cartografia de si

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Gramado RS De 30 de setembro a 2 de outubro de 2014 CARTOGRAFIA DE SI: o processo de criação através dos territórios particulares e compartilhados no Instagram Yorrana P. Maia de Souza UNAMA [email protected] Resumo: O interesse deste artigo é melhor compreender a multiplicidade que perpassa variáveis de processos de criação em moda na contemporaneidade, por meio da reflexão sobre uma cartografia composta por registros particulares e por registros fotográficos compartilhados no Instagram do criador. O modelo de observação e pesquisa parte do conceito de Rizoma de Gilles Deleuze e Felix Guattari, um mapa aberto, conectável e desmontável. Dentre outros movimentos de entradas e saídas, os diálogos com Suely Rolnik sobre a Cartografia e com Michel Foucault sobre a Escrita de Si fundamentam o entendimento acerca do ato de criar como uma construção de Si. Palavras-chave: Processo de criação; rizoma; cartografia; moda. Abstract: The interest of this essay is to better understand the multiplicity of variables that permeates creation processes in the contemporary fashion, through reflection on a map composed of private records and photographic records of the creator shared on Instagram. The observation model and research is based on the concept of Rhizome as presented by Gilles Deleuze and Felix Guattari, an open map, attachable and detachable. Among other movements of inputs and outputs, dialogues with Suely Rolnik on Cartography and Michel Foucault on “self writing” underlie the understanding of the act of creation as a construction of the self. Keywords: creative process; rhizome; cartography; fashion. 1. INTRODUÇÃO Em seu abecedário 1 , Deleuze (1988-1989) discorre sobre a letra “z”, de zigue- zague, que lembra o que dizia sobre universais e singularidades. A questão é: como relacionar as singularidades díspares ou relacionar os potenciais? Em termos físicos, podemos imaginar um caos cheio de potenciais; mas como relacioná-los? Como 1 Realização de Pierre-André Boutang. Entrevista feita por Claire Parnet, foi filmada nos anos 1988-1989. Tradução e legendas: Raccord. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=FPp8uC2WqYc . Acesso em: 16 de setembro de 2012.

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Artigo científico sobre a rede social instagram

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  • Gramado RS

    De 30 de setembro a 2 de outubro de 2014

    CARTOGRAFIA DE SI: o processo de criao atravs dos territrios particulares e compartilhados no Instagram

    Yorrana P. Maia de Souza UNAMA

    [email protected]

    Resumo: O interesse deste artigo melhor compreender a multiplicidade que perpassa variveis de processos de criao em moda na contemporaneidade, por meio da reflexo sobre uma cartografia composta por registros particulares e por registros fotogrficos compartilhados no Instagram do criador. O modelo de observao e pesquisa parte do conceito de Rizoma de Gilles Deleuze e Felix Guattari, um mapa aberto, conectvel e desmontvel. Dentre outros movimentos de entradas e sadas, os dilogos com Suely Rolnik sobre a Cartografia e com Michel Foucault sobre a Escrita de Si fundamentam o entendimento acerca do ato de criar como uma construo de Si. Palavras-chave: Processo de criao; rizoma; cartografia; moda. Abstract: The interest of this essay is to better understand the multiplicity of variables that permeates creation processes in the contemporary fashion, through reflection on a map composed of private records and photographic records of the creator shared on Instagram. The observation model and research is based on the concept of Rhizome as presented by Gilles Deleuze and Felix Guattari, an open map, attachable and detachable. Among other movements of inputs and outputs, dialogues with Suely Rolnik on Cartography and Michel Foucault on self writing underlie the understanding of the act of creation as a construction of the self. Keywords: creative process; rhizome; cartography; fashion.

