carta ao vice reitor

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Carta pública ao Vice Reitor da Universidade de Coimbra.

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Page 1: Carta Ao Vice Reitor

Ao senhor Vice-Reitor da Universidade de Coimbra, Luís Filipe Menezes, Não me pronunciaria sobre este assunto, muito menos pensava em endereçar qualquer argumentação a este respeito, apesar de sim, estar do lado dos estudantes neste delicado tema. Porém, após ler estarrecido vossas declarações as mídias sociais de Coimbra, eu, enquanto estudante da Universidade de Coimbra e cidadão de um suposto “terceiro mundo” citado pelo senhor, haveria sim de me posicionar sobre o assunto. A princípio gostaria de questionar os próprios serviços prestados pela universidade que o senhor gere, pois é justamente a sua função específica enquanto Vice Reitor de Recursos Humanos, Novos Públicos, Antigos Estudantes e Turismo. De acordo com o site oficial da nossa instituição, existem cerca de 10 serviços prestados pela universidade somente voltados para o acolhimento dos turistas1, muitos deste, se não todos, pagos aos turistas. Sem contar a utilização de espaços da Faculdade de Direito para utilização turística, em detrimento das atividades acadêmicas, que por sinal, não possuem o espaço adequado sequer para a quantidade de estudantes desta faculdade, até casa de banho paga para turistas (e estudantes) existe neste espaço UNIVERSITÁRIO. Ora, a primeira contradição que surge é, por quais razões a universidade enquanto uma instituição voltada para a pesquisa, extensão e ensino, ou seja, a produção do conhecimento, precisa de planos de turismo para capitalizar com tais atividades? Se isto revela uma situação de crise institucional, não seria muito provável que esta situação recaia também sobre a realidade dos nossos estudantes, que inclusive, tem de pagar mais de mil euros anualmente para se manterem enquanto estudantes desta instituição PÚBLICA de ensino? Fica claro então, que o senhor se posiciona desta maneira com o intuito de impedir a competição entre estes diferentes “agentes turísticos”, como se @s estudantes competissem ILEGALMENTE com os serviços prestados OFICIALMENTE pela UC. No entanto, existe uma diferença deveras importante entre as atividades dos estudantes de um lado e da universidade de outro. Ao contrário da nossa instituição, @s estudantes não cobram absolutamente nada por estes supostos “serviços turísticos” prestados, ou melhor, pagam por ele, pois para se fazerem 100 postais, custa-se em média 7 euros. Gozam do bom privilégio de serem jovens com uma força de vontade invejável e a grande simpatia e representatividade de verdadeir@s estudantes da Universidade de Coimbra, e assim, contagiam a maioria destes turistas que pedem fotos, se deliciam as ouvir as histórias (em diferentes idiomas), seguem suas dicas, afinal são @s estudantes moradores de Coimbra, e quando podem, contribuem para que esta as pessoas desta ponta, a mais sensível desta crise capitalista global, possam sobreviver em meio às tantas cobranças, débitos e infortúnios. Segundo questionamento que faço, é a suposta “solução” que o senhor oferece @s estudantes que estão nesta delicada situação. O senhor aconselha que estes estudantes possam trabalhar oferecendo os serviços de turismos da própria universidade, recebendo seus ordenados em papéis sem nenhum valor oficial que dão direito à alimentação nas cantinas da universidade, o que me parece ser uma prática ilegal, apesar de não ser do direito e nunca ter lido algo sobre direito trabalhista português, não me parece possível alguém receber seus ordenados em pedacinhos de papeis sem valor monetário a priori. No país de “terceiro mundo” de onde eu venho, o Brasil, não se pode, em hipótese alguma, pessoas terem suas forças de trabalho exploradas em troca de comida, moraria, etc. estas condições de trabalho são consideradas análogas à escravidão, esta sim, atividade de “primeiro mundo”, muito incentivada durante vários séculos pelo país que o senhor diz defender com unhas e dentes. Só para finalizar esta abordagem sobre sua infeliz declaração, gostaria de perguntar se o senhor já visitou alguma destas cidades que possuem tais práticas de terceiro mundo, são elas: Paris, Milão, Roma, Barcelona, Londres, Lisboa dentre outras mais, são as cidades por onde eu estive, que esta prática de “terceiro mundo” é mais explorada. Duvido o senhor encontrar trais práticas ao caminhar por Buenos Aires, Santiago,

                                                                                                               1 UC by Night, Visitas Guiadas UC, Reis no Paço Real, Coimbra ao entardecer, Coimbra 360º, Torre da Universidade, Audioguias, Herança Judaica da UC, Fotografe a UC, Encontro de ilustradores. Atividades, em sua maioria pagas, retiradas da página oficial da Universidade de Coimbra.

