Lisboa: VegaAmaral eCarlosdeCarvalhoGomes.Lisboa:Vega.Gardeil,H.-D. (2013), nicia o i oso a de S o o s de ino.SãoPaulo:Paulus.TomásdeAquino(2002),Suma Teológica.SãoPaulo:Loyola.Wéber,J.(1978), L’âme humaine. SommeThélogique(I,q.75-83) trad.,introd.etappéndices.Paris:DescléedeBrouwer–RevuedesJeun

12 TomásdeAquino,ST,I,II,10,3,ad.2.

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Tomás de equino e o problema do Mênonleitura comparada a partir do comentário aos Segundos Analíticos, de Aristóteles (Expositio Libri Posteriorum)

Anselmo Tadeu FerreiraUniversidade Federal de Uberlândia

Este texto é resultado de minha atual pesquisa, um projeto de tradução do Comentário de Tomás de Aquino aos Segundos Analíticos, de Aristóteles.

Tomás de Aquino comentou uma série de textos aristotélicos. A maior parte destes parece ter tido relação com seu trabalho principal como teólogo, a redação da Suma de Teologia e as controvérsias doutri-nárias nas quais se envolveu; de fato, ele comentou o De Anima simul-taneamente à redação da primeira parte da Suma e a Ética à Nicômaco simultaneamente à redação da terceira parte. Quanto a outros textos, como a Física e a Metafísica, foram comentados no calor da chamada “controvérsia averroísta”1. Quanto aos Segundos Analíticos, parece que o comentário que Tomás escreveu (Expositio Libri Posteriorum Aristote-

lis) atende a uma solicitação dos mestres de artes de Paris.A Expositio de Tomás de Aquino é do tipo literal, isto é, um co-

mentário linha por linha, feito a partir da tradução latina de Tiago de Veneza até o capítulo 15 (79b23) do texto aristotélico, ponto em que Tomás, por alguma razão desconhecida parece adotar a revisão deste texto por Guilherme de Moerbeke. Antes de proceder ao comentário 1 Com relação a essa datação, ver; Torrell, J-P.(2004), p.261-289

Carvalho, M.; Hofmeister Pich, R.; Oliveira da Silva, M. A.; Oliveira, C. E. Filosofia Medieval. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 204-212, 2015.

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de cada passagem, Tomás apresenta sempre uma visão sintética do conjunto do capítulo ou capítulos. Trata-se de uma espécie de análise estrutural do texto2.

As versões latinas do texto aristotélico de que Tomás dispõe, já que ele não lê grego, são sintéticas ao extremo e muito elípticas, quase criptogr ficasemmuitaspassagenseédif cilacreditar ue om stenhaconseguido extrair desses escritos um sentido senão exatamente igual, pelo menos muito parecido com interpretações contemporâneas a nós, feitas por estudiosos com acesso ao texto grego, como por exemplo, as edições de Ross3 e o comentário de Porchat4 sobre os Segundos Analíticos.

No decorrer de nosso trabalho de tradução, duas questões nos tem intrigado. A primeira delas é o motivo pelo qual Tomás se deu a esse trabalho, já que não fazia parte de suas funções como mestre de teologia. A segunda é: como Tomás conseguiu extrair uma explicação inteligível com base em um texto tão enigmático?

Quanto à primeira curiosidade, já dissemos acima que o comen-tário atende a uma “encomenda” dos mestres de artes de Paris, que inclusive solicitam, em carta aos superiores dos dominicanos após a morte de Tomás5, que lhes enviem o texto no qual Tomás estava traba-lhando em Paris e que, provavelmente terminara na Itália; isso de fato ocorreu, pois temos uma edição parisiense do texto, que serviu de base à edição crítica da Comissão Leonina6. Outra explicação seria assumir ueotrabalhotemavercomatentativade om sem ustificarateolo-

gia como ciência. A respeito disso, já tratamos em nossa tese de douto-rado7 e não estamos em condições para oferecer uma resposta melhor.

2 Weijers, Olga. (2002) chama esse tipo de comentário de “comentário parisiense” e Tomás de Aquino é seu melhor exemplo.

3 Ross (2000)4 Pereira, Oswaldo Porchat. (2001) 5 O texto latino desta carta foi publicado por Birkenmajer, A . “Der brief der Pariser Artisten-

fakultat ber den Tod des hl.Thomas von Aquini em Beitrage zur Geschichte der Philosophie des

Mittelalters, Munique, v.20, fasc. 5, p. 1-35. O texto encontra-se nas páginas 2-5 e a tradução por nós utilizada é de Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento (inédita).

6 Tomás de Aquino. Opera Omnia iussu Leonis XIII P.M. edita, Roma/Paris, Comissio leonina/ Librairie Philosophique J.Vrin, 1989, editio altera retractata, cura et studio Fratrum Praedi-catotum, volume I-2.

7 Ferreira, Anselmo Tadeu. O conceito de ciência em Tomas de Aquino : uma apresentação da Expo-

sitio libri Posteriorum (Comentário aos Segundos Analiticos), tese de doutorado, disponível em: h p:// .bibliotecadigital.unicamp.br/document/ code vtls000444 74

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Quanto à segunda questão, alguma luz pode ser conseguida se compararmos o comentário de Tomás com outros comentários a ele disponíveis, especialmente os de Alberto Magno e Roberto Grossetes-te, mas também o de Avicena, que provavelmente foi base para os dois citados anteriormente e até mesmo a paráfrase de Temístio, comenta-dor do século IV, cuja versão latina já estava em circulação no século XII e pode ter sido consultada por Tomás e certamente o foi pelos ou-trosdois.Comparandoestescoment rios,pareceficarclaro ue om sse utiliza largamente dos trabalhos precursores para produzir o seu.

Se isso é verdade, podemos formular a questão seguinte: se já havia dois bons comentários e não era sua atribuição professoral co-mentar esse texto, por que ainda se dar ao trabalho de produzir um terceiro comentário? Qual a intenção de Tomás de Aquino ao realizar esse trabalho e qual a sua avaliação dos comentários precedentes? Tais são as questões de que nos ocupamos paralelamente ao trabalho de tradução do comentário tomista.

Na leitura paralela dos comentários, mais exatamente dos comen-tários de Roberto Grosseteste e de Alberto Magno, podemos buscar as diferenças que explicariam a motivação de Tomás em escrever o seu próprio comentário. Na realização dessa tarefa fomos auxiliados gran-demente pela pelo trabalho de René Antoine Gauthier, editor da edição crítica, que realizou uma leitura comparada dos vários comentários.

O objetivo deste texto é apresentar uma parte de nossa pesquisa. Faremos uma apresentação dos resultados de uma leitura comparada dos comentários de Roberto Grosseteste, de Alberto Magno e de To-más de Aquino ao texto do capítulo 1 do livro I dos Segundos Analíticos.

O G

Nascido por volta de 1175 (a data de nascimento é quase sem-pre incerta nesses casos), Roberto Grosseteste morreu como bispo de Lincoln em 1252 depois de, dentre outras coisas, escrever várias obras cient ficaseterproduzido,emalgumaépocaentre1210e12 0,opri-meiro comentário latino dos Segundos Analíticos8. Como tinha familiari-8 Robertus Grosseteste. Commentarius in Posteriorum Analyticorum Libros, Firenze : L.S. Olsch-

ki, 1981. Edição crítica e introdução de Pietro Rossi. A datação da obra é detalhadamente considerada pelo editor, mas a conclusão só é certa para a data limite de 1230

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dade com a língua grega, parece ter se servido de textos originais, além dos comentadores árabes.

O comentário de Roberto Grosseteste, embora não seja tão de-talhadamente dividido como o de Tomás, também divide o texto e o comenta segundo a ordem do próprio texto sem interferir muito. A clareza do texto é responsável pelo seu sucesso (restaram 32 manuscri-tos e 10 edições a partir das quais se realizou a edição crítica). O texto do Comentário é dividido em 19 capítulos para o livro I e 6 capítulos para o livro II dos Segundos Analíticos .

No primeiro capítulo de seu comentário, no qual ele não deixa explícita nenhuma divisão exaustiva do texto, Roberto trata exatamen-te do capítulo primeiro dos Segundos Analíticos. O tema do livro, diz ele, é a demonstração. Como a demonstração é o silogismo que produz ciência, é necessário supor que a demonstração é possível. Nenhum art ficedeveestabelecerosu eitodesuaartenemsetratadetransgres-sãosuporalgosemuma ustificativacompleta,mascomonestecasoh contradiçãoentreosfil sofos,foinecess rio ueArist teles,antesde entrar no seu assunto tratasse de mostrar de que modo é possível saber algo, ensinar e aprender esse algo. A contradição a que ele se refere é a seguinte: os acadêmicos dizem que nada podemos conhecer e os platônicos dizem que, ou nada aprendemos ou só aprendemos o que já sabíamos, mas tínhamos nos esquecido. Tal é a apresentação do conteúdo do primeiro capítulo feita por Grosseteste.

“Tudo o que sabemos por aprendizado sabemos antes no seu universal, mas o ignoramos em si mesmo” Essa proposição resume, segundo Grosseteste, o que Aristóteles procura fa-zer no referido capítulo, o qual versa sobre a explicação da dita proposição e nesta explicação mostra em sua maior parte como chegamos ao conhecimento científico por demonstra-ção, que se dá a partir de conhecimento prévio e mostra tam-bém de que tipo de conhecimento prévio se trata bem como divide os modos de conhecer previamente algo.

“Toda ciência adquirida por aprendizado e ensinamento (não a sensitiva, mas apenas a intelectiva) é gerada a partir de conhecimen-to previamente existente”. Ao comentar esta frase, que é a frase de abertura dos Segundos Analíticos, Grosseteste faz a seguinte observação em primeira pessoa:

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“digo que a ciência dos princípios não é adquirida por ensina-mento, pois não ensinamos nem aprendemos senão aquilo que, quando o concebemos primeiramente, para nós parece duvidoso ou mesmo falso e depois da dúvida e da opinião contrária se ma-nifesta a nós a sua verdade” (Grosseteste, R., (1981), p. 94)

Há aqui um alusão certamente à noção de que os princípios são auto evidentes, noção muito importante no esquema aristotélico. Em seguida, complementa:

“não chamo ensinamento somente aquilo que ouvimos da boca dos mestres, mas também considero a escritura no lugar do mes-tre; e para dizer com mais verdade, nem aquele que faz um som exteriormente ensina nem a escritura vista exteriormente ensina, mas estes dois apenas movem e excitam; mas o verdadeiro mes-tre é aquele que, no interior da mente ilumina e mostra a verda-de”. (Grosseteste, R., (1981), p. 94)

Trata-se de uma curiosa interpretação agostiniana de uma noção aristotélica. Assim, o conhecimento dos princípios que é auto evidente para Aristóteles é, para Grosseteste perfeitamente compatível com a iluminação divina da qual fala Agostinho.

O texto prossegue com os detalhes da argumentação em favor desta ideia, culminando com o “problema” do Mênon, assim por ele apresentado:

“o que alguém aprende ou sabia anteriormente ou não; se sabia anteriormente, então não aprende, logo o que alguém aprende, não aprende. Mas se não sabia anteriormente, quando isso ocor-rer a ele, não sabe se é o que buscava ou não. E Platão acrescenta o exemplo do senhor (paterfamilias) que, procurando um escravo fugitivo, o qual se não fosse conhecido daquele que o procura, mesmo que o encontrasse na rua, não o reconheceria mais do que a qualquer outro”. (Grosseteste, R. (1981), p. 97)

Na resposta a essa objeção, segundo Grosseteste, Aristóteles conclui que

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“aquele que aprende algo nem previamente sabe aquilo pura e simplesmente nem ignora completamente, mas conhece sob um certo aspecto e, sob este aspecto não aprende, mas na medi-da em que conhece sob esse aspecto é que conhece sobre o que era em si simplesmente ignorado que é aquilo que procurava saber.”(Grosseteste, R. (1981), p. 97)

O A

Compartilhando com Grosseteste o interesse pelas disciplinas científicaseoconhecimentodalínguagrega,omestredeTomás,Al-bertoMagno,escreveutambémumcomentáriosobreosSegundos Ana-líticos9,oqualnãoteveamesmain uênciaedifusãododeRoberto,masquecertamentein uenciouTomás;Alberto,aliáséconsideradooseumentorquantoaointeressepelasobrasdeAristóteles.

NocomentáriodeAlberto,otextoaristotélicoédivididoemTra-tados,cadaumdelessubdivididoemcapítulos.Oobjetodocomentárioéotextoaristotélico,masAlbertofazamplasdigressõeseoresultadoéumtextonãotãoclaroquantoodeAlbertoouodeTomás.Otratadoprimeiro,porexemplo,tem,emtraduçãolivre,otítulo: sobrequeéprecisoterantesdeteraciênciaedomodouniversaldesaber”.Nestetratado,trata-se,principalmentedotextodocapítulo1dosSegundos Analíticos,eébemmaisextensodoqueocomentáriodeGrosseteste:ao invés de um único capítulo, ele precisa de cinco até chegar na dú-vidadoMênonesuasolução,tendoantespassadopelospreâmbulosdaciência(capítulo1),pelaprovadeAvicenaeAlGazalidequeestelivro segue-se imediatamente o livro dos Primeiros Analíticos (capítulo 2),queaciênciaintelectivasedáapartirdeconhecimentopreexistente(capítulo3),quehádoistiposdeconhecimentoprévio,precipuamentenaciênciademonstrativa (capítulo4)e,finalmente, sobreoconheci-mentodas conclusões (capítulo 5).Emsuma, asmeras 43 linhasdotextoaristotélicorenderamdezenovepáginasdaediçãoBorgnet.

Esbanjandoerudição,Albertonosensinaque

adúvidadoMênon,quepertencemais metafísica,sefundanaantiquíssimaopiniãodeAnaxágorassobrealatênciadasfor-mas,segundoaqualtodasasformasquedevemserconcebidas

9 D.AlbertiMagni,Opera Omnia, Paris, Vives, 1890., volume 2., Liber I e Liber II Posteriorum

Analyticorum, EdiçãodeAugustoBorgnet

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já estão interiormente naquela que há de concebê-las, e pelo mo-vimento a matéria deve depurá-las e fazê-las aparecer, tal como a pedra preciosa, que precisa ser polida, etc.”Alberto Magno (1890), p. 18

Como o assunto já foi muito esmiuçado nos capítulos anteriores, Alberto apenas acrescenta que Aristóteles impugna a objeção apresen-tada no Mênon por argumentos de redução ao absurdo, segundo os uaisseaob eçãoforaceitaoconhecimentocient ficoseriaimposs -

vel; como ele é possível de fato, a objeção não vale. E dá o assunto por encerrado, não sem antes apresentar cinco argumentos a favor da posição platônica exposta no Mênon e apresentar a solução de Boécio para as mesmas.

O A

O comentário de Tomás de Aquino, escrito por volta de 1272, como dissemos acima, parece atender a um pedido dos mestres da fa-culdade de artes e é, de fato, tipicamente “parisiense”. Nele, apresenta--se uma visão de conjunto do texto a ser comentado, explicita-se as suas divisões internas e, em seguida, procede-se a um comentário linha por linha, com poucas e bem marcadas intervenções do comentador.

O mesmo capítulo 1 do livro de Aristóteles, de 71a 1 até 71b 8, segundo a numeração Bekker, é tratado nos três primeiros capítulos do comentário tomista.

O primeiro capítulo é, na verdade, um proêmio, no qual ele faz uma apresentação da estrutura da lógica, relacionando as suas partes comasoperaç esdoesp ritoouatosdarazãoe,nofinaldestecap tulotrata da noção de que todo conhecimento intelectivo provém de algum conhecimento previamente existente em nós.

No segundo capítulo trata do modo e da ordem necessária para que o conhecimento prévio nos leve à aquisição de ciência.

No terceiro capítulo Tomás aborda o tema do conhecimento pré-vio da conclusão de um silogismo. Aí ele apresenta a ideia aristotélica segundo a qual a conclusão de um silogismo ou de uma indução já é, de certo modo conhecida por nós antes que a saibamos de fato, mas de certo modo é desconhecida, isto é, ela não é conhecida pura e sim-

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plesmente mas apenas sob certo aspecto. E para corroborar essa ideia, apresenta-se o “falso” dilema do Mênon.

Em uma intervenção nesse capítulo, Tomás diz:

“como já foi mostrado, é preciso conhecer previamente os prin-cípios da conclusão; ora, os princípios se relacionam à conclusão assim como, na natureza, as causas ativas relacionam-se aos seus efeitos (assim, no livro II da Física, as proposições do silogismo sãopostasnog nerodascausaseficientes)çora,oefeito,antes uese produza em ato, certamente preexiste virtualmente nas causas ativas, mas não em ato, o que é ser pura e simplesmente; do mes-mo modo antes que se deduza a conclusão a partir dos princípios da demonstração, a conclusão é previamente conhecida nos pró-prios princípios virtualmente, mas não em ato, assim preexiste, comefeito,neles.Eassim,ficapatente uenãoéconhecidapre-viamente pura e simplesmente, mas sob certo aspecto.”Tomás de Aquino (1989), p. 14-15

Sem aludir ainda ao intelecto (o que ele fará mais tarde) nem à iluminação divina (o que ele nunca fará neste livro), Tomás dá uma explicação que resolve o dilema do Mênon em termos puramente aris-totélicos: em certo sentido já conhecemos previamente o que procu-ramos, mas não em sentido estrito. Essa é a base de todo o projeto cient ficoaristotélico,apartirdecertosprinc piosconhecidosdemodonãocient fico,époss velderivar,silogisticamente, todooedif ciodeconhecimentoscient ficos uepodemosalme aratingir.

Sem pretender esgotar o assunto, pois é necessário proceder a essa leitura comparada por todo o percurso do livro, o que é um traba-lho bem extenso, parece que temos indicação de possíveis respostas às nossas questões iniciais.

Emprimeirolugar,dadasasdiferençassignificativas uepode-mos observar entre as três perspectivas, parece que Tomás não estava satisfeito com nenhum dos dois comentários existentes e, por isso, re-solveu ele mesmo levar a cabo a tarefa de expor o difícil texto dos Se-

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gundos Analíticos. Ele parece seguir rigorosamente o modelo parisiense afastando-se das paráfrases de Roberto e Alberto nas quais, desconta-da a erudição, parece nítida uma mistura de platonismo ou neoplato-nismo à exposição de Aristóteles.

Em segundo lugar, os comentários anteriores são valiosa fonte de informação que permitem a Tomás de Aquino entender o assunto em questão, mesmo de posse de um texto que, se não é lacunar, é bas-tante enigmático e mesmo se ele discorda da interpretação dada (de fato, segundo Gauthier, ele é bem liberal em seguir ou deixar de seguir qualquer dos dois, às vezes ele segue um dos dois apenas, às vezes discorda de ambos). De resto, trata-se de um texto até hoje impenetrá-vel se não dispusermos das chaves de leitura que seus comentadores antigos e medievais nos legaram.

O objetivo de minha pesquisa daqui por diante será perseverar nestaleituracomparadaafimdefazerumcat logodo ue om sdeveaosseuspredecessoreseem ueelediscordasignificativamentedeles.

ALBERTO MAGNO. D. Alberti Magni Opera Omnia, Paris, Vives, 1890, vo-lume 2, Liber I e Liber II Posteriorum Analyticorum, Edição de Augusto BorgnetGROSSETESTE, ROBERTO. Robertus Grosseteste Commentarius in Posterio-

rum Analyticorum Libros, Firenze : L.S. Olschki, 1981. Edição crítica e introdu-ção de Pietro Rossi.PEREIRA, OSWALDO PORCHAT. Ciência e Dialética em Aristóteles. São Paulo, Editora da UNESP, 2001, página 35. ROSS, W. D. (ed.) Aristotle’s Prior and Posterior Analytics, Oxford University Press, 2000TOMáS DE AQUINO. Opera Omnia iussu Leonis XIII P.M. edita, Roma/Paris, Comissio leonina/ Librairie Philosophique J.Vrin, 1989, editio altera re-tractata, cura et studio Fratrum Praedicatotum, volume I-2.TORREL, JEAN-PIERRE, Iniciação a Santo Tomás de Aquino, São Paulo, Loyola, 2004.WEIJERS, OLGA. “La Structure des commentaires philosophiques et la facultè des arts: quelques observations”. In: l commento filosofico nell ocidente latino, Turnhout, Brepols, 2002.

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A noção de intelecto na doutrina dos transcendentais de Tomás de Aquino

Matheus B. Pazos de OliveiraUniversidade de Campinas

No conjunto da obra de Tomás de Aquino não é possível identi-ficaro uesedenominariacomoumaespéciedetratadodostranscen-dentais. No entanto, a ausência de um tratado sistemático, no qual se podeidentificarimediatamenteaopiniãotom sicasobreostranscen-dentais, não impede que a importância desse tema em sua obra seja identificada. poss velreconstruir,mediantealgunste tos1, a concep-ção tom sicados transcendentais e, apartirdisso, ustificaromodopelo ual om scompreendeasnoç esgeraisdoenteouprimeirasconcepç esdointelecto,as uaissãodegrandevaliapararesponderumasériedeproblemasfilos ficos uelhepreocupavam.2

Ointuitodopresentetrabalho,contudo,émaismodesto.Preten-doanalisar,sucintamente,oempregodanoçãodeintelectoemDe veri-

tate, .1,a.1.Comisso,tenhoporintentoe aminaromodopelo ualointelectohumanoapreendea uilo ue om sdesignapor concep-ç esprimeiras ,bemcomoanecessidadedeseafirmar ue,emsetra-tandodeduasnoç esgerais,asaber, bem e verdade ,ointelectoasconcebe a partir da relação estabelecida com duas faculdades da alma, 1 Basicamente,aliteraturasecund riaprivilegiaosseguinteste tos:In I Sent., d. 8, q. 1 a. 3, De

veritate, q. 1, a. 1 e De veritate, q. 21, a. 1.2 OtrabalhopioneirodeAertsen 199 temporob etivoespec ficocomprovaraimport ncia

dadoutrinadostranscendentaispararesponderumasériedeproblemasfilos ficosem o-más de Aquino.

Carvalho, M.; Hofmeister Pich, R.; Oliveira da Silva, M. A.; Oliveira, C. E. Filosofia Medieval. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 213-225, 2015.

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a saber, apetitiva e cognoscitiva. Para tanto, minha análise encontra--se dividida em três partes. A primeira trata do método da resolução [resolutio], empregado por Tomás no início do argumento sobre os transcendentais em De veritate, q. 1, a. 1. A segunda parte, por sua vez, apresentaomodopeloqualTomásjustificaaapreensãointelectualdenoções primeiras ao comparar duas maneiras a partir das quais o co-nhecimento intelectual se efetiva, isto é, no domínio da demonstração, bemcomonoâmbitodaconstituiçãodedefinições.Aterceiraparte,enfim,temporobjetivoesclarecerafundamentaçãodasnoçõesgerais‘bem’ e ‘verdade’, utilizando-se, para isso, de uma expressão retirada do De anima aristotélico que se encontra citada em De veritate, q. 1, a. 1.

O objetivo central do texto tomásico que passo a considerar con-sistenadefiniçãodanoçãodeverdade.Comefeito,aprimeiraquestãodo De veritate tem por título “o que é a verdade?” [“Et primo quaeritur quid est veritas?”]3.Com isso, espera-seuma re exãoque explicite oque é (quid est) a verdade, ao invés de estabelecer, como sói ocorrer em questões disputadas4,sealgopodeserafirmadoounegado.Trata-se,apartir do título dessa questão, de uma investigação concernente à qui-didadedealgo,resultandoemsuadefinição.5 No entanto, a resposta dessa questão parece ampliar o escopo investigativo e, a partir disso, Tomásinsereare exãosobreadefiniçãodaverdadenumaconsidera-ção sobre as noções gerais do ente ou sobre os transcendentais.

No início da resposta da referida questão de De veritate, Tomás escreve:

Respondo dizendo que assim como nas demonstrações é preci-so reduzir a algum princípio evidente por si mesmo para o in-telecto, da mesma maneira deve ser investigando o que é cada

3 Utilizo-medotextolatinopreparadopelaComissãoLeonina 1972 .Todasastraduçõesnopresente texto, salvo alusão contrária, são de minha responsabilidade.

4 À guisa de exemplo do estilo de investigação das Questões disputadas, menciono os títulos dos artigos seguintes que compõem o conjunto da primeira questão de De veritate: a. 1: o que é a verdade; a. 2: se a verdade está principalmente no intelecto do que nas coisas; a. 3: se a verdade existe apenas no intelecto compondo e dividindo; a. 4: se só há uma verdade a partir da qual todas as coisas são verdadeiras; a. 5: se há outra verdade que seja eterna além da verdadeprimeira;a.6:seaverdadecriadaéimutável;a.7:seaverdadenaspessoasdivinassedizessencialmenteoupessoalmente;a.8:setodaverdadeédaprimeiraverdade;a.9:sehá verdade nos sentidos; a. 10: se alguma coisa é falsa; a. 11: se há falsidade nos sentidos; a. 12: se há falsidade no intelecto.

5 In II Post. Anal.lect.2,n.419: definiçãoéaproposiçãoquesignificaaquiloqueé quid est]”.

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uma.Casocontr rio,proceder amosaoinfinitoemambose,des-semodo,pereceriatodaaci nciaeoconhecimentodascoisas.Aquilo que o intelecto por primeiro concebe como a mais eviden-tedetodas,ena ualtodasasconcepç essereduzem,éoente,comodizAvicena,no in ciodesuaMetaphysica I,5 .Dondeépreciso que todas as outras concepções do intelecto sejam adqui-ridas por acréscimo ao ente.

Apartirdapassagemsupracitada, om se plicita ueoprocessointelectualobedeceaumaordem,sema ualnãoéposs velobterconhe-cimentoe,comisso,constituirumdiscursocient ficosobrea uilo ueseprocura investigar. rata-se,nestecaso,deuma investigaçãosobreofundamentodetodoconhecimentoad uiridopelointelectohumano,uandoestesedisp eae aminarem ueconsisteaprimeiraconcepçãoouoprinc piocognitivoimprescind velaodiscursocient ficoe,emsetratandodote tocitado, constituiçãodoprinc piomaisgeral uefun-damenta todoe ual uerdiscurso.Anecessidadedae posiçãodesteprincípio, que é denominado de primeira concepção do intelecto, encon-trasua ustificativanofatode uenãoéposs velprocederaoinfinitonainvestigaçãoembuscadeumfundamentoparaoconhecimento.Comoprimeiropassonessainvestigação, om safirma uesedeve reduziraalgumprinc pioevidenteporsimesmoparaointelecto .

O

om smenciona a utilização dométodo de redução ou reso-lução via resolutionis nopro miode seucoment rio Metafísica de Arist teles.Nessete to,afirmaserpr priodainvestigaçãometaf sicaproceder daquilo que é menos comum para aquilo que é mais comum.7

De veritate, .1,a.1,resp: Respondeo.Dicendum, uodsicutindemonstrabilibusoportetfierireductioneminali uaprincipiaperseintellectuinota,itainvestigando uidestunu-m uod ue aliasutrobi ueininfinitumiretur,etsicperiretomninoscientiaetcognitiore-rum.Illudautem uodprimointellectusconcipit uasinotissimum,etin uodconceptionesomnesresolvit,estens,utAvicennadicitinprincipiosuaemetaph sicae. ndeoportet uodomnesaliaeconceptionesintellectusaccipianture additioneadens.

7 In Met. proem: Ametaf sica,pois,consideraoenteea uilo uelhesegue.Por uea uilouetranscendeaof sicoseencontranaviaderesolução via resolutionis ,comoo ueémaiscomumap somenoscomum. denominadafilosofiaprimeira,poisconsideraascausasprimeiras das coisas”.

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Essemododeprocedimentoe plicita,porumlado,aespecificidadedodiscursometaf sico,emsetratandodeumainvestigação uetemporescopotratardoenteeda uilo uelheseguee,poroutrolado,fa-voreceaclassificaçãodafilosofiaprimeiracomoaci nciamaisnobre,umavez ueocupa,noroldasci nciasespeculativas,olugarmaispro-eminenteporsera uela ueinvestigaascausasprimeiras,bemcomooenteconsideradoemgeral.

Paraalémdoempregodométodoresolutivonumainvestigaçãosobre o lugar do discursometaf sico na ordemdas ci ncias, om sapresenta, no Comentário ao Tratado da Trindade de Boécio, uma distinção entreométododeconhecimentopr prioaossereshumanoseamanei-rapela ualassubst nciasseparadasinteligem:

... épatente ueaconsideraçãoracionalterminanaintelectualdeacordocomaviaderesolução,namedidaem uearazãore-colheaverdadeunaesimplesapartirdemuitos reciprocamen-te, a consideração intelectual é o princípio da racional de acordo com a via de composição ou de invenção, na medida em que o intelectoabarcaamultidãoemum.Portanto,aconsideração ueéotérminodetodooracioc niohumanoépore cel nciaconsi-deração intelectual.8

Deacordocom om s,ossereshumanosoperam,noconheci-mentodecertasnoç es,apartirdaviaderesolução.Issose ustificadevido limitação inerenteaoaparatocognitivohumano9,umavezue esta necessita, sempre, partir damultiplicidade para deduzir a

unidade. Contrariamente, as substâncias separadas, a saber, os anjos eadivindade,inteligemdemodosimples10, prescindindo de qualquer

8 In Boeth. Trin. . ,a.1,resp. tilizo-me,paraestete to,datraduçãodeCarlosArthurR.doNascimento .

9 ST,I, .84,a.7,resp.: Cumpredizer ueéimposs velaonossointelecto,conformeoatualestadodevida,no ualencontra-seunidoaocorpopass vel,inteligiralgoemato,anãoservoltando-separaasimagenssens veis .

10 ST,I, .58,a.4,resp.: Assimcomonointelecto ueraciocinaaconclusãoseligaaoprinc -pio assim,no uecomp eedivide,opredicadoseligaaosu eito.Casonossointelectovisse,imediatamente,nopr prioprinc pio,averdadedaconclusão,nuncainteligiriadiscorrendoouraciocinando.Demodosimilar,seonossointelectotivesseconhecimentoimediato,pelaapreensãoda ididadedosu eito,detudoo uelhepodeseratribu dooudesteremovido,nuncainteligiriacompondoedividindo,massomenteinteligindoa ididade.Dissoéclarouedamesmacausaprovémointeligirdointelecto uediscorreedo uecomp eedivide

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espécie de multiplicidade ou composição. Apesar da distinção entre a razãohumanaeointelectodassubst nciasseparadas, om snãonegaapossibilidadedesead uirir,mediantearesolução,oconhecimentodeprinc piosounoç esuniversais,semelhanteaomododeconheci-mentosimples,semas uaisnãosepoderiagarantiraodiscursone-nhumafundamentação.

Areduçãoassinaladacomopontodepartidaparaainvestigaçãodasprimeirasconcepç esdointelectohumano,tal ualaludidaemDe

veritate, .1,a.1,encontra-setambéme plicitadanoreferidocoment -rioaotratadoboeciano.Narespostaaoartigo uartodase ta uestão,om safirma:

precisodizer uenasci nciasespeculativasprocede-sesemprea partir de algopreviamente conhecido, tanto nasdemonstra-ç esdasproposiç es uantotambémnasdescobertasdasdefi-niç es defato,assimcomoalguémchegaaoconhecimentodaconclusãoapartirdasproposiç es conhecidas,assimtambémalguémchegaao conhecimentodaespécie apartirda concep-çãodog nero edadiferença edas causasda coisa.Ora, a uinãoéposs velprocederaoinfinito, uerno ueconcerne sde-monstraç es, uer no ue concerne s definiç es, pois, assimtoda ciência pereceria, visto que não acontece atravessar os que sãoinfinitos donde,todaconsideraçãodasci nciasespeculati-vasreduzir-seaalgoprimeiro ue,defato,oentehumanonãotem necessariamente de aprender ou descobrir, de modo que não se aprecisoproceder ao infinito,mas temnaturalmenteoconhecimentodisto. aissãoosprinc piosindemonstr veisdasdemonstraç es,como todotodoémaior uesuaparte esimi-laresaos uaistodasasdemonstraç esdasci nciassereduzem,e também as primeiras concepções do intelecto como a de ente, deunoesimilares, s uaiséprecisoreduzirtodasasdefiniç esdas supracitadas ciências.11

e essa causa está em que o intelecto não pode ver imediatamente, na primeira apreensão de qualquer coisa, primariamente apreendida, tudo o que nesta, pela sua virtude, está contido; o uesed peladebilidadedanossaluzintelectual,como foidito.Possuindooan oluzintelectualperfeita,porserespelhopuroeclar ssimo,comodizDion sio,resulta ueele,uenãointeligeraciocinando,tambémnãointeligecompondoedividindo.Porém,inteligeacomposiçãoeadivisãodosenunciados,comotambémoracioc niodossilogismos umavezueinteligeascoisascompostassimplesmente,asm veis,demodoim vel,easmateriais,

imaterialmente”11 In Boet. Trin., . ,a.4,resp.

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Ote tocitadoguardacertasimilaridadecomoin ciodarespos-ta do De veritate, .1,a.1.Apreocupaçãode om sdizrespeitoaomodocomoointelectohumanoconstituiprinc piossemos uaisnãoéposs velobterconhecimentocient fico.Nessesentido,ae plicaçãodomodocomoéposs vele trairnovosconhecimentosmedianteacon-clusãodesilogismos,bemcomoamaneirapela ual se reconheceadefiniçãodealgopelae plicitaçãodadiferençaespec ficaeaclassifi-caçãoemg neroseespéciesaindanecessitadaapresentaçãodeprinc -pios uepressup emesteduplomododea uisiçãodoconhecimento.Paraalém,portanto,daconclusãosilog sticaedadefiniçãodenoç es,faz-senecess rioe plicitar princ piosindemonstr veis e,deacordocom Tomás, a redução a estes princípios ocorre tanto no domínio das demonstraç es, uantonodom niodaconstituiçãodedefiniç es.Noueconcerne reduçãoempregadaemDe veritate, q. 1, a. 1, Tomás procurae porasprimeirasconcepç esdointelectohumano,semasuaisodesenvolvimentodedefiniç esdasci ncias,consideradasdemodogeral,tornar-se-iaimposs vel.

Comooconhecimentodessasprimeirasconcepç esnãosegueomesmoes uemadaconstruçãodesilogismose,conse uentemente,daa uisiçãodenovosconhecimentosmediantea uilo ueseapresentana conclusãodosmesmos e, também, comoo uadrodedefiniç esnãopodeseguirumprocessoad infinitum, om safirma uetaiscon-cepções são obtidas de modo natural. Em De veritate, q. 1, a. 1, ainda seutilizadeumarefer nciaavicenianaparafundamentar ueoenteéaprimeiraconcepçãodointelectohumano.Entretanto, ualopapeldestacitaçãoemesmodopeso ue om sconfere noçãode primeiraconcepção Seriamesmooentealgonaturalmenteapreendidopelointelectohumano Anoçãodeprimeiraconcepçãonãopressup eal-gumaatividadeintelectual uetomacomopressupostooutrasnoç ese,por isso,colocariaem e ueatentativadefundamentaçãode o-más, em De veritate, .1,a.1,danoçãodeverdade

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Em De veritate, q. 1, a. 1, Tomás menciona Avicena no início da resposta, tendoemvistaconfirmaranecessidadedae plicitaçãodo

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princípio de todo conhecimento humano: “Aquilo que o intelecto por primeiro concebe como a mais evidente de todas, e na qual todas as concepções se reduzem, é o ente, como diz Avicena, no início de sua Metaphysica [I, 5]”12.Comefeito,épossívelidentificarnotextoavice-niano citado por Tomás a defesa da tese de que três noções são im-pressas primeiro na alma, a saber, coisa [res], ente [ens] e necessário [necesse].13 Entretanto, no texto tomásico, as outras duas noções nãosão mencionadas como primeiras concepções. Ademais, tais noções se encontram subordinadas à noção de ente, na medida em que são reduzidas ao princípio que, para Tomás, constitui o fundamento das demais.Somadoaisso,otextolatinodeAvicena apresenta mais uma diferença com relação ao De veritate, q. 1, a. 1: as noções primeiras não são caracterizadas como “primeiras concepções”, mas sim como “pri-meiras impressões” [prima impressione].

DeacordocomotextolatinodeAvicena,háumduplomododeconhecimento de noções que necessita de fundamentação para escapar do retorno ad in nit em busca de princípios. Os termos utilizados por Avicena para este duplo modo de conhecimento são “imaginação” [imaginatio], no sentido de uma ideia vaga sobre algo, e “crença” [cre-d itas], no sentido de assentir sobre algo.14 Trata-se, e o próprio Tomás reconhecealhures,dasoperações(i)deapreensãosimplesaoafirmarou negar um conceito em isolado e (ii) da apreensão de conceitos com-plexosoumesmodeaxiomas,apartirdosquaisointelectohumanocompreende sobre “aquilo que é”, bem como sobre “algo que é dito sobre outro algo” 15.Nessecontexto,otextoavicenianosustentahaveruma impressão na alma das noções mais fundamentais que são ima-ginadas e que constituem o fundamento do conhecimento. Entretan-to, Tomás não admite um ponto importante da tese aviceniana. Para Avicena,aimpressãodetaisnoçõessedáapartirdealgoextrínsecoao intelecto humano, pois tem origem na operação do intelecto agente separado. Contudo, para Tomás, a produção do conhecimento huma-no tem como referência primeira as afecções sensíveis, negando, as-

12 De veritate, q. 1, a. 1, resp.13 Cf. AVICENNA LATINUS. i er de hi oso hia ri a si e scientia di ina I, c. 5.14 Estes termos latinos são, respectivamente, a tradução de tasdiq e tasa r. Sobre a utilização

dessestermosnafilosofiaárabemedieval,verWOLFSON 1973 ,pp.478-492.Sobreessasnoções em Avicena, ver KOUTZAROVA [2009], pp. 59-63.

15 Cf. De spirit. creat., a. 9, ad 6.

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sim,ae ist nciadeumintelectoagenteseparado ueimprimaalgo,demodonatural,nointelectohumano.1 Nesse sentido, os autores do séculoXIIIoptampordenominarae pressão primeirasimpress es dote toavicenianocomo primae intentiones , primae conceptiones” ou prima intelligibilia”17. Trata-se, neste caso, de uma adaptação termino-l gica ueseade uaaoprop sitodeconcentraradeduçãodosprin-c piosmedianteaproduçãoimanentedointelectohumano.Aoadotarae pressão concepção , om svisa ustamentesecontrapor,nesteconte to,aoemanacionismodeAvicena,apesardeadmitir ueoente,umadasnoç esapresentadasnote toaviceniano,podeserconside-radocomooprimeiroprinc pioassumidopelointelectohumanoparadarin cioa ual uerinvestigaçãocompretens escient ficas.

Com efeito, Tomás desenvolve, no decorrer da resposta do De

veritate, q. 1, a. 1, em que consiste a redução das demais concepções ounoç esgeraisaoente,namedidaem uenadaprecedeaoenteeumaatribuiçãoanteriorcorresponderiaareduzirainvestigaçãosobreoconstituintemaisgeraldetodasascoisasaalgo ue,realmente,ine-iste,istoé,onada.Nessesentido, om ssustenta ueasdemaisno-ç esgeraissãomodosdesedizerdoenteemgeral.Paratanto, ustificaueoacréscimoaoenteseriaamaneirapela ualointelectohumanocompreendenoç esgerais uenãoseencontramsubsumidas classi-ficaçãocategorialdoente.Apartirdessae posiçãodosmodosdoenteemgeral, om sespecificadoisgrupos, uais se am, (i)modogeralaplicadoatodooente modus generalis consequens omne ens e(ii)modoespecialdoente specialis modus entis .Neste ltimogrupoencontra--seaclassificaçãodoenteapartirdascategoriasdesubst nciaeseusacidentes.Interessa,noentanto,a om sassinalarolugardenoç esgerais ueseencontramnogrupo(i),namedidaem ueestastrans-cendem,nosentidodeperpassarouultrapassar,aclassificaçãocatego-rial e possuem, com o ente, uma identidade na realidade, a despeito de seremdistintasdopontodevistadasignificação.Estasnoç ese pres-samalgo uenãoseencontrae pl citonotermo ente ,mas uelheépr priaapartirdaan lisedosignificadodestasoutrasnoç es.Arigor,aclassificaçãodenoç esgeraisserveparae pressarmodosdoentee,1 Cf. De veritate, .10,a. ,resp.17 Cf.AER SEN 2012 ,p.84.Paraasrefer nciaspontuaisdasocorr nciasdessase press es

nasobrasdeautoresdoséc.XIII,vernota12 nareferidap gina.

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nesse sentido, De veritate, q. 1, a. 1, procura desenvolver uma ordem denoç es uesãosubsumidas primeiraconcepçãoapreendidapelointelectohumano.

A listadenoç esgerais emDe veritate, . 1, a. 1 é a seguinte:ente , coisa , uno , algo , verdade e bem .Nãocabea uianalisar

cada uma dessas noções em separado e o modo pelo qual Tomás de-senvolveadeduçãodestascomoente.Interessa-mee aminarbreve-menteumsubgrupodenoç es ue são,noes uemadesse te to to-másico, considerados como transcendentais relacionais, isto é, noções gerais uedenotamomododoente uandoesteserefereaoutro.

O

Na apresentação do grupo de transcendentais relacionais, o-m sescreve:

Ooutromodoésegundoaconveni nciadeumenteaoutro:eistoéocaso,anãoser uese aindicadoalgo ueporsuanaturezase aaptaaconvircomtodoente:isto,noentanto,éaalma, ue,decer-to modo, é todas as coisas, como é dito em De anima,III.Naalmah aspot nciascognoscitivaeapetitiva.Nessamedida,aconveni-nciadoenteaoapetitee pressaestenome bem ,comosedizno

princípio da Ética:beméo uetodosapetecem.Aconveni nciadoenteaointelectoée pressapelonome verdadeiro .18

Para ustificaroestatutodasnoç esde bem e verdade , om smobilizaumacitaçãoe tra dadolivroIIIdoDe anima,deArist teles.Deacordo com a interpretação tomásica dessa citação, a alma pode ser dita, de certo modo, todas as coisas devido a seus modos de operação e aos ob etos uelhesãocorrespondentes.19Nessamedida, pot nciaoufacul-18 De veritate, .1,a.1,resp.: Aliomodosecundumconvenientiamuniusentisadaliud ethoc

uidemnonpotestessenisiaccipiaturali uid uodnatumsitconvenirecumomniente:hocautemestanima, uae uodammodoestomnia,utdiciturinIIIdeanima.Inanimaautemestviscognitivaetappetitiva.Convenientiamergoentisadappetitume primithocnomenbonum,utinprincipioEthic.dicitur uodbonumest uodomniaappetunt.Convenientiamveroentisadintellectume primithocnomenverum .

19 Sobreisso,vertambémIn De Anima,III,lect.1 ,787-788.Asdemaisocorr nciasdessacitaçãonaobrade om ssão:ST,Ia, .14,a.1 ST,Ia, .1 ,a. ST,Ia, .84,a.2 De veritate, q. 4, a. 8; De veritate, .24,a.10 In De Caelo,II,lect.14.

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dadecognoscitivadaalma,istoé,ointelectoencontra-seemrelaçãocomseuob etopr priomedianteapreensãointelectualdascoisas.Omesmoocorre com a potência ou faculdade apetitiva da alma ao encontrar-se em relaçãocomseuob etopr prioe,porisso,direcionadaaumfim, ualse a,aperfeição.Aidentificaçãodaalmacomapr priaconstituiçãodascoisas,se ano uedizrespeitoaoseuaperfeiçoamento,se ano uecon-cerne suainteligibilidadeemato,formampara om sa ustificativadeueasnoç esgerais bem e verdade e pressamalgo uenãoseencon-trae plicitadonotermo ente .Anoçãode bem e pressaoaspectodefinalidadedoenteeanoçãodeverdadee pressaaconveni ncia,ouse a,ainteligibilidadeouoreconhecimentointelectualdoente.

SegundoainterpretaçãodeAertsen,éimportanteressaltarano-vidadedosautoreslatinosdoséc.XIII uandoestesintroduziramasnoç esde bem e verdade nocon untodaan lisedosmodosgeraisdo ente.20Ademais,osubgrupodetranscendentaisrelacionaisemDe

veritate, q. 1, a.1, por ser constituído a partir da noção de alma, denota o motivoantropol gico 21 da doutrina dos transcendentais em Tomás. Alémdisso,aintroduçãodaalmanocon untoda ustificativasobreostranscendentais leva Aertsen a defender que, para Tomás, o motivo antropol gicoconsistenae plicitaçãodoaspectoilimitadodohomemouumaespéciede aberturatranscendental pela ualointelectohu-mano encontra-se apto a compreender todas as coisas e, em se tratando doaspectovolitivo,ohomembusca,plenamente,seufim ltimo.

Contudo, uma ressalva é necessária sobre a dita motivação an-tropol gicade om snessapassagemdoDe veritate, q. 1, a. 1. Artsen interpretaessetrechoin uenciadoporcertaleituraheideggerianadote totom sicoeisso,segundopenso,acabaporobliterarosentidodaderivaçãodasnoç esgeraisdoenteemtornodeumaclassificaçãonomínimo anacrônica.22Acitação uefundamentaestapassagemnãoe -

20 AER SEN 199 ,p.24 .21 AER SEN 1998 ,p. 71: OaspectooriginaldaderivaçãodostranscendentaisemDe veritate

consiste na introdução dos transcendentais relacionais. Tomás compreende a transcenden-talidade de verum e de bonumemrelaçãocomasfaculdadesdaalmahumana.Oserhumanoémarcadoporumaabertura transcendental omotivoantropol gicoéumainovaçãonadoutrina”.

22 guisadeconfrontocomainterpretaçãoheideggerianaesuapro imidadecomainterpre-taçãodeAertsen,verHEIDE ER 200 ,pp.48- 4,100-10 19 7 ,pp.14-15eAER SEN199 ,p.105-108.

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pressacerta abertura ontol gicaoumesmoantropol gica.Ointuitode om saorecorrer noçãodealmaconsisteemdeduzirapartirdefaculdadespr priasdohomemomodopelo ualasprimeirasconcep-ç esdointelectohumanopodemserderivadas,demodoordenado,esob diversos aspectos. Nesse sentido, a conveniência do intelecto e do ente,muitomais uee pressar, tão somente,umadefiniçãodever-dade, acaba por denotar as condições formais23semas uaisnenhumdiscurso torna-se verdadeiro.24 Além disso, acaba por mostrar ao leitor ue todas essasnoç esgerais encontram-se subsumidas noçãodeente.Isso,noentanto,nãosignifica uedevamosatribuira om sumaaberturatranscendentalparaoser.Significa,emsuma, ueaderivaçãodas primeiras concepções do intelecto em De veritate, q. 1, a. 1, estabele-ceoslimitesdoconhecimentohumanosobreosprinc pios,bemcomofornece a fundamentação metafísica25 que Tomás pretende adquirir paraumdiscursofilos ficosobreomundo.2

23 De veritate, .1,a.1,resp: Aprimeiracomparaçãodoenteaointelectoéen uantooenteconcordecomointelecto:eestaconcord nciasedizaade uaçãodointelectoedacoisa enela se efetiva formalmente a noção de verdadeiro”.

24 Mutatis mutandis,poiseleserefere noçãodeverdadeemArist teles,penso ueécorretoafir-maromesmonocasode om s: ... Emtermosestritos,nãosetratadeumadefiniçãonemdeumateoria,mas,antes,deumcritériodeade uaçãomaterial ue ual uerdefiniçãoouteoriadevesatisfazercomocondiçãoinicialdeplausibilidade (BARBOSAFI HO,201 ,p.51).

25 Sobreessaduplatarefa,éinteressantenotararelaçãoestabelecidapor om sentrel gicaemetaf sica: Emrelação primeirapergunta, uealgumprocedimento,pelo ualseprocedenasci ncias,éditoraciocinativodetr smodos.Deumprimeiromodo,porpartedosprin-c pios,apartirdos uaisseprocede,como uandoalguémprocede provadealgoapartirdasobrasda razão, tais comoog nero, a espécie,oopostoe intenç es semelhantes ueosl gicosconsideram assim,algumprocedimentoser chamadoderaciocinativo, uandoalguémseserveemalgumaci nciadasproposiç esensinadasnal gica,istoé,namedidauenosservimosdal gicanasoutrasci ncias,namedidaem ueestaéumadoutrina.Ora,estemododeprocedernãopodecabercomopr prioaalgumaci nciaparticular,nas uaisocorreerro,anãoser ueseargumenteapartirdo uelhesépr prio.Acontece,porém, ueistosefaçademodopr prioeade uadonal gicaenametaf sica,pelofatode ueambassãoci nciasgeraiseseocupam,deumcertomodo,domesmosu eito .(In Boet. Trin., . ,a.1,resp.).Arelaçãoeolimitet nueentrel gicaemetaf sicaseria,segundopenso,opomodadisc rdiaentreasleiturasdeDe aneAertsenno uedizrespeito noçãodeverdadeemom s.Sobreodebateentreambos,verDE AN 2004 eAER SEN 2007 .

2 Analisandoumaspectoposterioraestea uiinvestigado,ouse a,e aminandoaconse u n-ciadaverdade ue,para om s,consistenoconhecimentoobtidopeloatode ulgar, andimFilhoéprecisoaoafirmar: Oatode ulgartemointelectocomoseuprinc pio.Emrazãodis-so,aconsci nciadoatode ulgarenvolveaconsci nciadesseprinc pio,istoé,aconsci nciadapresençadointelectonoatode ulgar.Mas,aconsci nciadapresençadesseprinc pioéa

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M B.P O

Fonte primária

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consci nciadafunçãodointelecto. om se primeaconsci nciadessa função comosendoaconsci nciada natureza dointelecto.Nãosetrata,noentanto,daconsci ncia ididativada essência do intelecto na medida em que o intelecto é uma faculdade imaterial, indepen-dentedocorpo, uetemaalmahumanacomoseusu eito,pois,casocontr rio,s osfil so-fosmetaf sicospoderiam ulgar. rata-se,nessecaso,daconsci nciade ueanaturezadointelectoéadevisar scoisasou adeseconformar scoisas .Ointelectoseria,então,umafaculdade uesecaracterizariaporumdinamismoimanente:odevisar scoisas. ( AN-DIMFI HO,2009,pp. 90- 91).Nessamedida, om sanalisa,emDe veritate, q. 1, a. 1, o que antecede esse processo imanente do intelecto ou, dito de outra maneira, os pressupostos que fundamentam do ponto de vista metafísico a tese do dinamismo intelectual.

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Fonte secundária

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Natureza comum, abstração e precisão em Tomás De Aquino

Antonio Janunzi NetoUniversidade Federal do Rio de Janeiro

1.

Pode-se encontrar no Corpus Thomisticum varias passagem que fazem menção à noção de natura communis1. Esta noção possui uma amplitudede aplicaç es,pois se encontra afirmadaem uest esdi-versas como o conhecimento de Deus sobre as coisas criadas, a relação lógica entre gênero e espécie na ordem dos conceitos, a individuali-zação da natureza nas coisas materiais, entre outras. Em sentido deli-mitativo, considerar-se-á somente dois aspectos sobre a questão de se natura communis possui alguma existência logicamente independente do intelecto humano ou não. O primeiro parte da premissa de que em om sdeA uinonãoseriaposs velafirmaralgumprinc piocomum

ou de comunidade como constitutivo das coisas materiais:“De fato, se a comunidade pertencesse à intelecção do homem,

então, em qualquer um que se encontrasse a humanidade, encontrar--se-ia a comunidade, sendo isto falso, pois não se encontra nenhuma comunidade em Sócrates, mas tudo o que há nele é individualizado” 2.

Admitindo-se que a intelecção de algo envolve todos os elemen-tose pressosemsuadefinição,segue-se uenãoimportandoainst n-1 Cf.: SCG II, q.52 e 95. IV, q.40; ST II, a.2, ad.3 e ad.4, q.19, a.1; De S. Creatibus, q.1, a.1, ad.9;

De Verit. q.2,a.4, entre outras.;2 De Ente, cap. III, p.23

Carvalho, M.; Hofmeister Pich, R.; Oliveira da Silva, M. A.; Oliveira, C. E. Filosofia Medieval. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 226-242, 2015.

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cia na qual esse algo ocorra, isto é, no próprio intelecto ou na natureza material, ele deve possuir as mesmas propriedades expressas em sua intelecçãoedefinição.Comisso,sealgumapropriedadeforditadain-telecção de algo, mas não for encontrada nesse algo enquanto existente foradamente,haver falsidadeemsuadefinição– ual uerdefiniçãodeve expressar os elementos compositivos da essência de algo. Portan-to, se este algo for composto essencialmente de forma e matéria, a sua definiçãodevecontertantorefer ncia forma uanto matéria.Esseéocasodasubst nciamaterialtalcomoafirmaoA uinate3. Na referên-cia acima, Tomás parece negar que a propriedade de “comunidade” pertença intelecçãodeumasubst nciamaterial,poisseassimfosse,deveriaseencontrarmetafisicamentea comunidade comoprinc pioconstitutivodessamesmasubst nciamaterial.Ora,nãoseriaocaso,poisopr prioautorafirma uetudonasubst nciamaterialéindivi-dualizado em razão dela possuir a matéria como um dos princípios de sua composição essencial e, com isso, ela não poderia ser dita como comum.

Seépatenteaafirmaçãotomistadatotalindividualidadedassubst nciasmateriais,principalmentenoDe Ente et Essentia no qual o autor trata propriamente desta questão, parece não ser tão claro assim se se leva em conta outras passagens nas quais há a aparição da noção de natura communis. Algumas destas parecem evidenciar a possibilida-de de se dizer dos indivíduos matérias algum tipo de “comunidade”, mesmo admitindo a tese da matéria assinalada4 como princípio de indi-viduação. Neste caso, cita-se os seguintes trechos:

“[...] toda forma recebida em um supósito singular pelo qual é individualizada é comum a muitos, seja realmente seja pelo me-nos quanto à razão. Por exemplo, a natureza humana é comum a muitos, realmente e quanto à razão” 5.

3 “De fato, que a matéria sozinha não seja a essência da coisa é patente, pois a coisa tanto é cognosc velcomoéclassificadanumaspecies ou num gênero pela sua essência; [...] Também aformasozinhanãopodeserdenominadaess nciadasubst nciacomposta ... .Comefeito,pelo uefoidito,evidencia-se ueaess nciaéa uilo ueésignificadopeladefiniçãodacoisa.Ora,adefiniçãodassubst nciasnaturaiscontém,nãoapenasaforma,mastambémamatéria.” (De Ente, cap. II, p.17)

4 “[...] cumpre saber que a matéria é princípio de individuação, não tomada de qualquer ma-neia, mas apenas a matéria assinalada.” (De ente. cap.II)

5 ST. q. 19, a.1c

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Ou:

“[...] a natureza comum, se inteligida em separado, não pode ser senão uma: embora se possa encontrar muitos que tenham esta natureza” 6.

Tomás de Aquino parece propor nas sentenças acima que a for-ma7 ou natureza comuns podem ser ditas como compositivas dos in-divíduos materiais, dado que a mesma forma ou natureza comuns po-dem ser encontradas em múltiplos indivíduos de uma mesma species. A referida tese de que há algum tipo de comunidade nos indivíduos parece ser contrária a outras duas teses, a saber: 1) na natureza só há indivíduos e tudo no individuo é totalmente individualizado e 2) os universais s e istemno intelecto. Pois, se se afirma algum tipo decomunidadenoindiv duoouniversale isteemduasinst ncias,tantono intelecto quanto na coisa e, portanto, a coisa seria dita um universal mesmo tendo a matéria assinalada como princípio de individuação da forma na sua essência singular. Assim sendo, invalida-se tanto a tese 1) quanto a 2).

Por consequência, admitir a noção de natura communis seria con-siderar que o próprio Tomás elencou sentenças contraditórias em seu desenvolvimento argumentativo? Seria a proposta tomista incoerente a ponto de admitir em sua lógica interna de argumentação premissas contraditórias? Ao que parece, esse nunca foi o ponto de vista dos co-mentadores. Muito pelo contrário, suas considerações sempre levaram em conta a coerência textual do Aquinate, aparando se fosse necessá-rio aparentes contradições em função do todo exposto. Neste sentido, encontram-se algumas interpretações que tentam resolver o problema da noção de natura communis, a favor da unidade teórica suposta no texto tomasiano.

A seguir, apresentar-se-á criticamente uma possível interpreta-ção que postula um estatuto ontológico para na natureza comum como sendo um elemento instanciado na realidade extra-mental, juntamen-te com ou nos indivíduos, como tentativa de solucionar as aparentes

6 Cont. Gent. lib.2 cap.52 n.2.7 O termo “forma” aqui tem um sentido de “forma do todo”, isto é, tudo aquilo que é explici-

tadoporumadefiniçãodaess ncia.(Cf.DeEnte,cap.III).

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contradições do texto tomásico. E, posteriormente, negando a referida interpretação, será elaborada a compreensão da natura communis como um mero fruto da operação intelectual. Isto é, mesmo que se possa dizer da natureza ou forma como existindo nas coisas matérias, ela nunca será comum nos indivíduos, pois a natureza só é comum na inst nciaintelectivaenuncaforadela.Especificamente,o ueser pro-posto, na segunda etapa, é que a natura communis só existe no intelecto a partir de um modo de abstração ou precisão operada pelo próprio intelecto que a considera.

2 natura communis

Uma das argumentações defensoras de um estatuto ontológi-co para a natura communis é encontrada em Sandra Edward em seu artigo8 sobre o modo de realismo defendido por Tomás de Aquino. Segundo a autora, o Aquinate pareceria defender um tipo de natura

communis aos moldes de uma estrutura inteligível como base da rea-lidade, garantindo assim o fundamento realista para a relação entre o universal mental e a coisa real9.

Sinteticamente, Edwards propõe uma interpretação com vistas a atribuir um modo de existência para a natura communis, não sendo nem individual como as coisas singulares e nem universal como os conceitosdointelectohumano.Elaidentificaanoçãodenatureza ab-

solutamente considerada descrita por Tomás de Aquino no De Ente et

Essentia com a sua noção de natureza como tal, isto é, um modo de se considerar a natureza por si, na sua estrutura própria e essencial e sem referências aos seus possíveis modos de existências: universal no in-telecto e matéria na coisa. O que parece peculiar nesta consideração

8 EDWARDS, S. The Realism of Aquinas in Brian Davies (ed.) Thomas Aquinas. Contemporary philosophical perspectives Oxford: Oxford University Press. p. 97-115.

9 Segundo Edward, a natura communis de Tomás de Aquino deve ser compreendida nos se-guintes termos: “A natureza como tal não tem existência própria, é uma estrutura inteligível, mas não por esse fato, simplesmente uma construção mental. A natureza como tal é objetiva, eterna,imut vel,umacriaçãodeDeuseumre e odaess nciadivina. também,osu eitoda ciência e da demonstração e da fundação de nosso conhecimento dos universais, embora a natureza como tal não seja em si um universal. Uma e a mesma natureza como tal pode existir em muitos indivíduos numericamente distintos e em cada caso, a sua existência real está amarrada às condições de individuação dessa existência.” (Id. Ibid., p. 110)

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é o fato de que a natureza como tal deve, em algum sentido, existir lo-gicamente independente do intelecto que a considerar, isto é, ter um modo de existência para além da mente que a compreende. Entretanto, postular isso é admitir um terceiro tipo de existência que não pode ser reduzido nem à existência material e individual das coisas e nem à existência imaterial e universal no intelecto humano.

Essa suposição de existência encontra sua necessidade teórica ao se considerar que Tomás de Aquino sofreu críticas10 na sua teoria dos universais ao admitir problematicamente a relação entre a individuali-dade das coisas materiais e a comunidade dos universais no intelecto, poispareceserforçosoadmitiralgumarelaçãoentreduasinst nciasradicalmente distintas e que não compartilham nenhuma proprieda-de comum. Ou seja, seria problemático estabelecer algum fundamento real para os conceitos universais se nas próprias coisas matérias não há, aparentemente, nenhum princípio de universalidade ou comuni-dade, admitindo-se que tudo no indivíduo seria totalmente individual e que o conceito é uma semelhança inteligível das coisas.

Para superar esta crítica, Edwards pressupõe11 um tipo de unida-de que não é nem a unidade numérica das coisas matérias e nem a uni-dade encontrada no universal inteligido do intelecto. Isso garantiria a legitimidade da relação de similitude entre o conceito e a coisa mate-rial da qual ele é uma semelhança. Pois, o conteúdo expresso no con-ceitosignificaprecisamenteaunidadedanatureza como tal que ocorre também individualizada na coisa material, mas é um tipo de unidade distinto da unidade numérica do referido singular.

Essa unidade da natureza como talé ustificadaatravésdeumate-oria da identidade e distinção na qual “duas coisas realmente distintas do mesmo tipo têm a mesma estrutura inteligível e são ditas racional-mente idênticas.12” Há, portanto, dois tipos de identidade: 1) uma em

10 Cf. EDWARDS, S. The Realism of Aquinas in Brian Davies (ed.) Thomas Aquinas. Contempo-rary philosophical perspectives Oxford: Oxford University Press. p.97.

11 Dadooisomorfismoentrepensamentoearealidadeaceitopor om s,see istemconceitosuniversais uesãosemelhançasdascoisasreaisdevemosencontra-loafirmando uee istealgumaunidadenascoisas uefornecemabaseparataisconceitos. minhaopinião ueistoéapenaso uen sencontramos–aunidadeaon veldaestruturaintelig velounaturezacomo tal” (EDWARDS, S. The Realism of Aquinas in Brian Davies (ed.) Thomas Aquinas. Con-temporary philosophical perspectives Oxford: Oxford University Press. p.97.)

12 Id. Ibid. p106.

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sentido simpliciter, a identidade numérica encontrada na coisas mate-riais e singulares e 2) uma em sentido secundum quid, uma identida-de na ratio, pois duas coisas podem ter a mesma estrutura inteligível quanto à sua essência, isto é, possuírem a mesma natureza, mesmo que sejam distintas numericamente.

Em suma, a mencionada interpretação admite um terceiro tipo deunidadeapartirdaafirmaçãodeumarelaçãode identidaderealentrecoisasnumericamentedistinta,masclassificadasporsuaess n-cia em uma mesma espécie de indivíduos. No caso, Sócrates e Platão são numericamente distintos pelo princípio de individuação, mas são idênticos a partir da natureza como tal de “homem”, pois entre eles há um tipo de unidade, a da estrutura inteligível.

Todavia, admitir esse modo de unidade da natureza como tal e, com isso, conferir-lhe um modo de existência que não é nem a indivi-dual das coisas e nem a dos conceitos inteligidos, parece supor uma terceira modalidade existencial. No entanto, Tomás de Aquino não aparenta admitir essa possibilidade, pois isso seria contrário ou incom-patível com outras teses já citada, a saber: 1) a realidade extra mental é composta somente de indivíduos e 2) comunidade e universalidade são categorias estritamente mentais. Sumariamente, a proposta toma-sianaparecenãoaceitar comoposs vel a afirmaçãodealgummododeuniversalidadeou comunidade forado mbitoda intelecçãohu-mana–aao uesemanifesta,essaseriaaconsideraçãointerpretativade Edwards no intuito de se legitimar a relação de similitude entre os conceitos universais e as coisas particulares.

3. A natura communis

A estratégia de se conceber a natura communis como uma estru-tura inteligível, existindo em unidade própria e distinta da unidade ou da coisa ou do conceito, poderia gerar uma incompatibilidade teórica se se considerar outras sentenças da argumentação tomista. Com isso, a presente parte do texto versará sobre a admissão da natura commu-

nis como um mero efeito de operação intelectiva e, portanto, não ten-donenhumestatutoontol gicologicamenteindependentedo mbitoda intelecção. Postular esse segundo modelo de interpretação poderia

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evitar contradições ou incompatibilidade ulteriores no tratamento to-masiano sobre a relação entre conceito e coisa.

Sabe-se que Tomás de Aquino reserva parte de seu De Ente et

Essentia no tratamento dos modos de compreensão da essência em sua relação com a existência13. Herdado reconhecidamente de Avicena, Aquino propõe a natureza sendo considerada de dois modos. O pri-meiro diz sobre a sua consideração absoluta, isto é, tudo que se pode dizer essencialmente dela enquanto tal, com a desconsideração do que pode ser acrescido a ela acidentalmente, a saber, a existência material (nas coisas) ou imaterial (no intelecto). O segundo diz respeito sobre a essência ou natureza enquanto está vinculada ao um modo de existên-cia, ou seja, a natureza enquanto existe em um indivíduo ou enquanto é pensando como conteúdo em um conceito do intelecto. No caso, a natureza humana de Sócrates considerada enquanto está em Sócrates é uma consideração do segundo modo (consideração relativa) e, por-tanto, tudo que é dito dela deve ser dito também de Sócrates como indivíduo, seus aspectos individuais e acidentais. Em contrapartida, se a natureza humana de Sócrates for considerada do primeiro modo (consideração absoluta) somente o que é próprio da natureza enquanto tal e não o que está no indivíduo é considerado, ou seja, todas as pro-priedades que são ditas dos indivíduos não são ditas propriamente da natureza–somenteaspropriedadesdaess nciaen uantotalsãocon-sideradas. Em suma, na consideração absoluta, a essência ou natureza é tratada a partir das propriedades que são predicadas essencialmente dela e, assim, os modos de existência (material na coisa ou imaterial não intelecto) são vistos como propriedades acidentais e somente tra-tadas em uma consideração relativa14.13 Cf. De Ente. Cap. III.14 Neste sentido, Tomás de Aquino propõe o seguinte: “Mas a natureza ou a essência assim

compreendida pode ser considerada de dois modos. Do primeiro modo, segundo a sua no-ção própria, que é a absoluta consideração da essência. Neste modo nada é verdadeiro sobre ela a não ser o que lhe cabe enquanto tal; e assim, qualquer outra coisa que se lhe atribua será uma falsa atribuição. Por exemplo, ao Homem, enquanto Homem, cabe-lhe racional e animaleoutrospredicados ueentramnasuadefinição masbrancoounegro,ou ual ueroutra coisa semelhante que não pertença à noção de humanidade não cabe ao Homem en-quanto Homem. Consequentemente, se se perguntar se esta natureza, assim considerada, pode ser dita uma ou várias, não se deve conceder nem uma coisa nem outra, visto ambas estarem fora do conceito de humanidade e ambas lhe poderem acontecer. Com efeito, se a pluralidade pertencesse ao seu conceito, ela nunca poderia ser uma só, quando, no entanto,

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Assim sendo, pode-se dizer que uma questão emerge nesse con-texto: a natura communis ou essência absolutamente considerada é somente resultado de uma operação intelectiva quando considera as essências singulares ou possui algum modo de existência?

Como se viu anteriormente, seria problemático e forçoso admitir uma espécie própria de existência para a natura communis. Por isso, tentar-se-á evidenciar que a referida noção é somente um efeito resul-tante de alguma operação intelectiva. Para tal, a estratégia argumen-tativa ser constru daemduaspartes: 1) a significaçãodanoçãodecommunis aplicada à natureza ou essência e 2) que tipo de operação intelectiva poderia produzir a essência absolutamente considerada.

3.1 A noção de communisQuanto ao primeiro, parece que a problemática de se pensar um

modo de existência para a natureza que não seja nem singular nas coi-sas e nenhum universal no intelecto se dê pelo fato de que, prima-riamente, deve-se legitimar a possibilidade de se predicar uma mesma propriedade a indivíduos numericamente múltiplos, tal como nos ca-sos de “Sócrates é Homem” e “Platão é homem”. O que está sendo dito é que tanto o indivíduo Sócrates quanto Platão (numericamente distin-tos), partilham de um propriedade essencial comum, “a natureza hu-mana”. Sumariamente, dado a possibilidade de predicação na relação entre conceitos do intelecto e indivíduos matérias, parece ser necessá-rio admitir um reino existente de propriedades comuns que legitimem a própria predicação. Entretanto, a referida admissão não é necessária, poisdizer uealgoé comum nãosignificadizer ueuma e a mesma propriedadee isteeminst ncias(indiv duos)numericamentedistin-tos. Para Tomás de Aquino, comumpodepossuirosseguintessignifi-cados: 1) a relação entre indivíduo e species e 2) a relação entre species e gênero na ordem dos conceitos.

é uma só enquanto se encontra em Sócrates. Paralelamente, se a unidade pertencesse à sua noção, então a natureza de Sócrates e de Platão seria uma e a mesma e não se poderia mul-tiplicar em vários indivíduos. Do segundo modo, considera-se a essência segundo o ser que possui neste ou naquele indivíduo. Neste caso, pode-se-lhe predicar algo por acidente em razão daquilo em que ela é. Por exemplo, diz-se que o Homem é branco porque Sócrates é branco, embora isto não convenha ao Homem enquanto Homem.”

