carta ao leitor - repositório do conhecimento do ipea:...

64

Upload: others

Post on 21-Jul-2020

3 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento
Page 2: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

4 Desafios • março de 2008

Tema de destaque na ordem do dia do país, a política fiscal ganha duasreportagens nesta edição. A primeira traz novos estudos sobre a carga tributária,que se contrapõem à visão dominante de que o governo tributa muito, gasta muitoe gasta mal, e com isso prejudica o investimento privado e atrapalha o crescimento.Vários especialistas apresentam sua opinião e oferecem ao leitor uma ricadiscussão.

A outra reportagem no tema fiscal aborda o viés do federalismo. O advento deum ciclo mais vigoroso de crescimento econômico reacendeu o debate em tornoda divisão do bolo da arrecadação entre os entes da federação. Além de discutirsobre o tamanho da fatia que cabe à União, aos estados e aos municípios, o país se debruça sobre a racionalidade e a qualidade da distribuição de uma receita que vem crescendo a cada ano.

A entrevista deste mês é com o ex-ministro do Planejamento que mais tempoocupou o cargo no país, o economista João Paulo dos Reis Velloso, fundador doIpea e atual membro do seu novo Conselho de Orientação, que mostra o quantopermanece atuante nas discussões sobre os rumos da economia brasileira eapresenta suas opiniões sobre questões econômicas e sociais.

Outra reportagem é sobre a questão do saneamento, também de grandeatualidade nos debates nacionais. O Brasil está às vésperas de alcançar porantecipação a meta de acesso à água em áreas urbanas estabelecida para 2015 pela Organização das Nações Unidas (ONU), mas ainda enfrenta enormesdesafios, como um grande número de residências sem esgoto tratado, além dasdesigualdades regionais e até mesmo raciais.

E a questão demográfica, cujas principais novidades são a elevação da idade dapopulação e o novo formato das famílias brasileiras, é abordada de forma concretaao revelar detalhes de uma pesquisa que deverá ser concluída até o final deste anocom o primeiro retrato nacional das instituições de longa permanência paraidosos. É assim que o país se prepara para planejar ações adequadas à novarealidade. A pesquisa é uma parceria do Ipea com a Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH) da Presidência da República e o Conselho Nacionaldos Direitos do Idoso (CNDI).

A reportagem dedicada ao tema Melhores Práticas traz mais um exemplo bem-sucedido de iniciativa destinada a gerar renda e promover a inclusãoeconômico-social, o Crediamigo, programa de microcrédito do Banco doNordeste do Brasil (BNB), que faz dez anos e está perto de transformar 1 milhãode brasileiros em microempreendedores.

Além disso, esta edição traz as costumeiras seções de informações e excelentespáginas opinativas com artigos de autoridades nos respectivos assuntos.

Boa leitura.

Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

Carta ao leitor

Cartas ou mensagens eletrônicas devem ser enviadas para: desaf [email protected] de redação: SBS Quadra 01, Edifício BNDES, sala 1515 - CEP 70076-900 - Brasília, DFVisite nosso endereço na internet: www.desaf ios.ipea.gov.br

Governo FederalMinistro Extraordinário de Assuntos EstratégicosRoberto Mangabeira UngerNúcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República

PRESIDENTE Marcio Pochmann

URL: http://www.ipea.gov.brOuvidoria: http://www.ipea.gov.br/ouvidoria

www.desafios.ipea.gov.br

DIRETOR-GERAL Jorge Abrahão de CastroASSESSOR-CHEFE DE COMUNICAÇÃO Estanislau MariaCOORDENADORA ADMINISTRATIVA Dóris Magda Tavares GuerraCONSELHO EDITORIAL André Gambier Campos, DórisMagda Tavares Guerra, Estanislau Maria, Jorge Abrahãode Castro, Jorge Luiz de Souza, José Aparecido Carlos Ribeiro, Marina Nery e Roberto Müller Filho

RedaçãoEDITOR-CHEFE Roberto Müller FilhoEDITOR-EXECUTIVO Jorge Luiz de SouzaBRASÍLIA Edla Lula e Ricardo WegrzynovskiRIO DE JANEIRO Yolanda SteinSÃO PAULO Claudia Izique e Manoel SchlindweinEDITORA DE ARTE Débora de Bem ASSISTENTE DE ARTE Cleber EstevamJORNALISTA RESPONSÁVEL Roberto Müller Filho

ColaboradoresTEXTO Adriana ThomasiFOTOGRAFIA Guito MoretoILUSTRAÇÃO Erika OnoderaREVISÃO Mauro de BarrosFOTO DA CAPA Paulo Whitaker/Reuters

Cartas para a redaçãoSBS Quadra 01, Edifício BNDES, sala 1515 CEP 70076-900 - Brasília, [email protected]

[email protected](061) 3315-5251

ImpressãoCromos – Editora e Indústria Gráfica Ltda.

AS OPINIÕES EMITIDAS NESTA PUBLICAÇÃO SÃO DE EXCLUSIVA E DE INTEIRA RESPONSABILIDADE DOS AUTORES, NÃO EXPRIMINDO,NECESSARIAMENTE, O PONTO DE VISTA DO INSTITUTO DE PESQUISAECONÔMICA APLICADA (IPEA).

É NECESSÁRIA A AUTORIZAÇÃO DOS EDITORES PARA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DO CONTEÚDO DA REVISTA.

DESAFIOS (ISSN 1806-9363) É UMA PUBLICAÇÃO MENSAL DO IPEA,PRODUZIDA PELA SEGMENTO RM EDITORES LTDA.

SEGMENTO RM EDITORES LTDA.RUA CUNHA GAGO, 412 - 4º ANDAR - CJ. 43 - PINHEIROS - SÃO PAULO - SP

CEP 05421-0011 - TEL. (11) 3094-8400

desafiosdo desenvolvimento

1 B - 04/16/2008 16:25:26

Page 3: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

Pedro Demo

Alfabetizar em três anos

Ronaldo Coutinho Garcia

Despesas correntes da União

Ricardo L. C. Amorim e

Alexandre de F. Barbosa

Os falsos cosmopolitas

André Gambier

Previdência social: idéias fora de lugar

desafiosdo desenvolvimento

8

16

24

30

38

46

Entrevista João Paulo dos Reis Velloso

“O Brasil precisa deixar de ser o país das oportunidades perdidas”

Política fiscal Novo rumo no conflito entre tributação e crescimento

Estudos sobre carga tributária contrapõem visão de que o governo tributa muito

Federalismo Um novo pacto em meio à reforma tributária

Ciclo de crescimento econômico reacende debate sobre divisão da arrecadação

Saneamento Tão perto e tão longe das soluções

País pode alcançar em dois anos a meta de 2015, mas persistem enormes desafios

Demografia Pensando no futuro dos idosos

Pesquisa coloca o país em condição de acompanhar elevação da idade da população

Desigualdade Quando chegaremos lá?

Estudo aponta quando o Brasil atingirá padrão de distribuição de renda exemplar

Melhores práticas Uma legião de microempreendedores no Nordeste

Crediamigo usa aval dos próprios tomadores em operações de pequeno porte

15

23

37

Sumário

Artigos

Giro

Circuito

Estante

Indicadores

Cartas

6

60

62

64

66

Seções

16

Ilustr

ação

:Erik

a On

oder

a24

Foto

:Sto

ckxp

ert

46

Foto

:Cor

bis/

Latin

stock

Desaf ios • março de 2008 5

30

Foto

:Fot

o:Pa

ulo

Whi

take

r/Reu

ters

59

53

2 A - 04/16/2008 16:25:26

Page 4: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

O Conselho Nacional de De-senvolvimento Científico e Tec-nológico (CNPq) e a SecretariaEspecial de Aqüicultura e Pescada Presidência da República(Seap) vão destinar R$ 5 mi-lhões a projetos que contribuamcom alternativas econômicas,sociais e ambientais para ageração de renda em comuni-dades tradicionais, povos indí-genas, pescadores artesanais,

aqüicultores familiares e assen-tados dos programas de refor-ma agrária. O objetivo é me-lhorar a inserção no mercadodos produtos de comunidadesrurais ou da periferia dos cen-tros urbanos e gerar renda uti-lizando tecnologias de base ecológica apropriadas para aagricultura e a aqüicultura fa-miliares. Do total dos recursos,30% irão para as regiões Norte,

Nordeste e Centro-Oeste. Osprojetos devem contemplar pelomenos uma de dez linhas temá-ticas do edital, entre as quaisestão desenvolvimento de pro-dutos e subprodutos com finsterapêuticos, cosméticos, orna-mentais e manejo, a produçãoecológica de animais de grande,médio e pequeno portes e téc-nicas não-convencionais paracontrole de pragas e doenças.

Biodiesel

Disseminaçãoentre pequenaspropriedades

GIRO

Ecologia

Mais renda para as comunidades tradicionais

A ministra Dilma Rousseff,da Casa Civil, anunciou a dis-posição do governo de patro-cinar um projeto de dissemi-nação da produção de biodieselem pequenas propriedades ru-rais no Nordeste. O projeto co-meça pelo Ceará, onde serãoinstaladas 20 usinas esmagado-ras de grãos, orçadas em R$ 12milhões. Se os resultados forempositivos, novas unidades serãoinstaladas nos demais estadosda região. Cada usina será abas-tecida com a produção de 2 mila 3 mil famílias e o óleo serácomprado pela Petrobras.

Ambiente

O preço do desenvolvimento

6 Desafios • março de 2008

E-mails

Aprovada multapara spam

A Comissão de Constituiçãoe Justiça do Senado aprovouprojeto de lei que proíbe o en-vio de spam não solicitados. Otexto, que abrange qualquer ti-po de mensagem, define multade R$ 1 mil para aqueles queenviarem esses e-mails sem aautorização do destinatário. Oprojeto ainda precisa ser apro-vado pela Comissão de Educa-ção antes de seguir para análiseda Câmara dos Deputados

Foto: Sxc:hu

Até 2030, o Brasil, China, Índia e Rússia – grupode países conhecido pela sigla Bric – vão emitiranualmente mais dióxido de carbono (CO2) doque todos os países ricos juntos, segundo projeçãoda Organização para a Cooperação e Desen-volvimento Econômico (OCDE). A contribuiçãoda China, de acordo com a estimativa, seria de 50%no crescimento das emissões desse bloco. A OCDEprevê um aumento de 72% no consumo de energia nosBrics nos próximos 25 anos, ante uma alta de 29% nospaíses ricos. A OCDE alerta que, se forem impostos limites àsemissões dos países emergentes, o planeta poderá chegar a 2050com as mesmas taxas de CO2 registradas em 2000. O estudo da OCDE reforça a posição dos países ricos – que têm que cumprir metas dereduções de emissões no âmbito do Protocolo de Kyoto – de estender ocompromisso também para as nações em desenvolvimento.

Foto

:Sto

ckxp

ert

2 B - 04/16/2008 16:25:26

Page 5: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

Um grupo de físicos paulistasarquitetou um projeto didáticoambicioso com o objetivo de levaràs 24.131 escolas públicas e pri-vadas de ensino médio do Brasilos principais conceitos da es-trutura elementar da matéria. Ogrupo quer distribuir 50 milcartazes, dois para cada insti-tuição de ensino, com informa-ções básicas sobre os elementosconstituintes da matéria e as in-terações que regem o mundosubatômico. Junto com os car-

tazes, serão enviados 25mil folhetos explicati-vos para uso dos profes-sores.A intenção é aguçara curiosidade dos jovens edespertar vocações para o estudodas ciências físicas. O projeto,batizado com o nome de EstruturaElementar da Matéria: Um Cartazem Cada Escola é uma iniciativado Centro Regional de Análise deSão Paulo (Sprace), em parceriacom docentes e pesquisadores daUniversidade Estadual Paulista

(Unesp) e da Universidade de SãoPaulo (USP), com apoio finan-ceiro da Universidade Federal doABC (UFABC) e do ConselhoNacional de DesenvolvimentoCientífico e Tecnológico (CNPq).Os Estados Unidos, França eCanadá também contam cominiciativas semelhantes.

Vocações

Em busca de jovens cientistas

Desaf ios • março de 2008 7

Uma equipe de pesquisadoresdo Instituto Nacional de Pesqui-sas da Amazônia (Inpa) e da As-sociação Amigos do Peixe-boi de-volveu às águas do rio Cuieirasdois peixes-boi machos subadul-tos com cerca de 180 quilos cada.Os dois animais, que ganharam osnomes Xibó e Puru, estavam noInpa desde 1999 e 1995, respec-tivamente, onde chegaram aindafilhotes.Passaram por uma bateriade exames, que envolveu o moni-toramento da freqüência respira-tória e exames clínicos para saberse estavam em condições de serem

soltos. Também passaram poruma dieta reforçada para ganharpeso. A medida integra o pro-grama de conservação e repovoa-ção dos peixes-boi (Trichechusinunguis) nos rios da Amazônia.O Inpa realiza trabalhos com opeixe-boi há 33 anos e hoje domi-na a reprodução em cativeiro doanimal, que está ameaçado de ex-tinção. As pesquisas realizadaspossibilitaram o nascimento decinco filhotes em cativeiro até omomento. Atualmente, o labora-tório tem 33 animais e o objetivo ésoltar mais peixes-boi nos pró-

ximos anos. Os animais terão umtransmissor adaptado à cauda,com uma bateria com duração de cerca de dois anos. Por meiode uma antena portátil, umreceptor e um GPS, os pesquisa-dores receberão os sinais com aposição de cada um deles. O pro-jeto conta com recursos da Pe-trobras, da empresa O Boticário edo Conselho Nacional de Desen-volvimento Científico e Tecno-lógico (CNPq), além do apoiodo Instituto Brasileiro do MeioAmbiente e Recursos NaturaisRenováveis (Ibama).

Rastreamento

Conservação e repovoação de peixes-boi

Três protocolos de intençãopara a promoção de projetos deinovação e tecnologias sociais nomeio empresarial, cujo objetivoé aproximar a ciência brasileirado setor industrial, foram assi-nados em março entre o Mi-nistério da Ciência e Tecnologia(MCT), o Conselho Nacional deDesenvolvimento Científico eTecnológico (CNPq) e a Con-federação Nacional da Indústria(CNI). Prevêem a realização deprogramas voltados para o aumento da competitividade e o desenvolvimento econômico,social e empresarial, no âmbitodo Sistema Brasileiro de Tecno-logia (Sibratec), além de projetosque estimulem as atividades depesquisa, desenvolvimento, ino-vação e capacitação de recursoshumanos para empresas de pe-queno e médio porte. Serão ofe-recidos 130 cursos para capaci-tar 3,9 mil empresários.

Competitividade

A ciência vaià empresa

O índice de obesidade infantildos brasileiros aproxima-se dosníveis registrados nos EstadosUnidos, onde 15% dos adoles-centes são considerados obesos.Pesquisa da Universidade Esta-dual do Rio de Janeiro (UERJ)revelou que três em cada dez

jovens entre 10 e 19 anos estãoacima do peso. Embora as esta-tísticas dos dois países sigammetodologias distintas, os pes-quisadores da UERJ acreditamque os números tendem a seigualar. A pesquisa foi realiza-da numa escola da Zona Norte

do Rio. A prevalência de sobre-peso foi de 15,6%, sem dife-renças significativas entre ossexos, e a de obesidade foi de11,7%, sobretudo entre os jovensdo sexo masculino. A pesquisautilizou o Índice de Massa Cor-poral (IMC).

Saúde

Cresce a obesidade infantil

Foto: Sxc:hu

Foto: Stockxpert

3 A - 04/16/2008 16:25:26

Page 6: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

8 Desafios • março de 2008

ENTREVISTA Membro do novo Conse l h o d e O r i e n t a ção do I p e a expõe s uas

João Paulo dos Reis Velloso

Foto: Guito Moreto

3 B - 04/16/2008 16:25:26

Page 7: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

Brasil precisa deixar de ser o país das oportunidades perdidas. Nos anos 1980, perdemos

a oportunidade de voltar a crescer. Houve uma desconstrução do alto crescimento. Perdemos

o know-how de crescer rapidamente. O que precisamos é de recuperar a visão estratégica

do planejamento, voltar a ter margem de manobra na gestão do Estado e superar certos obstáculos

como os juros e o câmbio. Mas temos que atuar com cuidado porque, tecnicamente, é difícil. Se não

fosse difícil, já teria sido feito”

O“

op in iões sobre questões econômicas e soc ia is da atua l idade no Bras i l e no mundo

Desafios • março de 2008 9

P o r J o r g e L u i z d e S o u z a ,

d o R i o d e J a n e i r o

Chega de

ficar perdendo

oportunidades

Desafios - Qual é a sua visão atual do desenvolvimen-

to brasileiro?

Velloso - O Brasil teve uma geração debrasileiros que não viu o país crescerem termos de renda per capita. Aoanalisar o que aconteceu nos últimos25 anos, só nos últimos três nós co-meçamos a apresentar taxas razoáveisde crescimento, principalmente em2007. Digo razoáveis porque o Brasiljá foi país de alto crescimento, comosão hoje a China e a Índia. Houveuma desconstrução do alto cresci-mento. Perdemos o know-how decrescer rapidamente. Hoje, 5% é ra-zoável, mas em 1977 ou 1978, quandotivemos que desacelerar a economiapor causa da crise do petróleo, o cres-cimento estava em 5%, por coin-cidência, e a Fundação Getulio Vargas

(FGV) falou: “O Brasil está em re-cessão de crescimento”. Naquela épo-ca, 5% era recessão de crescimento ehoje a gente acha uma maravilha. Já é bem melhor do que os vôos de ga-linha que tivemos até os anos 1990.

Desafios - Houve uma retomada de 1979 a 1980. Foi

uma descontinuidade?

Velloso - Foi, no sentido de que era pa-ra ter continuado a desaceleração. Setivesse havido medo do abismo, masperdeu-se o medo do abismo, e isto éperigoso. Crescemos demais no mo-mento em que aconteceram a segundacrise do petróleo e a crise da taxa dejuros. A conseqüência foi que o Brasilem 1982 foi arrastado para a crise dadívida externa. Talvez não precisasseter acontecido. E a partir daí veio a

desconstrução. Foi a destruição deinstituições, a destruição de setores –o setor naval, por exemplo, acabou, emesmo o setor de bens de capital.Houve também a destruição de orga-nismos. Acabaram com a Carteira deComércio Exterior (Cacex), e depoislevaram 15 anos para montar uma se-cretaria que substituísse a Cacex, quetinha mais flexibilidade, porque erauma carteira do Banco do Brasil. Ex-tinguiu-se o Banco Nacional da Habi-tação (BNH)...

Desafios - E agora, o que deve ser feito?

Velloso - O primeiro ponto é sobre asoportunidades perdidas. O Brasil pre-cisa deixar de ser o país das oportuni-dades perdidas. Porque, em meadosdos anos 1980, perdemos a oportuni-

4 A - 04/16/2008 16:25:26

Page 8: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

10 Desafios • março de 2008

Fundador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

(Ipea), em 1964, e seu primeiro presidente, o economista

João Paulo dos Reis Velloso foi o ministro do Planejamento

do Brasil que mais tempo permaneceu no cargo (de 1969 a

1979, durante os governos de Emílio Garrastazu Médici e

Ernesto Geisel).

Na sua primeira fase como ministro, conviveu com

o “milagre brasileiro”, e, na segunda, administrou a

desaceleração da economia provocada pela crise do petróleo

do f inal de 1973. Foi o quarto ministro a ocupar esse posto,

depois de Celso Furtado (1962/1964), Roberto Campos

(1964/1967) e Hélio Beltrão (1967/1969). Depois dele, já

são 18 a ocupar a cadeira.

Reis Velloso nasceu em Parnaíba, Estado do Piauí, em

1931, formou-se em Economia pela antiga Universidade do

Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),

e concluiu em 1964 mestrado pela Yale University, nos

Estados Unidos.

Criou em 1988 o Fórum Nacional, associação de cerca

de cem economistas, sociólogos e cientistas políticos, com a

f inalidade de oferecer propostas para a modernização da

sociedade brasileira. A 20ª edição do Fórum Nacional será

nos dias 26 a 30 de maio deste ano, no Rio de Janeiro. Além

de sua edição anual, com freqüência são realizados fóruns

especiais com temas específ icos. Em 1991, o ex-ministro

criou o Instituto Nacional de Altos Estudos (Inae), que

passou a organizar os fóruns.

Além de coordenador-geral do Fórum Nacional e

superintendente-geral do Inae, o ex-ministro é presidente do

Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (Ibmec), uma

associação civil sem f ins lucrativos, voltada a estudos e

pesquisas sobre o mercado de capitais – não confundir

com a Ibmec Educacional, que é uma empresa privada

voltada para a área de ensino.

É autor ou organizador de cerca de 70 livros

publicados sobre a economia brasileira, a maior parte

resultante das discussões promovidas nos fóruns que

promove. Também é membro do Conselho de

Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), criado em

2003 pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que reúne

uma centena de personalidades em torno dos debates sobre

temas econômicos e sociais. E, a partir deste ano, torna-se

também membro do novo Conselho de Orientação do Ipea.

Uma vida dedicadaao planejamento

dade de voltar a crescer, uma vez que jáestávamos com grandes superávits co-merciais, de US$ 12 bilhões a US$ 13bilhões, como resultado dos progra-mas do II Plano Nacional de Desen-volvimento (PND). Em termos de ba-lanço de pagamentos, a crise da dívidanão existia mais para o Brasil, e tínha-mos um superávit suficiente para ser-vir a dívida, se quiséssemos pagar osjuros e rolar o principal. Mas não sou-bemos entender isso e perdemos aoportunidade de crescer. A estratégiade desenvolvimento do I PND da No-va República, como passou a se cha-mar a partir de 1985, era um conjuntovazio. Cadê a estratégia de desenvolvi-mento? Não havia. Não existia. A per-da de know-how do crescimento signi-ficou, principalmente, que se perdeu avisão estratégica, a visão dinâmica.Va-

mos desenvolver vantagens compara-tivas em novos setores, tal como se fezno II PND? Era óbvio que o Brasil ti-nha um potencial muito grande emsetores como aqueles que no períodoforam desenvolvidos – siderurgia, pe-troquímicos, papel e celulose, aluminae alumínio, os chamados insumos in-dustriais básicos.

Desafios - Sua história pessoal está ligada aos gran-

des planos...

Velloso - Fiz o Programa Estratégicode Desenvolvimento (PED), de 1967 a 1969, e, antes, a revisão do Plano deAção Econômica do Governo (Paeg)– a primeira versão foi do ex-ministroMário Henrique Simonsen e a versãodefinitiva foi nossa, no Instituto dePesquisa Econômica Aplicada (Ipea).E depois, no Ministério do Planeja-

“Uma geração de brasileiros não viu o país crescer em termos

de renda per capita; olhando para o que aconteceu nos últimos

25 anos, só os últimos três apresentam crescimento razoável,

principalmente em 2007”

Foto: Guito Moreto

4 B - 04/16/2008 16:25:26

Page 9: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

Desaf ios • março de 2008 11

“A estabilização de

preços passou a ser um

valor social, mas ficamos na

dúvida hamletiana de fazer

ou não políticas positivas

de competitividade, como

política industrial,

tecnológica e de

comércio exterior”

tunidades. Quer dizer, chega de ficarperdendo oportunidades.

Desafios - Isso continua acontecendo?

Velloso - A propósito dessa história da queda da Contribuição Provisó-ria sobre Movimentação Financeira(CPMF), é transformar em oportuni-dade. Arriscou-se na idéia de manterintegralmente, quando havia uma saí-da mais viável, que era de escalonar aredução da alíquota. E nessa coisa dotudo ou nada, deu nada. Mas a perdapode se transformar em oportunida-de. As mensagens da sociedade são:queremos redução de carga tributária;e queremos o ajuste pela contenção dedespesas correntes, preservando osinvestimentos, que já estão muito bai-xos no Orçamento. Hoje, praticamen-te o Estado investe é por meio das em-presas estatais. O investimento comrecursos orçamentários correspondea 3% da despesa, quando em 1987 (setomarmos como referência a Consti-tuição de 1988) era de 15%.

Desafios - Foi conseqüência da Constituição ou do

ajuste f iscal?

Velloso - O ajuste fiscal se fez pormeio do aumento da carga tributáriae da queda dos investimentos, comampliação da faixa de gastos corren-tes. Por isso, a primeira mensagem écontenção da carga, e a segunda men-sagem, dos gastos correntes, paracriar espaço para mais investimentosem geração de empregos a nível lo-cal. Porque a política de crescimentonão tem mais condições de dar em-prego ao acréscimo da populaçãoeconomicamente ativa (PEA) que seapresenta no mercado e também re-dução do mercado informal, que noBrasil é superior a 50% da PEA.

Desafios - E a reforma tributária?

Velloso - O sistema tributário brasi-leiro é um dos mais irracionais domundo. Em 1967, com a reforma tri-butária que criou o Imposto sobreCirculação de Mercadorias e Ser-

mento, como secretário-geral, fiz a co-ordenação do PED. Ao final de 1969,assumi o ministério e fiz o I PND e o II PND. Com o II PND, passamos a dominar o paradigma industrial da época, que eram metalurgia e in-dústrias mecânicas. Em 1983 e 1984,quando houve aqueles enormes supe-rávits na balança comercial, o Brasildominava o paradigma da época. Etinha começado a emergir o novo pa-radigma, à base da informática. De-pois vieram as tecnologias de infor-mação e comunicação. Só que o Brasiltomou o bonde errado quando fez aLei de Informática. Primeiro, porquenão se faz política econômica por lei,uma vez que, se for preciso mudar apolítica econômica no ano seguinte,tem que fazer uma nova lei. Segundo,porque houve a idéia errada de reser-va de mercado. Não era a tradiçãobrasileira. Tínhamos políticas deapoio à indústria nascente, tempora-riamente, mas não reserva de merca-do. E houve até uma, digamos, “so-lução lusitana” para as joint venturesentre empresas nacionais e estrangei-ras. Pela lei, a empresa estrangeira nãopodia prover nem o capital dajoint venture nem a tecnologia.Então, por que o sócio brasileiroia ter toda a chateação de ter so-ciedade com um gringo qualquerse não recebia nem a tecnologianem o capital? Então, nós conti-nuamos a perder oportunidades.

Desafios - Faltava uma política industrial?

Velloso - Nos anos 1990, o Brasilfez uma coisa muito importante –o Plano Real. A estabilização depreços passou a ser até um valorsocial, mas ficamos na dúvidahamletiana: vamos ou não fazerpolíticas positivas de competitivi-dade, como política industrial,política tecnológica, política ativade comércio exterior? Nessa coisado fazer ou não fazer, terminarama década e o século, e o Brasil comum crescimento rastejante. Veio

então o governo do presidente LuizInácio Lula da Silva, e as coisas co-meçaram a mudar. Passou a havermais atenção para o crescimento e de-sapareceu aquela dúvida hamletiana.Tanto que foi aprovada uma políticade competitividade centrada na ino-vação. Só que vários dos programasprevistos na época foram avançandodevagarzinho. Acho que agora chegouo momento de se dar importância àcriação e ao aproveitamento de opor-

Foto: Guito Moreto

5 A - 04/16/2008 16:25:26

Page 10: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

12 Desafios • março de 2008

rais, deve-se desenvolvê-los e usartambém o fruto disso para transfor-mar a economia, para passar a novasetapas. Fazer upgrade, para dependermenos deles, porque há recursos na-turais que não são renováveis. Os nos-sos ora são não-renováveis, como pe-tróleo e gás, mas ora são renováveis.