    1. INTRODUO

    Em seu abecedrio1, Deleuze (1988-1989) discorre sobre a letra z, de zigue-zague, que lembra o que dizia sobre universais e singularidades. A questo : como relacionar as singularidades dspares ou relacionar os potenciais? Em termos fsicos, podemos imaginar um caos cheio de potenciais; mas como relacion-los? Como

    1 Realizao de Pierre-Andr Boutang. Entrevista feita por Claire Parnet, foi filmada nos anos 1988-1989. Traduo e

    legendas: Raccord. Disponvel em: http://www.youtube.com/watch?v=FPp8uC2WqYc. Acesso em: 16 de setembro

    de 2012.

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    relacionar potenciais de um percurso criador no linear e fragmentado em uma narrativa que assuma esse ir e vir, em movimento ziguezagueante?

    Partimos, ento, do conceito de Rizoma de Gilles Deleuze e Felix Guattari, um mapa aberto, conectvel e desmontvel. Dentre outros movimentos de entradas e sadas, os dilogos com Suely Rolnik sobre a Cartografia e com Michel Foucault sobre a Escrita de Si fundamentam o entendimento acerca do ato de criar como uma construo de Si e de suas redes de conexes de referncias em fluxo e no lineares. Para isso, fomos recolhendo conceitos e teorias, deslocando-os e adaptando-os ao campo da moda, e assim articulando a investigao e os conceitos que fossem pedindo passagem.

    O que nos interessa entender o percurso, o meio, as construes de Si, o ato de criar, o que gera o movimento da criao e quais fragmentos do seu cotidiano particular e compartilhado esto inseridos nas colees desse criador. Portanto, buscamos compreender o processo de criao que ressalte a no-linearidade, que force a abandonar certos mapas, para ento entender que a criao assume outro ritmo na contemporaneidade: acelerado e atravessado pelas novas tecnologias, de passos rpidos e em constantes mudanas.

    2. IDAS E VINDA: RIZOMA, CARTOGRAFIA E CONEXES

    Atualmente estamos vivendo outro regime de tempo e de espao que produz

    outras configuraes nas subjetividades atravessadas por conexes efmeras, cambiantes e mutantes. Para Martin Barbero (2004, p. 200) a acelerao das mudanas faz parte do movimento da comunicao a instantaneidade da informao possibilita uma nova rentabilidade e uma transformao das relaes possveis, multiplicando-as.

    Portanto, parece acertado nos tempos atuais ponderar formas contemporneas de pensar a criao em processo que partam dessas relaes mltiplas, decompondo e compondo territrios. Nesse sentido, o processo de criao:

    Nada tem a ver com o cultivo de hbitos criados em cativeiros criativos, ao contrrio, inventar estados de si que desbordam de um destino pessoal. Inveno interveno na existncia movido por uma profunda necessidade. construir uma cmara de ecos, que ressoe o vivo e voc junto. Inventar no colorir o mundo, mas corar-se de mundos. (PRECIOSA, 2010, p. 75)

    Preciosa (2010) pede para inventarmos movido por desejo, e que esta inveno ressoe o vivo e ns juntos, elaboraes de Si e dos projetos em curso. Nesse movimento, encontros inesperados trazem outros desdobramentos e possibilidades. Sendo assim, acompanhar o engendramento do pensamento mais importante do que pontuar suas representaes. Escrever nada tem a ver com significar, mas com agrimensar, cartografar, mesmo que sejam regies ainda por vir (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 13)

    Esses novos encontros e sentidos produzidos passam a fazer parte da reserva deste criador que compe seu repertrio atravs da pluralidade e da transitoriedade das informaes no seu ambiente contemporneo. Desse modo, h por parte do criador, uma necessidade de guardar alguns elementos, que podem ser possveis

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    concretizaes dos seus projetos ou podem ajudar nessa concretizao. Os documentos de processo so, portanto, registros materiais do processo criador. So retratos temporais de uma gnese que agem como ndices do percurso criativo. (SALLES, 2004, p. 17)

    A prpria construo do pensamento criativo j traduz uma prtica de Si, pois o criador est o tempo todo refletindo seu ambiente, seus sonhos, objetos, suas lembranas mesmo quando mergulha no caos para dar corpo a outras sensaes que pedem passagem. Se a subjetividade uma construo social, ento ela se metamorfoseia o tempo inteiro a partir dos novos agenciamentos com os quais o estilista entra em contato. A criao em processo , portanto, uma construo de Si.