Page 2: Carta Ao Vice Reitor

Montevideo, La Paz, Rio de Janeiro, nestas cidades, esta “prática de terceiro mundo” é quase nula, que engraçado, não?! Por fim, gostaria de indagar sobre o que mais me indignou em seu discurso. O total desconhecimento do saber geográfico, tão caro as próprias atividades que o senhor gere voltadas para o Turismo, por exemplo. Esta não pode ser a realidade de um professor que ocupa uma posição tão importante dentro de uma das maiores universidades de Portugal, sem dúvidas, a mais emblemática. Sua ignorância, na verdade, beira o absurdo, e não condiz de maneira alguma com estas características enaltecedoras da importância da Universidade de Coimbra para o mundo. Quando eu digo para o mundo, não é para os turistas levarem suas fotos de recordação e sim na produção do conhecimento, real sentido de uma universidade. A suposta “teoria dos mundos” (teoria do desenvolvimento) criada por cientistas preocupados com a manutenção do status quo do sistema mundo moderno-colonial no pós-segunda guerra, expressada mais abertamente por W. W. Rostov (1961) em uma razão dualista bastante contraditória, resolveu-se dividir o mundo em três categorias de países, de primeiro, segundo e terceiro mundo. Basicamente, os países de “primeiro mundo” eram os alinhados as políticas externas do Estado Unidos, ou seja, Europa Ocidental e suas colônias, basicamente, ou seja, a Angola, até 1975, ano em que finalmente conseguiu livrar-se das tiranias coloniais, fazia parte deste “primeiro mundo” pois era um território subordinado à Portugal, um país de “primeiro mundo”. De “segundo mundo” seriam os países da cortina de ferro, a URSS e seus aliados, como Cuba, China e alguns outros países e regiões, como a Alemanha Oriental. Por sua vez, o “terceiro mundo” seriam os países não alinhados ou neutros nesta bipolarização mundial, sendo assim, países como Suécia e a Finlândia, também faziam parte deste “terceiro mundo”. Para além desta explicação simplória e enfadonha (mas pelo visto necessária pois o senhor nem ao menos sabia de onde vinham estes termos), cabe agora ressaltar o lado econômico destas subdivisões do globo em “mundos”, que viria a servir enquanto conceito capaz de manter as contradições latentes entre territórios “ricos e pobres” sem que houvessem grandes mudanças de paradigmas. Termos como “países desenvolvidos”, “países emergentes” e “países subdesenvolvidos” vão surgir durante estas décadas, como uma renovação do que viria ser a geopolítica hegemônica contemporânea. Recomendo ao senhor apenas trê leituras básicas, e que a partir destas, o senhor possa abrir seus horizontes para um maior conhecimento em geopolítica. Primeiro o brilhante texto de Theotônio dos Santos chamando “A Teoria da Dependência: Um balanço histórico e teórico”, o livro “Por uma Geografia do Poder” de Claude Raffestin e por fim, “European Universalism: The Rhetoric of Power” escrito por Immanuel Wallerstein. Isso para não citar os autores da nossa querida casa, como a brilhante Maria Paula Menezes e seus textos pra lá de enaltecedores de novas possibilidades e abordagens na construção do conhecimento, onde não há espaço para discursos vazios e preconceituosos como o do senhor. E para uma atualização sobre seus conceitos de geopolítica, recomendo também Boaventura de Sousa Santos, nosso ilustre professor, que ao contrário do senhor, não utiliza termos recheados de colonialidade, busca interpretar o sistema-mundo moderno colonial à partir de dois referenciais, o “Norte Global” e o “Sul Global”, que me parecem termos mais adequados a nos referirmos aos territórios nacionais e suas relações geopolíticas atualmente, talvez assim, o senhor saia desta escuridão que é a mente de um homem colonial e subordinado às lógicas mercadológicas e seja de fato, um professor, digno da posição de vice reitor da mais antiga universidade de Portugal, a Universidade de Coimbra. Desculpa à longa carta, mas eu, enquanto professor de geografia do ensino básico no Brasil, não posso nunca abdicar do meu conhecimento pedagógico, para que assim, esta resposta não seja apenas uma maneira de dizer ao senhor que estava equivocado, e sim, abrir-lhe as portas para que estes equívocos não sejam, nunca mais, repetidos. Obrigado. Edgar de Almeida Rios Ramos, Estudante do Mestrado em Geografia Humana – Ordenamento do Território e Desenvolvimento da Universidade de Coimbra.