Desafios - E na ponta da alta tecnologia?

Velloso - Primeiro, temos que nos pre-ocupar com os fundamentos. A mo-dernização da infra-estrutura, agoracom o Programa de Aceleração doCrescimento (PAC), está avançando.É um progresso porque se readquire avisão estratégica, para não ter maisapagões, como tivemos, apagões detodo tipo. Como oportunidade nossegmentos de tecnologia avançada, oBrasil é muito criativo em software.Mas só exportamos US$ 500 milhõesde software por ano, e a Índia exportaUS$ 5 bilhões. E não é criativa como oBrasil. Levaram dez anos para cons-truir uma estratégia, e conseguiram.Temos que construir uma estratégia.

Desafios - Do mesmo tipo?

Velloso - A Dell anunciou que seu cen-tro mundial de controle iria ser no Bra-sil, com software desenvolvido aqui. To-das as operações da Dell no mundointeiro serão controladas a partir dessecentro de controle situado no Brasil.Te-mos que ter uma estratégia para conce-der incentivos. Tudo que diz respeito a inovação, o Brasil tem um grande nú-mero de incentivos, com linhas do BNDES, incentivos fiscais e financei-ros, e até subvenção – o Ministério daCiência e Tecnologia (MCT) pode darum aporte de recursos a fundo perdido,em certos casos. Uma proposta é uni-versalizar a inovação nas empresas bra-sileiras. Há um estudo do Ipea de pou-cos anos atrás mostrando que asempresas que inovam e diferenciamprodutos respondem por menos de30% do faturamento e por 2% do nú-mero de empresas do país.A idéia é dis-seminar para que até pequenas empre-

viços (ICMS), o Brasil foi vanguardis-ta. Fez um imposto sobre valor adi-cionado antes da Europa. Isso é o tipode oportunidade que podemos criar.A nova estratégia de desenvolvimentopara o Brasil deve ser o que chama-mos de economia criativa. O que é is-so? Usar os instrumentos da econo-mia do conhecimento – há uma sériede livros sobre o tema – para desen-volver desde setores intensivos em re-cursos naturais até segmentos de tec-nologia avançada.

Desafios - Começando pelo segmento de recursos

naturais?

Velloso - A mais importante revistaeconômica do mundo, The Economist,disse recentemente que a natureza tal-vez tenha sido pródiga demais com oBrasil em matéria de dotação de recur-sos naturais. No setor de bioenergia, oBrasil tem que estar na vanguarda. Te-mos a melhor tecnologia, o melhor ti-po de etanol, não o etanol de milho,como se faz nos Estados Unidos, é umetanol de cana-de-açúcar, não só mui-to mais produtivo, mas principalmenteporque não vai competir com a ali-mentação. O biodesenvolvimento éum negócio muito mais amplo do quesimplesmente bioenergia. Já se podefazer até bioquímica. Existem projetosindustriais apresentados ao Banco Na-cional de Desenvolvimento Econômi-co e Social (BNDES) em que, em lugarde ser petroquímica, é bioquímica. Eexiste uma outra área nesse mesmocampo que é o aproveitamento da bio-diversidade brasileira.

Desafios - É uma forma de explorar riquezas na

Amazônia sem degradá-la?

Velloso - Não se pode fazer agricultu-ra nem pecuária na Amazônia. Só sepode fazer uma coisa: aproveitar abiodiversidade para fazer biotecnolo-gia. A riqueza da Amazônia em maté-ria de biodiversidade é uma coisa fan-tástica. Mas isso é um potencial. Épreciso transformar esse potencial emprodutos, por exemplo, para a indús-tria farmacêutica, para cosméticos,para agricultura. Tudo o mais que setente fazer, como desenvolvimentoflorestal, agricultura e pecuária, des-trói a floresta e gradativamente vaiacabando com esse grande potencialbrasileiro. Os países escandinavos co-meçaram pelo aproveitamento dos se-tores intensivos em recursos naturais,mas envolveram todas as etapas da ca-deia produtiva, com grande aplicaçãodo que hoje chamamos (isto já estácodificado) de economia do conheci-mento. Quando se têm recursos natu-

“A natureza talvez tenha

sido pródiga demais com

o Brasil em matéria

de dotação de recursos

naturais; em bioenergia,

temos etanol de

cana-de-açúcar, muito

mais produtivo e não vai

competir com a alimentação”

Foto: Guito Moreto

5 B - 04/16/2008 16:25:26

Page 11: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

Desaf ios • março de 2008 13

sas passem a fazer inovação, para quepassemos a ter pequenas empresas tec-nológicas. Existem algumas...

Desafios - Por exemplo?

Velloso - Na área de biotecnologia, queé a base da biodiversidade, há a Ex-tracta Moléculas Naturais S.A., criadapelo cientista Antonio Paes de Carval-ho, professor titular da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro (UFRJ). Oque a Extracta vende? Moléculas. Temum banco de moléculas. Quando re-cebe um pedido nacional ou estran-geiro de uma nova molécula, com taise tais características, verifica no bancode moléculas. Se não tiver aquele tipode molécula, ela vai pesquisar na Ma-ta Atlântica, na Amazônia. Um trabal-ho altamente inovador. E é uma pe-quena empresa, nascida dentro daUFRJ, na incubadora de empresas.Precisamos de uma estratégia para atecnologia baseada na biodiversidadebrasileira.

Desafios - O desenvolvimento brasileiro já saiu da he-

sitação e encontrou um caminho?

Velloso - Sim, exatamente. Mas existemduas coisas. Primeiro, turbulências in-ternacionais. Temos que estar atentos aisso, porque não existe essa história dedizer que estamos blindados. Fomosmuito beneficiados por quase uma dé-cada de grande crescimento mundial.Com isso, chegamos a superávits gi-gantescos na balança comercial, demais de US$ 40 bilhões,que já estão di-minuindo, porque resultaram dospreços das commodities, que estavamelevadíssimos, devido à demanda daChina, da Índia e de outros emergen-tes. Como o Brasil é um fornecedor decommodities agrícolas e industriais, nósnos beneficiamos muito, e com isso re-duzimos muito a dívida externa, acu-mulamos reservas, e estamos combons fundamentos em geral.

Desafios - Além de deixar de perder oportunidades, o

que mais é preciso agora?

Velloso – Temos que superar certos obs-táculos. Por exemplo, no Orçamento,temos uma espécie de camisa-de-força.O gasto obrigatório está predetermina-do, e 90% das despesas são gastos cor-rentes obrigatórios. Quando se diz queo governo e o Congresso estão discu-tindo o novo Orçamento, não é bem is-so. Estão discutindo 10% do Orçamen-to. Temos que ganhar margem demanobra, que é uma coisa que ajudavamuito o Brasil nos anos 1970, 60 e 50,na época do alto crescimento. Não ha-via camisa-de-força no Orçamento.Podia até fazer besteira...

Desafios - Como as que provocaram a inf lação?

Velloso – É, em alguns momentos,sim. Quando o Fórum Nacional foi

“A proposta é universalizar a inovação nas empresas brasileiras, disseminar para que até

pequenas empresas passem a fazer inovação, para que passemos a ter pequenas

empresas tecnológicas, porque hoje só existem algumas”

criado, em 1988, o Brasil estava comuma taxa de inflação de 80% ao mês,uma hiperinflação indexada, muitoem conseqüência da indexação gene-ralizada. Não foi igual à hiperinflaçãoalemã de 1922, porque a de lá não eraindexada, e a daqui era. Foi este, diga-mos, o milagre do Plano Real. Tiroude repente a indexação e a inflação...puff! Acabou! Mas o Brasil bobeou e,como diz o Delfim Netto, que é umgozador, “o Brasil quebrou em 1998,educadamente”.

Desafios - Hoje a inf lação é um obstáculo superado?

E quais são os outros?

Velloso - O problema do câmbio. Te-mos um câmbio flutuante que flutuapara baixo. A flutuação não pode serexcessiva, nem para cima, nem parabaixo, senão perde o sentido. Daí aimportância de se conter a absorçãode recursos representados pelas des-pesas públicas, porque a demanda dosetor público é para produtos não-

Foto: Guito Moreto

6 A - 04/16/2008 16:25:26

Page 12: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

14 Desafios • março de 2008

de partidos muito complicado... Pre-cisamos ter uma sociedade, no casobrasileiro uma sociedade de massasativa e moderna, para que haja umaespécie de monitoração dos poderespúblicos. Veja no Rio esse boicote aoIPTU. Isso é uma demonstração deque a sociedade está querendo dizerum basta em relação ao funciona-mento dos serviços básicos da prefei-tura. Outro exemplo é o da França. Opresidente Nicolas Sarkozy anunciouque vai haver uma auditoria externaindependente para todos os ministé-rios. Essas auditorias, que são feitaspara empresas, devem ser realizadastambém para a sociedade e para enti-dades empresariais. A Federação dasIndústrias do Rio de Janeiro (Firjan),por exemplo, tem um sistema de mo-nitorar o que acontece no Estado bra-sileiro – Congresso, Executivo e Judi-ciário – para fazer cobranças. Sãomanifestações da sociedade. A nossasociedade pode ser chamada de ativa,mas o que funciona bem são ONGsque cuidam de assuntos específicos.Precisamos de entidades e formas demanifestação da sociedade que se refi-ram ao interesse público em geral.

Desafios - E com relação à gestão do Estado?

Velloso - O governo está acordandopara isso. Todos esses apagões, desdeo apagão elétrico, que é o verdadeiroapagão, até o apagão aéreo, são coisasde gestão do Estado. Tudo isso vem de dez ou 15 anos. Segundo o sociólo-go Hélio Jaguaribe, que sempre foi adversário do regime militar, o Brasilconstruiu o Estado mais moderno doTerceiro Mundo de 1940 a 1970. In-clusive eu participei, porque eu traba-lhei três anos com o ex-ministro Hé-lio Beltrão, que era o homem dagestão do Estado, fez a reforma admi-nistrativa. E depois o Estado foi per-dendo a preocupação com a sua pró-pria gestão, e temos que voltar a fazerum grande esforço nessa área. Visãoestratégica e boa gestão, é isso que evi-ta apagões.

comercializáveis em geral. Então, comisso se abre espaço para aumentar adespesa do setor privado e do consu-mo em geral, que é para os tais tradea-bles (produtos comercializáveis).Com isso se pode melhorar a situaçãodo câmbio. É um negócio complicadotecnicamente porque estávamos comenorme superávit na balança comer-cial e também na conta de capitais.Quer dizer, os dois trazem fluxo demoeda estrangeira. É muito compli-cado lidar com isso tecnicamente. Anão ser que se recorra a limitações pa-ra a entrada de capitais hot money (decurto prazo). O Brasil teve um enor-me investimento externo no ano de2007, mas em conseqüência das tur-bulências internacionais há a saída decapitais de curso prazo aplicados naBolsa e em fundos de renda fixa.

Desafios - Na política econômica, o senhor corrigiria,

além do câmbio, também os juros?

Velloso - É. Mas temos que atuar comcuidado porque, tecnicamente, é difí-cil. Se não fosse difícil, já teria sido fei-to. Temos que procurar o caminho in-direto. No caso do câmbio, vamosdiminuir o gasto público. Porque aíajuda a resolver o problema do câm-bio que flutua para baixo. E a taxa bá-sica de juros, a Selic, foi caindo deva-

garzinho, mas ainda temos taxas reaisentre as mais altas do mundo. Issotambém é uma espécie de camisa-de-força para o setor privado, porque eletem que ter uma rentabilidade muitoalta no seu negócio.

Desafios - Não é somente por falta de decisão políti-

ca que não se faz isso?

Velloso - É porque se tem que encon-trar o caminho certo, que não é umcaminho fácil. Há também obstácu-los políticos. É que o sistema políticobrasileiro não é muito favorável aodesenvolvimento. Temos um sistema

“O sistema político brasileiro

não é muito favorável ao

desenvolvimento. Temos uma

estrutura de partidos muito

complicada. Precisamos no

caso brasileiro ter uma

sociedade de massas ativa e

moderna, para que haja uma

espécie de monitoração dos

poderes públicos”

d

Foto: Guito Moreto

6 B - 04/16/2008 16:25:26

Page 13: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

ssim está no Índice de Desenvolvimentoda Educação Básica (Ideb), diretriz 2:“Alfabetizar as crianças até, no máximo,os oito anos de idade, aferindo os resulta-

dos por exame periódico específico”. Propõe-seque este tempo seja o máximo possível, mas, co-mo é típico de nossa realidade, muito provavel-mente será o mínimo. E, dentro desta mentali-dade, a alfabetização corre o risco de nuncamais se completar, como é hoje a condição co-mum nas escolas públicas. Dados do Sistema deAvaliação da Educação Básica (Saeb) de 2003indicavam que por volta de 20% dos alunos queestavam na 4ª série não sabiam praticamentenada (estágio muito crítico), subindo esta cifrapara 30% no Nordeste.

Uma reportagem muito interessante publica-da pela revista Desafios do Desenvolvimento,de autoria de Sérgio Garschagen (nº 36 de outu-bro de 2007), apresentou a comparação de 49países em termos de repetência e evasão escolar,sacando a conclusão (com base em pesquisa deSergei Soares) de que o uso da “progressão con-tinuada” seria o responsável maior do êxito es-colar, posição muito defendida pelo Ministérioda Educação (MEC) atualmente (em especial daSecretaria do Ensino Básico) e constante da Leide Diretrizes e Bases da Educação (LDB). En-tendo que progressão continuada pode/deve serdefendida, sim, mas em nosso meio tornou-se“progressão automática”, fenômeno que o tex-to de Garschagen acaba reconhecendo, quandoalega que 43% dos estudantes de São Paulo (o estado mais rico do país) concluem o ensinomédio com bagagem em escrita e leitura espera-da na 8ª série do ensino fundamental.

Não se deve reprovar, porque as pesquisas su-gerem que este procedimento não promove aaprendizagem, além de causar estragos na auto-estima do aluno. No entanto, pretendo, neste tex-to preliminar, questionar a prática da progressãocontinuada/automática entre nós, porque tendefortemente a não se correlacionar com aprendiza-gem, o que vem atestado irônica e sistematica-mente nos dados do Saeb: os últimos resultadosdisponíveis (de 2005) indicavam queda forte nascifras, em especial na 8ª série do ensino funda-mental e na 3ª série do ensino médio (inclusive

para as escolas particulares e nas regiões mais de-senvolvidas do país). Impressionante foi a quedaastronômica registrada pelo Saeb de 1999 (porvolta de 17 pontos em língua portuguesa e de 8 a10 pontos em matemática – com exceção da 8ªsérie), muito provavelmente devido à introduçãodos 200 dias letivos em 1997.

A nova LDB foi aprovada no fim de 1996,entrando, praticamente, em vigor em 1997. Osresultados maléficos dos 200 dias letivos apare-ceram, porém, claramente em 1997, sugerindoque aumentar o que é ruim (aula instrucionista)pode facilmente piorar ainda mais. Ainda queesta hipótese deva ser tomada com cautela,ocorre que a expansão quantitativa dos diasletivos não teve – em momento nenhum nosdados do Saeb – qualquer efeito positivo.

A progressão continuada, como vem sendopraticada no Brasil, faz parte de uma praga geralda política social brasileira, denunciada comvigor por Francisco de Oliveira e Cibele Saliba Ri-zek como “gestão”, não enfrentamento da pobre-za. É uma tática esperta de ir empurrando com abarriga através de propostas residuais e compen-satórias problemas cuja solução exigiria “virar amesa”. Entendo que alfabetizar em três anos é,desde logo, impor ao aluno a condição de repe-tente contumaz, ao repetir por três anos a mesmacoisa, como regra de maneira inepta e sem chan-ces ulteriores de alfabetização adequada. Existeaqui um problema de interpretação dos dadosdisponíveis, em meio a contradições flagrantes.

Por exemplo, o Ideb realiza o cálculo de seuíndice não com dados provenientes das escolas,mas da Prova Brasil – feita pelo Instituto Nacionalde Estudos e Pesquisas Educacionais AnísioTeixeira (Inep), porque não aceita os dados daescola como base. Já a discussão sobre evasão erepetência quase sempre toma os dados da escolacomo referência, induzindo a uma inflação sono-ra do desempenho, sempre desmentido – nãomenos sonoramente – pelo Saeb, provocando umdiálogo de surdos: enquanto a escola reprova ca-da vez menos, o Saeb garante que os alunosaprendem cada vez menos. Haja progressão!

Desaf ios • março de 2008 15

P e d r o D e m oARTIGO

Alfabetizar em três anos

A discussão sobre

evasão e repetência

quase sempre toma os

dados da escola como

referência, induzindo

a uma inflação sonora

do desempenho, sempre

desmentido – não

menos sonoramente –

pelo Saeb, provocando

um diálogo de surdos:

enquanto a escola

reprova cada vez

menos, o Saeb garante

que os alunos aprendem

cada vez menos

A

Pedro Demo é professor da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador

aposentado do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)

7 A - 04/16/2008 16:25:26

Page 14: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

16 Desafios • março de 2008

POLITICA FISCAL´

7 B - 04/16/2008 16:25:26

Page 15: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

Desaf ios • março de 2008 17

P o r J o r g e L u i z d e S o u z a , d e S ã o P a u l o

Estudos recentes sobre a carga tributária se contrapõem à visãodominante de que o governo tributa muito, gasta muito e gasta mal,e que o elevado peso dos impostos prejudica o investimento privadono país e atrapalha o crescimento. “Tivemos um aumento da carga,mas foi em um ambiente de crescimento, de formalização e deexpansão do emprego e do lucro”, diz o secretário de Acompa-

nhamento Econômico do Ministério da Fazenda, Nelson Barbosa Filho

Novo rumo noconf lito

entre tributação e

crescimento

Ilustração: Erika Onodera

8 A - 04/16/2008 16:25:26

Page 16: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

18 Desafios • março de 2008

“ N ã o ex i s t e n e n h uma t e o r i a o r t o d ox a o u h e t e r o d ox a s o b r e o t aman h o ó t imo

política fiscal nunca esteve tantona ordem do dia no Brasil. Aomesmo tempo que a nação co-meça a discutir uma nova refor-

ma tributária que tramita no Congres-so Nacional, surgem novos estudos quetrazem luz antes inexistente para a com-preensão de fenômenos aparentementecontraditórios como o crescimento dacarga tributária sem desestimular o inves-timento privado.“A sabedoria convencio-nal dos macroeconomistas brasileiros dizque o governo tributa muito, gasta muitoe gasta mal. E que a elevação da cargatributária desincentiva o investimento e,portanto, o crescimento, mas é um racio-cínio simplista, que não tem base na teo-ria econômica nem base empírica”, diz opesquisador Cláudio Hamilton dos San-tos, do Instituto de Pesquisa EconômicaAplicada (Ipea).

Segundo o pesquisador, “testes econo-métricos com as novas séries estatísticasindicam que não há relação forte entre ovolume do investimento privado e otamanho da carga tributária brasileira”.Eleacrescenta que,“além disso, não existe ne-nhuma teoria, seja ortodoxa ou hete-rodoxa, sobre o tamanho ótimo da cargatributária em uma sociedade complexacomo a brasileira”. Mas não contesta que acarga tributária esteja crescendo.“Tambémé verdade que os impostos brasileiros sãoaltos e não param de subir como per-centagem do Produto Interno Bruto (PIB).É uma coisa pouco compreendida atémesmo por quem a estuda a fundo,porquenão há grandes mudanças na legislaçãobrasileira de impostos desde 2004”,acrescenta o pesquisador.

Para o secretário de AcompanhamentoEconômico do Ministério da Fazenda,Nelson Barbosa Filho, “a carga tributárianunca deve ser discutida isoladamente, edeve ser sempre vista em relação ao usoque se faz dela, qual o gasto público que elaestá financiando e qual o impacto que elatem na economia. No Brasil, tivemos umaumento da carga, mas esse aumento foinum ambiente de crescimento, de expan-

tar o peso do investimento, reduzindo opeso do gasto corrente. E, no curto prazo,não podemos deixar o superávit cair,porque estaria botando lenha na fogueirada demanda agregada” (ver o texto “Cuida-do com a demanda agregada” na página21). Ele acrescenta que “o ideal é ter gastoflexível, e infelizmente no Brasil ele é muitopouco flexível. Por isso temos que fazer areforma da Previdência, diminuir o gastorígido e aumentar o que não é rígido”. Porexemplo, acrescenta, “investimento é umgasto não-rígido, e está muito baixo”.

Falando em uma linguagem econô-mica, diz o pesquisador Cláudio Hamil-

são de emprego, de lucro e de formaliza-ção. O aumento da carga não foi prejudi-cial ao crescimento. Na verdade, muitodele foi resultado do próprio crescimento”.Além disso, diz o secretário, “tem-se queanalisar a carga tributária depois das transferências de renda que o governo faz, porque parte da receita é utilizada naforma de benefícios sociais e assistenciaispara combater a pobreza e o desemprego”.

INVESTIMENTOS “Em relação ao resto do gasto, é preciso ver se está indo para fi-nanciar consumo ou para investimento.Com o Programa de Aceleração do Cresci-mento (PAC), o gasto que mais sobe no governo é o investimento. E o investi-mento público tem um efeito comprovadode estimular o crescimento. Ele tem váriasexternalidades: aumenta a produtividadeda economia como um todo, principal-mente quando há gargalos de infra-estru-tura,como ocorre no Brasil.No caso brasi-leiro, o investimento público tem grandeefeito de gerar crescimento,porque ele gerademanda”, diz Barbosa, acrescentandoque “o fato de o Brasil ter tido baixo inves-timento público nos últimos anos faz comque esses projetos sejam bastante rentáveise com alto retorno social e grande impactosobre a produtividade da economia”.

A professora Denise Lobato Gentil, es-pecialista em finanças públicas da Univer-sidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),tem opinião diferente. Diz que “a cargatributária no Brasil inibe o investimentoprodutivo e a geração de emprego, pre-mia o especulador estrangeiro, onera osgrupos de menor capacidade econômica,atingindo a parcela mais carente da po-pulação, e promove uma desconstruçãodo federalismo” (ver o texto “Carga eleva-da pode ser adequada” na página 22). Elaacrescenta que “temos enfim um sistematributário que não está voltado para a su-peração das desigualdades sociais e paraa promoção do desenvolvimento”.

Para o consultor econômico RaulVelloso, ex-pesquisador do Ipea, “comoreceita de longo prazo, temos que aumen-

A

8 B - 04/16/2008 16:25:26

Page 17: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

Desaf ios • março de 2008 19

d a c a rg a t r i b u t á r i a em uma s o c i e d ad e t ã o c omp l ex a q u a n to a b r a s i l e i r a”

No entanto, contrapõe o pesquisador,“os macroeconomistas, olimpicamente,falam que o governo está gastando muitoe tem que cortar. A carga tributária estáalta para quem paga, mas não é obvio queesteja alta para atender às necessidades.Eu tenho pudor de falar que tem quecortar o gasto a, b ou c, sem saber quaisvão ser as conseqüências da sua falta”.Ele diz ainda que “há uma visão muito estabelecida de que o governo gasta mal,mas não se sabe quão mal. Por exemplo,não se sabe se o governo brasileiro é 20%, 50%, 100% ou 300% menos oumais eficiente do que os governos ame-

ricano, japonês ou francês.Até porque esses cálculos

são dificeis de fazer”.

CARGA CRESCENTE

“De 1970 até 1995,a carga tributária

brasileira ficoumais ou menosestável em 25%do PIB. Por qua-se 30 anos ficou

estável”, consta-ta o pesquisador

do Ipea.Porém, desde meados dos anos

1990, a carga tem subido em mé-dia quase 1 ponto percentual do PIB todo ano. “Esse crescimentocontínuo e de rapidez muito pou-co comum na experiência interna-

cional é que chama a atenção. Mas é importante notar que as causasdesse crescimento variaram ao lon-go do tempo.”

Grande parte do aumento dacarga tributária ocorreu em

resposta à crise de 1999,quando aconteceu a ex-

plosão do câmbio. Uma gran-de parte da dívida pública brasileira estava em dólares na-quela época. A dívida do se-tor público explodiu em per-centuais do PIB, e as pessoas

perguntaram se essa dívida era susten-tável. Se o governo não tivesse feito na-da, a crise poderia ter se aprofundado”.

TIPO DE AJUSTE O que se fez então foiaumentar a carga tributária, explica opesquisador, que subiu mais ou menostrês pontos percentuais do PIB de 1999 a 2001. E em 2002 houve outra crisecambial.“O governo Luiz Inácio Lula daSilva já começou sob o signo da crise e aidéia então foi garantir a sustentabili-dade da dívida pública. Só que, além deaumentar os impostos, o governo tam-bém trocou a composição da dívida bra-sileira, de dívida dolarizada para dívidaem real. Agora, a taxa de câmbio pode ir para R$ 20,00 que a dívida pública vaicontinuar a mesma em reais. Por contadisso, o governo tem que pagar maisjuros, mas isso é outra história. Desde2003, não há mais pulos na dívida, e porisso não se teve que aumentar ou criarimpostos. Mas, ainda assim, a carga tri-butária continuou aumentando. Subiudois ou três pontos percentuais do PIBde 2003 até agora.”

O pesquisador diz que o tamanho doajuste fiscal e a composição do ajuste sãoduas coisas que estão interligadas. O quese discute entre os macroeconomistasque pensam sobre as finanças públicasbrasileiras é se o superávit primário deveser de 2%, 4%, 6% ou 8% do PIB, e comose obtém esse superávit fiscal, com gastose impostos menores, com essa composi-ção de gastos e impostos ou com aumen-to de impostos e de gastos. “A conclu-são a que chegamos é que 4% estão maisdo que suficientes para garantir que a dívida pública continue caindo”, diz. Elediscorda da visão da maioria dos macro-economistas sobre a necessidade de se mudar a composição do ajuste fiscal dimi-nuindo concomitantemente a carga tribu-tária e os gastos correntes, excluindo juros.

Ele explica que “a definição do que édéficit público não é óbvia, e essa comple-xidade tem implicações políticas impor-tantes. Por exemplo, definir como setor

ton dos Santos, “as pessoas costumam só pensar na oferta de bens públicos, e nãona demanda por bens públicos. Não sesabe ao certo quanto custa educar cadacriança brasileira, quanto custa fazer comque cada cidadão brasileiro tenha um de-terminado nível de saúde”. Mas, em dis-cussões sobre qualquer política pública,como educação, saúde ou segurança, “aprimeira coisa que se diz é que as escolasbrasileiras não têm recursos, o sistema desaúde ou a polícia não tem verba suficien-te, implicitando que, se tivesse mais recur-sos, seria melhor.A mensagem que semprese ouve é que falta dinheiro”.