    Michel Foucault se perguntava: por que um pintor trabalharia, se no fosse para ser transformado por sua pintura? E por que algum escreveria, poderamos nos perguntar? Para intervir em si mesmo, para se infligir ideias, quase sempre improvveis, para se usar de vrios modos, para se contrair e distender, para que os insights insistam e que com eles voc possa compor algumas aes perceptveis. (PRECIOSA, 2010, p. 21)

    Em todo o caso, alm da pesquisa que feita para os seus projetos em curso, o

    criador est sempre refletindo sobre a sua maneira de pensar e fazer. As novas impresses do mundo vo metamorfoseando tambm sua maneira de olhar para esse mundo, assim novas estratgias de marca surgem e o comportamento das clientes muda, aparecendo novos desejos de criar novas imagens. Na verdade, a inquietude e a busca de novos direcionamentos movem o ato de criar, pois o estilista afetado pelo seu tempo e para aprender a viver com esse novo tempo ele exercita essa elaborao de Si. Mas como compreender a multiplicidade e no linearidade em que o processo de criao se d? Em que sentido esses encontros e conexes formam projetos de design de moda?

    Os filsofos Deleuze e Guattari (1995, p. 8) argumentam que as multiplicidades ultrapassam a distino entre a conscincia e o inconsciente, entre a natureza e a histria, o corpo e a alma. As multiplicidades so a prpria realidade, e no supem nenhuma unidade, no entram em nenhuma totalidade.

    Para esses autores, o modelo de realizao das multiplicidades o rizoma, e os vetores que as atravessam so os territrios e graus de des-re-territorializao. Assim, os territrios mudam necessariamente medida que aumentam as conexes que se estabelecem. No devemos buscar a unidade e sim as variedades de medidas, novas misturas que se definem pelas desterritorializaes que mudam de natureza ao se conectarem a outras.

    Em primeiro lugar, necessrio entender o territrio no como um lugar esttico com uma delimitao espacial e sim flexvel e itinerante, pois, de acordo com Deleuze e Guattari (1997), o prprio agenciamento territorial se abre para outros tipos de agenciamentos que o arrastam. Nesse sentido, a desterritorializao o movimento pelo qual se abandona o territrio, a operao de linha de fuga.

    A desterritorializao, por sua vez, inseparvel de reterritorializaes. que a desterritorializao nunca simples, mas sempre mltipla e composta: no apenas porque participa a um s tempo de formas diversas, mas porque faz convergirem velocidades e movimentos distintos (...). A reterritorializao como operao

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    original no exprime um retorno ao territrio, mas essas relaes diferenciais interiores prpria desterritorializao, essa multiplicidade interior a linha de fuga. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 225)

    Construir o pensamento criador desterritorializar-se. Isto quer dizer que o pensamento s possvel na criao e, para que algo seja criado, necessrio romper com o territrio existente, criando outros. Novos agenciamentos so necessrios. No entanto, a desterritorializao do pensamento sempre acompanhada da reterritorializao, que a coleo criada, o novo conceito.

    No campo da moda, esses movimentos tomam propores ainda maiores se levarmos em conta que a efemeridade e a busca pelo novo so o cerne do seu funcionamento, portanto estamos sempre nos des-re-territorializando. Preciosa (2009), ao refletir sobre a moda contempornea, comenta como a nossa cultura parece mover-se aglutinando informaes, funcionando base de sucessivas colagens, assimilando, devorando e intervindo no repertrio selecionado, com vistas a produzir outros arranjos sgnicos. Afinal, vestimos formas que nos projetem num espao fsico e afetivo, num espao simblico de trocas culturais: espao de inveno e reinveno subjetivas.