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“[...] há dois modos de algo ser comum: um modo, como o indi-víduo está sob a espécie; outro modo, como a espécie está sob o gênero. Portanto, quando há muitos indivíduos sob uma espécie comum, a distinção dos muitos indivíduos é pela matéria indivi-dual, que existe à parte da natureza da espécie15.”

O primeiro modo de ser dizer algo como comum se encontra na relação entre os indivíduos que estão sob uma mesma species, isto é, todososindiv duosclassificadoslogicamenteemumaspecies compre-endida pelo intelecto. Cumpre saber que species pode ser considerada de dois modos: 1) sob o aspecto da operação cognitiva: ela nada mais é do que o resultado de um processo de abstração operado pelo intelecto agente–eretidonointelectopassivo–apartirdaimagemparticularda coisa material produzida pelo faculdade sensorial da imaginação, a species inteligível; 2) sob o aspecto lógico da relação entre gênero e spe-

cies: ela é um princípio inteligível de determinação formal do gênero, ouse a,estesignificaumaess nciademodomaisindeterminadodoque a species,poisestapodesignificaramesmaess nciademaneiramais determinada. No caso, a species homem significademodomaisdeterminadoo ueest significadodemodomenosindeterminadonogênero “animal”. Sinteticamente, a relação de determinação entre spe-

cies e gênero na ordem conceitual se dá pelo fato de que nem o gênero e nem a species podem ser considerados como partes extrínsecas na predicação, pois se fosse o caso, poderia se predicar impropriamente a parte do todo.16

Portanto, em relação aos indivíduos, algo só pode ser dito como “comum” somente na consideração da species na qual aqueles são clas-sificados, ou se a, propriamente não é necess rio admitir nenhumapropriedade ou natureza comum nosindiv duos,deve-sesomenteafir-mar que eles são considerados comuns não em razão de sua individu-alidade natural e sim sob a dimensão conceitual da species– uenadamaisédo ueumaclassificaçãointelig veldasess nciassingularesin-dividuais. Assim sendo, conceber a noção de natura comunis não parece postular a admissão de uma propriedade ou essência una para além da unidade numérica das coisas singulares. O que se poderia conceber é

15 De Spirt. Creatures, q.1, a.1, ad.916 Cf. De Ente, cap. III.

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que a aplicação do termo “comum” dito da natureza ou essência das coisassignificaarelaçãoentreanaturezaconcebidanointelecto(spe-

cies) e sua relação com os indivíduos, tornando-os inteligíveis para o intelecto–poisaspecies inteligível é a similitude das coisas matérias no intelecto que as concebe17.

Assim sendo, a noção de “comum” se diz muito mais da relação cognitiva entre specieseindiv duosdo uenaafirmaçãoontol gicadae ist nciadeess nciascomuns. pelofatodarelaçãodesimilitudeen-tre species mental e indivíduos que a noção de “comum” se aplica. E ao que parece, Tomás de Aquino evidencia essa compreensão ao criticar a tese averroísta da unidade do intelecto no De Ente et Essentia:

“Assim se patenteia a falha do Comentador, no livro III do De Anima, que da universalidade da forma pensada pretendeu con-cluir a unidade do intelecto em todos os homens. Mas não se tra-ta da universalidade daquela forma, enquanto está no intelecto, mas enquanto se refere às coisas como semelhança delas. Assim, por exemplo, se houvesse uma estátua material representando muitos homens, essa imagem ou representação da estátua teria um ser singular e próprio, enquanto está numa matéria particu-lar. Mas já teria um carácter de comunidade por ser uma repre-sentação comum de várias coisas18.”

Consequentemente, é pelo aspecto representativo que algo pode ser dito como comum a outros e, para Aquino, a species é uma similitu-de por representação das coisas materiais19. Logo, não seria necessário admitir um modo de ser para propriedades ou essências comuns como logicamente independentes do intelecto com vistas a garantir ou a rela-çãoisom rficaenteconceitosecoisasouapredicaçãodepropriedadescomuns a indivíduos numericamente distintos, pois “comum” é um

17 “A similitude da coisa inteligida, que é a species inteligível, é a forma segundo a qual o inte-lecto intelige”. (ST q.85, a.2).

18 De Ente, cap. III.19 Para Tomás de Aquino, a relação de similitude entre species inteligível e a coisa material da

qual ela é uma semelhança é feita por representação: [...] “Uma semelhança entre duas coisas pode ser entendida em dois sentidos. Em certo sentido, segundo um acordo em sua própria natureza e tal similitude não é necessária entre conhecedor e coisa conhecida [...] O outro sentido que se tem é a semelhança por representação e esta é necessária entre conhecedor e coisa conhecida.” (De Verit. q.2, a.3.)

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aspecto derivado da relação de similitude por representação entre a species e os indivíduos singulares materiais.

3.2 A e a abstração ou precisão

Se a natura communis ou essência absolutamente considerada não é umaentidadedistintado mbitodaintelecçãoedacoisasingular,res-ta considerá-la como resultante de uma operação intelecto. Não obs-tante, falta saber qual tipo de operação intelectiva seria responsável pela produção deste modo de consideração da natureza.

Sabe-se que Tomás de Aquino considerar ao menos dois modos distintos de operação intelectual: a primeira operação denominada in-

telecção dos indivisíveis e uma segunda denominada de composição e di-

visão20. A primeira seria responsável pela intelecção da quididade das coisas materiais por meio de abstração, na qual os princípios materiais considerados na imagem fornecida pela faculdade da imaginação são desconsideras pelo intelecto agente, o qual retêm em si somente as pro-priedades inteligíveis daquela imagem, produzindo por este próprio fato um inteligível em ato, a species inteligível. E por esta não ser mais composta ou relativa aos princípios materiais e individuantes da coisa oudesuaimagem,elaéumuniversalpropriamentedito–emrazãotanto da natureza imaterial do intelecto quanto do modo de sua ope-ração, a abstração21. O segundo modo considera a relação entre concei-tos,entendidano mbitodapredicação22, isto é, se uma propriedade 20 Sobre as operações intelectuais em Tomás de Aquino, conferir os seu comentários ao Peryerme-

nias (I, 1, p. 5), à Metafísica (in Libros metaphysicorum, 1, VI, cap. 4), e ao De trinitate (q. 5, a. 3).21 Neste caso, esse tipo de abstração é considerado por Tomás de Aquino com abstração do todo

ou abstração do universal a partir do particular. (Cf. De Trinitate. q. 5, a.3 e ST. q. 85, a.1, ad.1).22 Landim Filho explica as noções tomasianas de segunda operação do intelecto e predicação

do seguinte modo: “A composição de que trata a 2ª operação do intelecto não é, no entanto, uma mera união de conceitos, como seria a que uniria dois conceitos distintos; por exemplo, a que seria expressa pelo conceito complexo homem justo.Comporedividirsignificamsin-tetizarconceitospormododepredicação. om se plicademaneiraprecisaosignificadodeumacomposiçãoconceitualporpredicação: Emtodaproposição,umaformasignifica-dapelopredicadoouseaplicaaalgumacoisasignificadapelosu eitoouentãoédacoisaremovida .Numa oração predicativa afirmativa,mediante o conceito-su eito, é e pressauma propriedade sob a qual podem cair diversas coisas (objetos) que têm em comum essa propriedade. Mediante o conceito-predicado é expressa uma propriedade que se aplica às coisas mencionadas pelo conceito-sujeito. Graças ao conceito-sujeito, o conceito-predicado ( uesignificaumaforma)érelacionadocomascoisasmencionadaspelosu eitodaoração

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e pressaemumpredicadopodeserditada uilo ueésignificadopelosujeito ou não. Essencialmente, a predicação realizada pela segunda operação é entendida analogamente à relação entre forma e matéria, ou seja, que é expresso pelo predica determina, à maneira de uma for-ma,a uilo ueésignificadopelosu eito, uesecomportacomoumelemento material a ser determinado.

Aparentemente, o conceito de essência absolutamente considerada não parece ser derivado de uma operação intelectual de composição e divisão, pois como dito, esse ato versa sobre a relação entre conceitos em mbitodepredicaçãoe,portanto,nãopareceserocaso uandodeconsidera a natureza como tal. Resta assim, considerar se a referida na-tureza é obtida por algum processo de primeira operação, ou seja, a abs-tração. E parece ser o caso, pois Tomás de Aquino No primeiro artigo da primeira questão de Quolibet VIII,pareceafirmar ueanatura communis seria resultado de um processo de abstração operado pelo intelecto:

Deve dizer-se que segundo Avicena, na Metafísica, a conside-ração de uma dada natureza é tríplice. Por um lado, podemos considerá-la no ser que ela tem nos singulares, tal como a natu-reza da pedra nesta pedra e naquela outra. Por outro lado, no ser inteligível, por exemplo, a natureza da pedra no ser que ela tem no intelecto. Finalmente, podemos considerar a natureza ab-solutamente tomada, abstraindo de cada um dos dois seres, de maneira que a natureza da pedra, ou seja do que for, seja consi-derada apenas no que ela é em si.23”

Literalmente o Aquinate parece propor que a natureza absoluta-mente considerada é, de fato, efeito de um processo abstrativo realiza-do pelo intelecto. E essa abstração se dá com relação aos dois modos de existência possíveis daquela natureza: a existência singular na coisa e a inteligível no intelecto. A questão a ser colocar, portanto, é se Tomás

predicativa. Assim, vê-se que a oração predicativa não pode ser analisada como se fosse umarelaçãoentreduascoisassignificadaspeloconceito-su eitoepeloconceito-predicado.Ela é analisada por Tomás de maneira análoga à relação da forma com a matéria: o predica-dosignificaumaforma uedeterminainteligivelmenteacoisasignificadapelosu eito ue,dessamaneira,e erceafunçãodematérianacomposiçãohilem rfica. Ospredicadossãoassumidos formalmente e o sujeito materialmente.”(LANDIM FILHO, R. Predicação e Juízo

em Tomás de Aquino. Belo Horizonte: Kriterion, vol.47, n. 113, 2006, p.8)23 TOMÀS DE, Aquino. Quodlibet VIII, q.1, a.1c.

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de Aquino está usando a noção de abstração de maneira analógica, istoé,emsentidoamplo,ouseoseuusoéespec fico,eassimhaveriarealmente um tipo de operação abstrativa que é própria à consideração absoluta da natureza ou essência.

Para tanto, estabelecer-se-á os modos possíveis de abstração ad-mitidos pelo autor. No terceiro artigo da quinta questão de seu co-mentário ao De Trinitate de Boécio, Aquino considerar dois modos, a saber, a abstração da forma da matéria sensível e a abstração do universal do

particular. Segundo o autor, esses modos de operação correspondem diretamente aos modos de composição encontrados na coisa material: 1) a união da forma coma a matéria sensível e 2) a união do todo com a parte. A primeira abstração considera a forma acidental da quantidade que é abstraída da matéria sensível que, por sua vez, é o sujeito dessa forma acidental, pois a quantidade pode ser abstraída da matéria sen-sível24. O segundo tipo de abstração, denominada também de abstração

do todo, o intelecto agente considera somente as propriedade potencial-mente intelig veisda representação imagin ria – tais representaç essão similitudes sensíveis das coisas matérias. O Aquinate utiliza as no-ções de todo e parte na explicação deste modo de abstração. A primeira se refere às partes das espécies e da forma e, por sua vez, a segunda se diz das partes acidentais ou partes da matéria. Com isso, o referido ato abstra-tivo considera somente as partes da espécie, ou seja, aqueles elementos intelig veis uesãonecess rios definiçãodaess nciadeumacoisamatéria, sem considerar suas partes acidentais, os elementos que não fazempartedesuadefinição25.

24 Osacidentessobrev m subst ncianumacertaordem:pois,primeiro,lheadvéma uanti-dade, depois a qualidade, depois as afecções e o movimento. Donde, a quantidade poder ser inteligida na matéria-sujeito antes que se intelijam nela as qualidades sensíveis; deste modo, no uedizrespeito noçãodesubst ncia,a uantidadenãodependedamatériasens vel,mas apenas da matéria inteligível.” (In Boeth. De Trin. q.5, a.3.)

25 Também o todo não pode ser abstraído de quaisquer partes. Há algumas partes das quais a noção de todo depende, quando o ser para tal todo equivale a ser composto por tais partes ... . aispartes,semas uaisotodonãopodeserinteligido,poisentramnasuadefinição,

são chamadas de partes da espécie e da forma. Há, porém, certas partes que são acidentais aotodoen uantotal ... .Estaspartes uenãoentramnadefiniçãodotodo,masantesaocontrário, são denominadas partes da Matéria. (In Boeth. De Trin. q.5, a.3).

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Para além destes dois modos de abstração, o Aquinate parece afirmarapossibilidadedeumoutroatorealizadopelointelectoagen-te, a precisão ue significa sumariamente a consideração de algumapropriedade da coisa material (sua dimensão formal) com exclusão dos seus aspectos individuantes( sua dimensão material). Diferente-mente dos outros dois modos de abstração, o ato de precisão exclui por consideração o princípio de individuação da essência material. Um dos exemplos que Tomás de Aquino usa para ilustrar a modalidade deste ato é a distinção entre as noções de “humanidade” e “homem”:

Por conseguinte, esta carne, estes ossos e os acidentes que deter-minam essa matéria não estão incluídos na noção de humani-dade e, no entanto, estão incluídos no que é o homem. Segue-se que o que é o homem tem algo em si que a humanidade não tem. Assim, não são totalmente a mesma coisa homem e humanidade, mas a humanidade é entendida como sua parte formal; pois os elementosdadefinição,comrelação matériaindividualizante,se comportam como formas26.

O conceito de “humanidade” é distinto de “homem”, pois aquele nãoinclui–nãofazrefer nciaousignifica–amatériacontidacomoprincípio de individuação da essência matéria. Assim, “humanidade” expressa somente a parte formal da essência de homem, isto é, aquilo pelo qual homem é homem, e não expressa a totalidade do que é o ho-mem.Porsuavez,oconceitode homem nãoe cluiasignificaçãooureferência à matéria que individua a essência de homem, por isso, ele significaohomemcomoumtodo,inclu doemsuasignificaçãotantosos aspectos formais quanto os aspectos matérias da essência humana. OA uinatenãopareceterafirmado ueesteatodeprecisão é um tipo de abstração. Entretanto, usualmente se interpreta o referido ato como um tipo espec fico de abstração, a saber, a abstração precisiva. Neste modo de consideração, a abstração do todo e a abstração da forma da maté-

ria são consideradas como uma abstração não-precisiva, pois seu resulta-doéumconceito ueconsideratodasaspropriedadesdefinicionaisdeuma essência material, sem exclusão de alguma parte.

26 ST. q.3, a.3

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Não importando se a precisão é um modo de abstração ou não, o que será proposto neste ponto é a possibilidade de considerar a natura communis ou essência absolutamente considerada como efeito de um ato de abstração-precisiva ou precisão. O que será negado aqui é que esse modo de se pensar a natureza seja efeito de um dos dois tipos de abstração não-precisiva, pois o resultado deste processo sempre é um conceito universal no intelecto (ou de uma forma acidental ou da essência como um todo) de uma natureza material, mas a essência

absolutamente considerar não contém ou expressa nem o modo de exis-tência material nem o universal.

Com isso, resta admitir hipoteticamente a obtenção da referida natureza por modo de precisão, pois se supõe algum tipo de exclusão. Assim sendo, pode-se pensar que do mesmo modo que se obtêm con-ceitos do tipo “humanidade”, “brancura”, por um processo de exclu-são dos princípios materiais e individuantes, poderia se obter a essên-cia enquanto tal por exclusão dos seus possíveis modos de existência. Dado que a natureza é indiferente quantos aos seus modos de existên-cia e na sua consideração absoluta esses modos se relacionam a ela não de maneira essencial, mas sim acidentalmente. Do mesmo modo que a forma de humanidade é considera por exclusão dos princípios maté-rias, a natureza como tal é considerada por exclusão da existência.

Entretanto, se se admite essa hipótese como válida tem-se o seguinte problema. Dado que os conceitos resultantes de abstra-ção não-precisiva representam diretamente as formas acidentais ou essências, isto é, são conceitos concretos como similitude de coisas matériaseosconceitosresultantesdeprecisãonãosignificamdire-tamente a coisas, pois expressão apenas um aspecto ou parte daque-las–esseconte doe pressadonuncapoder e istirnarealidadetalcomo é considerado, ou seja, são conceitos abstratos. Logo, a essência

absolutamente considerada, se for resultado de operação precisiva, se-ria um conceito abstrato, pois ela expressaria somente o que pode ser predicado dela essencialmente por exclusão da existência, não se poderiaencontr -lacomopossivelmentee istindoforado mbitodaintelecção–poisseassimfosseeladeveriaterummododee ist n-cia,masissoseriacontr rio suapr priadefinição.

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Cunningham propõe que o resultado do ato de precisão é um conceito diverso daqueles que são produzidos por abstração. O pri-meiro é considerado pelo interprete como sendo de primeira intenção, isto é, expressando diretamente as quididades matérias ou algum aci-dente. O segundo é dito como uma segundo intenção, ou seja, uma cons-trução mental, pois considera somente uma parte nas coisas materiais e com exclusão de outras, não podendo existir como tal27.

Em suma, se se admite que a consideração da natureza como tal se dá por processo de precisão intelectiva, parece ser inevitável acei-tar que aquela natureza nada mais seria que um conceito abstrato, uma construção que o intelecto opera a partir de conceitos concretos que representam por similitude as coisas materiais. Entretanto, esse modo deinterpretaçãotentanãoafirmaranecessidadedesepostularumanatura communis como existindo fora do intelecto para garantir a possi-bilidadedapredicaçãoougarantirarelaçãoisom rfica ueoconceitotem para com as coisas matérias, pois essa admissão encontrar rigoro-sasdificuldadesdesecompatibilizarcomote totomista.

AQUINO, Tomás de. Commentary on Aristotle’s De Anima. Tradução de Ke-nelm Foster e Silvester Humphries. Notre Dame: Dumb Ox Books, 1994.________________. Comentário ao Tratado da Trindade de Boécio, questões 5 e 6. Tradução e introdução de Carlos Arthur R. do Nascimento. São Paulo: Ed. UNESP, 1999.________________. O Ente e a Essência. Tradução de Mário Santiago de Carva-lho. Porto: Edições Contraponto, 1995.________________. Suma Contra os Gentios. Tradução de Odilão Moura. Rio Grande do Sul: EDIPURCS, v. I, 1990._________________. Suma Teológica. Tradução de Aldo Vannucchi et al. São Paulo: Loyola, v. I e II, 2002.________________. Quaestiones Disputatae de Anima. Tradução de John Patrick Rowan. St. Louis & London: B. Herder Book Co., 1949._______________. Quaestione Disputate de Spiritualibus Creaturis. Tradução de Paulo Faitanin e Bernardo Veiga. Rio de Janeiro: E-papers, 2012.

27 Cf. CUNNINGHAM,F. A. A Theory on abstraction in St. Thomas. Modern Schoolman 35, p.252.

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Abstração. Analytica (UFRJ), v. 12, p. 11-33, 2008.__________________. Conceito e Objeto em Tomás de Aquino. Analytica (UFRJ), v. 14, p. 65-88, 2010.__________________. Predicação e Juízo em Tomás de Aquino. Kriterion, Belo Horizonte, v. XLVII, n.113, p. 27-49, 2006.OWENS, J. Thomistic Common Nature and Platonic Idea. Mediaeval Studies 21, p. 211-223, 1959.PANNIER, R.; SULLIVAN, T. D. Aquinas’s Solution to the Problem of Universals in De ente et essentia”. American Catholic Philosophical Quarterly. Supplement 68, p. 159-172, 1994.

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Tomás e o problema do movimentoelementar: notas sobre In Physica, II, 1, n. 3, 1-8.

Evaniel Brás dos SantosUniversidade de Campinas

O propósito deste artigo é expor as razões pelas quais Tomás de Aquino no In Physica, II, 1, n. 3, se dirige a Aristóteles latino nestes termos “sed videtur hoc non esse verum”. Com essa exposição, investigo a hipótese de se ler Tomás com autonomia com relação ao aristote-lismo, este que fora imposto historicamente na leitura de seus textos, sobretudo a partir da Renascença, e tornou-se um possível obstácu-lonacompreensãodeseupensamento,notadamentesobreafilosofiadanatureza.Sendoassim,ahip tesesecomprometecomaafirmaçãosegundoa ual om spossuiumpro etodefilosofiadanaturezadis-tinto daquele presente em Aristóteles latino, projeto este levado a cabo mediante uma crítica que, embora velada, existe e, ademais, a partir da introdução de termos estranhos aos textos de Aristóteles latino, como é ocasodasnoç esdein u nciaederivação.Comoe plicitarei,ocernedesta distinção encontra-se na noção de “motor”. Nesse contexto, Aris-tóteles latino sustenta que “motor” equivale à “forma” em todos os entes naturais, isto é, todo ente natural possui em si mesmo o princípio ativodo ualseumovimentoéconse u ncia.Entretanto,essaconcep-ção é inconsistente, segundo Tomás, pois o termo “motor” só equivale forma uandoseaplica classedosvivos. uandoa refer ncia

são os demais entes naturais, a saber, os elementos e os astros, o termo “motor” não pode equivaler à “forma”, pois os elementos e os astros não possuem o princípio ativo de seu movimento, logo, no projeto de

Carvalho, M.; Hofmeister Pich, R.; Oliveira da Silva, M. A.; Oliveira, C. E. Filosofia Medieval. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 243-260, 2015.

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244

E B S

filosofiadanaturezadeTomás,omotor,paraaqueles,éogeradore,paraestes,éainteligência;eissonãosomentepelaintroduçãodecertateleologia,mastambémpelaprópriaconcepçãodecausalidadevincu-lada,sobretudo,comosentidode potêncianatural”:otermoquega-rantenaturalidadeaomovimentodoselementosedosastrosmesmoomotorsendoexterno.Nointuitodesustentarahipótesemencionada,otextosecompõedetrêspartes.Naprimeiraparte,apresentobreve-menteanoçãodearistotelismo.Nasegunda,porseuturno,exponhooproblemasobreomanuscritodaPhysicalidoporTomás.Naterceira,enfim,apresentoumasucintaleituradoIn PhysicaII,1,n.3,linhas1-5.

1. O

Anoçãode comentário”sereferindoatextosmedievaiséusu-almenteempregadosignificando glosa”do textodeAristóteles, in-dependentementedaprofundidadedaanálise. Issoocorre tantoporpartedehistoriadoresdaciência1eadeptos2comodealgunsintérpre-tesdeTomás3, todospreocupadoscomoaristotelismo. Tratando-seespecificamentedeTomásnocontextodafilosofiadanatureza,háumsensocomumentrequasetodososintérpretesconsultados,qualseja:afilosofiadanaturezadeTomáséaquelaestabelecidaporAristóteles.Pode-seinvestigar,nostextosdeTomás,seestesensocomuméverda-deiroousóaparente.Entendoqueéaparente,estandofundamentadoemtrêspontosinterligados:(i)emmerasconvicçõespessoais;(ii)naausênciadeleituradotextolatinodeAristótelese(iii)nasuperficiali-dadedaleituradostextosdeTomás.

Aomenosoprimeiroeoterceirodostrêspontosmencionadospodempossuirumafontecomum,qualseja,oaristotelismo,sejaaque-ledaRenascença,notadamenteodeAgostinhoNifo(1473-1545),sejaaquele da modernidade, sobretudo praticado por Silvestre Mauro(1619-1687).Comefeito,háindíciosdequeanomenclaturadoIn Phy-

sicadeTomásadotadapelaediçãoLeoninatambémsofreuin uênciadessesautores.

1 Cf.MACHAMER,1978,p.377.2 Cf.CUST DIO,2004,p.20-21; VORA,2006,p.282.3 Cf.ELDERS,2013,p.713-748.

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: I P ,II, , . , - .

Na disputationum1 uetratadolivroVIIdaMetafísica de Aristó-teles,AgostinhoNifoescreve: Oe positor om sraramenteou uasenunca discorda da doutrina peripatética, com efeito, foi todo peripa-tético e todo estudo [foi] peripatético, e não quis ser outra coisa senão peripatético”.4 uantoaSilvestreMauro,esteafirma ue om se pli-catãofielmenteote todeArist teles uetem-seaimpressãode ueéo próprio Aristóteles quem está escrevendo.5

No contexto da discussão sobre o aristotelismo, entendo que só são possíveis dois domínios de sentidos para esse termo. Designo esses domínios de morfológico e semântico. Aquele denota a presença de palavrasee press escomunsaosautores,ouse a,aossignos.Este,porseuturno,dizrespeitoaossignificadosdostermosee press es,aosreferenciais, bem como ao alcance das proposições defendidas. Que há um aristotelismo morfológico em Tomás é obvio, assim como há emboapartedomaterialfilos ficoproduzidonosséculosXIIIeXIV tornando-seumt picopoucointeressanteparaopes uisadoremfilo-sofia.Oaristotelismosem ntico,porsuavez,ée tremamentecomple-xo, pois para ser sustentado depende do grau de exegese, do contexto interno da discussão e da autenticidade dos documentos, sobretudo tratando-se dos manuscritos latinos de Aristóteles. Nesse contexto, o aristotelismo semântico só pode designar o pleno acordo entre os au-tores no âmbito dos sentidos dos termos e expressões, dos referenciais, bem como no alcance das proposições defendidas.

Oaristotelismode om safirmadopelos autores citados, em-bora também seja morfológico, enquadra-se, sobretudo no semântico. A despeito de não haver qualquer menção explícita sobre Agostinho Nifo e Silvestre Mauro, o aristotelismo semântico está presente em boa parte dos intérpretes que consideraram o In Physica II, 1.

O In Physica está inserido no conjunto de textos onde Tomás tratadefilosofiadanatureza.Emboraabibliografiasecund riasobrefilosofiadanaturezaem om s se ae tensa,tendoumcrescimentosignificativo a partir dos anos cin uenta, uma an lise aprofundada,ou mesmo uma descrição geral do In Physica II, 1, fora realizada por poucos. maan liseaprofundadapodeserencontradaem: eisheipl(1955),Aertsen(1988)e ang(199 ).Adescriçãogeral,porseuturno,

4 AGOSTINHO NIFO, 1521, disputationum1 (p.524).5 Cf.SI VES EMA RO,19 8,prooemium.Vertambém: eonina,Preafatio,1884,p.VI.

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24

E B S

encontra-seemMc illiams(1945),Beavers(1988),Mar ues Balles-ter(1999)eElders(201 ).

O último autor mencionado ao considerar o In PhysicaII,escreve:

Tendo examinado o comentário ao Livro II, podemos concluir que Tomás está plenamente de acordo com a teoria de Aristó-teles sobre os uatro g nerosde causalidade.Não há a menor indicação de que Tomás não aceita alguns pontos do texto. Porém, ele faz mais do que simplesmente explicar o texto tornando as sentençasmais f ceis de compreender. Elemostra a verdadeda uilo ueArist telesdiz masnãopodemosiralémdissoedizer que Tomás teria escolhido a mesma ordem de apresenta-ção como o fez Aristóteles.

surpreendenteEldersescrever uenãoh indicaçãode ue o-más discorda de Aristóteles no In Physica II, pois é notável, nesse texto, a crítica de Tomás a Aristóteles. Isso é manifesto quando se percebe ue om s,depoisdeapresentaradefiniçãoaristotélicadenatureza

aplicada, sobretudo, ao movimento elementar, se dirige a Aristóteles latino no In PhysicaII,1,n. ,1,nestestermos: sed videtur hoc non esse

verum”. A importância dessa sentença torna-se ainda mais manifesta mediante a leitura de In de Caelo I, 3, n. 4, 1, pois nesse texto, Tomás, depoisdeapresentaradefiniçãoaristotélicadenaturezaaplicadanae plicaçãodomovimentoceleste,escreve: sed videtur hoc esse falsum”.

Pode-se uestionarasraz espelas uaisEldersnãopercebeuacrítica de Tomás a Aristóteles no In Physica II, 1. Ademais, é possível estender esse questionamento a outros intérpretes que aparentemente nãoperceberamacr tica,taiscomo eisheipl(1955),7Aertsen(1988)8 e ang(199 )9. Para tanto, é importante notar que o In Physica II, 1, n. ,écompostopor tr spar grafos.Noprimeiropar grafo, om sse

dirige a Aristóteles latino mediante a expressão mencionada acima. No segundo,porsuavez, om ssedirigeaalgunsan nimos(quidam) ueafirmamhavernosentesnaturaisuma formaincoada .Noterceiro,

E DERS,201 ,p.729. rifomeu.7 Cf. EISHEIP ,1955,p.17-18.8 Cf.AER SEN,1988,p.281 p.284 p.288.9 Cf. AN ,199 ,p.412-414 p.41 p.422-424.

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: I P ,II, , . , - .

enfim, om scriticadiretamenteosan nimose,indiretamenteAris-tóteles latino, e, além disso, introduz sua solução para o problema da definiçãodenatureza,soluçãoestafinalizadanoIn Physica II, 1, n. 4.

Por que ao considerarem o In Physica II, 1, n. 3, os intérpretes mencionados esquecem o primeiro parágrafo e centram suas consi-deraç esnosegundopar grafo Porventura,issosignificaria ueelesnãoadmitem(ounão ueremadmitir) ue om sécr ticodeAris-t teles Comefeito, aonão admitirem (ounão uereremadmitir) acr tica,osautores(propositadamenteounão)desviamadiscussãoeaparticulariza. Dito de outro modo, Tomás no In Physica II, 1, n. 3, criti-caadefiniçãodenaturezadeArist telesbemcomo astentativas desalv -la,porém,osintérpretesapenasconsideram astentativas .Essaposturaéumaconse u nciadedoispontos,asaber:(a)anãosupera-çãodoaristotelismosem nticoem om se(b)aaus nciadaleituradote tolatinodeArist teles.Eisapassagem uecoincidecomosegundoparágrafo do In PhysicaII,1,n. ,na ualosintérpretesficamrestritos:

Alguns dizem que, também em mudanças desse tipo, o princí-pio ativo do movimento está naquilo que é movido, não perfei-tamente, mas imperfeitamente, colaborando na ação do agente exterior. Pois dizem que na matéria há alguma forma incoada, a qual denominam de privação, o terceiro princípio da natureza. A geração e a alteração dos corpos simples naturais são denomina-das a partir desse princípio intrínseco. Opronomeindefinido quidam ,para eisheipleAertsen,dizem

respeitoaAlbertoMagnoeBoaventura.10 Porém, para Lang, refere-se a Filopono dentre outros neoplatônicos.11 Ademais, na passagem ci-tada, Tomás está criticando diretamente os anônimos e indiretamente Aristóteles latino, e isso numa discussão que diz respeito à geração e a alteração elementar. Porém, os intérpretes citados focam apenas na ge-raçãoenacr ticaaosan nimos outroprocedimento uestion vel.Porque eles não consideram a alteração e a crítica indireta a Aristóteles? Estaaus nciadecorredofatodelessustentarem,baseadose clusiva-mente no texto Grego da Física II, 1, ser impossível o auto movimento emArist teles umprocedimentoincoerente,poiséposs velsustentar

10 Cf. EISHEIP ,1955,p.17,nota cf.AER SEN,1988,p.284.11 Cf. AN ,199 ,p.424.

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que a leitura realizada por Tomás do texto latino da Physica II, 1, seja entendidacomoafirmandooautomovimentonaPhysica II, 1.

2 O h sica

No intuito de sustentar essa leitura, é necessário realizar o exame do texto latino da Physica II, 1 lido por Tomás ou um texto mais próxi-mo possível daquele que Tomás tinha em mãos. Digo “o mais próximo poss vel por uepareceserimprov velidentificaromanuscritolatinoda Physicausadopor om s,eissoportr sfatores.Oprimeirofatoréque Tomás, quando da redação do In Physica, pode ter mudado de texto. O segundo fator, por sua vez, diz respeito à quantidade de traduções (ourevis es)daPhysica possivelmente disponíveis à época de Tomás, a saber,cinco:(1) iagodeVeneza(séc.XII) (2)an nima(séc.XII) ( ) e-rardodeCremona(séc.XII) (4)MiguelEscoto(séc.XIII)e(5) uilhermedeMoerbe e(séc.XIII).Oterceirofator,enfim,refere-se contaminaçãodos manuscritos. A contaminação de um texto medieval é um “fenôme-no” complexo que se dá a partir de uma série de circunstâncias, mas que est fundamentalmentevinculadacoma(re)produçãodemanuscritos,econsistebasicamentena(re)produçãodeumdeterminadomanuscritoa partir de diferentes traduções. Nesse sentido, é possível que o manus-crito que Tomás tinha em mãos fosse contaminado.12

DadaaimprobabilidadedeidentificaçãodomanuscritodaPhy-

sica usado por Tomás, é preciso então estabelecer alguma estratégia para a realização da leitura da Physica que, ao menos supostamente, se aproxime daquele que Tomás tinha em mãos. Nesse contexto, é im-portante saber que as primeiras publicações modernas do In Physica careciam de manuscritos medievais da Physica. No intuito de suprir essacar ncia,aseditorascopiavamsomenteasprimeiraspalavrasouas primeiras frases de cada seção da Physica traduzida para o latim no Renascimento.Algumasmodificaç eseramfeitasnointuitodeevitardiscordâncias entre as primeiras palavras ou frases e o texto de Tomás. Nesse sentido, as primeiras impressões modernas do In Physica de To-más simplesmente reproduziam o texto renascentista de Aristóteles.

12 Cf.MANSION,19 2,p. - 9.

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masoluçãoposs velconsistenoempregodote to rego(esuatraduçãomoderna)daPhysica de Aristóteles. Porém, aqui há um erro metodol gico,poisembora om sd ind ciosde uepossuiumabre-víssima compressão de língua Grega,13estaéinsuficienteparaareali-zaçãodaleitura.Portanto,Arist telesgrego(esuatraduçãomoderna) é inexistente para om s.Nessesentido,adespeitodasdificuldadesdeinterpretar e das incertezas, porque a análise se baseia exclusivamente nosdocumentos,proponhoaleituradatraduçãode iagodeVenezacote adacomastraduç esdeMiguelEscoto(séc.XIII),deMoerbe e(séc.XIII),assimcomoaan nima(séc.XII)earenascentistaaperfeiço-ada e editada pela Leonina a partir da edição Piana.

Na Physica II,1,datraduçãode iagodeVeneza,Arist telesla-tinoafirma:

Dentre as coisas que são, umas são por natureza, outras são por outras causas. Por natureza são os animais e suas partes, assim como as plantas e os corpos simples, a terra e o fogo, o ar e a gua,(poisparaestesesemelhantesdizemos uesãopornatu-reza).Assim,todosestessemanifestamdiferentedo uenãoteme ist nciapornatureza.Estes uesãopornatureza,manifestampossuiremsimesmosoprinc piodemovimentoerepouso unssegundo o lugar, outros segundo o aumento e a diminuição, ou-tros segundo a alteração. Porém, a cama e a roupa, e aquilo que é desseg nero,namedidaem ueassimépredicada,por uesen-do a partir da técnica, não possuem nenhum movimento inato para a mudança, entretanto, na medida em que é de terra ou de pedra ou misturado, eles o possuem. Assim, natureza é princípio de algo e causa de movimento e repouso naquilo em que está primeiramente e por si e não por acidente.

A passagem citada ou uma próxima a ela, é considerada por To-más no In Physica II, 1. Como Tomás no In Physica II, 1, n. 3, linhas 1-5,l apassagemcitadadaPhysica II, 1? Qual seu pensamento pró-prio sobre o assunto em questão? Na formulação das respostas é ne-cess riodiscriminarduasposturasde om s:ointérpreteeofil sofo.Para tanto, é preciso atentar para a chave de leitura da formulação das respostas, a saber, a e pressão (I) neque unum habet motum mutatio-

13 Cf. In PhysicaV,10.

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nis innatum”14 [ /(II) neque

unum habet impetum mutationis innatum”15/ (III) nullam habet ormen

transmutationis innatam”1 / (IV) neque unum habet impetum mutationis

innatum”17/(V) non habet in se principium transmutationis omnino”.18 A sentença em questão, nas cinco traduções possíveis, é empre-

gada por Aristóteles latino para diferenciar os entes naturais daqueles cu acausaéa técnica.Essadiferençased por ueosentesnaturaispossuem, para a mudança, o “motum/impetum/ormen/principium” ina-to. not veldeantemãoadificuldadepara traduziro termogrego“ , pois o (III) an nimo s consegue transliterar uando redi-ge “ormen”. Ademais, pela comparação das cinco sentenças com o In

PhysicaII,1,n. ,linhas1-5,amaispr imaéadeMiguelEscoto,poiseleempregao termo(V) principium” correspondendo a “ ”. O termo “principium éempregadotr svezespor om snoIn Physica II, 1,n. ,linhas1-5:duasvezesvinculadoaotermo motus (linhas2- )e uma vez ao termo “mutationis (linha4). uantoaotermo impetum” (II/IV),estenãoapareceemnenhumapartedosoitolivrosdoIn Phy-

sica. Contudo, não é absurdo, mesmo que seja improvável, supor que a tradução usada por Tomás tivesse o termo “impetus”, pois “impetus” e “impulsus” são sinônimos em todos os casos possíveis, e este termo aparece, por exemplo, no In Physica IV, 11, -7.19 Enfim, tratando-sedo termo “motum empregadopor(I) iagodeVenezaparatraduzir“ ”, embora seja possível, é pouco provável que estivesse pre-sente, deste modo, na tradução lida por Tomás, pois não há qualquer resquício desse emprego no In Physica II, 1, n. 3. Porém, o sentido da sentençatraduzidapor iagodeVenezapodeestarpresentenoIn Phy-

sica II,1,n. ,pois movimento ,natraduçãode iagodeVeneza,éum termo mais restrito, conquanto “mudança” seja mais geral. Nesse

14 Natraduçãode iagodeVeneza.15 NatraduçãoeditadapelaEdição eonina,cf.ARIS O E ES A IN S,Physica II, 1, p. 55.1 Na Translatio Vaticana, cf. Anon mussaec.XIIuelXIIItranslatorAristotelis,PhysicaII,1,(ed.

Brepols).17 Na tradução de Moerbeke, cf. Guillelmus de Morbeka translator Aristotelis, Physica II, 1, {p.

27r e tusCommentum 2 .18 Na tradução deMiguel Escoto, cf.Michael Scotus translatorAristotelis,Physica II, 1, {p.

27r e tusCommentum 2 .19 BemcomonoIn PhysicaVII,7,4-5.NoIn PhysicaVII,7,ostermospulsio/pulsionis e impulsio/

impulsionem aparecem diversas vezes.

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sentido, “movimento” se diz primeiramente na categoria do lugar, en-quanto “mudança” se diz nas categorias da quantidade e da qualida-de.Nessamedida,ae pressão(I) neque unum habet motum mutationis

innatum” denota que todo ente natural possui o princípio ativo para o movimento local, razão pela qual, estando em movimento local, é apto à sofrer a mudança qualitativa e a quantitativa. Sendo assim, o movi-mento é pressuposto da mudança.

3 n h sica II, , - .

Embora om s não apresente um emprego r gido separando“movimento” e “mudança” no interior das quatro20 categorias de aná-lise desses termos no In Physica II, 1, n. 3, o movimento é entendido comopressupostodamudança:

Porém, não parece ser verdade que em qualquer mudança das coisas naturais o princípio do movimento esteja naquilo que é movido. Pois, na alteração e na geração dos corpos simples, todo o princípio do movimento parece provir do agente extrínseco, como uandoa guaées uentadaouoaréconvertidoemfogo o princípio da mudança provém do agente externo.

Apassagemem uestãoéumarefer nciadiretaaumadassen-tenças(I-V)outroraapresentadas, ueporsuavez,fundamentaade-finiçãodenatureza concebidaporArist teles latinonaPhysica II, 1, como princípio de movimento e repouso. Nela Tomás está negando o ueéafirmadoemPhysica II, 1. Nesse sentido, é possível estabelecer a

resposta à primeira pergunta outrora mencionada, a saber, como To-más no In PhysicaII,1,n. ,linhas1-5,l Physica II, 1? Não há dúvida de ue om sv nestete toaafirmaçãodeArist teleslatinosegundoa ualo uedefineosentesnaturaiséapossedoprinc pioativodemovimentoapartirdo ualamudançaéconse u ncia maisespecifi-camente, Tomás se dirige à concepção de movimento e mudança ele-mentar presente na Physica II, 1. Como Tomás no In Physica II, 1, n. 3, negao ueéafirmadonaPhysicaII,1(sed videtur hoc non esse verum),então é possível reformular a leitura de Tomás do seguinte modo, qual

20 Lugar, qualidade, quantidade e substância.

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seja, Aristóteles latino na PhysicaII,1,afirmaserverdade ueem ual-uermudança (quamlibet mutationem)dascoisasnaturaisoprinc pio

do movimento está naquilo que é movido. Como o movimento local é o primeiro dos movimentos, os elementos, possuindo o princípio ativo do movimento local, possuem o princípio ativo da mudança, seja o princípio ativo completo, o da alteração, seja o princípio ativo parcial, o que auxilia na geração e corrupção. Porém, Tomás discorda de Aris-t teles latino,pois afirma ue todooprinc pioativodomovimentoelementar, seja da alteração, seja da mudança substancial, provém do agente externo. Os casos elencados para sustentar sua crítica dizem respeitoaoa uecimentoda gua,aalteração ageraçãodo fogoeacorrupçãodoar,amudançasubstancial emambasasmudançastodoo princípio ativo é externo.

Pode-se questionar as razões pelas quais Tomás crítica Aristóte-les latino, mesmo porque tradicionalmente fora transmitido que To-m séumfielseguidordeArist teles. madasraz esdizrespeito identificaçãopresentenaPhysica II, 1-2, entre “forma” e “motor”, que porsuavez,implicanaafirmaçãodoautomovimento.Ditodeoutromodo, Tomás sabe que Aristóteles latino estabelece na Physica II, 2, que a forma é mais natureza do que a matéria no sentido de que o ente natural opera de acordo com sua forma. Nessa medida, se o elemen-to possui forma, então lhe é inata a operação no âmbito do lugar, da quantidade e da qualidade, ou seja, move-se por si mesmo. Diferente-mente, Tomás postula que não é a forma que opera, mas o composto, ueporsuavez,mantémumarelaçãodedepend nciacomogerador,

o motor do movimento elementar. Nesse contexto, porém, há uma di-ferença entre a minha interpretação da leitura que Tomás realiza da PhysicaII,1,easinterpretaç esde eisheipl,Aertsene ang,poiselesnãoveem ue,para om s,Arist teleslatinoafirmaoautomovimentona Physica II, 1, uma vez que eles equivocadamente leem o texto Grego (esuastraduç esmodernas)eaplicamessaleituraem om s.

eisheipl afirma ueArist teles diferencia entre os vivos, osauto moventes, e os não vivos, que não se movem por si mesmos. Des-sadistinção eisheiplconclui ue,paraArist teles,segundo om s,a forma só é motor no caso dos vivos.21 Se de fato esse é o caso, então

21 Cf. EISHEIP ,1955,p.2 -27.

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o In Physica II, 1, n. 3, linhas 1-5, perde o referencial, logo, perde o sen-tido, uma vez que o início deste texto, a saber, a expressão “sed videtur hoc non esse verum” tem como referencial a sentença “neque unum habet motum mutationis innatum” da Physica II, 1. Sendo assim, se a passa-gem perde sentido, não há razão para ela permanecer no interior do In In Physica II, 1. Portanto, ou a passagem é considerada atentamente ou então sedevebuscar outra razãopara a e ist nciadelanosma-nuscritos, bem como para o fato da edição crítica não a ter eliminado. Ademais,deve-sedizer,contraaleiturade eisheipl, ueArist teleslatino na Physica II, 1, não diferencia animados e não animados, mas somente naturais e não naturais.

Aertsen,porsuavez,demodosemelhantea eisheipl,tambémsustenta que Aristóteles diferencia os entes animados, os auto moven-tes,dosinanimados, uenãosemovemporsimesmos.Emsualeitura,afirmaroautomovimentopara todoentenatural seconfiguracomouma má compreensão do texto da Física II, 1.22 Com efeito, Tomás se desviadessam compreensãopor uel corretamente Física II, 1, a par-tir de FísicaVIII,4,te tono ualArist telesestabeleceoa iomasegun-do o qual “tudo o que é movido é movido por outro”. Na aplicação desse axioma no caso dos elementos, segundo Aertsen, deve-se consi-derar as noções de corpo e contínuo. Nessa consideração, os elementos são entendidos não como corpos, mas como constituintes dos corpos. Sendoassim,elesformamumcont nuoinfinitamentedivis vel,razãopela qual não é possível estabelecer a parte motora e a parte movida dos elementos. Ocorre, porém, que, por mais razoável que seja, esta análise não encontra-se no In Physica II, 1, tampouco ela esclarece o emprego da sentença “sed videtur hoc non esse verum” direcionada a expressão “neque unum habet motum mutationis innatum”. Ademais, em nenhum parte do In PhysicaII,1, om sfazrefer nciaaoa iomamencionado.Aoinvésde escrever as linhas 1-5, do In Physica II, 1, n. 3, Tomás deveria então ter estabelecido a discussão do axioma. Se ele não procedeu desse modo é por alguma razão. Nessa medida, Aertsen não consegue distinguir en-tre(i)osproblemasdafilosofiadanaturezadeArist teleseArist teleslatino,nessecaso,arelaçãoentreoa ioma(Physica VIII,4)eadefiniçãodenatureza(PhysicaII,1),e(ii)aleitura ue om srealizadote todeAristóteles latino, notadamente da Physica II, 1, bem como (ii.i) suas

22 Cf.AER SEN,1988,p.284-285.

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soluções para os problemas encontrados. Portanto, Aertsen confunde a leitura ue om s realizadoprop sitodafilosofiadanaturezadeArist teleslatinocomassoluç espertencentesaopro etodefilosofiadanaturezade om s.Emborase abastanterazo vel uantoaopro etodefilosofiadanaturezade om s,seainterpretaçãodeAertsen,assimcomoade eisheipl,forseguidacomoob etivodeentenderaleituraque Tomás realiza da Physica II, 1, o leitor precisará negligenciar o In

Physica II, 1, n. 3, linhas 1-5. Com efeito, a menos que seja neutraliza-do o sentido ativo que acompanha o termo “impetus” reduzindo-o a sinônimo de “inclinatio” ou “dispositio” que denotam uma “disposição” ou “anterioridade neutra” que nem é atividade, nem passividade, mas possibilidade de ambos, o termo “impetus” enfatiza o princípio ativo ueoentenaturalpossui.Porém,nãoperceboconsist ncianumainter-pretação,dizendorespeito definiçãodenatureza, uesimplesmentetrate “impetus” e “inclinatio” como sinônimos, pois no movimento na-tural “impetus” pressupõe “inclinatio”.23 Ademais, esta é uma suposição razo vel:ofil sofoeotradutorescolhemostermosporraz esfilos -ficasesem nticas.Sendoassim,devem-sebuscarasraz espelas uaisofil sofoeotradutoroptaramporumenãoporoutrotermo.Nessesentido,sefortomadocomorefer nciaatraduçãodeMoerbe e: neque

unum habet impetum mutationis innatum”, as interpretações de Aertsen ede eisheiplsão,defato,e uivocadas,poiso impetum innatum” é afirmadoparatodoentenaturalenãoapenasparaosanimados,o ueom smanifestacompreenderperfeitamentemedianteasentença: sed

videtur hoc non esse verum”. Lang sustenta que na Física II, 1, Aristóteles não está preocupado

com o motor do movimento, mas somente com o móvel. Sendo assim, a questão sobre o motor e, portanto, sobre o auto movimento, deve ser tida como externa à Física II, 1. Seguindo essa leitura, Lang postula que Tomás introduz o problema sobre o motor do movimento elementar no In Physica II, 1,n. , in uenciadoporFilopono representadoporalgum autor Árabe.24 O problema introduzido no In Physica II, 1, n. 3, comp e-sededuas uest es:(i)adefiniçãodenaturezaincluiomotorintr nseco (ii)Oselementospossuemomotorintr nsecodemovimen-23 Ademais, nenhum dos tradutores mencionados anteriormente introduziram a noção de “in-

clinatio” na tradução da Physica II, 1.24 Cf. AN ,199 ,p.422.

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to? Tais questões, segundo Lang, são externas ao texto da Física II, 1, de Arist teles,por ue uandoestedefinenatureza,nessete to,nãotemopropósito de investigar o possível motor de movimento e repouso, seu propósito é investigar os aspectos essenciais e acidentais do movido e, se nesse interim algo é dito do motor, isso ocorre tão somente para ma-nifestar os aspectos do movido.25 Porém, a despeito da possível consis-t nciadaleiturade angdaFísica II, 1, esta leitura nada diz do possível te to ue om stinhaemmãos,poiséume u vocoafirmar ue,paraTomás, o problema do motor dos elementos é externo ao texto aristoté-lico, sendo ele introduzido conscientemente por Tomás mediante sua leitura de algum Árabe. Se isso ocorresse, então seria preciso não só negligenciar a sentença “neque unum habet motum mutationis innatum”2 presente na Physica II,1, uediferenciaosentesnaturaisdosartificiais,mas também todo o primeiro parágrafo do In Physica II, 1, n. 3.

poss vel uestionarsepara om sadiscussãosobreasentença“neque unum habet motum mutationis innatum” não se restringe a pro-blemas de edição e tradução de textos, pois mesmo tendo um conheci-mento muito precário de Grego, Tomás no In PhysicaV,10,n.11,sus-peita que uma passagem da Physica V,se aumacréscimode eofrasto,logonão é aut ntica.27 Porém, está hipótese quanto ao In Physica II, 1, deve ser descartada por duas razões interligadas. A primeira é que para Tomás a Physica é logicamente anterior ao de Caelo.28 A segunda, por sua vez, é que no de Caelo I, c. 1-2, segundo Tomás, Aristóteles lati-noseutilizadadefiniçãodenaturezaformuladaporelenaPhysica II, 1. Nesseconte to,Arist teleslatinoafirma uetodososcorpossimplessãom veisporsimesmossegundoomovimentolocal.Eissodecorredadefiniçãodenaturezacomoprinc piodemovimento.29 Sendo as-sim,nocasoespec ficodosastros,deve-sedizer ueelespossuemporsi mesmos o princípio ativo do movimento local. Ocorre, porém, que essaconclusãoéfalsa: Porém,parece ueissoéfalso:comefeito,o25 Cf. AN ,199 ,p.214-419.2 Assim como as outras quatro traduções. 27 “[...] entretanto, é dito que não existe nos exemplares gregos [uma passagem que trata sobre

omovimentoviolento eoComentadortambémafirmanãoe istiremalgunse emplaresrabes porisso,parecesertomadadoste tosde eofrastooudealgumdosoutrose posito-resdeArist teles .(In PhysicaV,10,n.11).

28 Cf. In Physica I, 1.29 Cf. Guillelmus de Morbeka translator Aristotelis - De caelo et mundo I, c. 2.

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céu é um corpo natural, e ainda assim, parece que o seu movimento não se dá a partir da natureza, mas de algum intelecto”.30

EmduaspartescentraisdoempregodadefiniçãodenaturezadeAristóteles latino, Tomás se dirige a ele com expressões enfáticas. No In PhysicaII,1,n. : sed videtur hoc non esse verum”, e no In de Caelo I, ,n. : sed videtur hoc esse falsum”. Isso é um indicador de que Tomás nãofazglosa,talcomoforatransmitidoecontinuasendo,dafilosofiada natureza de Aristóteles latino. Ademais, entendo que essa postura apontaparaapossibilidadedehaverumpro etodefilosofiadanature-za próprio de Tomás. Nesse projeto, os elementos e os astros requerem um motor externo para o movimento porque eles são dotados da po-t ncianaturalparaseremmovidos.Poressarazão, uandonadefini-çãodenaturezaseempregaanoçãode princ pio ,searefer nciasãoosentesmencionados,issosignifica ueomovimentodelesénaturaltão somente porque eles são passivos para serem movidos.

A evocação dos motores para os constituintes primeiros do uni-

verso corpóreo, a saber, os elementos e os astros, ocorre porque, para To-más, a natureza enquanto princípio de movimento e repouso é institu-ída pelo último de uma série de motores imóveis, a saber, a divindade. Emboranãose ae ternaaPhysica II, 1, de Aristóteles latino, mesmo que seja pouco abordada, a evocação dos motores na compreensão de natureza é melhor explicitada por Platão no Timeu e foi desenvolvida por Filopono em seu Comentário à Física e chegou a Tomás mediante os rabes.Nessesentido,poderiasedizer ueopro etodefilosofiada natureza de Tomás, possui uma semântica que não é aristotélica, mas sim neoplatônica.31 Que a semântica não seja aristotélica, é muito consistente. Porém, creio não ser prudente designar este projeto de ne-oplat nicopor ueéposs vel ueestaatribuiçãofi uerestritaadiscus-s esdemorfologia.Sendoassim,émaisprudente ueseafirme ueTomás possui um projeto autônomodefilosofiadanatureza.

30 In de CaeloI, ,n. .E atamenteamesmaposiçãoésustentadapor om snoIn II Sent., d. 14, q. 1, a. 3.

31 Oscasosmaisdenunciadoressãoosusosdostermos emanação e in u ncia , ue,con-formede ibera, amaispodemserditos aristotélicos (cf.de IBERA,1999,p.24 -247).Paraoempregodeemanaçãoein u ncia,cf.In PhysicaIV,8,n.7 In PhysicaVIII,2,n.4 In

MetaphysicaV,1,n.751.

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Essa autonomia om sapossuidesde sua uventude,poisnoIn Sent.,II,d.18, .1,a.2,escritoentre1252-125 , om scritica unta-mente Aristóteles latino e os anônimos adeptos da forma incoada, os neoplat nicos:

segundoofil sofoépreciso ueasmesmasformaspree is-tamnamatériademodoincompleto,amaneiradeincoação e,umavez uenãosãoperfeitasemseuser,nãot mavirtudeper-feitaparaoperar,senãoincompleta portanto,nãopodem,porsimesmas, reduzir-se a ato [completamente], a menos que haja um agente exterior que excite a forma incompleta para operar, de modo uecooperacomoagentee terior pois,deoutromodo,não seria a geração uma mudança natural, mas violenta, uma vez que – como é dito no livro III da Ética ‘violento é aquilo cujo princípio é externo, sem conferir poder ao paciente’. Assim, pois, designam de razões seminais a estas virtudes incompletas pree-xistentes na matéria, pois estão segundo seu ser completo na ma-téria, como a virtude formativa na semente. Mas isto não parece ser verdade, pois ainda que as formas se reduzam ou derivem dapot nciadamatéria,estapot nciadamatérianãoéativa,mastão somente passiva.32

Um ponto marcante nesse texto, diz respeito ao emprego da mesma expressão presente no In Physica II, 1, n. 3, a saber, sed videtur

non esse verum. A diferença entre o emprego no In Physica II, 1, n. 3, e no In Sent.,II,d.18, .1,a.2,é uenoprimeirote to om sserefereexclusivamente a Aristóteles latino, conquanto no segundo Tomás se dirige a este e aos anônimos. Ademais, a partir do texto citado, posso esboçar uma resposta à pergunta formulada anteriormente, a saber, qual pensamento próprio de Tomás sobre a noção de natureza dizendo respeito aos elementos e aos astros? Para Tomás, os astros e os elemen-tos, a despeito de possuírem o princípio ativo para moverem outros entesnaturais, sãopot nciaspassivas, logo,necessitamdaoperaçãodos motores externos. Sendo assim, natureza, para Tomás, é princípio ativodemovimentoepot nciapassivaparasermovida.

32 InSent.,II,d.18, .1,a.2,res.

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OM SDEA INO____. Commentaria in libros Aristotelis De caelo et mundo, De generatione et cor-

ruptione, et Meteorologicorum. Operaomnia iussu impensa ue eonisXIIIP.M.edita...,t. :(E pographiaPol glo aS.C.dePropagandaFide,Romae,188 )X ,455,CX VIII.____. Commentaria in octo libros Physicorum Aristotelis. Opera omnia iussu im-pensa ue eonisXIIIP.M.edita,t.2:E pographiaPol glo aS.C.dePro-pagandaFide,Romae,1884.____. Scriptum Super Libros Sententiarum Magistri Petri Lombardi.Ed.P.Man-donnet t.1,t.2,Parisiis:P. ethielleu ,1929.____. Pars prima Summae Theologiaea uaestioneIad uaestionemX IXadco-dicesmanuscriptosVaticanose actacumCommentariis homaedeVioCai-etani,OrdinisPraedicatorum,S.R.E.cardinalis (E pographiaPol glo aS.C.dePropagandaFide,Romae,1888)XV,509pp.____. Comentário ao Tratado da Trindade de Boécio: Questões 5 e 6. Tradução de CarlosArthurRibeirodoNascimento.SãoPaulo:Editorada nesp,1998.

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T : I P ,II, , . , - .

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A criação na ética de Tomás de Aquino

Bernardo Veiga de Oliveira AlvesUniversidade Federal do Rio de Janeiro

1

Por mais que a criação seja propriamente uma noção de âmbito te rico,osseuspressupostosemesmoassuasimplicaç esin uenciamdiretamente as questões de âmbito prático, no agir humano. Ter como base que um ser supremo apenas mantém o movimento dos entes, conforme a visão aristotélica, ou possui um desígnio para cada ente, segundo Tomás, acaba afetando a interpretação ética desses autores.

Neste artigo, investigaremos de que modo essa noção atinge tais éticas, especialmente a do Aquinate. Começaremos expondo alguns problemasidentificadosporautorescontempor neosnaéticadeAris-tóteles, na noção de sorte e os infortúnios, gerados, por certa indiferen-ça do motor imóvel em relação ao mundo. Em seguida, apresentare-mos a visão de Tomás em diálogo com o pensamento ético aristotélico.

2 A A

Como para Aristóteles o mundo é eterno, o movimento existiu e sempre existirá,1 coexistindo com a eternidade do Motor imóvel2, não

1 Phy., VIII, 1, 250b11-2b6.2 Meta., 1072a24s.

Carvalho, M.; Hofmeister Pich, R.; Oliveira da Silva, M. A.; Oliveira, C. E. Filosofia Medieval. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 261-279, 2015.

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houve um princípio de deliberação para a existência do mundo. Dessa forma, a totalidade dos acontecimentos em Aristóteles não pode ser ustificadaporumadireçãode intervençãoedese ode tal entidade.A sua ética assim é marcada pela carência de uma interpretação que ustifi ue a desigualdade da distribuição de bens, entendidos comouma disposição da sorte. E isso gera alguns problemas em relação aos grandesinfort nios.Comoafelicidade,fim ltimodaética,podeseenquadrar no agir moral, se os bens mínimos não possuem uma expli-cação razoável e sim um elemento inexorável, como um dado sem uma explicação maior que abarque tais bens mínimos para realizar as ações virtuosas, como requer Aristóteles? Dessa forma, aqui investigaremos ain u nciadosbenscoad uvantes,condicionais,paraafelicidade deuemodoelesin uenciame,mesmo,impedemapossedofim ltimo.

Para Aristóteles as virtudes, tanto as morais quanto as intelectu-ais, estão ligadas a certas condições da fortuna, isto é, elas dependem do mundo, de elementos intrínsecos ao mundo, como disposição ao agir virtuoso e para alcançar a felicidade3. Há certa aristocracia da vir-tude4, uma vez que nem todos podem agir virtuosamente, porque não teriam tais condições, pois a felicidade só poderia ser alcançada “pelo esforço por todas as pessoas cuja capacidade para a virtude não tenha sidoatrofiadaoumutilada 5. Aristóteles faz uma relação da felicidade com bens externos, como a beleza física, um nascimento nobre, restrin-gindo a felicidade a certa classe, não que a felicidade seja isso, mas que ela dependeria dessas condições, desses bens coadjuvantes:

Há, ademais certas vantagens externas cuja falta embota a bem--aventurança,taiscomoobomnascimento,filhossatisfat riosebeleza pessoal, quer dizer, alguém muito disforme ou de nasci-mentovil,ousemfilhosesozinhonomundo,nãocorresponde

3 “O indivíduo feliz requer adicionalmente os bens do corpo, bens externos e as dádivas da fortuna,para uesuaatividadepossanãosofrerobstruçãoatravésdacar nciadeles (EN. 1153b17s.)

4 “Não é o nosso senso de justiça, mas nosso senso de equidade e igualdade que é ofendido pela existência de uma sorte moral. A moralidade aristotélica é explicitamente não-igual-itária: o homem de mais nobre alma precisa de riqueza e poder para revelar a grandeza da sua alma. O cristianismo é frequentemente contrastado com isso: os pobres são iguais cidadãos do Reino de Deus, a pequena parte da viúva conta tanto quanto a generosidade do rico. ( ENN ,1995,p.84,traduçãonossa)

5 EN.1099b17s.

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nossa ideia de um ser humano feliz, e talvez o seja menos ainda a uele uetemfilhosouamigos uesãoindignos,oua uele uetevebonsfilhosouamigos,masosperdeuatravésdamorte.As-sim, como dissemos, parece efetivamente que a felicidade exige o acréscimo da prosperidade externa6, sendo esta a razão de al-gunsindiv duosidentific -lacoma boa fortuna(adespeitodealgunsaidentificaremcomavirtude).7

Ele,portanto,afirma uea ueles uenãopossuemtaiscondi-ções, uma boa fortuna, não podem ter as condições para obter a felici-dade. Há um elemento trágico em Aristóteles, uma vez que é negada a felicidade ueles uenãoforambemnascidos, uee ercemfunç estidascomoign beis,inferiores,contr rias scondiç esdavirtude:

É claro que em um Estado perfeitamente governado e composto de cidadãos que são homens justos no sentido absoluto da pa-lavra, e não relativamente a um sistema dado, os cidadãos não deveme ercerasartesmec nicasnemasprofiss esmercantis porque este gênero de vida tem qualquer coisa de vil, e é contrá-rio virtude. precisomesmo,para uese amverdadeiramentecidadãos, ueelesnãosefaçamlavradores por ueodescansolhes é necessário para fazer nascer a virtude em sua alma, e para executar os deveres civis.8

Desta forma, a instabilidade do mundo impede que todos obte-

nham a felicidade, como diz Aubenque:

ParaArist teles afelicidadebastaasimesma,mas,paraatingira felicidade que basta a si mesma, é preciso passar por mediações que não dependem de nós, de modo que, qualquer que seja nos-so mérito, podemos não atingir a felicidade a que temos direito e que, com efeito, dependeria de nós se a tivéssemos. Há algo de trágico na vida moral, decorrente da união entre a felicidade e a virtude que não é, por assim dizer, analítica, como acreditavam os socráticos, mas sempre sintética porque depende, numa pro-porçãoirredut vel,doacaso.(A BEN E,2008,p.1 5)

6 Em outra passagem, Aristóteles novamente destaca os bens externos, mas os defende dentro deuma uantidadem nima: Ser suficientesehouverdisponibilidadederecursosmodera-dos. (EN.1179a8s)

7 EN.1099b2-9.8 Pol.,1 28b 7-9a2.

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As virtudes são dependentes de certa quantidade mínima razo-ável de bens exteriores, como diz Irwin:

Aoafirmar ueasaç esvirtuosascontrolamoucausamafeli-cidade,elenãopretendeafirmarnem ueasaç esvirtuosasse-amsuficientesparaa felicidadenem uea felicidadeconsistasomente em ações virtuosas e suas consequências necessárias. Elepretende antes afirmar ue, nas circunst ncias ade uadas,as ações virtuosas fazem as contribuições decisivas para a feli-cidade: devemos assumir um nível razoável de bens exteriores enotar,então,opapeldavirtudeedaaçãovirtuosa. (IR IN,2010, p. 221)

Aristóteles também analisa os infortúnios de Príamo, rei de roia, ueperdeuosfilhoseavidapelainvasãodosgregos.Elediz

que mesmo o feliz, na estabilidade da sua felicidade, será afetado, su-portando a contrariedade da sorte: “E sendo dessa forma aquele que é feliz jamais poderá ser infeliz, embora seja verdadeiro que não será

bem-aventurado e abençoado se defrontar-se com os infortúnios de um Pr amo. 9. Aristóteles defende que a felicidade é um bem estável, mas não imutável, que em grandes desastres e infortúnios ela será perdida e uehaver dificuldadedepossu -lanovamente:

Tampouco seguramente se mostrará passível de variações e sus-cetível de mudanças, porque não será desalojado facilmente de suafelicidade pelaforça deinfort niosordin rios,massomen-te pelaforça dedesastresseverosefre uentes,etampoucoserecuperará de tais desastres e se tornará feliz de novo celeremen-te, mas somente se o for, após um longo período, no qual haja tido tempo para atingir posições ilustres e grandes realizações.10

É importante enfatizar que não é qualquer infortúnio, mas quase que uma força trágica. E mesmo assim, a felicidade ainda é recuperá-vel, com necessidade de tempo e novo esforço para adquiri-la. Dessa forma, as virtudes só garantem a capacidade de superar os infortúnios até certo limite, depois nem uma grande virtude consegue impedir a perda da felicidade, como diz Macintyre:9 EN.1101a7-8,grifosnossos.10 EN.1101a8-1 .

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Aristóteles acredita que infortúnios externos podem frustrar a possibilidade de se alcançar o bem humano, a eudaimonia. As vir-tudes, garante ele, capacitam o homem a superar a adversidade até certo ponto, mas os grandes infortúnios como os de Príamo excluem o indivíduo da eudaimonia – assim como a feiura, o nas-cimento emberçopobre e a esterilidade. (MACIN RE, 2001,p.29 -297)

Além disso, Aristóteles na Política destaca que os bens estranhos almapossuemsemprealgodefortuito,aopasso ueavirtudenão

é apenas obra do acaso, mas da vontade11. Em certo sentido, podemos atenuar essa visão, pois aquele que já possui certa riqueza, um bem e terior alma,podevoluntariamentefazerrend -la.Claro ueasuaprimeira aquisição, ou mesmo o elemento fortuito da administração, requer um auxílio externo, mas há um quê de voluntário no seu uso, dado a possibilidade da Fortuna. Essa dualidade entre vontade e acaso nos leva a perguntar: como Aristóteles soluciona a questão? Em certo sentido, não há um problema na limitação da aquisição da felicidade, ela é simplesmente bem restrita. Para que ela fosse acessível a todos e só dependesse exclusivamente da vontade, haveria duas possíveis soluções: 1) retirar a necessidade da fortuna, dos bens involuntários, assimnãohaveriabenscondicionaisparaafelicidade ou2)defenderuma visão de sorte que auxilie a aquisição da felicidade, o seu elemen-to involuntário teria sempre uma inclinação para a ajuda do voluntá-rio, uma espécie de sorte otimista. Mas como vimos, não seria possível a primeira solução, porque os bens condicionais são indispensáveis para a felicidade em Aristóteles. E a natureza humana não tem pleno controle sobre eles, oupelomenosnão temo controle suficientedemodo que possa adquiri-los por sua vontade. Eles podem possui-los, mas não os conseguem de modo necessário, nem de maneira que a possibilidadedafelicidadese aalgonecess rioparatodos logoasorteé necessária para possuir esses bens.

E aqui nos deparamos com a segunda solução. Precisamos com-preender o que Aristóteles entende por sorte ou destino, se seriam algo necessariamente positivo, ou se possuem um elemento involuntaria-mente negativo, ou mesmo indiferente. Na Retórica, ele diz que a boa

11 Pol., 1323b26-30.

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sorteest relacionada a uisiçãodecertosbens: Boasorteéaa ui-sição ou posse de todas, ou da maior parte, ou das mais importantes boascoisas uesedevem sorte. 12 Mas a questão é saber como se dá essa aquisição, ou o quê a determina. Para ele, todos os acontecimentos são fruto do movimento da divindade, tanto a sorte, quanto as coisas que estão em nós:

Ou haverá um certo princípio fora do qual não há outro, e que por ser de determinada natureza, pode suscitar um efeito de deter-minada natureza? Eis justamente o que estamos a indagar: qual o princípio do movimento na alma? Mas é evidente: como no uni-verso, também aqui, na alma, é a divindade que tudo move. De fato,emcertosentido,odivinomovetudoo ueh emn s eoprincípio da razão não é a razão, mas algo de superior: e que é que poderiasersuperior ci nciae intelig ncia,aforaadivindade 13

Se a divindade está em tudo, deve-se entender de qual modo, pois Aristóteles não defende um panteísmo generalizado. A atuação de Deus14, do motor imóvel, se dá de uma maneira que guarda certa distância da visão de uma Providência universal15. O Deus aristotélico não cria, mas deixa que as coisas sejam e mudem, mantendo-as no ser, comodizAuben ue: ODeusdeArist telesnãocria masdei aser. (A BEN E,2012,p. 59).H certaindiferençadoDeusaristotélicoemrelaçãoaogovernodomundoe pr priafelicidadehumana.Antesé o homem que deve se esforçar ao máximo para se elevar a Deus sem que haja uma ajuda particular para que ele alcance a felicidade.