Ilustração: Erika Onodera

9 A - 04/16/2008 16:25:26

Page 18: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

20 Desafios • março de 2008

“ O a ume n t o d a c a rg a n ã o fo i p r e j u d i c i a l a o c r e s c im e n t o ; n a v e r d ad e , m u i t o

Ilustração: Erika Onodera

público só o governo federal deixa de levarem consideração os estados e municípios.Definir como setor público a admi-nistração pública direta, inclui governo federal e governos estaduais e municipais,mas tira as empresas estatais. Quando sefala no setor público consolidado, seincluem governo federal, governos es-taduais, os mais de 5.500 municipais etambém cerca de 200 empresas estatais, e o governo usa as empresas estatais paragarantir suas metas”. Mas ele critica a au-sência de informações nessa área. “Quan-do se fala que a arrecadação subiu em tal mês, é a arrecadação federal, porque só há a estatística dela. Não se tem a dosmunicípios, porque são mais de 5,5 mil.As secretarias de Fazenda de municípiospequenos têm esse dado? Não!”

Ao analisar em quais impostos a ar-recadação está crescendo nos últimosanos, Santos afirma que “basicamente oque está aumentando são as contribui-ções previdenciárias e o Imposto de Ren-da das pessoas jurídicas. A minha hipó-

tese é que as contribuições previden-ciárias aumentam porque a formalizaçãodo mercado de trabalho cresceu muito,tem mais gente empregada, e, natu-ralmente, as firmas estão pagando maisImposto de Renda porque estão lu-crando mais. Isto é muito diferente de acarga tributária estar subindo porque ogoverno está criando impostos ou ma-jorando as alíquotas dos impostos”.

HETEROGENEIDADE Segundo o pesquisa-dor Cláudio Hamilton dos Santos, o con-ceito de que a atual carga tributária reduz o investimento privado e o cres-cimento não resiste ao aprofundamentoda análise. “A carga tributária brasileira é a soma de muitas dezenas de taxas, con-tribuições e impostos, e cada imposto outaxa afeta o investimento de modo dis-tinto. Por exemplo, o Imposto de Rendadas pessoas físicas não afeta o investi-mento das multinacionais, mas o Impos-to de Renda das pessoas jurídicas afetajustamente o lucro dessas empresas.

Também é diferente dos impostos que aPetrobras paga, porque ela é uma empre-sa estatal, e por sua vez são muito dife-rentes das contribuições para o Fundo deGarantia do Tempo de Serviço (FGTS),que entra na carga tributária, mas nãopode ser gasto pelo Estado, porque é depropriedade dos trabalhadores”.

“O ponto a que eu quero chegar é o seguinte: o que se chama de carga tribu-tária compreende impostos e contribui-ções muito heterogêneos. Então, aspessoas olham o tamanho da carga tribu-tária, vêem que ela está subindo econcluem que portanto o investimentovai estar baixo. É muito simplista esteargumento”, arremata o pesquisador.Segundo ele, “o fato de só se ter estatís-ticas anuais sobre investimento prejudicaas análises, porque são poucas obser-vações e é preciso fazer muitas contas.Então, nós estamos construindo dadosem níveis trimestrais; indo às fontesprimárias. Assim, temos quatro obser-vações por ano e podemos fazer testes

9 B - 04/16/2008 16:25:26

Page 19: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

Desaf ios • março de 2008 21

d e l e fo i r e s u l t ado d o p r óp r i o c r e s c imen to” , d i z s e c r e t á r i o d a á r e a e c onôm i c a

“Hoje, o mais importante é entender qualé o principal papel da política fiscal no Bra-sil, antes de falar do que se deve fazer comtributos e com gastos, porque isso muda”, dizo consultor econômico Raul Velloso, ex-pes-quisador do Instituto de Pesquisa EconômicaAplicada (Ipea).“No passado, era diferente, ogrande objetivo era ter um superávit capaz demanter a dívida sob controle, porque nóstínhamos uma dívida muito elevada e taxa dejuros sem perspectiva de queda. Era precisoum superávit muito elevado para evitar que adívida explodisse. A diferença crucial hoje éque a taxa de juros tem perspectiva de queda,há um espaço fiscal que não se tinha antes, eé preciso saber o que fazer com ele.”

O consultor diz que esse espaço pode serusado de três formas:“Manter o superávit pa-ra reduzir a dívida; reduzir a tributação; ouaumentar o gasto de investimento, que é oitem que pagou a conta nos últimos anos”.Segundo ele, “aí as pessoas têm opiniõesdiferentes”. Uma hipótese, diz, para quem éfavorável a “uma rápida obtenção da classifi-cação de investment grade, que aumentaria oingresso de capitais no país, prefere a manu-tenção do superávit e, portanto, uma reduçãorápida da dívida”. Ele observa que “este nãoé aparentemente o objetivo do governo, mascertamente, no mercado financeiro, tem gen-te que preferiria ver o Brasil reduzindo suadívida e obtendo logo essa classificação pa-ra atrair muito mais capital externo”.

Contemplando outra possibilidade, diz, os“empresários vão preferir que se reduza acarga tributária, porque ela é muito alta, eeles gostariam de ter um alívio, não sesentirem tão sufocados, para poder investirmais”. Já a área de infra-estrutura “certa-mente vai dizer que chegou a hora de o go-verno investir em estradas, energia e portos,senão vão aparecer gargalos, porque essesinvestimentos ficaram para trás”. Para oconsultor,“antes não se podia fazer essa dis-cussão porque não havia espaço. A política

era uma só: manter o superávit primário. Aprincipal razão de ter mudado é a queda dosjuros, causada pelo fim da restrição aguda dosetor externo, que foi eliminada pela subidados preços das commodities que nós exporta-mos. As reservas cresceram de US$ 20bilhões para US$ 190 bilhões em cinco anos.Então, essa folga das contas externas inun-dou o país de dólares, e isto levou a uma que-da da taxa de juros”.

“O outro lado da história, que vai ficarcada vez mais importante, é saber se o go-verno quer usar política fiscal para combatera inflação ou não. Como hoje o controle dainflação é uma questão entre medidas fiscaisou monetárias, o governo vai ter de optar. Sequiser combater a pressão inflacionária compolítica fiscal, precisa ter contas flexíveis,que ele possa alterar quando precisar. Sequiser conter o aquecimento da economiapela via monetária, subirá os juros”. O con-sultor reitera que, “quando a economia es-tiver aquecida, é preciso ter espaço parareduzir os gastos ou aumentar os impostos,para encolher a demanda”. Ele pondera que“a arrecadação já está muito alta e não dápara aumentar. Então, do ponto de vista decombate à inflação, a melhor solução é flexi-bilizar o gasto”.

Por exemplo, diz,“no momento atual deve-

ríamos pelo menos manter o superávit do anopassado, porque, se ele cai, significa que osetor público está ativando a economia. Que-da de superávit significa maior ativação dedemanda pelo setor público. O ideal é tergasto flexível, e infelizmente no Brasil ele émuito pouco flexível. Por isso, temos que fa-zer a reforma da Previdência, diminuir o gas-to rígido e aumentar o gasto que não é rígi-do. Por exemplo, investimento é um gastonão-rígido. Como receita de longo prazo,temos que aumentar o peso do investimento,reduzindo o do gasto corrente. E, no curtoprazo, não podemos deixar o superávit cair,porque estaria botando lenha na fogueira dademanda agregada”.

Para ele, o crescimento do Produto Inter-no Bruto (PIB) em 2007 “saiu acima daquiloque os economistas acreditam que dá parasustentar. A economia está muito aquecida, evai bater a inflação, impulsionada pela de-manda”. Então, entre manter o superávit paranão injetar mais demanda, ou subir a taxa dejuros para cortar o gasto privado,“é preferí-vel, do ponto de vista do crescimento eco-nômico, tentar segurar o governo, porque amaior parte dos gastos dele é de despesascorrentes. Se ele subir os juros para seguraro setor privado, vai acabar contendo aindamais o investimento”.

Cuidado com a demanda agregada

Ilustração: Erika Onodera

10 A - 04/16/2008 16:25:26

Page 20: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

22 Desafios • março de 2008

estatísticos mais poderosos. E quando sefazem esses testes se percebe que não hárelação forte entre investimento privadoe a carga tributária brasileira”.

Cláudio Hamilton dos Santos diz que“para ter uma teoria econômica que digaqual é o tamanho ótimo da carga tribu-tária seria preciso julgar quais são os ci-

“O problema está menos no patamar dacarga tributária e mais em sua composição”,diz a professora Denise Lobato Gentil, especia-lista em finanças públicas da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro (UFRJ). Para ela,“uma carga elevada pode ser adequada se re-distribuir renda e promover o crescimento, seos impostos incidirem mais sobre os grupossociais de renda mais alta, de forma a redire-cionar os fluxos de recursos entre as classese, ao elevar a renda disponível para os gruposde menor renda, impulsionar o consumo dosque têm alta propensão a consumir”. E senten-cia:“A carga tributária que promove o cresci-mento é também a que desonera o inves-timento produtivo e grava as aplicaçõesespeculativas do capital e da renda, de formaa incentivar o aumento da produção e a gera-ção de empregos e coibir a esterilização deuma parte da riqueza gerada na sociedade”.

Mas, segundo a professora,“a carga tri-butária no Brasil tomou o rumo oposto a tudoisso: inibe o investimento produtivo e a gera-ção de emprego, premia o especulador es-trangeiro, onera os grupos de menor capaci-dade econômica, atingindo a parcela maiscarente da população, e promove uma des-construção do federalismo. Temos enfim umsistema tributário que não está voltado para asuperação das desigualdades sociais e paraa promoção do desenvolvimento. Seu alvo es-tá na geração de superávit primário, atravésde aumento de impostos de fácil arrecada-ção, em termos de resposta rápida e forte nocaixa, baixos custos operacionais para a má-

quina fiscalizadora, baixa pressão política so-bre o governo e, sobretudo, impostos nãopartilhados com estados e municípios”.

A crítica à política tributária, que segundoela é “de qualidade reconhecidamente ruimaté pelo governo”, é agravada pela sua prá-tica em conjunto com o sistema de metas deinflação, câmbio valorizado, liberalização fi-nanceira e baixo investimento público.“O re-sultado só não é desastroso porque o gastosocial, a recuperação do salário mínimo, a ex-pansão do crédito e os preços das commo-dities têm funcionado como fatores que com-pensam parcialmente as conseqüências nega-tivas da política macroeconômica. Mas,evidentemente, não nos levará a uma dinâmicade superação do subdesenvolvimento”, diz.

Ela acrescenta que “há a predominânciada opinião de que esse caminho trilhado pelapolítica tributária era inevitável, em funçãoda perda de receita sofrida pela União com areforma tributária efetuada pela Constituiçãode 1988 e o crescimento dos gastos com no-vos direitos sociais conquistados com aredemocratização do país a partir daqueleperíodo. Para fazer o ajuste fiscal dos anos1990 e 2000, dizem a maioria dos autores, aUnião teve que recuperar receitas através docrescimento pernicioso da carga tributária,fazendo uso de impostos cumulativos e nãopartilhados com estados e municípios. Dis-cordo dessa análise”.

Segundo a professora, a Constituição de1988 assegurou conquistas sociais importan-tes e não levou ao atual perfil de receitas e

gastos. Foram a abertura comercial, a libera-lização financeira e a política macroeconômi-ca de combate à inflação “que produziram ocrescimento dos gastos financeiros desequi-libradores do orçamento público”. Para ela,“a política macroeconômica de juros altos efavorecimento explícito à especulação finan-ceira subordinou a política fiscal”, tributandoos de menor capacidade de reivindicação,elevando os impostos indiretos e cumulativospara contrabalançar o crescimento dos gas-tos com juros. Ela propõe que a pesquisa naárea tributária incorpore elementos novos,“fazendo a ponte com o desenvolvimento eco-nômico, questões estruturais da economia na-cional e a conjuntura internacional”.

Sobre a qualidade do gasto público, diz aprofessora Denise Gentil que “vivemos entredois infernos. De um lado, o sistema tributárioé regressivo – recolhe mais dos que podemmenos. Do outro, a aplicação dos recursos ar-recadados dirige-se, predominantemente, pa-ra gastos financeiros que beneficiam umaelite proprietária de títulos públicos”. Elaqualifica esse quadro como “um dos maisperversos mecanismos de concentração derenda da economia brasileira”. Para ela,“construir um sistema tributário progressivodeveria ser o ponto central da proposta dereforma tributária. No entanto, estamos en-gatinhando com uma proposta que se limita adar uma racionalização mínima aos tributos ea combater a guerra fiscal, sem provocar,ressalte-se, queda de receita tributária paraqualquer ente da federação”.

Carga elevada pode ser adequada

dadãos de primeira classe e quais são os de segunda classe. Ao se recolher imposto do rico e dar ao pobre, é claro que o ricofica chateado e o pobre fica contente. Porconta disso, sempre que se discute tribu-tação, está se fazendo julgamento de valorredistributivo. Isto é política, não é ques-tão de eficiência econômica”.

C a d a i m p o s t o , t a x a eIlu

straç

ão: E

rika

Onod

era

d

C a d a i m p o s t o , t a x a e c o n t r i b u i ç ã o a f e t a o i n v e s t i m e n t o d e m o d o d i s t i n t o

10 B - 04/16/2008 16:25:26

Page 21: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

ão raramente, as despesas correntes daUnião são tratadas como vilão para ascontas públicas e entrave ao crescimen-to da economia brasileira. As recomen-

dações inevitáveis são: cortar as despesas, semdizer quais; aumentar a produtividade dos ser-vidores públicos, sem falar como; e elevar a efi-ciência, sem dar o roteiro. Essas recomendaçõessimplificam enormemente a realidade concretado processo de governar, desprezando a rele-vância social, econômica e política dos itens específicos que compõem a despesa considera-da corrente. Demonstram, ademais, ignorar asdificuldades técnicas para proceder a reduçõesnas despesas, que, se feitas de forma linear, semcritérios claros e endossados por avaliações técnico-políticas, provocam profunda desor-ganização na execução das ações, com efeitosnefastos para amplas parcelas da sociedade epara o próprio governo que as executa.

Temos razões de sobra para desejar adminis-trações públicas globalmente mais eficientes eprobas. Mas existem interesses e motivações pa-ra que tais demandas e formulações sejam feitasde forma genérica e contundente, conseguindotransformar as despesas correntes na grande vi-lã das finanças públicas. Primeiro, para estam-par o rótulo de ineficiente em tudo o que fazemos governos. Com isso, busca-se angariar ade-sões, pois todos esperam que os governos sejameficientes. Conquistadas as adesões (mediante omartelar incessante pela mídia), cria-se um sen-so generalizado de urgência. Afinal, o desperdí-cio é inaceitável. Vem, então, a pressão para quea redução nas despesas correntes seja feita deforma rápida. A rapidez, nesse particular, equi-vale a penalizar os que não podem se defenderpor não terem voz, organização e acesso à im-prensa. Ou seja, parcela majoritária da popula-ção brasileira. Outro subproduto desse proces-so é colocar o governo na defensiva, sempre ajustificar-se e incapaz de tomar iniciativas quecontrariem os interesses dos privilegiados.

De fato, as despesas correntes da União cres-ceram. Mas temos um quadro de servidores pú-blicos aquém do necessário e o pagamento depessoal, ativo e inativo, tem decrescido comoproporção da despesa corrente líquida. As des-

pesas com programas sociais também cresce-ram, como é de esperar quando a economia temdesempenho pífio, o desemprego e a informali-dade aumentam e as desigualdades sociais sãogritantes. Todavia, não temos um sistema deproteção social satisfatório que cubra todas ascarências de muitas dezenas de milhões de bra-sileiros. Os benefícios previdenciários cresce-ram, face a direitos estabelecidos na Constitui-ção, que permitiram a incorporação de mais de12 milhões de pessoas à proteção previdenciá-ria e assistencial. Ou seja, as despesas correntesda União conheceram aumentos, partes delasnão são feitas com a eficiência possível, mas be-neficiam diretamente brasileiros que delas pre-cisam. Cidadania é uma condição exigente derecursos financeiros públicos.

Chama a atenção, no entanto, que em quasetodas as discussões sobre finanças públicas umpressuposto seja implicitamente adotado: fa-la-se apenas das despesas não-financeiras. Ex-cluem-se, de partida, os pagamentos de juros eencargos da dívida pública. São intocáveis, im-pronunciáveis, inexistentes para a política fiscal,ainda que a onerem pesadamente.

A dívida pública mobiliária federal internafoi multiplicada por sete em um pouco mais deuma década, empurrada pelas mais altas taxasde juros do planeta. Enfrentar o pesado endivi-damento, adotar uma política monetária condi-zente com a realidade fiscal do país e com as ex-pectativas de inflação cadente a médio prazo e reformar a estrutura e a política tributária (fazendo-a progressiva, federativa e pró-pro-dução) também são opções. Menos custosassocialmente, mais inteligentes do ponto de vis-ta econômico e politicamente menos exigentes.Afinal, no momento, parece que estamos pre-senciando um quase consenso sobre a neces-sidade de baixar os juros, ampliar o investi-mento público e estimular o privado, adotarmedidas e políticas para a sustentabilidade am-biental e, principalmente, avançar na reduçãodas desigualdades sociais.

Desaf ios • março de 2008 23

R o n a l d o C o u t i n h o G a r c i aARTIGO

Despesas correntes da União

N

Ronaldo Coutinho Garcia é técnico do Instituto de Pesquisa Econômica

Aplicada (Ipea)

Chama a atenção que

em quase todas

as discussões sobre

finanças públicas um

pressuposto seja

implicitamente

adotado: fala-se

apenas das despesas

não-financeiras.

Excluem-se, de partida,

os pagamentos de juros

e encargos da dívida

pública. São intocáveis,

impronunciáveis,

inexistentes para a

política fiscal,

ainda que a onerem

pesadamente

11 A - 04/16/2008 16:25:26

Page 22: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

P o r E d l a L u l a , d e B r a s í l i a

O advento de um ciclo mais vigoroso de crescimentoeconômico no Brasil reacendeu o debate em torno dadivisão do bolo da arrecadação entre os entes dafederação. Mais do que o tamanho da fatia que cabe àUnião, estados e municípios, o país se debruça sobre aracionalidade e a qualidade da distribuição de uma receitaque vem engordando a cada ano

FEDERALISMO

Um novo pactoem meio àreformatributária

Foto: Stockxpert

11 B - 04/16/2008 16:25:26

Page 23: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

12 A - 04/16/2008 16:25:26

Page 24: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

26 Desafios • março de 2008

E s t u d i o s o s d e fe nd em a u rgên c i a d e um novo p ac to fe d e ra t i v o , c om mudança s

fiscal de que o Brasil precisa agora”, pre-coniza Rezende. O dilema é que essareengenharia não é tarefa fácil quando seconsidera o tamanho do país e as suasdisparidades regionais.“Não se pode tra-tar os desiguais como iguais”, recorda ou-tro estudioso do assunto, o pesquisador

do Ipea Rogério Boueri Miranda, autordo livro Política Fiscal e Finanças Públicas.

Para Boueri, o federalismo brasileironão funciona bem porque não há regrasdiferenciadas que considerem a realida-de de cada cidade ou estado.“É muito di-fícil, nas federações, estabelecer regras

reforma tributária encaminhadapelo governo ao Congresso Na-cional detona uma discussão quevai além de receitas e gastos –

uma nova agenda federativa, mais solidá-ria e justa. “Reformar significa rever aquestão tributária, mas também o regimede transferências e o regime de financia-mento das políticas sociais”, defende oeconomista Fernando Rezende, autor dorecém-lançado livro O dilema fiscal:emendar ou reformar e um dos maioresespecialistas no assunto. Para ele, umaproposta de reforma tributária não passaapenas por mudanças pontuais, mas poruma ampla transformação no atualmodelo de federalismo fiscal.

Rezende, que é professor da FundaçãoGetulio Vargas (FGV) no Rio de Janeiro efoi presidente do Instituto de PesquisaEconômica Aplicada (Ipea) de 1996 a1998, compara o federalismo ideal a umaplataforma de petróleo, que se apóia emquatro longas pernas. “Elas têm que ser,obviamente, do mesmo tamanho, senão oconjunto fica desnivelado, e, se ficar des-nivelado como ficou a plataforma P-36,afunda”, diz.

Os quatro pilares sugeridos para ocaso de federalismo são um regime equi-librado de repartição das competênciaspara tributar, no qual a distribuição daarrecadação se dê de uma maneira maisequilibrada entre o governo federal, osestados e os municípios; um regime deequalização fiscal, que são transferênciasque assegurem um mínimo de orçamen-to àquelas regiões onde a economia nãopermite uma boa arrecadação; um regi-me de cooperação financeira nos progra-mas sociais – “esses programas que oEstado precisa garantir a todo cidadão,com um padrão mínimo de atendimentode serviços públicos” –; e uma política dedesenvolvimento regional para garantirque todos os estados e regiões brasileirasconvirjam para um patamar de cresci-mento mais equilibrado.

“Se reconstruirmos essas quatro per-nas, teremos um modelo de federalismo

A

Desigualdades no orçamento per capitaDiferença entre o maior e o menor valor por habitante chega a quase 140 vezes

Fonte: Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda

Transferências de ICMS para os municípios

Transferências de ICMS per capita

Média Mediana Maior Menor

Pará 133,04 81,03 826,56 21,83 37,90

Bahia 137,48 79,01 4.620,02 43,45 106,30

Goiás 274,37 215,62 1.488,85 10,94 136,10

São Paulo 446,87 358,30 8.492,43 61,44 138,20

Rio Grande do Sul 405,51 336,09 3.369,15 49,03 68,70

Maior/Menor

(R$/ano, dados de 2006)

A marcha dos municípios de 2003 foi um marco de participação, com prefeitos, vereadores e, pela...

12 B - 04/16/2008 16:25:26

Page 25: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

Desaf ios • março de 2008 27

n a fo rma d e a r r e c ad a r e d e t r a n s fe r i r e ge r i r o s r e c u r s o s e n t r e a s e s fe r a s

diferentes para os mesmos entes. É muitomais fácil ter uma regra que valha paratodos. No Brasil isso é um problemaporque há uma diversidade muito gran-de em termos regionais”, acrescenta opesquisador.

URGÊNCIA Os estudiosos que se debru-çam sobre o tema do federalismo de-fendem a urgência na consolidação deum novo pacto federativo, com mudan-ças não só na forma de arrecadar, mastambém na forma de transferir e gerir osrecursos entre as esferas de governo. “Omundo está com um processo de mu-dança cada vez mais rápido. Se levarmosdez anos para isso, vai ser tarde demais”,diz Rezende. “Precisamos implementaresse novo modelo em cinco anos”, com-pleta, lembrando que a Índia, país queapresenta contexto semelhante ao brasi-leiro, estabeleceu prazo até 2010 parafinalizar a sua harmonização.

O secretário de Política Econômicado Ministério da Fazenda, Bernard Appy,um dos responsáveis pela formulação da recente proposta de reforma tributá-ria encaminhada ao Congresso Nacional,reconhece que ela não aprofunda a ques-tão das responsabilidades federativas e os critérios de repartição. Por causa dacomplexidade do tema, Appy preferejogar o início dessa discussão para algunssemestres adiante. “Estamos propondorepensar quais são as competências daUnião, dos estados e dos municípios jun-to à população e como financiar adequa-damente estas competências. Agora, essaé uma discussão que deve ser feita em ba-ses muito racionais. É longa, complexa,mas necessária se nós queremos melhoraro desenho federativo do Brasil”, afirma.

Paulo Ziulkoski, presidente da Con-federação Nacional dos Municípios(CNM), entidade que reúne federações eassociações municipalistas e costumarealizar “marchas a Brasília”, tem umentendimento diferente: “Não dá paradiscutir reforma tributária sem discutir amáquina”, diz. Ziulkoski cita as discre-pâncias entre as transferências feitas paraos municípios para o setor da educação,por exemplo, e o custo real pago pelasprefeituras. Enquanto o governo federalrepassa R$ 100,00 por criança atendidaem creche pública, o custo do serviço éde R$ 283,00. “Como é que a gente vaifechar essa conta? É hora de chegar a umentendimento para essas coisas”, questio-na Ziulkoski.

Boueri diz que, do ponto de vista dofederalismo fiscal, caberia negociar comos entes da federação mudanças que con-templassem tanto a arrecadação quantoas transferências e as responsabilidades.“Quando não se tem uma definição cla-ra, ou se onera demais alguns dos entesou se desestimula os entes a participar decertos programas em virtude da perspec-tiva de serem onerados mais na frente.Quando se discute tudo ao mesmo tem-po, não acontece um remendo, mas ficaestruturado para dar certo.”

Dessa forma, para ele, um novo pactofederativo só poderia ser firmado no mo-mento em que, além do conjunto de im-postos, o país repensasse formas de gerarmais autonomia para estados e municí-pios arrecadarem mais e, ao mesmo tem-po, tornasse desnecessária a transferênciade recursos da União. Além disso, Boueriacredita ser importante redefinir as res-ponsabilidades dos entes federativos sobrea administração dos recursos.

DISPARIDADES Um dos maiores desafiosa serem enfrentados na discussão do fe-deralismo fiscal são as disparidades entreas receitas de estados e municípios. O or-çamento por habitante do Maranhão, umdos mais pobres do país, é quase a me-tade do orçamento de Sergipe. Na regiãoNorte, o Pará tem um terço da receita percapita comparativamente a Roraima.

No âmbito municipal, há disparida-des maiores, com vários pequenos muni-cípios tendo orçamentos per capita maio-res que os das grandes cidades. Ziulkoskicita o exemplo de Paulínia (SP), municí-pio de 42 mil habitantes que arrecada oequivalente à soma de 242 municípioscom a mesma população.

Em parte, essa defasagem se explicapela forma com que se distribui a arreca-dação do Imposto Sobre Circulação deMercadorias e Serviços (ICMS). Atual-mente, 25% do ICMS é destinado aosmunicípios do estado em que é recolhido,e, desses 25%, dois terços são distribuídosproporcionalmente ao valor adicionadodo produto. O resultado é que municípiosem que estão instaladas grandes unidadesprodutoras, como uma refinaria de petró-leo, recebem elevado valor per capita.

Somente no Estado de São Paulo, se-gundo dados do Ministério da Fazenda,de 2006, a diferença entre o menor e omaior valor de repasse é de quase 140vezes.“Obviamente justifica-se, sim, comuma transição longa, porque essas coisasnão se mudam do dia para a noite,enfrentar essa situação de grande ini-qüidade que existe hoje”, diz Appy, ao

...primeira vez, com o presidente da República

Foto: Lula Marques/Folha Imagem

13 A - 04/16/2008 16:25:26

Page 26: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

28 Desafios • março de 2008

A r a i z d a s d i s c r e p â n c i a s n a d i v i s ã o d o b o l o t r i b u t á r i o e s t á n a p r omu l g a ç ã o

A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF),em vigor desde 2000, trouxe inquestionáveisavanços no controle dos gastos públicos. Al-guns analistas a consideram a mais importan-te legislação federativa do país. Por outro la-do, os especialistas apontam problemas notratamento dado a estados e municípios e su-gerem mudanças.

O Texto para Discussão (TD) Lei de Respon-sabilidade Fiscal e Finanças Públicas Munici-pais: Impactos sobre Despesas com Pessoal eEndividamento, de Dea Guerra Fioravante, Mau-rício Mota Saboya Pinheiro e Roberta da SilvaVieira, pesquisadores do Instituto de PesquisaEconômica Aplicada (Ipea), diz que, ao estabe-lecer um único nível de despesas com pessoalou endividamento, a LRF acabou estimulandoalguns municípios a gastar mais.

Ao analisar períodos antes e depois daimplantação da lei, o documento observa quemunicípios que antes gastavam em média40% da receita corrente líquida com pessoal,elevaram essa despesa para os 60% permi-tidos pela lei.