    O estilista, portanto, vai recolhendo, juntando tudo o que lhe parece necessrio, e esses encontros e trocas com o territrio local, global e virtual, com o seu tempo e consigo mesmo geram sentidos possveis em suas colees. Para Le Breton (2003), a cultura virtual, longe de ser uma iluso, uma outra dimenso do real, na qual o imaginrio estabelecido na relao com a tela alimenta a relao com o mundo: no um devaneio desligado da densidade das coisas. Esta perspectiva importante para entender o funcionamento da moda contempornea, o criador e seu modo de pesquisa e registro inseridos tambm no contexto virtual.

    A construo de sentidos ao longo do processo de criao em moda imbricada desses devires, deslocamentos, emoes e inquietaes que geram o movimento da criao; e da necessidade de dizer algo atravs de discursos vestveis, surgem colees que sero usadas por corpos que circulam pelos espaos, ressignificando estas roupas.

    Salles (2004) diz que o criador est em estado de alerta, com a sensibilidade suspensa, espera e procura de sensaes e, na medida em que ativam sensivelmente o artista, so criadoras. O processo criativo essa rede de relaes entre mundos e a subjetividade do criador. Um processo contnuo.

    Desenvolver uma coleo em moda antes de tudo essa manifestao do desejo de se expressar atravs de roupas que se inicia ao fazer inferncias e leituras de mundo e descobrir novas possibilidades. Uma continuidade que no fruto de uma nica boa ideia, mas de um processo em construo, o qual, segundo Salles (2004), est localizado em um espao e em um tempo que inevitavelmente afetam o estilista.

    Ao pesquisar o processo de criao, a partir dos registros que o criador guarda em seus acervos, particular e compartilhado no Instagram2, movemo-nos entre hibridizaes e fluxos de pistas que esto em movimentos constantes e, portanto,

    2 Segundo Manovich (2005), as mdias sociais ocupam-se de objetos e paradigmas culturais capacitados por todas as

    formas de computao, inclusive as tecnologias de comunicao em rede. O Instagram um tipo de mdia social.

    um aplicativo mvel gratuito que permite aos usurios tirar uma foto, aplicar um filtro e depois compartilh-la em

    uma variedade de redes sociais, incluindo o prprio Instagram. Projetado inicialmente para o uso em dispositivos

    mveis Apple iOS, que opera em telefones mveis Iphone, posteriormente tambm foi desenvolvido para os

    aparelhos com a tecnologia Android. A empresa for criada em 2010, por Kevin Systrom e o brasileiro Mike Krieger.

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    exigem do pesquisador outro tipo de mapeamento, que se pauta mais na construo das ideias e seus entrelaamentos do que apenas nas colees acabadas.

    Restam entreaberto impasses relativos adequao entre a natureza do problema investigado e as exigncias do mtodo. Neste caso, o objeto de pesquisa exige um olhar mais fluido, em que o prprio mtodo nasce conectado a essas materialidades, demonstrando que a observao e anlise tambm se constroem atravs desse modelo de rede-rizoma.

    Um rizoma no comea nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. (...) Entre as coisas no designa uma correlao localizvel que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direo perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 37)

    Portanto, o rizoma possui uma estrutura indefinida que vai se modificando de acordo com os novos agenciamentos3. Para melhor entender essa configurao os autores elaboram princpios que reforam as caractersticas do rizoma. A saber, qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve s-lo, o que se tem so conexes por todos os lados e que mudam de acordo com esses novos agenciamentos. muito diferente da rvore ou da raiz que fixam um ponto, uma ordem e so, antes de tudo, princpios de decalque, reprodutveis ao infinito.