12 Rhet.,1 2b 8-a1.13 EE.,1248a2 -29.14 Rosse p eaconcepçãodeDeusemArist telesapresentadanolivro daMetaf sica: al

como é concebido por Aristóteles, Deus possui um conhecimento que não o é do universo, ee ercesobreouniversoumain u ncianãoprovenientedoSeuconhecimento,umain-u ncia uedificilmentepodeserencaradacomoumaatividade,umavez ueédotipodein u ncia ueumapessoapodee ercerinconscientementesobreoutras,oumesmoda ueletipodein u ncia ueumaest tuaouumapinturapodeme ercersobreosseusadmira-dores. (ROSS,1987,p.189)

15 Ohomementãov -seentregue ssuaspr priasforças,abandonadoporumDeussobre-mododistante.ODeusdeArist teleséoidealdeumaeconomiarestritaeautossuficiente,umaeconomia ueohomem(es alguns)consegueestabelecerindividualmentee ues raramente é também obtido por uma polis. A tendência é que os homens não consigam alca-nçaraautossufici nciaeassimsupriraProvid nciaprec riadomundosublunar. (RIOS,1995,p. 1 )

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Dessa forma, como vimos, há apenas uma inclinação do ho-mem a ser feliz, e convém que ele busque essa felicidade, por ser um bememsimesmocompleto,autossuficiente16 e conforme a virtude per-feita17, mas não há um planejamento no todo para que essa felicidade seja realizada. Assim, mesmo que haja uma ordenação do universo18, de modo que as coisas se dirijam ao todo19, não há um planejamento totalizante, que no cristianismo e também no estoicismo20 receberá o nomedeProvid ncia (deummododistinto emcadaum).Omotorimóvel de Aristóteles permite que alguns homens sejam felizes, mas nem todos, porque não há uma preocupação por parte do divino de atingir todas as pessoas. A felicidade é necessária e constitutivamente divina, de modo que sem o divino não pode haver felicidade, tanto pela existência daquele que pode ser feliz, quanto dos bens condicio-nais. Neste sentido toda a sorte é divina, mas não há uma providência, nemodese oporpartedodivinodesempreinclinaroshomens feli-cidade. Portanto, não há um otimismo de todos os eventos, nem uma convergência, nem uma tendência da ordem do todo para a felicidade particular. A felicidade não é uma conveniência da ordem do universo, mesmo uese aboaeomelhorfimebemparaohomem.

Veremos então a seguir como se dá a base do pensamento éti-code om s,comoanoçãodecriaçãoindicaumaposs velsolução uestãosobreafelicidadeemArist teles.Assim,certain u nciacristã

fez Tomás buscar determinadas soluções que estavam de alguma for-ma em aberto no pensamento aristotélico.

3 A A

A noção de criação gera uma grande diferença entre os dois. To-más, a partir do fundamento da sua fé cristã, defende que “criar é fazer

16 EN.1097b19s.17 EN. 1102a5s.18 Met.,1075a18s.19 Met., 1075a24.20 Reale fala sobre a noção de Providência divina no estoicismo: “Sêneca tende a acentuar o

papelprivilegiadodeDeus,causadesiecausadetudo,poderos ssimocriadoreregente. (REA E,2008,p.72).

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algumacoisadonada 21 e que tudo foi criado por Deus22. Para ele, a criação implica uma providência, uma lei desde a eternidade que in-clinacadacoisa suarealização.Assim, falardaprovid nciadivinacristã é o mesmo que falar de um dos efeitos da criação, de maneira que o âmbito moral seja afetado.

Aqui, investigaremos a noção de criação na sua implicação da Providência, de como ela afeta a sua visão da felicidade natural, em oposição sorte, oumesmoa certa tragédia conse uentedopensa-mento aristotélico que chega a impedir as condições da prática da vir-tude, por não conceder certos bens essencialmente instrumentais para a sua visão de felicidade. Centraremos também, consequentemente, na diferença entre as distintas visões de motor imóvel, enquanto em um há certo zelo individual com a pessoa humana, e no outro há certa indiferença, que basicamente apenas permite o movimento dos seres.

A lei eterna, conforme a Providência, dá-se de modo mais íntimo e próximo com a noção de criação e desejo para a existência do mundo por parte de Deus, por isso que a distinção do conceito de criação é essencial tanto para compreender a visão de Providência cristã quanto para se aprofundar na diferença do pensamento aristotélico e tomasia-no23. Assim, Tomás, a partir do fundamento da sua fé cristã, defende ue criaréfazeralgumacoisadonada 24 e que tudo foi criado por

Deus25. Assim, porém, em decorrência da impossibilidade de explicar o início do movimento sem a noção de criação, Aristóteles supõe a eter-nidade do mundo26, e a defende de modo que o mundo não poderia ser geradoenemteriafim:

A conclusão é a de que o mundo como um todonãofoigerado(nãoveioa ser) enãoéposs vel ue se adestru do, comoafirmamalguns, sendo sim uno e eterno,nãotendocomeçooufimnato-

21 STh., I, q. 45, a.1, s. c.22 STh, I, q. 45, a.2, rep.23 “Da metafísica aristotélica, apropriou-se ele da consideração teológica do mundo e aprofun-

dou-se de modo incomparável, mediante a doutrina cristã da divina Providência e do Gov-erno do mundo, e da Ação de Deus em cada ser operante. O pensamento da Providência, tão profundamenteconcebido,aduz concepçãodomundopeloA uinateumanotaotimista,aunidadenamultiplicidade,ecomissoaordemeapaz. ( RABMANN,1959,p.25)

24 STh., I, q.45, a.1 s. c.25 STh., I, q.45, a.2, rep.26 Phy., VIII, 2.

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talidadedesuaduração,contendoeabarcandootempoinfinitoemsimesmo (...)issonosconduzdemaneiraincisivaacrerna sua própria imortalidade e eternidade.27

Assim, a eternidade aristotélica do mundo supõe certa contradi-ção entre a existência atual do movimento e a inexistência do mundo anterior ao movimento.

O Deus cristão, porém, ao criar o mundo, não o fez por necessi-dade da natureza, mas por vontade28 uiscriar,e uandoofez,ope-rou segundo a sua sabedoria29. A criação, portanto, supõe tanto a ma-nutenção do ser, sem o qual as coisas voltariam ao nada30, quanto uma ordem, um sentido dado pelo intelecto divino: “Todas as coisas criadas estãoparaDeuscomooartefatoparaoart fice.Masépelaordenaçãodoseuintelecto ueoart ficeproduzosartefatos. ogo,Deusfaztodasascoisaspelaordenaçãodoseuintelecto. 31 Para Aristóteles, o motor imóvel também é eterno, mas ele atua apenas como princípio do movi-mento, como uma forma de explicar a mudança: “E dado que o que é movimento e move é um termo intermediário, deve haver, consequen-temente, algo que mova sem ser movido e que seja substância eterna eato 32. Poderíamos até supor, enquanto simples possibilidade, que o deus aristotélico, mesmo não criando o mundo, tenha alguma relação de zelo com a humanidade. Mas não é o que defende Aristóteles, como diz Aubenque: “Por sua vez, o mundo não vem dele nem mesmo é moldado por ele como era o Demiurgo platônico, mas se contenta em tender para ele. O Deus de Aristóteles é um Deus que guarda suas dist ncias,suaincomensur veldist ncia. (A BEN E,2012,p. 41)O Deus de Aristóteles está apenas em certo sentido presente em todas as coisas, concedendo e sustentando o movimento, mas não tem inte-resse pelo mundo, pois: “não há em Aristóteles relação descendente de Deusaomundo (Ibid., p. 362). Como o motor imóvel de Aristóteles não criou o mundo, há certa conveniência do seu desdém. Não que o seu desdém seja absolutamente necessário, mas simplesmente não 27 Cae.,28 b25-284a2.28 SCG., II, XXIII,.29 SCG., II XXIV.30 Pot., q.5, a.1, rep.31 SCG., II, XXIII, 4.32 Met., 1072a24s.

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há o vínculo próprio de conceder a existência. Manter o movimento é radicalmente diferente do que dar o ser, o que torna mais coerente a suaposição,deumdeusautossuficiente ue,mesmosendovidacomatividade inteligente33, não cuida zelosamente do que não criou.

O que queremos distinguir é a interpretação de Tomás a partir da criação e planejamento de Deus pela lei divina, porque Ele quis o mun-do para um propósito. A razão da criação supõe o interesse pelo criado, deumDeuscompreendidocomoaplenaBondade34 que se preocupa com o mundo, porque o quis e o planejou sem absoluta necessidade.

Aqui voltamos para a questão iniciada com Aristóteles sobre a ordenação do mundo e a sorte grega, e nos detemos na sua distinção com a noção de Providência, com o planejamento do mundo. Repare que em ambos, tanto para Tomás35, como para Aristóteles36, há uma or-denação do universo. Ambos supõem certa ordem das coisas ao todo37. Masaprincipaldiferençaéodesta ueou,mesmo,aafirmaçãoclaraem Tomás de uma teleologia voltada para a realização humana. Para Tomás, toda a criação 8 está voltada para a humanidade, como instru-mento da realização e perfeição do humano:

Já tendo sido provado acima que a criatura intelectual é superior corp rea, é concludente afirmar ue todanatureza corp rea

seja ordenada para a intelectual. Entre as criaturas intelectuais, a que está mais próxima do corpo é a alma racional, que é a for-ma(substancial)dohomem.Conse uentemente,v -se,decertomodo, que para o homem, enquanto é animal racional, foi feito todaanaturezacorp rea. ogo,daconsumaçãodohomemde-pende, de certa forma, toda natureza corpórea. 9

33 Met., 1072b25-27.34 SCG., I, XXXVIII.35 ogo,e istealgointeligentepelo ualtodasascoisasnaturaissãoordenadasaofim,eaisso

n schamamosDeus. (STh., I, q.2, a.3, rep.)36 Met.,1075a18s.37 SCG., III, XVIII e Met., 1075a24.8 Não entraremos aqui na questão da participação dos anjos da teleologia da criação, como

subst nciasseparadasimortais,comfinsemsimesmas.Sabemos ueem om s,nafécristã,elaspossuemumpapeldeau liodaProvid ncia(SCG.,III, XXIX),masnoscentraremosna criação da natureza estritamente corporal até a dualidade alma-corpo humano.

9 Comp.,I,CX VIII, .

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Mas em Aristóteles, não há uma teleologia da convergência para o humano, isto é, não há uma ordem do mundo que se volte para a realização humana. Há apenas uma inclinação do homem a ser feliz, como vimos, sem que haja um planejamento geral por parte do motor imóvel para que se atinja essa felicidade. Portanto, estamos falando de duas visões diferentes acerca do homem, não no foco da sua ação própria, mas naquilo que está além da sua vontade, além das suas for-ças. E, assim, chegamos na distinção entre a providência em Tomás e a sorte em Aristóteles.

Tomás defende que Deus é o governador de todas as coisas, como diz:

Como todas as coisas se ordenam para a bondade divina, como acimafoidemonstrado,(c.VII),énecess rio ueDeus,a uempertence aquela bondade em primeiro lugar, como substancial-mente conhecida, amada e possuída, seja o governador de todas ascoisas(...)

Deususadetodasascoisasdirigindo-asparaofim,enistocon-siste ustamentegovernar. ogo,Deus,porsuaprovid ncia,éogovernador de todas as coisas.40

Para Tomás, a disposição do mundo possui um sentido dado por umamente ueéaplenaBondadeeointelectopuroemato41 onipoten-te42.Assim,sefossebom,masignorante,nãosaberiaguiar poroutrolado, se fosse inteligente, mas mau, seria como o gênio maligno car-tesiano, o que invalidaria o sentido positivo da Providência. Somente a junção da bondade com a sabedoria e a onipotência possibilita atri-buir a ordenação cosmológica voltada para o humano. Assim, todos os acontecimentos, mesmo os mais particulares, de pequenos pormeno-res, até os contingentes singulares43 e também ações de causas aciden-tais, chamadas de acaso, estão sob a Providência44. Segundo Tomás, toda a pluralidade dos eventos no mundo, mesmo os menores e for-tuitos estão sob o jugo da divindade. A sua onipotência atinge todas 40 SCG.,III, XIV,1e2.41 Comp., I XXXI.42 STh., I, q.25, a.3.43 SCG.,III, XXV.44 SCG.,III, XXIV.

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as coisas, como diz Cayuela: “A Providência Divina é razão universal ouintelig nciaordenadoraesentidodetodasascoisas (CA E A,2008,p. ,traduçãonossa).

Por outro lado, em Aristóteles, os acontecimentos do mundo não são direcionados necessariamente para o fim humano. Não h em Aristóteles uma teleologia humanista, que visa um otimismo no planejamento das ações humanas. O seu motor imóvel, por não criar nada,tambémnãosepreocupacomaparticularidadedomundo( uenão lhe pertence). Mesmo que tal concepção de Deus seja de pleno ato,omundodeArist telesédei ado derivasemumplane amentomaior. Há um quê de inexorável que permanece sem explicação. Claro que há explicação no sentido metafísico do termo, porque uma causa, mesmo desconhecida, precede a outra, e a outra e a outra até chegar ao primeiro movente imóvel. Pode-se dizer sempre que há uma razão causal metafísica para o movimento em Aristóteles, mas não, tomando o termo no sentido amplo, uma explicação existencial. Por isso, a sua ética não pode abarcar todas as pessoas, porque os fatos do mundo não possuem um sentido que vise cada realização humana. Ao contrário, é a partir dos fatos do mundo que Aristóteles investigará a felicidade, se o mundo permitir. Se alguns fatos gerarem infortúnios a alguns, esses fatos são lamentáveis em si mesmos, são tragédias particulares que não possuem um sentido maior do que o seu evento. Por isso que a felicidade só pode ser perseguida por aqueles “cuja capacidade para a virtudenãotenhasidoatrofiadaoumutilada 45. Assim, um infortúnio grande embota a felicidade, afeta-a no seu âmago, pode até impedi-la, como aperdados amigos, ou termausfilhos ouumadeformidadefísica46. Aristóteles não consegue fugir ao elemento trágico, porque o seu motor imóvel é indiferente ao mundo. Ele aceita os fatos e consi-dera alguns como sem uma possível solução, dado o grande infortúnio (A BEN E,2008,p.1 5)

Mas o elemento trágico permaneceria no discurso de Tomás? Não, porque todo o trágico, enquanto um evento que ocorre nas os-cilaç esda sorteoudodestino, est submetido Provid ncia comoconsequência dela, como explica Tomás:

45 1099b17s.46 1099b2-9.

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Contudo, porque não apenas as coisas naturais, mas também as humanas, estão submetidas Provid ncia Divina, a uiloque parece acontecer casualmente nas coisas humanas deve serreduzido ordenaçãoda uelaProvid ncia.Porisso,os ueafirmam uetudoest submetido Provid nciaDivinadevemtambém admitir o destino.

O destino, assim considerado, refere-se Provid ncia Divina,como um efeito próprio dela. Essa é uma consideração da Provi-d nciaDivinaen uantoelaseaplica scoisas,conformeo ueafirmouBoécio,dizendoserodestino adisposição(istoé,aor-denação)im vel,inerente scoisasm veis. 47

Todos os acontecimentos possuem um sentido e o motor imóvel quis e permitiu, desde a criação, cada fato particular. O otimismo do cristianismo garante uma possível solução para o infortúnio involun-tário, pois ele não afetaria radicalmente a busca da felicidade, mas so-menteasaç esvolunt rias,comovimosemMacInt re(MACIN RE,2001,p.29 -297).

Os nicosmales,de fato,para om ssãoa uelescontr rios razão, operados voluntariamente, como diz:

A imperfeição do ato dá-se pelo fato de afastar-se da devida re-gra da razão ou da lei de Deus – imperfeição que certamente se encontra não só num ato interior, mas também num ato exterior. Apesar disso, porém, se um ato exterior imperfeito se imputa ao homem como culpa, é porque procede da vontade.48

Tudo que for absolutamente involuntário, que não esteja na vonta-

de humana, não pode ser tido por qualquer condenação, nem embotar a felicidade. Antes, por exemplo, pode até ajudá-la em certo sentido, como o infortúnio humano da pobreza. Para Aristóteles, porém, é necessário um mínimo de bens para a realização de determinadas virtudes, pró-prios da vida ativa. Tomás chega a concordar com esta visão, e destaca, como Aristóteles, que a vida contemplativa é melhor também por preci-sar de menos bens, apenas daqueles necessários para o sustento da na-tureza, mas enfatiza mais o elemento da pobreza e do desprendimento:

47 Comp., I, CXXXVIII, 3.48 Mal., q.2, a.2, rep.

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Com efeito, as virtudes contemplativas delas precisam somente paraosustentodanatureza mas,asvirtudesativas,delasneces-sitam para isto, e também para o auxílio dos outros com os quais se convive. Vê-se, pois, que também nisto a vida contemplativa é mais perfeita, porque precisa de menos bens.49

Ao tomar a pobreza como um exemplo, podemos dizer, de um modo geral, que os infortúnios só impediriam a felicidade natural, em Tomás, se impedissem o básico do sustento da vida. Caso contrário a felicidade seria uma possibilidade universal, não apenas a felici-dade eterna, da contemplação sobrenatural divina, mas a felicidade decorrente de uma lei natural vivida na polis, comum a todos, como diz Torrel: “De fato, a cidade, a polis, de Aristóteles tem um horizonte mais estreito aos olhos de um cristão – escravos e mulheres eram dela excluídos. Sem transformá-los em cristãos, Tomás podia se sentir mais vontadecomouniversalismoprofessadopelosestoicos. ( ORRE ,2008,pp. 5- )

Assim, as maiores oscilações da sorte não podem ser absoluti-zadas, nem tomadas como medidas últimas da atividade da alma, da busca da felicidade, em função da permissão e dos cuidados da Pro-vid ncia.Ocuidadoparticularsed pelafinalidadeemsimesmadascriaturas racionais:

Em qualquer todo, as partes principais são por causa de si mes-mas exigidas para a constituição desse todo, ao passo que as ou-tras o são para a conservação ou melhoria daquelas. Ora, das partes do universo, as mais nobres são as criaturas intelectuais, por ueseapro imammaisdasemelhançadivina. ogo,asna-turezas intelectuais são cuidadas pela providência por causa de si mesmas, mas as outras, por causa delas.50

E tal governo não se dirige apenas para os bens da espécie, mas para a particularidade de cada indivíduo, isto é, a singularidade da escolha, que lhe concede um caráter próprio, o que implica certa con-veniência de um cuidado especial:

49 SCG., III, CXXXIII, 2.50 SCG., II, CXII, 3.

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Aprovid ncia deDeus aplica-se s criaturas segundo a capa-cidade de cada uma, pois Deus criou cada criatura tal como as conceberaseremaptasparaatingirofimdeacordocomoseugoverno. Mas somente a criatura racional tem capacidade para se dirigir, não somente uanto s operaç es espec ficas, comotambém uanto sindividuais. emela,comefeito,intelig nciaracional e, por isso, pode perceber como uma coisa é boa ou má de modos diversos, segundo a conveniência dos diversos indiví-duos,detempoelugar. ogo,somenteacriaturaracionalédiri-gidaporDeus,nãosomentenotocante scoisasdasoperaç esespec ficas,comotambém uanto sindividuais.51

Assim, toda oscilação da sorte, todos os reveses do mundo estão submetidos ordemdaProvid ncia.Maspoderia seperguntar: atéque ponto é possível conceber uma Providência divina, sem qualquer relação com a religião cristã? Esta Providência não seria algo teológico enãofilos fico

Alémdeumviésfilos fico(CA E A,2008,p.24),h doismoti-vos para se admitir o conteúdo teológico da Providência divina: 1) ela se origina de um dado da fé, da criação. 2) Em última instância a Pro-vid nciasedirecionaespecialmente graça52. Sobre a criação, de fato, é um dado da fé que Aristóteles não toma como princípio, e é aceito por Tomás não por demonstrações racionais, mas como consequência do credo da fé cristã. A partir da criação, como vimos, parece mais razo-ável compreender o sentido da Providência, de um zelo especial, uma vez que o motor imóvel possui certo vínculo direto e quis livremente criar cada ser em particular. Sobre a graça, não entraremos em detalhes agora, mas em Tomás a graça é necessária para a felicidade sobrenatu-

51 SCG, II, CXIII, 4.52 Por ueofim ltimodacriaturaracionale cede-lheafaculdadedanaturezaecomo,de

acordocomaordenaçãodaProvid ncia,ascoisas uesedirigemparaumfimdevemserproporcionadasaele,deve-seconcluir uetambém criaturaracionalsãonecess riosau -liosdivinos,não somenteosproporcionados natureza,mas tambémos uee cedemafaculdade de tal natureza. Donde concluir-se que é conferido, por Deus, ao homem, além da faculdade natural da sua razão a luz da graça, pela qual ele interiormente é aperfeiçoado para a virtude, quer quanto ao conhecimento, enquanto a inteligência humana é elevada por essaluzparaconhecera uilo uee cedaarazão uer uanto açãoeafeição,en uantopor essa mesma luz a ação humana é elevada acima de todas as criaturas para amar a Deus en Eleesperar,epararealizarase ig nciasdoamorsobrenatural. (Comp.,I,CV III.)

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ral,poisela nostornadignosdavidaeterna 53. Então esses seriam os dois vieses teológicos segundo a noção de providência de Tomás.

Contudo, h tambémdois sentidos estritamente filos ficos apartir da noção da criação: 1) O motor imóvel como governo universal de todas as coisas. 2) E o trato especial e particular de querer conceder uma vida boa aos seres intelectuais. Há um governo geral que tende a um nicofim ueéDeus,ascoisasforamfeitasporeleetendemaeleatravésdasuaordem.Estaafirmaçãonãoprecisariadeumconte doreligioso, a não ser no máximo da aceitação da criação. Poderíamos até considerar uma providência sem a noção de criação, mas isso seria pouco plausível na cosmologia de Aristóteles. O trato especial com os seres naturais se dá principalmente pelas leis, e as descobertas do ho-mem por certa escolha de atingir a vida boa, como diz Cayuela:

Deus providente dá leis aos homens para que, com suas faculda-des intelectuais e volitivas, dirijam e determinem seus atos, con-formando suas vidas em vidas boas. Seja isto com conhecimento e autonomia, pois o intelecto humano é capaz de desentranhar as leis, discernir o bem do mal, conhecer os motivos e os caminhos da providência, participar do poder provisor de Deus, pelo qual pode prover-se e governar-se a si mesmo e as demais criaturas. (CA E A,2008,p.28,traduçãonossa)

Mas nada impede que a Providência que concede tais leis tam-bém não possa intervir particularmente no auxílio humano, mesmo do ponto de vista natural, para que ele obtenha uma vida boa, uma vez que atinge todas as ações particulares e se importa com o mundo pela criação. A providência permitiria sempre tal felicidade, mesmo autorizando os grandes infortúnios, que possuem um sentido maior e espec ficoparaoseugoverno.

Adiferençadocristianismogeragrandesimplicaç esemrelação totalidade dos eventos do mundo. Mesmo que o mundo aristotélico seja e plicadometafisicamentepelasucessãodecausasatéomotorim vel,do ponto de vista humano, há certa tragédia inexplicável, pois os gran-des infortúnios permanecem sem sentido último para o homem. Desta forma a felicidade, a eudaimonia aristotélica, também é afetada.

53 STh., I-II, q.113, a.2, rep.

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Portanto, em Tomás, dada a ocorrência religiosa de um Deus criadorebom,oseventosparticularespossuemumsentidoespec fico,o que escapa de certa tragédia. Mesmo infortúnios como a pobreza tem certafinalidadeparaafelicidadenatural.Omundonãoest submeti-do ao caos, nem a um fatalismo, mas a uma ordem especial que se pre-ocupa individualmente, sobretudo, com os seres intelectuais, que os orientaepermitealiberdadehumanaasedirigiraoseufim.(CA E-A,2008,p.8 )Assim,odestinoouasortearistotélicaest contidana

providência divina de Tomás, por uma teleologia que abarca todos os acontecimentos e os converge positivamente para o trato humano de uma vida boa, conforme as leis da sua natureza.

Mas ainda assim, deve-se considerar que há um abismo entre oplanodacriaçãono mbitofilos ficoeteol gicoem om s,poisafinalidadedacriaçãoem ltimainst nciaésobrenaturaleest voltadaparaacontemplaçãofinaldeDeus.Porém,não uerdizer uenãopos-sae istirumaProvid nciano mbitofilos fico,en uantopredisp epara as virtudes e para própria busca do bem, pelo seu valor enquanto bem natural, o que simplesmente não existia em Aristóteles. Segundo o Aquinate, porém, muitos eventos e infortúnios não podem ser explica-dos por uma lógica clara e direta com a felicidade natural, nesses casos a Providência se coloca como um salto da explicação imediatamente razoável e direta para um bem que só se poderia ter clareza enquanto realidade da felicidade perfeita, de maneira que muitos acontecimen-tosnãopodemser e plicadosna simples ticado mbitofilos fico.Mas isso não impede que se busque voluntariamente seguir a lei natu-ral, mas pelo contrário, estimula-se essa busca da lei que é participante da eterna, por predispor, na medida do possível, a procura pelas vir-tudes e pelo cumprimento da lei enquanto auxílio para o bem comum e a própria felicidade natural. Tal efeito se dá independente da crença na felicidade sobrenatural, pois as leis e virtudes adquiríveis são con-venientes para toda a lei natural relativa ao homem54.

54 “Apresentamos como uma fundamentação ética o que entendemos como ética do bem, funda-

mentada na providência de Deus que comunica o bem na realidade e o bem na pessoa, e lhe imprimemoralidadeinseridanaleinatural. (CA E A,2008,p.145,traduçãonossa)

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ARIS E ES.Do céu. radução, te tos adicionais e notas deEdsonBini.Bauru:Edipro.2014.______. Retórica. radução, te tos adicionais e notasdeEdsonBini. Bauru:Edipro. 2011.______. Ética a Nicômaco. radução,te tosadicionaisenotasdeEdsonBini.Bauru:Edipro, ed.2009a.______. Política. radução,te tosadicionaisenotasdeEdsonBini.Bauru:Edi-pro,2 ed.2009b.______. Physics.Ne or :O ford niversit Press. ed.2008.______. Ética a Eudemo. raduçãoenotasde .A.AmaraleArturMorão. is-boa: Tribuna. 2005a.A BEN E,Pierre.O problema do ser em Aristóteles. São Paulo: Paulus. 2012.______. A prudência em Aristóteles.SãoPaulo:Paulus.2 ed.2008.CA E A,A uilino.¿Providencia o destino? Ética y razón universal em Tomás de

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______. Suma Teológica – Volume II. Edição bilíngue coordenado por Carlos-- osaphatPintodeOliveiraSãoPaulo: o ola.2 ed.,2005a.______. Sobre o Mal – Tomo I. Tradução de Carlos Ancêde Nouguê. Rio de Ja-neiro: Sétimo Selo. 2005d.______. Suma Teológica – Volume I. Edição bilíngue coordenado por Carlos-- osaphatPintodeOliveira.SãoPaulo: o ola.2001.______. Suma contra os gentios. Volume II. Edição bilíngue dirigida Rovílio Cos-tae u sA.DeBoni.PortoAlegre:EDIP CRSeEdiçãoES .199 .______. Suma contra os gentios. Volume I. Edição bilíngue dirigida Rovílio Costa e u sA.DeBoni.PortoAlegre:EDIP CRSeEdiçãoES .1990.______. Compêndio de Teologia. raduçãoeNotasdeD.OdilãoMoura,OSB.Riode aneiro:Presença.1977.ORRE , ean-PierreOP.Santo Tomás de Aquino: Mestre espiritual. São Paulo: 2 ed.2008.

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i io de i divid a o a filosofia de o o s o s

ia o oa es ei eUniversidade Federal da Fronteira Sul

Ao tomarmos dado ente concreto individual, podemos conside-rá-lo de duas maneiras. Por um lado, podemos considerá-lo mediante aquelas características que ele possui em comunidade com os demais entes semelhantes a ele. Por outro lado, podemos, inversamente, consi-derá-lo de acordo com as características que lhe são exclusivas. Se essas características comuns separam seu possuidor de um grupo maior de entes,masore neaumgrupoespec fico,estamosfalando,nessecaso,do que os medievais compreenderam, via de regra, sob o termo “nature-za”. Por sua vez, se essas características separam seu possuidor de todos os demais entes, estamos, então, tratando da individualidade desse ente.

Para autores que partem de uma perspectiva aristotélica, o ob-etivodeumaci nciaconsistenaidentificaçãodecausaseprinc pios.Conheceralgocientificamente,pois,significaterconhecimentodacau-sa que produz ou gera algo e dos princípios que estão em jogo nesse processo. Consoante a isso, podemos dizer que conhecer a individuali-dadenadamaissignifica ueconhecerascausaseprinc pios uecons-tituem essa individualidade. É justamente isso o que costumeiramente se uersignificarpelae pressão Princ piodeIndividuação .

Nãoobstante,podemosestabelecerumadistinçãonousodoter-mo “causa” e no uso do termo “princípio”. Por “causa”, os autores de cunhoaristotélicocompreendemas uatrocausasf sicas, uaisse am:

Carvalho, M.; Hofmeister Pich, R.; Oliveira da Silva, M. A.; Oliveira, C. E. Filosofia Medieval. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 280-290, 2015.

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acausaformal,acausamaterial,acausaeficienteeacausafinal. otermo “princípio” não possui seu uso restrito ao âmbito da ciência da natureza.Comefeito, princ pio éutilizadotambémna l gicaenametaf sica,sendoesse,talvez,omotivo uelevouosautoresmedievaisapreferiremseuempregoaotrataremdaindividuação.

Quem se propõe a desenvolver uma teoria sobre o processo de individuaçãodeveabordar tr sgrandes facetas ueestruturamessauestão, uaisse am:1)anaturezadaindividualidade,ouse a,o ue

se entende como o elemento individuante ou o conjunto de elementos respons veispelaindividuação 2)ae tensãodaindividualidade,istoé,de uaiscoisaspodemospredicarotermo indiv duo e )oesta-tutoontol gicodaindividualidadenoindiv duoesuarelaçãocomanaturezadoindiv duo.Evidentemente,considerandooprop sitodopresente texto, não temos como levar a cabo o projeto que consiste em evidenciar esses pontos no que concerne a teoria acerca do princípio deindividuaçãonafilosofiade oãoDunsScotus.Portanto,nossote totemporfinalidadeapresentarpropedeuticamenteumprimeirodeline-amento de como esses pontos estão presentes na teoria proposta por DunsScotus.

Nossa apresentação dividir-se- em momentos. O primeiro,deter-se- emumar pidaconte tualizaçãodo mbitodediscussãonoualatem ticadaindividuaçãoseinsere.Osegundomomentoter porfinalidadeapresentara refutaçãoda uantidadecomoprinc piodeindividuação.Porfim,oterceiroe ltimomomentoapresentar ateoriascotistaacercadoprinc piodeindividuação.

1.

Estudaroproblemaacercadoprinc piodeindividuaçãonafi-losofiamedievalnãodeveriare uerer ustificativasdeordemalguma.Comefeito,emumper odono ualateologiafiguracomoarainhadasci ncias,eafilosofia,comosuameraserva, ual uerproblemafilos fi-co uerepercutaem mbitoteol gicoganharelev ncia.

Dentre as diversas uest es teol gicas implicadas no problemasobreoprinc piodeindividuação,cincopodemserob etivamenteno-meadas, uaisse am:atrindade,opecadooriginal,aimortalidadeda

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alma,aressurreiçãodoscorposeanaturezadosan os1. A doutrina trini-táriaserelacionacomoprinc piodeindividuaçãonamedidaem ueaortodo iacristãafirmaDeusserume,aomesmotempo,sertr spessoas.Assim,afimdee pressaraortodo iaemumalinguagemracionalmentecompreensível, torna-se necessário discutir a natureza da individualida-deeoprinc piodeindividuação.Oprinc piodeindividuaçãoganhare-levância para as discussões acerca do pecado original, pois é necessário e plicarcomoumpecadopodesercometidoporums indiv duomasser comutado aos que vieram depois dele. A questão acerca da imorta-lidade da almademandaumateoriasobreoprinc piodeindividuação,poisafirmarseraalmaimortalnadamaissignifica ueafirmaraconti-nuaçãodoindiv duonae ist nciaap samortedocorpo.Mas,paratal,torna-se importante saber em que consiste a individualidade, como ela se dá e como se preserva. Vinculada à questão da imortalidade da alma, a discussão sobre a ressurreição dos corpospressup eadeterminaçãodeumprinc piodeindividuaçãonamedidaem ueessadiscussãosevolta à identidade e à individualidade tanto do corpo quanto do com-postoalmaecorpo.Porfim,atem ticaacercadanatureza dos anjos relaciona-secomasdiscuss essobreoprinc piodeindividuação,poisapossibilidadedesedefenderpluralidadedeindiv duosemumamesmaespécieangélicaouanecessidadedeseidentificarindiv duoeespécieangélicaédependentedaformulaçãodoprinc piodeindividuação.Eéustamenteaodiscutiranaturezaangélica ueDunsScotusapresentasuateoriaacercadoprinc piodeindividuação.

Comefeito,emLect.II,d. ,p.1, .1- 2, texto no qual nos dete-remosnestete to,DunsScotusafirma ueessadistinçãotratasobreapessoalidade3 dos anjos (de personalitate angelorum). Ora,indagarpelapessoalidadedosan osnadamais significaperguntar uesobre suaindividuação.

1 Cf. RACIA.1994,pp.i - .2 Cumpreressaltar ue,alémdote to referido,DunsScotustratadoprinc piodeindividu-

açãotambémnasseguintesobras:Ord.II,d. Rep. Par.d.12, . -8 Super metaph. VII, .1 quodlib. q. 2, art. 1.

3 OtermolatinoempregadoporDunsScotusépersonalitas, que, comumente, é vertido para a língua portuguesa como “personalidade”. Contudo, esse vocábulo possui, na contempora-neidade,umacargaconceitualfortementemarcadapelapsicologiaepelasteoriasdasub e-tividade.Vistootermolatino uerercaracterizaranatureza uefazcom uedadoentese a“pessoa” (persona),optamosporutilizaroneologismo pessoalidade .

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altem ticaserabordadalogonadistinçãoterceiradosegundolivro da Lectura não deve ser motivo de assombro. Por um lado, deve serlembrado ueosegundolivrodacolet neadesentençasdospaisdaIgre aedeautoridadesmedievais uePedro ombardoreuniusobo título Livro das sentenças e que Alexandre de Hales introduziu como livro a ser seguido no ensino de Teologia ainda nas primeiras décadas doséculoXIIIinicia, ustamente,tratandosobreacriação,anaturezaeaspropriedadesdosan os. endoporbaseadefiniçãoboecianadepes-soa como “substância individual de natureza racional”4,o ombardop deafirmarcadaan oserpessoa.

Porsuavez,anaturezae,portanto,aindividuaçãodosan osfoitemapol miconasegundametadedoséculoXIII.Provadisso, das 219tesescondenadasporEst vão empier,emsetedemarçode1277,tratam ustamentedessetema.Comefeito,atese81afirma:(cito) por-ueasintelig nciasnãopossuemmatéria,Deusnãopoderiafazerdi-versasintelig nciasdeumamesmaespécie .Natese9 ,lemos(cito)ueDeusnãopodemultiplicarosindiv duosdeuma nicaespécie

semamatéria .Porfim,natese191,encontra-se(cito) ueasformasnão recebem divisão, a não ser por meio da matéria”5. Como conse-u ncia,p s-seemd vidaofatodesecadaan opoderiaserconside-

rado, tecnicamente, uma pessoa na medida em que os anjos poderiam nãoserpass veisdeindividualização.

Mas,serial citoperguntar:seotemaasercomentadoéacercadapessoalidade dos anjos, por que iniciar questionando sobre o princípio deindividuaçãodassubst nciasmateriais DunsScotuspercebe ueotratamentodado individuaçãodoan oédependentedoprinc piodeindividuaçãoatribu do ssubst nciasmateriais .Comefeito,s se

4 BO CIO.CEN.c. : naturaerationabilisindividuasubstantia .5 81: uod, uiaintelligentiaenonhabentmateriam,Deusnonpossetfacereplureseiusdem

speciei 9 : uodDeusnonpotestmultiplicare individuasubunaspeciesinemateria 191: uodformaenonrecipiuntdivisionem,nisipermateriam–Error,nisiintelligaturdeformiseductisdepotentiamateriae . ueDunsScotustinhaconhecimentodessedebateéprovadopelofatodeelecitaressastr stesesemquodlib.2,a.1,n.12: Etarticulidamnatitresvidenturistumarticulumprimafaciereprobare. nusestaDominoStephanocondemnatus,uiddicitsic uod uiaintelligentiaenonhabentmateriam,Deusnonposseteiusdemspe-cieifacereplures error .Secundus, uod Deusnonpotestmultiplicareindividuasubunaspeciesinemateria error . ertius, uodformaenonrecipiuntdivisionemnisisecundumdivisionemmateriae,error nisiintelligaturdeformiseductisdepotentiamateriae ergodeformisnoneductisdepotentiamateriaehocdicere,esterror .

D NSScotus.Lect. II,d. ,p.1, .1,n.1: ... uiasecundum uoddiversimodedicturde causa individuationis in substantiis materialibus, secundum hoc sentiunt diversimode diversi de personalitate angelorum, de personalitate eorum in una specie vel unitate”.

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defendeaimpossibilidadedee istiremdiversosindiv duosemumamesma espécie angélica porque se concebe a matéria ou a matéria as-sinaladapeloacidenteda uantidadecomoprinc piodeindividuaçãodas substâncias matérias. Portanto, torna-se imperativo para a inves-tigaçãodeterminarcomoocorreaindividuaçãodassubst nciasmate-riais,afimdesepoderfalaralgosobreapessoalidadedosan os.

O cernedadiscussão acercadoprinc piode individuação, noâmbito de Lect. II,d. ,podeseridentificadona uestão4ena ues-tão .A uestão4indaga: a uantidadeéa uelepositivopelo ualasubstância material é um esta, é um singular e é indivisível em partes sub etivas , aopasso ue a uestão tempor t tulo: a subst nciamaterial é um indivíduo por meio de uma entidade positiva que deter-minaanaturezaaserestasubst nciaindividual 7. Passo, portanto, ao segundo momento do presente texto.

7 Asdemais uest es uecomp emadiscussãoacercadoprinc piodeindividuaçãono m-bito da Lecturatratamdasseguintestem ticas:

.1:se,apartirdesuanatureza,asubst nciamaterialésingulareindividual .2:seasubst nciamaterialéindividualporalgopositivoeintr nseco . :seasubst nciamaterialéindividualizadapormeiodesuae ist nciaatual .5:seéamatériao ueindividuaasubst nciamaterial. A .1apresentaadiscussãoacercadanaturezaespec fica(natura specifica)ou,comoposte-

riormente seria denominada, da natureza comum (natura communis).Nessesentido,DunsScotus parte do princípio aviceniano segundo o qual “ipsa equinitas non est aliquid nisi equinitas tantum” (Metaph.V,c.1, 2- ).ArespostadeDunsScotusconsiste,portanto,emdefender ueanaturezaespec fica,desi,nãoénemsingularnemuniversal,masindiferentea ambos. Ela nada mais é do que o ser quiditativo (esse quiditativum),apartirdo ualtodadefiniçãoetodapredicaçãoessencialsãoposs veis.

Na .2,DunsScotusdiscutearesposta uanto individuaçãoapresentadaporHenri uedeand, ueconsisteemumaduplanegação.Segundoo andavo,anoçãodeunidadepodesercompreendidacomoa)indivisãodacoisanelamesma,significandonãoserdivididaempartessub etivas,i.e.,aomododadivisãoe istentenog neroenaespécie eb)divididadasdemais.contudo,arespostadeHenri uede andnãoe plicariaopor u acoisaindividualnãopodeserdivididasub etivamente.Ora,seaindividuaçãonãopodesere plicadaporumprincípio negativo, o princípio tem de ser algo positivo.

Acredita-se ue,na . ,adiscussãose acomPedrodeFalco,franciscano ue oresceuemcercade1280(cf. O ER.1994,p.278).A uestãoapresentaahip tesedeseconsideraroatocomoo ueestabeleceaindividuação.Nãoobstante,ahip teseérecusada,pois,comocadacoisa individualé nica, tantasseriamasnoç esdee ist ncia uantoon merodeindivíduos existentes.

Porfim,ahip teselevantadana .5érecusada,poiso ueindividuaalgoée clusivodessealgo.Assim,aocompararmosS crates,PlatãoeArist teles,nossointelecto,apartirdeelemen-tos comuns a ambos, é capaz de apreender “ser humano”, não a “socratidade”, a “planonida-de ea aristotelidade decadaumdessesindiv duos.Omesmonãoocorrecomamatéria.Aocompararmosdiversosentesmateriaissingulares,podemosapreenderanoçãodematéria.

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2. A

Aoapresentar ahip tesedea uantidade seroprinc piodeindividuação,DunsScotusremeteessaposição leitura ueosdefen-soresdessahip tesefizeramdanoçãode uantidade ueArist telesapresenta no c. 13 do livro delta da Metafísica: o uantoéa uilo ueé dividido em suas partes integrantes, cada uma das quais é natural ser um-algo e este-algo”8.Osdefensoresdessahip tesecompreendem,apartirdessapassagem,serpr prio uantidadeou,maisespecifi-camente, ao acidente da quantidade, a divisão de algo em partes do mesmotipo.Ora,essaé ustamenteacaracter sticadadivisãodedadaespécieemindiv duos.Comefeito,o uediferenciaadivisãodog -neroemespécieseadivisãodaespécieemindiv duoséofatodeestaser uma divisão do mesmo, ao passo que o gênero, quando dividido, sedivide emespéciesdiferentes.Assim, indiv duosdeumamesmaespécie se distinguem por meio da quantidade e, por consequência, a substância material tornar-se-ia singular por meio da quantidade.

Contraessahip tese,DunsScotusapresenta uatrolinhasar-gumentivas ou, como ele mesmo as denomina, quatro vias. A primeira viabaseia-senanoçãodesingularidadeedeunidadenumérica.Ase-gundavia,narelaçãoe istenteentesubst nciaeacidente.Aterceiravia,apartirdanoçãodecoordenaçãopredicamental.Porfim,a uartae ltimaviaencontraseufundamentonapr prianoçãode uantida-de. Vejamos essas quatro vias.

2.1. Primeira via: pela noção de singularidade e de unidade numérica

Aargumentaçãodaprimeiraviapodeserestruturadanose-guintesilogismo: odasubst nciamateriale istente ueénumerica-mente uma e singular não pode, enquanto permanece a mesma subs-tância, perder sua singularidade e deixar de ser esta substância sem que seja corrompida, aniquilada ou, de alguma maneira, substancial-mentemodificada.Mas,permaneceramesmasubst nciamaterialemato não implica a necessidade de se possuir quantidade ou qualquer 8 ARIS E ES.Metaph.V,1 ,1020a7-8.

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outro acidente. ogo, nenhuma subst nciamaterial éumesta eumsingular por meio de algum acidente9.

Apremissamaiorparece ser auto evidenteparaDuns Scotus.Com efeito, se uma subst ncia numericamente uma ue não sofremudança substancial não permanecer amesma subst ncia singular,seremosforçadosaconcluir ueumaemesmacoisanumericamenteuma é, ao mesmo tempo e no mesmo sentido, numericamente múlti-pla.Ditocomoutraspalavras,recusarapremissamaiorimplicariaemnegaroprinc piodenãocontradição.

Omesmonãoocorrecomapremissamenor.DunsScotussenteanecessidadedeacomprovar.Apremissamenorafirmara ueae is-tência em ato de dada substância material singular é independente dos acidentes que ela possua. Caso essa premissa seja negada, teríamos de afirmar ue,naaus nciadoacidenteda uantidadeoumesmode ual-quer outro acidente, essa substância deixaria de ser esta substância sem uehouvessemudançasubstancial,o ueéfalso.Provadasaspremissasmaioremenor,segue-seaconclusão,asaber:nenhumasubst nciama-terial é um esta e um singular por meio de algum acidente.

2.2. Segunda via: pela relação existente ente substância e acidente

Pornatureza,asubst nciaéanterioraosacidentes.Ditodeoutramaneira, os acidentes pressupõem a existência de uma substância para e istirem.Mesmoadivisãodog neroemespécieseadivisãodaespécieem indivíduos ocorrem dentro de uma mesma ordem predicamental. Assim,adivisãodaespécieemindiv duosconfigura-seemumasubdi-visão substancial. Consoante a isso, haverá tanto sentido em dizer que tal subdivisão ocorre por meio da quantidade quanto haverá em dizer que o gênero se subdivide em suas espécies por meio de um acidente.

2.3. Terceira via: a partir da noção de coordenação predicamental

Por coordenaçãopredicamental ,DunsScotus tememmenteumaconcatenaçãoessencialemummesmopredicamento.Nessesen-9 Cf.D NSScotus.Lect.II,d. ,p.1, .4,n.7 .

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tido,umacoordenaçãopredicamentalpossuiduascaracter sticasfun-damentais,asaber:1)aordenaçãoemumpredicamentoédistintodaordenaçãodeoutropredicamentoe2)cadaitemdaordenaçãoédis-tintodositensdeoutraordenação,ouse a,somenteserãoelementosdeumacoordenaçãopredicamentalo ueestivercontidonessepredi-camentoespec fico.

Aplicando essa noção de coordenação predicamental ao casoa uiabordado,podemosdizer uetudoo uefornecess rio coorde-naçãopredicamentaldasubst nciaest contidonacategoria subst n-cia .Mas,comoemtodaordem,tambéma uiose tremosdaordemsãore ueridos.O ueseapresentacomotermom nimonaordeme is-tente na categoria da substância é o indivíduo. Portanto, a quantidade nãopodeserarespons velpelaindividuação10.

2.4. Quarta via: pela própria noção de quantidade

Astr sviasatéa uiapresentadasservemderefutaçãoa ual-uerhip tese uetentedefenderumacidentecomoprinc piodeindi-viduação.Nesta uartae ltimavia,DunsScotusvolta-see clusiva-mente noçãode uantidade.

Por “quantidade”, podemos entender “o que já possui três di-mensões” ou “o que pode possuir três dimensões”. “Quantidade” en-tendida como “o que já possui três dimensões” não pode ser aceita comoprinc pio de individuação, pois o possuir tr s dimens es pressup eumasubst nciapossuidoradecertaformasubstancial.Sen-do uantidade ,compreendidanessesentido,algoposterior forma,não poderá ser a quantidade o elemento responsável pela singulariza-çãodaforma.

Por sua vez, se “quantidade”, entendida como “o que pode pos-suirtr sdimens es ,foroprinc piodeindividuaçãodassubst nciasmateriais, então a substância gerada e a substância corrompida serão omesmosingular,pois,segundoosdefensoresdessahip tese, poderpossuirtr sdimens es éanterior geraçãoe corrupçãode ual uersubstância material.

10 dignodenota ue,nestavia,DunsScotusmostra ueadiferençaindividuantetemdeser

algo substancial e predicado per se do indivíduo, tal qual será apontado na sexta questão.

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S

Como resultado dessas quatro vias, temos que o princípio de individuaçãodeve ser algo formalmente intr nseco natureza espe-c ficadivididaempartessub etivas.Somenteassimapartedividida,en uantodividida,poder continuaraserointeironaparte.Comefei-to, oprocessode individualizaçãode serhumano não resulta empedaçosdeserhumano .Cadaindiv duocontidonaespéciehuma-naé,todoele,umserhumanocompleto.Omesmonãoocorrecomadivisãopr pria uantidade.Aodividirmosocorpohumano uan-titativamenteemcabeça, troncoemembros,cadaumadessaspartesnão constituirá um corpo completo de ser humano, mas tão-somente pedaçosdeumcorpohumano.

Passemos,portanto, respostadeDunsScotus uestãosobreoprinc piodeindividuação.

3 O a mentem coti

Nase ta uestão,ap sapresentarainconsist nciadateoriadeodofredodeFontaines ( ue, a ui, omitiremos),Duns Scotus apre-sentasuapr priateoria.Afirmaele: asubst nciamaterialédetermi-nada a esta singularidade por meio de algo positivo e a diversas sin-gularidadesconformediversospositivos 11. Será justamente esse “algo positivo ueatradiçãodenominar comohaecceitas.

OplanodeaçãodeDunsScotusconsiste,primeiramente,emar-gumentarafavordessateoriae,emsegundolugar,emdizero ueéesse algopositivo ecomoeleindividuadefato.

Oprimeiroargumentoafavordateoriapropostaébaseadonanoçãodeunidade. odaunidadeseguealgumaentidade 12,afirmaDunsScotus. Issoo levaaconcluir ueaunidadecaracter sticadasingularidade também tem de possuir uma entidade por base. Essa unidade não pode advir da natureza espec fica. Cada indiv duo énumericamenteum.Masanaturezaespec ficanãopode,de si, sernumericamenteuma.Casofosse,elanãoseriaindiferente singula-rizaçãonoentee tramentale universalizaçãonamente. orna-senecess rioafirmarae ist nciadeoutraentidadenosingular,formal-11 D NSScotus.Lect.II,d. ,p.1, . ,n.1 4: substantiamaterialisperali uidpositivum

determinatur ad hanc singularitatem, et ad diversas singularitates diversa positiva”.12 D NSScotus.Lect.II,d. ,p.1, . ,n.1 : Omnisunitasconse uiturali uamentitatem .

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O D S

mentedistintadaentidadeespec fica,mas ue,comela,componhauma unidade per se.

m segundoargumentoé formuladoemanalogia comadi-visãodog neroemsuasespécies.Dentreasespéciesdeummesmog nero,h umelementocomumatodaselas,asaber,opr priog ne-ro, mas há também um elemento característico a cada uma delas, suas respectivasdiferençasespec ficas.Assimtambémdevesecomportaradivisãodaespécieemindiv duos.Anaturezaespec ficaéo ueh decomumentreos indiv duosdeumamesmaespécie.Deve,portanto,haver entre elesumadiferença individual (di erentia individualis é a e pressãoutilizadaporDunsScotus),respons velporindividualizaranaturezaespec fica.Ora,como forademonstradonas .2-5,essadiferençaindividualnãopodeseramatéria,a uantidade,apr priae ist nciaematodosingularouumanegação.Portanto,devehaverumaentidadepositiva emcada subst ncia, formalmentedistintadanatureza espec fica, respons velpor contrair a natureza espec fica egerar o indivíduo.

Mas,o uevemaseressadiferençaindividual SegundoDunsScotus,elaéumaentidadeformal.Contudo,elamesmanãoématérianemformanemcompostodematériaeforma.Elacontraianaturezaespec ficae,portanto,nãoseconfundecomela.Assim,ela amaispo-derá ser predicada in quid do indivíduo justamente por não ser uma natureza. Contudo, ela não é algo realmente distinta da natureza espe-c fica,tal ualcoisaecoisa.Nãoh indiv duosemnaturezaespec ficaediferençaindividual.Entreelash umadistinçãoformal,o uedenotaserementidadesapenasformalmentedistintas.

Mas,seadiferençaindividualnãoéformanemmatérianemcompostodeformaematéria,comocaracterizaressaentidade Comosed adistinçãoformalentrenaturezaespec ficaediferençaindividu-al Pretendemosresponderessaseoutrastantasperguntasao longodo desenvolvimento de nossa pesquisa.

ARIS E ES.Metafísica de Aristóteles.Ediçãotriling e(grego,latimeespa-nhol).Madrid: redos,1970.(2v.).

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S

AVICENA.Liber de philosophia prima sive scientia divina. ouvain:E.Peeters,1977-198 ( vol.).BO CIO.Contra Eutychen et Nestorium.In:FI HO, .S.Os escritos teológicos de

Boécio: tradução, introdução e notas.2000.22 f.dissertação(MestradoemFilo-sofia)–FaculdadedeFilosofia, etraseCi nciasHumanas, SP,SãoPaulo,2000.D NSScotus.Early Oxford lecture on individuation.Ed.AllanB. olter.SaintBonaventure,Ne or : heFranciscanInstitute,2005.

. uodlibet 2. Em: h p:// .logicmuseum.com/ i i/Authors/Duns Scotus/uaestiones uodlibetales/ 2Acessoem:20out2014.RACIA, .E. Individuation in Scholasticism: the aterMiddleAges and theCouter-reformation,1150-1 50.Alban :State niversit ofNe or Press,1994.O ER,A.B. ohnDunsScotus(b.ca.12 5 d.1 0 ) .In: RACIA, .E.Indi-

viduation in Scholasticism:the aterMiddleAgesandtheCouter-reformation,1150-1 50.Alban :State niversit ofNe or Press,1994,pp.271-298.

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A Logica Modernorum na Summulae Logicales de Pedro Hispano

Jerônimo José de OliveiraUniversidade Federal da Paraíba

1.

Com todos os livros do Organon de Aristóteles já conhecidos no mundo latino no século XIII1 desenvolve-se a chamada logica modernorum que, conforme Morujão (2006, p. 302), “se ocupa da análise semântica da lógica de Aristóteles (ou seja, das chamadas proprietates terminorum), da definiçãodoob ectodal gicaedarelaçãoentreal gicaeaontologia .

Discorremos a ui especificamente sobre os tratados de PedroHispano referentes às proprietates terminorum reunidos nas suas Sum-

mulae Logicales, escritas provavelmente por volta de 12302.Essaobra,de acordo com Kneale (1968, p. 239), “veio a ser aceite como o manual padrãodurantetodoofimdaIdadeMédiaeaindaestavaemusonoprinc piodoséculoXVII,tendo nessaaltura1 ediç esimpressas .

1 DEBONI(2010,29)e plica ueseconservaramastraduç esdeBoéciodasCategorias e do Sobre a Interpretação e, “ao se desenvolverem as escolas, no século XII, encontraram-se no-vamente,nãosesabeonde,astraduç esdosPrimeiros Analíticos, dos Tópicos e dos Elencos

Sofísticos. Ficando faltando apenas os Analíticos Posteriores, que Tiago de Veneza voltou a traduzirporvoltade1140 .

2 uanto atribuiçãodasSumulae Logicales aPedroHispanoverMEIRINHOS,AvataresdaantigaatribuiçãodeobrasaPedroHispano/ oãoXXI. mimportanteestudosobreaatribui-çãodeobrasaPedroHispanoencontra-seemPE EROFSPAIN,Tractatus called afterward

Summule Logicales. FirstCriticalEditionfromtheManuscripts ithnaIntroductionb .M.DeRi .Assen:Van orcum Comp.B.V.,1972.

Carvalho, M.; Hofmeister Pich, R.; Oliveira da Silva, M. A.; Oliveira, C. E. Filosofia Medieval. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 291-298, 2015.

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O

Quanto à estrutura das Summulae, seguindo Kneale (1968, p. 240), pode-se dizer que estas são um compêndio de “doze tratados, seisacercadostemasdeArist teles(proposiç es,predic veis,catego-rias, silogismos, t picose fal cias) e seisacercade temasespecifica-mentemedievais(suposição,relativos,ampliação,apelação,restriçãoedistribuição) .Emboramanuscritoseediç esdivir am uanto se-quência dos tratados nas Summulae, de acordo com os estudos de De Ri ,aordemestabelecidaé:I-De Introductionibus; II- De Predicabilibus; III- De Predicamentis; IV- De Sillogismis; V- De Locis; VI- De Suppositio-

nibus; VII- De Fallaciis; VIII- De Relativis; IX- De Ampliationibus; X- De

Appellationibus; XI- De Restrictionibus; XII- De Distributionibus.Dentreessestratados,algunsdos ueabordamostemasaristoté-

licos têm uma correspondência direta com os textos do Organon,asaber:o De Introductionibus, que corresponde ao Peri Hermeneias; o De Predica-

mentis, às Categorias; o De Sillogismis, aos Primeiros Analíticos; e o De Falla-

ciis, ao De Sophisticis Elenchis. O De Locis,conformeDeRi ,éumaglosado De topicis di erentiis I e IIdeBoécio,comalgumasadiç esdosTópicos de Aristóteles. O De Praedicabilibus,finalmente,corresponde Isagoge de Porf rio.Essessãoostratadosreferentes logica vetus e à logica nova.

Nosso trabalho, como indicamosacima, temcomocorpus os tratados das Summulae Logicales ueversamsobreaspropriedadesdostermos,contudoéindispens velamençãoamuitosconceitose postosnos outros livros das Summulae para podermos expor claramente os temas da logica modernorumemPedroHispano,mostrandoasproprie-dadesdostermos,suasrelaç eseaindicaçãode ueal gicaemPedroHispanoéfeitasobreumabaseontol gica.

2. i nificatio, u ositio A ellatio

Os termos e os elementos sincategoremáticos são as partes cons-titutivasdaproposição, ue,conformeassinalaMoru ão(200 )écon-siderada como a unidade linguística primária, tanto no Peri Hermeneias de Aristóteles como nas summulae do século XIII. Isso pode ser dito da Summulae LogicalesdePedroHispano, uediscorrelongamentesobreas propriedades dos termos, enquanto esses são os constitutivos do discurso,ob etodadialética,apresentadaporPedroHispano(Summu-

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A M S P H

lae Logicales, I, 1) como “a arte que tem a via e os princípios de todos os métodos 3.

Ostermosdeumaproposiçãosãoonome, vozsignificativaad

placitum,semtempo,de uenenhumapartesignificaseparadamenteeéfinitaedireta (Summulae Logicales I, 4)4,eoverbo, vozsignificativaad placitum com referência ao tempo, de que nenhuma parte separada significa,finitaedireta5.Ostermossignificamseparadamenteporcon-vençãoe,numaproposição,sesãosubstantivos,sup emporalgumacoisa; se são adjetivos, copulam.

Em primeiro lugar dentre as propriedades dos termos devemos falar da Significatio.SuadefiniçãoaparecenotratadoDe Suppositionibus da Summulae Logicales.DefinePedroHispano(Summulae Logicales,VI,2):

Asignificaçãodotermo,comoa uiéassumida,éarepresentaçãode uma coisa pela voz secundum placitum.Por uetodacoisaouéuniversalouéparticular,émister uease press es uenãosig-nificamouniversalnemoparticularnãosignificamalgumacoisa.E assim não serão termos conforme ao que assumimos como ‘ter-minus’; assim como são termos os sinais universais e particulares6.

Apassagemacima re ueralgumasobservaç es.Primeiramenteelareforçaocar terconvencionaldalinguagem,demodo ueoster-mos são cunhados para representar coisas. Em segundo lugar, há uma dificuldade uantoaousodeparticularis, pois parece que o texto preten-de reproduzir o que está no Peri HermeneiasdeArist teles(7,17a 9-17b)“Das coisas, umas são universais e outras singulares (chamo universal o que é natural que se predique de várias coisas e singular o que não o é,pore emplo,homeméumuniversaleC liasumsingular) 7. Assim,

3 Dialeticaestarsadomniummethodorumprincipiaviamhabens (PedroHispano,SL, I, 1).4 Nomenestvo significativaadplacitumsinetempore,cuiusnullaparssignificatseparata,

finita,recta (SL,I,4).5 Verbumestvo significativaadplacitumcumtempore,cuiusnullaparssignificatseparata,

finita,recta (S ,I,5).6 Significatiotermini,prouthicsumitur,estreipervocemsecundumplacitumrepresentatio.

uarecumomnisresautsituniversalisautparticularis,oportetdictionesnonsignificantesuniversalevelparticularenonsignificareali uid.Etsicnoneruntterminiprouthicsumitur‘terminus utsuntsignauniversaliaetparticularia (SL, VI, 2).

7 “ , — , ,

. (Aristóteles, Peri Herme-neiasVII,17a 9-17b) .

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J J O

Pedro Hispano, enquanto se refere a termos, parece usar particularis no lugar de , sendo “singular” e “particular” sinônimos. Isso não ocorre, entretanto, no concernente às proposições, já que, no Trac-tatus I, distingue propositio universalis, propositio particularis, propositio in-de nita e propositio singularis8. Finalmente, deve-se considerar que aqui Pedro Hispano usa signa no sentido de dictiones e não propriamente de sinais, pois, de acordo com o Tractatus I, 8, os signa universalia e os signa particularianãosãotermos,massimoquechamamosquantificadores.

Ponzio (2004, p. XVII) faz notar que “Signi catio indica uma opera-ção,umaatividade,cujoprodutoéacoisasignificadaourepresentada”9, motivo por que não se deve traduzir signi catio porsignificado.Issoain-daevidenciaqueasignificaçãonãoéacoisareferida,ouacoisarepre-sentada, mas o movimento ou a ação de representar determinada coisa porumtermo.Convémconsiderar,inclusive,ovalordosufixo -io” na língua latina,que indicaa açãode” realizaroexpressopelo radical,sendo signi catio,grossomodo, açãodesignificar”.Issoéfeito,comojáindicamos acima, pela representação de coisas através de substantivos, adjetivos e verbos. Destes se diz que copulam, daqueles que supõem.

Podemos agora, tendo caracterizado a signi catio, passar para a suppositio, como faz Pedro Hispano no tratado De suppositionibus (Sum-mulae Logicales, VI, 3):

Sem dúvida, suposição é a acepção de um termo substantivo no lugardealgumacoisa.Mas,suposiçãoesignificaçãodiferem,por-queasignificaçãoexistepelaimposiçãodavoz coisasignificada,suposição, verdadeiramente, é a acepção do mesmo termo, que já significaumacoisa,nolugardealgumacoisa.Comoquandosediz ‘o homem corre’, este termo ‘homem’ supõe por Sócrates ou porPlatão,eassimpordiante.Porissoasignificaçãoéanterior suposição.Nãosãoiguais,porquesignificarépropriedadedavoz,enquanto supor é do termo já, de certo modo, composto de voz e significação.Portanto,suposiçãonãoésignificação10.

8 Ver Summulae Logicales I, 8.9 “Signi catioindicaun operazione,unaattivit ,ilcuiprodotto lacosasignificataorappresentata”.10 Suppositioveroestacceptioterminisubstantiviproaliquo.Di eruntautemsuppositioet

significatio,quiasignificatioestperimpositionemvocisadremsignificandam,suppositioveroestacceptioipsiusterminiiamsignificantisremproaliquo.Utcumdicitur homo currit’, iste terminus ‘homo supponitproSortevelproPlatone,etsicdealiis. uaresignificatiopriorestsuppositione.Nequesunteiusdem,quiasignificareestvocis,supponereveroestterminiiamquasicompositiexvoceetsignificatione.Ergosuppositiononestsignificatio”(SL, VI, 3).

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Sobre a relação entre significatio e suppositio, ueobservamosnessapassagem,Meirinhos(2002,p. 50)escreve: Asignificaçãoeasuposiçãosãoduasformasdistintasdaacepçãoourelaçãodotermo(oupalavra)aoseureferente .EMoru ão(200 ,p. 11)e plica ue emlinguagemmodernadir amos:éosentido–ou,poroutraspalavras,a significatio–, uegaranteapossibilidadedarefer ncia–ouse a,dasuppositio–,enãoarefer ncia uegaranteapossibilidadedosentido .Suporé,pois, estaremvezde , estarpor umacertarealidade,emumaproposição.H ,inclusive,umarelaçãodeanteced nciadasignifi-cação suposição,poiss époss velreferir-secomumapalavraaumacoisa, quando aquela é compreendida, ou seja, quando a palavra tem sentido para o ouvinte.

Convém ressaltar ue Pedro Hispano, na passagem anterior,paraenfatizaradiferençaentresignificatio e suppositio, não fala mais emsignificaçãodos termos (significatio termini),mas emsignificaçãocomo propriedade da voz (significare est vocis); ‘termo’ é explicitado definitivamentecomoalgocompostoporvozesignificação(compositi

ex voce et significatione), indicando que uma palavra qualquer só pode serentendidacomo termo uando incide sobreelaumasignifica-ção. asuppositioéa imposiçãodapalavra coisa,demodo ueotermopossafazerrefer nciaa ual uercoisaade uada significaçãodo mesmo termo.

Essateoriadasuposição,comoest emPedroHispano,pare-ce indicar que tudo aquilo que pode ser enunciado e compreendido possui algum modo de ser, é uma coisa que aponta para uma realida-dee terior linguagememdoismovimentos:primeiro,naatribui-çãodesignificadoaumsomarticuladopelavoz segundo,referindoaob etoscomopalavras,conceitosouformas,oucoisassingulares,que, por exemplo, são representadas indiretamente quando usamos um termo universal. É preciso, então, compreender uma outra pro-priedade, a appelatio, ueabarcar apenasos termos ue referemaob etose istentesnomundo.

A appelatio é a propriedade dos termos que se refere apenas a coi-sas uet mumae ist nciareal.ConformePedroHispano, aapelaçãoéaacepçãodeumtermocomumporumacoisae istente.Digo por

uma coisa existente ,por ueumtermo uesignificaa uilo uenãoé,

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nada apela, como ‘César’, ou ‘Anticristo’, e ‘quimera etc. 11. É essa acep-çãoe clusivaacoisas uee istem uediferenciaaapelaçãodasupo-siçãoedasignificação.Assim,otermo pégaso ,pore emplo,significaesup e,masnãoapelapornada. ,contudo,importanteobservar ueuniversaiscomo homem apelamemdoissentidos:tantoparaindi-carg neroeespécie–eassimpodemosdizer ueosuniversaise istem– uantoindiv duossingulares.

3. elatio, restrictio, am liatio istributio

Decorrentes da teoria da suppositio,apresentamosbrevementeasdemaispropriedadesdostermos.Elasocupamos ltimoslivrosdaSummulae Logicales. A appelatio,temado ratadoX,tambémdependedasuposição,maspreferimosdestac -la untamentecomasignifica-çãoeasuposição,por ueesclarecea uestãodae ist nciaemPedroHispano. Quanto à relatio Meirinhos (2002, p. 52) fazperceber uesublinhabemasrelaç esentregram ticael gica ,issopor uedes-sapropriedadeparticipamase press esrelativas uesup empelasmesmas coisas representadas pelas palavras que as antecedem, como os pronomes relativos, dêiticos e anafóricos. A ampliatio é uma pro-priedadedassuposiç espessoaiseocorre uandootermocomumdeumasuposiçãoganhamaiore tensãodeparticularessobresipormeiodeverbos,advérbios,partic pioseoutrosnomes. pr priadealgunsverbosaampliação,comonasentença o homem pode ser branco’ (homo

potest esse albus).Nesta,pormeiodoverbo pode’, o termo ‘homem’ foi ampliado,supondopeloshomensbrancospresentesepelos ueserão.uando consideramos a ampliação ue é feita pelo advérbio, como

em ‘o homem é necessariamente um animal’ (homo necessario est animal), dizemoshaverumaampliaçãodevidoaotempo,poisarelaçãoentreo sujeito ‘homem’ e o predicado ‘animal’ está enfatizada agora e no futuropeloadvérbio necessariamente .Arestrictio,comoaampliação,tambéméumadassubdivis esdasuposiçãopessoal.PedroHispano(Summulae Logicales, IX,2)aduz: Arestriçãoéareduçãodeumtermocomumdeumasuposiçãomaioraumamenor.Assim, uandosediz11 “Appellatio est acceptio termini communis pro re existente. Dico autem ‘pro re existente’, quia

terminussignificansnonensnichilappellat,ut Cesar’ vel ‘Antichristus’ et ‘chimera’, et sic de aliis (SL, X, 1).

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‘o homem branco corre’, o adjetivo ‘branco’ restringe ‘homem uesup eapenaspeloshomensbrancos 12.Ossu eitosdeumaproposiçãosãorestringidosporumnome,umverbo,umpartic pioeumaimplicação.Paracadaumadessas classificaç es,ose emplosdePedroHispanosão,respectivamente: homembranco (homo albus) ohomemcorre (homo currit) ohomem uecorrediscute (homo currens disputat); e ohomem ueébrancocorre (homo qui est albus currit). Finalmente,

a distributio,conformePedroHispano(Summulae Logicales, XII, 1), “é a multiplicaçãodeumtermocomumpormeiodeumsinaluniversal 13. Ossinaisuniversaissãoe press essincategorem ticas,portanto,nadasignificam,nãosãouniversaisnemsingulares,entretantofazemoter-mosuporportodososelementossignificadosporele.

Daapresentaçãodaspropriedadesdostermos,podemosconcluirueh umaontologiasub acente l gica,e postacomodialética,dePedroHispano,sobretudopor ueaoseinvestigaroselementoscons-titutivosdasproposiç escompreende-se ueelesrepresentamcertasentidadesreferidaspela vozsignificativa ,se ampalavras,conceitosouformas,ouob etosmateriais.

Oprimeiroconceitofi adoéodetermo, uesãopalavrassigni-ficativas–palavras ue,mesmoisoladasde ual ueroração,remetemalguma coisa existente a quem estiver familiarizado com a linguagem empregadanodiscurso.Ostermossãoaspalavrasdaproposição uet msignificado,sãoosu eitoeopredicado,onomeeoverbo.