Essa corrida a níveis maiores de gastos,que ficou conhecida como “efeito balizamen-to”, acabou levando a um problema de gestão,em que cidades que antes funcionavam bemcom um número reduzido de servidores am-pliaram seus quadros, quando deveriam apli-car recursos em outras áreas.

Para Rogério Boueri Miranda, pesquisador

do Ipea, a LRF falhou ao estabelecer critériosiguais para realidades diferentes.“O federalis-mo brasileiro se tornaria ainda mais complexose conseguisse estabelecer regras diferencia-das, mas funcionaria melhor”, diz Boueri.

A lei determina um limite máximo deendividamento para estados e municípiosigual à receita corrente líquida multiplicadapor 1,2, independentemente das suasrealidades econômicas. “Cidades como Riode Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte, porexemplo, têm o mesmo nível de endividamentode um pequeno município do interior. Isto nãofaz sentido”, salienta.

Boueri sugere a criação de um “escalona-mento de parâmetro”, no qual, dependendo dassuas características, um município poderia terum limite de gastos com pessoal de 40%,outrode 35% e outro de 60%, por exemplo.“Natural-mente, isso envolve um grande estudo parasaber qual é o perfil do município ou do estadoe quais são os parâmetros para cada um.”

Para o economista Fernando Rezende, pro-fessor da Fundação Getulio Vargas (FGV) noRio de Janeiro, a LRF é muito importante paraassegurar a estabilidade da moeda e da ma-croeconomia e a credibilidade do país, mas,“em algum momento”, ela precisaria ser re-pensada.“Quando a lei afirma que todo mundotem que obedecer a um teto, isso impõe umaregra geral e universal que pode criar algunsproblemas”, diz.

Existem municípios pequenos cujo gastoprincipal é o pessoal, explica, porque preci-sa de investimentos em educação, saúde,assistência social, o que impõe a necessidadede um teto superior aos 60%. Por outro lado,em grandes centros urbanos, que têm quegastar em infra-estrutura urbana ou emtransporte, 60% de pessoal corresponde a umlimite muito alto.

“Essa discussão poderá ser reaberta.Talveznão seja já porque pode gerar resultados nãomuito satisfatórios. Na medida em que avance areforma do federalismo fiscal, nós poderíamosrever a LRF”, sugere.

Rezende inclui na discussão de uma no-va LRF mecanismos que devolvam ao cidadãoa responsabilidade para controlar o seu gover-nante. “É necessário introduzir transparên-cia nas contas públicas. Para isso, é precisofazer com que boa parte do dinheiro que seaplica no município seja arrecadada tambémno município. Se o sujeito paga um imposto,fica mais consciente de quanto ele está finan-ciando”, diz.

Outro aspecto observado pelo economistaé que os cidadãos saibam de onde vem e paraonde vai o dinheiro que o município recebedo estado e do governo federal. “Se houveressa transparência das contas públicas, asociedade poderá exercer uma parteimportante dessa tarefa de cuidar daresponsabilidade fiscal.”

A reforma da Lei de Responsabilidade Fiscal

Foto: Jamil Bittar/Reuters

13 B - 04/16/2008 16:25:26

Page 27: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

Desaf ios • março de 2008 29

d a C o n s t i t u i ç ã o d e 8 8 , n a t r a n s i ç ã o d o r e g i m e m i l i t a r p a r a a d e m o c r a c i a

comentar o dispositivo presente na pro-posta de reforma tributária que prevêmudanças na partilha do ICMS.

“Temos assistido na federação brasi-leira a um processo acentuado de an-tagonismos, disputas e desconfianças.Cabe reconstruir esse complexo arran-jo fiscal para promover a cooperação en-tre os entes e, mais do que isso, eliminaresse antagonismo que cria enormes di-ficuldades inclusive para a coesão da fe-deração brasileira”, avalia o professorFernando Rezende.

CONSTITUIÇÃO Rezende explica que a raizdas discrepâncias na divisão do bolo tri-butário brasileiro está no processo queculminou na promulgação da Constitui-ção, em 1988. Construída num momentoem que o país fazia a transição do regimemilitar para a democracia, a Constituiçãosofreu pressão, segundo o professor, deum lado, dos estados e municípios pormaior autonomia e maior poder tributá-rio e financeiro e, do outro, dos movi-mentos sociais, que clamavam pela uni-versalização dos direitos da cidadania,como previdência, saúde e educação.

“Essas duas pressões geraram uma fortedescentralização, por um lado, e novas res-ponsabilidades, por outro, para o governofederal”, comenta. Como, de lá para cá, opaís passou por sucessivas crises econômi-cas, os estados e municípios acabaram nãomaterializando a autonomia para tributar,uma vez que não havia receita.Do seu lado,o governo federal teve que assumir todas asnovas responsabilidades criadas com aampliação dos gastos sociais.

A solução foi aumentar a carga tri-butária, através, principalmente, do au-mento das contribuições sociais, que nãoprecisam ser repartidas com estados emunicípios. “As contribuições sociais re-presentaram uma progressiva perda dequalidade porque introduziram impos-tos de má qualidade.” Além disso, hou-ve uma nova centralização das receitas nainstância federal, com as transferênciasvinculadas a programas específicos.

Essa interferência do governo federalsobre as decisões de gastos na ponta significou perda de autonomia para os outros entes. Os desdobramentosdessa situação levaram aos atuais debatesem torno da carga tributária, qualida-de dos impostos e deficiências da ges-tão pública. “Precisamos eliminar essadualidade de regimes tributários, com a existência de impostos e contribui-ções”, sugere Rezende.

Em parte, a reforma tributária en-frenta este problema quando funde ascontribuições e cria o Imposto sobre Va-lor Agregado Federal (IVA-F). O novoimposto também amplia as bases detransferências dos fundos de participa-ção, o que recompõe o equilíbrio fede-rativo, com mais autonomia para estadose municípios.

SOLIDARIEDADE O desafio colocado à re-pactuação entre os entes federativos édefinir as competências e garantir acooperação, de maneira que haja maisjustiça fiscal.“Em um país como o Brasilé muito difícil definir com precisão aquem cabe fazer cada coisa”, salientaFernando Rezende. Aos municípios cabecuidar, por exemplo, da educação, mas écomum não haver recursos humanosqualificados.“Um só figurino não atendea todas as diferentes situações, porque oBrasil é muito desigual”, diz Rezende.

Ele sugere a implantação de um regi-me de equalização fiscal, com o governo federal transferindo recursos para di-minuir as disparidades e os estados e mu-nicípios ajudando uns aos outros no fi-nanciamento das políticas sociais.“É me-diante uma recomposição desse regime detransferências que se podem introduzirmecanismos de cooperação. Dessa forma,aqueles municípios que têm condições deassumir na integralidade o ensino funda-mental podem dispensar transferências.Mas aqueles que não podem, vão ter quecontar com alguma ajuda.”

Além da cooperação financeira, Ro-gério Boueri, do Ipea, propõe a solidarie-

dade na gestão, com uma nova pactuaçãoem torno do bom uso dos recursos e me-lhoria na eficiência dos gastos.“Eficiênciaé o quanto se faz em relação a quanto segasta”, diz. Para ele, aumentar eficiência égastar menos ou fazer mais.

“Não tenho dúvida de que o cresci-mento da economia, a inclusão social e ofortalecimento das políticas sociais vão,ao longo do tempo, criar esses novosmecanismos de cooperação entre União,estados e municípios”, opina o subchefede Assuntos Federativos da Secretaria deRelações Institucionais da Presidência daRepública, Alexandre Padilha. Para ele, opaís já entrou num processo de imple-mentação do novo pacto federativo.

O marco foi a participação, pela pri-meira vez, de um presidente da Repúblicana marcha dos municípios, em 2003. Apartir daí, segundo Padilha, vários passosforam dados à construção de instâncias dediálogo e negociação. Um exemplo foi acriação do Comitê de Articulação Federa-tiva (CAF), em 2003, a partir da reivin-dicação da marcha dos municipalistas.

O CAF já alcançou diversas vitóriaspara os municípios, como a aprovação dalei que ampliou a arrecadação do Impos-to Sobre Serviços (ISS), a reestruturaçãodo Sistema Unificado de Saúde (SUS) e acriação do Sistema Unificado de Assis-tência Social (Suas). Padilha também citaa participação dos municípios no pro-cesso de elaboração e acompanhamentodo Programa de Aceleração do Cresci-mento (PAC) e na própria Proposta deEmenda à Constituição (PEC) que tratada reforma tributária.

“A repactuação da federação se dáquando se constroem e se estabelecemcompetências e responsabilidades paraestados e municípios, mas sobre compro-missos nacionais. Porque a federação éum instrumento estratégico do fortaleci-mento do projeto nacional”, afirma. Isso,diz ele, significa enfrentar as desigualda-des regionais, promover a inclusão social,uma educação de qualidade e retomar odesenvolvimento. d

14 A - 04/16/2008 16:25:26

Page 28: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

30 Desafios • março de 2008

P o r R i c a r d o W e g r z y n o v s k i , d e B r a s í l i a

Às vésperas de alcançar por antecipação a meta de acesso à água em áreasurbanas estabelecida para 2015 pela Organização das Nações Unidas (ONU),o Brasil ainda enfrenta enormes desaf ios, como um grande número deresidências sem esgoto tratado, além das desigualdades regionais e atémesmo raciais – comparados à população branca, o dobro dos negros e pardos sofre com a falta de saneamento

SANEAMENTO

tão longe

Brasil evoluiu em termos de saneamento básico, mas ainda há muito por fazer. Estudo dapesquisadora Maria da Piedade Morais, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea),revela que são 14,2 milhões de pessoas sem água canalizada, 34,5 milhões sem esgoto por redeou fossa séptica e 4,4 milhões sem coleta de lixo, apenas nas áreas urbanas.“Falta saneamento

básico adequado principalmente para a população mais pobre, e nas áreas rurais a cobertura continuamuito pequena”, diz a pesquisadora. O estudo foi elaborado com base em dados da Pesquisa Nacionalpor Amostra de Domicílios (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Os progressos alcançados no acesso ao saneamento básico foram os seguintes: a parcela demoradores em domicílios particulares permanentes urbanos no Brasil que em 2001 não tinha águacanalizada de rede geral era de 12,3%, e caiu para 9,1% em 2006; a parcela sem esgoto de rede geral oufossa séptica caiu de 26,0% para 22,2% no mesmo período; a parcela sem coleta de lixo caiu de 5,7%para 2,9%; e a parcela com saneamento básico inadequado, considerando água, esgoto e lixo simul-taneamente, caiu de 30,9 % em 2001 para 26,8% em 2006.

O

Tão perto e

das soluções

14 B - 04/16/2008 16:25:26

Page 29: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

Desaf ios • março de 2008 31

Foto: Delfim Martins/Pulsar

15 A - 04/16/2008 16:25:26

Page 30: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

32 Desafios • março de 2008

P r i m e i r a d i s p a r i d a d e é d e o r d e m r a c i a l , e m q u e a p r o p o r ç ã o d a p o p u l a ç ã o

Apesar dos avanços, as estatísticasmostram que ainda predomina a desigual-dade no acesso a esses serviços públicos.Aprimeira disparidade é de ordem so-cioeconômica e racial. Segundo Maria daPiedade, “mesmo com a queda das desi-gualdades raciais, os indicadores para apopulação branca são bem mais favoráveisque os da população preta e parda, como éo caso da falta de acesso a água, esgoto esaneamento básico adequados. A propor-ção da população preta e parda que sofredesses problemas é cerca do dobro dapopulação branca”, comenta, analisandoos indicadores urbanos de 2001 a 2006.

Outra disparidade é observada entre asregiões brasileiras. “As desigualdades re-gionais no acesso a saneamento básicoadequado ainda permanecem em patamarbastante elevado, tendo inclusive au-mentado a distância entre os indicadoresda região mais bem servida de saneamen-to, o Sudeste, e a que tem os piores indi-cadores, o Norte”, declara Maria da Pie-dade. Segundo a pesquisadora, o per-centual de moradores em domicílios par-ticulares permanentes urbanos sem sanea-mento básico adequado, considerandoágua, esgoto e lixo simultaneamente, al-cançava 59,5% na região Norte em 2006;na região Centro-Oeste era de 53,1%; naregião Nordeste, de 44,3% na região Sul,de 21,0%; e na região Sudeste, o déficit de saneamento era de apenas 10,7%.

Esses problemas foram discutidos noworkshop intitulado Saneamento, Saúde eMeio Ambiente, organizado em março pe-lo Ipea, em Brasília. O termo saneamentoengloba vários itens, entre eles abasteci-mento de água,esgotamento sanitário,tra-tamento de resíduos sólidos e drenagemurbana. Dados da Pnad informam que73,2% da população urbana possui os serviços de saneamento adequado – águacanalizada de rede geral, esgoto por redegeral ou fossa séptica e coleta direta eindireta de resíduos sólidos.

Numa comparação internacional, oBrasil também não faz boa figura. Emserviços de esgoto, a cobertura no paísestá três pontos percentuais abaixo damédia da América Latina e do Caribe e auma distância de 15 pontos percentuaisda Argentina e do Chile. Na comparaçãocom a cobertura média de esgoto dospaíses desenvolvidos, o Brasil está mais de20 pontos percentuais abaixo.

Ronaldo Serôa da Mota, pesquisadordo Ipea e atual diretor da Agência Na-cional de Aviação Civil (Anac), afirmano livro Regulação e Concorrência noBrasil: Governança, Incentivos e Eficiênciaque, “a despeito do crescimento na co-bertura dos serviços, o acesso das cama-das mais pobres da população está aindamuito abaixo daquele usufruído pelosmais ricos”. Cita dados dos censos de-mográficos de 1980 a 2000 e mostra que

as famílias com renda acima de dez salá-rios mínimos têm cobertura de água50% maior e, na coleta de esgoto, qua-se 100%, concluindo que os investimen-tos, embora majoritariamente públicos,“não conseguiram anular os efeitos daconcentração de renda”.

METAS A Assembléia Geral da Organiza-ção das Nações Unidas (ONU) elegeu2008 como o International Year of Sanita-

Com o PAC, meta relativa a esgoto deverá ser...

Carências diminuem, mas ainda são elevadas

Moradores em domicílios particulares permanentes urbanos por tipo de carência de saneamento básico –

Brasil, 2001/2006 (em % e pontos percentuais)

Fonte: Ipea, a partir de microdados das Pnads 2001-2006

Carências de saneamento 2001 2002 2003 2004 2005 2006 Variação

(em %) (em %) (em %) (em %) (em %) (em %) 2001-2006

Sem água canalizada de rede geral 12,3 11,4 11,8 10,5 10,2 9,1 -3,2

Sem esgoto de rede geral ou fossa séptica 26,0 25,1 24,3 23,9 22,7 22,2 -3,8

Sem coleta de l ixo 5,7 4,7 4,0 4,3 3,4 2,9 -2,8

Saneamento básico inadequado 30,9 30,0 29,2 28,7 27,8 26,8 -4,1

15 B - 04/16/2008 16:25:26

Page 31: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

Desaf ios • março de 2008 33

n e g r a e p a r d a s em a c e s s o a á g u a e e s g o t o é o d o b r o d a p o p u l a ç ã o b r a n c a

tion (que as organizações do setor noBrasil traduziram como o “Ano Interna-cional do Saneamento”). Segundo a enge-nheira sanitarista Mara Carneiro de Oli-veira, da Organização Pan-Americana daSaúde (Opas) no Brasil, ações estão sendoimplementadas na área de saneamentotendo em conta a relevância e urgência dotema, como os investimentos do Progra-ma de Aceleração do Crescimento (PAC).

O plano prevê que, até 2010, mais 24,5milhões de pessoas terão abastecimentode água e mais 25,4 milhões terão coletaadequada de esgoto (ver o texto “Os núme-ros do PAC de Saneamento” na página 36).A expectativa do governo brasileiro é dealcançar em quatro anos a meta relativa asaneamento dentro do objetivo de garan-tir a sustentabilidade ambiental, estabe-lecido pela ONU como um dos oito Ob-jetivos de Desenvolvimento do Milênio(ODM): reduzir à metade a proporção dapopulação sem acesso permanente e sus-tentável a água potável e esgotamentosanitário até 2015. Mara Carneiro tam-bém ressalta as conexões entre saúde, ur-banização e meio ambiente, fato reco-

nhecido pela Organização Mundial daSaúde (OMS), cujo Programa de CidadesSaudáveis tem projetos-piloto no Brasil.

Como reflexo da abundância de águadoce no território nacional, o Brasil, nestequesito, está melhor. A pesquisadora Ma-ria da Piedade é otimista. “Considerandoque a proporção da população urbanacom cobertura pelos serviços de abaste-cimento de água por rede geral canalizadano interior do domicílio em 1992 – ano-base para o estabelecimento da meta – erade 82,3% e que a meta para 2015 é alcan-çar 91,2% da população urbana, mantidoo ritmo de crescimento da coberturadesses serviços, que foi de 0,61 pontopercentual ao ano entre 1992 e 2006, oBrasil deverá atingir a meta referente aoacesso a água potável nas áreas urbanasem breve”, diz ela. Por outro lado, segundoMaria da Piedade, nas áreas rurais asmetas ainda demorarão a ser cumpridas.

Quanto ao esgoto sanitário, o país temproblemas que vão desde a insuficiência deindicadores adequados à falta de consensosobre qual seja o método ideal de tratar osdejetos. Para alguns especialistas, o sistema

de fossa séptica não resolve porque faz otratamento primário de esgoto doméstico,mas não o processo completo realizadopor uma estação de tratamento, o que po-deria, com o tempo, atingir os lençóis freá-ticos e poluir rios e o solo. Mas apenas as-sumindo o sistema de fossas sépticas comoaceitável para as áreas urbanas, somado àsredes coletoras, é que o país poderá atingiros objetivos de desenvolvimento da ONUno prazo previsto.

TRÊS DÉCADAS Maria da Piedade estimaque, no caso da cobertura dos serviços deesgoto por rede geral ou fossa séptica nasáreas urbanas, cuja taxa de crescimentomédia observada entre 1992 e 2006 foi de0,85 ponto percentual ao ano, bastarámanter esse ritmo para que a meta seja al-cançada num prazo de seis anos. Contu-do, se for considerado adequado apenas oatendimento da população por rede geralde esgoto, as possibilidades de cumpri-mento da meta são mais remotas e podemdemorar quase três décadas”, ressalta ela.

A pesquisadora do Ipea reconhece que“os investimentos do PAC na área de sa-neamento acelerarão a velocidade de con-vergência do país em direção às metas daONU”, mas adverte que “as médias nacio-nais escondem sempre importantes desi-gualdades regionais e socioeconômicas e éprovável que a meta deixe de ser cumpridapara alguns grupos e regiões específicos”.Maria da Piedade defende a focalizaçãodos recursos nas regiões e populações maisvulneráveis e a manutenção dos investi-mentos em níveis elevados por um perío-do mais longo, e não somente entre 2007 e 2010, como prevê o PAC.

Em seu livro, Serôa da Motta tambémdiz que “as estimativas das necessidades desaneamento no Brasil ainda sugerem umesforço de investimento bastante signifi-cativo. Para atingir metas razoáveis de co-bertura de serviço nos próximos 20 anos,estimou-se um montante de investimentosna ordem de US$ 60 bilhões.Isso significa-ria uma taxa de inversão anual de 0,5% doProduto Interno Bruto (PIB) no período”.

...alcançada antes de um prazo de seis anos

Desigualdades regionais

em suave quedaMoradores em domicílios particulares

permanentes urbanos sem saneamento

básico adequado, segundo as grandes

regiões – Brasil, 2001/2006

(em % e pontos percentuais)

Fonte: Ipea

Regiões 2006 Variação

(em %) 2001-2006

Norte 59,5 -7,3

Nordeste 44,3 -5,2

Sudeste 10,7 -3,2

Sul 21,0 -6,5

Centro-Oeste 53,1 -2,1

Brasil 26,8 -4,1

Foto: Delfim Martins/Pulsar

16 A - 04/16/2008 16:25:26

Page 32: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

34 Desafios • março de 2008

A s Na çõe s Un i d a s e l e ge ram 2008 c omo o A no I n t e r n ac i o n a l d o S aneamen to e

Rogério de Paula Tavares, superinten-dente de saneamento e infra-estrutura daCaixa Econômica Federal, contudo, temuma interpretação positiva.“É um volumede recursos nunca antes visto em termosde investimentos no setor”. Cita que, em2007, a Caixa viabilizou recursos de R$3,2 bilhões e os repasses não onerosospelo Ministério das Cidades (MC) ultra-passaram R$ 8 bilhões”. Segundo ele, ameta de R$ 40 bilhões de investimentosserá alcançada e vai “fazer a diferença emtermos do setor no Brasil.”

A MELHORAR O governo federal tambémtem a visão de que há muito a melhorar emsaneamento. Segundo o secretário nacio-nal de saneamento ambiental do MC, Leo-degar Tiscoski, “os números do Brasil naágua são razoáveis, mas no esgoto são real-mente muito ruins.Apenas 48% do esgotoé coletado no Brasil e só 32% desse volumeé tratado”. Ele diz que no resto do mundoos números não são muito diferentes, masisso não deve servir de consolo.“No mun-do, há 2,5 bilhões de pessoas sem sanea-mento, e 1 bilhão delas são crianças. Osíndices da Organização Mundial da Saúdeapontam que 1,5 milhão de crianças mor-rem anualmente por falta de investimentosem saneamento”, afirma.

Para a pesquisadora Maria da Piedade,é preciso aumentar os recursos destinadosà coleta e tratamento de esgoto, dentro deum conjunto de ações de universalizaçãoda água e esgotamento sanitário adequa-do que leve em conta as diferenças regio-nais e sociais. “O aporte de recursos devevisar principalmente áreas ocupadas pelapopulação de baixa renda, os negros, osmoradores de assentamentos precários,periferias de grandes cidades, municí-pios de pequeno porte e áreas rurais, seg-mentos em que o déficit de saneamentoadequado ainda é muito elevado. As desi-gualdades regionais também são um im-portante desafio. Indicadores de acesso a saneamento adequado nas regiões Nor-te, Nordeste e Centro-Oeste estão bemabaixo dos das regiões Sudeste e Sul”.

O diretor de articulação institucionalda Secretaria Nacional de SaneamentoAmbiental do MC, Sérgio Antônio Gon-çalves, chama a atenção para um dosprincipais problemas do saneamento, oesgotamento sanitário. A maioria dosresíduos é enterrada ou vai parar em rios,diz, com apenas um terço do esgotocoletado recebendo algum tipo detratamento.“O esgoto é a grande dívida dosaneamento. O desafio de coleta é grandee o de tratamento é maior ainda.”

Outro ponto fundamental no setor é aquestão da saúde. As estatísticas indicamque quanto mais se investe em sanea-mento, menos é preciso gastar em saúde.

O assessor especial do ministro da Saú-de, responsável pelos departamentos deSaúde Ambiental e Saúde do Trabalhador,Guilherme Franco Netto, defende a vigi-lância da qualidade da água como fatorpreponderante para a “interação entre aspolíticas de saúde e meio ambiente”. Elecita como exemplo um agricultor queprovoque erosão e poluição nos rios,o queirá diretamente afetar o ser humano que sealimentar de peixes não-saudáveis. Oassessor defende também que a popula-ção seja vigilante dos seus direitos quan-to aos serviços de saneamento.

Também é fundamental para a saúde aqualidade da água, que deve não só ser

Raça 2001 2002 2003 2004 2005 2006

Brancos 21,7 21,2 20,4 19,9 19,8 18,7

Pretos e Pardos 42,8 41,1 40,0 39,3 36,9 35,9

Gap 21,1 20,0 19,7 19,3 17,1 17,2

Desigualdades raciais evoluem poucoMoradores em domicílios particulares permanentes urbanos sem saneamento básico

adequado, segundo as raças – Brasil, 2001/2006 (em % e pontos percentuais)

Fonte: Ipea

Quanto mais se investe em saneamento, menos é preciso gastar em saúde

Foto: Delfim Martins/Pulsar

16 B - 04/16/2008 16:25:26

Page 33: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

Desaf ios • março de 2008 35

o Bras i l , c om o PAC , que r a l c ançar po r an tec i pação a me ta da ONU para 2015

potável para ingestão direta, mas adequa-da ao preparo de alimentos, higiene pes-soal, agricultura, higiene do ambiente,processos industriais e atividades de lazer.Maria da Piedade também alerta que “aqualidade disponível para consumo hu-mano tem sido um problema cada vezmais preocupante em muitas cidades,sobretudo nas grandes metrópoles”.

Nessas áreas,a degradação dos recursoshídricos, causada pela superposição deproblemas como poluição doméstica e in-dustrial e a ocupação irregular de encostas,alagados, várzeas e beiras de rio, compro-mete a capacidade de abastecimento dosmananciais. “O resultado é a escassez deágua adequada para consumo humano e adegradação do meio ambiente”, sentencia,citando que a existência de esgoto a céuaberto foi apontada pelos gestores munici-pais como um dos principais problemasambientais a afetar a qualidade de vida dapopulação,de acordo com a Pesquisa Bási-ca de Informações Municipais do IBGE.

CONSTITUIÇÃO Para Sérgio Antônio Gon-çalves, do MC, o problema vai além deverbas e investimentos. Ele argumentaque, apesar do esforço recente de integra-ção entre diversos órgãos governamentaisque atuam no saneamento, os problemasgerenciais persistem e o Brasil precisa superar a fragmentação das políticas pú-blicas “Muitos ministérios fazem sanea-mento. O governo não sabe exatamentequanto se gasta no setor”, diz.

Segundo Gonçalves, a ConstituiçãoFederal de 1988 foi um marco para osetor, permitindo que prefeituras, gover-nos estaduais e o governo federal se asso-ciem para prestar os serviços. No entanto,ainda hoje há divergências sobre a titu-laridade dos serviços. A disputa jurídicatramita no Supremo Tribunal Federal(STF) desde 1998 para decidir a quemcompete prestar o serviço.

O pesquisador do Ipea Valdemar Fer-reira de Araujo Filho, ex-integrante daSecretaria Nacional de Saneamento, dizque, “fora das regiões metropolitanas, o

problema da titularidade está definido: otitular é o município”. Quanto às metró-poles, onde se concentra grande parte dapopulação e os serviços são mais rentáveis,ele estima que “o STF vai adotar umaposição híbrida – tende a afirmar a titula-ridade municipal, porém definindo dire-trizes para que a execução e a gestão dos

serviços de saneamento ocorram de for-ma compartilhada. Caso isso se confirme,será uma perspectiva correta”, acrescenta,comparando essas áreas a “uma única cida-de dividida em várias municipalidades”.

Segundo Sérgio Gonçalves, outro mar-co institucional do setor de saneamento éa Lei nº 11.445, sancionada em janeiro doano passado, que estabelece as diretrizesnacionais para o saneamento básico e paraa política federal do setor.Valdemar Arau-jo pondera que “a lei apenas define com-petências para os diversos agentes inter-venientes no setor e estabelece as diretrizesgerais para a execução da política. Neces-sita inclusive de regulamentação, mas éum avanço após cerca de 20 anos sem ummarco regulatório geral”.