    Ao contrrio, um mtodo rizoma obrigado a analisar a linguagem efetuando um descentramento sobre dimenses e outros registros, ou seja, no existem num rizoma pontos fixos como se encontra numa estrutura concreta e linear. O rizoma , no fundo, um mapa. Um mapa aberto que contribui para a conexo dos campos, e conectvel em todas as suas dimenses, desmontvel, reversvel, suscetvel de receber modificaes constantemente. Um dos princpios mais importantes do rizoma a cartografia, uma questo de mtodo que privilegia as mltiplas entradas e sadas.

    Este pensamento afina-se com o de Preciosa (2010) que prope: Intuir a urgncia de se fabular um procedimento de investigao da existncia, que acolha nossos estranhamentos, nossos esgaramentos identitrios, nossos balbucios. Brotar pelo meio opor-se a um destino que progride em direo a algo, acariciar riscos, acumular xitos e retumbantes fracassos, se inflitrar por algumas vizinhanas, fazendo conexes, povoar o cotidiano de incertezas, recolher-se numa tenda de silncios, num gesto de delicadeza diante do que est a se formar e maturar diante de si. (PRECIOSA, 2010, p. 37)

    3Para entender o conceito de agenciamento, Deleuze e Guattari (1995b, p.29) traam dois eixos acerca de

    sua natureza. Um comporta o contedo e a expresso; portanto, por um lado ele agenciamento maqunico de corpos, de aes e de paixes, misturas de corpos reagindo uns sobre os outros; por outro

    lado, agenciamento coletivo de enunciao, de atos e de enunciados, transformaes incorpreas sendo

    atribudas aos corpos. No outro eixo, o agenciamento tem lados territoriais ou reterritorializados que o estabilizam, e outros desterritorializados que o arrebatam. Desse modo, em seu aspecto material, um

    agenciamento no apenas produo de bens, mas um estado preciso de mistura de corpos em uma sociedade. (DELEUZE; GUATTARRI, 1995b, p.31)

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    Uma das entradas dessa pesquisa j localiza a criao em processo como um percurso no linear, em rede e, portanto, exige outro olhar do pesquisador ao lidar com afetos, sensibilidades, olhares, referncias e angstias de um criador. Ao mesmo tempo, ao entrarmos em contato com o universo particular e compartilhado do designer, suas linhas condutoras so complexas e dinmicas.

    Como observar um caminho criativo tomado pela multiplicidade de entradas e sadas de extremos? Precisamos de novos mapas juntando fragmentos, raspas e restos, sem uma preocupao pela totalidade e sim pela multiplicidade. A prtica da cartografia diz respeito a captar esses agenciamentos que o corpo faz inseparveis de sua relao com o mundo.

    Para isso, o cartgrafo absorve matrias de qualquer procedncia. Tudo o que der lngua para os movimentos do desejo, tudo o que servir para cunhar matria de expresso e criar sentido. Para ele bem vindo. Todas as entradas so boas desde que as sadas sejam mltiplas. Por isso, o cartgrafo serve-se de fontes as mais variadas, incluindo fontes no s escritas e nem s tericas. (ROLNIK, 2006, p. 65)

    Os agenciamentos que envolvem a relao do criador com seu tempo e seu espao estabelecem o seu dilogo com a prpria moda contempornea. Atravs das pistas guardadas, encontramos a criao em processo e suas experimentaes em forma de contedo e expresso; , pois, uma construo das multiplicidades que formam tanto as suas colees quanto o prprio criador e seu discurso atravs de uma imagem de moda construda.

    Para entender esses deslocamentos, usamos a fala do terico cultural Stuart Hall (2006) que discute que as identidades do sujeito na contemporaneidade so celebraes mveis, formadas e transformadas continuamente em relao s formas como somos interpelados nos sistemas culturais, ou seja, as identidades no so unificadas ao redor de um eu coerente; pelo contrrio, so fragmentadas e esto sendo continuamente deslocadas.