A primeira propriedade que faz de um som produzido pela voz humana ser um termo é significatio. Esta é a propriedade da representa-çãodacoisapelapalavra.Aspalavras, uesãocunhadasconvencional-mente, tornam presentes as coisas tratadas em um discurso, fazendo com que este seja compreendido pelos que conhecem os seus termos.

Algumas coisas são representadas por meio de substantivos.Dessetipodetermos significantesdizemos ue,geralmentenumaproposição,referem,ou estãopor ,algumacoisaabrangidapelasig-

12 Restrictioestcoarctatioterminicommunisamaiorisuppositioneadminorem. tcumdi-citur ‘homo albus currit’, hoc adiectivum ‘albus’ restringit ‘hominem’ ad supponendum pro albis (SL, IX, 2).

13 Distribuitioestmultiplicatioterminicommunispersignumuniversalefacta (SL, XII, 1).

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nificaçãodo termo.Essapropriedade é a suppositio, que permite in-cluirmos,pore emplo,homenssingularesnouniversal homem ,oudizermos ueoreferentedapalavra homem naproposição homem éumapalavra ,éapr priapalavra homem .

mcasoparticulardasuppositio é a appelatio, que pode ser de-finidadamesmamaneira ueasuposição,porémcomarestriçãoderepresentar apenas as coisas existentes materialmente, de modo que bode-veado ,significaesup e,masnãoapelanada.

As outras propriedades dos termos, finalmente, ocorrem me-dianteaaglutinaçãodee press esououtrostermos oração,confe-rindomaioroumenorabrang nciaaotermodasuposição.

ARIS E ES. Peri Hermenias ( ). Dispon vel em: h p://remacle.org/blood olf/philosophes/Aristote/hermeneia.htm , acesso em2 /10/2014.DEBONI, uisAlberto.A entrada de Aristóteles no ocidente medieval. PortoAle-gre:ES Ediç es:Editora l sses,2010.ISPANO,Pietro. rattato di lógica Summule logicales.AcuradiAugustoPon-zio.Milano:Bompiani estiaFronte,2004.NEA E, illiam NEA E,Marta.O Desenvolvimento da Lógica. rad.M.S.ourenço.2.ed. isboa:FundaçãoCalouste ulben ian,19 8.MEIRINHOS, oséFrancisco.PedroHispanoeal gica.In.CA AFA E,Pedro(org.). istória do pensamento filosófico portugu s.vol.I.IdadeMédia.ed.2. is-boa:C rculode eitores,2002.p. 1- 75._________. Avatares da antiga atribui ão de obras a edro ispano oão . Revis-taportuguesadehist riadolivroedaedição,anoXI,n 2 -2009,pp.455-510.Dispon vel em: h p:// eb.letras.up.pt/meirinhos/studia/Meirinhos Avata-res 1.pdf ,acessoem20/10/2014.MOR O,Carlos.A Lógica Modernorum: l gicaefilosofiadalinguagemnaescol sticados séculosXIII eXIV. In.RevistaFilos ficadeCoimbra,n 28,2006. p. 301-322.PE EROFSPAIN,Tractatus called afterward Summule Logicales. First Critical EditionfromtheManuscripts ithnaIntroductionb .M.DeRi .Assen:Van orcum Comp.B.V.,1972.PON IO,Augusto.Introduzione.In.ISPANO,Pietro. rattato di lógica Sum-mule logicales. AcuradiAugustoPonzio.Milano:Bompiani esti a Fronte,2004. p. V-XXIII.

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A Suppositio como Proprietate Terminorum em Guilherme de Shyreswood, Pedro Hispano e Guilherme de Ockham.

Laiza Rodrigues de Souza Universidade Federal da Paraíba

As teorias da suposição se desenvolveram na Idade Média, um período no qual a lógica era considerada uma ciência instrumental que serviaparaconduzir investigaç esteol gicasefilos ficas.Ahist riada lógica na Idade Média é dividida em três grandes períodos de acor-docoma recepçãoaristotélica.A logica vetus compreende o período uechegaatéofinaldoséculoXIeécaracterizadopelocoment rio s

Categorias e ao De Interpretiatione deArist teles,e Isagoge de Porfírio pelas traduç es latinasdeBoécio. noper odoconhecidopor logica

nova duranteoséculoXIIem ueoconhecimentodorestantedosli-vros do Órganon (doutrina do silogismo e doutrina do método) e da totalidadedosescritos l gicosdeBoécio (seuscoment rios Arist -telese IsagogedePorf rio).1Nesteper odotorna-seconhecida DeSophisticisElenchisdeArist teles,o uegerauminteresseporpartedos lógicos em tratar dos sophismata, isto é, surge o interesse de re-solverosparadigmasl gicos( nealle,1991,2 2).Eporfim,seinicianoséculoXIIIoper ododalogica modernorum ueconsistenaan lisesemântica das obras lógicas de Aristóteles e a relação entre lógica e

1 Cf.PINBOR , .Logica e semantica nel medievo. Logi und Semanti im Mittelalter rad.diFlavioCuniberto. orino:Boringhieri,1984,p.17

Carvalho,M. HofmeisterPich,R. OliveiradaSilva,M.A. Oliveira,C.E.Filosofia edie al ColeçãoXVIEncontroANPOF:ANPOF,p.299- 12,2015.

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ontologia (proprietade terminorum).Estaéaépocadosurgimentodoscomp ndios l gicos, tambémconhecidoscomosummulaes e tractatus

que são essencialmente metalinguísticos, se dedicando ao estudo da estruturasem nticaesint ticadal ngualatina.Dopontodevistadahist riadal gica,esteper odorepresentaoprimeirodesenvolvimentodeumal gicadistintadaaristotélica( nealle,1991,p.2 1,2 2).

Dentrodesteconte to,h tr sfontesprincipaisdas uaispode-mose trairanecessidadedeumateoriadasuposiçãonesteper odo:fal cias,coment riosedisputasdialéticas.

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Desdealogica nova,oste tos uecompunhamo ueho echa-mamos de Órganon vinhamsendoestudados.Porém,somenteap so aparecimento das Sophistics Elenchis(Refutaç esSof sticas),al gicaescol sticapassouasededicarasolucionareevitarfal cias( nealle,1991,p.2 2).

Estepe uenote tocomeçouacircularemtraduç eslatinasemalgummomentoporvoltade1120,esuaapariçãofoiumeventocrucialnahist riadal gicamedieval.(SPADE,199 ,p. 8)

A difusão das SE traz tona um problema lingu stico, a sa-ber, ueasv riasinterpretaç esa uealinguagemésuscet velpo-demsercon itantes.Comesteproblema,surgetambémodesafiodemontar um sistema semântico que pudesse tratar das ambiguidades efal ciasdalinguagem.Podemosentão,dizer ueadoutrinadasfa-l ciaspresentenoSEéumdosfatoresdecisivosaodesenvolvimentodasteoriasdasuposição.

Aatividadeacad micanomedievogiravaemtornodecoment -riosedisputasdialéticas(De ibera,1998,p.25- 0).Comentaralgumasobras, como a IsagogedePorf rioeoDainterpretação(Peri Hermeneas) de Aristóteles, era imprescindível aos que se pretendiam mestres das artes.No entanto, embora fosse necess ria ao trabalho acad mico e

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crescimento curricular, tal tarefa trazia também a impossibilidade de contestaroste tos,porsetrataremdete tosdeautoridades.Contudo,eraprecisofazerumaan lise uepro etassetambémaopiniãodoco-mentador. mamesmaproposiçãopoderiareceberv riasinterpreta-ç es,porisso,éevidente ueummesmote torecebessecoment riosdistintoseantag nicos.Diantedeste impassehermen utico,a teoriada suposição era utilizada para estabelecer as possíveis leituras que dadaproposiçãopoderiareceber.

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No âmbito das disputas dialéticas as teorias da suposição fo-ram teisnoconte toen uantoforneciamoaparato uepermitiaaosparticipantesanalisarasv riasinterpretaç escab veisaumapropo-siçãoe,destamaneira,sedefenderdosadvers rios.Avit rianestasdisputas era algo salutar, uma vez que a destreza em proposições problem ticas evidenciava a e cel ncia intelectual da época. Nasdisputas dialéticas, era preciso tanto antever futuras refutações dos advers riosemrelaçãoaoutrossignificados ueumtermopudesseassumir, uanto uandonecess riofosse,e plicitarosentidono ualdeterminadotermoseriausado.

Semd vida,oimpulsoparaodesenvolvimentodateoria dasu-posição veiodastécnicasdedisputadialética.Nãosurpreendeuemuitos tratados comecempor insistirna funçãob sicadateoriadosignificadoparadisputasl gicas,nas uais,defato,auestãocentralé: Do uevoc est falando 2(deRi 19 7,55 )

A teoria das proprietates terminorum, que foi muito importante nos ltimosest giosdal gicamedievalformou-senasegundametadedoséculoXIIpretendee plicarasfunç esdiferentes ueaspalavrasouase press esverbaispodemdesempenhar uandofiguram uan-dotermosnasproposiç es.Elapareceserprovenientedasdiscuss esde Abelardo e dos seus contemporâneos sobre a estrutura das proposi-ç escateg ricas( nealle,251).2 .M.deRi ambertus. ogicaModernorum.Acontributiontothehistor ofearl termin-

ist logic.Vol2.PartOne: heoriginandearl developmentofthetheor ofsupposition.Assen: onin li eVan orcum Compan 19 7.P.55 .

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Otermo suposição nãoédeautoriadosl gicosterministasdaescol sticatardia. vinhasendoutilizadoporgram ticoscincoséculosantesdeCristo.Inicialmente,seuusoeraestritamentegramatical,masseusentidofoimodificadoaolongodotempo.Oprimeirousodoter-mo supponere é encontrado na Institutionum Grammaticorum Libri, uma obradePrisciano,umdosmaisimportantesgram ticosdoséculoVaoVIa.C..Originalmenteapalavragrega ( )foi traduzida para o latim como id quo uermo fit (sub ectum), significan-doosu eitogramaticalao ualsãoatribu dospredicados.Ateoriadasuppositiosurge, untamentecomasproprietates terminorum,daan liselógico-gramatical das proposições feitas pelos comentadores de Pris-ciano(Moru ão,2005,p. 08).

Oid de quo fit sermodesignatantoob etosconcretoscomouniver-sais.AsuppositioatéoséculoXIIerarestringida appelatio, de modo ueumnomes poderia supor sefizesserefer nciaaalgocome is-t nciareal.Nestecaso,ostermosuniversaiscomo homem nãopossu-amfunçãosuposicional.Adoutrinadasuppositio nasce precisamente danecessidadedeumtermouniversale ercersuafunçãoconotativa,istoé,designificarv riosindiv duos.

Se originalmente o termo era usado em sentido gramatical, a partirdePedroAbelardoseobservaatransiçãoparaosentidol gico.EmsuaLogica Ingredientibus, o termo suppositum aparece significandodubiamenteosu eitogramaticaleumsubstratoontol gico.Porsubs-tratoontol gicodevemosentenderoreferentedotermo. atribu daauilhermedeChampeau ,aautoriadoQuaestiones Victoriane, no qual seencontraotermo suppositio comosentidodereferente,sentidoesteueser usadopelosl gicosterministas.EstaobraescritanametadedoséculoXIImarcaatransiçãodousotermoemsentidoestritamentegramaticalparaseuusol gicocomopropriedadedostermos.H umapassagem do âmbito discursivo para o ontológico, isto é, o termo ‘su-

ppositum’dei adee erceropapelsint ticodetermosu eitoepassaasignificaro ueédenotadoporele.Estaincorporaçãodesentidoéouepossibilitaanoçãodo uechamamosdesuposiçãopessoal. des-

te novo sentido que toma o termo que veremos brevemente as teorias dasuposiçãofeitasporSh res oodeHispano.

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uilhermedeSh res oodéconsideradooprimeirol gicome-dieval a tratar das proprietates terminorum na sua Introductiones Grama-

ticorum ( nealle, 1991, 251). Ele reconhece uatro propriedade dostemos, a saber, significatio, suppositio, copulatio e appelatio3.Aprimeiraé a apresentação de algo ao intelecto ( st igitur significatio presentatio alicuius forme ad intellectum).Estaépropriamenteapropriedadedasig-nificação,na ualsignificartemumsentidodetrazeralgo mente.Aproposição ohomeméanimal é entendida comodada somenteemn velmental.Asegundapropriedadeéadasuposição,tidacomoaor-denaçãodealgoporbai odeoutracoisaaoentendimento(Suppositio

outen est ordinatio alicuius intellectus sub alio).Em ohomeéanimal otermo homem sup epelotermo animal , ueporsuavezsup epeloconceitodacomunidadedoshomens.Aterceiraéacopulação,istoé,aordenação de algo ao entendimento em relação com outra coisa (Et est

copulatio ordinatio alicuius intellectus supra alium),comoem ohomeméser .Apalavracopulatio provém das discussões de Abelardo acerca de termos.Sh res ooddiz ueacopulatios podepertenceraad etivos,particípios e verbos, o que sugere que esta propriedade tem a noção

3 Quattuor sunt proprietates terminorum quas ad praesens intendimus diversificare. arum enim cogni-tio valebit ad cognitionem termini et sic cognitionem enunciationis et propositionis. t sunt hae propri-etates significatio, suppositio, copulatio, et appelatio. st igitur significatio praesentatio alicuius formae ad intellectum. Suppositio autem est ordinatio alicuis intellectus sub alio. t est copulatio ordinatio ali-cuius intellectus supra alium. t notandum quod suppositio et copulatio dicuntur dupliciter, sicut mul-ta huiusmodi nomina, aut secundum actum aut secundum habitum. t sunt istae definitiones earum secundum quod sunt in actu. Secundum autem quod sunt in habitum, dicitur suppositio sgnificatio alicuis ut subsistentes (quod enim tale est natum est ordinari sub alio et dicitur copulatio significatio alicuius ut adiacentis (et quod tale est natum est ordinari supra aliud . Appelatio autem est praesens convenientia termini, i.e., proprietas secundum quam significatum termini potest dici de aliquo median-

te hoc verbo est. x his patet quod significatio (non) est in omni parte seu dictione orationis. Suppositio autem in nomine substantivo tantum vel pronomine vel dictione substantiva haec enim significant rem ut subsistentem et ordinabilem sub alio. Copulatio autem in omnibus adiectivis et participiis, et non in pronominibus, quia non significant formam aliquam sed solam substantiam, nec in verbis, quia verbum non significat aliquod quod apponitur per verbum substantivum, quia sic esset extra ipsum. Nulla au-

tem istarum trium, scilicet suppositio, copulatio, appellatio, est in partibus indeclinabilibus, quia nula

pars indeclinabilis significat substantiam aut aliquid in substantia .Ed.M.Gra mann in i ungs-berichte der Bayerischen Akademie der Wissenchaften, Pbil.-Hist. Abteinlung,19 7,Heft10.In NEA E, illiam NEA E,Martha.O desenvolvimento da lógica. isboa:FundaçãoCalouste ulben ian. ed.1991,P.251.

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dedepend nciagramatical.ParaSh res oodacopulatio é própria dos ad etivos,partic pioseverbos uesãotodosgerais. aappelatio não podeseraatribu daaospronomespor ueelesnãosignificamformas,mass subst ncias.

A apelação é a última propriedade, dita a propriedade de um termo presente (praesens convenientia),segundoa ualosignificadode um termo pode ser dito de algo mediante o verbo ser (Appellatio outem este presens conventia termini, idest proprietas secundum quam sig-nificatum terminist pottest dici de aliquo mediant hoc verbo est ), como em ohomeméser .Assim,onomepr prioS cratestinhaappelatio em 400a.C.( nealle,1991,252).

Oconceitodeappelatio parece ser proveniente do emprego que Priscianodeu e pressãonomem appelativum para designar um ter-mo que se aplica a todas as coisas a que o termo se refere (Knealle, 1991, 25 ). alvezpor essemotivoSh res ood considerasse ue aappelatioerapr priadostermosemposiçãodepredicado. estranhouesediga uenenhumtermotemappelatioamenos uese aapli-c vela ual uercoisa uee istanomomentodaelocução( nealle,1991,25 ).

AteoriadeSh res oodnãoéo uepodemoschamarpropria-mentedeumateoriadasuposição.Emvezdisso,foiconcebidaeapre-sentada,defato,comoumateoriadasignificaçãodotermoapelativo(DeRi e,19 7,5 5)e,emseuinteriorencontramosasuateoriadasu-posição.Apropriedadedasuposiçãonãorecebenenhumaprioridadeem relação s outras.H somente umadistinção em relação refe-rência dos termos mediante uma propriedade distinta quando tomam aposiçãode su eitooupredicadonumaproposição.Os termos ueocupamaposiçãodesu eitosãoditosemsentidoe tensionaleaelesseatribuiapropriedadedasuposição.Ostermos ueocupamaposi-ção de predicado são por sua vez, tomados por um sentido meramente intensionaleaestapropriedadechama-seapelação.

Sh res oodfazumadistinçãoentreosdoisgrandesmodosdesuposição.Asaber,asuposiçãosegundoato(secundum actum) e a su-posiçãosegundoh bito(secundum habitum).

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Dicunt igitur quidam quod terminus ex parte subiecti supponit et ex parte praedicati appelat. t sciendum quod ex parte subiecti supponit secundum utramque definitionem suppositionis, ex parte autem praedi-cati supponit secundum habitualem suam definitionem. 4

al distinçãodiz respeito ao status ontol gicodoob eto. masuposiçãosegundoatosed uandoconsideramosoob etoao ualserefereotermoen uantounicamentemental.Poroutrolado,umasuposiçãosedizsegundoh bitoseumtermosup eporumob etodenaturezae tramental.Asuposiçãoen uantoatoserefereaconceitosedizrespeitosomente composiçãodostermosemumaproposição.Asuposiçãoen uantoh bitoéa uelana ualasignificaçãoéentendidacomo subsistente (significatio alicuius ut subsistentia) isto é, supõe os ob-etosaos uaisosconceitossereferem.

Alémdestagrandedivisão, tambémh adistinção entre su-posição material (supppositio materialis) e formal (suppositio formalis).Na suposição material uma palavra supõe pela pronúncia da própria palavra,comoem homeméumapalavraplana ,oupelapalavraemsi, pron ncia e significação, comoem homemé substantivo .A su-posição formal é dita como aquela na qual a palavra supõe por seu significado.Estemododesuposiçãosesubdivideaindaemsuposiçãosimples (suppositio simplex) e pessoal (suppositio personalis).Simpleséasuposiçãoem ueotermosup esomenteporseusignificado(supponit

significatum pro significato).Asuposiçãopessoaléa uelana ualoter-mosup eseusignificado,comoem ohomemcorre . Ousodotermopersonaliséestranhopor uenadatratadepessoas. prov vel ueoempregode personalis começounumconte toteol gicocomo,pore emplo,aobradeBoécioDe persona et Duabus naturis contra eutychen

et nestorium. Quando um cristão diz “Deus factus est homem”, ele quer dizer ueumapessoa ue tinhaaformadivinaemcertaaltura,veioateraformahumana.Porserumconceitoimportantedopensamentocristão,( nealle,1991,2 2)sup e-se uetenhadadono segundadi-visãodasuposiçãoformal.

4 Cf.SH RES OOD, uilherme. Introductiones in Logicam,p.82. in NEA E, illiam NEA E,Martha.O desenvolvimento da lógica. isboa:FundaçãoCalouste ulben ian. ed.1991.P.250.

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A suposição pessoal pode ser determinada, quando se trata se umsu eitoemparticular ohomemcorre .Nestecasoapalavra homo tem suppositio determinatapor ueafrasepodesere plicadaemrelaçãoa um indivíduo (potest locutio exponi per aliquod unum).Entretanto,tam-bém poderia ser indeterminada uma vez que a proposição não indica ualhomemespecificamenteest acorrer(Cf. nealle,1991,2 2).A

suposição confusa é aquela na qual estão envolvidos muitos indiví-duosouumindiv duotomadov riasvezesnumconte to. masupo-sição é confusa se um substantivo representa tudo o que tem a forma ueelesignifica.Asuposiçãoconfusaédistributivaseumsubstantivorepresenta tudo ue tema forma ueele significa. Istoé, todosinaldedistribuição(todoenenhum)produzsuposiçãoconfusadistribu-tiva no termo imediatamente unto a ele, en uanto o sinal negativofazomesmoparaotermoafastado.Mas,umsinalafirmativoproduzsuposição meramente confusa para o termo afastado, de modo que é correto nenhumhomeméburro,logonenhumhomeméesteburro eincorreto todohomeméumanimal,logotodohomeméesteanimal ( nealle,1991,2 4).

NateoriadeSh res ood uandoumtermogeralaparecesemualificaçãoespecialé ueest representandoseusappellata, isto é, os indiv duos uesãoe emplosatuaisdaforma ueotermogeralsigni-fica.Assim,podemosdizer ueasuppositiosesubordina significatio e uea uilo ueotermogeralsignificaéumaformaaserrealizadanascoisase istente.Dessemodo,apalavrahomorepresentaoshomensuee istemnomomentoem ueépronunciada.

Outrograndee poentedal gicanomedievofoiPedroHispa-no.SuateoriadasuposiçãoéconsideradainterdependentecomadeSh res ood. No entanto, suas teorias apresentam v rias distinç esconceituaisemrelação propriedadedostermos.Eleomiteadistin-ção entre suppositio formalis e suppositio materialis, enquanto introduz a distinção entre suppositio discreta e communis.Podemosdizer uesuagrande inovação é a distinção que faz entre suppositio naturalis e suppo-

sitio accidentalis( nealle,1991,p.2 8).AdefiniçãodesuposiçãoparaHispanoé suppositio verto est acceptio termini substantivi pro aliquo’5, a

5 PedroHispano,Tractatus llamados después Summule Logicales,Mé ico: niversidadNacionalAut nomadeMé ico,198 . r.MauricioBeuchot.Vl, ,p. 7.

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suposição verdadeira é a aceitação de um termo substantivo em lugar dealgo.En uanto ueparaSh res ood, signiticatio termini, prot hic si-

mitur, est reiper vocem secundo’placito representatio ,istoé,asignificaçãodotermo,comosetomaa ui,éarepresentaçãodacoisapelavoz.Adefiniçãodecopulaçãotambéménotavelmentedistinta.ParaHispano,copulaçãoéaaceitaçãodotermoob etivoemlugardealgo(Copulatio

est termini adiectivi acceptio pro aliquo) .Sh res ooddefini ueacopu-lação é a ordenação de algo (um conceito) ao entendimento em relação com outra coisa (Et est coulatio ordenatio alicuius intellectus supra alium).En uantoparaHispano,aapelaçãoéaacepçãodotermocomumpelacoisae istente(Appellatio est acceptio termini communis pro re existente)7.

AteoriadePedroHispanonãotemsomente,nesteestudo,arelev nciadeseranterior teoriaoc amista,massim,adeserpro-priamenteaobraretomadaporOc hamparadesenvolversuateoriadasuposição( hisalberti,1997,44).AdivisãogeraldasuposiçãoemHispanoédiscretaecomum.Discretaéa uela uesefazporumter-modiscretocomo S crates e estehomem .Istoé,umtermoédiscretouandoédefinido.Asuposiçãocomumnãopossuiestecar ter,comoo termo homem , ued a ideiadeumhomemindefinido.Porsuavez, a suposição comumse subdivide emduas, natural e acidental.Natural ocorre quando é empregue para representar todas as coisas das uaisépredic vel.E :suppositio daspalavras homem uandoéusadapararepresentar todososhomenspresentes,passadose futu-ros acidental, uesed emrelaçãocomoverboeconsiderao uesepredicadotermo,pore emplo umhomemé... ,otermosup epeloshomens e istentes atualmente ( uando a frase é dita) e, no casodeumhomemfoi ,otermosup eportodososhomens uee istiramnopassado( nealle,1991,2 9).Asuposiçãoacidentalpodesersimples,quando o termo comum supõe pela coisa universal que o próprio ter-mosignifica,comoem ohomeméumg nero ,epessoal, uandoumtermocomumsup eporumpredicado ueo termosignifica,comoem ohomeméb pede ( nealle,1991,2 9).Asuposiçãopessoalpodeserdeterminadaouconfusa.Determinada uandosetomaumtermocomumindefinidocomo algumhomemcorre .Confusa uandoum

p. cit,Vl,2,p. 7.7 p. cit, , , p. .

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termocomumsup eporv riascoisas,precisandoassim,deumtermouniversal.Emrelaçãoaisto,temasuposiçãoconfusa uenecessitadesigno e pode se distribuir em qualquer um de seus supostos ou inferio-res(predicados),comoem todohomeméanimal .Asuposiçãocon-fusa que necessita da coisa é aquela na qual o predicado atribuído ao su eitoéessencial.Em todohomeméanimal ,éotermo uesup edeforma confusa necesitate reié animal ,porseranimaléumpredicadoessencialatodososhomens.

PodemosnotarnateoriadeHispano ueapropriedadedasu-posiçãonãosedelimitaaocampoproposicional.Noe emplousadonasuposiçãocomum,vemos ueotermo homem apareceisoladamente,istoé,semfazerpartedeumaproposição.Apesardasdiferençasen-treSh res oodeHispano,ambossãorealistas,istoé,acreditam ueostermosgeraissignificamuniversaisoucaracter sticas ueascoisaspodemteremcomum( nealle,1991,271).EmHispanoficaevidentepor suas passagens na Summulae Logicalescomonasuadefiniçãodesu-

ppositio simplex como acceptio termini communis por re universali figurata per ipsum (Cf nealle,1991,271).

A Summa Logicae deOc hamilustraatend ncial gica uesur-giuapartirdoséculoXIId primazia doutrinadasuposiçãoemre-lação soutraspropriedadesdostermos.Seutratamento sproprietate

terminorum trata das outras propriedades sempre em relação pro-priedadedasuposição.ParaOc ham,s entidadespresentese istemepodemterpropriedadessem nticas.Eparaumtermoserverdadeironumaproposiçãodevesuporpora uilo uee istiu,e iste,e istir oupodee istir.Osu eitopodesuporcomverbonopresente,passado,oufuturo(Oc ham,1998, 5).ParaOc hamdizer uev riascoisast muma característica em comum é o mesmo que dizer que elas tem uma parte comum acerca da qual podemos falar da maneira que falamos acercadospr prios indiv duos.A isto ele re eitaveementemente.Oefeito deste seu modernismo é um empobrecimento da doutrina das

proprietates terminorum, emrelaçãoaosseusantecessores.Sh res oodeHispanosupunham ueumtermogeralsignificasempreumaformae sempre podia supponere pro suo significato somente no caso de supposi-

to simplex. Oc hamtornouasuppositio anoçãob sicadasuateoriadostermos( nealle,1991,272).

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OVenerabilis Inceptornão falada significatio de modo especí-fico,mastratadestetemaaodiscutiracercadanaturezadostermos.Ostermospossuemumafunçãosignificativadeacordocomsuana-tureza. Fazumadistinção entre termosorais,mentais e escritos.Ostermosmentaissignificamdemodonaturalen uantoostermosescri-toseoraissignificamdeformaconvencional(Oc ham,1998, ).Eledistingue uatromodosdesignificação.Nosdoisprimeiros,otermosignificaa uilode uepodeserverdadeiropredicado.Numprimeirosentido só proposições com o verbo no presente podem ser predicados e num segundo sentido, os verbos no passado, futuro ou modais po-demserpredicados.(E : branco significatudoo ueé,foioupodeserbranco.)Oterceiroe uartomododizrespeitoaostermos uenãopodemserpredicado.8Noterceiromodoumtermoconcretosignificaseucorrespondenteabstratopelo ualnãopode supor (E : branco significabrancura,masnãopodesuporporele.).No uartomodootermosignificaprim riaesecundariamente(retaeobli uamente).Sig-nificaalgodiretamenteeindiretamenteoutracoisa.9

A noção de apellatio (ou denominação) é restringida na teoria oc hamista suposiçãoemsua formamaisampla,na ual éapro-priedadedeumtermo uandoocupaolugardesu eitooupredicadonumaproposição(M ller,1991, 7). copulaçãonãoéfeitanenhu-ma menção na Summa Logicae, somente no Elementarium Logicae (Mül-ler,1991, 8)étratadaacopulatio como a doutrina da cópula, na qual o estest presenteemtodasasproposiç escateg ricascomoc pula.Ac pulapodeaindaserconsideradacomoumae pressãosincatego-rem tica uedenota ue (M ller, 1991, 8) a uilopelo ual est osu eitoéa uilopelo ualest opredicado .

A suposição dividiu opinião dos lógicos medievais durante os séculosXIIeXIII.Haviaumacorrentecontinentaldeorigemparisien-se ueadotavaanoçãodesuposiçãonatural,en uantoacorrenteo io-nenseadotavaasuposiçãocomofigurandoapenasnumconte topro-posicional,istoé,puramentesint tico.Paraosparisiensesasuposiçãonatural é a capacidade de um termo estar no lugar de todos os mem-brosdeumaclasse. ae tensãoefetivadotermosemaslimitaç esdo

8 Distinçãoentretermosconcretoseabstratos.9 Dizrespeito distinçãofeitaentrenomesabsolutoseconotativos.

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conte toproposicional(M ller,1991,70).EstaposiçãofoiamplamenteadotadacomovimosnocasodePedroHispano.

Adoutrinaoc hamistalevaaodesaparecimentodestaformadesuposiçãoapartirdapr priadefiniçãodesuppositio como proprieda-dedostermos uandoestesocupamolugardesu eitooupredicadonumaproposição.ParaOc hamdizer uev riascoisast mumaca-racterística em comum é o mesmo que dizer que elas tem uma parte comum acerca da qual podemos falar da maneira que falamos acerca dospr priosindiv duos.Aistoelere eitaveementemente.S entida-despresentes e istemepodem terpropriedades sem nticas.Eparaum termo ser verdadeiro numa proposição deve supor por aquilo que e istiu,e iste,e istir oupodee istir.Osu eitopodesuporcomverbonopresente,passado,oufuturo(M ller,1991, 5).Asuposiçãoédis-tintadosignificado ueostermospossuemnaturalouconvencional-mente.Em ohomemcorre otermohomeméusadocomseusignifica-dopr prio(sereferindoaumhomemindividual),masem ohomeméumaespécie passaadesignarumconceito.Oc hamdistinguetr stiposdesuposição:pessoal,simplesematerial10.Nasuposiçãopessoalotermoconservasuafunçãosignificativapr priaouconvencional.Emohomemcorre ou homeméanimal otermohomemsup epessoal-menteporindiv duosconcretoseestaésuaconvenção.Nasuposiçãosimples11 o termo designa alguma coisa diversa de sua primeira impo-sição,istoé,otermodesignaumconceito,comoéocasode ohomeméumaespécie .Nasuposiçãomaterial12 um termo designa a si mesmo, comoéocasode homeméumnome ,no ualotermohomemdesig-nasuammaterialidade.AmodalidademaisimportanteparaOc hamé a suposição pessoal13,a ualdistingueemdiscretaecomum.Asupo-siçãoédiscreta uandootermodesignaums indiv duo,como S cra-teséumhomem . asuposiçãocomumsed uandootermosup eporumnomecomumcomo ohomemcorre .Asuposiçãopessoalco-mumsedivideaindaemdeterminadaeconfusa. determinada uan-dopodemospordis unçãopassarparaproposiç essingularescomo

10 illiamofOc ham. Ockham’s theory of Terms: Part I of the Summa Logicae. rad.andIntrod.b Michael . ou .Indiana:St.Augustine sPress,1998,p.190.

11 Ibid,p.198.12 Ibid,p.197.13 Ibid,p.198.

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de ohomemcorre inferimos esteoua uelehomemcorre . uandoasuposição comum é confusa14nãopodemoschegaraproposiç essin-gulares,comonoe emplo todohomeméanimal nãopodemosdizerue estehomeméesteoua ueleanimal .

Vimos uecomoaprofundamentodarelaçãoentrelinguagemepensamentofeitapelosgram ticosdoséculoXIIoconte toproposi-cional adquiriu importância como unidade de sentido dentro da qual osignificadoatualdeumtermoédeterminado.Osignificadodeumtermoesuafunçãosint ticase tornaramtão importantes ueforamdesenvolvidas teorias acerca das propriedades que os termos podem ter, as proprietate terminorum:significatio, apellatio, copulatio, suppositio.Dentreelas,asuposiçãoad uiriuumdesta ueespecial.Oc hamtor-nou a suppositio anoçãob sicadasuateoriadostermos.Oefeitodesteseu modernismo é um empobrecimento da doutrina das proprietates

terminorum. Sh res ood eHispano supunham ue um termo geralsignificasempreumaformaesemprepodiasuporpeloseusignificado(supponere pro suo significato) somente no caso da suposição simples (su-

pposito simplex). A suposição é precisamente a capacidade de um ter-moestarnolugardosob etose tramentais ueelesevocamamente.Entretanto,ésomenteapartirdal gicaOc hamista ueasuposiçãopassaaterumarelaçãointimacomanoçãodesignificação.Primeira-menteelesubordinaasignificação suposição.Emseguidarestringeasuposição ao âmbito proposicional, provocando uma convergência do planosint ticoesem ntico.Istoé,ostermoss sãoanalisadoscomosignificantesdentrodaunidadedesentidoproposicional,deforma ueostermoss possuemsignificaçãocasootermosu eitosuponhapelotermopredicado.Caso issonãoocorra, a significaçãopode continu-ar,entretanto,averdadedaproposiçãoépostaemche ue.Asteoriascient ficassãocompostasporproposiç esnospermitemocontatocoma realidade porque nestas proposições os termos são usados segundo suposiçãopessoal. Portanto, a teoriada suposição est intimamenteligada coma concepçãodeverdade edevalidadeda ci ncias.Pois,

14 Ibid,p.21 .

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umavez ueasteoriassup emporob etosdomundo,aci ncianãoest limitadaaumdiscursosub etivo,massim,umaverdadeiraci nciadomundo.

DE IBERA,Alain. A filosofia medieval. La philosophie médiévale rad.deNico-l sN imiCampan rioe voneMariadeCampos ei eiradaSilva.SãoPaulo:o ola,1998.HISA BER I,Alessandro. uilherme de c ham. rad. uisAlbertoDeBoni.PortoAlegre:EDIP CRS,1997.HISPANO,Pedro.Tractatus llamados después Summule Logicales,Mé ico: ni-versidadNacionalAut nomadeMé ico,198 . r.MauricioBeuchot.Vl, ,p. 7.NEA E, illiam NEA E, Martha. desenvolvimento da lógica. isboa:FundaçãoCalouste ulben ian. ed.1991..M.deRi ambertus.Logica Modernorum. A contribution to the history of early

terminist logic. Vol2.PartOne: heoriginandearl developmentofthetheor ofsupposition.Assen: onin li eVan orcum Compan 19 7.MOR O,Carlos- A logica modernorum:l gicaefilosofiadalinguagemnaescol sticadosséculosXIIIeXIV ,invol.14,n 28,Outubrode2005,pp. 01-22.M ER,Paola.InOc ham, uilhermede.Lógica dos termos;trad.FernandoPiodeAlmeidaFlec introd.PaolaM ller.–PortoAlegre:EDIP CRS,1991.OC HAM, illiamof. Ockham’s theory of Terms: Part I of the Summa Lo-gicae. rad.andIntrod.b Michael . ou . Indiana:St.Augustine‟s Press, 1998.PINBOR , .Logica e semantica nel medievo. Logi und Semanti im Mittelalter] rad.diFlavioCuniberto. orino:Boringhieri,1984.

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Meister Eckhart e a imagem sem imagem

Matteo RaschiettiUniversidade Estadual Paulista

Uma análise profunda da obra de Meister Eckhart revela que

a elaboração da sua teoria da imagem tem como ponto de partida a doutrina do Uno. O dominicano formulou em vários modos, tanto nasobrasemlatimcomonasobrasemalemão,aafirmaçãosegundoaqual, por um lado, Deus é Uno e, do outro, o homem está à altura de uma autêntica imitatio Dei quando se torna um em si mesmo e um com Deus.Estare e ãosobreo noeaunificaçãocomEleécaracterizada,em Eckhart, por uma analogia estrutural com o pensamento neoplatô-nico,emparticularcomafilosofiadePlotino.

r selementosfilos ficosfundamentais uecaracterizamesseconceitopodemserevidenciadoslançandomãodospr prioste tosdo turíngio:

a) “Deus é Uno em si mesmo e está separado de tudo (Pr.21)1 b) “Deus é Uno, é negação da negação (Pr.21)2 c) “Deus enim unus est intellectus, et intellectus est deus unus”

(Sermo XXIX)3

1 MEISTER ECKHART. Werke I. Predigten.Fran furtamMain:2008,p.245.Atraduçãoemportuguês, bem como dos sermões em latim, é do autor do trabalho. Em caso contrário, será especificadaarefer ncia.

2 Ibidem,p.249.3 MEISTER ECKHART. Die Lateinische Werke.E.Benz,B.Dec er. . och, .Sturlese,Stu gart-

Berlin,200 . IV, 04,15.

Carvalho, M.; Hofmeister Pich, R.; Oliveira da Silva, M. A.; Oliveira, C. E. Filosofia Medieval. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 313-332, 2015.

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Seo nonãopodeserdefinidoenemrepresentadonalingua-gem como um fenômeno que implique a diferença, isso se torna pos-sível através de uma dialética negativa radical ou através de imagens ue,nasuasemelhançacomo no,dei amtransparecertambémsua

dessemelhança e, com isso, sua absoluta transcendência. A tradução do termo latim imagonoste tosemalemãodomes-

tre dominicano é bilde (em medio-alto alemão - mhd; em alemão moderno o

termo é Bild). Noconceitoe pressocomessapalavraenateoriaondeseinsere esta noção, é possível reconhecer a presença de duas tradições unidasintrinsecamente:atradiçãofilos ficadarepresentação(nateo-riadoconhecimento)eatradiçãoteol gicadoFilhocomoimagem.

1. A Assim como imago, a palavra Bild revela um elo com a doutri-

na neoplatônica, estando, contudo, inserida em uma teoria cristã da criação,comoatestaaPr.24: Deuscrioutodasascoisas,emgeral,se-gundo a imagem que Ele tem em si de todas as coisas criadas, mas não segundo Ele (mesmo)”4. As imagens, portanto, são ideias originárias (i.e. modelos) de todas as coisas, que não prejudicam a simplicidade divina,por uesãouma nicaimagem,oFilhono ualDeuse pressatodasascoisas,perfeitamenteigualemboraserefiraacoisasdesiguais:“Em Deus, os modelos de todas as coisas são iguais; embora sejam mo-delos de coisas desiguais. O anjo mais elevado, a alma e a mosca têm ummodeloigualemDeus (Pr.9)5.

Além de imago, a palavra latina correspondente a Bild pode ser também species(forma),en uantoformaposterior e ist nciadessasmesmas coisas, originada por um processo de abstração:

Amais nfima imagemde criatura, ue se formaem ti, é tãogrande,comoDeuségrande.Por u Por ueelaéumobst cu-loaumDeusna ntegra. ustamentel ,ondeestaimagemaden-tra (em ti), Deus e toda sua deidade tem que se retirar. Mas lá ondeestaimagemsevai,Deuspenetra (Pr.5b)6.

4 MEISTER ECKHART. Werke I. Op. cit.,p.277.5 Ibidem,p.109.6 Ibidem,p.7 .

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Overboutilizadonestapregação,traduzidocomoformar (einbil-

den em alemão moderno, inbildenemmhd)remete,segundoVannier, auma constituição interior do ser”7.Paraestaautora,MeisterEc hartuti-lizaesseverboparae plicitar uatroe press esdebilden (ou formatio, emlatim, ueelaprefereutilizarporsermais restrito epelofatodeterumsignificadoclaramenteidentific vel): aconformatioaoVerbo,arecreação à imagem sem imagem da Trindade, a união e a iluminação”8.

2. A F Dopontode vista teol gico, Ec hart se insere na antiga tra-

dição uere etesobreohomemcriado aimagemesemelhançadeDeus ( en1,2 )esobreoFilho imagemperfeitadoPai (Col1,15),ueelecomentanaPr.2 : SãoPaulodiz:contemplandocomaface

despida o esplendor e a claridade de Deus, transformamo-nos e a nos-sa imagem renovada se formará, entrando para dentro da imagem que é de todo uma imagem de Deus e da deidade”9.

Essas duas referências, no entanto, estão presentes nas obras de Eckhart em forma peculiar e particularmente audaciosa: se o Filho e a geração do logos no fundo da alma são dois eventos únicos, não é mais possível distinguir duas modalidades diferentes de ser imagem, umaplenamenterealizada(pr priadoFilhodeDeus)eaoutra ueindica o devir do ser humano emvista da realização escatol gica.Nesse aspecto o mestre dominicano evidencia, conscientemente, seu distanciamento da tradição:

Osmestresdizem:s oFilhoéumaimagemdeDeus,masaalmaé formada de acordo com esta imagem. Eu, porém, digo: o Filho é uma imagem de Deus acima de toda imagem; ele é uma imagem de sua deidade oculta. Ora, como o Filho é uma imagem de Deus e nela o Filho é formado, assim também a alma é formada. Daquele deonderecebeoFilho,deletambémrecebeaalma (Pr.72)10.

7 VANNIER,M.-A. «Creatio» et «formatio» chez Eckhart. Reveu Thomiste, CIIe Année, .XCIV,n .1, anvier-Mars1994,p.10 .

8 Idem.9 MEISTER ECKHART. Werke I. Op. cit.,p.2 9.10 MEISTER ECKHART. Werke II – Predigten und Traktate.Fran furtamMain:2008,p.8 .

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Na teoria trinitária eckhartiana, imagem é aquilo que conjuga a origemdoPai(oFilho)eaigualdade(ologos como revelação perfeita). OVerbodeDeus,porém,nãoéapenasimago, mas também filius.Portan-to,époss velafirmar ue,en uantoimagem,oFilhoétambémVerbo,tornaconhec veloPai,ésuarevelaçãoenãoest subordinadoaElee,en uantoimagem,oVerboétambémFilho,manifestandoasuaorigem.

3 A ima o

MeisterEc harttratae plicitamenteda uestãodaimagemem

uatropartesdesuae tensaobra: 1)noComent riodoEvangelhode oão(In Ioh); 2)noComent riodo ivrodaSabedoria(In Sap); 3) no Sermo XLIX “Cuius est imago haec”; 4)naPr.1 bemalemãoeemoutraspregaç esdemaneirafrag-

mentada. Priorizandoasistematizaçãodaspropriedadesdaimagofeita

noComent riodoEvangelhode oão,époss velesboçarumes uemaueevidenciaostraçoscomunsemrelaçãoaosoutroste tosescritos

em latim e também em alemão.

Do uefoiditopodemsere plicadosmuitostrechosdaEscri-tura, em particular aqueles relativos ao Unigênito Filho de Deus, principalmenteondesediz ueé imagemdeDeus (2Cor4,4 Col1,15).Comefeito,umaimagem,en uantoimagem,nãore-cebe nada de si a partir do sujeito em que está, mas recebe todo seu ser do objeto do qual é imagem. Em segundo lugar, recebe o seu ser somente daquele. Ainda, em terceiro lugar, recebe todo o ser daquele segundo tudo o que é seu, pelo que é seu modelo. Pois,seaimagemrecebessealgodealgumoutroounãorecebes-se algo de seu modelo, não seria mais imagem dele, mas imagem deumoutro. Dissoficaclaro ue,em uartolugar,aimagemdealguémé nicaemsimesmaeéimagems deum.Porissoéuenadeidadeé nicooFilho,esomentedeum,ouse a,doPai.

Ademais, em quinto lugar, do que foi dito é evidente que a ima-gem está no seu modelo. Com efeito, ela recebe nele todo seu ser. E vice-versa o modelo, enquanto é modelo, está na sua imagem, de modo que a imagem tem em si todo seu ser, de acordo com

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o14,11: EuestounoPaieoPaiest emmim .Mas,alémdisso,segue,emse tolugar, ueaimagemea uilodo ueéimagem,en uantotais,sãoums comodizoEvangelhode oão10: eueoPaisomosums .Diz somos ,en uantoomodeloe primeougera,en uantoaimagemée pressaougerada um ,en uan-to todo o ser de um está no outro, e ali não há nada de alheio. Ainda,emsétimolugar:estae pressãoougeraçãodaimageméumacertaemanaçãoformal. Emoitavolugar:aimagemeomodelosãocontempor neos–eistoéo uea uisediz, ueoVerbo,aimagem,estavaemprinc pio untodeDeus–,assim uenem o modelo pode ser entendido sem a imagem, nem a imagem semomodelo,comoest escritoem o14: uemv amim,v omeuPai. Alémdisso,emnono lugar:ninguémconheceaimagem senão o modelo, nem o modelo senão a imagem, como est escritoemMateus11: ninguémconheceoFilhosenãooPai,eninguémconheceoPaisenãooFilho .Arazãodissoé ueoserdeleséums ,enãoh nadadealheioentreosdois.Masosprin-cípios do ser e do conhecer são os mesmos, nem alguma coisa é conhecida pelo que é alheio”11.

As propriedades da imagem, portanto, resultam ser as seguintes: proced nciadaorigem,relaçãoe clusivaimagem-modelo,unicida-de, reciprocidadee localização, identidadeeunidadenadistinção,resultado de uma emanação formal, contemporaneidade, princípio de conhecimento.

O modelo e a imagem são dois aspectos de uma única realida-de:oprimeiroativo uee prime,gera,mas,sobretudo see prime ,segera , sere ete ,eosegundoreceptivo, ueée presso,gerado,

formado como imagem. Em virtude desse evento, as duas realidades sãoumacoisas (unum),serealizamunitariamente,semnadae terior,sem mediação, sem diferença. Se assim não fosse, a plenitude do even-to permaneceria inacabada.

Omestredominicanotraz tonaocar terdin micodarelaçãoimagem-modelo através da metáfora da emanação (emanatio), sem pre-judicar a unidade dos dois. Isto aparece também na quarta caracterís-tica da imagem no Sermo XLIX: Em uartolugar, ue aimagem ée pressaee u daapartirda uilode ueé imagem 12. O fato de a

11 MEISTER ECKHART. Die Lateinische Werke. Op. cit., In Ioh, 2 -2 . III,19,5–21,5.12 Ibidem,509,8.

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imagemserumaemanaçãoformalée plicadocommaisclarezalogoem seguida:

Imagememsentidopr prioéumaemanaçãosimples,formal,que transmite toda a essência, pura e nua, como o metafísico a considera,ap se cluiracausaeficienteefinal, uefazempartedoestudodanatureza uecompeteaof sico.Portanto,aimageméumaemanaçãodesdeo ntimo,nosil ncioenae clusãodetodae terioridade,umacertavida,e uesepoderiarepresentarcomoalguma coisa que a partir de si mesma e em si mesma intumesce e ferve, mesmo sem ainda pensar na ebulição” (Sermo XLIX )1 .

Omododeaimagemseproduzir,en uantoemanaçãoformal,nãoenvolveascausaseficientesefinais ueoperamnon veldacria-ção alémdisso,a uiéapr priaimagem ueseproduzapartirdelamesma. O processo da emanatio se distingue da factio e da creatio, por-uenaemanação algoproduzapartirdesimesmoeemsimesmo,umanaturezanua uesedifundeformalmente,semaintervençãodavontade que, antes, é concomitante” (Sermo XLIX)14.

Omestredominicano,emvirtudedarelaçãoe clusiva ueh entre modelo e imagem, alça essa última a princípio de conhecimen-to, retomando o argumento aristotélico segundo o qual o semelhante se conhece pelo semelhante. O conhecimento, que implica uma seme-lhançaentresu eito ueconheceeob etoconhecido(Filho-Pai),procu-ra uma identidade entre os dois termos. Na esfera inteligível, à qual pertence o ser original das coisas antes de sua criação, o conhecido e aquele que conhece formam um único ser:

“esta é a força do conhecimento que, separando para unir, es-tabelece entre o espírito e seu objeto uma identidade no ser. Eckhart retorna constantemente a esse tema que permite com-preender o fundo de toda sua intenção : nos conduzir paraconhecer a Deus, despindo-nos de tudo neste conhecimento e tornando-nos um com ele”15.

1 Ibidem,510,15-20.14 Ibidem,511,7.15 MBR NN,E.eDE IBERA,A. Maître Eckhart: Métaphysique du verbe et théologie negative.

Paris:Beauchesne,1994,p.15.

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A teoria do conhecimento eckhartiana estabelece a identidade dos princípios do ser e do conhecer, na qual o intelligere funda a rea-lidade e a imagem pertence à esfera intelectual: o ápice dessa identi-dade, para o turíngio, é o nascimento do logos no fundo da alma, grau supremodoconhecimento,cu o mbitoderealizaçãoésupra-racional.

4 O il Nos escritos de Eckhart em vernáculo, o campo semântico-

-conceitual da palavra neutra Bild é caracterizadoporumavariaçãode significadosbastante ampla.O car ter especularda imagem, emparticular,éumamet forautilizadapelomestredominicanoparare--velar (na dupla acepção de “re-cobrir com véu” e, contemporanea-mente, “desvelar”) o mistério da unio na qual Deus e a alma coincidem no mesmo fundo (Grund), mantendo, porém, suas individualidades.

As propriedades da imagem individuadas a partir do Comen-t rioaoEvangelhode oão,encontramseuscorrespondentesnasobrasalemãs,particularmentenaPr.1 b:

“Toda imagem tem duas propriedades. A primeira é que recebe seu ser imediatamente daquilo do qual é imagem, para além da vontade, pois tem uma procedência natural e irrompe da natu-rezacomoogalhobrotada rvore. uandoorostoécolocadodiantedoespelho,émister ueorostosere itaali, uer ueirauernão.Masanaturezanãoseformanaimagemdoespelho antesdisso,aboca,onariz,osolhosetodaaconformaçãodoros-to–issosereproduznoespelho.MasDeusreservouistosomen-te para si mesmo: onde quer que Ele forme a sua imagem, sua na-turezaetudoa uilo ueEleéepodeoferecer,semintervençãodavontade poisaimagemestabeleceumafinalidade vontade,e a vontade segue a imagem, e a imagem tem a primeira irrupção danatureza,pu andoparadentrodesio ueanaturezaeoserpodemapresentar,eanaturezasee travasatotalmentenaima-gem e permanece inteiramente em si mesma. Assim os mestres não colocam a imagem no Espírito Santo, mas antes a colocam na pessoa intermediária, porque o Filho tem a primeira irrupção da natureza porissoElesechama,emsentidopr prio,umaima-gemdoPai,masnãoassimoEsp ritoSanto:eleé(antesdisso)s uma oraçãodoPaiedoFilho,eassimpossuiumanatureza

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com ambos. Mas a vontade não é um mediador entre a imagem eanatureza sim,nemoconhecer,nemosaber,nemasabedoriapodem ser aqui um mediador, porque a imagem divina irrompe semmediaçãodafecundidadedanatureza.Seh ,porém,a uiummediadordasabedoria,eleéapr priaimagem.Porisso,nadeidade,oFilhosechamasabedoriadoPai 1 .

Como foi evidenciado anteriormente, Eckhart se insere na tra-diçãoteol gicadoFilhocomoimageminterpretandoemmodopecu-liar o dogma, quando aplicado ao homem criado “à imagem e seme-lhança .OFilhocomoimagemdoPaimanifestaarelaçãoontol gicaimediata entre a imagem e sua origem: esta recebe sua essência sem mediação, de tal forma que, conhecendo o Filho, se conhece também o Pai. oss escreve:

OFilhoéaImagemnaturaldoPai,por uesuageraçãoéumaemanaçãosimples , formal ,uma transfuçãodaEss nciatotal ohomemé imagemdeDeus , imagemde todaa rinda-de ,por ueeledevealcançara conformidadedanatureza comDeuspela regeneração .AgeraçãonaturaldoFilho nicoeare-generaçãodosfilhosadotivospela raçat momesmoprinc pioformal: o Ser total de Deus ou a Essência divina que se tornou operante,geradora,napessoadoPai 17.

A partir desse princípio, o locus proprius do conhecimento está entre o modelo e sua imagem que, pelo fato de ser um vetor do conhe-cimento, não pode contê-lo em si: “Há muitos desses mestres cuja opi-nião é de que esta imagem nasceu da vontade e do conhecimento, mas nãoéassim aocontr rio,euafirmo ueessaimageméumae pressãodesimesmasemvontadeesemconhecimento (Pr.1 a )18.

Outra característica de BildéenunciadanaPr. 9,a ui,parti-cularmente, em termos de “ausência”, pois, além de não haver nem conhecimento e nem vontade, a imagem subsiste “sem imagem”:

Masnesse espelho eunãove oamãoouapedra(emsi),aocontrário, eu vejo uma imagem da pedra; porém, não vejo esta

1 MEISTER ECKHART. Werke I. Op. cit., p.189.17 OSS ,Op. cit.,p. 0.18 MEISTER ECKHART. Werke I. Op. cit., p.18 .

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mesma imagem em outra imagem ou em um elemento interme-diário, mas sim imediatamente e sem imagem, porque a imagem (mesma) é o elemento intermediário e não há outro, pois a ima-gem é sem imagem e a corrida sem corrida – ela causa a corrida –, eagrandezaésemgrandeza,masatornagrande eassimaima-gem é sem imagem, pois ela não é vista em uma outra imagem”19.

Essemododeescreverparado al,t picodoestiloec hartiano,é o traço distintivo da sua teoria do conhecimento: a imagem enquanto imagem não possui nenhuma imagem concreta, e a ideia da corrida nãotemnenhumacorridaconcreta.Assim,oconceitodegrandezaest semgrandezamensur vel,maséa uilo uepermiteamensuração.Portanto,aimagemen uantotalest semimagemvis velenãopodeser vista em outra imagem. Do ponto de vista da relação imagem--modelo, como entre os dois não pode haver nem conhecimento, nem vontade,nemtempoenemespaço,tampoucopodee istiroutraima-gem que prejudique sua unidade. Estritamente falando, não é somente outra imagem que pode prejudicar a unidade imagem-modelo, mas tambémapr priaimagem:ela,conse uentemente,devee istir semser-em-si , pois recebe todo seu ser nica e e clusivamente do seumodelo.Essaambiguidadeontol gicadaimagem, evidenciadaporProclo,tinhasidoenunciadaanteriormentepelotur ngionasuapri-meira Quaestio parisiense Utrum in Deo sit idem esse et intelligere: “Assim, também, a imagem enquanto tal é um não-ente, porque quanto mais tu consideras sua entidade, tanto mais ela te afasta do conhecimento da coisa da qual é imagem”20.

Paraaimagemrealizarsuafunçãomediadoradeconhecimen-to, deve desaparecer enquanto meio. Semelhantemente, o ser humano, pararealizar-seplenamentecomoimago Deieassumirsuanobrezaemvirtude da identidade com o divino no fundo da alma, “deve apartar--se de todas as imagens e de si mesmo, e distanciar-se e desasseme-lhar-se de tudo isso, se é que realmente quer e deve acolher o Filho e tornar-sefilhonoseioenocoraçãodoPai (VeM)21. 19 MEISTER ECKHART. Werke II. Op. cit., p.47.20 Ibidem, p.54 .21 Vom edlen Menschen(Dohomemnobre).D V,p.500.Cf.tambémMEIS EREC HAR .O

Livro da Divina Consolação e outros textos seletos. Petr polis:Vozes,1999,4 ed.,p.94.

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5 P A an lise dos fundamentos filos fico-teol gicos da teoria do

conhecimento de Meister Eckhart, através do conceito da imago-Bild, torna possível uma sua apresentação e interpretação a partir desse mesmo conceito que é um verdadeiro princípio hermenêutico. A partir desse intuito, três são as perspectivas individuadas:

a) perspectiva hermenêutica: a imago-Bild é uma categoria que per-miteumaleiturasincr nica-diacr nicadaproduçãote ricadoMagister dominicano,au iliandonacompreensãodosaspectosfundamentaisdeseupensamento, svezesnemsempremeridianamenteclaros

b)perspectivateol gica:aimago-Bild é uma realidade conceitu-al ueforneceosinstrumentoste ricos uealicerçamaspossibilidadesde um discurso sobre Deus hoje;

c) perspectiva ética: a imago-Bild não é apenas uma realidade conceitual, um instrumentum intellectualis, mas é também um instru-

mentum laboris, um critério prático fundamental para o discernimento éticoemvistadarealizaçãoda ustiçaedabuscadafelicidade.

Se, para Meister Eckhart, a imago-Bild é uma “imagem sem ima-gem ,significa ueelaéore e odonada.Contudo,essaaus nciadesiemsimesma,éumapossibilidadeparadescobrirnovoshorizontesque tornem possível o conhecimento do Absoluto.

5.1 Perspectiva hermenêutica: o conhecimento de Deus segundo eis er c ar

Em consonância com a tradição (principalmente com Santo Agosti-nho), o mestre dominicano distingue três tipos de conhecimento na alma:

“O primeiro é o conhecimento das criaturas, que se podem com-preender com os cinco sentidos, e de todas as coisas que estão presentes ao homem. Com esse não se pode conhecer a Deus plenamente, pois elas as criaturas são grosseiras.O segundoconhecimentoéespiritual,esepodetersemapresença doob-etodoconhecimento ,assimcomoeupossorepresentar-meumamigo, uetinhavisto(s umavez)anteriormente,distantedemimmaisdemilmilhas. ... Oterceirocéuconsisteemumco-nhecimento espiritual, no qual a alma é retirada de todas as coi-

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sas(materiais)presentesecorporais. seescutasemvozeseconhecesemmatéria. nãoh nembranco,nempretoenemvermelho. Nesse conhecimento puro a alma conhece a Deus ple-namente,comoéumnanaturezaetrinonaspessoas (Pr. 1)22.

Os graus do conhecimento aqui apresentados por Meister Eckhart correspondem ao esquema escolástico que começa pela per-cepção sens vel, passapelas representaç esdamem ria e alcançaoconhecimento espiritual propriamente dito. O turíngio, entretanto, in-troduzumanovidadenessepercursocognitivo:paraatingiro picedo conhecimento, que é “conhecer a Deus plenamente”, é necessário abandonar todas as imagens materiais. Nesse sentido, o movimento nãoprocededascoisasparaocriador,doe teriorparaointerior,pormeio de um processo abstrativo, mas tem origem no ser humano e se moveparaforadele.Ointelectohumano,namedidaem ueéore e-odeDeus,temacapacidadedeconhecerverdadeiramenteascoisas.

Dei arde ladotodasas imagensmateriaisnãosignificaumadesvalorizaçãodoconhecimentosens vel,por uesuaimperfeiçãonãose deve à dependência das coisas, mas na pretensão humana de tornar absoluto esse conhecimento, outorgando às coisas (e às imagens) uma importância que elas não têm. A atitude interior do ser humano, ao contrário, deve ser o desprendimento (Abgeschiedenheit).Porestarazão,Eckhart mantém unidas a teoria do conhecimento aristotélico-tomista, estruturada em graus diferentes a partir da percepção sensível, e uma teoria do intellectus que dá prioridade ao conhecimento interior, além de toda representação material. No tratado Do homem nobre, o mestre dominicanoretomaadistinçãopaulinaentrehomeme terior(velho)ehomeminterior(novo), utilizadanoSermo VII,parasimbolizaressasduas orientações do conhecimento:

“Importa saber, em primeiro lugar – como, aliás, é claro e mani-festo– ueohomemtememsiduasespéciesdenatureza:corpoeesp rito.Porissodizumescrito: uemseconheceasimesmo,conhece todas as criaturas, pois todas as criaturas são ou corpo ouesp rito.EaEscrituradizdohomem ueh emn sumho-meme terioreumoutro,ohomeminterior 2 .

22 MEISTER ECKHART. Werke I. Op. cit., p. 45- 47.2 Ibidem,p. 15.

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Amet fora uemaissintetizaessateoriadoconhecimentoéoes-pelho. De fato, o conhecimento do Absoluto se torna possível enquanto re e odaimagemdeDeusnaalma ue,pormeiododesprendimento,não somente é despojada de toda e qualquer imagem alheia, mas, pelo fatode ter se tornado tão clara e transparente, est apta a re etir a“imagem sem imagem”. O processo do conhecimento se manifesta na unidade de conhecer e ser conhecido, em virtude do qual

“conhecer a Deus e ser conhecido por Deus, ver Deus e ser visto porDeuséumas coisa.Nisson sconhecemosevemosDeusen uantoElenosfazvereconhecer.Assimcomooar ueéilu-minado não é outra coisa que aquilo que ilumina, porque (pre-cisamente)poressarazãoele ilumina,por ueeleé iluminado,assimn stambémconhecemospor uesomosconhecidoseEle(Deus)sefazconhecerporn s (Pr.7 )24.

Estepodeserdefinidocomoo picedateoriadoconhecimentoeckhartiana, pois o mestre dominicano não deseja tanto esclarecer o percursonaturaldoconhecimento,masantese plicar ueauniãocomDeus e a geração do logos no fundo da alma é um evento eminente-mente intelectual que compreende em si o conhecimento de todas as coisas.Nãoé,portanto,omundoe terior uetornaposs veloconhe-cimento, mas é o intelligere que lhe dá o fundamento, de tal forma que não há duas fontes de conhecimento distintas (uma sensível e outra inteligível), tampouco dois objetos diferentes, mas a mesma realidade distinguível na sua aparência e na sua essência.

5.2 Perspectiva teológica No âmbito das religiões, hoje em dia se assiste à presença de

duascaracter sticasbastantecomuns(emboranãoe clusivas), uesãocomplementares e interligadas entre si, como duas faces da mesma moeda: a “nova apologética” e o “fundamentalismo”. Diante desse pa-norama, percebe-se que, para falar de Deus hoje, é necessário buscar outros paradigmas para os quais a teoria do conhecimento de Meister Eckhart pode representar um princípio norteador.

24 MEISTER ECKHART. Werke II. Op. cit., p.127.

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5.2.1 Minima via, maxima irruptio Otur ngiorelativizaereduzaom nimoamet foradeumca-

minho espiritual por etapas porque, para ele, o nascimento do homem no espírito de Deus é um evento radical que transforma tudo, é uma ir-rupção uenãocontemplagrausdiferentes,masum nicofim:auniãodo ser humano com Deus. Essa irrupção é, em primeiro lugar, uma ascensão do intelecto para Deus, cuja conditio sine qua non é transcender as imagens:

“Em segundo lugar, principalmente, deve-se notar como, segun-dooDamasceno,aoraçãose a umaascensãodointelectoparaDeus .Portantoo intelectonãoalcança(Deus)emsi,anãoserque ascenda. Mas a ascensão é para algo superior. É necessário, portanto, transcender não apenas as coisas que se podem ima-ginar, mas também os inteligíveis. Igualmente, enquanto o inte-lecto se abre para o ser, é necessário transcendê-lo também. De fato, o ser não é causa do ser, como o fogo não é causa do fogo, mas algo bem mais elevado, para o qual é necessário ascender. Além disso, o intelecto apreende Deus sob a veste da verdade, e poressemotivoénecess rio ueeleascenda.Deondediz: paraDeus .Defato,aalmadeveultrapassaropr prioDeussobestenome, ou melhor, sob todo nome” (Sermo XXIV)25.

O fato de a ascensão do intelecto para Deus ser uma irrupção, é mais um indício de que a metáfora da via não tem muita relevância na produçãoteoréticadeMeisterEc hart.Porconseguinte,a uestãodeualcaminhoutilizarparachegaraDeus,nãoassumeparaelegrandeimport ncia.O uemaiscontaéconhec - oefetivamente,comacons-ciência de que “de modo algum os homens são todos chamados por um único caminho a Deus”2 , assim como não há apenas uma via a ser seguida na busca do conhecimento do Absoluto:

Cadaum,portanto,fi uecomoseumodobomeintegreneleto-dos os demais modos e abrace pela sua maneira tudo que é válido em todos os modos. Mudanças de maneiras levam à inconstância tantonasmaneirascomotambémopr prioesp rito.O ueum

25 MEISTER ECKHART. Die Lateinische Werke. Op. cit., IV,247,1-9.2 MEISTER ECKHART. Werke II. Op. cit., p. 85.

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método pode dar, também se pode obter por outro, desde que este seja bom e louvável e nele se procure a Deus. De resto, nem todos os homens podem seguir um único caminho” (RdU)27.

5.2.2 O próprio Deus dá o modo (sine modo) de conhecê-Lo

Um aspecto interessante da posição eckhartiana é que, se por um ladosustenta uecadapessoah depossuirummodopr priodeco-nhecer a Deus, como fosse uma peça de roupa cortada sob medida, do outroafirmaclaramente ueéopr prioDeusadeterminaromododesse conhecimento que é, mais propriamente, um modo sem modo. Porissooimperativoec hartianoé ueoserhumanoseesforceparaencontrar Deus em todas as coisas, como alguém “que procura a Deus em todo o tempo, em todos os lugares e juntos a todos os homens e em todas as condições. Nisso pode crescer e fortalecer-se sem cessar, sem nuncachegaraofimdoaumento 28.

OfatodeserDeusadarosdiversosmodosparaencontr - o,éarazãopela ualoserhumano, ueprocuraconhec - o,deverenunciaratodapretensãodepossuirocaminhocertopararealizaresseconheci-mento, ues podeseralcançadosine modo.PorissoEc hartescrevenaPr.71: SedeveapreenderDeuscomomodosemmodoecomosersemser,poisElenãotemnenhummodo.PorissoBernardodiz: uemdeveconhecer-te, Deus, há necessariamente de medir-te sem medida”29. O mestre dominicano convida, dessa forma, a romper todas as estruturas r gidasdae ist nciahumana,todasasamarrasdosmodosdetermina-dosdebuscaraDeus.Emboracadapessoatenhaummodopr priodeprocuraraDeus,Ele, ueésemmodosesemlimites,e ige uetambémquem O procura seja sem modo. Não há outra via para se chegar a Deus que ser sem via e sem modo: a via é uma não-via e o modo o não-modo.

5.2.3 Dizer Deus sem palavras

A teologia negativa desenvolvida pelo turíngio é uma marca característica do seu pensamento. O discurso sobre Deus por parte

27 Ibidem, p. 87.28 MEISTER ECKHART. Werke II. Op. cit., p.419.29 Ibidem,p.79.

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dacriaturaé,muitasvezes,uma tagarelice.Ossereshumanosestãopropensosafazertudocomintençãoego sta,apropriadora, uerendopossuir tudo somente para si, inclusive Deus e a sua imagem.

Deus não é um objeto de consumo e sua imagem não pode ser utilizadaparadefender uais uerprivilégios,aos uaisdeverenun-ciartodoa uele ue uerseapro imardele,se amelesaconvicçãodepossuir a verdade ou o melhor caminho para o conhecimento do Ab-soluto( ueest acimadetodaformadesaber).Porisso,avia do silên-cioéa uemaiscondizcomocar terinomin veldoDeus absconditus, nãofazendodeleumob etodediscurso.Parado almente,contudo,omestre dominicano escreve que “um homem bom não gosta de falar de outra coisa a não ser de Deus” 0(Pr.1 ).Issosignifica ue,ofalarsobre Deus, é consequência in primis de uma atitude ética. O primeiro passo, no entanto, cabe sempre a Deus: é Ele que quer manifestar sua presença, sua ottheit, seu desejo de tornar o ser humano igual a Ele. DizerDeussempalavras,porconseguinte,éreconhecer uel ondese encontra a ap fasemais radical, se cria tambémumespaçoparanovasformasdee pressão,acomeçarpelotestemunhoconcreto:neleéopr prioDeus uefaladesimesmo,convidandooserhumanoaparticipar da sua plenitude, chamando-o para uma vida na pura posi-tividade do ser que, enquanto absoluto, racional e divino, conhece no espelho de si mesmo todas as criaturas.

5.2.4 Uma imagem de Deus despida da veste religiosa

O ser humano, enquanto ideia eterna na mente de Deus, é, do pon-to de vista da eternidade, imagem do intelecto divino. Falar de Deus hoje, portanto, é reconhecer que todo ser humano pode participar ati-vamente da geração do logos na medida em que acolhe em si mesmo a atividadedeDeuseseespelhanaimagemdele,re etindo-asemcessar:

Mascomoeudisseantes:oPaido céu te dá sua palavra eterna enessamesmapalavrated suapr priavida,seupr prioseresuadeidade poisoPaieapalavrasãoduas pessoas e uma vida e um ser,indiviso. uandooPaiteacolhenessamesmaluz,paraue tu contemples conhecendo essa luz nessa luz, segundo omesmomodopr priocomoEle,nessapalavra(naluz),conhece

0 Ibidem, p.159.

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a si mesmo e a todas as coisas em seu poder paterno, (como Ele conhece) a mesma palavra segundo intelecto e verdade (secun-dum rationem et veritatem), como eu disse, Ele te dá o poder de gerar, com Ele mesmo, a ti mesmo e a todas as coisas, e precisa-mente(ted )suapr priapot ncia,totalmente,como mesmapalavra.Assim,pois,tugerassemcessarcomoPai,napot nciadoPai,atimesmoeatodasascoisasemuminstantepresente.Nessaluz,comoeudisse,oPainãoconhecenenhumadiferençaentre ti e Ele, nem maior nem menor vantagem do que há entre Eleeamesmapalavra.PoisoPai,tumesmo,todasascoisaseamesma palavra são umnaluz (Pr.49) 1.