Serôa da Motta também cita em seulivro que parte da incapacidade de asempresas de saneamento retomarem oinvestimento deveu-se à manutenção de“suas desgastadas e viciadas práticas degestão associadas a uma ausência de mar-co regulatório que introduzisse incentivosà eficiência. Paralelamente, o setor privadotambém não encontrava sinais regulató-rios claros e estáveis para se expandir,e sua

Ministério da Saúde (MS)

A importância para a promoção e

prevenção de riscos à saúde

Ministério do Meio Ambiente (MMA)

A importância para a proteção dos mananciais

de abastecimento para consumo humano

Ministério das Cidades (MC)

A importância como agente indutor de melhoria

da qualidade dos serviços com participação social

Ministério da Justiça (MJ)

A importância do direito à informação clara e

precisa sobre a qualidade para consumo humano

A missão de cada ministériona questão da água

Fonte: Ipea

O calcanhar-de-aquiles do setor é a poluição hídrica causada pela falta de tratamento de esgotos

Foto: Delfim Martins/Pulsar

17 A - 04/16/2008 16:25:26

Page 34: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

36 Desafios • março de 2008

Cons t i t u i ção de 88 perm i te que p re fe i t u ras se assoc i em para p res ta r se r v i ços

O Programa de Aceleração do Cres-cimento (PAC) prevê investimentos de R$40 bilhões na área de saneamento básicoentre 2007 e 2010. Desse total, R$ 12 bi-lhões são recursos a fundo perdido do Or-çamento Geral da União (OGU), sendo R$4 bilhões destinados ao saneamento inte-grado em favelas e palafitas, R$ 4 bilhõespara aumentar a cobertura de água,esgo-to, destinação final de lixo e drenagem ur-bana em cidades de grande e médio porte(incluindo desenvolvimento institucional)e R$ 4 bilhões para ações de saneamentoem cidades de até 50 mil habitantes.

O PAC contempla ainda investimentosde R$ 20 bilhões oriundos do Fundo deGarantia do Tempo de Serviço (FGTS) e do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT),sendo R$ 12 bilhões destinados ao se-tor público (estados, municípios e compa-nhias de saneamento) e R$ 8 milhões pa-ra financiamento ao setor privado (presta-dores privados e operações de mercado).Outros investimentos de R$ 8 bilhões se-rão oriundos de contrapartidas de esta-dos, municípios e prestadores de serviços.

Com esses investimentos, o governoestima que conseguirá, em quatro anos,beneficiar mais 24,5 milhões de pessoascom abastecimento de água; mais 25,4

milhões com a coleta de esgoto e mais31,1 milhões com a destinação final deresíduos sólidos.

O Sudeste será a região mais benefi-ciada com os recursos do PAC, com R$15,5 bilhões (38,7% do total), seguido doNordeste, com R$ 9,6 bilhões (24% dototal), do Sul, com R$ 7,4 bilhões (18,5%),do Norte, com R$ 3,9 bilhões (9,8%), e do Centro-Oeste, com R$ 3,6 bilhões (9%).

O governo federal conseguiu con-tratar um total de R$ 15 bilhões já no primeiro ano do PAC, com 84% dessesinvestimentos (R$ 12, 6 bilhões) con-centrando-se em regiões metropolitanas,capitais e municípios com mais de 150mil habitantes.

Segundo Sérgio Antônio Gonçalves,diretor de articulação institucional da Se-cretaria Nacional de Saneamento Ambien-tal do Ministério das Cidades (MC), a alo-cação dos recursos do PAC fundamentou-se em mecanismos de cooperação federa-tiva e critérios técnicos mínimos para ga-rantir a execução ágil e qualificada dosempreendimentos.A seleção dos empreen-dimentos seguiu os seguintes princípios:demanda livre, pré-seleção técnica e pac-tuação federativa (três níveis de governo)em mesa de negociação.

Os números do PAC de Saneamento

participação hoje não ultrapassa 4% dacobertura total do país, estando todaconcentrada nas concessões municipais”.

O secretário nacional de Saneamento,Leodegar Tiscoski, diz que o investimento

Foto: Delfim Martins/Pulsar

previsto no PAC “multiplica o que vinhasendo gasto no setor, e só por isso já é váli-do. Vamos administrar para que os re-cursos sejam bem empregados”. Já Val-demar Araujo, do Ipea, diz que “ainda

é muito cedo para avaliar o PAC, poisagora é que as contratações se iniciaram,mas do ponto de vista da ampliação dacobertura dos serviços é um avanço”. Se-gundo ele, é preciso “saber se os investi-mentos terão continuidade e qual será o modelo de gestão do setor no futuro”.

AVALIAR O PAC A professora ClariceMelamed, da Fundação Oswaldo Cruz(Fiocruz), é mais pessimista quanto àsações de governo. “Temos problemascom o modelo de política pública eproblemas de influência partidária”, diz,citando a favela de Manguinhos, no Riode Janeiro, onde trabalha. E completa:“Muitas das teorias públicas nãofuncionam”. Clarice Melamed é aindamais provocativa ao convidar todos osdiretores e políticos envolvidos com sa-neamento a conhecer in loco a realidadedas favelas cariocas.“Os mais pobres têmmenos saneamento, é isto que temos quediscutir”, reclama.

A professora critica também os gastospúblicos. Segundo ela,“o governo não temcontrole, falta transparência. É impossívelver aonde os recursos vão parar”. Já osecretário Leodegar Tiscoski afirma haverinúmeros critérios para os investimentos,tanto dos municípios como dos governosestaduais e até da iniciativa privada. “Étodo um processo de seleção, fruto dabusca de cada uma das operadoras, quesão os mecanismos para execução dessesrecursos”. Quanto à fiscalização dos re-cursos, segundo ele,“o acompanhamentose dá por conta dos agentes financeiros,como a Caixa Econômica Federal e oBanco Nacional de DesenvolvimentoEconômico e Social (BNDES)”.

Os especialistas também reclamam dafalta de indicadores confiáveis para a ava-liação das políticas na área e de recursospara pesquisas. Clarice Melamed diz que,mesmo no ambiente acadêmico, as pes-quisas têm pouco incentivo. “Procura-mos indicadores como eficácia, eficiên-cia, efetividade, e isso no Brasil é pratica-mente impossível”, diz a professora. d

17 B - 04/16/2008 16:25:26

Page 35: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

s ideologias sempre foram imprescindí-veis. Aqueles que advogam sua morte sãoos remanescentes do pensamento único etemem um franco e democrático embate

sobre as alternativas de desenvolvimento. É nestesentido que o sociólogo Pierre Bourdieu sugereque a manutenção da atual ordem simbólica,construída e difundida pelos economistas libe-rais, é vital para o funcionamento da ordem eco-nômica contemporânea.

Por isso mesmo, o combate ao reducionismoeconômico da complexidade social deve-se dartambém no plano ideológico. De fato, o cenárioatual revela-se pouco auspicioso a uma perspectivade desenvolvimento nacionalista (sem cacoete xe-nófobo),especialmente se proveniente da periferia,e a culpa não é tanto da chamada globalização.Sucede que o atual regime econômico internacio-nal – com agências multilaterais associadas à finan-ça desregulada e à defesa da “liberdade” irrestritapara a ação das empresas transnacionais – tende aconstranger estratégias alternativas, embora as pri-meiras rachaduras neste edifício já se façam sentir.

Muito longe estaríamos da verdade se jogásse-mos a culpa apenas no inimigo externo.Seria des-considerar que o Brasil conta hoje com uma inve-jável tropa de choque liberal. Esta confraria, queainda encontra respaldo em segmentos do gover-no, estabelece a sua artilharia verbal a partir deimportantes pontos da academia, da mídia e dosetor financeiro. Uma verdadeira comunidade deespírito, onde todos os meios são dispostos parase assegurar o fim idílico do investment grade.

Mas, tal como os maçons do passado, seu vín-culo primordial está no exterior. Recebem seuscanudos nas universidades norte-americanas, en-riquecem no mercado financeiro sem fronteiras eescrevem seus libelos colonizados sob aplausosdos editores nacionais. O vínculo forte com o ex-terior faz com que se pensem cosmopolitas. Masnão o são.Seu cosmopolitismo se resume a copiarestilos, padrões de consumo e a desprezar o po-pular e nacional.Ainda não compreenderam queo que se vende como cosmopolita é apenas acultura do país dominante no cenário internacio-nal.Assim, não pensam em desenvolver o Brasil apartir da sua realidade.Apenas defendem um tipode inserção externa e de capitalismo, cujos fins

únicos são a inflação baixa, a segurança jurídica ea enxurrada de capitais sem distinção.

Importa ressaltar, porém, que nem sempreprevaleceu na história do país este saber comhorror à evidência empírica e profundo desprezopela realidade nacional. Como lembra LourdesSola, até o golpe de 1964, os economistas brasi-leiros podiam ser considerados técnicos em fins etravaram uma batalha fervorosa, no governo e naopinião pública, acerca dos melhores caminhospara se industrializar o país. Eram todos de umaou outra forma desenvolvimentistas.

Mas, a partir dos anos 1990, desembarcou nopaís a UDN econômica, segundo Paulo NogueiraBatista Jr. Praticamente proscritos da vida públicapor cerca de 60 anos – não coincidentemente, operíodo em que vivemos crescimento econômicoe diversificação produtiva –, eles voltaram à cargacom um ativo, a baixa inflação, que pouco com-pensa o imenso passivo deixado: estouro das con-tas externas, dívida pública estratosférica, cresci-mento pífio, explosão do desemprego e da exclu-são social. Hoje, quando o Brasil volta a crescer, oEstado recupera o seu papel de coordenação eplanejamento dos investimentos e os indicadoressociais melhoram, os mesmos exterminadores dofuturo vêm a público dizer que o crescimentoeconômico atual é simplesmente resultado daspolíticas dos anos 1990. Trata-se do últimosuspiro daqueles que vão ficando para trás.

Por outro lado,o que o Brasil precisa,daqui emdiante, é de mais ousadia. Este salto só se faz pos-sível a partir de uma revisão dos termos do debateatual: desenvolvimento não é expansão do Pro-duto Interno Bruto (PIB); pobreza não é apenasmedida; emprego é mais que fator trabalho;inserção externa não quer dizer atração de inves-timentos; e conhecimento vai muito além de tec-nologia importada. Em síntese, a mera aceitaçãoda idéia de projeto nacional é uma das condiçõespara prosseguirmos, de forma original, a nossaconstrução interrompida.

Desaf ios • março de 2008 37

R i c a r d o L . C . A m o r i m e

A l e x a n d r e d e F . B a r b o s aARTIGO

Os falsos cosmopolitas

A

Hoje, quando

o Brasil volta a crescer,

o Estado recupera o seu

papel de coordenação e

planejamento dos

investimentos e os

indicadores sociais

melhoram, os mesmos

exterminadores do

futuro vêm a público

dizer que o crescimento

econômico atual

é simplesmente

resultado das políticas

dos anos 1990.

Trata-se do último

suspiro daqueles que

vão ficando para trás

Ricardo Luiz Chagas Amorim (foto) é pesquisador do Instituto de Pesquisa

Econômica Aplicada (Ipea) e do Instituto de Economia da Unicamp e professor

licenciado da Universidade Mackenzie

Alexandre de Freitas Barbosa é pesquisador do Centro Brasileiro de Análise

e Planejamento (Cebrap)

18 A - 04/16/2008 16:25:26

Page 36: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

38 Desafios • março de 2008

Pensando noDEMOGRAFIA

Foto: Other Images

18 B - 04/16/2008 16:25:26

Page 37: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

Desaf ios • março de 2008 39

P o r J o r g e L u i z d e S o u z a , d e S ã o P a u l o

A elevação da idade da população, ao mesmo tempo que as famílias brasileiras ganham novo formato,principalmente pela maior inserção das mulheres no mercado de trabalho, exige novas políticas públicasvoltadas para os mais velhos. Uma pesquisa que deverá ser concluída até o f inal deste ano faz oprimeiro retrato nacional das instituições de longa permanência para idosos e começa a preparar opaís para planejar ações adequadas à nova realidade

esde cerca de 40 anos atrás, a sociedade brasileira vemexperimentando queda acelerada na fecundidade e namortalidade, adiamento na idade ao casar e aumentono número de separações, de recasamentos e de pes-

soas que nunca se casam. Ao mesmo tempo, cresce de formageneralizada a escolaridade feminina, com inserção maciçadas mulheres no mercado de trabalho e se modificam os la-ços entre gerações e o sistema de valores familiares. A resul-tante é uma sociedade diferente, com novos problemas. Umdeles é a elevação da idade da população e o aparecimento de um grande contingente “muito idoso”, e o futuro prome-te aumento de idosos demandando cuidados e diminuição de descendentes para cuidá-los.

“Isso levanta a questão de quem oferecerá cuidados para essesidosos: família ou instituições?”, indaga a pesquisadora AnaAmélia Camarano, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada(Ipea). Desde o ano passado, ela comanda uma equipe que reali-za a primeira pesquisa no país sobre instituições de longa perma-nência para idosos.“O valor brasileiro é de que a família tem quecuidar. Assim está na Constituição de 1988, na política nacionaldo idoso, de 1994, e no Estatuto do Idoso, de 2003. Então, o pre-conceito já existe e a política reforça o preconceito. As famíliasque colocam os idosos em instituições são vistas como abando-nando o idoso, e o idoso se sente rejeitado pela família. Assim, seestá ignorando as grandes mudanças na família”, diz ela.

A pesquisa é uma parceria do Ipea com a Secretaria Especialdos Direitos Humanos (SEDH) da Presidência da República e o

Conselho Nacional dos Direitos do Idoso (CNDI). Espera-seapurar cerca de 6 mil instituições com 100 mil idosos. “Não sesabe no Brasil quantas instituições existem, que tipos de serviçoelas oferecem, quantos idosos estão nelas, quem vai para essasinstituições, não se sabe absolutamente nada e se tem um pre-conceito muito grande. Mas é uma alternativa de cuidado com osidosos que tende a crescer muito”, diz Ana Amélia.

Já está publicada a parte relativa à região Norte e pronta a doCentro-Oeste. A pesquisa da região Sul está em fase final, a doNordeste, na metade do trabalho, e, na região Sudeste, com doisterços das instituições do país, a pesquisa está apenas começan-do. Os resultados parciais já permitiram identificar uma impor-tante diferença regional: tanto no restante do Brasil como emoutros países, há mais mulheres que homens residindo nesse ti-po de instituição, mas, em quase todos os estados do Norte e doCentro-Oeste, os homens são maioria.

Segundo a assistente social Tomiko Born, que tem três déca-das de experiência em instituições para idosos,“muitos homensmigraram para trabalhar, no começo provavelmente na extraçãode borracha nos seringais, depois na construção de estradas e àprocura de pedras e metais preciosos, e não constituíram família.O resultado nessas regiões é uma população bastante diferente.Pelo menos no Sudeste, a população nas instituições é majorita-riamente feminina. O homem, se fica viúvo, facilmente constituinova família, enquanto a mulher viúva tem muito mais dificul-dade de fazer um novo casamento. Um dos principais motivos dainternação no Sudeste é a viuvez no caso da mulher”.

D

futuro dos idosos

19 A - 04/16/2008 16:25:26

Page 38: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

40 Desafios • março de 2008

N o No r t e e C e n t r o - O e s t e , o s h ome n s s ã o ma i o r i a n a s i n s t i t u i ç õ e s d e l o n g a

A psicóloga Eloísa Adler Scharfstein,cuja tese de doutorado na UniversidadeFederal do Rio de Janeiro (UFRJ) foi sobreinstituições de longa permanência paraidosos, relembra que o único estudo sobreo tema no país que ela pôde dispor era so-mente sobre o Rio de Janeiro, feito em1999. Mais recentemente, por iniciativa daFundação Perseu Abramo e do ServiçoSocial do Comércio (Sesc), em 2006, olevantamento “Idosos Brasileiros” captoucomo as instituições de longa permanên-cia são percebidas entre as alternativas decuidado para os idosos dependentes. AnaAmélia estima que no país haja 2,2 mi-lhões de idosos que têm “dificuldades gra-ves”para as atividades diárias.“Quer dizer,tirando os que estão em instituições delonga permanência, as famílias cuidam –ou descuidam – de 2,1 milhões”, diz.

VISÃO NEGATIVA Segundo Ana Amélia,“osidosos de hoje nasceram em uma épocaem que o papel da família (em especial, damulher) como a cuidadora dos membrosdependentes era claramente estabelecido”e há “uma expectativa elevada, por par-te dos idosos, de receberem o cuidado fa-miliar”. Isto explica por que, “em geral,as famílias que decidem pela institucio-nalização de seus idosos são vistas comopraticando o abandono e tendem a expe-rimentar forte sentimento de culpa”. To-miko Born diz que para combater essarejeição “temos que melhorar muito aqualidade das nossas instituições de lon-ga permanência. Na situação atual, mui-tas estão em estado lamentável”.

Eloísa Adler acrescenta que “não é à toaque as instituições de longa permanênciasejam muito malvistas, porque original-mente eram chamadas de asilos e estavamvinculadas à pobreza, abandono e desam-paro”. Segundo Ana Amélia, há dessas ins-tituições “desde o século XVI na Europa, eno Brasil desde o século XIX,mas eram asi-los que misturavam loucos, mendigos, va-gabundos e idosos. Era para tirá-los da so-ciedade. Parte do preconceito vem daí”.Eloísa conta que “há uma instituição no Rio

de Janeiro que na entrada tem uma placa,colocada por D. Pedro II, que diz ‘Asilo dasMendicidades’. Carregamos essa herançade pensar nas instituições de longa perma-nência como um depósito de velhos”.

Entretanto, Eloísa revela o outro ladodessa moeda. Ela pesquisou em uma ins-tituição vinculada a uma ordem religiosaque nos anos 1980 conseguiu um prédioresidencial muito aconchegante para sera moradia coletiva de idosos que se cha-mavam de irmãos remidos, mas, comooutras instituições filantrópicas, foi em-pobrecendo e acabou sem recursos paramanter essa casa.“Os idosos foram morarno hospital da instituição mantenedora.Quando entrei lá, me lembrei de quandoa velhice era vista como doença, quandose dizia que o lugar de velho é o hospital.

No entanto, ao falar com eles, notei, paraminha surpresa, que esses velhos estavamem uma situação de amparo. Uma idosadisse ‘eu tenho família’. Eu precisei de um tempo para me reformular.”

Outra vertente é dos idosos que esco-lhem morar em uma instituição. SegundoEloísa,“pertencer a uma entidade religiosa,como a categoria de irmão remido, é o res-gate de uma identidade em uma fase da vi-da com tantas perdas. Há ainda o exemploda identidade profissional, como é o Retirodos Artistas, que é um condomínio, umespaço de moradia para os artistas. Outroviés é o étnico, como comunidades de imi-grantes – a dos espanhóis, por exemplo –que criam seu ninho. Ter um espaço demoradia para idosos é um dos compro-missos dessas comunidades”.

A imagem mais comum dos idosos no Brasil atual associa a idade avançada com saúde, e não mais com a visão...

19 B - 04/16/2008 16:25:26

Page 39: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

Desaf ios • março de 2008 41

p e rmanên c i a p a ra i d o s o s , ao c o n t r á r i o d a r eg ra n o S u l d o p a í s e d o ex t e r i o r

Tomiko Born ressalta que há grandediversidade de situações conforme o ta-manho da família e a metropolização dapopulação brasileira. “Eu moro em umapequena cidade do Sul de Minas, de 13mil habitantes, e as famílias ainda cuidamdos seus idosos. Conheço uma famíliaaqui que a cada noite um dos filhos vaidormir com a mãe idosa, e durante o diaela fica na casa dela com uma empregada.Mas é preciso ter sete filhos, ou, quem sa-be, oito, para conseguir isso.” Para ela,no interior é mais forte a tendência “de se condenar a família dizendo que ela es-tá rejeitando o idoso”.

JAPÃO E CUBA Viagens de Ana Amélia eTomiko ao Japão estão por trás da novapesquisa.“Voltei com essa idéia. O núme-

ro de instituições lá está crescendo muitorapidamente desde que criaram uma con-tribuição para os trabalhadores a partirdos 40 anos”, diz Ana Amélia. O Japão é tomado como referência porque o enve-lhecimento da população japonesa foi an-terior ao envelhecimento da populaçãobrasileira. “Estive no Japão pela primeiravez em 1958”, conta Tomiko, que é des-cendente de japoneses, nascida em SãoPaulo, “quando visitei uma instituição,e voltei alguns anos mais tarde e vi que jáhaviam passado para outro estágio deatenção ao idoso, que era não mais umabrigo apenas, mas um local de cuidadosespecializados.”

Ela explica que o nome em japonês é“a tradução da expressão americana spe-cial care unit, porque o Japão já estavapercebendo que, com a elevação da ex-pectativa de vida, não só aumentava onúmero de idosos como também o nú-mero de idosos com dependência. Daí,não é suficiente oferecer casa e comida,mas é preciso oferecer também serviçosespecializados – enfermagem, reabilita-ção e assistência médica”. No Brasil, elatrabalhou em uma instituição para ido-

...negativa do isolamento e do abandono em asilos

Não idosos conhecem maisProporção da população entrevistada que declarou ter conhecimento da existência

de instituições de longa permanência para idosos (ILPI) por tipo e grupos de

idade – Brasil, 2006

Nota: Total = 2.673; Não Idosos = 1.608; Idosos = 1.065Fonte: Fundação Perseu Abramo/Sesc (2006) – Idosos no Brasil

Conhece Só Pública Só Privada Ambas

100

75

50

25

0

Não Idoso Idoso Total

Foto: Eduardo Knapp/Folha Imagem

sos de origem japonesa criada há 50anos.“Na ocasião, a idéia era dar amparoaos idosos que não tinham família, jo-vens que vieram como parte de uma fa-mília artificial como a que aparece nofilme Gaijin. Com o tempo, passou a serprocurada por famílias de classe média,sem dificuldade econômica para cuidardos idosos, porém com dificuldade paracuidar de idosos dependentes.”

Em Cuba, a psicóloga Eloísa Adler conheceu uma instituição “que lá se cha-ma Casa del Abuelo, onde o idosodependente ou semidependentepassa o dia com toda a assis-tência e no final do dia a fa-mília vai buscá-lo”. SegundoTomiko, “em termos teóricos,nós temos defendido essetipo de regime, em que oidoso pode morar em suacasa e freqüentar a insti-tuição para se beneficiarde alguns programas, masainda não temos muito dessetipo no Brasil”.

Por outro lado, relembraAna Amélia, “o idoso não

Foto: Paulo Brasil

20 A - 04/16/2008 16:25:26

Page 40: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

42 Desafios • março de 2008

Os idosos de hoje são de uma época em que o pape l da mu lher era de cu idadora

precisa morar junto da família para ter afe-to. Às vezes, é até o contrário: morar juntoé um elemento de violência, porque hátensão, atrito em casa. E a família pode darafeto ao idoso residente em uma insti-tuição de longa permanência, visitando oulevando o idoso para casa ou para festas”.Ela conta ainda que há “uma instituiçãoem Porto Alegre em que a família tem achave e pode entrar na hora que quiser”.

Segundo Tomiko Born, “as institui-ções de longa permanência não podem

ser vistas como a única forma decuidar do idoso dependente” e

que os governos devem tam-bém promover “atendimentodomiciliar, formação de cui-dadores e oferecer serviço de

atendimento médico adequa-do, porque, se não houver

essa rede, toda a respon-sabilidade acabará re-caindo nas instituições

de longa permanência paraidosos. E há certas situações

em que não há necessidade de oidoso ir para essas instituições,

mas ele acaba indo por nãohaver alternativas”.

QUEM SUSTENTA Segundo Ana Amélia, asinstituições filantrópicas têm o direito derecolher o benefício de previdência socialdos idosos que abrigam, mas recebemprincipalmente ajuda das comunidades edas igrejas.“Alguns governos estaduais dãoajudas do tipo isenção de conta de luz ou

alimentos como pão. O governo federal dá uma ajuda muito pequena: uma verbaper capita para 685 instituições, de R$ 44por mês para o idoso residente indepen-dente e R$ 66 para o idoso dependente.”

Eloísa Adler diz que a pesquisaIpea/SEDH/CNDI será “de enorme im-

Mais velhos, menos informadosProporção de entrevistados que reconheceram a existência de instituições de

longa permanência para idosos por sexo e grupos de idade – Brasil, 2006

Nota: Não Idosos Homens = 764; Não Idosas Mulheres = 844; Idosos Homens = 396; Idosas Mulheres = 669Fonte: Fundação Perseu Abramo/Sesc (2006) – Idosos no Brasil

Não Idoso 60-69 70-79 80 ou mais

100

75

50

25

0

Homens Mulheres

No Norte e Centro-Oeste, mulheres superam homens somente no Pará e no Distrito FederalComposição por sexo da população idosa residente nas instituições de longa permanência segundo os estados e regiões – 2006-2007

Fonte: Pesquisa Ipea/DNDI/SEDH

RegiãoCentro-Oeste

100

75

50

25

0

Homens Mulheres

Região Norte

Acre Amazonas Amapá Roraima Rondônia Pará Tocantins Mato Grosso Mato Grossodo Sul

Goiás DistritoFederal

Foto: Paulo Brasil

20 B - 04/16/2008 16:25:26

Page 41: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

Desaf ios • março de 2008 43

da fam í l i a e a s s im t êm uma expec t a t i v a e l e vada de r e cebe r o c u i d ado fam i l i a r

portância para os estudos dos governosestaduais, que poderão conhecer quaissão as demandas em seus estados”. ParaTomiko Born, as pessoas ligadas ao tematêm “trabalhado muito no sentido de quecada município e cada estado criem suarede social de proteção do idoso, que de-ve incluir desde instituições de longa per-manência para idosos e outras alternati-vas”. A pesquisa apresenta os resultadospor estados e municípios e com isto favo-rece a formulação de políticas públicas.

A experiência de financiamento dasinstituições em outros países é rica. Alémda contribuição a partir dos 40 anos noJapão,“há o que chamam de reverse mort-gage, em que a pessoa hipoteca a casa evai gastando. Depois, eles devolvem paraa família ou a família completa o que fal-ta, se for o caso. É um sistema privado,para maiores de 62 anos nos EstadosUnidos e se chama lifetime mortgage naInglaterra”, diz Ana Amélia.

Ela relata ainda que, além das institui-ções públicas e filantrópicas, há “as pri-vadas, que são como qualquer outro ne-gócio: elas vivem do que o idoso paga.Há instituições privadas de custo elevado,como uma no Rio, no bairro da Gávea,com mensalidade de R$ 6 mil”. SegundoTomiko, “na instituição em que eu traba-lhava calculava-se que um idoso depen-dente custava para a instituição oito salá-rios mínimos, um idoso independentecalculava-se em três salários mínimos, ecinco no caso do idoso semidependente. Eera uma instituição filantrópica, não visa-va lucro e tinha algumas isenções. Por-tanto, isso era só o custo operacional”.

Ana Amélia diz que “o Estado deveriaprimeiro ter políticas para instituições para idosos pobres e ter mecanismos deacompanhamento e fiscalização das insti-tuições privadas. Hoje, existe apenas aintervenção da Agência Nacional de Vigi-lância Sanitária (Anvisa), que fez uma re-gulamentação das instituições [referindo-se à Resolução nº 283], mas com um nívelde exigências incumpríveis para a maioriadas instituições, totalmente desgarrada da

realidade. O governo cobra, mas não aju-da”. Ela diz ainda que “o Estado tem deestar pronto”, mas, como a oferta é muitopequena no Brasil, “acho que tende acrescer o mercado privado”.