    Desses deslocamentos e entrelaamentos surgem as roupas que cobrem nossos corpos. O estilista, no seu processo de criao, recolhe esses fragmentos por entre as redes culturais e a memria e suas extenses artificiais, lugares nos quais atualiza suas impresses e os transforma em narrativas vestveis inacabadas: no no sentido das mincias no acabamento dos detalhes, das costuras ou do avesso; so inacabadas no sentido de um processo contnuo que lida com esses pensamentos fragmentrios interconectados no presente.

    A atitude do pesquisador-cartgrafo reconhecer que, se a pesquisa se prope ao acompanhamento de processos em curso, as mudanas de rumo no so necessariamente indcio de inconsistncia do problema. E ainda, assumir a cartografia como direo metodolgica exige que o cartgrafo esteja mergulhado nas intensidades de seu tempo e que, atento s linguagens que encontra, devore as que lhe parecerem elementos possveis para a composio das cartografias que se fazem necessrias. (ROLNIK, 2006, p. 23)

    O criador, alm de difusor um sujeito-receptor, que olha pelo prazer de olhar, vagando por ruas, textos, imagens, sons, links, cheiros, procurando algo que desperte seus sentidos e sua percepo. Ele busca uma perturbao, um desejo que gere o movimento criador. Alm disso, um estilista faz muito mais do que construir roupas; ele

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    constri imagens de moda, que pretendem representar algo, gerar desejo no outro e que se encontram l fora no espao e tempo.

    Rolnik (2006) discute que o desejo consiste no movimento de afetos e de simulaes desses afetos em certas mscaras, movimento gerado no encontro dos corpos. Do mesmo modo, ainda segundo a autora, o desejo consiste tambm no movimento contnuo de desencantamento, ao surgirem novos afetos a partir de novos encontros. Portanto, essas intensidades so afetadas em certas matrias.

    Da necessidade de dizer algo surgiro roupas, narrativas. Um impulso que gera uma ao entre processos emotivos e racionais. Uma escrita de Si que luta com tantos elementos para que eles dem vozes aos seus desejos. Antes de qualquer coisa, o estilista um observador, explorador, pesquisador.

    Foucault (1992) discute a escrita de Si, como um movimento que visa captar o j dito; reunir aquilo que se pde ouvir ou ler dessa experincia sensvel de quem escreve com o seu tempo. Consideramos o registro do processo de criao, como uma escrita de Si, mesmo que esta no caso do criador de moda, raramente se d pela palavra, mas mais intensamente pela imagem. Assim, nos apropriamos da idia de Foucault para perceber, pelo jogo das imagens escolhidas e dos registros assimilados, a filiao dos pensamentos que ficaram gravados e que formam para si prprio, identidades.

    Desse modo, o espao dos registros, sejam eles de qualquer natureza, reserva o tempo da experimentao e amadurecimento das ideias, lugar do autor e da obra, pois ambos vo se constituindo simultaneamente. Foucault (1992) usa dois tipos de textos para discutir essa escrita de Si: o hypomnemata e a correspondncia, memrias materiais das coisas lidas, ouvidas, acumuladas ou pensadas que possibilitam a releitura e a mediao.

    Deslocando o lugar do texto verbal para uma tessitura visual, podemos entender algumas relaes importantes dessa constituio de Si, a partir do entendimento desses dois conceitos usados pelo autor.

    Os hypomnemata no deveriam ser encarados como um simples auxiliar de memria, que poderiam consultar-se de vez em quando, se a ocasio se oferecesse. No so destinados a substituir-se recordao porventura desvanecida. Antes constituem um material e um enquadramento para exerccios a efetuar frequentemente: ler, reler, meditar, entretar-se a ss ou com outros. (FOUCAULT, 1992, p. 136)

    Esse tipo de caderno de notas permite a constituio de Si a partir do recolhimento do discurso dos outros, fragmentos que o criador assimila de acordo com a sua sensibilidade e emoo. No uma narrativa de si mesmo, como os dirios ntimos, como discute o autor, mas uma apropriao, unificao e subjetivao de um j dito fragmentrio e escolhido (FOUCAULT, 1992, p. 160)

    J a correspondncia, texto por definio destinado a outrem, d tambm lugar a um exerccio pessoal, pois, ao escrever, estamos relendo o tempo todo e elaborando o que dito. Alm disso, o autor traz a tona uma discusso acerca da correspondncia, que bastante interessante como uma metfora para entendermos uma escrita de Si compartilhada no Instagram.