Falar de Deus hoje, de acordo com o paradigma eckhartiano da imagem,éfalardeumDeus uenãoémaissuficiente comtudoa ui-lo que é como Deus”, em virtude da unidade intrínseca que, a partir do retorno a Ele, se estabelece com o ser humano. Além disso, não se deve esquecer que a alma, desde sua constituição, possui a faculdade de conhecer a Deus em modo divino, no não-conhecimento de si mesma e de todas as coisas. O poder de conhecimento do intelecto humano é, na realidade, a possibilidade de alcançar a primeira imagem no fundo divino: “Ora, a alma tem o poder de conhecer todas as coisas, por isso não repousa jamais até chegar à primeira imagem, onde todas as coi-sas são um, e lá encontra repouso, isto é: em Deus. Em Deus nenhuma criaturaémaisnobredo ueaoutra (Pr. ) 2.

5.3 Perspectiva ética: à procura da justiça e da felicidade

A imago-Bild apresenta uma dimensão ética individuada no

tema do homem justo gerado na justiça, fundamental ao interno da es-peculação eckhartiana. A respeito dela, o mestre dominicano escreve:

uemamaa ustiça,deleseapoderaa ustiça,eleétomadopelaustiçaeeleéa ustiça.Certavez,euescreviemmeulivro:oho-mem justo não serve nem a Deus e nem às criaturas, pois ele é livre e uantoémaispr imoda ustiça,tantomaiseleéapr -prialiberdade,etantomaiseleéaliberdade (Pr.28)33.

1 Ibidem, p.519.2 Ibidem,p.4 .

33 Ibidem,pp. 19- 21.

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ustiça e liberdade formam uma unidade incind vel, igual ue e iste entre a imagem e seumodelo portanto, não pode haveraprimeirasem uee istaasegunda,evice-versa.Ora,oconceitodejustiça de Meister Eckhart não tem as mesmas implicações que o con-ceito moderno pode apresentar, mas mesmo assim seu ensinamento continua vivo e atual em relação à atitude de fundo que, na procura do ueé ustoetornaohomemfeliz,a udaae aminarmaisatentamente

as situações de justiça (ou de falta dela) e, consequentemente, à for-mação de um discernimento mais atinado em relação ao que deve ser concedido ou deve ser negado. O ensinamento de Eckhart, contudo, não se limita à indicação de uma atitude de fundo que deve ser aceita e respeitada por quem procura a justiça, mas vai muito além. Se o con-ceito de imago-Bildcaracterizafundamentalmenteadignidadedetodoser humano, então toda injustiça cometida contra ele é uma injustiça contraopr prioDeus.

A perspectiva segundo a qual a imago-Bild pode ser interpreta-da como um critério prático fundamental em vista do discernimento que norteie a busca da justiça e da felicidade se torna meridianamente clara em relação à ética do ser que o turíngio descreve no tratado Con-

versações Espirituais:

“As pessoas não precisam pensar muito naquilo que devem fa-zer elasdevemre etirantesna uilo uesão.Ora,seaspesso-as e suas atitudes forem boas, suas obras poderiam brilhar com toda claridade. Tu és justo, então tuas obras são justas. Não se penseemfundamentarasantidadeemumfazer antesdisso,de-ve-se fundamentar a santidade em um ser, pois as obras não nos santificam,massomosn s uedevemossantific -las.Pormaissantas ueforemasobras, amaisnossantificam,en uantosãoobras,mas:namedidaem uen ssomossantosepossu mosoSer,assimsantificamostodasasnossasobras,se amelascomer,dormir, acordar ou qualquer outra coisa. Aqueles que não são de umserelevado, uais uerobrasrealizem,nãoconseguemnadadisso.Dissoconhece uesedeveusartodozeloparaserbom,-nãotantoassim,porém,paraa uilo uealguémfazouparaotipo de obras dele, e sim com o fundamento das obras” 4.

4 MEISTER ECKHART. Werke II. Op. cit., p. 4 .

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Ho eécadavezmaisnecess rioressaltaraimport nciada uelaspessoas ue,comoMeisterEc hart,tentaramtrazer tonaavocaçãoessencial do ser humano enquanto imago-Dei e imagem da justiça, em oposição uelas uesempreconduziramahumanidadenocaminhodoshaveresedapropriedade, ues lheproporcionaramailusãodeuma felicidade efêmera.

O conhecimento humano depende da mediação de imagens abs-tra dasde realidadesmateriais,mas ue,por si s , são insuficientespara ustificaracapacidadedoserhumanodealcançarafelicidade.Defato, esclarece o turíngio, “nenhuma criatura pode ser a tua felicidade, pois nenhuma pode, aqui na terra, ser a tua perfeição; a perfeição desta vida (terrena) – que são todas as virtudes juntas – segue a perfeição da vida do além” 5. A felicidade futura não está atrelada a um conhe-cimento por imagens que, além disso, nem pode ser assumido como modelo de perfeição da vida terrena.

Meister Eckhart, lançando mão da imago-Bild,traz tona,porum lado, os limites do conhecimento humano e, do outro, a necessi-dade de procurar o fundamento de um não-conhecer que é o único caminhoparasechegaraoincognosc vel.Ap st -loindividuadonofundo da alma, e considerando que “Deus não é nunca e em nenhum lugar Deus a não ser no intelecto”36, quanto mais a alma ou o intelecto estiver perto do seu fundamento, mas estará perto de Deus.

A dinâmica da imago-Bild, caracterizadapelosp losda iden-tidade e da distinção, torna possível a manifestação da deidade (Got-

theit)nofundodaalmanamedidaem ueseverificaadescontruçãodetodae ual uerimagem,afimdecriarovazioimprescind vel re-velação da única imagem verdadeira que é, na sua essência, uma “ima-gemsemimagem . uantomaisaalmaestiverdespo adadeimagens,mais aberta estará para conhecer o divino e maior será sua consciência de ser igual a nada.

5 Idem.36 MEISTER ECKHART. Die Lateinische Werke. Op. cit., IV, 04,2.

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PontodechegadadessaabordagemdateoriadoconhecimentodeMeisterEc hartéadescobertadofimderradeirodoconhecerhu-mano em busca do Absoluto: tornar-se a mesma “imagem sem ima-gem”. Meister Eckhart lança mão da metáfora do oceano para simboli-zarauniãoentreaalmaeDeus, picedoconhecimento:

Porissoumprofetadiz uetodasascoisassãotãope uenasemrelaçãoaDeuscomoumagotaemrelaçãoaomar(cf.Sb11,2 ).Sese derramasse uma gota no oceano, ela se transformaria no mar e não o mar na gota. Assim (também) acontece com a alma: quando Deus a atrai em si, ela se transforma nele, e assim a alma se torna divina, mas Deus não se torna a alma. Ali a alma esquece seu nomeesuapot ncia,masnãosuavontadeeseuser (Pr.80) 7.

Esteéopontofinaldateoriadaimagemec hartiana,ofundoda dissimilitudo infinita, no qual o ser e o nada convergem como em um abismo insondável e entre o fundo da alma (Seelengrund) e o fundo de Deus ( ottesgrund) não há mais distinção: “aqui o fundo de Deus é meu fundo, e meu fundo é o fundo de Deus” 8.

ERI O I,R. Sobre a possibilidade noética da felicidade. Uma aproximação sis-

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MASINI, F. Meister Eckhart e la mistica dell’immagine.In:VV.AA.Problemi reli-

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7 Ibidem,p.1 5.8 MEISTER ECKHART. Werke I. Op. cit., p.71.

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_________________ O Livro da Divina Consolação e outros textos seletos. Petr po-lis:Vozes,1999,4 ed.RASCHIE I,M. uaestionesEc hartianae:o noeoSer,aAlma,oAgoraEterno, oNascimentodo ogos.DissertaçãodeMestrado.Campinas: ni-camp,2004.VANNIER,M.-A. «Creatio» et «formatio» chez Eckhart. Reveu Thomiste, CIIe

Année, .XCIV,n .1, anvier-Mars1994MBR NN,E.eDE IBERA,A. Maître Eckhart: Métaphysique du verbe et

théologie negative.Paris:Beauchesne,1994.

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Entendo por ‘céu’ a ciência e por ‘céus’

as ciências”: as Sete Artes Liberais no

Convivio (c.1304-1307) de Dante Aliguieri

Ricardo Luiz Silveira da Costa

Universidade Federal do Espírito Santo

Dentre todas as bestialidades, é estultíssima, vilíssima e per-niciosíssima aquela que crê não haver outra vida depois desta. Casorevolvamososescritos,tantodosfilósofoscomodosoutrossábios escritores, veremos que todos concordam que existe em nósumaparte imortal. IssomaximamenteparecequererAris-tótelesno livroDe Anima; isto parece querer cada estoico; isto parece querer Túlio [Cícero], especialmente no livro De Senectute; istoparecequerertodopoetaquefaloudeacordocomafédospagãos; isto quer cada Lei, dos judeus, dos sarracenos, dos tárta-ros, e quaisquer outros que vivem segundo alguma razão. Caso todos estivessem enganados, seguir-se-ia uma impossibilidade quesóodizê-laseriahorrível(Convívio,II,8,9-10).1

1. 8.Dicoche intra tutte lebestialitadiquella stoltissima,vilissimaedannosissima,chicrededopoquestavitanonesserealtravita;per che,senoirivolgiamotuttelescritture,s de filosoficomedelialtrisaviscrittori,tutticoncordanoinquesto,cheinnoisiapartealcunaperpetuale. 9.EquestomassimamenteparvolereAristotile inquellode l Anima;questopar volere massimamente ciascuno Stoico; questo par volere Tullio, spezialmente in quello libellodelaVegliezza;questoparvolereciascunopoetachesecondolafedede Gentilihan-noparlato;questovuoleciascunalegge,Giudei,Saracini,Tartari,equalunquealtrivivonosecondoalcunaragione.10.Chesetuttifosseroingannati,seguiterebbeunaimpossibilitade,che pure a ritraere sarebbe orribile. Convivio(1304-1307),LivroII,VIII,8-10.Internet.

Carvalho, M.; Hofmeister Pich, R.; Oliveira da Silva, M. A.; Oliveira, C. E. Filosofia Medieval. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 333-355, 2015.

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Agl riadoSenhor, uetudomove/no niversodifunde-seeesplandece/ondemais,ondeme-nossecomprove(La gloria di colui che tutto move per l universo penetra, e risplende in una parte pi e meno altrove).2Detalhedeumailuminuradeumac piagenovesa(séc.XIV)daDivina Comédia de Dante(Norfol ,Hol hamHall,MS.514),folio11 .Danteascende uzdivinapelasmãosdesuaamada Beatriz.

I. A ilosofia tra icional Amor subst ncias se ara as o mo imento os astros

Antesdecolocar-secomofil sofo,opoeta.Nomundoda ilosofia tradicional,aPoesiaeraumadasformasposs veisdesee pressarfiloso-ficamente. Por isso, logo no início do Convívio (c.1 4-1 07),ap ssuge-rir ao leitor que a melhor maneira de explicar o conteúdo de sua obra era utilizar as interpretações literal e alegórica(asduasprimeiras ueoestudogramaticalnaIdadeMédiare ueria–asoutrasduaseramamo-

ral e a anagógica),Danteapresentaumacanção,Voi che ‘ntendendo il terzo

ciel movete.Nela,sedirige sintelig ncias uemovemoterceirocéude

2 DAN EA I IERI.A Divina Comédia.Para so(trad.enotasdeItaloEugenioMauro).SãoPaulo:Ed. 4,1998,CantoI,1- ,p.1 .

odaaAntiguidadev nospoetass bios,mestres,educadores(...)Oencantamentopodeestarnosentidofigurado:apalavradenotaomaispuroefeitodetodaapoesiaeindicaumaverdadevigenteeintemporal, uetranscendetodooconceitopedag gicodapoesia .C R-I S,ErnstRobert.Literatura urop ia e dade M dia Latina.SãoPaulo:EditoraH CI EC,199 ,p.2 .

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sua Cosmologia( ,literalmente,oestudo da ordem do mundo),com a alma chorosa e o coração magoado, mas papitante, com a suavida-de de sua vida interior.4 rata-sedeumlamento,umafraturae istencial,umdi logoem uemanifestaseumaravilhamentoporestardivididoentre a visão de sua nova paixão, uma gentil dama,eamem riadesuaamadaBeatriz,falecida, ueseencontranocéucoroado.

Essasintelig ncias,subst ncias separadas da mat ria, são os an os, impulsionadores da revolu ão dos c us, do c u de nus5, o terceiro céu de sua estrutura celeste, céu das almas dos amantes, daqueles apaixo-nados ueconduziramseusafetosde modo ordenado, ainda que pouco temperantes.

Vênus era então um toposmitol gico,liter rioefilos ficomuitorecorrenteentreosescritoresepensadores.Alémdedeusaol mpica,era(é)umplaneta.Conse uentemente,erafontedein u nciadocom-portamento humano. Quando um poeta minimamente conhecedor da FilosofiaescreviasobreoAmor,sabia uepersonificavaumacidente do ente, embora em relação a Vênus não tivesse tanta certeza. Seja como for,oleitmotiv da descrição dantesca do terceiro céu é o angustiante e ntimodilemadatraiçãoaoamorfalecidopeladonna gentile,con ito

emocional que poucos são capazes de entender. Por isso, Dante dirige seuapeloaocéudeV nus.Acitaçãodadeusagreco-romanadoamoreramuitorecorrentenaIdadeMédia.Pore emplo,naprimeirapartede omance da osa(c.1225),umadasobrasmaislidasentreossécu-losXIIIeXV7, Vênus é o apetite sexual,forçageradoradanatureza uepoderiasercontempladafilosoficamente.8

4 Para a discussão sobre a Canzone Prima do Convívio,verPA A IA,Mario. Voiche nten-dendoilterzocielmovete . reccani.it. L nciclopedia italiana.

5 ApalavraRevolução, inexistente em qualquer documento medieval sobre a sociedade civil, estava bastante presente nos tratados celestes, sempre com o sentido de movimento dos astros. Arevoluçãodoespet culodosplanetastraduziaomovimentodaordemharm nicaceleste.Paraisso,verDOMINI EIO NA-PRA . Ordem .In: E OFF, ac ues SCHMI ,ean-Claude.Dicion rio em ticodoOcidenteMedievalII.Bauru,SP:ED SC SãoPaulo,SP:ImprensaOficialdoEstado,2002,p. 05- 19.

NaDivina Comédia,DanteencontranoterceirocéuosbeatosCarlosMarteldeAn ou-Sic lia(1271-1295),anobreCunizzadaRomano(n.1198),obispoetrovadorFol uetdeMarsella(c.1155-12 1)eRaabe,prostitutade eric ( ue,posteriormente,teriaseconvertidoesecasadocomSalmon,personagemda rvoregeneal gicade esusCristo).

7 Porcercadedoisséculosessaobrade uillaumede orrisede eanClopinel ouChopinel deMeun,iniciadaantesde1240econclu daantesde1280,nãos dominoutotalmenteasconfiguraç esdoamoraristocr ticocomotambém,dadaari uezadesuasdigress esenci-clopédicasemtodasas reasposs veis,foiotesourodeondeaspessoascultase tra amoselementosmaisvivosparaasuaerudição –H I IN A, ohan. utono da dade M dia. SãoPaulo:CosacNaif,2010,p.178.

8 Ver E IS,C.S.Alegoria do Amor. m studo da radi ão Medieval.SãoPaulo: Realizaç es,2012,p.1 0.

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Porsuavez,aconsideraçãometaf sica-filos ficadae ist nciadeinteligências a moverem o universo não era nova, nem uma criação cristã.Oproblema,espinhoso,sempreforaodaorigem do movimento. NaobraDo Céu ( 50 a.C.),Arist teles ( 84- 22 a.C.) discorrerademodobastanteaprofundadosobreaforma esf rica do C u, a circularida-

de do movimento celesteeofatodeaatividadeimortaldeDeus( )ocorrer em um corpo circular–tudoalicerçadonoestudofilos ficodomovimento.9 emsuaMetafísica,oEstagiritadeduzira, ...combaseempes uisasdaci nciamatem ticamaisafim Filosofia,ouse a,aAstronomia 10 a existência de cinquenta e cinco inteligências a move-remos movimentoseternosdetranslação doscorposcelestes.11Nãofoidif cilaospensadoresmedievaisretraduziremassubst nciasaris-totélicassupra-sens veisemoventesdasesferascelestesnosan os.

9 AatividadedeDeusé imortalidade,ouse a,vidaeterna.Aconse u ncianecess riaéomovimentodivinosereterno.E,vistoseressaanaturezadocéu(umcorpodivino),porissoaeleéconferidoumcorpocircular,o ualnaturalmentemove-sesemprenumc rculo(...)OC necessariamentepossuiaformaesférica. rata-sedomaisapropriado suasubst ncia,alémdessaformaserprim riananatureza(...)omovimentocircularmaise teriordocéuésimpleseomaiscéleredetodos,eodasoutrasesferasmaislentoecomposto(considerando--se uecadaumarealizaseupr priomovimentocircularcontrariandoomovimentodocéu assim,érazo vel ue oastro ueseapresentacomoomaispr imodomovimentocircularsimpleseprim riolevemaistempoparapercorrersuapr pria rbita,en uanto oastro situadomaisremotamentelevamenostempo .ARIS E ES.Do céu(tradução,te tosadi-cionaisenotasdeEdsonBini).SãoPaulo:Edipro,2014, ivroII, ,9-10 4,10-12 10, 5291b1,8.,p.107,109e124.

10 OPrinc pioeoprimeirodosseresé im vel, tantoabsolutamentecomorelativamente,eproduzomovimentoprimeiro,eternoe nico.Ecomoénecess rio ueo ueémovidose amovidoporalgo,e ueoMoventeprimeirose aessencialmenteim vel,e ueomovimentoeterno seja produzido por um ser eterno e que o movimento único seja produzido por um ser nico(...)h tambémoutrosmovimentoseternosdetranslação,ouse a,odosplanetas(...)énecess rio uetambémcadaumdessesmovimentosse aproduzidoporumasubs-t nciaim veleeterna(...).Portanto,éevidente uedeverãoe istirnecessariamenteoutrassubst nciase uedeverãosereternasporsuanatureza ,ARIS E ES.Metafísica(ensaiointrodut rio,te togregocomtraduçãoecoment riode iovanniReale).SãoPaulo:Ediç eso ola,2005,vol.II( ivroDécimo-segundo,8,107 b, -5),p.5 9.

11 ARIS E ES.Metafísica, op. cit.,vol.II( ivroDécimo-segundo,8,1074a,12),p.57 .

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Diagrama cosmológicocomoc lculodasdist nciasnaesfera sublu-nar(aslinhasbrancashorizontais uecortama erra)edoisan-jos nas extremidades do mundo sublunar a girar as manivelas e assimimpulsionaremomovimentoda ua.MatfréErmengaudeBéziers, reviari d Amour,Catalunha(séc.XIV). ates hompson1,f.45.British ibrar ,Catalogue of illuminated manuscripts.

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O m reo or em a hierar uia

Antesdetratardosan os uemovemoscéus,Danterememoracriticamenteasconsideraç esdeArist telesePtolomeu(90-1 8)sobreon meroeaposiçãodoscéus.OEstagiritadefendeuae ist nciadeoitocéus,como ltimoacontertodososdemais,alémdasestrelasfi-as.Porsuavez,o orentinoaceitaosargumentosdePtolomeu,tantoporsuacapacidadedeobservação(com erspectiva, Aritméticae Geome-

tria) uantoporseuconstrangimento pelos princípios da filosofia aplicados aoassunto.Porisso,assimdefineaordemdoscéus:

1) ua2)Merc rio)V nus4)Sol5)Marte) piter7)Saturno8)Céudasestrelas9)Cristalino–céudi fano,dev riosmovimentos,e10) mpíreo (o céudoscat licos )–céudefogo,luminoso,im -

vel, céu do rimeiro Motor aristot lico12

12 O , o uesemovesemsermovido –Arist teles,Metafísica,XII,1072a.

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Nicole Oresme (c. 1 2 -1 72), Le livre du Ciel et du Mon-de (1 77). Paris, BnF, Manuscrits, Fr. 5 5, folio 9r. Ainda ueOresmetenhaproposto uea errasemovia(ideiacontr ria tradiçãocosmol gicaaristotélica/ptolomaica)eoscorposceles-tes é que estavam estáticos, manteve a estrutura e a ordem das esferas,comosev nodetalheacimadailuminuradofolio 9desuaobra.Debai oparacima: ua,Merc rio,V nus,Sol,Mar-te, piter,Saturno,oCéudasestrelaseoCristalino/Emp reo(re-presentado com Deus iluminado que abençoa Sua criação com a mãodireita.EmSuamãoes uerda,Eleportaumglobodourado.

Oacréscimodo mpíreo( )foiacontribuiçãodacosmolo-giacristã estrutura do mundo clássica ou, em outras palavras, a perso-nificaçãote tualdoespa o et reodasubst nciasupra-sens vel,im veleeterna,moventedouniverso,cu asubst nciaéopr prioato:Deus. Por

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mover como o que é amado1 ,Elefazo mpíreo girar com tanto desejo que sua velocidade é quase incompreensível:

9.E uesto cagionealPrimoMobileperaverevelocissimomo-vimento ch perloferventissimoappetitoch inciascunapartedi uellononocielo,che immediatoa uello,d esserecongiun-ta con ciascuna parte di quello divinissimo ciel quieto, in quello sirivolvecontantodesiderio,che lasuavelocitade uasi in-comprensibile. 10.E uietoepacifico loluogodi uellasom-maDeitadechesola s compiutamentevede. uestoloco dispiriti beati, secondo che la Santa Chiesa vuole, che non può dire menzogna eAristotilepareci sentire,achibenelo ntende,nelprimo De Caelo et Mundo.14EesteéomotivodeteroPrimeiroMotorveloc ssimomovimen-to ue,pelofervent ssimoapetite uesentecadaumadaspartesdaquele nono céu, que lhe é imediato, de se unir com cada parte daquele diviníssimo céu quieto, nele gira com tanto desejo que a suavelocidadeé uaseincompreens vel.E uietoepac ficoéolugar daquela suma Divindade que é a única que a si plenamente secontempla.Estelugaréodosesp ritosbeatos,consoante ueraSantaIgre a, uenãopodementir eArist telespareceperceberisso, para quem bem o entende, no primeiro livro do De Caelo et Mundo(Convívio,II, ,9-10).

Dante considerava o mpíreoapr priaestrutura do mundo.Masnãosetratadeumlugarf sico,ressalta,poisfoiconstitu donaMente Primeva( ueosgregoschamavamProtonoè).15 Lugar etéreo de Deus e dosesp ritosbeatos(sumamentefelizes) rata-se, uaseliteralmente,de uma releitura filos fico-liter ria cristã (com coment rios e corre-ç es,comovimos)dacosmologiaaristotélica/ptolomaica

1 Portanto, oprimeiromovente movecomoo ueéamado ARIS E ES,Metafísica, op. cit.,vol.II( ivroDécimo-segundo,7,1072b),p.5 .

14 Convivio rattato secondo. nternet.15 Ver BARO INI, eodolinda. l sses . In: he Dante ncyclopedia (ed. Richard ansing).

arland,2000,p.842.

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Deus no mpíreo a aben oar o cosmo.Abai o,océudasestrelas,odeSaturnoeode piter.Detalhedofolio 9rdeLe livre du Ciel et du Monde(1 77)deNicoleOresme(c.1 2 -1 72).Paris,BnF,Manuscrits,Fr.5 5.

Aseguir,antesdediscorrersobreo ueagente vulgar nomeia an-

os,Danterememoracriticameteasconsideraç esdeArist telesePla-tão(c.428- 28a.C.)sobreotema,métodorealizadopelopr prioAris-t telescomseusantecessores(tantonaMetafísica quanto em Do Céu).Aleitura ueo orentinofazdoEstagiritaécorreta:naMetafísica,Aris-t telesdefende ueasintelig nciassãotantas uantososmovimentosdoscéus(enoDo Céuparececonsiderardeoutromodo) porsuavez,tanto Platão, varão excelentíssimo, uantooutrosfil sofos,defenderamueh tantasintelig nciasnãos uantoosmovimentosdoscéus,mastambémemrelação sespéciesdascoisas.Platãochamou-asde deias, isto é,formas e naturezas universais( ivroII,IV).

Ninguémduvida–nemfil sofo,nempagão,nem udeu,nemcristão, nem ual uer seita – ue essas intelig ncias se encontrem

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cheiasdefelicidade,afelicidadeeternaesuprema(beatitudine).Aris-t telesparece uenãoseop eaisso,emseulivroXdaÉtica.1 Por sua vez,aIgre acr eprega ueessasnobil ssimascriaturas, uaseinume-ráveis, repartem-se em três hierarquias, cada uma com três ordens:

I. 1)An os2)Arcan os) ronos

II. 4)Dominaç es5)Virtudes)Principados

III. 7)Potestades8) uerubins9)Serafins

OPaiolhaaprimeirahierar uia,oFilhoasegunda,eoEsp ritoSanto a terceira, diz Dante.

Essahierarquia transcendental foramotivodeumaconsideraçãofilos ficain uent ssimadesdeoséculoV, uandoofil sofoPseudo--Dion sioAreopagitaescreveuseuCorpus Areopagiticum.17Apartirdeentão, esse pensamento, neoplat nico, que privilegiava os conceitos de ordem, de harmonia e de hierarquia (ali s, todosgregos18),moldou

1 Aatividadedointelecto,especulativa,ésuperioremmérito,nãovisaafimalgumanãosero uetranscendaasimesmaeéauto-suficiente.Porisso,todososatributosdoindiv duobem-aventurado sãovinculados a essa atividade e, portanto, essa é a felicidadehumanasuprema.ARIS E ES. tica a Nic maco(trad.,te tosadicionaisdenotasdeEdsonBini).Bauru,SP:EDIPRO,2007,p. 08,1177b115-27.

17 bras completas del seudo Dionisio Areopagita. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos(BAC),1995.

18 Por exemplo, o conceito de hierarquia ( )remontaaPlatão–ahierar uiadomundointelig vel,domundosens vel,edomundodas ideias–eemPlotino( n adas, III,2,17).Aharmonia ( ), ualidadedeordemeorganizaçãoinerenteaocosmos,éumdoscon-ceitosmaistipicamentegregos.Deorigempitag rica,elatemin meraspassagensnasobrascl ssicas. mabeladigressãoencontra-senoFédon (8 a-d).Porfim,adefiniçãodeordem,

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praticamentetodaapercepçãodarealidade,dapr priasociedade.19Omundomedievalpassoua severnela re etido.20 Com o peso dessa tradiçãofilos fica,Danteentãoafirma ueé razoável crer que haja uma analogia entre o número de céus e a hierarquia celeste: os movedores do céu da Lua são os An os,osdoMerc rioosArcan os, os de Vênus os ronos, etc.21Estes,nascidosdoamordoEsp ritoSanto,movimen-tamo terceiro céu, ueé cheiodeamor, e fazemcom ueasalmasdaqui de baixo sejam amorosamente acesas. Foi por isso que Virgílio (70-19a.C.)eOv dio(4 a.C.-17d.C.),naEneida e nas Metamorfoses, respectivamente, testemunharam em suas percepções do Terceiro Céu.

15.Esono uesti roni,chealgovernodi uestocielosonodis-pensati,innumeronongrande,delo ualeperlifilosofieperliastrologidiversamente sentito,secondochediversamentesen-tirode le suecirculazioni avvengache tu i sianoaccordati inuesto,chetantisono uantimovimentiessofae.22

Esãoestes ronos, ueparaogovernodestecéusãodesignados,emn meronão uantioso,o ualpelosfil sofosepelosastr lo-gos é diversamente entendido, segundo diversamente entendem dos movimentos dele; inda que todos acordem nisto de que são tantos uantosestes(Convívio,II,5,14).

disposição das partes, está na Metafísica: Disposição significaoordenamentodaspartesdeumacoisa:ordenamentosegundoolugar,ousegundoapot ncia,ousegundoaforma.Imp e-se,comefeito, uee istaumacertaposição,comosugereapr priapalavradisposi-ção ,Metafísica, ivro uinto,19,1022b.

19 Asordensegrausda uiabai osimbolizamasharmoniosasrelaç esdoReinodeDeus .PSE DODIONISIOAREOPA I A.A ierarquia Celeste,I, ,124a.

20 IO NA-PRA ,Domini ue. Ordem .In: E OFF, ac ues SCHMI , ean-Claude(co-ord.).Dicion rio em tico do cidente Medieval .Bauru,SP:ED SC SãoPaulo,SP:ImprensaOficialdoEstado,2002,p. 05- 19. Desdeuna pticarudimentariamentesociol gica, lassociedades de carácter estamental previas a las revoluciones burguesas se sitúan a medio camino entre las sociedades de castas , compuestas por unidades cerradas y endogámicas, y las sociedades de clases marcadas por la permeabilidad entre sus componentes y por una te ricaaperturadeoportunidadesparatodos –MI REFERN NDE ,Emilio. SociedadCulturacristianasenelOccidenteAltomedieval .In:MI REFERN NDE ,Emilio(co-ord.). istoria del cristianismo. . l mundo medieval.Madrid:Editorial ro a,2004,p.97.

21 ComodefendeArist teles:ascoisasematonãosãoiguaisentresi,masosãoporanalogia.Porisso, nãoénecess riobuscardefiniçãodetudo,maséprecisocontentar-secomcom-preenderintuitivamentecertascoisasmedianteaanalogia(...)Nemtodasascoisassedizemematodomesmomodo,mass poranalogia .Arist teles,Metafísica,IX,1048a, 5.

22 Convivio rattato secondo. nternet.

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Nãodei adesercuriosoofatode ue,comparadoao uedizoAreopagita,Dantecorporifica,oumelhor,trazocéudeV nus–comaordemdos ronos,respectivamente–paraomundodacarne,daspai es,doamor.Senãove amoso uedizofil sofodoséculoV:

O nome dos sublimes e e cels ssimos tronos indica ue estãomuitoacimade ual uerdefici nciaterrena,comosemanifestaporsuaascensãoatéoscumes.Estãosempredistantesde ual-quer baixeza e, como entraram inteiramente na vida eterna da presençada uele uerealmenteéoAlt ssimoeestãolivresdetoda paixão e cuidados materiais, estão sempre prontos para re-ceber a visita da Deidade, já que são portadores de Deus e estão prontos, como servos, para acolhê-Lo e Seus dons.2

IV. O C u e nus ete Artes iberais

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ComosPr ncipesdocéuestamosneste/giro,nestegirar,nasedeardente /aos uais,umdia,nomundo tudisseste: /– ós, de quem move o céu terceiro a mente–/etemostantoamor ueprateodar/umaparadaser conveniente(Noi ci volgiam coi principi

2 PSE DODIONISIOAREOPA I A.A ierarquia Celeste,VII,1,205d.

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celesti d un giro e d un girate e d una sete, ai quali tu del mondo gi dicesti: oi che intendendo il terzo ciel movente e sem sí pien d amor, che, per piacerti, non fia men dolce un poco di quiete).24 Deta-lhedeumailuminuradeumac piagenovesa(séc.XIV)daDivi-na ComédiadeDante(Norfol ,Hol hamHall,MS.514),folio 11 .À esquerda, Vênus, coroada, que aponta para cima, está acompa-nhadapelossignosde ouroede ibra.Entrementes, direita,Dante e Beatriz conversam animadamente.

ParaseconsolardamortedesuaamadaBeatriz,Dantep s-sealer duas obras: A Consola ão da ilosofia,deBoécio(c.480-525)25, e Da

Amizade,deC cero(10 -4 a.C.)2 Assimp deencontrarremédioparasuas lágrimas, entre as palavras daqueles autores, na ciência, nos li-vros,naFilosofia.Dodesconsoloo orentinopassouarecitar ós que, pensando, o c u terceiro moveis,eentendeu,graças Filosofia,osmove-dores do terceiro céu.

Danteentendepor céu aci nciaepor céus asci ncias, por sua ordemeporseun mero.ElencaPlatão,Avicena(c.980-10 7),Alga-zel(c.1058-1111),Arist teles eoutrosperipatéticos paraapresentarassemelhançasentreoscéuseasci ncias.Assim,alegoricamente,osseteprimeiroscéuscorrespondem sseteci ncias, sseteartesdoTri-

vium e do Quadrivium:

1) ua– ram tica2)Merc rio–Dialética)V nus–Ret rica4)Sol–Aritmética5)Marte–M sica) piter– eometria7)Saturno–Astrologia.

24 DAN EA I IERI.A Divina Com dia. araíso(trad.enotasdeItaloEugenioMauro).SãoPaulo:Ed. 4,1998,CantoVIII, 4- 9,p.58.

25 BO CIO.A Consola ão da ilosofia.SãoPaulo:MartinsFontes,1998.2 mae celenteedição,bil ngue,éadaFundaci BernatMetge.CICER .Leli (De l amistat)(in-

trod.,te trevisat,traducci inotesdePereVillalbaiVarneda).Barcelona:Fundaci BernatMetge,1999.

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As Sete Artes Liberais. ivroderegistrodabibliotecada niversi-dadede binger(séc.XV).Daes uerdaparaadireita:Geome-tria, Lógica, Aritmética, Gramática, M sica, ísica(aoinvésdaAstro-nomia)eRetórica.Abai o,asanalogiascomoscéus(reparenoSolsob a Gramática, enquanto para Dante deveria ser a Aritmética)ea Lua sob a Retórica (paraDante,seriaV nus).

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Ooitavocéu,dasestrelas,corresponderia F sica(Ci nciaNa-tural),oCristalino Ci nciaMoraleo mpíreo eologia.Comasres-pectivassubst nciasseparadasamoverasesferas,osistemaaleg rico--cosmol gicodantesconoConvivio é esse:

1) ua–Gramática –An os 2)Merc rio–Dialética –Arcan os)V nus–Retórica – ronos4)Sol–Aritmética –Dominaç es5)Marte–M sica –Virtudes) piter–Geometria –Principados7)Saturno–Astrologia –Potestades8)Céudasestrelas– uerubins9)Cristalino–Serafins,e10)Emp reo–Deuseosesp ritosbeatos.

ParacadaCéu,Danteestabeleceduaspropriedadesanal gicascom as Artes Liberais.OTrivium está relacionado aos três primeiros céus,maispr imosda erra.ALua e a Gramática são semelhantes pelaescassadensidadeeavariaçãodaluminosidade(osraiosdarazãonãopenetraminteiramentena ram tica,eseusvoc bulosv mevãoconformealuzda ua) oMercúrio e a Dialética se relacionam pela pe uenez epor sua cobertura.Merc rio é amenordas estrelas, e amais velada aos raios solares; como essa pequena estrela, a Dialética é a arte com menor extensão de todas e a mais velada, já que atua com argumentossof sticos(paraDante,inseguros).

Por sua vez, Vênus e a Retórica compartilham as belas virtudes da clareza e da suavidade:

13.ElocielodiVeneresipu compararealaRe oricaperdueproprietadi:l unas lachiarezzadelsuoaspe o,che soavissi-maavederepi chealtrastella l altras lasuaapparenza,ordamane or da sera.14.E uestedueproprietadisononelaRe ori-ca:ch laRe orica soavissimaditu elealtrescienze,per chea ciò principalmente intende; e appare da mane, quando dinanzi alvisodel uditorelore oricoparla,apparedasera,cio retro,uandodale era,perlaparteremota,siparlaperlore orico.27

27 Convivio rattato secondo. nternet.

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OcéudeV nussepodecomparar Ret ricaporduasproprie-dades: uma é a de que é tanta a clareza do seu rosto que, mais do que as outras estrelas, é suavíssima de ver; a outra é que aparece ora de manhãoradetarde.EestasduaspropriedadesestãonaRet rica:poisueaRet ricaésuav ssimaentretodasasci ncias,porisso ueaisto

principalmente aspira; e aparece de manhã, quando diante do ouvinte falaoret rico,aparecendodetarde,istoé,pordetr s, uandoporcar-ta,paraaparteremota,sefalaparaoret rico(Convívio,II,1 ,1 -14).

Aseguir,oQuadrivium.AAritmética e o Sol se relacionam por-uetodasasoutrasestrelasrecebemaluzsolareoolhonãopodefit --lo.Domesmomodo,daAritméticatodasasartesrecebem,dealgummodo, relações numéricas, e o olho não pode abarcar o número por-que, em siconsiderado,éinfinito,eisso incompreensível.28

Marte e a Música se harmonizam pela bela relação com os de-maiscéus,porMarteestarnomeio,no uinto(ou,emtermosmusicais,por ser a quinta D /Sol ,harmoniaperfeita)epor ueimarascoisascomseucalor.Comoele, aM sicaé inteiramente relacional, na har-monia das palavras, nos cantos, das notas, e sua melodia incendeia os esp ritoshumanos( uesãocomovapores do cora ão).

Júpiter e a Geometria se coadunam por serem temperados e ar-

g nteos. piter semove entre dois céus opostos sua temperatura,Marte ( uente) e Saturno (frio),de acordo comPtolomeu.Ademais,dentre asestrelas brancas, pitersedestaca,poisé uasearg nteo.Omesmoocorrecoma eometria,poistemoponto como princípio, e se moveentreopontoeoc rculo,entreoprinc pioeofim. alv ssimapor não ter mancha de erro: é certíssima.Sua mula,a erspectiva, a comprova.

Porfim,Saturno e a Astrologia.OcéudeSaturnotemduaspro-priedadescomparadas Astrologia:alentidãodosmovimentospelosdozesignoseofatodesuperartodososoutrosplanetas.SegundoDan-te, Saturno leva vinte e oito anos para percorrer os doze signos.

28 Passagem em que Dante mostra sua simpatia pelo itagorismo(chega,inclusive,acitarPi-t gorasnominalmente, conformeo uedizArist telesnoprimeirolivroda ísica, punha como princípio das coisas naturais o par e o ímpar, concebendo todas as coisas como núme-ro ,Convívio,II,1 ,18).

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Diagrama com os símbolos zodiacais(c.1 5-1 50,Avinhão,França)deOpicinusdeCanistris(129 -c.1 54).BibliotecaApostolicaVa-ticana,VaticanCit ,Pal. at.199 , folio 24r. Internet.Estecolori-d ssimoecomple of lio feitopoucoap samortedeDante(e,porisso,umbome emplodoambienteintelectualdeseutempo)concatenaumavasta uantidadedeinformaç es,muitomaisdoue ual uerumdosoutrosdesenhosdeOpicinus,conhecidopa-dre,escritor,m sticoecart grafodeseutempo.ODiagramaincluimaisdevintetiposdeconte dos,incluindoosprofetasb blicos,s mbolosdo od aco,doutoresdaIgre a, uatroordensmon sti-cas, os meses e dias, um mapa mundi implícito, a genealogia de

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Maria,personificaç esdaIgre a,osdonsdoEsp ritoSanto,os ua-trotiposdee egeseb blica,os uatroEvangelistas,osap stolose os nomes das cartas de Paulo, o que exige intensa meditação e e egese.Elefezusodatradiçãomedievaldediagramasparain-vestigarascone esentreoc smico,oterrestreeocorp reo.

ComoSaturno, aAstrologia re uer, como a lentidãodo astro,muitos anos para que seja aprendida, tanto pelas demonstrações quan-topelae peri ncia uesee igeparaumbom u zoastrol gico.29Ade-mais,elaéalt ssimaentretodasasdemaisartes–e,comodizArist -teles em seu tratado De Anima, a ciência é elevada pela nobreza de seu objeto 0.Porisso,aAstrologia,maisdo ual ueroutra,porestudaromovimentodoCéu,énobre,altaeperfeita,poistratado ueéconse-quência do princípio, ueéperfeit ssimoeregulad ssimo.Conse uen-temente,nãoseadmite falhanela. ual uererro,deve-seatribuir neglig nciadoastr logo,não Astrologia.

29 Curiosamente,ofil sofoRamon lulldesaconselhaoestudodaAstrologia aseufilhoDomin-gose atamentepeladificuldadeeincertezadessaci ncia: 9.Am velfilho,nãoteaconselhoueaprendasessaarte,poise igeumesforçomuitograndeefacilmentesepodeerrar.

perigosa, pois os homens que a conhecem melhor usam-na mal, porque, pelo poder dos corpos celestiais desconhecem emenosprezam o poder e a bondade deDeus .RAMON

.Doutrina para crian as (c. 1274-127 ) (trad.:RicardodaCostae rupo de esquisas Medievais da S ).Alicante:IVI RA,2010,cap. XXIV,9,p .

0 Osaberéumadascoisasmaisvaliosasedignasdeestima,ecertossaberessãosuperioresa outrosbenspor seu rigor eporocuparem-sedeob etosmaiores emais admir veis... .ARIS E ES.Acerca del alma(pres. trad.de om sCalvoMart nez).Madrid:Editorialredos,2010, ivroI,cap,1,402a,p. 7.

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othschild Canticles: as Sete Artes Liberais (da es uerda para adireita,decimaparabai o: ram tica,Astronomia,Aritméticae eometria), folio v, França (sécs. XIII-XIV), ale niversi-ty, einec e are oo and Manuscript Library.En uantoaGramá-tica surra um aluno, para o delírio da classe de crianças, a As-tronomia apontaparao céu (comoSol, a ua e as estrelas emmeioaumetéreofundorosa),aAritmética contamoedas(of cioprático par excellence)eaGeometria, com um compasso, calcula a esfericidadedomundo,comoDeusaocri -lo.

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Prestes a ascenderem ao mpíreo,DanteeBeatriz ( es uerda)param para contemplar o espetáculo dos planetas, a revolu ão das sete esferas celestes(debai oparacima,da uaatéSaturno).Nae tremaes uerda,osignode meos.Aseguir, direita,oca-sal se prepara para continuar sua maravilhosa viagem rumo a Deus.Detalhedeuma iluminuradeumac piagenovesa (séc.XIV)daDivina ComédiadeDante (Norfol ,Hol hamHall,MS.514),folio 141.

10.Poinel uartoverso,dovedice:unospiriteld amore,s intendeunopensiero chenascedelmio studio.Onde da sapere cheperamore,in uestaallegoria,sempres intendeessostudio,louale applicazionedel animoinnamoratodelacosaa uellacosa.(...)12. u ol altrocheseguepoidi uestacanzone,so cientemen-te per l altra esposizionemanifesto. E cos , in finedi uestosecondotra ato,dicoea ermocheladonnadicu ioinnamoraiappressoloprimoamorefulabellissimaeonestissimafigliadelo Imperadorede lo universo, a la uale Pi agora pose nomeFilosofia. 1

1 Convivio rattato secondo. nternet.

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Depois, no quarto verso, onde se diz: um espírito de amor, enten-de-se um pensamento que nasce do meu estudo. De onde é de saber que por amor, nesta alegoria, sempre se entende o estudo, ueéaaplicaçãodo nimoenamoradodeumacoisaaessacoisa.(...)Tudo o mais que segue depois desta canção é pela outra expo-siçãosuficientementemanifesto.Eassim,nofimdestesegundotratado,digoeafirmo ueadamade uemmeenamoreiap soprimeiroamorfoiabel ssimaehonest ssimafilhadoImperadordouniverso, ualPit gorasp sonomedeFilosofia(Convívio, II,1 ,10-12).

Comoosantigos,osmedievaisnãorenunciaram PoesiaparatratardaCi ncia,daFilosofia.Porisso,aalegoriatornou-seabasedeinterpretação de qualquer texto. 2APoesiaeraidentificadacomaSa-

pientia e a hilosofia.Poressemotivoé ueDantedefineaalegoriaeautilizaparatratarfilosoficamenteotemadasArtes Liberais nos céus da Astrologia.

As esferas de conhecimento estavam imbricadas, interligadasnaconcepçãototalizantedosaber.Essaordemdomundopressupu-nhaumacone ãocausaldosacontecimentosefen menos AFiloso-fiaera,desdeaherançagreco-romana,transmitidaporv riosautorescomo amor Sabedoria, conhecimento que deveria ser procurado como ofizeramosdisc pulosdePlatão.Dante,nessesentido,éumdos l-timose poentesda radição ue,naIdadeMédia,mesclavaPlatãoeArist teles indistintamente,oumelhor, apresentava temasaristotéli-coscomviéscristianizante,emumpanodefundoplat nico-agostinia-no.AsseteArtes Liberais,filhasdaRazão,foramporDantepro etadasnasestrelaspor ueoAmor ueasmoviaera,paraopoeta filósofo, o mesmo amor serenamente conduzido pela gentilíssima dama chama-da ilosofia, jovem “cheia de doçura, ornada de honestidade, admirável 2 NofimdaAntiguidadeaalegoriaad uirenovopodersobreosesp ritos,eo udeuheleni-

zadoF lonaplica-oaoAntigo estamento.Dessealegorismob blico udaicoprocedeoale-gorismocristãodosPadresdaIgre a.OpaganismoagonizanteestendeutambémaVirg lioae plicaçãoaleg rica (Macr bio).Oalegorismob blicoeovirgilianocon uemna IdadeMédia da aalegoriatornar-se,geralmente,abasede ual uerintrepretaçãodete to.A uiest araizdetudoo uesepodedenominaralegorismomedieval .C R I S,ErnstRobert.Literatura urop ia e dade M dia Latina, op. cit.,p.2 5.

Como a teoria agostiniana da Ordem.Ver Introducci n .In: bras Completas de San Agustin . scritos filosóficos ( ).Madrid:BAC,MCMXCIV,p.590.

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porseusaberegloriosaporsualiberdade (Convívio,II,15,2).Porissoera mister considerar o que existia na ordem dos céus e o que existe nadasci ncias.Afinal, uem uisesseverasalvação,alémdemeditareespecularascorrelaç esentreosmundos,deveriafitarosolhosdaFilosofia,perscrut -los,poisassimteriasuaalmaenamoradaelibertadas contradições do instável e perecível mundo supra-lunar.

F

ARIS E ES. tica a Nic maco (trad., te tosadicionaisdenotasdeEdsonBini).Bauru,SP:EDIPRO,2007.ARIS E ES.Metafísica (ensaio introdut rio, te togrego com tradução ecoment riode iovanniReale).SãoPaulo:Ediç es o ola,2005.0 volumes.ARIS E ES.Acerca del alma(pres. trad.de om sCalvoMart nez).Ma-drid:Editorial redos,2010.ARIS E ES.Do céu(tradução,te tosadicionaisenotasdeEdsonBini).SãoPaulo:Edipro,2014.BO CIO.A Consola ão da ilosofia.SãoPaulo:MartinsFontes,1998.CICER . Leli (De l amistat) (introd., te t revisat, traducci i notes de PereVillalbaiVarneda).Barcelona:Fundaci BernatMetge,1999.DAN EA I IERI.A Divina Com dia. araíso(trad.enotasdeItaloEugenioMauro).SãoPaulo:Ed. 4,1998.DAN EA I HIERI.Convívio (trad.literalenotasdeCarlosEduardodeSo-veral). isboa: uimarãesEditores,1992.DAN EA I HIERI. pera mnia. Convivio.Edizionedireferimento: pere di Dante Alighieri (acuradiFrediChiappelli).Milano: goMursiaEditore,1978.Internet.

bras completas del seudo Dionisio Areopagita.Madrid:BibliotecadeAutoresCristianos(BAC),1995.

bras Completas de San Agustin . scritos filosóficos ( ).Madrid:BAC,MCMXCIV. RAMON .Doutrina para crian as(c.1274-127 )(trad.:RicardodaCostae rupo de esquisas Medievais da S ).Alicante:IVI RA,2010.

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C R I S,ErnstRobert.Literatura urop ia e dade M dia Latina. São Paulo: EditoraH CI EC,199 .DOMINI EIO NA-PRA . Ordem .In: E OFF, ac ues SCHMI ,ean-Claude.Dicion rio em tico do cidente Medieval .Bauru,SP:ED SC SãoPaulo,SP:ImprensaOficialdoEstado,2002,p. 05- 19.D ASA VA,BlancaBeatriz. roleg menos para um filosofia do amor em Dante Ali-ghieri: um estudo do Convivio.Campinas: NICAMP,tesededoutorado,1999.H I IN A, ohan. utono da dade M dia.SãoPaulo:CosacNaif,2010.IO NA-PRA , Domini ue. Ordem . In: E OFF, ac ues SCHMI ,ean-Claude (coord.).Dicion rio em tico do cidente Medieval . Bauru, SP: ED SC SãoPaulo,SP:ImprensaOficialdoEstado,2002,p. 05- 19.E IS,C.S.Alegoria do Amor. m studo da radi ão Medieval. São Paulo: É Realizaç es,2012.MI REFERN NDE ,Emilio (coord.). istoria del cristianismo. . l mundo medieval.Madrid:Editorial ro a,2004.RE NO DS,Barbara.Dante. poeta, o pensador político e o homem.Riode a-neiro:Record,2011.RISSE , ac ueline. DanteAliguieri(12 5-1 21) .In: E OFF, ac ues.Ho-

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vivio .In: ssays in Medieval Studies20.1(200 ): 1-4 .

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filosofia da e o o ia o e sa e o a o a la i oa e i a o

l edo lle oUniversidade do Vale do Rio dos Sinos

En la mitad del siglo XVI se produce en España, y se extenderá a todaEuropa,unprocesoin acion rio,conocidocomo revoluci ndelosprecios uellev muchosescol sticosapensarelfen menomu seriamente delamaneramascient ficaposibleparaesostiempos. arealidadmonetaria financieraduranteesosdiasestuvocaracterizadaporunimportanteincrementodelniveldeprecios porundesordenpermanenteenlaHacienda.Siaestoa adimosunaimportanteactivi-dad comercial exterior -con América y mercados europeos- e interior –comolasfériasdeMedinadelCampo,Villal n MedinadeR oseco-,elresultadoesunarealidad,mercantil,crediticia financieradin mi-ca comple a.Ellosetradu oenuncontinuomovimientodedinerointerior y exterior, así como en un incremento de los títulos crediticios delpapelmoneda. rice-Hutchison(2009)nosretrataesedin micomarcohist rico-econ mico.

heopeningoftheAmericanmar etbroughtane prosperit tothemotherland. iththearrivalandse lementoftheSpan-iards inthene orld, therearoseagro ingdemandfor theproductsofthemetropolis.IncompensationfortheSpanishe -ports to thecolonies,Americangoldandsilverbegantoreach

Carvalho, M.; Hofmeister Pich, R.; Oliveira da Silva, M. A.; Oliveira, C. E. Filosofia Medieval. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 356-374, 2015.

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Spainfromthebeginningofthe1 thcentur on ards.Seville,thehomeportofthetreasure eet,a ractedbusinessmenfromever part of Europe. A trade boom set in. ( rice-Hutchison2009,9-10)

Elaspectonegativodeestastransformacionesenlosmétodosdehacerfortunaes uesolosirvieronparaenri uecerae tran eros,pueslosespa olescarec andelasuficientevisi nparae plotarlasinmen-sasposibilidades uesebrindabandesdeelotroladodelocéano.

Forali letimefortunescouldstillbemadeintheNe orldb theold traditionalmethodof con uest, the ac uirementoflandandboot ,and thevirtualenslavementof thecon ueredpeoples. But in Spain itself things had changed. Accountings ills, uic nessofintellectand no ledgeofcommercialprac-tice ereno the e stoprosperit .Andofsuchtrainingthehidalgohadbutli le,contentinghimself ithconsolidatingtheterritorialgainshehadachievedintheRecon uest. hed namicroleintheeconomicleadershipofsociet asassumedb themerchantsfamilies,man of e ishorforeignorigin, ho ne ho to e ploit the changed economic situation createdb thediscover ofAmerica.( rice-Hutchison2009,9-10).

avirtuddela usticiaeselelementocentral uesustentaeledi-f ciodelpensamientoecon micodelosdoctoresescol sticos.Susre-e iones an lisissobrelosdiferentestiposdecontratos relacionesecon micasnosonsinounintentodevelarporelrespetoala usticia(Roover1971,4 -4).Emgeneraldividianla usticiaendosclasesprin-cipales,la usticiadistributiva la usticiaconmutativa,siguiendoas laclasificaci nelaboradaporAristotelesemellibroVdela ticaaNi-c maco,dondeladistributivaesla uedistribu eloshonores,obienlas cargas comunes entre las partes integrantes de la comunidad, y la conmutativa es a uella ueversa sobre los cambios los contratos.adistributivaversasobre ladistribuci nde losbenef cios cargaspublicas respondeauna proporci ngeométrica detalmanera uedospersonasdesigualesoconactuacionesdiferentesenlacomunidad

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recibentambiénparticipacionesdistintas.Estetipode usticiaserigeporelprincipio: acadacualseg nsusméritos .

a usticia conmutativa, por su parte, trata sobre el necesariorespeto a la igualdad en las transacciones o contratos, de tal manera que ninguna de las partes quede en peores condiciones que la outra tr shaberrealizadolaoperaci n. a usticiaconmutativaresponde,enconse uencia,auna raz naritmética seg nlacuallasparteshandeintercambiarbienese uivalentes.Enestetipode usticiaelprincipiorectorseria: daracadaunolo ueessu o .

avirtuddela usticianoesentrelosescol sticosumpresupues-to moral a priori.Esunre uisitol gico,esunanecesidadderivadadelapropiae istenciade las sociedades de lavidaen com nde loshombres. a tradici n tomistaentiende ue loshombresseunenensociedadparasuplirsusnecesidades beneficiarsedelavidaenco-munidad ningunotieneelderechodeabusardeotrospuesiriacon-tralapropial gica ue ustificalaconstituci ndelasociedad ueeselmutuofavorecimiento satisfacci ndelasnecesidades. avidaensociedadre uierelae uivalenciaenlastransacciones elrespetoalprecio usto.A uinas illsa :

bu ingandsellingseemtobeestablishedforthecommonad-vantage of bothparties, one of hom re uires that hich be-longstotheother,andviceversa,asthePhilosopherstates(Polit.i, ).No hatever isestablished for thecommonadvantage,shouldnotbemoreofaburdentoonepart thantoanother,andconse uentl allcontractsbet eenthemshouldobservee ual-it ofthingandthing.(A uinas(1981)II-II .77.Art1).

Podemosver ueloscontratos relacionesmercantilesentreloshombresseencuentranenel mbitodela usticiaconmutativa.Encon-sequencia, será ésta y su cumplimiento lo que preocupe a los pensado-resdelasegundaescol stica leslleveaabordarelest diodelarea-lidadecon mica.As ,lostratadosDe iustitia et iure, principaldep sitodelasideasecon micasdelaescol sticatardia,nosonsinounintentodeanalizarlosdiferentestiposdecontratose istentes verba o uécondiciones, a uielnivelemp rico,serespetabala usticiaconmu-tativa en cu lesno esdecir, en ué tratosunade laspartes sal aper udicadaobeneficiada.Conceptosesencialesdelordenecon mico

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escol stico–precio usto,restituci n,ilicituddelausura,lucrocesanteda oemergente...-ad uierensentidosolositenemosencuentalasideassobrela usticiaa uidestacadas.

osdoctoresescol sticosvanae igirelrespetoala usticiacon-mutativacomoimperativodelamoralidad,perotambién, sobretodo,comoe igenciadelaracionalidad,estoes,eln velinteligibledelan -lisis. o ueh sidoacordadoenbeneficiodetodos–vidaencom ncooperaci nparalasatisfacci nmutuadenecesidades–nodebebe-neficiaroper udicaraunosm s ueaotros.Elpresupuestomoraleneles uemaescol sticoe igeunsustentodelaraz n(Nooman1957).

Existe una serie de preconceptos, especialmente en areas ajenas alafilosofia,peronosolo,comoelderechoolaeconomia ueentien-den ueelpensamentoescol sticotendriaunavisi nintransigenteoprohibitivarespectoalaspr cticasmercantiles, lo uenoesverdad.aescol stica,desde om sdeA uino(A uinas)nuncaconden lanegociaci n, sino su abuso. Enprimer lugar, no se condena a priori mas a posteriorilaspr cticasin ustas.Sedefiende ueelnegocionoesintrisecamentemalo,sino uedependedelaactitud actuaci ndelosnegociantes.Ser laaus nciade usticia, noelnegocioens ,lo uedeterminelalicitudoilicituddelmismo.Ensegundolugar,elnegocioesnecesarioalapol tica.Eslavoluntaddeloshombresla uevic alanegociaci n uedepors noesbuenanimala,s lonecesaria. siesnecesariaalarepublicahabr ueadmitirlacirculaci ndedinero lasgananciascomercialesdecorrientesdelesfuerzodetraerdele os,almacenar distribuirestosbienes.

a renovaci nde la escol stica enel sigloXVI sedebeengranpartealtraba odocenteeintelectualdelosdoctoresespa oles uedesdesusc tedrasbuscaronunmododeentenderlaci ncia lasrelacionesconlarealidadpol tica,econ micae ur dicaenla ueestabaninmer-sos.Enesto tuvieronunpapeldestacadoel tomismodeFranciscodeVictoria unadosisimportantedelo uefuéconocidocomocorrientenominalista, de tal manera que la segunda escolástica no es una actu-alizaci nde om sdeA uinoa la realidad iberoamericanadel sigloXVI,comoalgunospretenden,sinounanuevas ntesisconlafilosofiaaristotélicadesarrolladaporlatradici nnominalistadelossiglosXIVeXV,inclu endodentrodeestatradici nsuformuladormasrenomado

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illiamofOc ham, seguidoresdesusideascomo ean erson,Pedrod Aill , abrielBiel ohnMair(Culleton2011,15 -1 7).

Esta nueva via introdu o entre los doctores escol sticos unahondapreocupaci nporlavertienteempiristadelconocimientocomocomplementodel razonamiento l gico. El nominalismo supuso, poroutra parte, la dedicaci ndeuna especial atenci n a los problemasestrictamenteecon micos problemas ueabordarondesdeelan lisisdelarealidad nodesdeposturasaprior sticas.Noesdee tra ar,portanto, ueencontremosabundantematerialsobre temasecon micosentrelosescritosdeestosautores.Porotraparte,lapreocupaci nmo-ral ueguiabaalosdoctoresespa olestambiénincidi enel interesporelestudiodelaspr cticasecon micasparapoderopinarsobresulicitudeilicitud.Dentrodetodoesematerial,elestablecimientodelarelaci nentreelincrementodelacantidaddedinero,losprecios lateoriasub etivadelvalor-utilidadhansidodelascontribucionesmasimportnatesdeestosautoresalan lisisecon mico.

(1523-1575)

Este e logo dominico, es famoso por haber compaginado suformaci n intelectual con una e periencia directa del comercio conAméricaenambos ladosdelAtl ntico.SabemospocodesuvidaenSevilladondenaci em152 ,e cepto uemarch mu ovenaMé ico,dondeingres enlaOrdendePredicadoresen1551.Estudi Artes eolog aenlarecientementefundada niversidaddeNuevaEspa a,dondeluegoobtuvolac tedradePrimade eolog a.En1558seor-den sacerdote,siendodesdeesemomentoprofesorenelConventodeSantoDomingo.En15 2esenviadoaEspa aparacompletarsusestudiosenSalamanca,dondesegradu comoMaestroen eolog a.Posteriormenteresidi alg ntiempoenSevilla muri enelmardu-rantesuregresoaMé ico.

Su obram s conocido es laSuma de tratos y contratos (Sevilla,1571),unasegundaversi ndesuTratos y contratos de mercaderes y tra-

tantes(Salamanca,15 9),originalmenteescritocomoau ilioaldiscer-nimientomoral uenecesitabancomerciantes hombresdenegociosdeMé ico Sevilla.Enelmismocamino uesuhermanodevidareli-

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giosaBartolomédelasCasas,ofreceunagu adesolucionespr cticasparaumradicaltiemponuevo.

Ensusescritosdescribeunateor acuantitativadeldinero,anali-zandoelefecto ueestabateniendolaimportaci ndemetalesameri-canosenlosprecios mercadosdeEspa a Europa.Elte toesescritoencastellano,conunaprosa llana directaparaunp blico legoencitas autoridades académicas.Vemos claramente en ladedicatoria“al insigne y célebre consulado de mercaderes de Sevilla”, que no está des-tinadoalasdisputasacad micos ueelautorbienconoc a,sinoaunademandaespec ficadelanuevaclasedecomerciantesibéricos.Haceigualmenteuncuidadosoan lisisdelmercadodevalores,moneda precio usto,as comounestudiodelasfériasdeMedinadelCampo,Villal n MedinadeR oseco, losma orescentroscomerciales devaloresdelaépocaenlapen nsula.Escribetambiénsobreelcomer-ciodeesclavos laactividadbancaria,criticalastasas elsistemademonopoliosportuarios.Sonestoslostemascentralesdesuobra,todosellosdegranvalorconceptualehist ricoperoimposibledetratarto-dosellosenesteart culoproped utico.

Nuestroprop sitoesanalizarlo ueelautorentiendeporPrecio

justo nosvaldremosdesuobraSuma de tratos y contratosenlaedici ndeCasadeFernandoDiaz,impresaenSevillaem1587,divididaenseislibros,totaldep ginas58 1.

1 aSuma de tratos y contratostuvodiversasediciones aenelsigloXVI, unaprimeratraduc-ci nalitalianode1591.EnelsigloXIXapareceenelcat logodeColmeiro(Biblioteca de los economistas españoles de los siglos XVI, XVII y XVIII 1880 , uisPerdices(ed.),RealAcademiadeCC.Morales Pol ticas,Madrid,2005) esapartirde1928cuandoAndréSa ousrecuperasuautoridaddestacando ue,aprop sitodelosescritosecon micosdelsigloXVI, enelprimerrangoha ueponereltratadode om sdeMercado .Schumpeterlocitaenvariasocasionesen su History of Economic analysis(1954),apartirdelainformaci n uehab ale doenDempse (Interest and Usury,194 ).Particularmenteinteresanteeslapioneratraducci nalingl sdeunfragmentodesuobraporMar orie riceHutchinson(The School of Salamanca,1952).Ho dis-ponemosdedospublicacionesase uiblesdesusobras:unaincompleta,Mercado, omasde.Sumadetratos contratos.Edici n est diointroductoriodeRestitutoSierraBravo.Madrid:EditoraNacional,1975.50 p. otraendosvol menes,Mercado, omasde.Sumadetratos contratos.Edici n est diopreliminardeNicol sSanchez-Albornoz.2vol.Madrid:InstitutodeEstudiosFiscales,1977.Comoobrasdereferenciam srecientespodemosconsultar: .Per-dices: Diccionario del pensamiento económico en España (1500-2000),Madrid,2004 E.FuentesQuintana: Economía y economistas españoles,Madrid,2000.

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Elprop sitodeMercadonoese ponerunateoria,sinoanalizaremitirun u ciomoralsobredeterminadaspr cticasenrelaci nconlaoperaci n elcontratodecompra-venta. asdefinicionesalolargodelte tosonescasas losconceptosmasabstractostendr n uesere tra dosdeentreloslargosargumentos re e iones.

ateoriadelprecio ustovaatenermuchasversionesenlossi-glosXVI XVIIgeneralmentedesarrolladosenlose tensosvol me-nes de los Tratados uellevabanport tuloDe iustitia et iure. Estos son coment riosalasCuestionesdelaSuma eol gicade om sA uinodedicadasala e (S ,I-II .90-97) ala usticia(S ,II-II .57- 2)enun nicovolumen.EselcasodeDomingodeSoto(1557),MartindeAz-pilcueta(155 ), uisdeMolina(159 -1 00) uande ugo(1 42)entreotros. afinalidaddeestos tratadosnoeraactualizar ladoctrinadeA uinosobreestostemas,masanalizarproblemasactuales urgentesconunamatrizfilos ficasuficientementepr ctica almismotiempoaceptableenelmédio,comoeralatradici naristotélico-tomista.

al es as ue om sdeMercadonecesita reeditar suprime-raversiondesuTratos y contratos de mercaderes y tratantes(Salamanca,15 9) ofrecerunae posici nmasfundamentadafilosoficamente ueresultoenladefinitivaSuma de tratos y contratos(Sevilla,1571),ala ueagregaunsubstanciosoprimerlibro,compuestodetr scap tulos, uetratadela e delaRaz nNatural.Haceestoporrecomendaci ndelos grav simosdoctores ueentendiannecesariaunaade uadafundamentaci nfilos ficaaun ueellibroestuviesedestinadoamer-caderes noaacadémicos.

afinalidaddesu ratadoest e plicitoenelPr logo es:...mostrarconclaridadcomoe ercitar anlosmercaderesl citamen-te su arte, con los demás negocios anexos y consecuentes de cam-bios usura...edificarseh contaldoctrinalaconcienciadelostra-tantes aprovecharseh lahaciendadetodos,por ue,mostrandolae uidad usticia uehandeguardarlosprimerosensuscon-tratos,noser elpuebloagraviado(Mercado1571,Prologo).

Parecehaberunapreocupaci nenserdirecto,pr ctico lomasclaroposibleparaau iliar loscomerciantesenele erciciodesuarteevitandodose tremos:losescr pulos losabusos.Paraatacarloses-

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cr pulosdea uellos ueentiendenelcomerciocomoalgodesprecia-ble om sdeMercadodedicar buenapartedelaobraalegitimarele erciciodeesaactividad,almismotiempo,colocar limitesclarosalosabusos,todoenunlengua edirecto e emplificadoevitandoeru-dicciones y todo lo que para ornato y hermosura de la obra se pudiera decir...

porque nada es más necesario en cualquier obra que entender por aquellos a

quien se escribe (Mercado1571,Pr logo). Elgran temadel libro son las relaciones comerciales los cri-

térios para que esas relaciones sean justas y el precio es uno de los componentesdeestarelaci n. ambiénloes uienespuedene erceresta actividad, ué cosas sepuedenvender, en ué condiciones, lascompa ias,elmonop lio, las le es uerigenelcomercio,elsistemadefiscalizaci n,larestituci n,eldinero,losvalores,losmercados,losprestamos, lausura,el interes,el cambio elarrendamiento. odosestostemastratadosnodesdeunaperspectivatécnicasobreeconomiasinodesdeunapreocupaci nmoralnoenelsentidoteol gicomaseneldelinterésdelarep blica.Comofundamentoparalavidaencom ndirá que ninguno puede vivir bien por si; todos tienen necesidad de morar

junto con otros con los cuales en ninguna manera podria permanecer si o le

agraviasen o les agraviase, y compara la necesidad de alimento para la vidaindividualconlanecesidaddela usticiaparalabuenavida(Mer-cado1571,9).

Nuestroprop sitoenesteart culoeslimitadoaltemadelpreciousto aun ueseauntematransversalatodoslosotrosnoslimitaremosaa uellaspartesen uemase plicitaeclaramenteelautorhacedistin-ciones conceptuaciones.ParaMercadola usticiadeberegirtodaslasrelaciones en sociedad y en el comercio tendrá la sociedad necesidad de precio usto.Mercadoevoca om sdeA uino,al uechamaPr ncipe a uienleatribu elafrase:Propioesdela usticiahacerigualdadenloscontratoshumanos2.Peroeldesafioeshacerigualdadentredoscosasdisímiles, como um caballo y cien ducados,cosasesencialmentediferentesuedebenserigualadasatravésdeumob eto ueeselprecio,comelagravantede uedebeser usto.Esesta usticiala ued acadaunolouelepertenececonigualdad:al uecompra,sucaballo al uevende,

2 Elautornohacecitacionese actasdesusreferenciasnisiempresonliterales.Seencuentranapro imacionesenlaSuma eologicaII-II .57-122.Especialmenteeml ueserefiereanuestrotemaen .77-78.

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loscienducados, uedandoas igualescomprador vendedor.Cuandoestaigualdadnosed eslo uesellamain usticia.

Detalmanera ueuncontratoparaser ustoe igeigualdad,noen las personas que contratan, que esas pueden y suelen ser muy diferentes,sinoenlascosas uesecontratan, éstasnoenlana-turaleza,sinoenelvalor estima(Mercado1571,10).