REVELAÇÕES Outras revelações tambémaparecem nos resultados parciais da pes-quisa Ipea/SEDH/CNDI. “Já deu paradescobrir que mais ou menos metade dosresidentes é independente”, adianta a pes-quisadora Ana Amélia Camarano. Segun-do Tomiko Born,“o independente é o quenão precisa de ajuda para suas atividadespessoais, mesmo que use algum aparelho,o semidependente faz alguma coisa so-zinho das atividades básicas diárias e emoutras ele precisa de ajuda, e o dependen-te é aquele que é acamado, ou demencia-do, ou que não toma banho sozinho,não come sozinho e que não pode ficarsozinho”. Para ela, entretanto, “hoje, aprocura por vaga no setor de idoso de-pendente é muito grande”.

Na periferia de São Paulo, assim como em todo o país, proliferam os bailes da terceira idade

Segundo Tomiko, “com essa pesquisanós vamos ter também a tipologia dasinstituições. Há muitas que são seme-lhantes àqueles velhos asilos, e outras quesão muito mais próximas das instituiçõeseuropéias, norte-americanas e japonesas,cuidando de idosos mais dependentes”.Ela explica que hoje “nós não temos con-dições de avaliar qual vai ser a deman-da futura, o que os países mais adianta-dos têm como calcular e ainda projetar as mudanças nos motivos de depen-dência de idosos. No começo, eram emsua maioria pessoas com acidente vascu-lar cerebral, mas nos últimos anos au-mentaram os casos de mal de Alzheimer.A revista americana The Gerontologisttem publicado que nos Estados Unidoso grande problema é mesmo a procurapor cuidados para idosos que sofremdesse mal”.

Ana Amélia esclarece que “estamosclassificando se são abertas ou fechadas,pela natureza jurídica e pelo tamanho,

Foto: Agência Estado

21 A - 04/16/2008 16:25:26

Page 42: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

porque há instituições com 150 pessoas e há instituições com cinco pessoas”. Ogrande desafio foi fazer um cadastro dasinstituições a serem pesquisadas. “Usa-mos o cadastro do Ministério do Desen-volvimento Social, com 685 instituiçõesque o governo federal financia com ajudaper capita, das secretarias estaduais e mu-nicipais de assistência social ou congêne-res, da Anvisa, dos conselhos estaduais emunicipais de idosos, dos ministériospúblicos, além de listas telefônicas eanúncios de jornais. Também ligamospara as instituições para perguntar se elassabiam de outras”, explica Ana Amélia.

“Cadastradas e mapeadas, mandamosum questionário auto-aplicável para es-sas instituições e depois fazemos um tra-balho de sensibilização para que elas res-pondam. No Sudeste, onde o cadastroainda não está pronto, estamos imagi-nando que serão umas 4 mil instituições.Já estão cadastradas todas as demais re-giões. Em todo o Brasil umas 6 mil”,acrescenta a pesquisadora. No setor pri-vado, é freqüente existirem empresas quemantêm mais de uma instituição de lon-ga permanência.

A pesquisa da Fundação Perseu Abramo e do Sesc revela que 88% dos en-trevistados declaram ter conhecimentoda existência de instituições de longapermanência para idosos, mas curiosa-mente essa proporção é maior entre osnão-idosos (89%) do que entre os idosos(77%). É também mais elevada entre oshomens do que entre as mulheres e de-cresce com a idade. Por outro lado, comoera esperado, foram os idosos que apre-sentaram a mais elevada proporção deconhecidos que residem nessas institui-ções (10% dos não-idosos e 15% dosidosos). Já quanto ao grau de aceitaçãodessas instituições, a rejeição foi maiorpor parte dos idosos (33%) do que dosnão-idosos (24%), e a proporção decres-ce com a idade para ambos os sexos, masde forma mais intensa entre os homens,sugerindo uma mudança de percepçãopor parte das gerações mais jovens.

RESULTADOS De acordo com o CensoDemográfico de 2000, 5,5% do total dapopulação da região Norte e 6,6% daregião Centro-Oeste tinham 60 anos emais – faixa dos idosos segundo aPolítica Nacional do Idoso e o Estatutodo Idoso – parcelas inferiores à médianacional, que era de 8,6% em 2000.Apesar disso, as duas regiões registramenvelhecimento populacional maisrecente.

Nas duas regiões, aproximadamente60% dos residentes em instituições delonga permanência para idosos são dosexo masculino, enquanto o padrão na-cional e internacional é de maioria fe-minina nessas instituições. A predomi-nância de homens ocorre em todos osestados da região Norte, exceto no Pa-rá, que apresenta uma proporção de mulheres ligeiramente mais elevada(52%), enquanto em Rondônia aproporção de homens entre os idososresidentes é de 84%. Na região Cen-tro-Oeste, apenas no Distrito Federal a proporção de mulheres residentes eminstituições de longa permanência pa-

44 Desafios • março de 2008

No Sudeste, est imam os pesqu isadores que func ionam cerca de 4 mi l i nst i tu ições

Pertencer a uma residência coletiva é o resgate...

Amigos e parentes residentes são poucosProporção de entrevistados que declararam ter parentes ou amigos residentes nas

instituições de longa permanência por sexo e grupos de idade – Brasil, 2006

Nota: Não Idosos Homens = 764; Não Idosas Mulheres = 844; Idosos Homens = 396; Idosas Mulheres = 669Fonte: Fundação Perseu Abramo/Sesc (2006) – Idosos no Brasil

Não Idoso 60-69 70-79 80 ou mais

25

20

15

10

5

0

Homens Mulheres

21 B - 04/16/2008 16:25:26

Page 43: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

Desaf ios • março de 2008 45

ra idosos é mais elevada que a de homens(64,0%), enquanto em Mato Grosso aproporção de homens entre os idososresidentes é de 70,4%.

Na região Norte, foram identificadaspela pesquisa 49 instituições de longapermanência, as duas primeiras funda-das em 1930 e mais de 70% delas criadasa partir de 1980, enquanto no Centro-Oeste o levantamento identificou 249instituições de longa permanência, amais antiga criada no século XIX e maisde 70% criadas depois de 1980. Comrelação à natureza jurídica, o maior gru-po é de instituições privadas filantró-picas, sem fins lucrativos (63% no Nortee 66% no Centro-Oeste), com parcela ex-pressiva católica e importante presençadas sociedades espíritas e das ligadas àmaçonaria. Apenas uma instituição naregião Norte identificou-se como priva-da com fins lucrativos, no Pará. No Dis-trito Federal se encontra a mais elevadaproporção de filantrópicas (85,7%) e deprivadas com fins lucrativos (14,3%). Oregime predominante de funcionamentodas instituições é o semi-aberto, declara-

e em todo o Bras i l chegam a 6 m i l , ab r i gando aprox imadamente 100 m i l i dosos

...da identidade familiar, diz pesquisadora

Rejeição maior pelos idososProporção de entrevistados que aceitariam residir numa instituição de longa

permanência por grupos de idade e sexo – Brasil, 2006

Nota: Não Idosos Homens = 764; Não Idosas Mulheres = 844; Idosos Homens = 396; Idosas Mulheres = 669Fonte: Fundação Perseu Abramo/Sesc (2006) – Idosos no Brasil

16-24 25-44 45-49 60-69 70-79 80 ou mais

80

60

40

20

0

Homens Mulheres

do por 45% delas, seguido do aberto,41%. Apenas 14% declararam funcionarem regime fechado.

Na região Norte, manter um idosonuma instituição custa, em média, R$639 por mês. A principal despesa é comrecursos humanos, com 55% do total de gastos, seguida pela despesa comalimentação, com 18%. A relativa baixaproporção de gastos com alimentaçãopode se dever, em parte, ao fato de queuma parcela da alimentação é supridacom doações. O mesmo acontece commedicamentos, com 5,9% dos gastos.As despesas com manutenção da casaconsomem 10% dos gastos. O custo porresidente no Centro-Oeste é em média de R$ 483. O custo de manutenção de um idoso varia entre os estados da re-gião, sendo mais elevado no DistritoFederal (R$ 726) e mais baixo em Goiás(R$ 432). Esses custos refletem a ofertade serviços, bem como as doações rece-bidas em espécie e as isenções de taxas econtribuições, o que são práticas comunsnas instituições filantrópicas e públicas.

De modo geral, as instituições das re-giões Norte e Centro-Oeste são forte-mente dependentes do financiamentopúblico (65% dos recursos financeirosno Norte e 56,4% no Centro-Oeste).Mas, nos estados do Tocantins e do Pa-rá, no Norte, e nos estados de MatoGrosso, Mato Grosso do Sul e no Distri-to Federal, no Centro-Oeste, a maiorparcela dos recursos vem dos própriosinternos. A grande maioria declaroutambém ter algum tipo de parceria comórgãos do governo, sejam municipais,estaduais ou federais. Cerca de 20% do financiamento total da região Nor-te tem origem na contribuição dos in-ternos, 10% são de doações e apenas 5% são de renda própria. No Centro-Oeste, as mensalidades ou contribuiçõesdos residentes respondem por cerca de30% do total, as doações de ONGs,familiares, comunidade e igrejas e outrasinstituições, por 9,0%, e apenas 4,3%provêm de renda própria. d

Foto: Macarena Lobos/Folha Imagem

22 A - 04/16/2008 16:25:26

Page 44: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

46 Desafios • março de 2008

chegaremos lá?Quando

DESIGUALDADE

desigualdade de renda no Brasil,que permaneceu estável durantevárias décadas, passou a apresen-tar sucessiva queda nos últimos

anos. Isto gera esperanças, mas deixa no aruma pergunta: quando, afinal de contas,chegaremos lá? Dito de outro modo, quan-do que a diferença entre os mais ricos e osmais pobres será reduzida substancial-

mente? A resposta está em um Texto paraDiscussão (TD) lançado em março peloInstituto de Pesquisa Econômica Aplicada(Ipea). Escrito pelo pesquisador SergeiSuarez Dillon Soares, o trabalho intituladoA queda na desigualdade no Brasil no con-texto histórico e internacional procura res-ponder a essa pergunta comparando oíndice brasileiro com o de outros países.

A

chegaremos lá?Quando

Pesquisa inédita aponta quando, se tudo der certo, o Brasil atingiráum padrão de distribuição de renda exemplar em comparação com ospaíses que já não consideram suas diferenças como um problema

Pesquisa inédita aponta quando, se tudo der certo, o Brasil atingiráum padrão de distribuição de renda exemplar em comparação com ospaíses que já não consideram suas diferenças como um problema

P o r M a n o e l S c h l i n d w e i n , d e S ã o P a u l oP o r M a n o e l S c h l i n d w e i n , d e S ã o P a u l o

22 B - 04/16/2008 16:25:26

Page 45: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

Foto: Corbis/Latinstock

23 A - 04/16/2008 16:25:26

Page 46: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

48 Desafios • março de 2008

N o a t u a l r i t m o d e p r o g r e s s o , e m s e i s a n o s o B r a s i l a t i n g i r á o n í v e l d e

Para encontrar um parâmetro apro-priado, Sergei Soares lançou mão de umindicador amplamente empregado pelacomunidade científica, o Coeficiente deGini. Criado pelo estatístico italianoCorrado Gini em 1912, o indicador vaide 0 a 1, sendo 0 a condição ideal de dis-tribuição de renda. Soares observou umacurva descendente no coeficiente de Gininacional entre 2001 e 2006. No intervalo,o indicador caiu 3,45 pontos centesimais,de 0,594 para 0,559, o que corresponde a um progresso médio de 0,7 ponto cen-tesimal ao ano.

Essa variação equivale a uma reduçãode 5,8% na desigualdade ao longo doscinco anos – ou 1,1% ao ano. É umganho significativo, mas nunca é demaislembrar que o país amarga uma das pio-res posições no ranking mundial do Coe-ficiente de Gini veiculado anualmente no Relatório de Desenvolvimento Hu-

mano (RDH), elaborado pelo Programadas Nações Unidas para o Desenvolvi-mento (Pnud).

Na última edição do RDH, datada de 2007/2008 e publicada em novembrodo ano passado, o Brasil, promovido à condição de Índice de Desenvolvi-mento Humano (IDH) elevado, apresen-

ta Coeficiente de Gini 57,0 (relativo aoano de 2003, numa escala de 0 a 100).Is-to significa uma distribuição de ren-da pior que a de alguns países de IDHmédio, como a Venezuela (com Gini de48,2) e Nicarágua (43,1), e até mesmopior do que a de vários países de IDHbaixo, como Nigéria (Gini de 41,3),Ruanda (46,8) e Etiópia (30,0).

QUANTO TEMPO A questão foi posta nosseguintes termos: mantido o ritmo deprogresso no índice, quanto tempo falta-ria para atingirmos o padrão de outrospaíses? Feitas as contas, daqui para frentebastariam seis anos para atingirmos umnível de distribuição de renda como o doMéxico, uma das melhores notas nessequesito na América Latina. Outros seisanos precisariam se passar para o Brasilalcançar um patamar como o dosEstados Unidos (diga-se, um dos pioresíndices de distribuição de renda entre ospaíses desenvolvidos). Por fim, em 24anos teríamos uma distribuição de rendatão cobiçada como a do Canadá.

Soares não nega que será impossívelao Brasil atingir um coeficiente de Ginitão bom como o dos europeus, “porserem países unitários e de populaçãohomogênea”. É por isso que a compa-ração fica mais coerente com os trêsvizinhos da América do Norte, que ocu-pam grandes territórios, são federativos e com população marcada por fortesdivisões étnicas. Vale lembrar que, nosEstados Unidos, segundo Soares, “a de-sigualdade não é considerada algo par-ticularmente ruim e, se oriunda do méri-to, até desejável”.

MÉTODO Embora pareça simples colocaras idéias nesses termos comparativosentre países, o trabalho fez queimar aspestanas de Sergei Soares. Primeiro, nãodá para dizer imediatamente que umaqueda de 3,45 pontos seja expressiva.Para chegar à conclusão de que o númeroé mais do que uma oscilação esporádica,o pesquisador tratou de comparar os

O Texto para Discussão (TD) A queda nadesigualdade no Brasil no contexto histórico einternacional, de autoria do pesquisador Sergei

Suarez Dillon Soares, pode ser encontrado no

portal do Instituto de Pesquisa Econômica

Aplicada (Ipea) na internet, endereço

http://www.ipea.gov.br/ , sob a aba

“Publicações”, link “Textos para Discussão”,

opção “Listar todos”.

Onde encontrar

55

56

57

58

59

60

61

1994 1996 1998 2000 2002 2004 2006 2008

59,960,1 60,0

59,8

59,2 59,4-*

58,7

58,1

56,956,6

55,9

0,7 pontos/ano5 anos duração

Queda lenta, porém constanteCoef iciente de Gini (em escala de 0 a 100)

Fonte: Ipea

(*) Não houve dados em 2000

ANO

Coe

fici

ente

de

Gin

i

23 B - 04/16/2008 16:25:26

Page 47: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

Desaf ios • março de 2008 49

d i s t r i b u i ç ã o d e r e n d a d o M é x i c o , u m d o s m e l h o r e s d a A m é r i c a L a t i n a

valores brasileiros com os de membrosda Organização para a Cooperação eDesenvolvimento Econômico (OCDE),grupo de países norteado pela democra-cia representativa e economia livre demercado. Soares teve o cuidado de com-parar os dados com bancos de infor-mações de cada país, muito mais comple-tos que os dados do Pnud.

Além disso, observou as séries histó-ricas com indicadores até do início doséculo XX, quando os países montavamseus planos de bem-estar social.“Emboraas circunstâncias históricas sejam dife-rentes, não é descabido buscar nas expe-riências exitosas do passado orientaçãosobre como poderíamos estar prosse-guindo hoje”, justifica o pesquisador.

Não é preciso muita imaginação pa-

Redução das desigualdades significa não ter favelas coexistindo com edifícios de luxo

Foto:Tuca Vieira/Folha Imagem

ra se dar conta de que os dados do sé-culo passado são escassos. Soares ob-serva que no início do século XX “nãohavia, em nenhum país, pesquisas do-miciliares confiáveis”. As melhores fon-tes de informação do Reino Unido da-tam de 1939, quando o governo iniciou a pesquisa de ganhos Survey of Perso-nal Incomes. “Nenhum outro país con-ta com boas pesquisas domiciliares tãoantigas e comparáveis”, afirma Soares.

É claro que nem tudo é perfeito.Embora os dados fossem coletadospara uma pesquisa domiciliar, muitasvezes os cônjuges declaram impos-tos separadamente – o que confunde o cálculo de uma distribuição de ren-da per capita. O mesmo ocorre com as estatísticas nos Estados Unidos, que

chegam a incluir transferências esta-tais aos cidadãos (como é o caso, noBrasil, do Programa Bolsa Família),mas deixam de fora valores relativos àtributação vigente na época.

SUBMENSURAÇÃO Como era de esperar, otrabalho também não foi fácil com asbases de dados brasileiras. “Há menosconsenso sobre o grau de submensu-ração das pesquisas domiciliares, umavez que, por razões amostrais e de ques-tionário, não medem rendas muito eleva-das, principalmente as rendas do capi-tal”, diz Soares em seu estudo, referin-do-se à Pesquisa Nacional por Amostrade Domicílios (Pnad), elaborada peloInstituto Brasileiro de Geografia e Esta-tística (IBGE).

24 A - 04/16/2008 16:25:26

Page 48: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

50 Desafios • março de 2008

A pesquisa, como seu próprio nomediz, é feita por amostragem e, portan-to, neste caso, apresenta uma limita-ção importante no que diz respeito àconcentração de renda. Há milhões debrasileiros com rendimentos na faixa deum salário mínimo, mas apenas umaseleta gama tem o privilégio de figurar na relação dos mais ricos do mundo darevista Fortune. Como é muito mais fá-cil uma amostra bater à porta de um

assalariado e muito difícil encontrar aesmo um bilionário, estes passam aolargo da pesquisa.

Há saída? Fazer com que a Recei-ta Federal divulgue dados relativos àdeclaração do Imposto de Renda de Pes-soa Física. Não se trata de tornar públicoquem ganha quanto, até porque os dadossão sigilosos, mas sim quantos ganham o quê.“Teremos grandes surpresas quan-do essas informações vierem à tona”,

adianta Soares. O pesquisador ainda fazuma última ressalva. Melhor empregar aPnad, que conta com um histórico anualde dados desde 1974, do que a Pesquisade Orçamentos Familiares (POF), que sóé feita em períodos mais espaçados.

DESAFIOS Gráficos com o Coeficiente de Gini lado a lado, o Brasil se sai me-lhor do que todos os países compara-dos. Enquanto nosso índice cai 0,7 ponto

Foto: Jarbas Oliveira/Folha Imagem

No Relatório de Desenvolvimento Hu-mano (RDH) 2007/2008, divulgado peloPrograma das Nações Unidas para o De-senvolvimento (Pnud) em novembro do anopassado, o Brasil ultrapassou pela primei-ra vez a linha de corte que separa os paí-ses de nível de desenvolvimento humanomédio dos de nível elevado, ao atingir oÍndice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,800. São considerados de nível dedesenvolvimento humano elevado os paí-ses com um IDH de 0,800 ou superior,de desenvolvimento humano médio os quetêm IDH de 0,500 a 0,799, e de desenvol-vimento humano baixo os com IDH inferior a 0,500.

Trata-se, portanto, de uma conquista histórica figurar entre os 70 países clas-sificados na categoria de IDH elevado noranking adotado pelo Pnud desde 1993.Mas a notícia não vale comemoração. Emtermos relativos, o país caiu uma posição no ranking de 177 países monitorados pe-la instituição: foi de 69º lugar em 2006para os 70º no ano passado.

“O Brasil não é nem um pouco desenvol-vido. Aliás, nem desenvolvido nem igual,em se tratando de distribuição de renda entre a população”, afirma o pesquisadorSergei Suarez Dillon Soares, do Instituto dePesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Au-

IDH elevado é excelente, Gini elevado é péssimo

O q u e d i fe r e um p a í s q u e c o n s eg u e c o n s t r u i r uma s o c i e d ad e i g u a l i t á r i a é o

tor do Texto para Discussão (TD) intitulado A queda na desigualdade no Brasil no contex-to histórico e internacional, divulgado pelainstituição em março, Soares não concor-da com o posto atingido pelo Brasil no rankingdo Pnud e aproveita para lembrar que a dife-rença entre os ganhos de ricos e pobres nopaís é dos piores do mundo.

Soares é crítico em relação aos critérios

adotados pelo Pnud na confecção do índi-ce.“Para citar apenas um único exemplo”,diz, “vamos pegar o caso da educação.Os técnicos do Pnud levam em conta aquantidade de estudantes matriculados naescola, mas deixam de considerar qual oíndice de repetência e quantos deles con-seguem se formar. Enfim, não se discutequal a qualidade da educação.”

Padrão de vida vem se elevando mais rapidamente do que caem as diferenças de renda

24 B - 04/16/2008 16:25:26

Page 49: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

litária de outros que param na metade do caminho é o fôlego para a caminha-da, mais que a sua velocidade”. Assim,finaliza, se o Brasil almeja atingir osníveis de igualdade do Canadá, precisa se “preparar para passar os próximos 24 anos estudando, inventando e imple-mentando novas políticas cujo objetivoseja a redução do fosso social”.

Desaf ios • março de 2008 51

centesimal ao ano, os britânicos regis-traram em seu melhor momento, de1938 a 1954, queda anual 0,5 ponto,ao passo que os norte-americanos obti-veram média de 0,6 ponto entre 1929 e 1944. O mesmo vale para Holanda,que teve redução de 0,2 ponto ao anodurante 43 anos, e a Suécia, com quedade 0,5 ponto ao ano por 33 anos.

O Brasil apresenta uma queda me-lhor do que a dos outros países, mas porpouco tempo. É aqui então onde mora a chave do problema: levar em conta aquantidade de tempo pelo qual o indi-cador manteve índices positivos nos ou-tros países é fundamental para respon-der à pergunta inicial. “Estamos cami-nhando numa velocidade muito maiordo que países como Inglaterra ou Es-tados Unidos, mas será que continua-remos a manter essa velocidade? O ritmoestá ótimo. O problema é mantê-lo”, de-fende Soares.

“Se continuarmos reduzindo nossoCoeficiente de Gini a 0,7 ponto ao anopelos próximos 24 anos, não será possí-vel ter grandes favelas coexistindo comcondomínios de luxo, indivíduos à beirada fome no sertão do Cariri vivendo nomesmo país cujos céus são cruzados porexecutivos viajando na segunda maiorfrota de aviões particulares do mundo,nem um exército de empregados parti-culares passando as roupas, encerandoos pisos e lavando os banheiros da classemédia”, escreve Soares na conclusão dotrabalho. Segundo ele, pensar que oritmo de redução do Coeficiente de Gininos levará a um outro país. “Mostra quepodemos estar no início de uma revo-lução no nosso padrão civilizatório.”

OLIVER TWIST A fim de exemplificar o tamanho do que se está em jogo,Soares faz uma comparação entre aInglaterra do século XIX e o Brasil atual.“O menino vivido por Oliver Twist nolivro homônimo de Charles Dickens não se difere em nada da rotina vivi-da por um rapaz de uma favela do Rio d

f ô l e g o p a r a a c am i n h ad a , ma i s q u e a v e l o c i d ad e d e r e d u ç ã o d a d e s i g u a l d ad e

3 0

3 4

3 8

42

46

50

54

58

62

1976 1980 1984 1988 1992 1996 2000 2004 2008

0,7 pontosGini/ano

6anos

12anos

24anos

hiperinf lação

Brasil México CanadáEUA

A distância do Brasil à América do NorteDistribuição de renda domiciliar per capita com transferências no Brasil,

México, Estados Unidos e Canadá

Coe

fici

ente

de

Gin

i

Fontes: Brasil (Pnad); México (Inegi); Estados Unidos (US Census Bureau); Canadá (Statistics Canada); e Reino Unido (Glennerster 2006)

ANO

de Janeiro”, diz. Em menos de 150 anos,a Inglaterra congratula-se por ter mu-dado tão radicalmente de cenário, re-flete o pesquisador.

O que sabemos, prossegue Soares,“é que em sociedades democráticas vi-vendo sob o estado de direito as mudan-ças são lentas. O que difere um país queconsegue construir uma sociedade igua-

Foto: Stockxpert

25 A - 04/16/2008 16:25:26

Page 50: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

52 Desafios • março de 2008

P o r A d r i a n a T h o m a s i , d e F o r t a l e z a

Com o aval dos próprios tomadores de empréstimos, operações de pequeno porte, sem burocracia, e toda atramitação até a liberação do dinheiro em apenas sete dias, o Crediamigo, programa de microcrédito do Banco do Nordestedo Brasil (BNB), faz dez anos e está perto de transformar 1 milhão de brasileiros em microempreendedores

MELHORES PRATICAS

Uma legião demicroempreendedores

Nordeste do Brasil (BNB), o maior dogênero no País, fechou com média de 3,3mil operações por dia. Trata-se de umamodalidade bem ágil: o empréstimo éliberado de uma só vez em no máximosete dias úteis após a solicitação.

Desde 1998, ano de criação do progra-ma, até 29 de fevereiro deste ano, foram790 mil clientes atendidos em 4,1 milhõesde operações, com desembolsos de R$ 3,6bilhões. São números extraordinários, seconsiderado o valor médio de cada finan-ciamento. Só em 2007, a quantidade de

equenos empréstimos, com valo-res a partir de R$ 100, vêm mu-dando a vida de muita gente, emespecial nos últimos dez anos.

Mais visível nas comunidades da perife-ria das capitais ou de municípios dointerior da região Nordeste, a facilidadede acesso a financiamentos embuteoportunidades de ocupação e renda e fazsurgir uma verdadeira legião de novosmicroempreendedores. No ano passado,o Crediamigo, programa de microcré-dito produtivo orientado do Banco do

empréstimos superou 824 mil, corres-pondendo a R$ 794,2 milhões de janeiroa dezembro. Nada menos de 64 mil novosempreendedores engrossaram a base declientes, representando o maior incre-mento da história do programa. A cartei-ra de microcrédito do BNB fechou feve-reiro de 2008 com 307,7 mil clientesativos e contratações de R$ 224,3 mi-lhões. Os recursos são liberados paratodo o Nordeste, norte de Minas Gerais enorte do Espírito Santo, que formam aárea de atuação do banco.

P

25 B - 04/16/2008 16:25:26

Page 51: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

Desaf ios • março de 2008 53

no Nordeste

Foto

:Sto

ckxp

ert

Os empréstimos solidários, tendo como garantia apenas o colateral socialda própria clientela, representam 95% da base de clientes. O sistema de colate-ral social funciona da seguinte forma:o próprio interessado reúne um grupode amigos empreendedores que moremou trabalhem próximos e que confiemuns nos outros. Esta união possibilita o “aval solidário”, que é a garantia con-junta para o pagamento das prestações.Um é o avalista do outro. Foi uma receitaque deu certo.