    A carta enviada atua, em virtude do prprio gesto da escrita, sobre aquele que a envia, assim como atua, pela leitura e a releitura, sobre aquele que a recebe. (...) A carta faz o escritor

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    presente quele a quem a dirige. E presente no apenas pelas informaes que lhe d acerca da sua vida, das suas atividades, dos seus sucessos e fracassos, das suas venturas ou infortnios; presente de uma espcie de presena imediata e quase fsica. (FOUCAULT, 1992, p. 145-149)

    Assim, ao ver uma imagem e decidir captar e compartilhar no aplicativo, esta

    imagem atua tanto no criador, pelo recorte e edio, quanto no receptor-seguidor do seu perfil, pelo ato da visualizao da imagem. Assim, o estilista e seu universo particular mostram-se e se fazem presente junto ao outro. Porm, mesmo na prtica dos dirios ntimos aquele que escreve no revela todas as mincias dos acontecimentos. A escrita de Si uma seleo de fragmentos que formam uma auto-imagem que queremos que o outro tenha de ns, uma autofico.

    Klinger (2008) parte da hiptese de que a autofico inscreve-se no corao do paradoxo do final do sculo XX: entre um desejo narcisista de falar de si e o reconhecimento da impossibilidade de exprimir uma verdade na escrita. No existe original e cpia, apenas construo simultnea no texto e na vida, na qual o sujeito que retorna nessa nova prtica de escritura em primeira pessoa no mais aquele que sustenta a autobiografia: a linearidade da trajetria da vida estoura em benefcio de uma rede de possveis narrativas ficcionais. Assim, a obra de autofico tambm comparvel arte da performance na medida em que ambos se apresentam como textos inacabados, improvisados, work in progress, como se o leitor assistisse ao vivo ao processo da criao.

    Consideramos, ento, os documentos de processos como um tipo de escrita de si e, portanto uma autofico do estilista, lugar de construo de suas redes, de fluxos de pensamentos, de reformulao de suas prticas. Os acervos particulares so registros guardados em seu ateli, fragmentos de outros discursos, que conservam o tempo da experimentao, da pausa e da contemplao. J os acervos compartilhados so os registros imagticos postados no Instagram do estilista, que guardam um tempo mais instantneo, fragmentado, em que quase diariamente novas imagens vo compondo essa rede, que afeta quem compartilha e quem faz a leitura visual do compartilhamento.

    Logo, as colees carregam fragmentos desse work in progress e os documentos referentes ao seu processo criativo formam uma cartografia rizomtica do criador, composta pelos seus registros, imagens, rascunhos, rejeies, linhas de fuga e suas conexes no lineares que constituem ilhas de referncias em processo que aliam suas foras na inveno de novos arranjos.

    No Instagram o mais significativo perceber o exerccio simulatrio, combinatrio, de provocar uma resposta da audincia contnua, escrevendo e lendo as imagens em deslocamento. Esta forma se d atravs das escolhas de estilo, de memrias, do conhecimento interpessoal, do ordenamento e do mundo sendo mostrado em tempo real. As imagens continuam a se mover, a serem geradas. (SILVA JUNIOR, 2012)

    Portanto, nesse aplicativo, a fotografia o elemento que marca essa outra construo da memria de si; outro tipo de acervo, nesse caso, pessoal e, simultaneamente, compartilhado, o que possibilita o exerccio de guardar o que afeta

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    o seu olhar e, ao mesmo tempo construir/editar uma imagem que o usurio quer que o outro tenha dele.