ParaMercado,el tratarcon usticia, tratarenel sentidodeha-cer tratos, comercio o neg cios, es hacer igualdad e uidad en loscontratos,alocualobligalale natural,funadadaenlapropiaraz n,uedicta ueanadieseagravie cu aobserv nciaobligaatodosuni-versalmente.Estaserialaprimerpremisadosilogismode om sdeMercado. a usticiaesunimperativofundadoenlale natural,estoes,enlaraz n uedeterminabuscarla usticia evitarlain usticia.Detalmanera uelaevidenciadeunain usticiaobligaenconsci nciaaevitartaltrato,indiscriminadamente,comosifuesevoluntade pl citadelpropioDios. o ueMercadodefiendeesuna ntimarelaci nentreelcomercio la usticiamediadoporlaluznaturaldelaraz nenfavordeunaigualdadconelpr imo.

asegundapremisaeslamasdif cilpor uevaaloconcreto,aladeterminaci ndecasosconcretos.ComienzaelsegundolibroDel arte

y trato de mecaderestratandoelorigendelcomercio suevoluci ndes-delaca dadeAd n. o ueimportaanuestrotemaes ueidenitificados modos de comercio, uno conocido como cambio o trueque donde secambiancosas cu oalcanceesmu limitado pocopr ctico, outro,frutodel ingenio y de la política, que es la moneda lo que ayuda aestipularumpreciomas ustoporlaposibilidaddeserfraccionadoconservado.Deestamanerainventaron el mercar y vender por su justo

precio, apreciando y avaluando cada cosa por si, según que podia servir al

hombre (Mercado1571,17). Aparece aqui un elemento importante cual sealautilidadpara uiencompra.

o uecaracterizaelcomerciocomoarte led legitimidadesse dedicar a comprar vender agregando algun valor ob etivo a locomprado.As uiensiembra vendelo uesiembraesunlabrador nouncomerciante.El uecompra vendeelmismoproductosinotrafinalidad ueaumentarleelvaloresunaprovechador.Elverdadero

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comercianteagregavaloralproductopor uelotransporta,almazena,reparteodisponibilizademaneraa facilitarelaccesodelpublicoalproducto poresoesleg timo ueenesaventae traigasusustento.o uepareceestarpordetr sdeestadistinci neslausura laespe-culaci n uenoesm s ueumaformadeusura.Estapr cticaescon-denadaenlatradici n udaico-cristianadesdeelAntiguo estamento e tendidopreconceptuosamenteatodo cual uiercomercio.Merca-dobuscadesmitificarestapr ctica darlelegitimidadatravésciertoslimitesconceptualesclaros racionales.

Enelcap tuloVIdeestemismolibroIIesdondeconcretamenteempiezaatratardelprecio justoeidentificadostipos:

El precio justo legal y el precio justo que llamaremos consencial, naturaloaccidental.Altratardelprecio ustolegalMercadov aiden-tificaruncon icto uedescribedelasiguientemanera:Eldeseodelmercaderes uerercomprarbarato vendercaro.Porsulado,elde-seodelarep blicaes,alcontrario, uesevendalom sbarato uesepueda porque le corresponde promover la utilidad y provecho de los vecinos

(Mercado1571,24).Deestoelautordecorre uelarepublicatendriaautoridadparatr scosas:

Em primer lugar, proteger el mercado interno de comerciantes e trangeros,suponiendo ueellosnotendr anapreciofilialocompro-miso con la ciudad, y dejando el comercio a aquellos naturales respon-sablesporlosme oresprecios.

Emsegundolugar,larep blicatendr aautoridadpara,envistasdelbiencom n,élmismo,traer venderalgunasmercaderiasimpor-tantes para que no queden dependiendo de intereses particulares y monop lios ueacabanpropiciandoaltaenlosprecios.

Entercerlugar, eseldeterminanteenlo ueserefierealprecio,que será considerado justo, y que consiste en tasar y poner precio a la

ropa, por el cual están obligados todos a vender em consciência, porque es su

oficio apreciar y dar valor a todas las cosas que sirven a la vida humana. Es larepublica ue tieneumcritérioob etivodeprecio ustopor ueesuiensabeelvalordelascosas elvalor,enestesentido,es la utilidad

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y provecho del ciudadano por cuya causa fueron producidas y se conservan. (Mercado 1571, 25)

Es aqui donde expone la relatividad de los valores que no tienen que ver con su objetividad natural sino con su utilidad. Usa el ejemplo del oro y la plata que objetivamente, desde el punto de vista natural no serian mas que tipos diferentes de tierra compacta, roca, y que la re-publica los convirtió en valor y precio de todas las cosas, enquanto que un caballo o un buey, que naturalmente tendrían mas valor por seren de naturaleza viva no tienen tanto valor, ni podría tenerlo dirá Mercado, porque lo que dá valor es la relación con el sustento del ciudadano y no su naturaleza. De aqui se desprende que en sociedad los valores conven-cionales de la moneda es mayor que el de las cosas, por su practicidad en suplir nuestras necesidades y su valor es relativo a la república.

Mercado va a referir a Aristóteles en el libro V de la Ética donde el griego daria una conceptuación general diciendo que lo que da valor y precio a todas las cosas terrestres es nuestra necesidad, siendo esta la medida y precio de su valor. Sin necesidad nada seria comercializado ni apreciado (Aristoteles 2009)3. Dice Mercado em ninguna nación, se apre-cio jamás cosa según su naturaleza, sino por nuestra necesidad y uso4 (Mer-cado 1571, 26). A seguir muestra la relatividad del propio oro y plata, y como pueden ser sin valor entre nativos en la Nueva España. Con esta relativización del valor natural de los bienes el autor está apuntando a dos objetivos, por un lado atacar una cierta tradición esencialista que pretendia un valor objetivo a las cosas relativas a un orden del ser y al trabajo acumulado en el producto manufacturado que compondría el preciofinaldelproducto(HamoudaandPrice,1997,193-194). porotrolegitimarlaintervencióndelarepublicaenlaprecificación.

Dirá nuestro autor que si no se há de seguir en el precio la digni-dad y ser natural de las criaturas, sino el provecho y comodidad que de ellas nos há de venir, no hay a quien mejor convenga hacer esta apre-ciación que a la república y su príncipe, que es cabeza de todos. Se entiende que todos están obligados en consciência a vender cada cosa por lo que vale, siendo este un dictamen natural de la razón, y es por eso que no necesita ley positiva ni autoridad humana ni divina para ser evidente e imperativa. El problema está en determinar el justo precio de cada cosa

3 Aristoteles. Ética a Nicomaco, Libro V, cap. 7.4 Mercado, Tomás de. Suma de Tratos y contratos. Libro II, cap. VI.

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ya que la naturaleza no lo tiene ni indica. De acuerdo con Mercado, la naturaleza cria todas las cosas pero no les imprime un precio porque desde una lectura teleológica no fueron hechas para ser compradas y vendidas sino usadas por todos. Habría sido la caída del hombre la que privatizó los bienes naturales y el ingenio del mismo hombre que crio el poder comprar y vender y especialmente hacer del oro y la plata valores objetivos para todas las otras cosas.

Ahora, si los hombres tienen necesidad de ciertas cosas para vi-vir y su precio es relativo a esa necesidad y a la autoridad de los hom-bres,esdeberquelarepública,quetieneporfinalidadzelarporelbiencomún de sus ciudadanos, tasar los bienes, equilibrando la tensión entre quien tiene disponible y quien tiene necesidad, donde la mayor necesidad dejará siempre en desventaja desequilibrando la relación de equidad propia de la justicia. Recordemos que el comprar y el vender son actos de justicia comutativa, virtud que consiste em guardar igual-dad en los contratos, esto es, que se dé tanto cuanto se recibe, no en substancia – lo que es imposible por naturaleza – sino en valor y precio.

Siguiendo el ejemplo que el autor usa desde el inicio, la igualdad que existe entre un caballo y los cien ducados, y que vale resaltar, sa-tisface a las partes, es la autoridad de la potestad pública. La igualdad entreelcaballoyloscienducadosesartificial,eslaigualdadentreunanimal y un poco de tierra, que solo puede ser justamente postulada por una autoridad que zela por el bien de la republica. Esta justicia comu-tativa, esto es, esa igualdad entre el caballo y los cien ducados estipu-lada por la autoridad es un límite que debe ser observado por todos sin excepción donde su descumplimiento dejará sin autoridad al príncipe. En este sentido la autoridad del príncipe es absoluta.

Por otro lado, dirá Mercado, la justicia comutativa se guarda dando lo estipulado, consintiendo en ello las partes5 (Mercado 1571, 32). Como se entiende este consentimiento? Si el precio es determinado por la auto-ridad de la república, la operación no lo es, exige el consentimiento de las partes para que se realize, no es obligatorio y puede no realizarse. En este caso la necesidad del comprador quedará insatisfecha y conse-cuentementelafinalidaddelaautoridaddelarepúblicaqueesvelarpor el bienestar de los ciudadanos, quedará comprometida y descons-tituída. Es aqui donde el círculo de equidad encuentra su punto de correspondência entre todas las partes interesadas.

5 Mercado, Tomás de. Suma de Tratos y contratos. Libro II, cap. VI.

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Esderesponsabilidaddelpr ncipetasarlospreciosdea uellascosasnecesariasalavidadeloss bditos,cosascomopan,vino,car-ne,pescado,frutas,pa os,sedas,lienzos,criados,casas,cosas ueseusan gastanmucho, uealtenerunprecioob etivoevitaeventualesagravios. En cosas como o asu otro tipode supér uosno son tannecesariaslastasas,pudiendode arlolibrealosacuerdosdado uenoha necesidadesen uego.Detalmanera uees justo y muy necesario que

las cosas que más a la vida sirven y se gastan se evalúen por la republica; las

demás, se dejen al suceso del tiempo.(Mercado1571, 2b)

mavezestipulado uienponeelprecio sulegitimaci n,ve-amoslasvariables uelocondicionan.Silasle esdeDiossoneternase inmutables, las reglashumanas si lo son mu especialmente lastasas ueparaser ustasdebenestarsiempreactualizandose. mavezpuestoelprecio,paraaumentarloodisminuirlobasta,odebebastar,umadetrescircunstanciasolastres untas sonestas:a)siha ahoramuchasm smercaderiasomuchasmenos uecuandoseapreciaron b)siha muchosopocoscompradores c)om somenosdineroparabienes uesuelenvendersealcontado.

Cualquiera de estar razones debe bastar a los gobernadores, fieles e ecu-

tores, para mudar la postura; y resalta que en aquellas cosas o mercados dondeellosnotienenin uenciabastacual uieradeellas,sin que nadie

lo ordene ni advierta,amudardeprecio.Encontramosa uiciertaindica-ci ndereglasnaturalesderegulaci ndelaeconomia ueindependendelasvoluntadesdecompradores,vendedores pr ncipes,dondelosa ustessehacennecesarios.

Por eso es necesario que los precios justos, esto es, las tasaciones porpartedelarep blicaalosbienesnecesariosalavidadelaciudad,seanactualizadosconstantemente.Estoe igede losgobernantesm straba o dedicaci npero traedosbenef cios inmediatos ueelautordestacacomovirtudesbenéficasparalaciudad.Enprimerlugar uelagentecom nentiendacuantaobligaci nha deguardarlo uecontan-tadiligencia,solicitud cuidadoproveenlosgobernantes.Ensegundo,elgobiernotendr ama orlegitimidadparacastigaralostransgresores

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porestarmaspr imodelproceso por uecuandolarep blicasedis-tanciadelasrelacionescomerciales uedeberegirsonlospropiosco-merciantes que imponen sus ajustes em detrimento de los ciudadanos, especialmentedelosm sdesprotegidos.Elautoridentificaestacomounareglae tra adado ueengenerallasle essonbuenaspor uesonestables nolocontrario,peroenestecasosehacenecesarioenfavordeelbiencom n laomisi ndelarepublicaserianegligencia.

Enlasmercaderiasnecesariasseh detenerrespetoprincipal-mentealbiencom n también,secundariamente,alagan nciadelosmercaderes.Desdeelpuntodevistadelmercader,alpr ncipecompetealahoradeestipularelprecio ustotenerencuentalagan nciadelosmismospara uetraba enme orenproveerlaciudad.DeacuerdoconMercado,sedebeconsiderarlo ueaelloslescuestaad uirirlos,loscostos de transporte, el riesgo a que se exponen, por mar y por tierra, el tiempo uetienenocupadoenellosudinerohasta ueserecupera,aloque es legítimo añadirle un moderado interes como recompensa para llegaralprecio usto garantizar ueelcomerciantenode edeofrecersusproductosalaciudad.

om sdeMercadodistinguedostiposdeprecio justo6. nole-gal, uepone se alalarepublica outronatural o accidental, que es el ueelusointroduce lo ueenestemomentovaleenlasplazas mercados.Elautoresmu rigurosoenestadistinci nresaltando uecuandoha tasasesfaltagravecobrarm sporalgo e igerestituci n.Por ser la tasa un mecanismo para limitar la ambición de quien vende es permitido uealgosevendaporumpreciomenor ueelestipulado,de tal manera que no impide la suerte del que compra si por menos puedecompraralgo.Detalmanera ueelprecio ustotasadoporlarepublicanoesm s ueunpreciom imo uesepuedecobrarporunproducto nounprecio nico.Elprecio ustoesunprecio ueesdis-tinguidoteoricamenteporMercadodetresmaneras:piadoso,media-no riguroso.Eslaoscilaci nentreelpreciotasado, ueeselriguroso,elpiedoso ueesel ueporventuraelvendedor uieraaplicarparaganarli uidezoterminarconunstoc .

ParaestohacereferenciaaArist telesemsulibroVdelaéticaaNic maco. asfrecuentesreferenciasaArist teles om sdeA uino epermitentenersuficienteautoridademsureferencialte ricosinnecesidad,oevitando,entrarempormenoresdelasdisputas uealrespectosedabanentrelosdoctoresdeSalamanca.

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Mercadoterminaestese tocap tulodellibroIIdefendiendoesteprecio usto,elprecio ustotasadoporlarepublica,deeventualese -cepciones uealgunosclérigospermitianaalgunoscomerciantesba olaalegaci nde ueestarianapenasinfringiendounale civillo uenoacarretacondenaci ndivina.Dir élque la obligación de guardar la tasa de la republica es de todos y es más importante de lo que pensamos. Vender alpreciopuesto,tasado,noessolamentele delre - uesilofuerasepodriadudarsiobligabaono-,sinole divina natural, ueesdema orfuerza, ueatodosobliga nadiepuedee imir.Est nsu etosaellainclusivelosclérigos ueestariane centosdelale secular,noporestarsu etosalale delre sinoporestarsu etosalale natural.La ley natural es que siempre se venda por justo precio, y la misma ley natural tam-bién dicta ser precio justo el que pone la republica, mayormente los principales de ella, el rey o príncipe que la gobierna (Mercado1571, 7b). Así, pasar la tasa ueellosponen,vendiendoporm sprecio,noestanto uebran-tarelmandatorealcuantoviolar transpasareldivino agraviaralpr imoa uienestadestinadoeldeberde usticia.

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Enlugaresdistantesodondelaautoridaddelarep blicanotie-nein uenciasedeberegirporoutrotipodeprecio justo llamado na-turaloaccidental.Este precio justo es el que vale al contado publicamente y se usa esta semana y esta hora, como dicen en la Plaza, no habiendo en ello fuerza ni engaño, aunque es más variable, según la experiência enseña, que el viento7(Mercado1571,45).Elautorrelacionalavolatilidaddeestepre-cioavariacionesdelmercadointernacionalcolocandocomoe emplolo que ayer valia cincuenta ducados, como la cochinilla, vale hoy treinta o porque llego mucho de México o porque se escribió de Florencia que no habia pasaje a Turquía...8(Mercado1571,45b).Identificaladependenciadelosmerca-dosenunmundoglobalizadoporlacomunicaci n.

om simportanteenestepar grafo ueacabamosdecitareslae presi nno habiendo engaño, y es esta la parte que más le preocupa cuando se trata de precio justo accidental o natural.Destacadosgran-desv cios ue amenazan esteprecio usto.Porun lado los enga os

7 Mercado, om sde.Suma de Tratos y contratos. ibroII,cap.VIII8 Mercado, om sde.Suma de Tratos y contratos. ibroII,cap.VIII

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respecto a la mercadería que puede estar viciada, vencida, con defecto actual o eminente o no ser exactamento lo que el cliente esta pensando estar comprando. Tomás de Mercado será muy cuidadoso en deter-minar que es de responsabilidad del vendedor ser bien claro respecto al producto que esta vendiendo, su estado, origen y naturaleza. Cual-quier responsabilidad por una eventual desinformación recaerá sobre el mercador e exige restitución. Tenemos que tener en cuanta que lo que está en la mente de Tomás de Mercado es la frase de Tomás de Aquino de que es propio de la justicia hacer igualdad en los contratos hu-

manos y que el comercio corresponde a la justicia distributiva expuesta por Aristóteles en el libro V de la Ética a Nicómaco donde nadie puede salir perdiendo ni ser lesado en una transacción comercial. Por eso no

ser engañado es la regla. OtraregladelpreciojustoqueMercadoafirmacomoverdadme-

tafísica, en el sentido de universal e independientemente de cualquier circunstancia, y que es una evidencia economia, es la regla de que un

mismo producto con defecto debe ser vendido a un precio menor que el mismo

producto sin defecto9.

Es esta regla tan general y verdadera que no tiene excepción ninguna, sino que se debe inviolablemente guardar, aún cuando hubiere tasa, por lo que está dicho atrás, conviene a saber: que to-das las posturas se entienden cuando la merceria estuviere bien acondicionada. Aliás, se deja al dictamen natural y buena cons-ciência que valga tanto menos cuanto más arruinada estuviese10.

Las rebajas no tienen limites y no es necesaria la explicitación del defecto si la rebaja lo supone, pero no es lícita la venta, aún com rebaja, si esta puede ser nociva o perjudicial al comprador. Tenemos aqui otra regla para en comercio no reglado, una ley natural para uma actividad libreyconsensuada.SeráexplícitoMercadoaldecirquelaidentifica-ción del defecto de un producto, no es de responsabilidad del compra-dor aunque no conosca el defecto a la hora de la venta pero que existia.

Igualmente destaca la posibilidad de que el vendedor sea en-gañado en el caso de el que compra por menos de lo que vale por ig-norância del vendedor. El autor pone el ejemplo de um rústico que en-

9 Mercado, Tomás de. Suma de Tratos y contratos. Libro II, cap. VIII10 Mercado, Tomás de. Suma de Tratos y contratos. Libro II, cap. VIII

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cuentra uma piedra preciosa y, no conociendola, pidiese por ella um valorirris rio.Esdeobligaci ndelcompradorpagarlelo uevaleoadvertirlosobreelproducto ueestavendiendo.

Siporunladoelob etodelenga opuedeserlamercaderia,poroutropuedeserlaastuciadelvendedor uepuedeenga arconsudis-cursoopromoviendomonop liosocartelesconotroscomerciantes.om sdeMercado escribe largamente sobre los diferentes tiposde

monipodios,estoes,conv niosdepersonasasociadasparafinesil citos,y esto puede pasar entre comerciantes, productores, compradores e in-clusivepretadoresdeservicios. odosellospuedenpromovercartelesafimdeespecularconlanecesidada ena deesamaneracondicionarartificialmente el precio. Puede ser el casode alguien ue tiene susproductosalmazenadosenelalgunestablecimiento noselepermi-terenovarelal uilerparaobligarloavender.A nlosprestadoresdeserviciospuedenmancomunarseparanotraba arparaalguienafindeueesteaumentelaremuneraci noinclusivecomenzarumaobraeinterrumpirlaconelmismofin.

ueremos encerrar este art culo comuna citaci n del pr prioom sdeMercado ueresumesuposici nrespectoalprecio ustodemaneraadmirablementeclara:

Es ustopreciooel ueestapuestoporlarepublicaoel uecorrediaadiaenelpueblo,enlastiendas. es ustoseconformeelmercader com el tiempo y este aparejado em el ánimo a ganar y perder orapierdapor uelecost m s,oraganepor uemenos,debevenderporelvalor ueeldiatienesuproductoemp blico.Siunotra omerceriasdeFlandes cuandolleg aSevillavaledebalde,porlagrancopia abundancia ueha ,bienpodr guar-darla.Mas,silavende,noh detenercuentacoml ueaEllecost ,ocoste porelcamino,sinocoml ueahoraseapreciaemlaciudad,por ueaestavariedad venturaestasu etaelarteDelmercader.Ahoradebeperder outrodiaeltiempotendr cuidadoofrecerleoportunidad ocasi ndeganar.DiceelDoctorSantoueviveemmalestadoelmercader ueemtodo uiereganar.Estoes, uenopuedenidebeinteresarcuandoeltiempo sucesonol permitennifavorecen,antespiden uepierda h deestar

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aparejado a perder em semejantes casos, por guardar equidad y justicia, y ganar em los contrários. Y si em casi todos hay uma ve-leidad viciosa de vender, cuando vendemos, más caro que costo, no se há de seguir este apetito, que es corrupto, sino cuando la razón ló mandare o, a lo menos, permite11.

Alosojosdelafilosofiaecon micacontemporâneapuede,apri-mera vista, parecer liberal o estatista. Em realidad está proponiendo um equilibrio virtuoso entre dos extremos viciosos, y el responsable por este equilíbrio es la ley natural tan cultuada por la escolástica e muy especialmente por la segunda escolástica desde Francisco de Vic-toria. Lo que el autor está colocando como ley natural para el precio justo accidental o natural, es lo que llamamos buena fé. Esta buena fé no es fundamentada en la caridad cristiana, sino en una medida basa-da en una razón universalizable que condiciona irrestrictamente todos los actos humanos. En este caso, los actos políticos, entendiendo la eco-nomia y el precio de los productos como el acto político por excelencia dentro de una comunidad. Tomás de Mercado, no por ser Cristiano, mas especialmente por ser coerente con una tradición aristotélica que encuentra en la justicia la condición de posibilidad de la vida política, y entiende la justicia es una entidad fundamentada en la razón.

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A C

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Carvalho, M.; Hofmeister Pich, R.; Oliveira da Silva, M. A.; Oliveira, C. E. Filosofia Medieval. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 375-391, 2015.

i ei o das e es e F a is o de i o ia

Fe a do od i es Mo es aInstituto Federal Sul-Rio-Grandense

Este estudo visa tratar brevemente do direito das gentes (ius

gentium)nopensamentodofil sofoe te logoespanholFranciscodeVitoria,O.P.(148 /8 -154 ),pormuitosconhecidocomofundadordachamadaEscoladeSalamancaeportantosoutroscomoprecursordoDireitoInternacional.

O que enseja o tratamento do tema do direito das gentes em Vito-riaéocar tere u voco ueessedireitoapresentaemseupensamento,algo ue,ali s,nãoée clusividadesua,posto ue, bemantesdeVi-toria,odireitodasgentesforauma uestãoespinhosaparaalgunsfil -sofose uristas,o uerevelaocar tercontroversoeamb guodotema.

Muitosautores,sobretudoda readoDireitoouafinsaessa rea,abordamotemadodireitodasgentestentandoidentificarseessedi-reitoémesmoumprecursordo ueho esechamaDireitoInternacio-nal,e,logo,seeleémenosumdireitoestabelecidointer homines,comopropusera aioaodizer ueodireitodasgenteséodireito uearazãonaturalestabeleceuentreoshomens,emaisumdireitoestabelecidoin-

ter gentes,dadaamodificação ueVitoriafazaocitar aiosubstituindohomines por gentes.

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Emborainstigante,nãoépropriamenteessaacontrovérsia uesebuscaabordara ui.Esteestudovisatratardoproblemadanature-zadodireitodasgentes,ouse a,buscamostrar,apartirdeVitoria,adificuldadeemtornodatarefadedefini-locomoumdireitonaturaloucomoumdireitopositivo,visto ueopr prioMestreSalmantinoosci-laemsuacompreensãosobreanaturezadodireitodasgentes.Outros-sim,umavez ueVitoriatratadessedireito uandocomentaaSumma

Theologiae (ST)II-IIde om sdeA uino,esteestudobuscamostraromovimentodeafastamento ueVitoriafazemrelaçãoaoDoutorAn-gélico, ueemboranãotenhasidomuitoclaroterminologicamenteaodefiniranaturezadodireitodasgentes,deuind ciosde ueessedirei-toéantesnatural uepositivo,con uantos possaserconsideradoumdireitonaturalsecund rio,visto ueseusprinc piosnãoconsistemnosprimeirosprinc piosdasinderese, uesãoevidentesporsi,masapenasemprinc pios imediatamentededuzidosdeprinc piosevidentesporsi, e con uanto suas instituiç ese seuspreceitosnão tratemdo ueimplica ustiçaoue uidadeabsolutamente,masapenasrelativamente(cf.ST I-II, q.95; II-II, q.57).

Ora,esseafastamentoconsistenummovimentoargumentativodeVitoria uev odireitodasgentescomopositivo,natentativadeafastar-sedos urisconsultosromanosedeserfiel cl usulatomistasegundoa uala uilo uenãoimplicae uidadeporsi,comoaspr -ticasdodireitodasgentes,nãopertenceaodireitonatural.Ademais,esseafastamentoconsistenummovimentoargumentativo uerenovaasdiscuss es, ue om sdeA uinocertamentepretenderapacificar,sobreodireitodasgentesseralgocomoum terceirotipodedireito oumesmoum direitointermedi rio oude naturezah brida e ue,portanto,guardacaracter sticastantodonatural uantodopositivo,comosepoder ver,e.g.,emFranciscoSu rez, ueparecebemresumirtodaa comple idadedo temaao, tal comoo primeiroVitoria (daépocadoscoment rios ST),definirodireitodasgentescomopositi-vo,mascontendoalgumascaracter sticas ueoapro imamdonaturaletantasoutras uenãoofazemsersimplesmentepositivo.

Este te toest estruturadoem tr s seç es, todaselasbaseadasfundamentalmentenocoment riodeVitoria ST II-II, q. 57. Na pri-meira,esclareçoostermosdamatéria,medianteumabrevee posição

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do ueVitoriaentendepordireitonaturalepordireitopositivo.Nasegunda,apresentoo uechamode concepçãopositivista deVitoriaemrelaçãoaodireitodasgentesemostro ueessaconcepçãoolevaaadmitirumasériederessalvas afirmaçãode ueodireitodasgentesépositivo. Porfim,na terceira seção, tento e plicarpor ueVitoriaassumetal concepçãopositivista .Naconclusão,indico ueessacon-cepção, embora inconstante, pode ser verificada tambémna fasedeproduçãodasrelectiones, fasena ual comumentesediz ueVitoriateriarevistosua concepçãopositivista .

Nãotenhoa uiapretensãodedefender ueessaconcepção a-maisfoiabandonada,noentanto,esperopoderindicar uenãoéabso-lutamenteconvincenteatesede ueo segundoVitoria (daépocadasrelectiones)teriaaderidoaumafundamentaçãonaturalistadodireitodasgentes,e,acimadetudo,dese ochamaraatençãoparaomovimentodeafastamentoemrelaçãoaoA uinatee,posteriormente,osupostomovi-mentoderetornoaelemostram ue,mesmotalvezdandoumpassoemfalso,Vitoriafoidecisivoparareavivaradiscussãosobreodireitodasgenteseparaense arnovosmodosdesedefinirsuanatureza.

1. D N D P

Antesde tratardodireitodasgentes em seu coment rio ST II-II, .57,Vitoriaesclarecedoispontos importantesdesuafilosofiadodireito.Oprimeirotratadadivisãointernadodireito.Osegundoesclarececomodeveserentendidacadaparteinternadodireito.

uanto divisão,Vitoriafilia-se tradição ue tem in cio emArist teles,deconceberodireitodemodobipartido,asaber,emdi-reitonaturaledireitopositivo,visto ue o ustopol tico divide-seem natural e legal (cf.Ethica NicomacheaV).Oteordessadivisãoseguedepertooensinamentotomista.Odireito,ouo usto, uecon-sistenaade uaçãosegundoomododaigualdade(ST II-II, q.57, a.1; In II-II, q.57, a.1, p.6)1,éditoduplamente:deumlado,édito ustoa uilo

1 Aindicaçãodap ginadocoment riodeVitoria STII-IIéfeitaapartirdaediçãopreparaporVicenteBeltr ndeHeredia,cu arefer nciacompletaencontra-senofinaldestetrabalho.uanto sdemaisobrasdeVitoria uesãoreferidasoucitadas,asaber,aschamadasrelec-

tiones,aindicaçãodap ginaéfeitaapartirdaediçãopreparadapor e filo rd noz,cu arefer nciacompletatambémpodeserconferidanofinaldotrabalho.

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ueéigualapartirdanaturezadacoisa(ex natura rei); de outro, é dito ustoa uilo ueéigualapartirdeumadeterminaçãodaleiouporumpactoprivado(ex legis vel privato pacto),enãoapartirdanaturezadacoisa(InII-II .57,a.2,p.7).Dentreasaç es uesão ustasdoprimeiromodo,estãoopagamentodeumempréstimo,aeducaçãodaproleeaobedi nciaaospais.Essasaç es,bemcomotodasasdemais uesãojustas ex natura rei,são ustasnaturalmenteeconstituemoconte dodoius naturale. dentreasaç es uesão ustasex pacto, Vitoria enumera algumaspr ticascomerciaisee plica ueo ueé ustodessemodosechamaius positivum et humanum(InII-II .57,a.2,p.7).

Estabelecidaabipartiçãododireito,Vitoriaapresentaumaca-racterizaçãododireitonatural.Essacaracterizaçãoocorreapartirdedoist picos:

(i)distinçãonecessidade/voluntariedadeDireitoNatural:necess rio independentedavontadehumana

irrevog velpelohomem.DireitoPositivo:nãonecess rio dependentedavontadehuma-

na revog velpelohomem.

(ii)conhecimentododireitoDireitoNatural:conhecidoviarazãoouluznatural.Vitoriae -

plica ue épor analogia aomodo comoobtemos conhecimentonasci nciasdedutivas ueobtemosoconhecimentododireitonaturalediscernimosospreceitosdesteda uelesdodireitopositivo.

DireitoPositivo:conhecidoviaensinoeinstrução.

Caracterizaç es parte,aprincipalconclusãoasertiradada .57,a.2é ueoob etododireitonatural( ueéaigualdadeex natura

rei)éalgo ueconhecemosnaturalmente,atravésdaluz/razãonatural.Essedireitonãotemorigememnenhumaaçãodoshomensneméen-sinadopelatradiçãohumana,elesimplesmenteseimp ecomoumaforçainata(InII-II .57,a.2,p.11).

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2. D G D P

A ulgarpelomodo comoprincipia seu coment rio . 57, a., parece ueVitoria nãodir nadadiferentede om sdeA uino.OMestreSalmantinoiniciaapresentandoamesmadistinção, ue,se-gundooA uinate, instauraumadivisãonointeriordodireitonatu-ral:adistinçãoentreo usto ueporsuanaturezaéade uadooudeigualmedidaaoutrosegundoumaconsideraçãoabsoluta(secundum

absolutam sui considerationem) e o justo que por sua natureza é adequa-dooudeigualmedidaaoutronãosegundoumarazãoabsoluta(non

secundum absolutam sui rationem),mas segundoalgoapartirde suasconse u ncias(sed secundum aliquid quod ex ipso consequitur), ou sim-plesmente,usandoostermosdeVitoria,do ueé ustopor ueporsi(de se)implicaigualdadee ustiçaedo ueé ustopor ueseordenaaoutro (in ordine ad aliud) – STII-II .57,a. ,co. InII-II .57,a. ,p.12.

Diferentementede om sdeA uino,noentanto, ueprop eadistinçãoentreo ueé ustoabsolutamente(ouporsi)eo ues é ustorelativamente sconse u ncias(ouporoutro)afimdeinstituirumadivisãono interiordodireitonatural, como intuitodemostrar ueodireitodasgentesnãose identificacomodireitonaturalporestarinclu donesse,Vitoriaassimilataldistinçãotendoumaintençãodife-renteda ueladoA uinate:marcaradiferençaentreodireitonaturaleodireitodasgentesmostrando ueestenãoseidentificacoma uelepor se tratar de um direito positivo.

Naverdade,en uanto om sdeA uinoreivindicaadistinçãousto por si ou absolutamente / usto por outro ou relativamente paraconciliar lpiano, uedissera ueodireitodasgenteséumapar-tedodireitonaturalefavoreceraumainterpretaçãonaturalistadodi-reitodasgentes,comIsidorodeSevilha, uepropusera ueodireitodasgentesnãoseidentificacomodireitonatural,Vitoriavale-seda-ueladistinçãopararesgatarasupostaposiçãopositivista ue om sdeA uinoteriaassumidonoDe lege (STI-II .95)eparafiliar-se po-siçãoisidoriana, uetrabalhacomumaideiadetripartiçãododireitouenãopermite entrever alguma inclusãododireitodas gentes nodireitonaturale ue,logo,favoreceumainterpretaçãopositivistadodireito das gentes.

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ParaVitoria,o ueé ustoabsolutamente,comoopagamentodeumdep sitoouaobserv nciadaRegradeOuro,chama-sedireitona-tural. o ues é ustonamedidaem ueseordenaaoutracoisa ustae,logo,nãoimplicae uidadeouigualdadeporsi,masapenasporsuasconse u ncias,talcomoapropriedadeeaguerra, ueseordenamemvistadapazedaconc rdiadoshomens,Vitoriadizpertenceraodireitodasgentes(InII-II, .57,a. ,p.12).E,defato,atéessepontodoargumen-tonãoh diferençaentreVitoriae om sdeA uino,demodo uein-clusiveoe emplodapropriedadeéapresentadoporambos.Adiferençapropriamenteditaaparece uandoVitoriacomentaoa. considerandoadistinção ustoporsiouabsolutamente / ustoporoutroourelati-vamente comoe uivalentedadistinção,estabelecidanoa.2,entreoueé igualex natura rei eo ueé igualex pacto .Ouse a,adiferençaaparece uandoVitoriatomao ue éigualex natura rei ,e,logo,o uepertenceaodireitonatural,comoe uivalentedo ueé ustoporsiouabsolutamente e,poroutrolado, uandotomao ueé igualex pacto ,e,portanto,pertencenteaodireitopositivo,comoe uivalentedo ueéustoporoutroourelativamente .Assimsendo,o ueéade uadoaoutrorelativamentenãosatisfazae ig nciadaigualdadeex natura rei. ogo,odireitodasgentes, uetratado ueéade uadoouigualrelativa-mente,nãopodeseidentificarcomodireitonaturalnemconstituirumapartesuaoumesmoviraderivardele.Eumavez ueconcebeodireitodemodobipartidoe ue tudoo uenãoénaturalépositivo,Vitoriaconclui ueodireitodasgentess podeviraserumdireitopositivo,umdireito ueresultaapartirdeumestatutohumanofi adoracionalmente(ex statuto humano in ratione fixo)e ueseestabeleceporacordoe pressodoshomens(ex condicto hominum sancitum)–InII-II, .57,a. ,pp.12.14.

Noentanto,mesmosendopositivo,odireitodasgentestemca-racter sticas ueoapro imamdonaturale ueparecemincomunsaumdireitopositivo.Aolongodocoment riodeVitoriaaoa. da .57,époss velidentificarnom nimotr scaracter sticas uerevelam ueodireitodasgentesvitorianoémuitopeculiar:(i)acapacidadedeobri-garnoforodaconsci ncia (ii)aimport ncia uee ercenaconserva-çãododireitonatural (iii)aimpossibilidadedeserrevogadonotodo.

Aprimeiracaracter sticaocorreporocasiãodad vida,decunhomoral,sobreseépecadoviolarodireitodasgentes,nãos ondeele

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est promulgado,masinclusiveondenãooest .Conformee plicaoMestreSalmantino, em ual uer caso épecadoviol -lo.Mesmoempovosondeodireitodasgentesnãoest promulgado,constituipecadoinfringi-lopor ueasleisobrigamnoforodaconsci ncia(InII-II, .57,a. , p.15). E, comefeito, essa caracter stica revela apro imidadedodireitodasgentescomonatural,poissenãotivesse ual uerrelaçãocomele,nãoobrigariaemconsci ncia,masapenas ueles ueestãosu eitos convençãoestabelecidaparaumadeterminadaregiãoouco-munidadehumana.Naverdade,con uantose apositivo,odireitodasgentes temum car ter vinculativo comodireito natural (cf. SI VA CA V RIO,2011,p. 9),poisfoielaboradoapartirdo ueVitoriade-nominadeconsensocomumdetodasasgentesenaç es–ex communi

consensu omnium gentium et nationum (In II-II, q.57, a.3, p.15). Com base nisso,ficamanifesto ueodireitodasgentesguardaumaespéciedeuniversalidade ueoapro imadodireitonatural,mas ue,nãoobs-tante,nãopermiteinclu -lononaturalnemidentific -loaesse,vistoueocritério ltimoparasedividirodireitonãosãocaracter sticasacess rias,como,e.g.,universalidadeourevogabilidade,massemprea ustiçaoue uidadeabsoluta ueumacondutaouinstituiçãopodeounãocomportar. prerrogativaapenasdo ueé ustoporsiperten-ceraodireitonatural.

Asegundacaracter stica ueapro imaodireitodasgentesdonaturalconcerne capacidade uea ueletemdeconservareste.Em-boranãosededuzanecessariamentedonatural,pois isso implicariana identificaçãocomesse,odireitodasgenteséumimportanteres-pons velpelaconservaçãododireitonatural,demodoavirinclusiveaser ualificadocomonecess rioparasuaconservação.Oe emplodoof ciodosembai adores, ueéuma t pica instituiçãododireitodasgentes,éoportunoparae plicaressaconservação.Nãofossemosem-bai adores,apaz, ueédedireitonatural,nãopoderiaseralcançada(InII-II, .57,a. ,p.15).E,ampliandooe emplo,nãofossemasguerrasustas,nãosepoderiaalcançarapazeasegurançanãos darep blicacomodetodooorbe,poisdenenhumaformasepoderiaalcançarafe-licidadesetiranos,ladr eseespoliadorespudessemoprimireofenderaosbons e inocentespermanecendo impunes (De iure belli 1, p.818). Comefeito,énamedidaem uesãomeiosemvistadefins uesão

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bonsou ustosemsimesmos ueosatosdodireitodasgentescontri-buem conservaçãododireitonatural.Nãoobstante,mesmosendonecess rioparasuaconservação,odireitodasgentesnãoéabsolutaoucompletamentenecess rioparaconserv -lo.Mesmosemodireitodasgentes,conservar-se-iaodireitonatural,masnãosemmuitadificulda-de,nemsemguerrasedisc rdias(InII-II, .57,a. ,p.1 ).

Aterceiracaracter sticaanotarsobreodireitodasgenteséma-nifestamentecompartilhadacomodireitonatural.Elarefere-se irre-vogabilidade,mas irrevogabilidadenotodo.SegundoVitoria,éim-poss vel uetodooorbeseponhadeacordopararevogarodireitodasgentesnotodo,noentanto,taldireitonãoéimut velcomoonaturalepodeserrevogadoemparte,comoocorre,e.g.,comapr ticadanãoescravizaçãodosprisioneirosdeumaguerra usta uesed entrecris-tãos(InII-II, .57,a. ,pp.1 s).

E,paraconcluiressacaracterização,éoportunomencionar uea pro imidade do direito das gentes com o direito natural é tantaque, na relectio De indis recenter inventis prior,Vitoriapareceinclusiveapoiarumatesedeidentificaçãoentreelesoudederivaçãododireitodasgentesapartirdonatural.Essatese,aparentementecontradit riacomtudoo uedizemseucoment rio STII-II,ocorrebasicamenteemduaspassagensporocasiãodaapresentaçãodasalegaç es ur di-casleg timas uepermitiriamodom niocastelhanosobreoind genasamericanos.Ei-las:

Osespanh ist mdireitodeperegrinarpora uelasprov nciasedepermanecernelas,sem uepossamproibi-lososb rbaros,massemdanoalgumaeles.Issoseprovapelodireitodasgentes,ue édireitonatural oudodireitonatural sederiva, segundoote todasInstitutasI,2,1: O uearazãonaturalestabeleceuentretodasasgentessechamadireitodasgentes (De indis III, 2,pp.705s).

Ecertamentemuitascoisasparecemprocederdodireitodasgen-tes,o ual,porderivar-sesuficientementedodireitonatural,temmanifestaforçaparadardireitoeobrigar(De indis III, 4, p.710).

Fundamentalmente,o uepareceestarem uestãonessaspassa-genséaratificaçãodapro imidadedodireitodasgentescomodireito

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natural, e não alguma espécie de contradição. Essa ratificação ocor-remedianteaapresentaçãodemaisumacaracter sticadodireitodasgentes ueé comumaodireitonatural: adoconhecimentovia ratio

naturalis,ou,utilizandoae pressãodocoment rio STparae plicaroconhecimentododireitonatural,vialumen naturalis(cf.InII-II .57,a. ,p.12).Destarte, uandomencionaodireitodasgentescomoumdi-reitonatural,Vitoriapossivelmenteest asereferir possibilidadedea ueledireitoserconhecidonaturalmentepelarazão,talcomoestedi-reito.Inclusiveosabor genesamericanosconhecemodireitodasgen-tes,mesmonãofazendopartedaordem ur dico-positivadacristanda-de.Casonãofosseconhecidopelaratio naturalis,fariampoucosentidoosseteprimeirost tulosleg timos ue ustificamadominaçãodoscas-telhanossobreosabor genes,dado uesenãofossemconhecidasdemodonaturalaspr ticasdodireitodasgentes uesupostamenteosabor genesviolavam–direitosdeperegrinareevangelizar,bemcomoosacrif ciodeinocentes–,nãoseriarazo velimput -losportaispr ti-cas,tampoucopuni-losporin ria.Opactocomumdetodosospovosenaç esa ueVitoriaserefereé,porcerto,umpactoracional. amaishouveumareuniãodospovosparapromulgarodireitodasgentes.Asuareuniãodepromulgaçãoénon veldarazãoe,portanto,para uetaldireitoimponhalei,basta ueseparticipedarazão.Aboal gicafazconcluir ueosperegrinost modireitodevia ar,contanto uenãoimportunemosnativos, ueapregaçãoevangélicadevesertolerada,ueosembai adoresdevemserrespeitados, ueo ueéres nullius é doprimeiroa tomarposse,entreoutraspr ticas, todaselaspr ticasueemboranãoguardemvalorabsoluto,guardamumsensodecivili-dadecu oob etivo ltimoéaconviv nciapac fica,boaeordeiraentreasgentes.Essascondutasnossãoacess veisporumracioc niosimplesesemnecessidadedeumaleiescrita,emsuma,nossãoacess veisporratio ou lumen naturalis. odavia,issonão uerdizer ueodireitodasgenteséumdireitonatural. alcomoasoutrascaracter sticasenume-radasacima,adoconhecimentonaturaltambémpareceseracess ria.Nãoépor ueéconhecidonaturalmente ueaspr ticasecondutasdodireitodasgentesdei amdeserboasapenasrelativamenteepassamaserboasabsolutamente.

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3.

Con uantotenhagrandepro imidadecomodireitonatural,nãose pode perder de vista que o direito das gentes é um direito positivo, visto uenãotratado ueé ustoporsiouabsolutamente.Mas,por uerazãoVitoriadissentedatesede om sdeA uinode ueodireitodasgentesépartedodireitonatural,tese uenãopareceirrazo vel,aopon-todeterdeafirmarumaposiçãopositivista ueadmitev riasressalvasee ceç es Nãoteriasidomaisinteressanteapenasdistinguir,comofazoA uinate,odireitodasgentesdodireitonaturaldizendo uea uelefazpartedeste Aparentemente,sim,enãos pelaeleg nciaeocar terconciliat riodaposiçãodoA uinatecomotambémporsuacoer nciainterna.Noentanto,h maisraz espordetr sdaposiçãopositivista ueVitoriaassumeemrelaçãoaodireitodasgentes. madasraz esvaiaoencontrodeseuanseioderompercomumatradiçãodepensamentodosurisconsultosromanos ueminimizouovalordecondutas ueine ui-vocamenteguardam ustiçaporsimesmas2. rocandoemmi dos,umavez ueest convencidode ueodireitonaturaltratado ueé ustoporsiouabsolutamente,oMestreSalmantinodese afazer uecondutasva-lorosasporsimesmasse amdevidamenteinscritasemtaldireito.

Na verdade, a tradição romana de pensamento a ue uer seoporéa uecompreendeutratar-sededireitonaturaltudoo uedizrespeitoatodaanaturezaededireitodasgentestudoo ueconcerneao casodos sereshumanos.Essa ideia aparecenoDigesto edecorredaposiçãode lpiano, uefavoreceumainterpretaçãonaturalistadodireitodasgentes,ao ualific -locomoumdireitonaturalespec ficodog nerohumano:2 Alémdessa razão,entendo ueo rompimentocoma ideiade ueaescravidãoencontra

legitimidadenoseiodanaturezahumanaconstituioutraprov vel ustificativaparaenten-dermosaposiçãopositivistadeVitoria.Nãotratareidessasegundarazãoa uinestete to.Noentanto,remetooleitoraoartigoondee pusessarazão, OdireitopositivodasgenteseafundamentaçãonãonaturalistadaescravidãoemFranciscodeVitoria ,cu arefer nciacompletaencontra-senofinaldestetrabalho.Alémdessasduasraz esinternasaoconte dodaproblem ticaem uestão,nãosepodeafastarapossibilidadede ueVitoriatenha ueri-docorrigiroA uinatemedianteauniformizaçãodosdiscursosdoDe lege(no ual om sdeA uinosupostamenteteriadadomargemparasetomarodireitodasgentescomopositivo)e do De iustitia.Nãotenhoespaçoparae ploraressalinhaargumentativaa ui.Noentanto,nãodescartoapossibilidadede ueessalinhaargumentativapossatrazeralgumaluzparaseentenderopor u dodissensodoMestreSalmantinocomoDoutorAngélico.

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Direitonaturaléo ueanaturezaensinouatodososanimais porisso,essedireitonãoépr priodog nerohumano,masdetodososanimais,nascidosnocéu,naterraenomar. Odi-reitodasgenteséo ueasgenteshumanasfazemuso,e uepormeiodoentendimentopodedepreenderfacilmentedanatureza,eentretodososanimais,apenasoshomenscompartilhamentresi (Digesto I.1.3).

Entretanto,deacordocomesseentendimento,umasériedecon-dutasvalorosaspor si, enãoem relação outra coisa, tais comoospreceitosdoDec logo,ouvisporsi,nãosãocontadascomomatériadodireitonatural,poisnãoconcernematodaanatureza,masapenasaocasohumano.Consoanteesseuniversoconceitual,prestarcultoaDeusehonraraospaisnãoseriamprescriç esdodireitonatural,eapr ticadafornicaçãonãoseriaalgocontr rio natureza,umavez uenãoécomumaosanimais.Masentenderodireitodessaformasignificadarumae cessivae tensãoaodireitodasgentes:

Os urisconsultosestendemdemasiadamenteodireitodasgen-teseocompreendemdemododemasiadoamplo. eleses-tendemodireitodasgentesatudoa uilo uenãoécomumaosanimaisbrutos,i.e.,estendem-noatudoo ueécomumapenasaoshomens.Eleschamamdedireitonaturalsomenteo ueseestendeatodososanimais,logo,odireitonatural,segundoeles,écomumatodososanimais,racionaiseirracionais. honraraDeus, respeitaraospais, etc., condutas uenãoconcernemaosbrutos,eleschamamdedireitodasgentes,enãodedireitonatural(InII-II, .57,a. ,pp.1 s).

Para Vitoria, não é tese convincente delimitar o direito tendocomocritérioos seresaos uais seaplica.Essa tesedos urisconsul-tosromanos,a ualinclusive om sdeA uinosegue,éproblem ticanoparecerdoMestreSalmantino. verdade ueVitoriav combonsolhosocritériotomistado ueé ustoabsolutamenteeoassimila,masentende ueessecritérioseincompatibilizacomocritériodadelimita-çãododireitoapartirdosseresaos uaisseaplicaecomateseconse-uentede ueosanimaisdevemtambémfazerpartedodireitonaturalnamedidaem ue,talcomooshomens,tambémsãocapazesdeapre-enderalgoemabsoluto,umavez ue,como dito,tantocondutasva-

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lorosasporsi(comoasdoDec logo)dei amdeserobrigaç esnaturaisdohomem, uantocondutasvisporsi(comoapr ticadafornicação)dei amdesercontr rias natureza.

Ademais,atesedos urisconsultosnãos soainconvincentecomotambémfalaz.Seadivisãododireitosedevesseaosseresaos uaisseaplica,enãoaovalorabsolutoourelativodeumaconduta,apr priapossibilidadedeumdireitonaturalficariainviabilizada,poisnãoh leis ueseapli uematodasasnaturezas.IssoérealçadoporVitoriauandod e emplosdefen menos ueine uivocamenteseguemleisnaturais,mas uenãopoderiamseren uadradosnodireitonaturalemrazãodeseremcaracter sticosdeseresespec ficose,portanto,nãoseremcomunsaoutrosseresese ueratodaanatureza.Aoladodessese emplos,Vitorianovamentemencionacondutashumanasvalorosasporsi ueteriamdeseren uadradasnodireitodasgenteserevela,assim, ue ulgainconsistenteatesedos urisconsultosromanos:

E istemmuitas coisasdodireitonatural uenão se estendematodososanimais.Issoéevidente,poisédireitonatural ueofogosubae ueime,masissonãoécomumatodososanimais,nem spedras.Igualmente,pagarumdep sitoédireitonatural,ehonraraDeusédireitonatural,ainda ueissonãose acomuma todos os animais,mas somente aos homens, pois são coisasboas em si mesmas (In II-II, q.57, a.3, p.14).

Com base em tudo isso e na distinção usto por si ouabsolutamente / usto por outro ou relativamente , Vitoria concluiueodireitodasgentesdevepreferencialmentesercolocado(potius

debet reponi)nodireitopositivodo uenodireitonatural(InII-II, .57,a. ,p.14),acrescentando, inclusive, uedeveserpreferidaaposiçãodoste logo dos uristas,visto ueen uantoestesconsideramodirei-tonaturaldemododemasiadolatoeimpreciso,a uelesoconsideramade uadamenteedãocomoe emplosderealidades uesãoob etododireitodasgentescondutaseinstituiç es uesesuportamemumare-lação uenãoimplicaigualdadeporsuapr prianatureza,taiscomoapropriedadeprivada,amanumissãoeaconservaçãodoreino(InII-II,q.57, a.3, p.14).

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Fundamentalmente,conformevimos,odireitodasgentesé,paraVitoria,umdireitopositivo,ouaomenosumdireito uepreferencial-mentedeveseren uadradonopositivo.Elenãoseconformaaopa-drãodo ueé ustoporsiouabsolutamentee,porisso,nãopodevirasertomadocomoumdireitonatural.Ademais,essaposição ustifica-sepor ueoMestreSalmantinotemopro etodeafastar-sedaposiçãodosurisconsultosromanos, ue,aotomaremcomocritériododireitoasuaaplicaçãoaosseres,relegaramaumsegundoplanocondutasvalorosaspor si mesmas.

Nãoobstante,não sepodeperderdevista ue,mesmo sendopositivo,odireitodasgentesguardav riassemelhançascomodireitonatural,demodo ue,porvezes,sobretudonaDe indis,Vitoriapareceinclusiveprofessarumateseemfavordeumaidentificaçãoentreeles.De ual uerforma,noentanto,ateseforteemrelaçãoaodireitodasgentespareceserade ueelesetratadeumdireitopositivo.Porcerto,uandomencionaodireitodasgentescomonatural,Vitoria uersereferir outracaracter sticadodireitodasgentes ueécompartilha-dacomonatural:suapossibilidadedeserconhecidopelarazãoeluznatural,caracter stica uesea untaaoutras ue haviamsidomen-cionadasnocoment rio STe ueéimportanteparaosprop sitosdaltimapartedaDe indis.

um fato ueaposiçãodeVitoria ante anaturezadodireitodasgentesapresentatraçosdeinconst nciaetambéméverdade uev riosintérpretest mvistonessaobra(De indis) uma atitude revisio-nistadeVitoria.Noentanto,nãove orazãoparadeduziralgumtipoderevisionismoapartirdaaparenteinconst nciadaposiçãodeVito-ria.Alémdaambiguidadedote totomista,datentativadeVitoriaderemov -laedodese odeVitoriadelevar s ltimasconse u nciasumcritériorealmenteconsistenteparadividirodireito,essainconst ncianãopareceseroutracoisasenão ind ciode ueodireitodasgentestemumaine u vocanaturezah brida, ueofazumaespéciedeinter-medi rioentreonaturaleopositivo, medida ueéessencialmentepositivo,mas reunindo caracter sticas ue o apro imamdonatural,sem,contudo,faz -lonatural.Eissoéalgo uepodeserverificando

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nãos nocoment rio STcomotambémnasrelectiones,einclusivenapr priarelectio De indis,obra uepormuitost msidovistacomosinalde uma atitude revisionista.

Naverdade,nom nimoduasideiasimportantessobreonature-zadoD uehaviamsidoe postasnocoment rio STreaparecem épocadasrelectiones,eespecificamentenaDe indis:odireitodasgentesdecorredealgumtipodepactoouconsensohumano,enãosimples-mentedanatureza,emboranuncav contraessa odireitodasgentesnãoénecess rionemimut vel.

No De potestate civili,Vitoriadei aclaro ueodireitodasgentestemforçaapartirdopactodo ualseoriginae uetemverdadeirafor-çadelei(De potestate civili21,pp.191s).Emboranãocontrarieanature-za,odireitodasgentes,contudo,nãoemanapropriamentedanature-za,masdaautoridadede todooorbe (totus orbis), uedecertaformaconstituiumarep blica.Eessamesmaideiadepactoéclaramentere-tomada na De indis,numapassagem uemostra ueavinculaçãododireitodasgentesaodireitonaturalnãoéabsolutae ueaautoridadeda ualeleemananãoéapenasnatural,mastambémcontratual,i.e.,éoorbe,se atodoeleouapenassuamaioria,enãoumanatureza ueofariaimut velounecess riotalcomoodireitonatural.Eisapassagem:

Ecertamentemuitascoisasparecemprocederdodireitodasgen-tes,o ual,porderivar-sesuficientementedodireitonatural,temmanifesta força para dar direito e obrigar. Emesmo ue nemsempresederivedodireitonatural,parece uebastaoconsen-timento da maior parte do mundo, sobretudo se é para o bem comumdetodos.Defato,sedepoisdosprimeirostemposdeomundotersidocriadooureparadoap sodil vio,amaiorpartedoshomensestabelecesse ueoslegadosemtodasaspartesfos-seminviol veis, ueosmaresfossemcomuns, ueosprisionei-rosdeguerrafossemescravose ueconviria ueosestrangeirosnãofosseme pulsos,certamenteissoteriaforçadelei,mesmoueoutrosdiscordassem(De indis III, 5, p. 710).

evidente ueodireitodasgentesvitoriano temumasignifi-cativapro imidadecomodireitonatural. odavia, issonão impedeueelerepousesobreummanifestolastropositivista.Diferentementede om sdeA uino, uematizouodireitodasgentes ualificando-o

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comonaturalsecundum quid, afimdeconciliar lpianocomIsidorodeSevilha,Vitoriadecidiudefini-locomopositivopornãoguardaracaracter sticaessencial ueofarianatural(asaber:adetratardo ueé ustoporsiouabsolutamente),mas,bementendido,porguardarca-racter sticasacess riasdodireitonatural,optoupordefini-locomoumdireitopositivodetipomuitopeculiar,seguindo,assim,aviaisidoria-na,mastambémabrindocaminhoparaumacompreensãobemmaisinteressantee uiç bemmaisapropriadadodireitodasgentes, ualse a,nalinhadeumaviamédia,pois,afinal,nãolhecabeor tulodesimplesmentepositivo,tampoucoodesimplesmentenatural.

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‘Res a reor reris’ e ‘res a ratitudine’ a e af si a de e i e de a d

s avo a e o il e a de aivaUniversidade de São Paulo

I. Poucas noções foram tão centrais para a recepção do trabalho de Henrique de Gand no século XX quanto res. Tendo sido em grande parte desconsiderada por leitores oitocentistas1, é a partir da obra fundamen-tal de Jean Paulus, Henri de Gand: essai sur les tendances de sa métaphysique, publicada em 1938, que ela ganha um papel central na metafísica do Doutor Solene2. Ainda que seu caráter basilar seja ainda reconhecido por leitores atuais, a maneira como Paulus compreende que a metafísica de Henrique se desenvolva a partir da noção de res tem sido questionada por anAertsendesdefinsdadécadade1990,apartirdeuma inter-pretação da metafísica de Henrique de Gand que Aertsen vem desen-

1 A título de exemplo, vale notar que em nenhuma das três principais dissertações sobre Hen-rique de Gand escritas no século XIX a noção de resfigurademaneiracentral:H E ,F.Recherches historiques et critiques sur la vie, les ouvrages et la doctrine de Henri de Gand. Gand – Paris: ibrairie énérale de erou – Paulin, 18 8 ERNER, .Heinrich von Gent als

Repräsentant des christlichen Platonismus in dreizehnten Jahrhundert. ien: arl erold sSohn,1878 e F,M.de.Études sur Henri de Gand. ouvain–Paris:A. stpru st-Dieudonné–Féli Alcan,1894.

2 PA S, .Henri de Gand: essai sur les tendances de sa métaphysique,Paris:Vrin,19 8.Cf.tb.:Id. Henride andet l argumentontologi ue .Archives d histoire doctrinale et litt raire du moyen âge(19 5- ),pp.2 5- 2 Id. esdisputesd Henride andetde illesdeRomesurladistinctiondel essenceetdel e istence .Archives d histoire doctrinale et litt raire du moyen âge(1940-2),pp. 2 -58 eId. proposdelathéoriedelaconnaissanced Henride and .Revue Philosophique de Louvain47.1 (1949),pp.49 - .

Carvalho, M.; Hofmeister Pich, R.; Oliveira da Silva, M. A.; Oliveira, C. E. Filosofia Medieval. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 392-417, 2015.

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volvendo continuamente desde então em várias publicações3. Ambas as leiturast msidoin uentesnasinterpretaç escontempor neasdaobradeHenri uede and,demaneira ueacompreensãodadist ncia uesepara as leituras de Paulus e de Aertsen se torna capital para o atual estudodafilosofiaedateologiadoDoutorSolene.

Curiosamente,Paulus eAertsenbaseiamsuas respectivas inter-pretações da metafísica de Henrique em um mesmo texto que, no entan-to, cada qual lê a sua maneira. De fato, toda a querela diz respeito a um pequeno trecho do seu Quodlibet 7, q. 1-2 – mais precisamente, ambos discordam quanto à leitura da resposta ao segundo argumento principal dessas uest es.Valeapenareproduzirmosotrechocompleto:

“<...> cumpre saber que o mais comum de todos [omnium com-munissimum , uecontémtodosemum mbitoan logo in quo-dam ambitu analogo], é res ou [sive] aliquid, considerado tal que nada haja de oposto a ele senão o puro nada [purum nihil], que não é, nem é naturalmente apto a ser [nec natum est esse], nem em uma res fora do intelecto, nem mesmo em um conceito de um intelecto, pois nada é naturalmente apto a mover o intelecto sem que tenha a razão de alguma realidade [realitas]. Res, porém, ou aliquid tomado assim, o mais comumente, não possui a razão de predicamento – assim, de fato, seria um único predicamen-tocontendooCriadoreacriatura–,massedistingueporumadistinção análoga naquilo que é ou é apto a ser somente em um conceito do intelecto ou no próprio intelecto e naquilo que, além disso, é ou é naturalmente apto a ser na resforadointelecto 4.

3 AER SEN, .A. ranscendental houghtinHenr of hent .In:VANHAME , .(ed.).Henry of Ghent. Proceedings of the International Colloquium on the occasion of the 700th anniver-sary of his death († 1293). euven: euven niversit Press,199 ,pp.1-18 Id. Heinrichvonentund homasvonA uin berdie ranszendentalien.Ein e tvergleich .In: DEN-OPS, .,S EE ,C.(eds.).Henry of Ghent and the Transformation of Scholastic Thought. Studies

in Memory of Jos Decorte. euven: euven niversit Press,200 ,pp.101-25 eId.Medieval Philosophy as Transcendental Thought. From Philip the Chancelor (ca. 1225) to Francisco Suárez. eiden:Brill,2012,pp.27 - 14.

4 Henrique de Gand, Quodl.7, .1-2,ad2(ed.De ulf-MansionCentre,vol.11,pp.2 -7):“<…> sciendum quod omnium communissimum, omnia continens in quodam ambitu anal-ogo, est res sive aliquid, sic consideratum ut nihil sit ei oppositum nisi purum nihil, quod nec est nec natum est esse, neque in re extra intellectum, neque etiam in conceptu alicuius intel-lectus, uianihilestnatummovereintellectumnisihabensrationemalicuiusrealitatis.Resautem,sive ali uid siccommunissimeacceptum,nonhabetrationempraedicamenti,–sicenimessettantumunumpraedicamentumcontinensCreatoremetcreaturam–,seddistin-guitur distinctione analogica in id quod est aut natum est esse tantum in conceptu intellectus siveinipsointellectu,etinid uodcumhocautestautnatumestesseinree tra .

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Maisadiantenosvoltaremosparaumaleituraatentadestapas-sagem. O que importa agora é destacar como Henrique de Gand pa-rece apontar a prioridade da noção de res e de aliquid: omaiscomumdetodos, uecontémtodosemum mbitoan logoéres sive aliquid .Estranhamente,tantoPauluscomoAertsen,tendemadescartarassimque possível a referência ao aliquid, centrando-se somente em res – dis-cutiremos isso depois.

Comovemosnoe certo,Henri ueapontares e aliquid como o que há de mais comum, de maneira que a eles se opõe somente o puro nada, isto é, aquilo que não é nem pode ser, seja fora da alma ou no intelectomesmo.Emcontrapartida, res e aliquid compreendem tudo aquilo que é ou pode ser, seja somente no intelecto ou, também, fora da alma. Porém, tudo isso é contido naquele primeiro de maneira análo-ga – tanto porque res sive aliquid não pode ser um único predicamento que contenha sob si Deus e as criaturas, como porque (e isso é o mais importante neste momento) é preciso distinguir a res que diz respeito unicamente àquilo que é ou pode ser unicamente no intelecto daquela res que contém sob si aquilo que, além de ser ou poder ser no intelec-to, também é ou pode ser fora do intelecto. Para melhor caracterizar essas duas noções de res, Henrique recorre a uma distinção entre duas etimologias possíveis da palavra res que, a partir de sua origem, deli-mitamseusignificado.Assim,a uelares que é ou pode ser somente no intelecto é uma res a reor reris – ou seja, a palavra res proveniente do verbo reor, reris, que o Doutor Solene iguala a opinor, opinaris5. Já aquela res que, além de ser ou poder ser no intelecto, também é ou pode tam-bém ser fora do intelecto denomina-se res a ratitudine – isto é, a palavra res originada de ratitudo, explicada por ele em outro texto como firmi-tas6.Dondeprovémessafirmeza,estaremosemposiçãodeveradiante.Por ora, voltemos a Paulus e Aertsen.

Comefeito,Paulusabordaote to ueacabamosdelerlogonoinício de seu Henri de Gand,emumtrechosignificativamenteintitula-do Le point de départ de la métaphysique7. Tendo por base claramente a obrahom nimade osephMaréchal (como,ali s,opr prioAertsennos lembra8), não é inesperado que Paulus declare buscar aquilo que,

5 Henrique de Gand, Quodl.7, .1-2,ad2(ed.De ulf-MansionCentre,vol.11,pp.27-8).6 Henrique de Gand, Summa,art. 4, .2,co.(ed.De ulf-MansionCentre,vol.27,p.175).7 PA S,Henri de Gand, pp. 21-8.8 AER SEN, ranscendental houghtinHenr of hent ,pp.1-2.

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segundo Henrique, seria “o índice mais geral que afeta, em comum, nossas representações, a forma transcendental, no sentido kantiano, detodoprodutodointelecto 9.Esse ndicemaisgeralser ,segundoPaulus, justamente res sive aliquid. A res, portanto, é aquela noção mais fundamental – de caráter apriorístico10 – que dá a forma transcendental de toda e qualquer intelecção. Dando mais um passo, Paulus precisa sualeituraaoafirmar ueessanoçãomaisgeraléares a reor reris, que compreende sob si tanto os objetos de intelecção em geral como aque-les objetos que, além disso, podem vir a ser realmente fora do intelecto e constituem o campo da res a ratitudine.

A bem dizer, a res a reor reris está para além do ser, pois ela inclui sob si também aquilo que só é ou pode ser no intelecto, mas não é, nem pode ser realmente. Sendo assim, a metafísica se volta para a res a ratitudine como para seu sujeito, pois somente esta última se identi-ficacomoser11,comoveremos.FicaclaronaleituradePaulusopapelcentraldopensamentocomopontodepartidadetodaespeculaçãofi-los fica.Paraele,Henri uedesenvolveumafilosofia uepartedopen-samento para a realidade – da res a reor reris para a res a ratitudine12. O ponto de partida da metafísica será, assim, “trazer à luz, na variedade de ideias que nos ocorre de formar, uma ideia tão geral e tão simples uetodasasoutrasseencontremnelavirtualmenteinclusas 13. Assim,

a metafísica de Henrique parte do pensamento (res a reor reris), busca aquilo que no pensamento pode ser real fora dele (res a ratitudine) e nistoseconcentra.Est claro uealeituradePauluséprofundamentein uenciadapelopro etoneoescol sticoiniciadoemfinsdoséculoXIXde estabelecimento de uma filosofia cristã como resposta ao idealismo e ,assimchamada,filosofiamoderna.SeHenri uecomeçacomoidea-lista,eleterminadesenvolvendoumafilosofiacristãbemdignadesse9 PA S,Henri de Gand,p.22: Elleestl indiceleplusgénéral uia ecte,emcommun,nos

représentations,laformetranscendentale,ausens antien,detoutproduitdel intellect .10 Op. cit., pp. 65-6.11 Op. cit., p. 27.12 Op.cit.,p.21: Si c est lepropred unephilosophie idéalistedeprendresondépartdans

l ordredesconcepts,etnonpointimmédatementdansleschoses,ondoitdire u Henrideanddébuteenidéaliste .

13 Op.cit.,p.21: Aussibien,lepremiersoindelamétaph si uen est-ilpasdedécouvrir,sousladiversité ui caractérise les chosesde l e périence,une formalité fondamentaleparo ellescommunierait,maispluse actementdeme reenlumi redanslafouledesidées u ilnousarrivedeformer,uneidéesigénéraleetsisimple uetouteslesautress trouventvirtuellementcontenues .

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nome14, pois se ela parte do pensamento ela retorna à realidade, mes-mo que não à realidade em ato, mas à essência do real15.

Essavisãodametaf sicadeHenri uede andestabelecidaporPaulustemsidoamaisin uentedesdeentão,acomeçarpeloorienta-dor da tese que originou a obra deste último, a saber, Étienne Gilson. De fato, na segunda edição de seu La philosophie au moyen âge (1944)ena History of Christian Philosophy (1955), Gilson destaca o papel basilar da res (chose e thing, respectivamente) juntamente ao ser na formação da metafísica de Henrique16 nasegundaobra,emparticular, ilsonest claramenteatentoparaaanterioridadedare e ãosobreopen-samentoemrelação metaf sicanafilosofiadeHenri ue,poiselea antepõe à exposição da metafísica do Doutor Solene, já presente na segunda edição de La philosophie au moyen âge, uma exposição de sua doutrina da intelecção17. Igualmente enfáticos quanto ao papel central da noção de res para a metafísica de Henrique de Gand foram José Go-mez-Ca arenaemseuSer participado y ser subsistente en la metafísica de Enrique de Gand (1958),Ma hias aarmannemDeus, primum cognitum (1999)eM rioSantiagodeCarvalhoemA novidade do mundo(2001)18. Sem dúvida, trazer à baila a res como tema central da metafísica do Doutor Solene foi um dos efeitos mais promissores na obra de Paulus.