“Projetamos encerrar este ano com370 mil clientes ativos e chegar a 2011com 1 milhão”, diz Stélio Gama Lyra Jú-nior, superintendente de Microfinançase Projetos Especiais do BNB, instituiçãocom sede em Fortaleza (CE). A carteirade 2007 somou 300 mil clientes ativos,no global. No Ceará, berço do progra-ma, os resultados são os mais anima-dores. Nada menos de 92,3 mil clientesintegram a carteira ativa do programano estado – posição de fevereiro. Osegundo maior tomador desse tipo de

empréstimo é a Bahia, com 36,3 milclientes ativos. A diferença entre os doisestados pode ser explicada em parteporque o programa começou no Ceará eficou só neste estado por muito tempo,antes de chegar aos demais.

VIDA DE DESAFIOS Pessoas físicas, pro-prietárias de pequenos negócios nossetores de comércio, indústria ou servi-ços, seja formal ou informal, podem sehabilitar ao crédito. Gente como Francis-co Rios Araújo, de 45 anos, portador de

26 A - 04/16/2008 16:25:26

Page 52: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

54 Desafios • março de 2008

P e s s o a s f í s i c a s , i n f o r m a i s o u p r o p r i e t á r i a s d e p e q u e n o s n e g ó c i o s

deficiência visual causada por glaucoma,que decidiu investir em uma fábrica deantenas para televisão. “Minha vidasempre foi cheia de desafios”, diz. Comproblemas de visão desde os 14 anos, eleprecisou mudar do interior do Ceará paraFortaleza, em busca de tratamento. Porcinco anos, morou em uma instituiçãoque abrigava pessoas saídas do interior doestado. Passou por períodos difíceis,agravados pelo glaucoma – que o deixoucego aos 20 anos –, mas não desistiu. Pois,“com a força e a fé em Deus”, como gostade afirmar, começou a mudar de vida.

Partiu em busca de trabalho e no cami-nho encontrou uma assistente social que oindicou para a Satélite, fabricante de ante-nas de televisão.“Trabalhei por sete anos naempresa, aprendi o processo e, quando afábrica mudou para um município vizi-nho, resolvi sair do emprego e montar meupróprio negócio”, conta. O investimentoinicial foi de R$ 1.150 com recursospróprios. A empresa apoiou a decisão deRios e o auxiliou no processo. “Eles meajudam até hoje, vendendo material”, diz.

Com o dinheiro da rescisão do con-trato de trabalho, alugou uma casa, com-prou equipamentos e começou a produ-ção de antenas externas UHF e VHF,

atualmente em 20 diferentes versões. En-controu no centro da cidade um clienteque acreditou no produto e o indicou pa-ra outros quatro, que continuam até hoje.A primeira venda, no valor de R$ 100,Rios não esquece. “Comecei pequeno eagora tenho 40 clientes”, adianta, aorevelar que a fábrica, dependendo domês, chega a faturar até R$ 11 mil.

O aumento das vendas levou à ino-vação e à diversificação da linha de pro-dutos. O primeiro empréstimo, em tornode R$ 700, foi há mais de cinco anos.“Com o Crediamigo, minha atividadeteve um grande salto, pois aumentei o es-toque, ampliei a clientela e construí umnegócio estável”, diz. Após 23 emprés-timos – o último foi em torno de R$ 1 mil–, o microempreendedor não apenasconseguiu fortalecer a empresa, mas acu-mulou patrimônio – três casas, fábrica,carro e ainda ajuda uma instituição paracrianças carentes na comunidade. A An-tenas Rios também gera quatro empregosdiretos, voltados a jovens carentes e semoportunidade no mercado de trabalho.

MODA DE PRAIA Com base no modelo deredes solidárias, o Crediamigo tornourealidade para milhares de empreende-

dores brasileiros o acesso ao sistemaformal de crédito para montar, ampliarou melhorar suas atividades. Foi o queocorreu na Caxangá Moda Praia, emCaucaia, município da região metropo-litana de Fortaleza, que começou comtrês funcionários e, em períodos demaior demanda, chega a até 50 postos de trabalho, incluindo na soma as bor-dadeiras terceirizadas.

O casal Carlos Antonio Rosa de Oli-veira e Márcia trabalhava como sacoleiro,vendendo moda praia, quando abriu aconfecção em 2000. A experiência an-terior ajudou-os na decisão do tipo denegócio. Um empréstimo da família ga-rantiu a compra de uma máquina e damatéria-prima. Cerca de um ano depois,com vontade de crescer e de melhorar devida, o casal aceitou o convite de umamigo para participar do Crediamigo.

Com o primeiro empréstimo de R$900, Carlos e Márcia compraram malha eaviamentos. Até agora foram 31 emprés-timos. Com os recursos do programaampliaram a produção. “Investi em es-trutura física do negócio, reformei a casa,comprei carro e melhorei a qualidade devida da minha família”, afirma Carlos. ACaxangá começou com 40 peças por dia,entre biquínis, maiôs, sungas, saídas depraia, e hoje fabrica 300 peças por dia,produtos que abastecem clientes nos es-tados de Minas Gerais, Bahia, São Paulo,Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul, RioGrande do Norte, além do Ceará.

A empresa também abre oportunida-de do primeiro emprego para jovens dobairro Conjunto Guadalajara, em Forta-leza, e ensina a arte da moda praia – damodelagem, passando pelo corte, pin-tura, bordado, até o acabamento final.Márcia Liduína Constantino da Rocha,funcionária da Caxangá há oito meses,nunca havia trabalhado antes. Hoje, temuma profissão, um salário regular, ajudana renda familiar e já pensa em entrarpara a faculdade de estilismo e moda.“Essa oportunidade mudou não só aminha vida, mas de toda a família”, diz.

O aval solidário ou colateral social reúne um grupo de empreendedores que confiam uns nos outros

Foto: Divulgação/BNB

26 B - 04/16/2008 16:25:26

Page 53: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

Desaf ios • março de 2008 55

d e c o m é r c i o , i n d ú s t r i a o u s e r v i ç o s p o d e m s e h a b i l i t a r a o c r é d i t o

O último empréstimo da Caxangá foide R$ 7,7 mil para capital de giro – o tetomáximo do programa é de R$ 10 mil. Co-mo “cliente antigo e sempre pontual”, Oli-veira aproveita todas as oportunidades deempréstimos em grupo (solidário) ou in-dividuais.“Estou sempre no limite do ban-co e sem nenhuma falha”, diz, com orgu-lho, e afirma que os juros baixos do Cre-diamigo estimulam a busca por crédito.

BOAS CHANCES Na composição das con-tratações do Crediamigo, 39% corres-pondem a giro solidário, 38% a giro popular solidário, 15% a investimentofixo, 6% a giro individual e 2% a girocomunidade. Com prazo médio depagamento de quatro meses – que po-de ser via carnê, quitado em qualquerestabelecimento vinculado ao sistema de compensação bancária –, o programaabre possibilidades de três empréstimosanuais, em média, desde que o clienteesteja em dia com as parcelas. As taxaspraticadas variam de 1,95% a 3% ao mês, dependendo do produto de crédi-to e do tempo no programa. A política do Crediamigo beneficia os clientes mais antigos, com descontos graduaisdas taxas na proporção em que renovamsuas operações.

Um conjunto de fatores como conheci-mento da realidade do cliente e orientaçãodos agentes de crédito, que auxiliam no cál-culo da movimentação de caixa e indicam acapacidade de endividamento, mantém osíndices de inadimplência média na ordemde 0,94%. Contribui ainda a própria confi-guração de grupos solidários do Crediami-go,formados por três pessoas,no mínimo,e30, no máximo, todas conhecidas, que seresponsabilizam pelo crédito e pelo aval,o que acaba criando certo comprometi-mento entre os parceiros.

A pontualidade no pagamento garan-tiu a Lúcia Belarmino e ao marido Gon-çalo César Barros, donos da Ki-Sorvetão,mais de 15 empréstimos. O primeiro, deR$ 500, ajudou a ampliar as vendas, coma distribuição de sorvetes para váriospontos de Fortaleza. A idéia de expandiras atividades começou a geminar em1996, quando Gonçalo foi demitido e ocasal começou a vender dindim – umtipo de picolé caseiro, em vários sabores,embalado em saquinhos plásticos – naprópria residência.

Certa do potencial do negócio, Lúciadecidiu participar de um curso gratuitode fabricação de sorvetes caseiros e co-meçou a produzir. Foi quando recebeu oconvite para integrar um grupo solidário

do Crediamigo. Hoje, totalmente refor-mada, a Ki-Sorvetão emprega 15 pessoase trabalha dentro das recomendações daAgência Nacional de Vigilância Sanitária(Anvisa), mantendo em seus quadrosuma nutricionista, responsável pela ela-boração dos sorvetes e informações dasembalagens. Com o lucro, Lúcia realizouo sonho da casa própria, comprou auto-móvel e pôde oferecer melhores condi-ções de estudo para os três filhos.

A sorveteria ainda contribui financei-ramente com instituições que atendem acrianças carentes. No Dia da Criança,promove uma festa com brincadeiras de palhaços e distribuição de sorvetespara a garotada.

UNIVERSO FEMININO Mulheres como Ma-ria de Fátima Alves da Silva, dona daFarmácia Mil Cheiros, representam 64%da clientela do programa.“O Crediamigofoi o primeiro a oferecer crédito e con-fiança”, diz. A microempreendedora ini-ciou vendendo perfumes numa pequenaprateleira improvisada, em frente à lojaonde trabalhava. De início foram R$ 500.Depois de cinco anos, período que pagouem dia mais de 20 empréstimos, Maria deFátima transformou seu estabelecimento“na maior e melhor farmácia da cidade”,como ela diz, e ampliou as chances decrédito para R$ 8 mil.

Localizada no município de Pereiro(CE), a cerca de 340 quilômetros de Forta-leza, a Mil Cheiros vende remédios, per-fumes, cosméticos, celulares, além de rece-ber pagamento de contas de água, luz etelefone. Emprega quatro funcionários eainda atua em parceria com artesãos, quecomercializam produtos no interior da farmácia. A perspectiva de bons negóciostambém estimulou a busca pela especiali-zação. Maria de Fátima decidiu cursar gra-duação em farmácia, na Faculdade Cató-lica Rainha do Sertão, em Quixadá (CE).

Para a costureira Verônica SobreiraSilva, que até 1998 trabalhava para umaempresa, investir em um negócio própriosignificava a chance de acompanhar deA pontualidade no pagamento garantiu mais de 15 empréstimos à sorveteria de Lúcia Belarmino

Foto: Divulgação/BNB

27 A - 04/16/2008 16:25:26

Page 54: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

56 Desafios • março de 2008

A p o l í t i c a d o C r e d i a m i g o b e n e f i c i a o s c l i e n t e s m a i s a n t i g o s , c o m

perto o crescimento das filhas. Por isso,quando as meninas entraram na ado-lescência, ela decidiu mudar. Procurouemprego de faccionista, onde poderiacosturar em casa. O proprietário da con-fecção emprestou a máquina de costurae, com disposição, Verônica começou ajuntar dinheiro, pois não queria depen-der apenas de um cliente.

Em pouco tempo, conseguiu adquirirmáquinas usadas e contratou as vizinhaspara fazer parte do grupo, pagando porpeça. Com o aumento da produção, per-cebeu também que era necessário evoluir.Máquinas novas e modernas poderiamgarantir mais qualidade e rapidez ao ser-viço. Em junho de 2000, recebeu convitepara participar de um grupo solidário doCrediamigo. Em 2002, conseguiu a pri-meira máquina financiada pelo Credi-amigo. O negócio evoluiu e hoje são qua-tro máquinas e 26 pessoas empregadas,que recebem salário e prêmios de estímu-lo à produtividade. Além disso, a micro-empreendedora tem casa própria, contaem banco, cartão de crédito e carro novo.

A intensa movimentação da clientelaem busca de recursos e o crescimento daeconomia da região Nordeste vêm influen-ciando o aumento médio dos em-préstimos. Em janeiro de 2002, girava emtorno dos R$ 745 e passou para R$ 963 emdezembro do ano passado. O valor dosempréstimos aumenta na medida em queo microempreendimento se desenvolve.Mais recentemente, o BNB firmou acordocom o Sebrae, no sentido de oferecercapacitação gerencial a seus clientes, e como Instituto Nordeste Cidadania, paraalfabetização de microempresários.A idéiaé ampliar parcerias para orientação ecapacitação de clientes com entidadespúblicas e privadas.

ALCANCE REGIONAL Com oferta de pro-dutos e serviços – capital de giro, atravésde grupos solidários ou individual-mente, investimento fixo, CrediamigoComunidade, conta corrente (normal esimplificada), seguros, assessoria empre-

Mulheres como Fátima Alves da Silva, dona da Farmácia Mil Cheiros, representam 64% da clientela

Fonte: Banco do Nordeste do Brasil (BNB)

sarial e capacitação –, o programa chegaa mais de 1,4 mil municípios do Nor-deste, norte de Minas Gerais e do Es-pírito Santo. Nada menos de 1.517

pessoas estão envolvidas na operacio-nalização do Crediamigo, que conta comsuporte de 170 agências do banco e 37postos de atendimento.

O interessado precisa:Ser maior de idade.

Ter ou iniciar uma atividade comercial.

Reunir um grupo de amigos empreendedores, que morem ou trabalhem próximos e que conf iem uns

nos outros. Esta união possibilita o “aval solidário”, garantia conjunta para o pagamento das prestações.

Documentos necessários:

Identidade.

Cadastro de Pessoa Física (CPF).

Comprovante de residência atual.

Vantagens

Abertura de conta-corrente.

Créditos escalonados e crescentes.

Juros mais baixos.

Atendimento personalizado no local de trabalho do cliente.

Orientação empresarial.

Curso de capacitação e aperfeiçoamento prof issional.

Perfil

Os clientes são pessoas que trabalham por conta própria, geralmente empreendedores do setor informal da

economia. O Crediamigo também facilita o acesso ao crédito às pessoas de perf il empreendedor que tenham

interesse em iniciar uma atividade produtiva, através dos bancos comunitários.

Foto: Stockxpert

Foto: Divulgação/BNB

27 B - 04/16/2008 16:25:26

Page 55: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

Desaf ios • março de 2008 57

d e s c o n t o s d a s t a x a s n a p r o p o r ç ã o e m q u e r e n o v a m s u a s o p e r a ç õ e s

Do universo de microempreendedores quebuscam recursos do Banco do Nordeste doBrasil (BNB),92% atuam no comércio,5,3% nosetor de serviços e 2,7% no setor industrial,revela o Estudo do Perfil Sócio-Econômico dosClientes do Crediamigo, realizado pela Funda-ção Getulio Vargas (FGV) do Rio Janeiro. O le-vantamento apurou que 93% dos negóciosregistram movimento inferior a R$ 5 mil men-sais. Quase metade dos empreendimentos cor-responde a atividades de subsistência.

De acordo com o porte, os clientes foramdivididos em três grupos. O de subsistência,com vendas mensais iguais ou inferiores a R$1 mil, representa 44,7% da clientela; o deacumulação simples, com vendas entre R$ 1mil e R$ 5 mil, representa 48,9%; o de acu-mulação ampliada, com vendas de R$ 5 mil aR$ 36.146,26, representa outros 6,1%; e asempresas de pequeno porte – categoria queinclui os clientes maiores e já formalizados,representa 0,3% de toda a clientela.

Uma parcela considerável dos tomadoresde empréstimos (15,5% deles) buscou alinha de capital de giro popular solidário,enquanto a de investimento fixo ficou com2,6%, a de capital de giro individual, com2,43%, e foi feito apenas um empréstimo dotipo crédito comunidade.

A maioria das operações (63%) dos em-préstimos solidários segue o prazo de quatro

meses, sendo outros 10,6% em três meses,14,9% em cinco meses e 8% em seis meses– a soma de operações de três a seis mesescorresponde a 97% das operações. Pratica-mente todos adotam agenda mensal de paga-mento (98,8%), com apenas 1,2% dosempréstimos quitados quinzenalmente. Em92% dos casos, a operação está com seuandamento normal.

Entre os empreendimentos financiados,33,7% realizam atividade na própria casa e32,3% têm um ponto comercial. Cerca de20,5% atuam em domicílio, 9,9% possuemuma barraca ou banca e 3,6% têm atividademóvel. Pouco mais de um quarto dos negó-cios (28%) corresponde a ambulantes. Dosnegócios fixos restantes, 53% são próprios e 20%, alugados. Ainda conforme o estudo,75,4% dos clientes moram em imóvel pró-prio, 10,3% pagam aluguel, 4% ficam emcasa de familiares e 9,1% vivem sozinhos.

A maioria dos microempreendedores temo primeiro grau ou ensino fundamental com-pletos (61,8%), seguidos dos que têm osegundo grau ou ensino médio completos(30%).Apenas 2,8% não possuem instrução e3% têm nível superior completo.

Dados da pesquisa mostram que a lucrati-vidade média dos empreendimentos clientesdo programa Crediamigo se manteve relativa-mente constante entre os períodos analisados

– da data de sua entrada no programa até 31de dezembro de 2006.A margem de lucro bru-ta ficou em 38% e a operacional, em 32,3%,enquanto a líquida aumentou marginalmentede 29,4% para 29,7%.

O retorno sobre o investimento (ROI)evoluiu de 4,32% para 5,21% e o do patri-mônio líquido recuou de 4,43% para 4,27%.A maior parte dos clientes possui entre 30 e39 anos (30,4%), seguidos dos com idade de40 e 49 anos (25,9%) e dos entre 20 e 29anos (22,3%). Outros 14,6% têm entre 50 e59 anos, 6,1% mais de 60 anos e apenas1,3% menos de 19 anos.

Outro levantamento feito pelo próprio BNBmostra que 34% dos clientes do Crediamigotêm de um a quatro anos de escolaridade.Outros 31%, de nove a 11 anos, 30% de cincoa oito anos, 4% têm curso superior, e aparcela de analfabetos é de 1%.

Dos microempreendedores,39% têm de 36a 50 anos, 31% de 25 a 35 anos, 18% estãoacima de 50 anos e 12% têm até 24 anos. Aparcela de 29% atua no setor de confecções,11% em produtos alimentícios ou cereais, 7%em bebidas, 6% em perfumaria, toucador ecosméticos, 4% em abate de animais e 43%em outros segmentos. Comércio lidera asatividades com 92%, seguido de serviços, 6%,e indústria, 2%. Os dados constam no relatóriosobre os dez anos de atividades do programa.

FGV traça perfil da clientela

Foto: Divulgação/BNB

28 A - 04/16/2008 16:25:26

Page 56: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

58 Desafios • março de 2008

O C r e d i a m i g o C o m u n i d a d e f i n a n c i a a s c a m a d a s a i n d a m a i s p o b r e s

Iniciativas se agrupam

por setor de atividade

Indústria

Marcenarias, sapatarias, carpintarias,

artesanatos, alfaiatarias, gráf icas, padarias,

produções de alimentos, etc.

Comércio

Ambulantes, vendedores em geral, mercadinhos,

papelarias, armarinhos, bazares, farmácias,

armazéns, restaurantes, lanchonetes, feirantes,

pequenos lojistas, açougueiros, vendedores

de cosméticos, etc. Os clientes que atuam no

setor de comércio formam a maioria dentro

da carteira do Crediamigo.

Serviços

Salões de beleza, of icinas

mecânicas, borracharias,

entre outros.

Fonte: Banco do Nordeste do Brasil (BNB)

de complementação de renda”, acrescen-ta o superintendente de Microfinanças eProgramas Especiais do BNB, StélioGama Lyra Júnior.

Em articulação com o Ministério doDesenvolvimento Social (MDS), Sebraee governo do Ceará, por meio do repre-sentante do Bolsa Família, o banco estáempenhado em aliar políticas de créditocom programas de transferência de ren-da, como forma de impulsionar o desen-volvimento. “O microcrédito poderá setornar uma perspectiva de fortaleci-mento da renda também para essepúblico”, reforça.

O Crediamigo Comunidade segue ametodologia dos bancos comunitáriosou village banking, difundida com su-cesso em países da África, América Lati-na e Ásia, como importante instrumentode política para redução da pobreza.Nesse sistema, são formados “bancos nascomunidades”, constituídos de 15 a 30pessoas interessadas em iniciar um negó-cio, gerido pelos seus próprios inte-grantes. Os empréstimos variam de R$100 até R$ 1.000 e atendem a financia-mento de capital de giro e pequenosequipamentos para a população de áreasurbanas e semi-urbanas.

De acordo com o superintendente deMicrofinanças e Programas Especiais do

Para a costureira Verônica Sobreira Silva, o negócio próprio permite acompanhar as filhas de perto

De janeiro a dezembro do ano pas-sado, o número de clientes ativos cresceu27% e a expectativa é ampliar esse índicepara 30% neste ano. A meta é atingir osmunicípios do Nordeste e outras regiõesdo País. O projeto de expansão da rede deatendimento prevê ainda a utilização dainternet nos sistemas de aprovação decrédito, já a partir deste ano.

O BNB pretende se consolidar comomodelo de atuação em microcrédito.Com o Crediamigo Comunidade, pro-duto desenhado para financiar as cama-das ainda mais pobres, o banco procuraampliar a participação no atendimentodas necessidades desse segmento popu-lacional, ainda não contemplado com asatuais linhas de crédito. Esse modelocontempla pessoas sem atividade ou commenos de um ano de atuação no mer-cado. Números de dezembro de 2007mostram carteira de 20.438 clientesativos, desembolsos equivalentes a R$ 20milhões e inadimplência próxima a zero.No período, a média de empréstimosficou em R$ 276.

A configuração do Crediamigo Co-munidade, voltado à base da pirâmide, seapresenta como alternativa para os be-neficiários do Programa Bolsa Família.“Planejamos trabalhar com esse seg-mento da população, numa perspectiva

BNB, os próprios integrantes se respon-sabilizam por decisões, tais como quemparticipa do banco, valor do crédito a serconcedido, controle de recebimentos epagamentos e cobrança das parcelas ematraso. Com base na orientação empre-sarial dos assessores de crédito, os inte-grantes dos bancos são estimulados ainvestir os recursos em atividades pro-dutivas, formar a poupança familiar ediscutir questões de interesse da comu-nidade, conferindo ao produto um forteconteúdo econômico e social.

As primeiras ações do Comunidadeocorreram em 2005, no interior do Ceará,resultado de parceria com a Acción Inter-nacional, organização privada, sem finslucrativos, com programas em diversospaíses da América Latina, e evoluíram pa-ra os demais estados, como um novo pro-duto.“O Comunidade vai além do créditoem si. Envolve outras ações, gerandocapital social”, diz o superintendente. d

Foto: Divulgação/BNB

28 B - 04/16/2008 16:25:26

Page 57: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

lgumas das propostas de reforma da pre-vidência social em discussão nos meioseconômicos, sociais e políticos apresen-tam um foco estrito no próprio sistema

previdenciário. Esquecem que os problemas queo afligem radicam, na verdade, no mercado detrabalho – caracterizado por desemprego, infor-malidade e baixos salários.

Ao longo da década de 1990, o mercado labo-ral sofreu bastante com o fraco desempenho daeconomia brasileira. De 1990 a 1999, o PIB cres-ceu apenas 1,6% ao ano – taxa muito inferior à re-gistrada em décadas anteriores (inferior inclusiveà de 1980 – a chamada “década perdida”). Nestecontexto de reduzido crescimento, o desempregoexplodiu.Nas regiões metropolitanas pesquisadaspela PME/IBGE,que congregam boa parte da po-pulação do país, a desocupação aberta dobrou –passou de 4,2% em 1989 para 8,4% em 2000.

A informalidade seguiu pelo mesmo cami-nho. Levando em conta apenas os assalariadossem carteira assinada das áreas metropolitanas,verifica-se que seu número aumentou em 45,2%no período. Enquanto isso, o contingente de as-salariados com carteira diminuiu 21,5%.

O desemprego e a informalidade, principal-mente nas metrópoles brasileiras, afetaram a re-muneração do trabalho. De julho de 1994 a de-zembro de 1998, o rendimento do trabalhocaptado pela PME/IBGE subiu 40,1%. Todavia,de janeiro de 1999 a janeiro de 2000, caiu 14,5%em termos reais (todos estes dados são da sérieantiga da PME/IBGE). Este cenário de desestru-turação do mercado laboral, próprio da décadade 1990, trouxe dois grandes problemas para aseguridade social (incluindo-se aí a previdência).De um lado, a demanda da população economi-camente ativa por proteção tendeu a aumentar.Sem trabalho, sem emprego e/ou com rendi-mentos em queda, parte dessa população bateu àsportas do sistema de seguridade, em busca derecursos que garantissem sua sobrevivência.

De outro lado, as possibilidades de a segurida-de atender a essa maior demanda por proteçãotenderam a estreitar-se. Os recursos que financia-vam benefícios/serviços sociais (principalmenteos previdenciários) tornaram-se relativamentemais escassos. Isso porque tais recursos eram

oriundos de tributos incidentes sobre rendimen-tos do trabalho – que estavam em queda no pe-ríodo. Ou, então, de tributos incidentes sobre o faturamento/lucro das empresas – estagna-dos, dado o reduzido crescimento do PIB.

Em alguma medida, a seguridade e a previ-dência ficaram no fogo cruzado entre as deman-das da população ativa e as dificuldades de finan-ciamento de políticas sociais. E estas dificuldadestornaram-se ainda maiores, dadas as imposiçõesda política de estabilização monetária do período(que incluía a subtração de recursos das políticassociais para o pagamento de juros da dívida pú-blica – como testemunham o Fundo Social deEmergência, o Fundo de Estabilização Fiscal e aDesvinculação de Receitas da União).

Dessa maneira,se atualmente os meios econô-micos, sociais e políticos discutem reformas naprevidência social, é preciso lembrar dos cons-trangimentos a que esta esteve submetida na dé-cada de 1990. Constrangimentos que estiveramrelacionados à dinâmica da macroeconomia e domercado laboral.Idéias de reforma previdenciáriaque os desconsiderem correm o risco de seremclassificadas como “fora de lugar”.

Acrescente-se que o atual contexto macroeco-nômico é bastante distinto do anterior. De 2004 a2007, o PIB brasileiro cresceu 4,4% em média –percentual quase três vezes superior ao da décadade 1990. Diversas foram as conseqüências sobre omercado laboral. O desemprego recuou – de6,6% em janeiro de 2004 para 4,5% em janeiro de2008. A formalidade da ocupação avançou – oemprego com carteira assinada aumentou 24,2%no período; ao passo que o sem carteira, apenas1,8%. E, na esteira disso, a remuneração do tra-balho melhorou: aumentou 11,2% em termosreais (dados da série antiga da PME/IBGE).Nessenovo contexto, as demandas por proteção porparte da população ativa tendem a se reduzir, en-quanto as possibilidades de financiamento daspolíticas sociais tendem a aumentar. E, obvia-mente, essas novas tendências devem ser levadasem conta em eventuais propostas de reforma daseguridade e da previdência social no Brasil.

Desaf ios • março de 2008 59

A n d r é G a m b i e rARTIGO

Previdência social: idéias fora de lugar

A

André Gambier é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

(Ipea)

Nesse novo

contexto, as demandas

por proteção por parte

da população ativa

tendem a se reduzir,

enquanto as

possibilidades de

financiamento das

políticas sociais

tendem a aumentar.