    Nessa tenso entre o eu e o outro, o particular e o compartilhado, o estilista registra seu olhar, seus projetos, interage com o outro que de certa maneira pode interferir tambm em sua trajetria, j que com as tecnologias mveis e os territrios informacionais, a potncia da emisso e da conexo aumenta ainda mais as prticas de colaborao e recombinao, aliando de forma mais forte comunicao, comunidade, sociabilidade e mobilidade. (LEMOS, 2009). O estilista constri a Si como um criador em linhas fluidas, velozes, assim como a prpria cibercultura.

    Para Le Breton (2003), a cibercultura outro principio da realidade que autoriza a identificao com milhares de formas possveis, materializa a onipotncia do pensamento. A vida cotidiana inteira pode se insinuar na web. Desse modo, quando o usurio do Instagram aperta o boto compartilhar, a imagem selecionada e postada no est desligada da dimenso do real, porm ela sempre filtrada e, portanto, uma mediao entre as coisas da sua vida, ele prprio e o outro.

    O Instagram, nesse caso, permite aos seus usurios uma edio de si, e que no neutra, pois, ao seguir e ser seguido por outros, ele constri, simultaneamente e continuamente, uma imagem que gostaria que o outro tivesse dele. So fragmentos sampleados que articulados produzem sentidos.

    Nesse conjunto de imagens percebemos que o todo traduz uma esttica muito prpria do estilista que compartilha seu universo particular. So pistas do seu filtro perceptivo cartografadas em conexo com as imagens impressas. Para Salles (2006), os elementos selecionados pelo criador j existem; a inovao est no modo como so colocados juntos, ou seja, na maneira como so transformados. As construes de novas realidades, pelas quais o processo criador responsvel, do-se por meio de um percurso de transformaes, o qual envolve selees e combinaes.

    Difcil dizer qual imagem se relaciona com qual coleo, ou com qual detalhe de algum dos seus vestidos. O importante que a recorrncia das imagens de assuntos semelhantes nos d pistas para refletir para onde olha este criador.

    Ao observar o mundo ao seu redor, o estilista muitas vezes tomado por coisas que afetam a sua sensibilidade e, para que esses encontros no sejam esquecidos, ele os registra de alguma maneira. Seja em um esboo num pedao de papel, em uma fotografia ou em uma postagem nas redes sociais. De uma forma ou de outra, a escrita de Si guarda o percurso rizomtico de criao e seus j ditos como tambm as marcas pessoais do criador e de suas colees em construo.

    3. PONTO EM SEGUIDA

    Desenvolver uma coleo de moda antes de tudo uma manifestao do

    desejo de se expressar atravs de roupas, que se inicia ao olhar mundos, repertoriar referncias e descobrir novos territrios. Em seu processo de criao, alguns designers de moda estabelecem dilogos entre o ateli e o Instagram, entre imagens particulares e compartilhadas.

    No processo de criao na contemporaneidade, a construo do seu pensamento no ato de criar parte de um percurso visual pautado por uma edio que

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    rizomtica. Essa edio no busca linearidade, mas sim explicita a simultaneidade de vrios fragmentos, que atravs do seu olhar de editor-criador se desdobram na criao de roupas. Em busca de redes de conexes entre as imagens, o modo como Deleuze e Guattari apresentam os conceitos de rizoma e cartografia referencia o mapa aberto das referncias imagticas editadas pelo designer e permitem compreender melhor os sentidos que se formas a partir dessas conexes.

    Assim, compreendemos que o designer articula suas impresses, seus registros e seus pensamentos produzindo colees que traduzem parte do seu universo particular. Portanto, o interesse no relatar ou reproduzir o processo de criao do estilista, e sim realizar atravessamentos tanto entre os registros do criador, seu mundo e os conceitos. Uma cartografia dessas construes de Si.

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