Seu resultado mais curioso, porém, surgiu a partir de estudos mais recentes acerca da noção, bem posterior a Henrique, de supertrans-cendens – isto é, daquelas noções que abraçam aquilo que é realmente (ens reale) e aquilo que é somente pensável (ens rationis), como apprehen-

14 Cf.otrechodanota12eop.cit.,p. 80.15 Cf.op.cit.,p.28.Aposiçãosegundoa ualametaf sicadeHenri uedizrespeitoprimeira-

mente a essências tem sido a leitura padrão entre os intérpretes de sua obra durante grande partedoséculoXXeagoranoXXI.Essaposiçãofoiformuladabemclaraesucintamente,aindaem1950,porFrederic Coplestoncomaf rmula: ... ametaph sicoftheintelligi-ble,ametaph sicofessencesratherthanoftheconcrete ... (A History of Philosophy. Vol. II:

Medieval Philosophy. From Augustine to Duns Scotus.Ne or :Doubleda ,199 3,p.47 ).16 I SON, .La philosophie au moyen âge.Paris:Pa ot,20115,pp.4 9-44 eId.History of Chris-

tian Philosophy.Ne or :RandomHouse,1955,pp.447-5 .17 Cf. I SON,History of Christian Philosophy,pp.447-8.18 Respectivamente: OME -CAFFARENA, .Ser participado y ser subsistente en la metafísica

de Enrique de Gand.Romae:apudaedes niversitatis regorianae,1958,pp.45-7 AAR-MANN,M.Deus, primum cognitum. Die Lehre von ott als dem rster annten des menschlichen ntelle ts bei einrich von ent ( ).M nster:Aschendor ,1999,pp.120-8 eCARVA-HO,M.S.de.A Novidade do Mundo: Henrique de Gand e a Metafísica da Temporalidade no Século

XIII. isboa:FundaçãoCalouste ulben ian,2001,pp.245-52.

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sibile, cogitabile ou intelligibile19.Poisbem,tanto ean-FrançoisCourtineem Suarez et le système de la métaphysiquecomoOlivierBoulnoisemÊtre et représentationapresentamametaf sicaapartirdoséculoXVI usta-mente como centrada, respectivamente, na noção de ente como aqui-lo que é apto a ser e na noção de representação do pensamento – em poucas palavras, segundo ambos a metafísica moderna é mais voltada para o pensável do que para o ser em ato, para o supertranscendens do que para o transcendens. Ora, se for assim e a leitura que Paulus defende estiver correta, Henrique de Gand aparece como o grande precursor do pensamento moderno! De fato, foi justamente ele que introduziu a res como noção anterior ao próprio ser, como aquilo que compreende o meramente pensável e aquilo que pode ser, também, fora do pensa-mento.E,ainda ueparaoDoutorSoleneametaf sicadigarespeito res a ratitudine – àquilo que pode ser não somente no intelecto, mas tam-bém fora dele –, a res a reor reris não deixa de ser o ponto de partida da re e ãofilos fica.Enfim,Henri uede andsurge–segundoDo leeFolger-Fanfara20 – como precursor da noção de supertranscedens e, para alémdisso–segundoCourtineeBoulnois21 –, como um dos grandes precursores da metafísica moderna como um todo.19 Cf.FO ER-FANFARA,S.Das ,Super ranszendentale und die Spaltung der Metaphysi . Der

nt urf des ranzis us von Marchia. eiden–Boston:Brill,2008, pp.14-18 eDO E, .P.Bet eentranscendentalandtranscendental:themissinglin .The Review of Metaphysics 50.4(1997),pp.78 -815.Valenotarigualmente ueAlainde iberaabordaasmesmasno-ções de res a reor reris e res a ratitudine, tendo por horizonte não o surgimento da noção de supertranscendente,masosestudossobrerefer nciaesignificação uev msedesenvolvendodesde o século XIX (La référence vide. Théories de proposition.Paris:P F,2002,pp.2 1-9).

20 DO E, Bet eentranscendentalandtranscendental ,pp.798-801 eFO ER-FANFARA, Das ,Super‘-Transzendentale,p.70.

21 CO R INE, .-F.Suarez et le système de la métaphysique.Paris:P F,1990,pp.184-5e 78-9 eBO NOIS,O.Être et représentation. Une généalogie de la métaphysique moderne à l’époque de Duns Scot (XIIIe – XIVe).Paris:P F,1999,pp.481-2e514-5.Algumasdessaspassagenssãoigualmente citadas emAER SEN, Heinrich von ent und homasvonA uin , p. 108,nota15. antoCourtinecomoBoulnoisconcordamemapontarametaf sicamodernacomouma tinologia –umaci nciadoaliquid, do to ti(CO R INE,Suarez et le système de la mé-taphysique,p.5 eBO NOIS,Être et représentation,pp.505-15).Nessecaso,umafilosofiacomo a de Henrique de Gand – onde, seguindo a interpretação de Paulus, claramente res e aliquid têm um papel metafísico fundamental – se presta muito bem ao papel de precursor diretodametaf sicamoderna.Essasobservaç esnosremetemtambémparaatentativadeAndrédeMuraltdedesenvolverumestudodasdiferentesmetaf sicas,istoé,doestabele-cimento de uma descrição das diferentes metafísicas já desenvolvidas a partir dos diversos fundamentos–arriscando,poder amosdizer dosdiversospontosdepartida –adotadosemcadametaf sica.Entreelas,encontramos ustamente la métaphysique du transcendantalres e‘la métaphysique du transcendantal ali uid (M RA ,A.Néoplatonisme et aristotelisme dans la métaphysique médiévale.Paris:Vrin,1995,pp.24-8).Henri uede and,dealgumamaneira,estaria entre essas duas metafísicas, se levarmos a cabo a leitura de Paulus.

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Masestariacorretaessa leitura Nãoseriaprecipitadoatribuirum afastamento tão grande de Henrique com relação a seus precurso-resimediatos E,pior,nãoseriaanacr nicoatribuir-lheumatalpro i-midadecomdiscuss esposterioresaeleemséculos

Pois bem, a resposta de Jan Aertsen a essas perguntas parece ser afirmativa,poismaisdo ueatrelarafilosofiadoDoutorSoleneade-senvolvimentos t picosdametaf sicaproduzidaentreos séculosXVeXVII,eleprefereenfatizaraclaradepend ncia ueh entreameta-f sicadeHenri uede andea uelaproduzidaporBoanventuradeBagnoregioe om sdeA uino,noconte todarecepçãodaobradeAvicena22. Porém, mais do que essa ênfase no importantíssimo proble-madasin u nciassofridasporHenri ue, importa-mea uiantesdetudo a própria interpretação da sua metafísica proposta por Aertsen. Emprimeirolugar,este ltimosecolocaclaramentecomocontr rio interpretação de Paulus23.Não ueelediscordedopapelcentral ueeste atribui à res da metafísica de Henrique. Pelo contrário, a sua dis-cord nciaest precisamentenainterpretaçãodessecar terbasilardaresnafilosofiaprimeira.Como foidito,Aertsentambémbaseiasuainterpretação no trecho de Quodl. 7, q. 1-2, que destacamos acima – porém, a direção de sua leitura é muito diferente. Para ser breve, po-demos dizer que, segundo ele, não há propriamente nenhuma noção anteriornafilosofiadeHenri uede and noçãode ente, ue éopróprio sujeito da metafísica. Ou melhor, a anterioridade de qualquer noção deve ser considerada de acordo com dois aspectos, um ontoló-gicoeoutrocient fico.Assim,deumpontodevistadateoriadaci n-cia [theory of science], o enséa uilo ueprimeiroseconhececientifi-camente (como o próprio Henrique declara em certos trechos de sua obra24), enquanto que a res a reor reris, compreendendo igualmente o

22 Cf.AER SEN, ranscendental houghtinHenr of hent ,pp.9-14.Sobreaorigemdanoçãofilos ficaderes,cf.HAMESSE, . Reschezlesauteursphilosophi uesdes12e et 13e si cles .In:FA ORI,M.,BIANCHI,M.(eds.).RES. III Colloquio Internazionale del Lessico

ntellettuale uropeo oma, gennaio .Firenze:Olsch i,1982,pp.91-104 e RON-DE X,A. ResMeaninga hingof hought: heIn uenceoftheArs donati .Vivarium45(2007),pp.189-202.

23 AER SEN, ranscendental houghtinHenr of hent ,pp.1- .24 Por exemplo, em Summa,art. , .1(ed.De ulf-MansionCentre,vol.21,p.245): Sed ui-

dquid contingit hominem scire necesse est quod ens sit, ita quod prima ratio scita oportet uodsitratioetintentioentis ... .

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que pode e o que não pode realmente ser, remete a um estado de pré--conhecimento (intelectual ou, quiçá, somente imaginário) da quidade – ou seja, a res a reor reris é, propriamente, anterior ao conhecimento cient fico. ambémdopontodevistaontol gico,aindasegundoAert-sen, a res a reor reris é um conhecimento indeterminado que pode vir ou não a ser determinado em um conceito de res a ratitudine. Ou seja, em qualquer caso, a res a reor reris não é uma ‘forma transcendental do pensamentoaomodo antiano enempossui ual uercar teraprio-rístico, como quer Paulus. Antes, ela é somente um meio que o Doutor Soleneencontradee pressarfilosoficamentea etapaanteriorao co-nhecimentointelectualcient ficoacercadealgoou,mesmo,anterioraoconhecimento intelectual que se tem sobre algo (por exemplo, no caso daquilo que conhecemos somente pela imaginação)25.Empoucaspala-vras, mais do que constituir a forma de todo conhecimento intelectual, o conhecimento da res a reor reris é uma etapa anterior ao conhecimento intelectual propriamente dito sobre algo.

Para Aertsen, a metafísica de Henrique ainda é uma metafísica de essências uma vez que ela tem por sujeito a res a ratitudine (que se converte com o ser) e, portanto, aquilo que pode ser realmente26, porém ela não mais parte do pensamento para voltar à realidade das essências. Pelo contrário, no intelecto, “a anterioridade é relacionada, como aparece pela discussão do sétimo Quodlibet, à maneira pela qual ointelectoé movido pelarealidade 27. Assim, mais do que um a priori do conhecimento intelectual, a res a reor reris designa uma etapa ante-rioraoconhecimentocient ficoeintelectualemgeral.

Tal como a posição de Paulus, também esta interpretação de Aert-sentemsidomuitoin uente.Abemdizer–e,acredito,dadoomodofragmentário em que este último tem desenvolvido sua leitura –, mui-tas obras vieram completar e aclarar essa interpretação que vem sendo propostaporele. mprimeiroe emplodissoéRodrigo uerizoli ue,em seu artigo Au-delà de la scientia transcendens?, introduz a interpre-taçãodeAertsennoconte todadiscussãocontempor neasobreaca-25 AER SEN, ranscendental houghtinHenr of hent ,pp.1 -8.26 AER SEN, “Heinrichvon entund homasvonA uin ,pp.104-10 eId.Medieval Philoso-

phy as Trascendental Thought, pp. 276-82.27 AER SEN, ranscendental houghtinHenr of hent ,pp.1 -7: hefirstnessisrelated,

as appeared from the discussion of the seventh Quodlibet,tothe a in hichthehumanintellectis moved b realit .

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racterização da metafísica tardo-medieval como scientia transcendens , algo uevemsendodesenvolvidoh algumtempopor udgerHon-nefelder29.Emsegundo lugar,devemosdestacaro livroHeinrich von

ent ber Metaphysi als erste issenschaftdeMartinPic avé,ondetodaa posição de Aertsen é cuidadosamente reconstruída e inserida em um estudo de grande fôlego sobre a metafísica de Henrique que vem fazer par com a dissertação de Paulus 0. A leitura de Aertsen integra muito bem a obra de Henrique de Gand no contexto de sua própria época – emparticular,comovimos, smetaf sicasdeBoaventurae om sdeA uinoeaomovimentoderecepçãodafilosofiadeAvicena–sem,noentanto, excluir seu papel, quiçá, fundamental (em todo caso, pelo me-nos, relevante) para o desenvolvimento, a longo prazo, da noção meta-física de supertranscendens31.Enfim,suainterpretaçãopareceproduzirumarespostamuitoplaus veldeumpontodevistahistoriogr fico leituradePaulus ue,tendosuaorigememnocampodein u nciaediscussão neoescolástico da passagem dos oitocentos para os novecen-tos, hoje nos parece irremediavelmente datada.

Vistoo uãofundamental–e,porissomesmo,comple a–éadiscussão sobre resnacontempor nearecepçãohistoriogr ficadaobrade Henrique de Gand, estamos agora em posição de nos voltarmos para os próprios textos deste último e determinar mais cuidadosamen-te o que ele quer dizer com res, aliquid, res a reor reris e res a ratitudine. Nãoser meuob etivoprincipaltomarpartena uerela ueacompa-nhamosacima.Pelocontr rio,meufimébemmenosambicioso.Par-tindodeumasugestãodeAertsensegundoa ualh umamodificaçãoda caracterização da relação entre res, res a reor reris e res a ratitudine en-

28 ERI O I,R. Au-del delascientia transcendens ecasHenride and .In:PICH,R.H.(ed.). New Essays on Metaphysics as Scientia Transcendens. Proceedings of the second International

Conference of Medieval hilosophy, held at the ontifical Catholic niversity of io rande do Sul ( C S), orto Alegre razil, August, . ouvain-la-Neuve:FIDEM,2007,pp. 9-89.

29 Pore emplo,emHONNEFE DER, . ns inquantum ens. Der egri des Seiendes als solchen als egenstand der Metaphysi nach der Lehre des ohannes Duns Scotus.M nster:Aschendor ,1979 eId.La métaphysique comme science transcendantale. raduitparI.Mandrella,revuparO.Boulnois, . reischetP.Capelle.Paris:P F,2002.

0 PIC AV , M. einrich von ent ber Metaphysi als erste issenschaft. Studien zu einem Metaphysi ent urf aus dem le ten viertel des . ahrhunderts. eiden–Boston:Brill,2007,pp.18 -244.

31 Opr prioAertsenodestacaem ranscendental houghtinHenr of hent ,pp.17-8.

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tre o quinto e o sétimo Quodlibets de Henrique32, desejo expandir essa afirmaçãoemostrar ueoDoutorSolenemodificaadescriçãodano-ção de res a partir do Advento de 1282 (isto é, na ocasião da sessão do Quodlibet 733) pela introdução da noção de analogia na discussão sobre a res34. Dito isso, começarei pela leitura das obras de Henrique de Gand anteriores ao Advento de 1282 nas quais ele discute aquelas noções.

II. O primeiro texto da obra de Henrique de Gand em que se oferece um estudo aprofundado da noção de res, em 1276 ou antes, é o artigo 21 – de Deo an sit in se et absolute –, questão 2 – utrum Deus

in esse communicat cum creaturis – da Suma.Comovemos,otema ueanima esse trecho das suas questões ordinárias é o ser de Deus e o ser dascriaturasearelação ueh entreambos.Meuinteressenãoé,cer-tamente, estudar toda sua resposta, mas somente um único passo da sua argumentação na qual surge a necessidade do recurso à res.Eisoe certoem uestão:

“De fato, embora res, quando é dita a reor reris, seja um nome in-diferente ao ente e ao não-ente [ad ens et non ens], quando aquilo que é concebido por este nome res possui uma razão exemplar no primeiro agente, a partir da qual é naturalmente apta, pela potên-cia efetiva dele, a ser produzida em um ser atual, se lhe atribui um ser de essência, pelo qual se diz que a mesma res concebida é um ente ou uma essência. De fato, aquilo que não possui uma razão exemplar no primeiro é um puro não-ente. Aquela res, porém, que é um ente ou uma natureza e essência por se lhe atribuir um ser pela [propter] razão exemplar que possui no primeiro, é ainda in-diferenteaoenteeaonão-entenae ist nciaatual aelaseatribuioser de existência atual, pelo qual se diz que a mesma res é existente emato,porelaserfeitaporDeuseserseuefeito 35.

32 Op. cit., pp. 2-6.33 A cronologiadas obrasdeHenri ue seguida a ui é a uela fornecidapor AARMANN,

Deus, primum cognitum,pp.50-2.A sãoreunidasasprincipaisposiç esarespeitodotema.4 A associação entre analogia e res em Quodlibet 7, q. 1-2, é enfatizada por Jos Decorte, em

Henr of hentonAnalog .Criticalre ectiononPaulus interpretation .In:VANHAME ,.(ed.).Henry of Ghent. Proceedings of the International Colloquium on the Occasion of the 700th

Anniversary of his Death († 1293). euven: euven niversit Press, 199 ,pp. 71-105 (ver,especialmente,pp.92-4).

35 Henrique de Gand, Summa,art.21, .2(ed. es e,p.52 ed.1520,fol.124v ): Cumenimres utdicitura reor,reris nomenestindi erensadensetnonens,e hoc uodconceptum

hoc nomine quod est res, habet rationem exemplaris in primo agente, ad quam nata est per

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Nessapassagem,nãosurgeaindaares a ratitudine porém,nossão dados muitos elementos para pensarmos a noção de res a reor reris. Emprimeirolugar,érelevanteofatode ueotermo res não é carac-terizadocomoumaintelecçãoouumconceito,mascomoum nome (nomen) pelo qual algo é concebido (conceptum hoc nomine quod est res). Issoimporta,por ueficaclaro, dein cio, ueacaracterizaçãodares éabrangenteosuficienteparacompreenderintelecç eseoutrosmo-dos de conhecimento, que não o próprio conhecimento intelectual. Res, portanto, é simplesmente o nome mais comum que damos a algum conhecimento.Masissonãoétudo,poisessenomemaisgeralnãoésomente res, mas precisamente res a reor reris. Aquilo que é concebido como res a reor reris é completamente indiferente a ser ou a não ser. O ueessaindiferença uerdizerficapatentelogoemseguida, uandoHenri ueafirma ue,dentre essas res a reor reris, algumas possuem um exemplar em Deus36 e, por isso mesmo, a estas últimas se atribui um serdeess ncia .Ouse a,a uelaindiferençadares a reor reris diz respeito a possuir ou não possui um exemplar em Deus ou, o que é o mesmo, a possuir ou não possuir um ser de essência. Ora, aquilo que não possui um exemplar em Deus (e, portanto, que não possui um ser de essência) é um purum non ens. Assim, algo concebido como res a reor

reris é concebido como indiferente a ser um ente ou o puro não ente. Porém, há mais um passo a ser dado, já que ainda estamos no campo da essência e não da existência – de fato, mesmo aquilo que possui um ser de essência é indiferente a possuir ou não um ser existência. Assim, aquela res que possui um ser de essência poderá ser efetivada por Deus

eiuse ectivampotentiamproduciinesseactuali,a ibuitureiesseessentiae,a uoresipsaconcepta dicitur esse ens aut essentia aliqua. Quod enim in primo rationem exemplarem non habet purum non ens est. Haec autem res quae est ens sive natura et essentia aliqua ex eo uodeia ribuituressepropterrationeme emplarem uamhabetinprimo,adhucestindi-erensadensetnonensine istentiaactuali,cuie hoc uodfactaestaDeo,eteiuse ectus,a ribuituresseactualise istentiaea uoresipsadicituressee istensinactu

36 Sobre a complexa noção de idea e exemplar (bem como acerca da importante noção de ide-

atum) emHenri ue, cf. R MANN, H. ur deenlehre der ochscholasti unter besonderer er c sichtigung des einrich von ent, ottfried von ontaines und a ob von iterbo. Inaugural-DisssertationzurErlangungderDo tor rdegenehmigtvonderphilosophischenFa ult tderRheinischenFriedrich- ilhelms- niversit tzuBonn,19 7 eRI , .M.de. ntour-nantimportantdansl usagedumotideachezHenride and .FA ORI,M.BIANCHI,M.. D A. Colloquio nternazionale del Lessico ntelletuale uropeo oma, gennaio, . Roma:Edizionedell Ateneo,1990,pp.89-98.

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(a partir do exemplar que ele dela possui) e, só então, ela possuirá um ser de existência atual.

Sobre a distinção entre ser de essência e ser de existência, Hen-rique de Gand não poderia ser mais sucinto e esclarecedor nessa mes-ma uestão:

todasascriaturassãoatribu dasaDeuscomofimuno,formaunaeeficienteuno comoumfimpelo ual sãoaperfeiçoadasquanto ao bem ser, como uma forma pela qual participam em uesediga ueelaspossuemserdeess ncia,comoeficientepelo

que possuem que convenha a elas simplesmente [simpliciter] o serdee ist nciaatual 37.

Assim, em outras palavras, algo concebido como res a reor reris é indiferente a participar ou não de Deus como forma e, ainda que par-ticipe de Deus ao ter nele um exemplar, é indiferente a ser efetivado ou não por Deus em uma existência atual. Aquilo que não possui Deus nem mesmo como forma é, para Henrique, purum non ens. Porfim,desta uemosofatode ueHenri uenãoafirma ueares a reor reris é indiferenteaoenteouaonada ,mas ueelaé indiferenteaoenteeaonão-ente .Defato,ser importanteatentarparaousodenihil ao ler os próximos excertos.

Para completar a passagem que lemos na página anterior, de-vemosagoraavançarparaa uestão4destemesmoartigo–utrum esse

Dei sit ipsa essentia eius –, pois é aqui que surgirá a noção que faltava no trecho acima, a saber, res a ratitudine:

“<...> cumpre saber que uma é a razão de alguma res criada en-quanto é dita res a reor reris, outra a de seu ser de essência, que convém a ela por ser uma natureza e uma essência e uma res dita a ratitudine.Eissoporpossuirumarazãoe emplaremDeus,

37 Op.cit.(ed. es e,p.52 ed.1520,fol.124vI): ... omnesverocreaturaea ribuuntursubs-tantiaeutunifini,etuniformaeetunie cienti,utfinia uoperficiuntur uoadbeneesse,utformaea uaparticipant uoddicanturhabereesseessentiae,ute cienti,a uohabentuodeisconveniatsimpliciteresseactualise istentiae .Entretanto,asimplicidadedoenun-

ciado de Henrique é enganadora. De fato, a distinção entre esse essentiae e esse existentiae é um dos temas mais complexos de sua obra e foi, em seu próprio tempo de vida, um dos elemen-tosmaispol micosdeseupensamento.Sobreissoeparaumae tensabibliografiasobreotema,cf.,pore emplo, NI -PRA ON ,C. Introduction .In:Être, essence et contingence.

Henri de Gand, Gilles de Rome, Godefroid de Fontaines.Paris: esBelles e res,200 ,pp.7-12 .

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como foi frequentemente dito. De fato, toda criatura é dita ‘res absolutamente [absolute], porque de si ela diz ao menos algo so-bre o qual algum conceito é naturalmente apto a se formar na alma.Porém,elaéditauma ess ncia euma natureza porpos-suir no ser divino uma razão de exemplar, segundo a qual é na-turalmente apta a ser produzida no ser atual, pelo que convém a ela o ser de essência. Donde, como foi dito acima, aquilo que não possui uma tal razão exemplar em Deus é um puro nada [pu-rum nihil] na natureza e essência e não é uma res de algum pre-dicamento nem é possível que se o faça como efeito [in e ectu], pois Deus não pode fazer como efeito [in e ectu] nada cuja razão e emplarnãopossuaemsital uese aemalgumacriatura 38.

Emborase acomple aericaemelementos,essapassagememgrande parte retoma o que já vimos na questão 2. Para começar, aten-temos para a referência ao purum nihil. Devemos notar que Henrique não se refere aqui a um purum nihil sem mais, mas a um purum nihil in

natura et essentia. Assim, o purum non ens – isto é, aquilo que não possui razão exemplar em Deus e, assim, não pode ser efetivado – é um purum

nihil in natura et essentia, isto é, um puro nada no que diz respeito à na-tureza e à essência que, segundo Henrique, são denominações reserva-das justamente para aquilo que possui uma razão exemplar em Deus e um ser de essência. Ora, esse purum nihil, não possuindo uma essência, também não será algo em um predicamento (isto é, não será uma subs-t nciaouumacidente),o ueficar maisclaronapr imapassagemque estudarmos. Assim, vê-se que ainda não encontramos aqui uma referência ao purum nihil sem mais e oposto a qualquer conhecimento, que encontraremos em Quodlibet 7.38 Henrique de Gand, Summa,art.21, .4(ed. es e,p.78-80 ed.1520,fol.127rO): Adcuius

intellectumsciendum uodalia ratio cuiuslibet rei creataeut res est a reor, reris dictaquam ipsius esse essentiae quod convenit ei ex eo quod est natura et essentia quaedam, et res aratitudinedicta,ethoce eo uodhabetrationeme emplarisinDeo,utsaepedictum

est. Dicitur enim omnis creatura res absolute ex hoc quod de se dicit aliquid de quo saltem natus est formari conceptus aliqualis in anima. Dicitur autem essentia et natura quaedam ex eo quod habet in divino esse rationem exemplaris, secundum quam nata est produci in ac-tualiesse,a uoconveniteiesseessentiae. nde,utdictumestsupra, uodtalemrationemexemplarem in Deo non habet purum nihil est in natura et essentia, nec est res alicuius prae-dicamentinecpossibilefieriine ectu, uiaDeusnihilpotestfacereine ectucuiusrationeme emplareminsenonhabetutsitin ualibetcreatura . mapassagemmuitosemelhanteaessa e provavelmente posterior em alguns anos, produzida não depois de 1279, pode ser lida em Summa,art.28, .4,co.(ed. es e,p.204 ed.1520,fol.1 7vV-1 8rV).

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Para além dessas observações, há nesta passagem pela primeira vez uma referência explícita à res a ratitudine. Ao que parece, ela desig-na algo que possui um ser de essência, uma natureza e, portanto, uma razão exemplar em Deus (tudo aquilo a respeito do que a res a reor reris

é indiferente). Agora, se, por um lado, vimos que as noções de res e de essên-

cia estão estreitamente relacionadas – já que a determinação de algo como res a reor reris ou res a ratitudine depende de aquilo que é conce-bidopossuirounãoumserdeess ncia–,poroutro,ficapatentepelapassagem que o Doutor Solene pretende distinguir os dois nomes. As-sim, ess ncia e natureza ficamreservadosparaacaracterizaçãome-tafísica daquilo que possui um exemplar em Deus e, portanto, é apto a ser efetivado pela ação divina. ‘Res ,desuaparte,éadotadoparade-nominar aquelas criaturas que são naturalmente aptas a formar algum conceitodesinaalma.Emoutraspalavras, ess ncia e res , uandoreferidos às criaturas, designam o mesmo, porém sob pontos de vistas distintos – no jargão escolástico, por elas as criaturas são ditas em ratio-

nes diversas. Daí que Henrique inicie o trecho se referindo à ‘razão de alguma res (ratio alicuius rei).

O termo ‘ratio est , provavelmente, denominando, com umnome geral, um modo acerca de uma res, sob o qual ela é naturalmen-te apta a ser concebida determinadamente sem que seja concebida sob outro [modo], sob o qual igualmente seja naturalmente apta a ser concebida 39,comoHenri ueafirmaemQuodlibet5, . .VoltandoaSuma,art.21, .4,podemosdizer ueumamesmacriaturapodeserconsiderada sob diversas rationes,istoé,sobdiversosmodos:umacria-tura é dita res pelo próprio fato de poder ser concebida e é dita ‘essên-cia ou natureza porpossuirume emplaremDeus ueatornana-turalmente apta a ser produzida efetivamente em um ser de existência atual.Noentanto,logoovocabul riodares e da essência se unem, pois uma criatura é dita res a reor reris ao ser concebida como indiferente a ser ou não ser, isto é, a possuir ou não um exemplar em Deus e, portan-to,umserdeess ncia en uanto ueessamesmacriaturaser ditares

a ratitudine ao ser concebida como algo que possui um tal ser de essên-39 Henrique de Gand, Quodl.5, . ,co.(ed.1 1 ,fol.2 8va-b): Sedratiohicappellaturgene-

rali nomine modus aliquis circa rem, sub quo nata est concipi determinate absque eo, quod concipiatursubalio,sub uosimiliternataestconcipi ... .

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cia, mas é ainda indiferente a ser produzida em um ser de existência ou não. Assim, ‘res dizapossibilidadedealgoserconhecido ess ncia enatureza dizemapossedeumserdeess ncia porém,res a reor reris

e res a ratitudine conjugam os dois vocabulários ao correlacionar fun-damentalmente o conhecimento e a presença ou ausência de um ser de essência naquilo que é conhecido.

Porfim,deveficarclaro ue,emboraHenri ueeste adelimitan-do a discussão às criaturas neste trecho da sua Suma, essas noções vão certamente além daquilo que é ou pode ser criado por Deus. Isso por-que, se a res a ratitudine necessariamente designa somente aquilo, pelo menos, apto a ser criado (por possuir um exemplar em Deus), a res a

reor reris compreenderá o criável e o não-criável – melhor dizendo, ela designará aquilo que é indiferente a possuir ou não um exemplar em Deus e, destarte, ela é indiferente a que algo possua ou não uma essên-ciae,enfim,a uealgopossaounãosercriado.Ouse a,ares a reor reris é, de fato, indiferente ao ente e o não-ente ou, em outras palavras, ao ente e ao nada em natureza e essência.

Comoest ficandocadavezmaisclaro,nessaprimeiracaracte-rização que o Doutor Solene propõe da noção de res – isto é, antes de 1282 – res a reor reris e res a ratitudine não se excluem. Dessa maneira, algo pode ser concebido sob a razão de res a reor reris e sob a razão de res a ratitudine, sendo a única diferença em cada caso o quão indife-rente será a concepção dessa res com respeito a seu ser. Ou seja, cada vez mais parece que, ao diferenciarmos os dois modos de res, estamos nos referindo não a campos do conhecimento distintos, mas a modos distintos de conhecer um mesmo cognoscível. Sendo mais preciso, es-tamos de fato nos referindo aqui a etapas distintas do conhecimento sobrealgoeéisso ueHenri ueafirmaemSuma,art.24, . ,produ-zido antes de 1277.

Nessa uestão–utrum eadem cognitione cognoscitur de Deo an sit

et quid sit –, é apresentada toda a sucessão percorrida desde o conhe-cimento confuso incomplexo até o conhecimento proposicional da atualidadedealgo,passandopeloconhecimentodistinto,definit rioecient ficodessemesmointelig vel.Essetemaédesenvolvidoapar-tir da enumeração de duas perguntas fundamentais no percurso em direçãoaoconhecimentocient fico,as uaisHenri uevaibuscarnos

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Analíticos posterioresdeArist teles.Elas,defato,sãocl ssicas:quid est e si est. Porém, cada uma ocorre duas vezes, uma com respeito ao conhe-cimento incomplexo e outra com respeito ao conhecimento complexo, demaneira uetemos uatrointerrogaç es:quid est de incomplexo, si

est de incomplexo, quid est de complexo e si est de complexo – nesta or-dem40.Essareduplicaçãodoconhecimentosedeveaofatode ue,cadauma das duas fórmulas – quid est e si est, sempre nesta sucessão – ora expressa um pré-conhecimento (praecognitio), ora uma questão (qua-

estio).Emoutraspalavras,cadaumadessas f rmulase pressa tantouma questão propriamente dita, como a base para o estabelecimento de uma outra questão41.Issoficar maisclaroseseguirmosopercursodo conhecimento através dessas fórmulas, o que nos permitirá tam-bém compreender de que maneira a distinção entre res a reor reris e res a

ratitudine pode ser tomada como uma distinção entre etapas sucessivas do conhecimento de um mesmo cognoscível.

Começandopelaprimeiraetapadoconhecimento,semprepar-timos – na consideração sobre qualquer cognoscível – de um conheci-mento (a bem dizer, de um pré-conhecimento) do quid est:

“O quid est, de fato, é um pré-conhecimento nu, simplesmente um conhecimento [simpliciter cognitio] e um intelecto confuso da-uilo ueé significadopelonome, uenãodeterminadanadano significadodonome–nem ue se ada uilo ue é entenanatureza das coisas, nem que seja não-ente, mas somente que de si mesmo [de se] é um conceito e res, não a ratitudine, mas dita a reor reris, que pela [ex] sua intenção não determina um ser de essência ou de existência nem um não ser. Pelo contrário, ela se porta com indiferença àquilo que é o puro nada (como o hirco-cervo ou o traguelafo) e àquilo que é uma essência e natureza, comofoie postoacima.E,porisso,peloconhecimentodoseuquod quid est enquanto é um pré-conhecimento, só é preciso que

40 Henrique de Gand, Summa,art.24, . ,co.(ed. es e,p.200 ed.1520,fol.1 9rS): Cognitoautemderesiestdeincomple o,et uidestdefinitivaratione,restatdubitatiodesiestcom-ple o ... .Nestapassagem,nãoécitadooconhecimentoquid est de incomplexo, porque ele é uma praecognitio, que antecede mesmo o conhecimento si est de incomplexo, como diremos.

41 Henrique de Gand, Summa,art.24, . ,co.(ed. es e,p.192 ed.1520,fol.1 8vO): Sciendumergo primo de si est, et similiter de quid est, quod utrumque uno modo est praecognitio, se-cundum quod Philosophus determinat de eis in principio primi Posteriorum. Alio vero modo est quaestio, secundum quod determinat de eis in principio secundi Posteriorum.Etsehabentuidestetsiestinomnibussuisacceptionibusadinvicemsecundumhuncordinem .

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se intelija o que é dito pelo nome, como se diz no princípio dos Posteriores.E isso éoprimeiro ueseapreendepelavox e que precede qualquer outra notícia e ciência de qualquer res. De fato, ele precede o conhecimento si est aut non est sobre a res signi-ficada, tanto uantoaoserdeess nciacomo uantoaoserdeexistência. Donde, o conhecimento de seu quod quid est, sendo um pré-conhecimento, se porta indiferentemente quanto ao ente e ao não-ente, e não determina qualquer um dos dois. De fato, eleésignificarpornometantoo ueécomoo uenãoé,comose diz no segundo dos Posteriores. Donde este quid est nada mais é do que a razão do nome [ratio nominis] – a saber, o que o nome significa quid, scilicet, nomen significet 42.

Comovemos,essapassagemligaestreitamenteosdoisvocabu-l rios uevimosacima– i a ueleda natureza e ess ncia , uere-metem à posse de um exemplar e de um ser de essência, e [ii] aquele da ‘res , ueremete concep ão de algo como possuindo ou não esse exemplar e esse ser de essência – com um novo vocabulário aqui in-troduzido: iii a ueledoquid est / si est, que remete à ordenação do conhecimento. Dessa maneira, ao mesmo tempo em que a noção de res vaisetornandomaisclaraparan s,oseucomple opapelnafilosofiade Henrique – aliás, principalmente no que diz respeito à intersecção entre a doutrina da intelecção e a metafísica, diga-se de passagem – vai transparecendo.Emoutraspalavras,apassagemdopré-conhecimentopara a atribuição de um ser de essência à coisa conhecida – ou, o que é o mesmo, a passagem da concepção de algo como res a reor reris para o conhecimento desse mesmo cognoscível como res a ratitudine – é, antes 42 Op.cit.,ibid.: uidestenimpraecognitioestnuda,etsimplicitercognitio,etintellectuscon-

fusus eius uod significatur per nomen, nihil in significato nominis determinando, ne uequod sit eius quod est ens in rerum natura neque quod sit non ens, sed solum quod de se sit conceptusali uis,et res nonaratitudine,seda reor,reris dicta, uaee suaintentionenondeterminatali uodesseessentiaevele istentiae,ne uenonesse,sedsehabetperindi eren-tiam ad id quod purum nihil est, ut hircovervus vel tragelaphus, et quod est essentia et natura ali ua,secundum uodsuprae positumest.Etideoe cognitioneeius uod uidestutestpraecognitio, solum quod dicitur per nomen intelligere oportet, ut dicitur in principio Poste-

riorum.Etestprimum uodpervocemapprehenditur,etpraecedensomnemaliamnotitiametscientiamdere uacum ue.Praeceditenimcognitionemderesignificatasiestautnonest,sive uoadesseessentiaesive uoadessee istentiae. ndecognitioeius uod uidest,cumestpraecognitioindi erentersehabetadensetnonensetneutrumdeterminat.Significareenim per nomen est et quae non sunt sicut ea quae sunt, ut dicitur secundo Posteriorum. ndeistud uidestnihilaliudest uamrationominis, uid,scilicet,nomensignificet .

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de tudo, um problema de ordenação do conhecimento humano, desde omais nfimoeconfusoatéaci ncia.

Maisumavezsurgea uia uelepurum nihil que está incluso da noção de res a reor reris e que, como vimos, é um purum non ens ou, ainda, um purum nihil in natura et essentia. Agora, porém, Henrique nos fornece um exemplo daquilo que é purum nihil e esse exemplo surge na figurapadrãodealgocomposto,istoé,umhircocervus ou tragelaphus, uenãoésenãoumamisturadeduascriaturasreais:obode(hircus /

tragos) e o cervo (cervus / helaphos). Ou seja, nesse estágio inicial de co-nhecimento – a bem dizer, nesse momento de pré-conhecimento quid

est de incomplexo –, conhecemos igualmente como res a reor reris ‘ho-mem e hircocervo .Somenteemumsegundomomento,aopergun-tarmos (com base no princípio do terceiro excluído, que é a primeira concepção comum da alma) si est vel non est de incomplexo com respeito a cada um deles, concluímos que o homem possui uma essência e uma natureza(enfim,ume emplaremDeus),en uantoohircocervoéumpuro nada em natureza e essência. Assim, nessa segunda etapa do co-nhecimento,conhecemos homem comores a ratitudinee hircocervo ainda como res a reor reris. Isso quer dizer que somente acerca do pri-meiro poderemos avançar e perguntar quid est de complexo, para pro-curarmosdefini-lo.Obtidaadefinição,poderemosperguntar uantoaessemesmoconceitode homem si est de complexo, para saber se ele é somente enquanto essência ou, de fato, existe em um ser atual efetu-ado por Deus. Por outro lado, nosso conhecimento sobre o hircocervo jamais sairá do primeiro estágio4 .

Com isso, fica claro algo ue vimos somente de passagemh pouco, a saber, por que o purum nihil in natura et essentia não diz respei-toapredicamentos.Comosev ,anossaconsideraçãoacercadele a-mais ultrapassa um pré-conhecimento e, portanto, nunca haverá uma definição ueolocalizeemumdospredicamentos,se acomosubst n-ciaouacidente. tilizandotermosde ueHenri uesevalenoartigo4de suaSuma (nãoposterior a 1280), uilo ue se concebe como

4 Cf.Henri uede and,Summa,art.24, . ,co.(ed. es e,pp.192-200 ed.1520,fol.1 8vO-139vS). Todo esse texto é um locus classicus tanto para a discussão sobre a noção de res em Henri uecomoparaasuadoutrinadoconhecimentodeDeus.Sobreele,cf.PA S,Henri

de Gand,pp.28-4 OME -CAFFARENA,Ser participado y ser subsistente,pp.44-8 ePOR-RO,P.Enrico di Gand. La via delle proposizioni universali.Bari: evante,1990,pp.17-40.

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res a reor reris advém uma ratio entis sive esse quidditativi “com respeito à forma do exemplar divino, ao qual é tomada a razão de res dicta a ratitudine, que é a mesma que a ratio entis quidditativi. De fato, algo é um ratum quid por aquilo mesmo pelo que é um quidditativum quid e o converso”44. Portanto, como já sabíamos, é somente ao concebê-lo como res a ratitudine que atribuímos o ser a algo – tomando-o como um ente. Agora, porém, notamos que é somente como res a ratitudine que algo possui uma quididade, uma r itas (como vimos ainda no início45) e a certitudo que acompanha qualquer ente, “pela qual cada um é aquilo que é absolutamente [absolute] em sua natureza e essência, sem qualquer condição ou adição”46 ou, melhor dito, “cada res possui, emsuanaturezaespecífica,umacertezaprópria,queésuaquididade,pela qual ela é aquilo que é e não outro que não ela”47. O conhecimento de algo como o hircocervo (ou a quimera, que Henrique adiciona em Quodl. 3) não possui nada semelhante48. Em poucas palavras, somente algo concebido como res a ratitudine é concebido como uma quididade e,portanto,comoalgodefinívelelocalizáveldentreospredicamentos.Unicamente sobre isso se pode perguntar quid est de complexo e, depois, si est de complexo.

Voltando à passagem de Suma art. 24, q. 3, destacada cima, se te-mos um conceito quiditativo daquilo que concebemos como res a rati-tudine, o mesmo certamente não pode ser dito daquilo que concebemos como res a reor reris. De fato, esta última é conhecida somente enquanto ésignificadaporumnome(signi cat r er no en) ou, em uma expres-são mais técnica também utilizada por Henrique, in ratione nominis;

44 Henrique de Gand, Summa, art. 34, q. 2, co. (ed. De Wulf-Mansion Centre, vol. 27, p. 174): “Quod tamen ut amplius eluscescat ex veritate inventa in creaturis, paulo amplius inchoan-do, sciendum quod ratio rei dictae a reor reris prima est in unoquoque ente creato, et super illam rationem rei prima est ratio quae fundatur, est ratio entis sive esse quidditativi, quae convenit ei ex respectu ad formam divini exemplaris, a quo accipitur ratio rei dictae a ratitu-dine, quae eadem est cum ratione entis quidditativi”.

45 Cf. nota 6, acima.46 Henrique de Gand, Summa, art. 34, q. 3, co. (ed. De Wulf-Mansion Centre, vol. 27, p. 190): “Et

hocestquodsignificatcertitudinem,quaestunumquodqueidquodestinnaturaetessentiasua absolute, absque omni conditione et additione”. Esse trecho é cuidadosamente estudado por Aertsen, em “Heinrich von Gent und Thomas von Aquin”, pp. 104-6.

47 Henrique de Gand, Quodl. 3, q. 9, co. (ed. 1613, vol. 1, fol. 98va): “Hic est advertendum, quod secundum quod vult Avicenna in primo Metaphysicae suae, unaquaeque res in sua natura specificahabetcertitudinempropriam,quaeesteiusquiditas,quaestidquodest ... ”.

48 Henrique de Gand, Quodl. 3, q. 9, co. (ed. 1613, vol. 1, fol. 99rb).

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sobre a res a reor reris conhecemos apenas aquilo que é indicado pelo nome49. Ora, sendo essa primeira etapa de conhecimento indiferente e comum ao ente e ao não-ente, sempre partimos desse conhecimento por nome, seja conhecido o ‘homem’ ou o ‘hircocervo’. Para sermos precisos, vale destacar que esse nomen a que o Doutor Solene se refere não é um conceito – não é algo como um ‘nome mental’ –, mas uma vox. De maneira que, em última instância, todo nosso conhecimento sobre algo parte daquilo “que se apreende pela vox e que precede qualquer outra notícia e ciência de qualquer coisa”50. Resumindo, aquele pré-co-nhecimento de algo sob a razão de res a reor reris é, precisamente, um conhecimento in ratione nominis.Dessamaneira,começaaficarpatenteque, mais do que um conhecimento intelectual, essa concepção de algo como res a reor reris é algo associado fundamentalmente à imaginação.

ComodizopróprioHenrique:

“a razão da res dita a reor não pode ser concebida pelo intelecto – embora o possa ser pela imaginação – senão sob a razão do ente quiditativo e, no entanto, nada pode possuir a razão do ser sem possuir antes a razão da res dita a reor, na qual se funda a razão daquele ser”51.

Se, por um lado, a concepção de um inteligível como res a reor

reris antecede a sua concepção como res a ratitudine, isto é, como ente; por outro lado, a sua concepção como res a reor reris depende de algu-maconcepçãoanteriordealgooutrocomoente.Porexemplo,sópode-mos conceber o hircocervo como res a reor reris, porque já concebemos ‘bode’ e ‘cervo’ como res a ratitudineapósoshavermosconhecidocomores a reor reris. Já com esse conhecimento prévio de dois entes, podemos juntar suas imagens para compor uma imagem de algo que seja parte bode e parte cervo, a que denominamos ‘hircocervo’. Entretanto, dele não sabemos mais nada senão aquilo que está em nossa imaginação e,

49 Henrique de Gand, Summa, art. 24, q. 3, co. (ed. Teske, p. 192; ed. 1520, 138vP).50 Cf. nota 42, acima.51 Henrique de Gand, Summa, art. 34, q. 2, co. (ed. De Wulf-Mansion Centre, vol. 27, pp. 174-5):

... etiamratioreiareordictaenonpotestconcipiabintellectu–licetpossitabimaginatio-ne – nisi sub ratione entis quidditativi, et tamen rationem esse nihil potest habere, nisi prius habendo rationem rei dictae a reor, in qua fundatur ratio esse illius”. Esse caráter imagina-tivo da res a reor reris é destacado por Aertsen, em “Transcendental Thought in Henry of Ghent”, pp. 14-6.

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se o conhecemos intelectualmente, isso não ocorre senão através dos conceitosdeentescomooconceitode bode eoconceitode cervo .Outro problema será saber se esse conhecimento imaginativo que pos-suímos do hircocervo corresponde a uma essência. Se pesquisarmos, veremos que não e nosso conhecimento do hircocervo estará fadado a permanecer na imaginação, jamais vindo a se tornar um conceito do intelecto – por este último somente poderemos conhecer as partes compostasnaimaginação,asaber, bode e cervo .

Porém, se seguirmos esse caminho, nos depararemos com um resultado curioso. Pelo que vimos até agora, qualquer cognoscível é primeiramente concebido como res a reor reris e, quando a esta última adicionamos a ratio entis quiditativi, o concebemos como res a ratitudine, de maneira que a res a reor reris parecia manter uma prioridade sobre a res a ratitudine. Agora, porém, está cada vez mais claro que, de fato, a concepção de algo como res a reor reris, mais do que possibilitar um conhecimento como res a ratitudine,dependedeste ltimo.Certamen-te, essadificuldadepode ser facilmente resolvida se formularmosoproblemadaanterioridadedaseguintemaneira:oconhecimentosoba razão de res a reor reris antecede o conhecimento sob a razão de res

a ratitudine no que diz respeito a um mesmo cognoscível, porém na ordem do conhecimento em geral, o oposto é válido, pois sempre a concepção de algum cognoscível sob a razão de res a ratitudine prece-derá a concepção de algum outro cognoscível sob a razão de res a reor

reris52.Comisso,podemoscompreenderasposiç esantag nicasa ueautores como Paulus e Aertsen foram levados. De fato, a noção de res

a reor reris desliza muito facilmente entre uma anterioridade e uma posterioridade com respeito à noção de res a ratitudine e, portanto, com respeito à noção de ente que se converte com esta última.

Ameuver, éprecisamentepor essadificuldade ue,noAd-vento de 1282, Henrique de Gand reformula a sua descrição da noção de res.Eleofazaohabilmenteintroduzirnessatem tica–note todeQuodlibet 7, q. 1-2 que destacamos no início deste trabalho – a noção de analogia. A analogia é um dos elementos fundamentais da metafí-sica do Doutor Solene e, por isso mesmo, não chegaremos nem perto

52 Aleituradessapassagem ueensaioa uié,namaiorparte,tribut riade ERI O I, Au--delà de la scientia transcendens ,pp.84- ePIC AV ,Heinrich von Gent, pp. 219-27.

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de abordá-la em sua real complexidade53.Contentar-me-ei,portanto,com uma citação que, não obstante curta, será o bastante para nosso prop sito: oenteéditoantesdeumdo uedeoutroedeumporou-tro e, assim, de certo modo [quodam modo analogicamente 54.Nãomeimporta tanto aqui a referência à noção de ente e sim a rápida descrição fornecidadaanalogia.Esta ltimaécaracterizadapordoiselementost picosdeumnomean logo: i eleéditoantesdeumdo uedeoutroe ii eleéditodeumpelooutro.Emoutraspalavras,aanterioridadeno dizer condiciona uma dependência no dizer. São esses os dois ele-mentos que Henrique irá introduzir na sua discussão sobre res para resolveracon ituosarelaçãoentreres a reor reris e res a ratitudine.

Agora será o caso de retomarmos aquela passagem inicial deste texto e estudá-la mais cuidadosamente. Proponho que ela seja divida emduaspartes,assim:

“<...> cumpre saber que o mais comum de todos [omnium commu-nissimum , uecontémtodosemum mbitoan logo in quodam ambitu analogo], é res ou [sive] aliquid, considerado tal que nada haja de oposto a ele senão o puro nada [purum nihil], que não é, nem é naturalmente apto a ser [nec natum est esse], nem em uma res fora do intelecto, nem mesmo em um conceito de um intelec-to, pois nada é naturalmente apto a mover o intelecto sem que tenhaarazãodealgumarealidade 55.

Nessaprimeirametadedacitação, podemosnotarumamu-dança introduzida por Henrique na formulação de sua concepção de res. De fato, a prioridade aqui não é mais atribuída à noção de res a

53 Otemadaanalogia,nosestudoscontempor neossobreHenri uede and,vem,emgeral,associado a considerações sobre sua discussão acerca do conceito de ente. Alguns trabal-hosrecentessobreotemasão:MARRONE,S.P. Henr of hentandDunsScotusontheno ledgeofBeing .Speculum .1 (1988),pp. 22-57 PORRO,Enrico di Gand, pp. 41-71DECOR E, Henr of hentonAnalog AARMANN,Deus, primum cognitum,pp.104-1 PANNENBER , .Analogie und enbarung. ine ritische ntersuchung zur eschichte des Analogiebegri s in der Lehre von der otteser enntnis. ingen:Vandenhoec Ruprecht,2007,pp.129-1 9 PIC AV ,Heinrich von Gent,pp.158- 7e ES E,R. Henr of hentandtheAnalog ofBeing .In:Id.Essays on the Philosophy of Henry of Ghent.Mil au ee:Mar-ue e niversit Press,2012,pp.247- .

54 Henrique de Gand, Summa,art.21, .2,ad2(ed. es e,p. 2 ed.1520,fol.125vV): Etsecun-dum hoc ens per prius dicitur de uno quam de altero, et de uno per alterum, et ita quodam modoanalogice .

55 Cf.nota4,acima.

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reor reris, mas simplesmente à noção de res, que faz par com aliquid. O surgimento de aliquid neste contexto é um tanto inesperado para um leitor de Henrique, visto que essa partícula é utilizada por ele prin-cipalmente nas expressões esse aliquid e hoc aliquid esse, que longe de qualquer comunidade, apontam respectivamente a determinação da res em uma espécie indivisível (in specie athoma) e a própria determina-ção do suposto singular56! Por outro lado, essa referência a aliquid pode estar justamente associada ao estudo da expressão hoc aliquid contem-por neoaoQuodlibet 7 que encontramos em Suma art. 53 (produzido, provavelmente,nomesmoanode1282).A ,nosdizHenri ue ue:

“quando se diz hoc entende-se [intelligitur] que uma res ou natu-reza é um quid indivisum ou um individuum em si pela demons-tração [demonstrationem] da res, que pode ser observada [conspici] comosolhos.Mas uandosedizly aliquid, exprime-se que ela é aliud quid a condiviso, tanto na natureza e na essência individida comonosuposto 57.

idaestapassagem,minhahip teseé ueoaliquid que Henrique faz se converter com res em Quodlibet 7 seria um simples aliud quid a

condiviso (que podemos traduzir mais ou menos como ‘outro que não ocompartilhado ),semmais–istoé,indiferente,comores, ao ser de essência e ao ser num suposto. Dito de outra maneira, assim como res

dizsomente conceb vel omaiscomumenteposs vel,essealiquid diria somente indivis vel omaiscomumenteposs vel.Poisbem,atéondepude pesquisar, Henrique não desenvolve esse uso de aliquid e, ao fa-zê-lo, estamos perigosamente nos afastando de seu texto, de modo que cumpre retornar a nossa leitura.

O que primeiro notamos depois do surgimento desse aliquid na passagem de Quodlibet 7destacadaé ue,finalmente,estamosempre-sença de um purum nihil que se opõe a resdemaneiramaisgeral.Estenão é um purum nihil in natura et essentia ou, o que é o mesmo, um pu-

56 Henrique de Gand, Summa,art.2 , .1,co.(ed. es e,p.112 ed.1520,fol.157rD) cf.tb.Summa,art.75, .1,ad4(ed.1520,fol.290r ed.1 4 ,p.1422a9): ... essesimpliciterali -uidconvenitreiratione uaestnaturaetessentiaetaDeoe emplata .

57 Henrique de Gand, Summa,art.5 ,(ed.1520,fol. 0vC- 1rC ed.1 4 ,p.8 b ): Cumenimdicitur hoc intelligitur res sive natura esse quid indivisum sive individuum in se propter demonstrationemrei, uaeoculisconspicipotest.Cumveroadditurl ali uid,e primituruodsitacondivisoaliud uid,etinnaturaetessentiaindividuaetinsupposito .

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rum non ens, mas um nihil inatualizável e inconcebível pelos homens e, mesmo, por Deus. Assim, esperaríamos ouvir de Henrique que res ou aliquid ditos o mais comumente recobrem todo o campo do cognoscí-vel, porém não é o que acontece. De fato, a bem dizer, res e aliquid ditos o mais comumente recobrem todo um campo de analogia.E,nesteponto,éprecisoatentarparaasegundaetapadapassagem:

“Res, porém, ou aliquid tomado assim, o mais comumente, não possui a razão de predicamento – assim, de fato, seria um único predicamentocontendooCriadoreacriatura–,massedistinguepor uma distinção análoga naquilo que é ou é apto a ser somente em um conceito do intelecto ou no próprio intelecto [sc. a res a reor reris] e naquilo que, além disso, é ou é naturalmente apto a ser na res fora do intelecto [sc. a res a ratitudine 58.

Comovemos,orecurso analogiapermiteaoDoutorSolenedis-tinguir sob res a res a reor reris e a res a ratitudine, explicando de maneira muito mais elegante aquela prioridade mútua que há entre ambas. Sem dúvida, o conhecimento de algo sob a razão de res a reor reris é anterior ao conhecimento deste mesmo cognoscível como res a ratitudine e como ente, porém a res a ratitudine e o ente são dito uma noção primeira, por-que somente entes são compreendidos pelo intelecto e a res a reor reris, não sendo ente, será compreendida somente por meio de um outro ente. Disso decorre que res é um termo análogo por ser dito primeiro e mais propriamente de res a ratitudine–convertendo-se,assim,com ente ,que é necessariamente inteligível. É somente em seguida e por meio da res a ratitudine que res diz também a res a reor reris, que designa somente o conhecimento de algo imaginável que se obtém por um nome59. Sen-doassim,parece-me ue,maisdo uemodificar fundamentalmentesua descrição de res, Henrique busca e encontra em Quodlibet 7 uma maneira mais elegante de expor a distinção que ele estabelece em di-versosmomentosdesuaobra.Simplificandosuae posiçãopelanoção

58 Cf.nota4,acima. ueHenri ueeste aa uisereferindo,respectivamente,ares a reor reris e res a ratitudineficaclaroempassagensimediatamenteposterioresaessa:Quodl. 7, q. 1-2, ad 2(De ulf-MansioCentre,vol.11,pp.27-8).

59 Toda essa ênfase no uso da analogia com respeito à noção de res nessa passagem do Quodli-

bet7sedeveaDecorte( Henr of hentonAnalog ,pp.92-4),cu ainterpretaçãoeusigoa ui.Valenotar ueatentativaderelacionamentodessapassagemcomte tosanterioresdeHenrique de Gand não é por ele abordada nesse artigo.

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de analogia, ele consegue manter de maneira manejável a complexa relação da prioridade que ele imputa às duas res.

III.Enfim(eparaconcluir),no uedizrespeito intelecção,oco-nhecimento sob a razão de res a ratitudine mantém sua prioridade com respeito a qualquer outro conhecimento intelectual, mesmo porque ele abarca todo conhecimento intelectual que há. ‘Res a reor reris ,dessepon-to de vista, não é senão o nome de um pré-conhecimento intelectual, que diz respeito antes de tudo à imaginação, não podendo ser conhecido por si mesmo pelo intelecto, senão por meio de outro. Da mesma maneira, ‘res a ratitudine ésomenteumnomeparaa uilo uepodeserconheci-mentointelectualmente.Nolimite,apr prianoçãoderes dita o mais comumente é somente um nome analogamente utilizado para denomi-nar o cognoscível em geral (embora isso englobe aqueles cognoscíveis os mais díspares, como o unicamente imaginável e o inteligível). Dessa maneira, quando o Doutor Solene discute a noção de res (e, também, de res a reor reris e res a ratitudine) ele não está tratando de conceitos, mas de nomes – de voces.Assim,adiscord nciaentrePauluseAertsenpareceser ultrapassada por Decorte quando este último nota que [i] a analogia diz respeito a nomes e não conceitos e [ii] que não há paralelismo entre asordensdesignificaçãodosnomesedeconhecimentodosconceitos 0. De certo modo, é como se Paulus e Aersen estivessem discutindo acer-ca da prioridade de conceitos, quando Henrique de Gand está tratando da comunidade de nomes que, de uma maneira ou de outra (isto é, di-retamente como ‘res a ratitudine ouatravésdaimaginaçãocomo res a reor reris ),remetemaconceitosdointelecto. Ente éonomean logodediversosintelig veis res éumnomean logo ueremeteaintelig veise imagináveis diversos (mas, primeira e principalmente, a inteligíveis). Nãoh comobuscarumaprioridadecient ficaemumnome ueinclui,sobsi,atémesmoa uilo ueéunicamenteimagin vel. Ente éabasedenossaci ncia res éumnomeutilizadoparadiscutirmosacomple aordenação do conhecimento.

Henrique de Gand, no entanto, não desenvolve para além disso essa noção de res–defato,atéondepudeverificar,elenemmesmose refere mais a essa discussão a partir de 1282. Para terminar, se toda essa discussão pode estar na raiz histórica do surgimento da noção de 0 DECOR E, Henr of hentonAnalog ,pp.10 -4.

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supertranscendens como quer Aertsen, isso não ocorre porque seja “dis-tintivo da doutrina dos transcendentais [transcendentals] de Henrique que eles sejam antecedidos por um conceito mais geral, o conhecimen-tode coisa thing emsentidomaisamplo 61. ‘Res nãoéumconceito,mas um nome e não há conceito mais geral do que os transcendentes, poiso ente ,sempreconhecidocomores a ratitudine, mantém sua prio-ridade.Assim,seoDoutorSolenetemalgumain u ncianahist riado supertranscendens, isso não se deve a ele próprio ter desenvolvido tal noção, mas a ter dado um nome (ainda que análogo com respeito ao imaginável e ao inteligível) à primeira etapa do conhecimento, pela qual passa necessariamente tudo aquilo que pode ser conhecido.

61 AER SEN, ranscendental houghtinHenr of hent ,pp.17: Anotherdistinctivefea-tureofHenr sdoctrineoftranscendentalsisitsbeingprecededb amoregeneralconcept,thecognitionof thing initsbeingthebroadestsense .

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Termos categoremáticos e sincategoremáticos: distinção terminista e eliminação ontológica

Rafael Antonio dos Santos SandovalUniversidade de Brasília

Utilizar a linguagem com o objetivo de informar sobre algo do mundo implica, sobretudo, compreender a função que as palavras de-sempenhamemumconte toproposicional. Istosignificadizer, uea informação a ser transmitida dependerá do sentido da proposição, na qual esta última, por sua vez, é composta por termos que desempe-nhamfunç es,possuempropriedadesfuncionaisesignificam.

Durante o período da lógica medieval compreendido como logica

modernorum, os lógicos medievais passam a se ocupar, sobretudo, com a análise semântica da lógica de Aristóteles. Ocorre então a investi-gação acerca das propriedades dos termos (proprietates terminorum) e a relação entre lógica e ontologia.1 Nesse período, é introduzida por meio de Prisciano no século VI nos institutionum grammaticarum libri a importante distinção entre termos categoremáticos e sincategoremáti-cos. Essa distinção, no contexto do período da logica modernorum e sua preocupação semântica, tem o importante papel de explicar a função

que os diferentes termos possuem na proposição. A distinção entre termos categoremáticos e sincategoremáticos

passa a ser então uma distinção que tanto Pedro Hispano em seu Trac-

1 Cf. OCKHAM, Guilherme. A Lógica dos Termos. Trad. Fernando Pio de Almeida Fleck; in-trod. Paola Müller. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999, p. 12.

Carvalho, M.; Hofmeister Pich, R.; Oliveira da Silva, M. A.; Oliveira, C. E. Filosofia Medieval. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 418-427, 2015.

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tactus, posteriormente chamado de Summulae Logicales, e Guilherme de Ockham em sua Summa Logicae fazem. Com o segundo, porém, a distinção terminista entre os dois tipos de termos possibilita entender mais claramente, dentro de um contexto nominalista, a possibilidade de eliminar o estatuto ontológico de entidades como dos universais.

Comaan lisesem nticaedostermosverifica-se,ainda,impor-tantes investigações quanto às unidades básicas das proposições. Com efeito, o termo - terminus do latim -, representa o limite de uma exten-são:osu eito(S),no in cio,eopredicado(P)nofinal.Asproposiç essão então articuladas em termos categoremáticos e sincategoremáticos, possuindo um sentido completo.

Este artigo possui a seguinte estrutura, permitindo-nos compre-ender como se dá a distinção terminista e como é possível a eliminação ontológica na lógica terminista de Ockham. Em um primeiro tópico, será apresentado sobre a função dos termos no contexto proposicional; no segundo tópico, é apresentado acerca da distinção entre discursos orais, escritos e mentais. No terceiro tópico, é apresentada a distinção acerca dos termos categoremáticos e sincategoremáticos. Neste último tópico, será evidenciado como a referência na realidade dos termos ca-tegoremáticos é sempre de particulares (embora possam ter a proprie-dadedesuporpessoalmentemuitosob etos).Ainda,ficar claro ue,ao possuírem uma natureza mental, os termos categoremáticos men-tais são uma intentio animae, capazes de serem predicados de muitos.

1 A

Ockham inicia a primeira parte de sua Summa Logicae tratando acercadadefiniçãodostermosedesuadivisãoemgeral.2 Remeten-do a outros lógicos, ele analisa a composição dos argumentos. Para Ockham, os argumentos podem ser divididos em duas partes: a pro-posição e os termos. Com efeito, são os termos as menores partes da proposição; são os limites (terminus) de uma extensão. Como partes extremas da proposição, há o sujeito e o predicado.

2 Cf. OCKHAM, G. Ockham’s Theory of Terms: Part 1 of Summa Logicae. Transl. Michael J. Loux. Indiana: University of Notre Dame Press, 1974, p. 2.

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Um pensamento para ser dotado de sentido depende, dentre ou-tras coisas, da estruturação e das diferentes funções que os termos pos-suem. Dizer que os termos desempenham funções é, em outras pala-vras, dizer que ao mesmo tempo, dentro do contexto proposicional, os termos desempenham e relacionam-se entre si; possuem funções lógicas, constituindo o sentido da proposição.

2 D

O grau de precisão da expressão da realidade por meio das pro-posições é distinto quanto ao discurso oral, escrito e mental e, também, ao uso dos termos, aos quais possuem as mesmas subdivisões.3 Os di-ferentes graus de precisão sobre a expressão da realidade ocorrem por que somente os termos mentais (ou conceituais) são naturais, enquan-to os termos escritos e falados são convencionais, consequência de uma impositio arbitrária, podendo gerar equivocidade. Embora os três tipos de termos sejam referência à coisa (res) na realidade, os termos escri-tosefaladosapenaspossuemsignificadoaoseremsubordinadosaosnaturais. Deste modo, podem diferentes termos, ora terem como signi-ficadoomesmotermonatural,oraummesmotermoarbitr riopode,devido à equivocidade do uso da linguagem arbitrária, ter como signi-ficadodoisconceitosdistintos.H umarelaçãodehierar uia uanto significaçãodosdiscursos.Odiscursooralrecebesuasignificaçãododiscurso mental e, portanto, natural. O discurso escrito, por sua vez, é subordinado ao discurso oral e, mais ainda, ao discurso mental.

3 A

Os termos no contexto proposicional possuem funções distintas, permitindo que as proposições expressem diferentes realidades. Evi-dentemente, quando falamos em expressão da realidade, leva-se em conta, sobretudo, que para Ockham, o campo da ciência – e inclui-se aqui a lógica como uma scientia sermocinalis -, é dos conceitos como intentio secunda, que não se referem imediatamente à realidade, mas expressam suas generalidades.

3 Cf. OCKHAM, G. Ockham’s Theory of Terms: Part 1 of Summa Logicae. Transl. Michael J. Loux. Indiana: University of Notre Dame Press, 1974, p. 2.

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Seguindo aos compêndios de lógica contemporâneos a ele, dos quais destacamos o Tractactus de Pedro Hispano, Ockham faz mais uma divisão dos termos, agora, entre categoremáticos e sincategoremá-ticos.Ostermoscategorem ticosrepresentam posiç es significativasnaproposição,tendoplenasignificação.Sãotaistermosdivididosemtermos categoremáticos comuns e discretos. Os primeiros são termos que servem como predicados de muitos objetos que caem sob eles, de-sempenhando muitas vezes a função de “universais”.4 São termos que possuem uma maior extensão lógica - uma vez que são gerais - e uma menor intensão lógica. Os termos categoremáticos discretos ou singula-res,poroutrolado,significamumob etodeterminadoenãopossuemafunção de serem predicados de muitos objetos que possam cair sob eles.

Os termos sincategoremáticos, por sua vez, não possuem uma significação,maspodemmodificarosignificadodostermoscategore-máticos ou que “suponha por alguma coisa ou por algumas coisas de mododefinido,oue ercealgumaoutrafunção untoaocategorema (OCKHAM, Guilherme, 1974). Os termos sincategoremáticos represen-tam na linguagem dos lógicos atuais as constantes lógicas: a negação (Ø), a conjunção (Ù), a disjunção (Ú) o condicional (®), o bicondicional ( ),os uantificadoresuniversaisee istenciais( , ),etc.Oc hamd --nos alguns exemplos acerca da função dos termos sincategoremáticos:

Unde hoc syncategorema’omnis’non habet aliquod certuni sig-nificatum,sedadditum homini facitipsumstareseusupponereactualiter sive confuse et distributive pro omnibus hominibus; additumautem lapidi facitipsumstareproomnibuslapidibus etadditurn albedini facitipsamstareproorrmibusalbedinibus.Etsicutestdeistos ncategoremate omnis ,itaproportionaliterde aliis est tenendum, quamvis distinctis syncategorematibus distincto cialconvenient(OC HAM, uilherme., Summa Lo-gicae, pars. I c 4, 15-20.).5

4 Cf. LOUX, J. Michael. The Ontology of William of Ockham. Indiana: University of Notre Dame Press, 1974, p.2.

5 Assim,osincategorema todos nãotemumsignificadocerto,masacrescentandoa homem faz com que este esteja ou suponha atualmente ou confusa e distributivamente por todos os homens acrescentando,porém,a pedra fazcom ueestenomeeste aportodasaspedras eacrescentandoa brancura fazcom ueeste aportodasasbrancuras.Eassimcomosed nocasodosincategorema todos ,assimproporcionalmentedeve-sesustentar uantoaosoutros, embora aos distintos sincategoremas convenham funções distintas.

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3.1 A relação entre a estrutura da linguagem convencional e mental quanto aos termos

categoremáticos e sincategoremáticosA estrutura sintática da linguagem convencional para Ockham é

semelhante estruturadalinguagemmental a uela re eteesta ua-se termo a termo, numa relação quase atomística. Na linguagem con-vencional há termos categoremáticos e sincategoremáticos de modo semelhante ao que ocorre na linguagem mental, todavia, podendo esta segunda, ser mais econômica, fruto de um ato simples. A quantidade de categoremas tanto na linguagem mental quanto na convencional - uma vez que o número de particulares que os termos podem supor é deumn mero uaseinfinito-,sãoemmaior uantidade ueossin-categoremas. Enquanto a linguagem mental é predominante e natural-mente semântica, pois os conceitos que em sua maioria a compõem são dotadosdesignificado ueporsimesmos supõem e consequentemen-teseidentificamcomasintenç esdaalma alinguagemconvencionalé predominantemente sintática, uma vez que seus termos são dotados designificadoporestaremsubordinados linguagemmentale ue,por sua vez, as proposições dependem da combinação entre suas par-tes para terem algum sentido e ser comunicadas. Segundo Panaccio:

Most of the standard grammatical categories of Priscian or Do-natus are borrowed by Ockham for the analysis of inner discour-se. There, he claims, we have nouns, verbs, adverbs, conjunctions and prepositions; we have singular or plural phrases, case- de-clensions for nouns, tenses and modes for verbs, and so on - in short ever thing hich is necessar for signification (propter necessitatem significationis)( PANACCIO, C. Ockham on Concepts, p. 8, 2004.).6

As proposições mentais, diferentes das escritas e faladas, segun-do Ockham, não são espacialmente ordenadas, contudo, são tempo-ralmente ordenadas, sendo desprovidas de uma ordem linear.7 Para 6 A maioria das categorias gramaticais padrão de Prisciano ou Donato são pegas emprestadas

por Ockham para a análise do discurso interior. Segundo ele diz, nós temos substantivos, verbos, advérbios, conjunções e preposições; nós temos frases no singular ou no plural, de-clinações para substantivo, tempos e modos para verbos, e assim em diante – em suma tudo ueénecess rioparaasignificação.

7 Cf. PANACCIO, Claude. Ockham on Concepts. Quebec: Ashgate, 2004, p.33.

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Ockham, o pensamento humano é composicional; todavia, muitas ve-zes, ocorre à maneira de um simples ato dentro da mente, “pensamen-to este curto e não analisado e que, muitas vezes, são equivalentes aos pensamentos mais complexos”8. Com efeito, o discurso interior pode prescindir da composição que possui os discursos orais e escritos.

A linguagem mental é predominantemente conceitual dotada de signos que são intenções da alma. Ela é perceptível apenas ao próprio sujeito – ao contrário da linguagem oral e escrita que são publicas –, possuindoentão,parautilizarda linguagemcontempor neadafilo-sofiadamente,uma ontologiadeprimeirapessoa. 9 Com efeito, os conceitos são signos, unidades básicas do pensamento, primitivos e identific veiscomopr priopensamento10.

3.1.1 A navalha de Ockham e a eliminação ontológica A princípio, com a primeira redação dos Comentários às Senten-

ças, que se deu por volta de 1317 a 131911, Ockham aceitava a teoria de ueostermosnaturaiscomunsseriammerasficç es.Contudo,ap sascr ticasde alterdeCha on,Oc hamfazusodesua navalha ecolocadeladotal teoriadaficção, identificandoentãosimplesmenteos conceitos às intenções da alma. Esta mudança é encontrada em suas Questions on Aristotle’s Physics, na Quodlibetal Questions e na Summa Lo-

gicae. 12 Doravante, os termos mentais passam a ter uma função lógico--sem ntica,passandoasupordediferentesformas. eliminadaadifi-culdade da teoria do fictum, que criaria entidades a mais para explicar o que pode ser explicado com uma teoria mais simples.