E, obviamente, essas

novas tendências

devem ser levadas em

conta em eventuais

propostas de reforma

da seguridade e

da previdência

social no Brasil

29 A - 04/16/2008 16:25:26

Page 58: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

CIRCUITOciência&inovação

Pesquisadores norte-ameri-canos desenvolveram um novomaterial, um plástico rígido, quese torna flexível quando molhadoe que volta a endurecer quandoseco. A inspiração para o traba-lho, publicado na revista Science,vem do pepino-do-mar, inverte-brado muito comum no fundo dosoceanos e capaz de alternar seuestado de rigidez quando amea-çado por predadores. O grupo decientistas, liderado por JeffreyCapadona, do Departamento deCiência e Engenharia Macromo-lecular da Universidade CaseWestern, conseguiu juntar na-nofibras de celulose em umamistura de polímeros elásticos.

Espaço

Acordo de cooperaçãocom a Argentina observacostas e oceanos

Brasil e Argentina vãoconstruir satélite para ob-servação costeira e dosoceanos. O acordo de co-operação espacial foi for-malizado durante a visitado presidente Luiz InácioLula da Silva à Argentina,no final de fevereiro. A Ar-gentina tem tecnologia es-pacial, materializada nos satélitesSAC-B, SAC-C e SAC-D, e o Brasilmantém o programa de satélitesde observação Cbers (sigla paraChina-Brazil Earth-Resources Sa-tellite – em português, SatéliteSino-Brasileiro de Recursos Ter-restres). Segundo o Instituto Na-cional de Pesquisas Espaciais(Inpe), o desenvolvimento do sa-télite terá impacto positivo na pro-teção e manejo costeiro, na pre-

Materiais

Plástico revoluciona cirurgiasAo se adicionar um solvente àmistura, a ligação entre as fi-bras é relaxada, deixando omaterial mais flexível. Quando osolvente evapora, a rede forma-da pelas nanofibras volta à ce-na, enrijecendo o material. Umadas aplicações do novo plásticoestá na área de implantes médi-cos, como, por exemplo, nas ca-pas de microeletrodos atual-mente utilizados em terapias dedoenças como mal de Parkinson,derrame ou acidentes na medulaespinhal e que, com o tempo, setornam menos eficientes à medi-da que o organismo cria cicatri-zes nos tecidos ao redor dos im-plantes rígidos.

venção de desastres, na proteçãodo meio ambiente, no uso susten-tável dos recursos naturais mari-nhos e em oceanografia, meteo-rologia e no estudo das mudançasclimáticas. O grupo de trabalhoestabelecido pelos dois paísestem prazo de quatro meses paradefinir as especificações da mis-são e apresentar, em julho desteano, o cronograma e a descriçãoda divisão de tarefas.

60 Desafios • março de 2008

Foto

:sxc

.hu

Computação

Projetos científicos compartilhadosem alto desempenho

O Ministério da Ciência eTecnologia lançou o primeiroCentro de Computação de Al-to Desempenho, reestruturadopelo Sistema Nacional de Proces-samento de Alto Desempenho(Sinapad). O centro integrará oNúcleo de Atendimento em Com-putação de Alto Desempenho(Nacad), do Instituto Alberto LuizCoimbra de Pós-Graduação ePesquisa de Engenharia da Uni-versidade Federal do Rio de Ja-neiro (Coppe/UFRJ). O Sinapadinterligará os núcleos de proces-samento das entidades partici-pantes e permitirá que projetos

acadêmicos e pesquisas científi-cas possam ser partilhados emuma rede de informática de gran-de rendimento. O objetivo é fo-mentar o uso da computação dealto desempenho e o desenvol-vimento científico. Além do centrodo Nacad, também participam doSinapad os centros do Labora-tório Nacional de ComputaçãoCientífica (LNCC), do Instituto Na-cional de Pesquisas Espaciais(Inpe), da Universidade Estadualde Campinas (Unicamp) e dasuniversidades federais de MinasGerais, do Rio Grande do Sul, dePernambuco e do Ceará.

Ilha Grande,

no litoral

do Rio de

Janeiro, e a

foz do rio da

Prata, entre

a Argentina e

o Uruguai

Foto

s:In

pe

29 B - 04/16/2008 16:25:26

Page 59: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

Desaf ios • Março de 2008 61

Foto

:Sto

ckxp

ert

Petróleo

Instituto modernizaavaliação decorrosão

O Instituto Nacional de Tec-nologia (INT) está modernizandoa infra-estrutura laboratorial daárea de corrosão e degradação econstruindo outro Núcleo de Ca-racterização e Avaliação de De-sempenho de Materiais e Com-ponentes Metálicos Utilizados naIndústria de Petróleo (Numat). Oinvestimento, de R$ 25,5 milhões,está sendo bancado pela Finan-ciadora de Estudos e Projetos(Finep) e pela Petrobras e temcomo objetivo atender à crescen-te demanda de desenvolvimento eserviços tecnológicos voltadospara materiais e revestimentosusados nos campos de exploraçãoe plataformas de petróleo, nasetapas de refino de óleo e gás eem seu transporte por dutos.

Cientistas brasileiros e portu-gueses desenvolveram um novomodelo animal para o estudo dosefeitos da malária durante a gravi-dez, que causam anemia materna,diminuição da viabilidade do fetoe crescimento intra-uterino retar-dado. O trabalho foi publicado narevista de acesso aberto Plos One.Só no continente africano, estima-se que anualmente 10 mil gestan-tes e 200 mil crianças morrem emdecorrência da malária associadaà gravidez. Para escapar da açãodo sistema imune, o parasita sealoja em determinadas regiões do

corpo, como as paredes dos vasossangüíneos. No caso da mulhergrávida, ele acaba sendo seqües-trado na placenta. Quando ele sealoja ali, o corpo reage com umprocesso inflamatório. O grupoutilizou uma linhagem de camun-dongos que foi infectada com umparasita transgênico. O gene trans-crito gera uma proteína chamadade GFP, que emite luz verde ao ser estimulada com determinadocomprimento de onda, o que pos-sibilita a visualização do para-sita, que pode ser facilmente lo-calizado em qualquer tecido. O

modelo em camundongos, quereproduz as característicaspatológicas observadasem casos humanos, tra-rá uma importante con-tribuição para a com-preensão de diversosaspectos da malária ges-tacional, além de ser uma im-portante ferramenta para oteste de novas drogas e va-cinas, afirma o autor bra-sileiro da pesquisa, Cláu-dio Marinho, pós-doutoran-do no Instituto Gulbenkiande Ciência, em Portugal.

Nanociência

Inaugurado laboratório para estudo em nível atômicoO Ministério da Ciência e Tec-

nologia (MCT) inaugurou o Centrode Nanociência e NanotecnologiaCesar Lattes no campus do Labo-ratório Nacional de Luz Síncrotron(LNLS), em Campinas (SP), abertoa usuários do Brasil e do exterior.O novo centro reúne, em uma áreaconstruída, de 2,2 mil metros qua-drados, um conjunto de laborató-

rios dedicados ao estudo das pro-priedades de materiais em nívelatômico e molecular. A Financia-dora de Estudos e Projetos (Finep)investiu R$ 6 milhões nas obrasdo prédio, e a Fundação de Ampa-ro à Pesquisa do Estado de SãoPaulo (Fapesp), US$ 2,5 milhões(cerca de R$ 4,2 milhões), para acompra de equipamentos, entre

eles o microscópio eletrônico detransmissão analítica para nano-caracterização de materiais. Asinstalações do centro funcionarãode forma integrada com as esta-ções experimentais da fonte de luzsíncrotron, uma radiação eletro-magnética intensa produzida porelétrons de alta energia em umacelerador de partículas.

Nuclear

Nova política de inovação já está em vigorA Comissão Nacional de Ener-

gia Nuclear (Cnen) tem nova políti-ca de inovação.A Resolução nº 70,publicada no Diário Oficial daUnião (DOU), diz que os projetos depesquisa científica e de desen-volvimento tecnológico da comis-são devem gerar inovações paraatender às demandas do setor nu-clear do país, bem como de outrossetores produtivos de interesse

institucional. A política tem princí-pios de apoio e estímulo à cons-trução de ambientes especializadose cooperativos de inovação; esta-belecer parcerias entre empresas,universidades e institutos científi-cos e tecnológicos; e promover aproteção da propriedade intelectuale do conhecimento e estímulo à ex-ploração e à transferência de tec-nologia, entre outros.

Transgênicos

Experimento para combater a malária na gravidez

Foto

:sxc

.hu

30 A - 04/16/2008 16:25:26

Page 60: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

Geografia é Destino?: Lições da América LatinaJohn Luke Gallup, Alejandro Gaviria e Eduardo LoraEditora Unesp, 2007 – 176 páginas – R$ 34,00

62 Desafios • março de 2008

Determinismo geográfico (no bom sentido da palavra...)

ESTANTElivros e publicações

o início da segunda metade do sé-culo XX, a construção de uma teo-ria do desenvolvimento, a partir deuma reflexão própria aos países em

desenvolvimento, teve de desmentir velhospreconceitos raciais, determinismos climá-ticos e geográficos ou “desvios” culturais ereligiosos.A “ética calvinista”e o “espírito docapitalismo”, isto é, o progresso e a prospe-ridade, pareciam estar irremediavelmenteencarnados em povos nórdicos, anglo-sa-xões, restando-nos as agruras do subdesen-volvimento, tão inevitável quanto geográfi-ca e culturalmente “determinado”. Depoisque asiáticos passaram a perna nos “norte-atlânticos” em matéria de taxas de cresci-mento – aliás, nos próprios latino-ameri-canos, desmentindo Gunnar Myrdal e seuequivocado Asian Drama –, o mundo co-meçou a olhar com mais atenção outras va-riáveis do processo de desenvolvimento,que não apenas coordenadas geográficas eatavismos culturais.

No entanto, geography matters, comolembra David Landes, na abertura destaobra, que é, ao mesmo tempo, uma reflexãoteórica e um estudo de caso, focado naAmérica Latina. Jared Diamond, tambémcitado ao início, já tinha notado as imensasbarreiras físicas que impediram as Améri-cas – a América do Sul em particular – departicipar dos intercâmbios de espécies ani-mais e vegetais que, nas regiões setentrio-nais, disseminaram técnicas e procedimen-tos que transformaram para melhor a vidados povos da imensa Eurásia. Comparandoos níveis de desenvolvimento dos diversos

países da região, e suas características geo-gráficas, os autores examinam, sucessiva-mente, os problemas físicos e as respostasque podem ser dadas às desvantagens deuma geografia mais inclemente.

A América Latina é a mais fragmentadaregião do mundo, com grande número deecozonas distintas, ao mesmo tempo quesua fragmentação etnolingüística é bemmenor, mas importante em países comoBolívia, Guatemala ou Peru.A nova Consti-tuição da Bolívia, por exemplo, reconhececomo oficiais, além do castelhano, outras 36 línguas indígenas: de dar inveja à União Européia! A independência do Haiti não foifeita de vitórias militares, mas de derrotaspor malária e febre amarela. O ambientetropical também torna penoso o trabalhohumano, como ilustrado pelo canal do Pa-namá. Enfim, não faltam evidências de altamortalidade e de baixa renda per capita nasfaixas de latitude próximas ao Equador.

Mas, como indicam os autores, não há,propriamente, condicionantes ou determi-nismos, porém “canais de transmissão” dasespecificidades geográficas nas atividadeseconômicas e humanas. Esses canais são aprodutividade da terra, a presença de doen-ças endêmicas, a ocorrência de desastresnaturais e o acesso aos mercados, ou seja,a localização dos agentes econômicos. O es-tudo em nível regional, isto é, interno aospaíses, permite isolar fatores institucionais eculturais dos determinantes especificamen-te geográficos. Os dois primeiros capítulosolham para o passado dos países latino-americanos e a influência da geografia nos

níveis de desenvolvimento de países e re-giões. O terceiro capítulo olha para a frente,buscando determinar o que poderia ser fei-to. Algumas barreiras ou obstáculos de in-fra-estrutura podem estar acima da capa-cidade de países pobres superá-los, e elessão pobres em grande medida por essesfatores. Os autores relacionam, em todocaso, as diferentes medidas de políticasregionais, as estratégias de descentralizaçãoe a aplicação da ciência e tecnologia aos ca-sos mais difíceis.

A produtividade da terra e as condiçõesde saúde, por exemplo, podem ser alteradaspor meio de avanços tecnológicos, como aconquista do cerrado provou no caso doBrasil. Mas as epidemias reincidentes dedengue demonstram quão frágeis podemser esses ganhos, na ausência de políti-cas públicas eficazes no controle dos ve-tores. Desastres naturais requerem obras demaior porte e deslocamentos de popula-ções, que podem estar fora do alcance dedeterminados governos. O mesmo pode seraplicado à infra-estrutura de acesso aosmercados, mas o Banco Interamericano deDesenvolvimento (BID), do qual fazemparte os autores,está aí para isso mesmo.Noentanto, institutos públicos de pesquisa detoda a região podem ter menos recursos doque a Monsanto, por exemplo. Em suma, ageografia não é uma fatalidade, mas o es-forço para a decolagem a partir dos trópicosé sempre mais custoso e o empurrão inicialtem de ser maior.

Paulo Roberto de Almeida

N

30 B - 04/16/2008 16:25:26

Page 61: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

Desaf ios • março de 2008 63

Encontro em Ouro PretoGeraldo Holanda CavalcantiEditora Record, 2007 – 192 páginas – R$ 30,00

Contos fantásticos, masassustadoramente normais

maior surpresa destes “contos fan-tásticos” do escritor, poeta, tradu-tor laureado e diplomata GeraldoHolanda Cavalcanti é a de que eles

são, efetivamente, fantásticos, em qualquersentido que se dê a esta palavra. Mas, aomesmo tempo, eles são... assustadoramen-te normais.

Com isso quero dizer que os contos sesituam naquela zona do irreal, ou do sur-real, que povoa nossas mentes, sem deixar,um único segundo, o chão de terra batidaque nos liga à existência cotidiana maisbanal do mundo. Ou seja, o fantástico aquinão se prende a fenômenos paranormais,a seres de outro mundo, a dimensões inex-plicáveis da realidade, ou à intervenção dealgum poder externo que atuaria inde-pendentemente da vontade dos persona-gens, como se vê habitualmente na cha-mada “literatura fantástica”. Aqui não:estamos em face de personagens e de si-tuações absolutamente normais, no sen-tido mais corriqueiro da palavra, pessoas ecasos que poderiam freqüentar nossoescritório de trabalho, eventos que pode-riam estar se desenvolvendo nas esquinasdo nosso bairro, “coisas”, por vezes pro-saicas, que poderiam ocorrer em nossaspróprias vidas. Pessoas, enfim, que pode-riam ser nós mesmos. É a isso que merefiro quando classifico estes “contos fan-tásticos” de “assustadoramente normais”.

A rigor, o único “intruso externo” quepoderia aproximar um dos contos do ter-mo fantástico na acepção mais freqüentedessa expressão seria a misteriosa força,inexplicável, que impede o personagem de O violinista, detentor de um excelenteviolino húngaro, de tocar a Tzigane de Ra-vel. Neste caso, o violino, não o violinista,mereceria seu enquadramento na catego-ria de “fantástico”. De resto, todas as demais situações inverossímeis, inexpli-cáveis, surpreendentes, enfim, fantásticas,que povoam estes contos são absoluta-

mente corriqueiras, até banais, na vida decada um de nós, mas o resultado é sempreuma surpresa, sem que se consiga, no co-meço de cada conto, prever o seu final.Tentei várias vezes “adivinhar” o que viriaa ocorrer com o personagem de cada con-to, que geralmente é o próprio narrador,sem sucesso, porém: o final é sempre umatotal surpresa, e nisso também reside ocaráter fantástico destes excelentes contosde Geraldo Holanda Cavalcanti.

Esse caráter surpreendente dos contos“semifantásticos” do poeta e ensaísta con-sagrado faz com que seja difícil largar um conto uma vez iniciada a sua leitura.A chave talvez esteja, precisamente, no fatode que o personagem, salvo uma ou outraexceção, nunca é alguém externo, mas ésempre o próprio narrador, isto é, nósmesmos, à condição de nos identificar-mos com ele: um cidadão normal, de ida-de média, trabalhador, viajante, jornalista,homem de família ou de situação indefi-nida, mas em todo caso perfeitamente en-contrável na nossa vida diária. NissoGeraldo Holanda Cavalcanti preencheintegralmente os requisitos da literatu-ra fantástica tal como explicitados porTzvetan Todorov, que ele coloca emdestaque na abertura de sua coleção decontos: o leitor é obrigado a considerar omundo dos personagens como um mun-do de criaturas vivas, ele se identifica comum dos personagens, geralmente o nar-rador, e ele recusa uma interpretaçãopoética ou alegórica do texto.

Assim, cada uma das situações vividaspelos diversos personagens dos 18 contosaqui selecionados é, aparentemente, banal,corriqueira e surpreendentemente fantás-tica. Em vários casos, tudo pode ter ocor-rido apenas na mente do personagemprincipal, povoada de “fantasmas” quepodem ter efetivamente existido e interagi-do consigo e com todas as demais pessoas;em outros casos, os “fatos” ocorreram com

outros personagens, e o narrador é um mero espectador do inexplicável, situa-ção essa que se situa, entretanto, inteira-mente dentro do domínio do plausível e do possível.

Contos verdadeiramente fantásticos,acredite, caro leitor, não são aqueles quenos enviam a uma dimensão surreal, ge-ralmente assustadora ou “aterrorizante”, deuma existência qualquer, eventualmente anossa própria. Eles são tão mais cativantesquanto despertam em nós a sensação deque aquilo poderia estar ocorrendo comnós mesmos, numa dessas situações cor-riqueiras da vida. E o mais atraente na es-crita de Geraldo Holanda Cavalcanti é afluidez do texto, a palavra atraente e cer-teira, mesmo quando ela transmite toda a ambigüidade de uma situação, e suas pa-lavras geralmente o fazem, transmitindoessa situação de “desconforto” e de “in-certeza” com o que pode vir a ocorrer como personagem principal, nisso atiçandonossa curiosidade para que logo chegue-mos ao final do conto. Eles se lêem, assim,rapidamente, mas a impressão que nos ficaé permanente:“caramba!, é verdade, comoé que isso pôde ocorrer?”.

Com tudo isso fica a sensação de “queromais”. A vontade que dá, ao encerrar o li-vro, é a de pedir ao autor que continue anos enfeitiçar com os seus, novos, contosfantásticos, assustadoramente normais...

Paulo Roberto de Almeida

A

31 A - 04/16/2008 16:25:26

Page 62: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

39%

61%

Mulher contribuinte Mulher não contribuinte

63%

37%

Homen contribuinte Homem não contribuinte

63%

37%

Mulher contribuinte Mulher não contribuinte

68%

32%

Homen contribuinte Homem não contribuinte

As mulheres já representam 44,4% da População Ocupada (PO), 45,5% da População Economica-mente Ativa (PEA), 53,5% da População em Idade Ativa (PIA) e 57,7% da População Desocupada (PD) nas seis regiões metropolitanas brasileiras investigadas pela Pesquisa Mensal de Emprego (PME) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgada em março com dados relativos a janeiro deste ano. A escolaridade feminina é maior – 59,9% registram 11 anos ou mais de estudo, ante 51,9% dos homens. Mas o rendimento das trabalhadoras com nível superior alcança apenas 60% do recebido pelos homens com a mesma escolaridade. Entre as trabalhadoras, 37,8% têm carteira assinada e entre os homens, 48,6%. A taxa de desocupação das mulheres em janeiro foi de 10,1% e a dos homens, 6,2%. O rendimento médio das mulheres foi de R$ 956,80, e o dos homens, de R$ 1.342,70, correspondendo às mulheres 71,3% do rendimento masculino. A região metropolitana de Belo Horizonte apresenta a maior diferença, com as mulheres recebendo apenas 65,2% do rendimento dos homens. Esses dados são de um estudo especial da PME sobre a mulher no mercado de trabalho.

O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) é um indicador objetivo para verificar o cumprimen-to das metas fixadas no Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), do Ministério da Educação (MEC). Com ele, o Brasil busca alcançar médias de aprendizado semelhantes às de países mais desenvolvidos. O Ideb se expressa em valores de zero a 10 em todas, por unidade da federação e município, com-parando notas e tempo de graduação. Foi lançado em 2007 e é calculado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesqui-sas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Relaciona informações sobre rendimento escolar (aprovação) com o aprendizado (proficiência) em exames padronizados – a Prova Brasil e o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) – este já aplicado a cada dois anos desde 1990 e que avalia alunos da 4ª e da 8ª séries do 1º grau e da 3ª série do 2º grau, em Língua Portuguesa e Matemática.

7,6

6,2

14,312,9

11,3

10,19,59,4

7,67,9

13,5

11,3

0

2

4

6

8

10

12

14

16

jan/03 jan/04 jan/05 jan/06 jan/07 jan/08

Homem Mulher

31 B - 04/16/2008 16:25:26

Page 63: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

53,1

43,8 42,7

52,853,5

45,5 44,4

57,7

0

20

40

60

80

100

PIA % PEA % PO % PD%

jan/03 jan/08 masculino feminino

3,8

3,0

3,63,8

3,4

4,24,0

2,3

1,7

2,42,1 2,1

2,52,2

0

1

2

3

4

5

6

BeloHorizonte

Rio deJaneiro

PortoAlegre

São PauloSalvadorRecifeTotal

0

20

40

60

80jan/03 jan/08

3,15,6

22,117,7

51,3

1,63,9

18,815,8

59,9

S/inst e c/ menosde 1 ano de estudo

1 a 3 anosde estudo

4 a 7 anosde estudo

8 a 10 anosde estudo

11 anos ou mais Rio deJaneiro

PortoAlegre

BeloHorizonte

SalvadorRecifeTotal São Paulo

100

0

20

40

60

80

71,375,9 74,2

65,2

75,670,4 69,3

homem mulher

masculino feminino

0,0

10,0

20,0

30,0

40,0

50,0

60,0

trabalho menor ou igual a 39

trabalho entre

40 e 44

trabalho maior

que 45 h

10,1

51,6

38,2

26,4

49,5

24,1

0,0

10,0

20,0

30,0

40,0

50,0

60,0

trabalho menor ou igual a 39 h trabalho entre 40 e 44 h trabalho maior que 45 h

28,626,1

24,1 25,1

41,3 42,5

47,5 47,3

52,555,2

20,4

26,6

31,1 32,130,1

26,4

19,723,4

Total REC SAL BH RJ SP POA

26,4

49,5

24,1

32 A - 04/16/2008 16:25:26

Page 64: Carta ao leitor - Repositório do Conhecimento do Ipea: Homerepositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6980/1/... · Jorge Abrahão de Castro, diretor-geral da revista Desafios do Desenvolvimento

Parabéns pela reportagem so-bre Segurança na última ediçãoda revista Desafios do Desen-volvimento. Com um texto defácil entendimento e que dá von-tade de ler, pude tomar conheci-mento de informações que nãoconseguia captar na leitura dejornais e nos noticiários do rádioe da televisão sobre um assuntoque está tão presente no nossodia-a-dia.

Manoela VenturiniRio de Janeiro/RJ

Por que será que a mídia pro-cura ignorar as ações benemé-ritas da Igreja Católica? Os ser-viços e pastorais organizadospela Igreja são postos de lado co-mo se nunca houvessem existido.Geralmente as notícias são man-tidas e levadas a público de for-ma a desmerecer todo o traba-lho pastoral. Ora, há exemplostão claros e evidentes da preo-cupação da Igreja Católica com obem-estar social de todos, bastaprestarmos mais atenção e ver ascasas no Bairro Azul. Em 1957,um grande incêndio causoumuita destruição por toda afavela e foi um padre, e não umpolítico, que arregaçou as man-gas e decidiu reconstruir nova-

mente o então Morro Azul. Foi oPadre Paulo Riou. Ele e a irmãHenriqueta Assunção deseja-vam construir uma creche paraabrigar crianças de quatro mesesa quatro anos. Atualmente a cre-che tem 75 alunos, doze pro-fessoras, duas psicólogas e umaassistente social. Todos que alitrabalham recebem salários. Hátambém duas pediatras que fa-zem trabalho voluntário. Algunsanos atrás, em campanha polí-tica, o prefeito César Maia es-pantou-se ao ver o Bairro Azul,pois com certeza não esperava,ao entrar naquela comunidade,encontrar casas bem construí-das, a creche, capela e a visívelorganização. Ficou admirado eparecia duvidar que tudo aquilohouvesse sido feito por uma igre-ja. Há muitos anos, a catequesefoi implantada no bairro Azul.Uma obra social como esta dis-pensa qualquer atributo, pois es-tá visível aos olhos mais des-crentes. Nas obras sociais danossa paróquia não existe a vai-dade, existem, sim, a solidarie-dade e a humanidade de umacongregação francesa voltadapara o amor ao próximo.

Celeste MonteiroRio de Janeiro/RJ

“A César o que é de César.” Pa-rabéns pela expressiva entrevistado Sr. Delfim Netto, neste mo-mento de falência crítica social epolítica em nosso país quando oassunto é sincronização política-desenvolvimentista. Consideroque o entrevistado transcendeuno tempo e chega até nossos no-vos tempos com uma nova coe-rência. Poder era o maior e o me-nor era a população. O governodo presidente Luiz Inácio Lula daSilva inverteu este estilo de trataro ser humano brasileiro, permi-

tindo que poder vire mesmo go-verno e população seja priorida-de. Volto a louvar a honestidadedo entrevistado. Parabéns à re-vista, parabéns a nós, os leitores,que não morremos sem ler estasverdades.

Maria de Lourdes Cardoso Lima

Salvador/BA

Ministro a disciplina Funda-mentos da Economia, no Cursode Ciências Contábeis, na Uni-versidade Estadual da Paraíba(UEPB), Campus VI, e utilizo vá-rios artigos da revista publicadapor vocês.

Ilcleidene Pereira de FreitasSumé/PB

As edições da revista Desafiostêm sido de enorme valia paraminhas aulas de políticas pú-blicas brasileiras na Universidade

Federal do Rio Grande do Sul(UFRGS).

Maria Cristina BortoliniPorto Alegre/RS

A práxis do ensino profissio-nalizante em Santa Catarina sugere uma mudança de para-digmas, diante da nova ordemeconômica mundial, e uma me-todologia a ser aplicada para ade-quar o ensino profissionalizanteaos padrões de uma sociedadeglobalizada. As empresas meno-res constituem a maioria no ce-nário produtivo, são as que maisempregam, que mais se relacio-nam com os valores humanos ecom as riquezas do nosso país, eprecisam que os egressos das es-colas de ensino profissionalizantesejam eficientes no cumprimentodas suas tarefas, que o senso deproatividade esteja presente.

José Alberto ZytkuewiszFlorianópolis/SC

CARTAS A cor r e s pond ê n c i a p a ra a r e d a ç ão d e ve s e r e n v i ad a p a ra d e s a f i o s@ip e a . g ov. b r

ou para SBS Quadra 01 - Ed i f íc io BNDES - Sala 1515 - CEP: 70076-900 - Brasí l ia - DF

Repr

oduç

ão

66 Desafios • março de 2008

Acesse o conteúdo da revista Desaf ios do Desenvolvimento no endereço:

www.desafios.ipea.gov.br

Aos leitores,Desafios do Desenvolvimento agradece as pautas sugeridaspor diversos leitores que escreveram. Todas aquelas que aten-derem à linha editorial da revista serão analisadas e apuradaspela equipe de reportagem no devido tempo.

32 B - 04/16/2008 16:25:26