Com efeito, passa-se a ligar os universais às intenções da alma, notadamente ao ato abstrativo, que mesmo a partir de um único exem-plar, cria-se na mente o conceito geral que será o modelo de objetos possíveis semelhantes a serem captados pela alma. Deste ato abstra-tivo simples que capta as propriedades gerais do particular, é então criado o conceito dotado da simillimus capaz representar aquilo que é similar a particulares possíveis e que possuem as mesmas semelhan-

8 Ibid p. 33.9 Cf. SEARLE, John. The mystery of consciousness. New York: The New York Review, 1997, p. 113.10 Cf. PANACCIO, Claude. Ockham on Concepts. Quebec: Ashgate, 2004, p 10.11 Cf. PANACCIO, Claude. Ockham on Concepts. Quebec: Ashgate, 2004, p. 812 Cf. PANACCIO, Claude. Ockham on Concepts. Quebec: Ashgate, 2004, p.8.

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ças. Um termo que no contexto proposicional supõe diversos objetos singulareseliminaae ist nciadeentidadessupér uas.Acapacidadede supor (suposittio) implica que os termos possuam a propriedade de estarem no lugar de outros ( pro alio positio). Assim, um termo conceitu-al categoremático é capaz de ser ora o sujeito, ora o predicado de uma proposiçãomental,faladaouescrita,podendoficarnolugardeumapluralidade de particulares distintos. Deste modo, uma proposição a ser enunciada como “o homem é um animal”, o termo “homem” supõe pessoalmente todas aquelas entidades nas quais caem sob o conceito “homem” porque tal termo está cumprindo a função para qual houve suaimposiçãodesignificado.

Por esta razão, os termos conceituais categoremáticos comuns podem desempenhar o papel de universais13, ao no contexto da pro-posição, estarem no lugar daquelas entidades às quais foram impostas parasignificar.Contudo,valelembrar,estasignificaçãoapenassed pelo fato de estarem subordinadas às intenções singulares da alma, i.e., aos conceitos mentais. Na Summa Logicae, Ockham citando a Avicena diz o seguinte:

Dicendum est igitur quodquodlibet universale est uma res sin-gularis,etideononestuniversalenisipersignificationem, uiaest signum plurium. Et hoc est quod dicit Avicenna,V Metaphy-sicae «Una forma apud intellecturn est relata ad multitudinem, et secundum hunc respectum est universale, quoniam ipsum est intentio inintellectu,cuius comparatio non variatur ad quod-cumque acceperis». Et sequitur: «Haec forma,quamvis in com-paratione individuorum sit universalis,tamen in comparatione animae singularis,in qua imprimitur,est individua.Ipsa enim est uma ex formis quae sunt in intellectu».14

13 Cf. LOUX, J. Michael. Ockam’s Theory of Terms: Part I of the Summa Logicae. 1974, p.214 Op. cit. pars I cap. 14, 30-35: Cumpre dizer, portanto, que qualquer universal é uma coisa

singular,e,porisso,nãoéuniversalsenãopelasignificaçãopor ueésignodemuitascoisas.E isso é o que diz Avicena, no Livro V da Metafísica: “Uma forma no intelecto está relacio-nada a uma pluralidade, e sob esse aspecto é um universal, porque este é uma intenção no intelecto cuja relação com o que quer que seja não varia.” E prossegue: “Essa forma embora em relação aos indivíduos seja universal, todavia é individual em relação à alma singular em que está impressa. Com efeito, ela é uma única entre as formas que estão no intelecto”.

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Com efeito, diferente da teoria do fictum na qual se postula uma entidade supér ua,nãoh umesse obiectivum, mas um esse subiectum namente,identific velcomopr prioactus intelligendi que é signo de muitas coisas e por isso universal. Podemos então fazer a seguinte di-visão, desde o ato intelectual que na alma é singular, e que em relação aos indivíduos ( per praedicationem) é universal, passando ao signo ar-bitrário que na proposição assume a função de predicado ou sujeito. Por último, a “partilha de pensamento”, algo que é a constituinte da comunicação. Essas etapas vêm conjugadas – embora não havendo si-multaneidadenotempo–,para uee istaaeficientecomunicação.

I) Intentio animae ou conceito mental (CM);II) Termos arbitrários (TA);III) Proposição ( P);IV) Partilha de pensamento ( PP);

Ao se comunicar - seja com a utilização na proposição de um termo predicado que representa um universal ou não, e, consequente-mente, partilhar um pensamento -, o que ocorre por meio da lingua-gem escrita ou falada, há uma conjunção dos aspectos acima arrolados. Oconceitomental(CM)éosignificadodostermosarbitr rios( A)eestes, funcionando no contexto da proposição, estruturam sensivelmen-te o pensamento ( PP) a ser comunicado. Na comunicação, conceitos mentais (CM), da classe de termos categoremáticos comuns tendem a ser em maior número que conceitos mentais da classe dos termos categoremáticos discretos e ue significam um ob eto em particular.Isto ocorre por que a natureza predominantemente abstrata do pensa-mento exige um maior número de termos que são predicados de mui-tos objetos. Ademais, o ato de falar do mundo em geral, exige maior número de conceitos categoremáticos comuns. Sobre a subordinação dos termos convencionais aos naturais, Panaccio diz o seguinte em sua obra “Ockham on Concepts”:

The basic scheme is the following. First, simple categorematic concepts are acquired as natural signs of external things. And then comes subordination: certain spoken sounds are conven-tionally associated with certain concepts, in such a way that the

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spokensounds inquestion inherit the significationof the con-cepts they are associatedwith. The concept of horse , forexample, naturally signifies horses. When the spoken soundhorse -or equus or cheval -isconventionallysubordinatedtothatconcept,itipsofactostartssignifyinghorsestoo,albeitcon-ventionally.Andwhenthecorrespondingwrittenwordiscon-ventionally subordinated in turn to that spoken sound, it alsoipsofactostartstoconventionallysignifyhorses.15

Prosseguindosobrearelaçãodesubordinaçãodostermosarbi-trários(TA)aosconceitos,eestessereferindo scoisas,PanacciocitaentãoaOrdinatiodeOckham:

... a certain spoken word primarily signifies several thingsequally, because it has been imposedby a single imposition toeverythingwhichadeterminateconceptoftheimpositoriscom-monto,sothatthewordandtheconceptaretoeachotherlikeor-deredsigns signa quasi ordinata ;notbecausethewordprimarilysignifiestheconcept,butbecauseitisimposedatprimarilyandpreciselysignifyingeverysinglethingtheconceptistrueof....16

C

AfunçãoqueostermosdesempenhamnaproposiçãodentrodocontextodafilosofiadeGuilhermedeOckhaméimprescindívelparacompreender sua lógica e a intençãodeque ela se torneuma scien-

tia sermocinalis17,umaciênciadodiscursodesvinculadadaMetafísica.Ademais,acompreensãodaspropriedadesdostermos–sejamessaspropriedadessemânticasousintáticas–éimprescindívelparaquese

15 Op.cit.p.165-166:Oesquemabásicoéoseguinte.Primeiro,ossimplesconceitoscatego-remáticossãoadquiridoscomosignosnaturaisdascoisasexternas.Eentãovemasubordi-nação:certossons faladossãoconvencionalmenteassociadoscomcertosconceitos,de talmodoqueossonsfaladosemquestãotemasignificaçãodosconceitosassociadoscomeles.Oconceitode cavalo ,porexemplo,naturalmentesignificacavalos. uandoosomfaladocavalo– ou equus’ ou cheval’ – éconvencionalmentesubordinado queleconceito,eleipso

factopassaasignificarcavalostambém,emboraconvencionalmente.Equandoacorrespon-dentepalavraescritaéconvencionalmentesubordinadaaosomfalado,elatambém,porsuavez,ipso factopassaasignificarcavalos.

16 Id.p.166.17 Cf.BLANCH ,R.História da Lógica de Aristóteles a Bertrand Russell.1985p.147.

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compreenda como é possível a eliminação ontológica de entidades como de universais; ligando-os a expressões linguísticas gerais, ou seja, termos categoremáticos comuns - cuja função é ocupar a função de um predicado - e às intenções singulares da alma, tal como vimos no tópico 3. Um conceito natural categoremático comum correspon-dente a uma intenção da alma singular, tem a propriedade de supor comseusignificante,termoestearbitr rionoconte toproposicional,uma pluralidade de objetos que caem sob o conceito natural.

Com efeito, o “estatuto ontológico”dos universais torna-se ine-xistente, admitindo-se então apenas particulares na realidade, cujos respectivossãoconceitosidentificadoscomopr prioactus intelligendi. E que têm como respectivos termos arbitrários que assumem “posi-ções” de predicados no contexto proposicional. Deste modo, tanto o conceito natural quanto os termos arbitrários possuem como referên-cias particulares e não entidades abstratas.

BLANCHÉ, R. História da Lógica de Aristóteles a Bertrand Russell. Trad. António J. Pinto Ribeiro. Lisboa: 1985.DE RIJK, L. M. Logica Modernorum: A contribution to the History of Early Termi-

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s al si a e a e e idade do do

va d o a a a e ei aUniversidade Federal do Espírito Santo

“Tudo é água”.1

Com este célebre fragmento, Tales de Mileto (c. 625/4-558 a. C.) iniciou uma tradição muito especial que acompanhou a Humanidade. A sentença diminuta e aparentemente simples escondia a enormidade do feito deste pré-socrático. Ele consiste justamente em ser algo inédito na História: uma especulação estritamente racional – portanto, inde-

1 Amaiorpartedosfil sofosconsideravacomoos nicosfundamentosdetodasascoisasosque são da natureza da matéria. Aquilo de que todos os seres são constituídos, e de que pri-meirosãogeradoseem ueporfimsedissolvem,en uantoasubst nciasubsistemudando-seapenas as afecções, tal é, para eles, o elemento (stokheion), tal é o princípio dos seres; e por isso julgam que nada se gera nem se destrói, como se tal natureza subsistisse para sempre... Poisdevehaverumanatureza ual uer,oumaisdo ueuma,dondeasoutrascoisasseen-gendram,mascontinuandoelaamesma. uantoaon merodanaturezadessesprinc pios,nemtodosdizemomesmo. ales,o fundadorde talfilosofia,dizser gua oprinc pio (éporestemotivotambém ueeledeclarou ueaterraest sobre gua),levadosemd vidaaestaconcepçãoporver ueoalimentodetodascoisasé mido,e ueopr prio uentedeleprocedeedelevive (ora, a uilode ueas coisasv mé,para todos,o seuprinc pio) ... .Arist teles,Metaf sica,I, .98 b (D 11A12).In:Souza,2000,p.40. Algunsos ueafirmamums princ piodomovimento–Arist teles,propriamente,chama-osdef sicos–consideramueeleélimitado assim alesdeMileto,filhodeE emias,eHipião, ueparecetersidoateu,afirmavam uea guaéoprinc pio,tendosidolevadosaistopelas(coisas) uelhesapareciamsegundoasensação ... .Simpl cio,F sica,2 ,21(D 11A1 ).In:Souza,2000,p.40.

Carvalho, M.; Hofmeister Pich, R.; Oliveira da Silva, M. A.; Oliveira, C. E. Filosofia Medieval. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 428-450, 2015.

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pendentedomitoedareligião– ueatéa uelemomentodefiniramoslimites do raciocínio humano.2

Com Tales tinha início a modalidade de pensamento grego que conhecemos por filosofia. Sua nobre missão: tentar responder, por meio do Logos ( ,Verbo,Razão,Princ pioc smico), uest es uea i-gem o homem desde sempre. Por meio dela, nóstrilhamosumnovoca-minho: inaugurara-se sua estrada real, que começa na Grécia e alcança--nosho e.Depoisdafilosofia,nuncamaisser amososmesmos.

Essa modalidade muito especial de buscar respostas foi incessan-tementeperseguidapelos uesucederam ales.Primeiro,osfil sofosgregos maistarde,outrospovoseculturasposteriores.Contemosen-treestes ltimosos rabes ,3 os habitantes das terras do Islã4 – que tomaramafilosofiacomosuaeousaramtrilharestecaminhopelara-zão. Aqui foram generosos e souberam partilhar o dom que recebe-ram: passaram a tocha adiante. Paulatinamente, o translatio studiorum percorreu do Ocidente para o Oriente, e do Oriente para o Ocidente: “de Atenas para Harran, de Harran para Bagdá, depois para Córdoba, Toledo, Paris, Colônia e Praga”.5

Uma dessas indagações – a que Tales tentou solucionar, e que nos interessa em particular – é o problema da origem do mundo: de onde viemos ualoprinc piodetudo Estepré-socr ticotentoue plic -laa partir do que Aristóteles denominou causa material: a causa do mun-doe istirestarianelemesmo.6

2 Souza, 2000, pp. 7-10.3 Seriaume u vocodenominarosfil sofosemterrasdoIslãcomosimplesmente rabes .

Citemossomenteos uea uifigurarão:dos tr s,apenasAl- ind era rabe IbnS n erapersa,eIbnRu d,andaluz.

4 Islame(Isl m):apalavradesignaa submissão ,o abandono aDeus:éopr prioCorãoued estenome novareligião .Mi uel,1971,p.554.

5 Referimo-nosa uiaossucessivosdeslocamentosdosprincipaiscentrosdeestudosdafilo-sofia( translaçãodeestudos ):desdesuasorigensnaAntiguidadeentreosgregos(Atenas) a passar pelos árabes do Oriente Médio (Harran, Bagdá); depois para os árabes do Andaluz (C rdova, oledo),eporfimachegaraoslatinosocidentais(Paris,Col nia,Praga).Essemo-vimentodafilosofianoMedievofoiricamenteabordadoporAlainDe iberaemAfilosofiamedieval,2011.

6 “Segundo a interpretação que dará Aristóteles séculos mais tarde, teria tido início com Tales ae plicaçãodouniversoatravésda causamaterial .Souza,2000,p.15.

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Osfil sofos,nodecorrerdostempos,chegaramaindaaoutrasrespostas.7Resumidamente,estãodivididasemdoisgruposprincipais:aste stas( uerecorremaumadivindadeparae plicaressaorigem)easate stas( uee cluemorecursoaumadivindadeparae plicaressamesma origem).

No primeiro grupo, ou... 1) o mundo é considerado finito – por-tanto, foi criado obrigatoriamente no tempo e ex nihilo (do nada) – esta é uma crença própria à tradição teológica judaico-cristã; ou... 2) é con-siderado infinito – neste aspecto, teria sido criado desde toda a eternida-de... a) ao ser plasmadopeladivindadeapartirdemat riapré-e istente,que assim transformou o caos em osmos( ,ordem,harmonia,beleza)–estaeraacrençacomumaosgregosantigos,eest e pressa,pore emplo,no imeu platônico8 ou na ísica de Aristóteles;9 ou... b) a partir de emana ãodadivindade–pensamentoe tensamentedesen-volvidopeloneoplatonismo.10

7 Paraoresumoaseguirsobreasdoutrinasacercadaorigemdomundo,foiespecialmente tilconferirosverbetes:criação–criacionismo–emanação–eternidade,verFerraterMora,1982.

8 Naverdade,odeus uis uetodasascoisasfossemboase ue,no ueestivesse medidadoseupoder,nãoe istissenadaimperfeito.Destemodo,pegandoemtudo uantohaviadevis vel, uenãoestavaemrepouso,massemoviairregularedesordenadamente,dadesor-demtudoconduziuaumaordemporachar ueestaésemd vidamelhordo uea uela.Com efeito, a ele, sendo supremo, foi e é de justiça que outra coisa não faça senão o mais belo”. Platão, Timeu 30a.

9 F sica,VIII,1,251a10-252a1 VIII, ,259a10-15.10 Oneoplatonismoéumtermomodernousadoparadesigneroper ododafilosofiaplat nica

que começa como Plotino (c. 204/5-270 d.C.) e termina com o fechamento da Academia Pla-tônica pelo imperador Justiniano I (c. 482-565 d.C.) em 529 d. C. Este ramo do platonismo, geralmentedescritocomo m stico oureligiosopornatureza,desenvolve-separaalémdoplatonismoacad mico.Asorigensdoneoplatonismopodemsertraçadasatéaeradosin-cretismo helenístico, que gerou escolas de pensamento tais como o gnosticismo e a tradição hermética.Omaiorfatornestesincretismo,e ueteveumain u nciaimensanodesenvol-vimentodopensamentoplat nico, foi a introduçãodas escrituras hebraicas nos c rculosintelectuais gregos atravésda tradução conhecida comoSeptuaginta.O encontro entre anarrativadacriaçãodo nesisea cosmologiado imeuplat nicop semmarchaumalongatradiçãodeteorizaçãocosmol gica uefinalmenteculminounograndees uemadasEnéadasdePlotino.Osdoismaioressucessoresdestefil sofo,Porf rio(c.2 4-c. 05d.C.)emblico(c.245-c. 25d.C.),desenvolveramcadaumdeles,desuaspr priasformasdiferen-

tes,certosaspectosespec ficosdopensamentodePlotino,masnenhumdelesdesenvolveuumafilosofiacomrigorsuficienteparasee uiparar deseupr priomestre.FoiProclo(412-485d.C.) uem,poucoantesdofechamentodaAcademia,legouaomundoumafilosofiaplat nicasistem tica ueseapro imousobcertosaspectosdasofisticaçãodePlotino.Final-mente,naobradochamadoPseudo-Dion sioAreopagita (c. séc.V-VId.C.),encontramosumagrandes ntesedefilosofiaplat nicacom eologiacristã uee erceugrandein u ncianomisticismomedievalenoHumanismodaRenascença (traduçãonossa).Moore,2014.

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Nosegundogrupo,omundo,alémdeinfinito,étambémeterno e causa de si mesmo,o uee cluiaparticipaçãodeumadivindade.Nestecaso,ou...1)eleéimut veleinvari vel,esempree istiutalcomoho e ou...2)est emevoluçãoconstanteecont nua ouainda... )est su eitoaumaleideeternoretorno–umciclosemprinc piooufim.

Asobservaç esacimadevemnosdirigiraumaconstataçãomui-toimportante.H poucoafirm ramos ueafilosofia,desdeseuspri-mórdios, tinha se constituído como especulação estritamente racional do homem sobre si mesmo e a realidade que o cerca. Sua primeira sentença,inclusive,indicavaumprinc piomaterialistaparaascoisas(a gua). alvezoleitorcontempor neosepergunte,então:por ueal-gunsfil sofos–n safirmamoscomcoragem:amaioria – recorreram à divindadeparae plicaraorigemdomundo Comoissoéposs vel,seafilosofiapartedeseuspr priosprinc piospara,pormeiodedemons-tra õesl gicas,superarasmaisvariadas uest es ueseapresentamaela 11Nãohaveriacontradiçãoa ui

Ora,afilosofianãoéessencialmenterefrat riaaconsiderar uehá algo al m do homem e dessa realidade material que o cerca – e este algo au iliaae plicaraorigemdosmesmos.Nãorepugnaaofilosofara ideia da divindade, de deus ou –dito coma inicialmai scula –deDeus.Istopodesercomprovadofacilmentedesdeessesmesmospré--socráticos: o próprio Tales também dissera que “todas as coisas estão cheias de deuses”, segundo Aristóteles.12IdemparaasFilosofiasAnti-ga,MedievaleatémesmoaModerna.

Atradiçãofilos ficanosdemonstra ueo homem capaz de chegar at Deus pela via da razão. Ou, se quisermos ser menos ousados: a pró-priarazãopode,apartirdascoisassens veis,demonstraraohomemque há algo transcendente.

Nãorarasvezesodeus da filosofianãocondizpore atocomodeus da religião. O que nos conduz a outro problema: o das relações entre féerazão– uestãoestacar ssimaaopensamentomedieval, tantoolatino(cat lico) uantooarab fono(muçulmano).Ficama uisuben-

11 A ieFilho,2002,p.28.12 Eafirmamalguns ueela(aalma)est misturadacomotodo. porisso ue,talvez,tam-

bém Tales pensou que todas as coisas estão cheias de deuses”. Aristóteles, Da alma, 5, 411 a 7 (DK 11 A 22). In: Souza, 2000, p. 40.

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tendidososcon itos,desentendimentosediscuss esmilenaresentreambas: basta lembrar de Sócrates condenado a beber cicuta por causa de “impiedade”.13Muitosfil sofos recusarame pressamentea ideiada divindade de um modo, digamos, ríspido...14

Contudo, não se pode em boa fé dizer que tanto o problema de deus (ou de Deus) uantoodoscontatosentrereligiãoefilosofianãose ammatériadesta ltima.Afirmarissoseriaamputarboa–amelhor– parte de sua história.

Nenhum desses problemas – para nós, em especial, o da origem domundo mastambémodeDeuseodarelaçãoentreféerazão–fi-caramalheios ueles ue,emterras isl micasnoMedievo,aventu-raram-sepelafilosofiagrega.Emseumundo,elaganhouonomedefalsafa–definidacomo afilosofia,emuitoparticularmenteafilosofiagrega,distintadopensamentoespecificamentemuçulmano, ueosci-louentreodese odee clu -laedeseconciliarcomela .15Estadefini-çãoe plicitaocon ito ueosfal sifa(fil sofoshelenizadosemterrasdo sl m)16 tentaram solucionar ao responder sobre as origens do mun-do–comgrausvariadosdesucesso.

Afimdeharmonizardogmaefilosofia,revelaçãocor nicaees-peculação racional, alguns de seus principais representantes – o árabe Al- ind (c.801-87 d.C.),opersaIbn S n (980-10 7d.C.)eocor-dov s IbnRu d (112 -1198d.C.) – formularamdiferentes respostasparaapergunta:omundoéeterno (e istedesde todoosempre)outeveumprinc pio (começoua e istirno tempo) Emcomum, todosostr scompartilharamacrençanumaorigemmetaf sicadarealidadeconcreta–ou se a,Deus,para estesfil sofosacess vel tantoapartirda religião quanto da razão. Também creram em uma harmonia entre féerazão. odavia,omodocomoElecriouomundovariouentreosmesmos: Deus gerou o mundo na eternidade ou o fez em um dado momentodopassado Aseguir,conheceremosbrevementeasoluçãoque cada um destes fal sifa defendeu para a questão.

13 Na célebre Apologia de Sócrates, de Platão.14 Oe emplomaisemblem tico uenosvem menteéNie scheemOAnticristo...15 Miquel, 1971, p. 552. 16 Islame(Isl m):apalavradesignaa submissão ,o abandono aDeus:éopr prioCorão

ued estenome novareligião .Mi uel,1971,p.554.

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- A - e nihilo: no D

Al- ind éconsideradooprimeirofil sofo rabe,tantonaorigemuantonal ngua.Porissoficouconhecidocomo Fa lasufal- arab .17 Coube-lheoméritodetersidooanfitriãodafilosofianomundoisl -mico,aoabrir-lheasportasparaArist teles.Convictodenãohavercontradiçãoentre féerazão,eledefendeuumae egesefilos ficadoCorão,oacordofundamentalentreabuscadafilosofiaearevelaçãoprofética.18 No itab fi l falsat al l (Livro da ilosofia rimeira), as no-ç esfilos ficasdoDeus, no,Verdadeiro,SoberanoeCriadornãoen-tramemcontradiçãocomamensagemcor nica.19Nele,afirmoutam-bémaressurreiçãodoscorpos,apossibilidadedemilagres,avalidadedarevelaçãoproféticae,departicularinteresseparan s,acriaçãoeadestruição do mundo por Deus.20

Ainda ueinspiradopelafilosofiagrega,Al- ind discordoudeuma doutrina comum a esta: a crença na eternidade do mundo. Seus cong nereshel nicosdaAntiguidade s eram capazesde conceber acriaçãodealgoporumadivindadeapartirdeumarealidadepree isten-te – a modo do demiurgo platônico21 ou das processões plotinianas.22 Em contraste, o filósofo dos rabes defendeu que o mundo foi criado ex nihilo (donada)porDeus.Porestaideiaentendamosumagente ue levaforadesi e ist nciaalgopreviamentenãoe istente .23Ou,naspalavrasdopr prio, criar significafazercom uealgoapareçaapartirdenada.24

17 CruzHern ndez,19 ,p. 7. Fa lasuf éosingularde fal sifa .18 A ieFilho,2002,pp.1 s.19 De ibera,2011,p.105.20 A ieFilho,2002,pp.1 s.21 Sobre oDemiurgoplat nico e presso nodi logo imeu, dei amos algumaspalavras de

RicardodaCosta (2002,pp.481-501): ... nacosmogoniaplat nicaaindah afiguradoDemiurgo–divindadeart ficesem ual uerinve a,s AmoreBem, ueplasmouomundoemprestando-oamaiscompletasemelhançacomoserintelig vel.Contudo,nãodese oa uidebruçar-mesobreoemaranhadodetesesdivergentesarespeitodessadoutrinaplat nica... Remetooleitoraoe celenteresumodofil sofo oséFerraterMora(1912-1991)dasdozediferentesposiç esa respeitodoDemiurgodePlatão.FerraterMora, osé.Dicion riodeFilosofia.SãoPaulo:Ediç es o ola,2000,vol.I(A-D),p. 59- 0.

22 Abordaremosasprocess esembreve.23 FerraterMora,1982,p.88.24 A ieFilho,2002,pp.1 s.Remetemosa uiaoverbete criar ,naEp stoladasdefiniç esde

Al- ind .

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Al- ind sem d vida se inspirou na tradição hebraico-cristã,paraa ualaideiadecriaçãoécentral.Ela constavano uda smo,e pressaempartenasescriturasdoAntigo estamento,25 e alcançou sua maturidade intelectual dentro do pensamento cristão. Aliás, neste ponto, a falsafa fora precedida pelo al m –a teologia isl mica.26 Por mais de um século, os muta allim n (os adeptos e seguidores dessa teo-logia) haviamsededicado absorçãodeelementos(criaçãoex nihilo inclusa) dos monoteísmos antecessores ao Islã – do judaico e, princi-palmente, do cristão.27

Afimdecorroboraracriaçãoex nihilo do mundo por Deus, Al-ind defendeu,noLivro da ilosofia rimeira, afinitudedotempocomoprovadessacriaçãono tempo e não na eternidade.28Paratanto,levan-toutr sargumentos.29 25 Apassagemmaiscélebreaesterespeito,emboranãoeste acompletamentee pl citanelao

prop sitodeumacriaçãoe nihilo,éoprimeir ssimovers culodo neseedaB blia(I.1):“No princípio Deus criou os céus e a terra”.

26 al m:ateologiadogm tica,umdosaspectosessenciaisdare e ãoedafilosofiamuçul-manas (MI E ,1971,p.554). O al mnãodevepuraesimplesmenteserassimilado teologia ,nosentidocristãodotermo:ci nciadosmistériosdafé éantesuma apologiadefensiva ,segundoe pressãode . ardet,em uetodosossaberesnecess riossãomobi-lizadosemvistadeumadefesaeilustraçãodaleirevelada (DE IBERA,2011,p.99).

27 De ibera,2011,p.99. NoCorão,assimcomonaB blia,Deuscriapormeiodedoisméto-dos:pormeiodaartemanualedafala.Adoutrinadacriaçãodonada ... comoumaformadeasseguraropodereatranscend nciaabsolutosdeDeus,nãoéafirmadaclaramentenoCorão, mas foi assumida por teólogos judeus, cristãos e muçulmanos mais tarde na Idade Média.Amaioriadaspalavrasem rabeutilizadasnoCorãoparadescreverasaç escriati-vasdeDeussugerem ueelasseassemelhamaatividadeshumanas,taiscomoartemanualemcouro,olaria,construção,ecrescimento,o ueimplica uematériasemforma e istiaantes traduçãonossa (E.CAMPO,2009,p.171).Estanotaser importantemaistardeparaelucidaropensamentodeIbnRu d.

28 Começonaeternidade éumae pressãonula, uenãoh –nempodehaver–tempooupartesnamesma,conformeAl- ind argumentar . maispr priofalarmosemtermosdee ist nciadesdeaeternidade:incluirapalavra toda nestasentença–ounão–éopcional,poisaeternidadenãopodesertomadaempartes( uesãodelimitadase,portanto,finitas),masapenasemcon unto,totalidade.Ram n uerrero,1985,pp.8 -87s.

29 Parae plicarafinitudedotempoedouniverso,Al- ind partedeprinc piosaristotélicoslevados conclus esopostas uelasafirmadasporArist teles:aimpossibilidadedee istiruminfinitoemato(F sica,III,5,204a20-21)e ueocont nuo,ouse a,ocorpo,otempoeomovimentoe istemcon untamente(F sica,IV,11,1-4).Comonossofoconesteartigoéaeternidadedomundoeporconsideraç esdetempo,nãodesenvolvemososargumentosdofil sofoparaprovaraimpossibilidadedeumcorpoinfinitoe istiremato,porelee plana-dosnaep stolaSobreafinitudedocorpodouniverso(Ram n uerrero,1985,pp.8 -87s).

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Oprimeirosebaseianadefiniçãodeeternidade.Ora,sesupor-mos que o mundo é eterno, então nunca foi não ser–sempree istiue,portanto,nãopossuicausa,nemg nero,nemespécie.Contudo,cons-tatamos ueoscorposnomundopossuemcausa,g neroeespécie,eque não são eternos.

Osegundosebaseianadefiniçãodotempo–umae tensãoeumauantidadecont nuas,namedidaem ueéele uemedeomovimen-to.Ora,como constatamos ueoscorposnãopodemserinfinitos,otempo, ueocorrecon untamenteaoscorposeaomovimento,tam-pouco o pode ser.

Oterceiroe ltimoutilizaumaconsideraçãodialéticado tem-po. Se antes de cada instante de tempo há outro instante, e assim por dianteatéoinfinito,entãoh umtempoinfinitodesdetodaaeterni-dade até hoje. Contudo, se fosse assim, jamais se poderia chegar a um instantedeterminadodopassado,poisissoseriadividiroinfinitoeminstantes(partes).Otempoinfinitoseriacompostoporpartesfinitas,edessaforma,infinitoefinitoaomesmotempo–algoevidentementeabsurdo,poisvaicontraoprincípio da não contradi ão.30 O mesmo ocor-reemrelaçãoao futuro: este racioc nioconduz id ntica conclusãocontraditória e absurda.

ParaAl- ind ,aconclusão uesedepreendedosargumentoséforçosa:otempoéfinitoeteveumcomeço–o uee igeumcriador.31

Pormotivos similares, também não abordamos outro argumento utilizado porAl- ind paradefenderacriaçãodomundonotempo:trata-sedo uintoelemento: ... tal comoosharranianos, Al- ind admiteae ist nciadeum uintoelemento do ualocéuéfeito... consideraesse uintoelementocomoopr priofundamentodapossibilidadedeumacriação.Ae ist nciadeum uintoelementopermiteescapar leidegeraçãoedacorrupçãoueregulaasrelaç esdetransformaç esdoscorpose tra dasdos uatroelementos,lei ue,segundoa f rmuladeArist teles,afirma ue ageraçãodeumse asempreacorrupçãode um outro”: dizer que A natureza do céu é diferente das naturezas dos quatro elementos (segundo o título de um dos seus tratados) é dizer que o céu não é oriundo da transformação (corrupção)deumelementoprévioe uesuadestruiçãonãocomportar geraçãoalguma,éafirmar ueeleéprodutodeumacriaçãoapartirdonada,emvezdeumatransformaçãoapartirdeumoutro (DE IBERA,2011,pp.104s).

30 Segundo Aristóteles: “Algo não pode ser e não-ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto”.31 Seomundoteveumcomeço,temcausa-eestalhedevesere tr nseca,poisnenhumser

pode ser causa de si mesmo. Supor isto seria imaginar que algo antecedeu a si próprio para causar-se,outroabsurdo.A nicaformadefugiraestaaporiaserianegaroprinc piodacausalidade, como fez Hume: nem tudo que passou a ser possui causa.

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- emana o D

A teoria da criação ex nihilo – ue, comovimos, foidefendidapelafilosofiadeAl- ind epelaortodo iareligiosadoste logosmu-çulmanos–firmou-secomoamaisin uentenoIslãmedieval.Contu-do,houvealternativas mesma.Aprincipaldestasfoiadoutrinaema-natista,defendidaporninguémmenos ueIbnS n ,maisconhecidoporseunomelatinizado– Avicena .

rande médico e fil sofo persa medieval, foi o maior nomeda falsafaoriental.Renomadopol mata,escreveucentenasdetratadosnasmaisvariadas reasdosaber.32 Seu al Q n n f al ibb (C non de Medicina, séc. XI) ainda era lido em faculdades de Medicina ocidentais noséculoXVII.33Ofil sofo in uenciouprofundamenteaescol sticamedieval: a traduçãodepartesde seus escritos fez com ueopen-samento aristotélico fosse reintroduzido no Ocidente. Além disso, foi considerado uma grande autoridade por nomes como Tomás de Aqui-no,DunsScoteRogérioBacon, ueocitaramfre uentemente.34 Ibn S n foiin uenciadopelafilosofiagregaantiga(sobretudoArist teles84- 22a.C. eoneoplatonismodePlotino c. 204-270d.C. ) epor

Al-Farabi(c.872-950d.C.):foidestesdois ltimos ueherdou,dentreoutras coisas, a doutrina emanatista.

Diferentemente deAl- ind , Ibn S n defendeu uma doutrinaalternativa criaçãoex nihilo: a criação por emana ão (do latim e ma-nare, uirde ).35Estanãoest e pressanoCorão, edesenvolveu-se

32 Parailustrarestefato,observe-seoseguintee emplo:seuatualmausoléu,constru doem1950 na cidade iraniana de Hamadã, possui uma colunata com doze pilares – a simbolizar asdozeci nciascultivadaspelog niopersa. uantosoutrosfil sofosseriamdignosdeumatalhonra

33 Correio da Unesco, 1980, p. 15.34 A ieFilho,2000,p. 1.35 Abemdaverdade,muitosautores sugeremumadoutrinaemanatista emAl- ind : ...

ele professaumaespéciedehenologianegativa,aparentementelivredocomple osistemade hipóstases disposto pelos neoplatônicos entre o Uno e o mundo sublunar – uma teoria doprimeiroprinc piocompletadaporumapsicologiadesprovidadev nculocosmol gico:anoção de Intelecto não tem nele a dimensão cosmológica que constitui os sistemas emanacio-nistasadotadosporumAlfarabiouumAvicena it licosnossos (DE IBERA,2011,p.104).AaçãodestaCausaPrimeira,consideradaporAl- ind manifestamentecomoumacriação

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em tempos pré-isl micos entre osm sticos gn sticos36 e os fil sofosneoplatônicos.37 A emana ão, em termos gerais, é o processo no qual o superior (o Uno, o absoluto, o transcendente), por sua própria supera-bund ncia,transbordaeemseue cessoproduzoinferior(om ltiplo,adiversidadedosseres,osens vel).Essarelaçãoentreosuperioreoinferior é como uma irradia ão: o primeiro irradia para o segundo sem perdernadadesuapr priasubst ncia,talcomoaluz uesee pande

donada,parece uedeveserentendidacomoumaemanaçãohierar uizadaprocedentedouno,emdoutrina uelogoseriaamplamentedesenvolvidapelosfil sofos rabesposterio-res,pelacont nuautilizaçãoporpartedenossoautordetermoscu asignificaçãoprecisaéade emanação traduçãoeit licosnossos (RAM N ERRERO,1985,p.87).Porém,agrandeecrucialdiferençadessaaparentedoutrinaemanatistaemAl- ind ,e uepermitecoloc -lacomo parteeoposta defil sofosmuçulmanosposteriores(emnossocaso,IbnS n emespecial),éocar tervolitivo,não-necess rio,dela: ParaAl- ind ,taisprocess esencontram-seinevitavelmentesobadepend nciadoatodivino,livre (A IEFI HO,2002,p.1 ).Ouse a:asupostaemanaçãodivinaal indianaocorre uandoepor ueadivindadeuer est submetidaeéregidaporsuasoberanavontade.Acriaçãos emanoupor ueadivindadeabsolutamente assim uis.Então, esteprocesso emAl- ind não énecess rio,inescap vel,ine or vel,massimcontingente:dependedavontadedivinaeocorreuemumdeterminado momento – portanto, no tempo. De qualquer forma, parece-nos muito difícil conciliarumasupostadoutrinaemanatistaemAl- ind comsuadefesadacriaçãoe -nihilo.Ora,comovimos,estasignifica ustamentecriar apartirdonada . nosistemaemanatista,pordefinição,omundoéfrutodoauto-desenvolvimentodadivindade, ueofaz uirdesi, sem perder nada ou transformar-se de qualquer forma durante este processo. Deparamo--nos,assim,comduasalternativasmutuamenteopostas:ouadivindadelevou e ist nciaalgoforadesi(criaçãoe nihilo),oufezemanartodasascoisasapartirdesuapr priasupe-rabund ncia.Conformeh desevermaisadiante,h uemsugiraumadoutrinaemanatistaemIbnRu dtambém.Seforassim,sepudermosdefatoencontraraomenostraçosdeema-nacionismoemAl- ind eIbnRu d,entãonenhumdosgrandesfal sifap deescaparaestadoutrina neoplatônica, a despeito de tudo o mais quanto disseram.

36 Sobreognosticismo,reproduzimosalgumaspalavrasdeRosaliePereira(2010,pp.1 s): Res-peitando os limites de nosso trabalho, serão apenas delineados alguns aspectos do tema da gn sis,poissabemos ueesteéumtorvelinhodeideias,pensamentos,t picoseargumentosuepreenchemumaliteraturagigantescae ue,porsis , ustificariamanosdepes uisa Palavra uesurgiuapenasnoséculoXVIII, gnosticismo foicunhadapelahistoriografiamo-dernaparadesigner umvastoevariadomaterialdocumentalrelativaadoutrinas ue,namaior parte dos casos, faziam apelo a um “conhecimento” – uma gnôsis – sobre a realidade ocultadeDeusedomundo,sobreomundoesuasalvaçãoescatol gica .Essematerial,dura-mentecriticadopelosPadresdaIgre aentreosséculosIIeIV,privilegiavaacompreensãointe-lectual(racional)emrelação fé opensamentogn sticotemumahist riaeumconte douee trapolamoslimitesdeumasimples heresia docristianismo .

37 E. Campo, 2009, p. 173.

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em todas as direções sem se perder (daí o nome “irradiar”).38 Assim, o universomanifestoseriaoprodutodeumasériedeemanaç es,a uirtalcomoondasdeluzdeuma nicafonteabsoluta,oudivindade.39

H emsimult neoaoprocessodeemana ão outro de degradação, uma uedadoperfeitoaoimperfeito,doe istenteaomenose istente(os seres emanados). A emanação comporta, portanto, uma grada ão ontológica dos seres:adivindade,centrodo ualtudoomaiséirradiado,éperfeita uantomaisosseresseafastamdelapormeiodesucessivasemanações, menos perfeitos eles são.

Ponto de destaque para nós é que esse transbordar doatodivinopossui caráter necess rio – ou seja, tem que acontecer, pois é determinado por uma espécie de lei de efusão interna própria à natureza do xisten-cialmente Necess rio.40Devido sSuasperfeiç es–dentreelasadeserCausa primeira–nãoeraposs velaElepermanecers ,sem ueosde-mais existentes emanassem de Si:41aemanaçãoéalgoinerente ess nciadivina,eobrigatoriamentetemdeocorrer. antoo xistencialmente Ne-

38 “De um modo geral, os termos processão, emanação e irradiação ligam-se à tradição neo-plat nica,easnuancesdeinterpretaçãovariamconformeousoparticulardecadaautor.Noentanto,podemserentendidosapartirdarelaçãododesdobramentoden veissubse uentesderealidadesapartirdeumcentro nico (A IEFI HO,2002,p.1 ).

39 E. Campo, 2009, p. 173. 40 Seguimosa uiA ieFilho(2011,p.8 ), uepreferesubstituir,nafilosofiadeIbnS n ,os

termos ser e ente por respectivamente e ist ncia e e istente .Eled as seguintesraz esparatanto: Entendemos ueobin mio u dema démelhortraduzidopore ist nciaee istente .E,aomenosnametaf sicadeAl-F r b edeIbnS n ,abolimosousodostermos enteeser , ueficariammaisade uados sderivaç esdoverboau iliar na.Osdoisconceitosusadosnaspassagensem uestãoderivamdaraiz a ada, uesignificaencontrar,estara ,estarpresente .Nessesentido, e istir nãotema uiosentidode e --sistere ,istoé,dealgo ueéoriundodeoutracoisa,deprovirde,mas,commaisproprie-dadenosentidoda uilo ueéencontrado, ueest a .Al-F r b no ivrodas etrase plicaaomenostr stentativasdeadaptaçãodal ngua rabeparaovocabul riodo ser .EleeIbnS n optaramporessaterminologiaapartirdaraiz a ada,portanto,apartirdeoutras ueestavamdispon veiseml ngua rabe.Essanãofoi,pois,meramenteumaescolhalingu sticasemconse u nciasemvistadarealidade.Obin mioconstitui-secomoumprincipalpilarsobreo ual seerigiametaf sicadeambos.EmoutraoportunidadepoderemosverificarcomotambémAl- ind ,emsuaFilosofiaPrimeira,espelhaari uezadetermos rabesparaumvocabul riometaf sico,variandoousodasra zesdemodomuitomaislivredo ueamaneirasistem ticautilizadaporIbnS n .

41 Pseudo-Aristóteles, 2010, p. 22.

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cess rio quanto o existencialmente contingente estão implicados em uma e ist ncia,eéimposs velconceberae ist nciadeumsemooutro.42

Contudo,aemanaçãodosm ltiplose istentesnãosed direta-mente a partir de sua origem singular – o xistencialmente Necess rio. Elaocorresegundooa iomaneoplat nico: dounos procedeouno – ou seja: a Causa primeira só dá origem a uma coisa diretamente. So-mente após uma série de emanações concatenadas é que tem lugar a multiplicidade dos seres:

N snãoproibimos uedeumacoisas procedaumas ess nciada qual siga uma multiplicidade acrescida que não se dá desde ocomeçodesuae ist ncianementranoprinc piodesuacons-tituição,maséposs vel uedounosiganecessariamenteouno,e que deste uno segue um juízo, uma disposição ou uma quali-dade ou um causado; e este também é uno, e, pela participação desse concomitante, segue-se algo dele. Surge dele uma multipli-cidadee,todaela,acompanhasuaess ncia.43

Vemos ueo no(o xistencialmente Necess rio) só pode produ-zir o uno diretamente – o primeiro existencialmente contingente, a ri-meira ntelig ncia. apartirdesta uetemin cioasériedeemanaç esuedar lugar multiplicidadenae ist ncia.44

42 Valeanotar ueoe istencialmentenecess rioimplicanumsistemafechadoemsimesmoue,emparte,podeseapro imarmaisdosprinc piosaristotélicosdaeternidadedomundo

do que de princípios religiosos da criação do mundo por meio de uma entidade separada. Hipoteticamente,neste ltimocaso,Deusemundopoderiamsertomadoscomoduase is-t ncias,na ualasegundadependeriadaprimeira.Assim,poderiaseromundodestru doemsuae ist nciaeDeus,namedidaem uefosseume istentenecess rioporsi,seriacapazde criar outros mundos. No presente caso, a questão é colocada sobre outras bases. Primeira-mentepor ueaunicidadedae ist nciaretiraadualidadedeumentendimentocriacionistadotipodualista.Deusemundoestão,assim,implicadosnumamesmae ist ncia.Aine is-t nciadeumdoselementosimplicarianaine ist nciadooutro.Atarefaseguintedeveserverificarcomoéposs vel ue,apartirdofundamentounit riodae ist ncia,semanifesteumapluralidadedee istentes (A IEFI HO,2011,p.108).

43 IbnS n apudIs andar,2011,p.112.44 Nãoénossaintençãodesenvolvernocorpodoartigoessasériedeemanaç es,inerentemen-

tearticulada Metaf sicaeCosmologiaavicenianas.Contudo,ei-lae postanestanota.ACosmologiaalfar bico-avicenianaétribut riadaaristotélico-ptolemaica.Nesta,o niversoéumtodofechadoemsi,espacialmentefinitoehierar uicamenteordenado.EmAl-F r b ,essa cosmologia é constituída por uma ampla descrição metafísica e sistemática do mundo que une o conceito de emanação de Plotino à doutrina do intelecto de Aristóteles. Junto ao

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Este tipo de “criação”, enquanto necessário, não comporta prece-d nciatemporalnarelaçãocausa-efeito:ambossãosimult neos,poisoefeitoe igeapresençasimult neadacausa.45Issoéposs velpor uenem todo agente produz o seu efeito no tempo, ou seja, a produção do efeito a partir da causa nem sempre se dá no tempo. Se a causa e o efeitodevemsersimult neosedemesmanatureza,então:ouambos

conceitoanterior,IbnS n imp eateoriadaanimaçãodoCéu(dotadodev riasalmas,umaparacadaesfera)eosistemadasdezIntelig ncias, ueteriamduasfunç es:apilotagemcelesteeaprodução/transmissãodaPrimeiraIntelig nciaao ltimoemanado–oDoadordasFormas,décimaIntelig ncia uepresideaesferada ua.Oes uematemorigemcomoE istencialmenteNecess rio(Deus,o no), ueépurointelecto.Sua nicaatividadecon-sisteeminteligirasipr prio.Aofaz -lo,eled origem,necessariamente,comoconte dodeconhecimento,aapenasuma nicacoisaealgodistintodesi:aPrimeiraIntelig ncia,opri-meiroseremanado.EstaPrimeiraIntelig nciadiferedoE istencialmenteNecess rio,poiséoprimeiroe istencialmentecontingente.Comotambémécapazdeintelecção,elad origemà pluralidade, pois contém em si a tríade neoplatônica – pensante, pensado, pensamento. A PrimeiraIntelig ncia(puropensamento),aopensaroE istencialmenteNecess rio,originaaSegundaIntelig ncia eaopensarasimesma,produzaprimeiraesferaceleste,dotadadecorpo(suamatéria)edealma(suaforma).ASegundaIntelig nciarefazessatr adeintelec-tiva,aooriginarsuaesferaealmacelestes,alémda erceiraIntelig ncia eassimpordiante,atéaDécimae ltimaIntelig ncia,oIntelectoAtivo, uepresideanonaesfera(ada ua)ecomo ualaalmahumanapodeserelacionar.DoE istencialmenteNecess rioatéaDécimaIntelig ncia,temosomundosupralunar( alémdalua ),formadopordezIntelig nciasenoveesferas celestese conc ntricas, cu ocentroéa erra–na seguinteordem,daesferamaisafastada(aprimeira,adoCorpoE tremo,engendradapelaprimeiraIntelig ncia) maispr imadocentro(anona,ada ua,engendradapelaNonaIntelig ncia):CorpoE -tremo,EstrelasFi as,Saturno, piter,Marte,oSol,V nus,Merc rio,ea ua.Assim,todososcorposcelestesvis veisaolhonu(tantodedia uantodenoite)sãoamatériadealgumadasnoveesferascelestesdomundosupralunar.Contudo,portratar-sedeumamatériasim-ples,nãocomposta, tais corpos sãoperenese incorrupt veis.A nicaatividade realizadapelos Intelectos das esferas do mundo supralunar, enquanto seres simples, não compostos, éumpensarininterrupto.Abai odanonaesfera,ada ua,temorigemomundosublunar( abai odalua ). aintelig nciadestaesfera,chamadadeIntelig nciaAtivaouDoadordasFormas, ued origemaomundosublunareofazprocederdesi untamentecomamatériaeasformasdeste. nomundosublunar uea erra–e,pore tensão,ohomem–seencon-tram.Estaéaparteinst veldouniversoesu eitaamudanças,poisosm ltiplosseres ueapovoam,diferentesdosdasesferasanteriores,sãocompostospelos uatroelementos(terra,fogo, guaear)e,comotal,su eitos corrupção.Portanto,aemanaçãodoE istencialmenteNecess rioaomundosublunarsegueumaescaladecrescentedeperfeição.Invertendoessatend ncia,os uatroelementos,emescaladecomple idadeascendente,originamohomem,criatura capaz de inteligir as formas destituídas de qualquer matéria a partir do momento em ueseuIntelectoPassivoentraemconson nciacomoIntelectoAtivo.

45 Ram n uerrero,1985,p.12 .

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são temporais; ou ambos são eternos. Se a causa está sujeita ao tem-po, também o efeito o está; caso contrário, não estará, porque o efeito aponta para a natureza da causa.

Portanto,seaCausaprimeiraéeterna,ose istentesemanadosdela hão de lhe ser co-eternos. Conclusão: o mundo é eterno, pois pro-cededeDeusdesdeaeternidade.Emvezdecria ão, melhor falarmos em termos de proced ncia, já que o tempo não está implicado.

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Asduasteoriassobreaorigemdomundo e plicadas–adacriação ex nihilo no tempo (a mais popular, defendida sobretudo por teólogos); e a da criação por emana ão desde a eternidade (que predo-minouentreosfil sofosneoplat nicosnoIslã)–foramasprincipaisvis esdosmuçulmanossobreoassuntoduranteaIdadeMédia.Con-tudo,houveumaterceiraalternativa spredecessoras,sustentadapeloltimovultodafalsafa–senãoseumaiore poentecomoumtodo. ra-ta-sedoIbnRu d,imortalizadoporseunomelatinizado– Averr is .46

Foiporeste ltimo ueocordov s47virousin nimodefilosofia (nãos isl mica,masfilosofia propriamente) no Ocidente latino medie-val.H uemdiga uenenhumoutrofil sofofoitãocaluniado uantoele, ao mesmo tempo em que, dentre aqueles nascidos sob o Islã, ne-nhumoutrotevetantain u nciasobreaculturauniversal.48 De fato, IbnRu din uencioumaisosmundos udeuelatinomedievaisdo ueoisl mico:neste ltimo,deunomeinclusiveaumacorrentefilos fica,oaverro smo latino,49do ual seencontravame poentesatémesmo46 Alternativamentegrafadocomo Averroes .47 IbnRu dnasceuemC rdova(alternativamentegrafadacomo C rdoba ),umdosmaiores

centrosdaculturaeintelectoisl micosnaAndaluzia,aEspanhamuçulmanamedieval.48 Estaafirmaçãomuitodiscut velédeDe ibera(2011,p.1 4).49 DoutrinadeAverr is (Ibn-Rosch,112 -98), como foi entendidae interpretadapeloses-

col sticosmedievaisepelosaristotélicosdoRenascimento.Resumia-senosseguintesfun-damentos: 1- eternidade e necessidade do mundo: tese contrária ao dogma da criação; 2- separaçãodointelectoativoepassivodaalmahumanaesuaatribuiçãoaDeus essatese,atribuindo almahumanas umaespéciedeimagemdointelecto,despo ava-adesuapartemaisaltaeimortal -doutrinadaduplaverdade,istoé,deumaverdadederazão, uesepodee trairdasobrasdeArist teles,ofil sofopore cel ncia,edeumaverdadedefé:am-bas podem opor-se. A principal personalidade do A. latino foi Sigiero de Brabante, nascido porvoltade12 5efalecidoentre1281e1284 .Abbagnano,2007,p.111.

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noséculoXVI.Médico, uiz,fil sofo,foiconsideradopelosescol sticosmedievais OComentador deArist telespore cel ncia.Enãoporacaso:nutriaporeste ltimoamaisaltaestima.50Seupro etofilos ficofoireconduzirafilosofiaemterrasdoIslã maisfielinterpretaçãodoEstagirita,purificadadetodasasinterpolaç esneoplat nicasposterio-res(IbnS n incluso).

Dentre todas as doutrinas d Comentador,as uetiverammaiseco–e uefizeramsuapéssima famanomundo latino foram:adaunidade do intelecto (“monopsiquismo”); e, em especial para nós, a da eternidade do mundo.51 Aliás, foi com este mesmo assunto que foi introduzido,noin ciodesuacarreira,aserviçodoemirdeC rdova:uando entrei na casado emir ... Este começoua tecer elogios a

mim ... oemirassimabriuaconversação: ualaopiniãodosfil sofosarespeitodocéu umasubst nciaeternaouteveumcomeço .52

Aresposta ueIbnRu ddeuaessaperguntatentouapro imar--seom imoposs vel,segundoele,deumainterpretaçãopuramentearistotélica.Assim,desviou-sedeatribuiraomundoumcomeçotem-poral,doutrina uevotavaaoste logos,esses dial ticos53 pelos quais nutria grande desprezo. Porém, ainda que defendesse a doutrina da eternidade domundo, recusou-se a entend -la segundo o es uemaemanatista de base neoplatônica. No lugar de ambos, considerou a opinião do Estagirita a mais congruente com a natureza do existente.

50 AveneraçãodeIbnRuchdporArist telestornou-seproverbial.EmaProcuradaVerdade,II,VI,Malebrancheelaborouodossi dose cessosdeadmiraçãoprodigalizadospeloCo-mentadordoEstagirita ... Malebranche,horrorizado,conclui: Naverdade,nãoéprecisoserloucoparafalarassim Enãoépreciso ueateimosiadesseautortenhadegeneradoeme travag nciaeemloucura (DE IBERA,2011,p.1 7).

51 De ibera,2011,p.174.52 Bada iapudA ieFilho,2002,pp. 0 s.53 No ratadoDecisivo,IbnRu ddistinguiatr sclassesdepessoas: ... algunsdãoassenti-

mento à demonstração; outros aos argumentos dialéticos e outros aos argumentos oratórios. Essadivisãotr pliceéilustradapelostr stiposdehomem uee istemdiantedaletradaescritura: a primeira – grande massa da população – é a dos que não possuem o menor grau deabstraçãointerpretativa,dei ando-selevarapenaspelaret rica éotipodehomem ueassente aos argumentos orat rios a segunda é constitu dapeloshomensdialéticos, uetrabalham com as hipóteses, mas não chegam a uma conclusão sobre as questões; a terceira éadoshomensde ulgamentocorreto,istoé,aptosnaartedafilosofia e ues assentem,portanto,aosargumentosdemonstrativos (it licosnossos).A ieFilho,2002,pp. 25s.Cf.IbnRu d(Averr is),2001,Cap.III, hatdemonstrationaccords iththe a .

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Contra a doutrina da criação ex nihilo,IbnRu ddedicouaspri-meiras duas disputas da ahafut Al ahafut (A ncoer ncia da ncoer n-cia).54Segundoocordov s,sesupusermos ueacriaçãodomundoéumatovolunt rioeDeusumsertodo-poderoso,nãoh comoenten-der por que Ele teria de esperar para criar o mundo no tempo. Ora, tal esperaestariacondicionadaporalgoe tr nsecoaDeus–imposs vel,poisantesdessasupostacriaçãotemporals Elee istiria.Emacrésci-mo, nesta hipótese, Deus estaria constrangido em suas ações por algo ueoimpediriaderealizarantesoatocriativo,coisaincompat velcomoconceitodeumadivindadeonipotente: uem(ouo ue)seriacapazdeobrig -lOaesperarparacriaromundo,afinal

Além do mais, em Deus não há vontade tal como no homem. Esta tem de escolher entre contrários e receber um deles, sendo inerente-mente possível.Setransferimosnossoconceitode vontade (poss vel)para Deus – tornando-a eterna–eladei adeservontadepornãosermais possível, mas sim necess ria:

Poisavontadeéodese odeumagenteemdireçãoaumaação.Quando o agente age, o desejo cessa e a coisa desejada acontece, e esse desejo e esse ato estão igualmente relacionados a ambos os contrários. Mas quando alguém diz: “Há um Desejante que dese aeternamenteumdedoiscontr riosemSimesmo ,adefi-niçãodevontadeéabandonada,poistransferimossuanaturezadoposs velparaonecess rio(traduçãonossa).55

Deus não muda nem tem que escolher entre contrários. Se Ele quisesse criar o mundo, fá-lO-ia desde sempre, pois Seu querer é eter-noe imut velcomoElepr prio.Portanto,énecess rio que o mundo procedad Eledesdeaeternidade.

54 “Primeira disputa: sobre a eternidade do mundo” e “Segunda disputa: a refutação de sua teoriadaincorruptibilidadedomundoedotempoemovimento (traduçãonossa).IbnRu d(Averr is),1954,pp. 2-1 .

55 Forthe illisthedesireoftheagentto ardsaction. hentheagentacts,thedesireceasesandthething illedhappens,andthisdesireandthisactaree uall relatedtoboththecontraries.But henonesa s: hereisa ilier ho illseternall oneoft ocontrariesinHimself ,thedefinitionofthe illisabandoned,for ehavetransferreditsnaturefromthepossibletothenecessar (IBNR D(AVERR IS),1954,p. 5).

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IbnRu d, assim como Ibn S n , também entende ue causa eefeitosãosimult neos.56Seassimé,cabeentendercomoaconse n-cia – o mundo – procede eternamente de sua causa – Deus. Esse ato criativoe tempor neo,naleituradocordov s,consisteessencialmentenaatualizaçãodo ueéposs vel:oproblemaseresume,então,acom-preender como este se manifestou.57

Comofieldisc pulodeArist teles,ofil sofocordov sleu ue,segundo seu mestre, o agente nada pode produzir por si mesmo – ou seja, do nada.Suaaçãoest limitadaaunirduascoisas ue e istemdesde sempre, portanto eternas – a mat ria e a forma: Osfil sofos,por-tanto, dizem que os princípios das coisas transitórias são dois: a ma-téria e a forma”.58 Dito de outra forma: o agente pode apenas atualizar aquilo que já está em pot ncia, latente. Assim, a criação não é o apareci-mentodealgonovoemverdade,masapenasmovimento:

ma conse u ncia muitochocanteeinaceit vel seseguene-cessariamentede ual uerteoria ueafirme ueoatodoagenteest conectadocomacriaçãoabsoluta ex nihilo –istoé,aprodu-çãodealgo uenãoe istiaantesempot nciaenãoforaumapo-tencialidade ueseuagenteconverteradapotencialidade atu-alidade,teoria ue,defato,afirma ueoagentecrioudonada.Contudo,paraosfil sofos,oatodoagentenãoénadamaisdoueaatualizaçãodo ueest empot ncia ...... comotuv s ... aproduçãoéaconversãodeumacoisadae ist nciapotencialparaaatual ... Dissosedepreende ueessapossibilidade e a matéria estão necessariamente conectadas com ual uercoisa uevenhaaser ... (traduçãonossa).59

56 E uall ,ifitisabsolutel truethatthee ectofacausecannotbedela edafterthecausationandtheAsh aritesclaimthatthe canadvanceaprooftoden it,then ecanbeabsolutel surethatthe cannothavesuchaproof (IBNR D(AVERR IS),1954,p.42).

57 Cruz Hernández, 1963, p. 302.58 IbnRu d(Averr is),1954,pp.1 4s.59 Butthisconse uencefollo snecessaril froman theor hicha rmsthattheactofthe

agent is connected with absolute creation-that is, the production of something that did not e istbeforeinpotenc and asnotapossibilit hichitsagentconvertedfrompotenc intoactualit ,atheor hicha rmsinfactthattheagentcreateditoutofnothing.Butforthephilosopherstheactoftheagentisnothingbuttheactualizingof hatisinpotenc But,as ousee,allthesedi cultiesarisefortheman hohasnotunderstoodthatproductionistheconversionofathingfrompotentialintoactuale istence (IBNR D(AVERR IS),1954, pp. 124,126).

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EmIbnRu d,estemovimentoéefetuadopelaaçãodeDeus, uedeveserentendidotantoemsentidoaristotélico–o rincípio, o rimei-ro Motor, Im veleeterno60 – quanto como Ser supremo e causa das cau-sas,ouse a,oagente uefazascoisaspassaremdapot nciaaoato.61 Se chamamos a Deus de “criador” aqui, isto o é apenas no sentido de um artesão uetrabalhacommatériapré-e istente,enãoamododeumserueleva e ist nciaalgo ueantesabsolutamentenãoexistia.

Destes dois princípios com os quais Deus trabalha, a mat ria é co-mum a todos os seres, e possui em si mesma a forma, ainda que poten-cialmente. Portanto, a ação de Deus não consiste em dar forma a uma matéria, tal como o Doador das ormasaviceniano.62 Antes, Ele procede a modo de extrair asformas ueamatéria possuiempot ncia–ouse a,gerarsuauniãopormeiodomovimentoeternodasesferascelestes.63

60 OPrinc pio,aPrimeiradascoisas uesão,nãoésuscet veldemovimentonemporsinemacidentalmente,emoveproduzindoomovimentoprimeiro, ueéeternoeuno.Eposto ueénecess rio ueo uesemovese amovidoporoutro,e ueoprimeiro uemovese aim -velporsie ueomovimento,sendoeterno,se aproduzidoporummotoreternoe,sendouno, por um só; e posto que, de outra parte, para além da translação simples do Todo que consideramosproduzidapelaentidadeprimeirae im vel,observamosoutras translaç esuesãoeternas,asdosplanetas(ocorpo uesemoveemc rculoé,emefeito,eternoeseminterrupção:ademonstraçãodistoest naF sica),énecess riotambém uecadaumadestastranslaç esse amovidaporumaentidadeim velporsieeterna traduçãoeit licosnos-sos .Arist teles,1994, ivroXII,Cap.VIII,20- 5.

61 Contudo,paraofil sofocordov s,estesdoissentidosnãodevemserencaradoscomoe ui-valentesousin nimos,massimcomocaminhosdiversos ueconduzemaummesmodes-tino.Aconsideraçãoespec ficadomovimento(orae posta)levaIbnRu d viaf sicaparaconstatarae ist nciadeDeus,encontradaemseusComent riosdeArist teles.Aoutraviaéateol gica,e posta,pore emplo,na ahafutal- ahafut.Cf.CruzHern ndez,19 ,p.298.

62 Cf. nota 44.63 Eisumabrevedescriçãodacosmologiadofil sofocordov s: AcosmovisãodeIbnRu d

éadeumuniversofechado,esférico,formadoporumasériedeesferasconc ntricascu ocentroéa erra,emtornoda ualgiramas rbitascelestes.Parae plicaromovimentodoscéus,acompanhandoosestudosastron micosdeseutempoIbnRu dseguiuaopiniãomaiscorrenteeestabeleceu45motores: 8corresponderiam sesferasdasestrelasfi asedospla-netaseseteaosmovimentosdiurnosdecadaumadasesferasm veis.Os 8estariamassimrepartidos:5paracadaumdosplanetassuperiores(Saturno, pitereMarte)5paraa ua,8paraMerc rio,7paraV nus,umparaoSoleumparaasestrelasfi as. medida ueosmotoressehierar uizam,devemchegaraumprimeiromotorseparado, ueéoprinc pioprimeiroe ltimoao ualtodostendem. oPrimeiroMotorIm vel,aPrimeiraIntelig ncia

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Deus é, então, a Causa primeiradetodasascoisas,poiscomSuavirtudeinef veleatravésdomovimento, atualiza na mat ria as formasposs veis.64

IbnRu dnãodefendeua eternidadedomundoe criticou seucomeçotemporalbaseadoapenasnafilosofia,massevaleutambémdoCorão. No ratado Decisivo, eleafirmou uesuaposiçãonãoentravaemcontradiçãoalgumacomarevelaçãocor nica,pelocontr rio:anteserasugerida pela mesma.65A uemoacusoudisso,ocordov sretor uiuque os muta allim n, quando impõe a criação ex nihilo, não seguem literalmente a escritura, pois não há em parte alguma desta declaração e pl citanestesentido oste logosestãoantesainterpret -la.66

Para ilustrarseuracioc nio,ofil sofoelencouno ratado algu-mas passagens do Corãoedeu-lhese egesediversadatradicionalso-bre as mesmas.67Comisso,sustentou ueapr priarevelaçãodefendiaseupontodevistasobreaeternidadedomundo.DaSurata XI,7, onde sel : Elefoi uemcriouocéuseaterraemseisdias– uando,antes,abai odeseu ronos havia gua ... 68, depreende-se que, antes da criaçãodomundo,havialiteralmenteduascoisasparaalémdeDeus:seu Trono e a água, e um tempo antes do tempo atual. Da SurataXIV,48, que reza: “No dia em que a terra for trocada por outra (coisa) que nãose aterra,comotambémoscéus ... ,infere-se,porsentidoliteral,uehaver umasegundae ist nciaparadepoisdesta.EdaSurataX I,

11: “Então, abrangeu, em Seus desígnios, os céus quando estes ainda eramgases ... ,sugere-se ueoscéusforamcriadosapartirdematé-ria anterior.

separada,cu aunidadeasseguraado niversoe,porconseguinte,seupr prioser.Mas,nãoobstantesuaposiçãonaturalista,IbnRu dafirmou ueoPrimeiroMotorIm veleeternoéDeus ... ueéa causadae ist nciadaintelig nciamotrizdaesferadosfi os, ualseseguemasoutrasesferastendo,nocentrodo niverso,os uatroelementos .A ieFilho,2002, pp. 317s.

64 Cruz Hernández, 1963, p. 303.65 IbnRu d(Averr is),2001,Cap.III, hatdemonstrationaccords iththe a .66 Cf. nota 27 deste artigo. 67 IbnRu d(Averr is),2001,Cap.II, hatphilosoph andlogicareobligator .69 Corão,1994. uantoaestepontodevista,aSurataXXI, 0 tambémparecesugeriralgose-

melhante: Nãov em,acaso,os incrédulos, ueoscéusea terraeramumas massa, uedesagregamos ... .Então,antesdomundoe istirtalcomoovemosmanifestoho e,possivel-mentehaviaumestadodecaosprimevoamorfo,ao ualDeusincutiuordemapartirdesuaatividadecriadora.Anota9 daediçãodoCorãocitadaporn srezaoseguinte: Aevolução

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Contudo,aoafirmaraeternidadedomundo,IbnRu dnãoacon-cebeuconformeoes uemaemanatistaneoplat nicotãocaroaIbnS n ,regidopeloa ioma dounos procedeouno ,repletodeintermedi -rios (as ntelig ncias)entreDeuseosseresconcretosem ltiplos.Paraofil sofoandaluz,essea iomas éverdadeirosefortomadonosentidode ueouno simples s produzouno poisconstatamos,pelae peri-ncia, ueounocompostopodeproduzirom ltiplo,talcomoadifusãodaluzapartirdeumafonte nica,oucomoasordensdeumcoman-dante, uesãorepassadasporseusintermedi riosatéseindividuali-zarem nos soldados.69Ocordov snãoreputaimposs veladivindadeoriginar diretamente o mundo a partir de mat ria eterna – que é a causa da individua ãodosseresconcretosem ltiplosneste.Ocon untodestesseres no mundo, portanto, formam uma unidade em Deus, que confere unidade (em si) e multiplicidade (fora de si) a todo o criado.

No decorrer deste trabalho, pudemos conhecer as posições de tr sdosmaioresfalas fa–Al- ind ,IbnS n eIbnRu d–comrespeitoeternidadedomundo:en uanto,respectivamente,oprimeiroane-gou,osdois ltimosafirmaram-na,masdemodosdiferentes.Al- ind foi partidário de sua criação ex nihilo por Deus no tempo, o que faz dele,portanto,finito IbnS n defendeusuaeternidadeapartirdeuma emana ãoe temporalprovindadeDeus.IbnRu d,porsuavez,também defendeu a eternidade do mundo; mas contrapôs ao esquema emanatistadofil sofopersaumadoutrinadeinspiraçãoaristotélica,baseada na atualiza ão por Deus das formas em pot ncia na mat ria – esta ltimaeterna.Emcomum,ostr sfalas faafirmaramresolutamente ue

Deus é a causa do mundo – ainda que o modo como este fora causa-

dosmundosordenados,comoosvemos,édadaaentender. medidaem ueoolharinte-lectualdohomemsobreomundof sicosee pande,elev cadavezmaiscomoaunidadeéanotadominantenomaravilhoso niversodeDeus. omandotão-somenteosistemasolar,n ssabemos ueaintensidadem imadasmanchassolarescorresponde ... intensidadem imadas tempestadesmagnéticasna erra.A leiuniversaldagravidadepareceunirasmassastodas untas.Osfatosf sicosapontamparaaformaçãodosplanetasapartirdevastasuantidadesdematérianebulardifusa,da ualon cleocentralcondensadoéosol.

69 Cruz Hernández, 1963, p. 304s.

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dovarieentreeles:se aatravésdecriaçãotemporalefinita se aporemanaçãod Eledesdeaeternidadeeatravésdegraussucessivosdae ist ncia ouse aatravésdeeternaatualizaçãodeformaspotenciaisna matéria.

Esperamos, além disso, ter despertado no leitor ao menos a noção de que Deus não alheio ao discurso filosófico.EsteécapazdeversarsobreEle e Sua relação com os demais existentes – e isso no mínimonaFiloso-fiaMedieval,nestecasoaisl mica. Especular sobre o divino e como ele interage – ou não – conosco não é uma agressão ao Logos. Quem deseja lero ueescreveramosfalas fanãodeve–nempode–renegar a priori Deusdesse discurso. Afinal, ue filosofia seria esta ue interdita apergunta :70 certamente, não aquela em terras do slã nomedievo.

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