carreteiros e carroceiros no vale do taquari

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Associação Nacional de História – ANPUH XXIV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA - 2007 Governador Brizola, o Master o e conflito na Fazenda Sarandi, 1960-1962. João Carlos Tedesco 1 Joel João Carini 2 Resumo O trabalho analisa o conflito agrário na Fazenda Sarandi, capitaneado pelo Governador Leonel Brizola e lideranças do PTB do norte do Estado. O Movimento Master, no início da década de 1960, foi expressivo na luta pela terra no Rio Grande do Sul. Busca-se centrar a análise em torno da figura do governador Brizola, a liderança regional do Prefeito de Nonoai Jair Calixto, dos intelectuais do PTB, do papel da Igreja Católica, bem como de facções políticas no interior do Movimento. Palavras-chave: Movimento social, Master, Igreja Católica. Abstract The work analyses the land conflict in the Sarandi Farm, located in the north of Rio Grande do Sul State, commanded by Leonel Brizola governor and local PTB leaderships. To begin 60's the Master Movement was expressive in the land struggle in this State. Search it focus the analysis around the Brizola governor, the regional leadership of Municipality of Nonai'Mayor, Jair Calixto, of the PTB intellectuals, of the role of Catholic Church as so political factions inside of Movement. Key-words: Social Movement, Master, Catholic Church. Considerações Iniciais No presente texto, pretendemos fazer uma breve interpretação histórico-sociológica da atuação do Master (Movimento dos Agricultores Sem Terra – 1960-64) no norte do Rio Grande do Sul, especificamente no evento denominado: “Movimento de Capão da Cascavel”, ocorrido no mês de janeiro de 1962, próximo a atual cidade de Ronda Alta/RS, movimento que resultou na desapropriação da Fazenda Sarandi no norte do Estado, pelo então governador Leonel de Moura Brizola, um latifúndio com área, na época, de cerca de 22.000 ha pertencente a estancieiros e industriais uruguaios. O quadro fundiário na região No final dos anos 1950 o norte do Rio Grande do Sul, especialmente a região de abrangência dos agricultores envolvidos no Movimento de Capão da Cascavel, apresentava um quadro fundiário de forte crise. O estoque de terras devolutas usadas para colonização já se esgotara no começo dos anos 1940, quando se formaram os últimos fronts no interior das 1 Prof. UPF 2Doutorando UFRGS

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Artigo de história regional

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  • Associao Nacional de Histria ANPUH XXIV SIMPSIO NACIONAL DE HISTRIA - 2007

    Governador Brizola, o Master o e conflito na Fazenda Sarandi, 1960-1962.

    Joo Carlos Tedesco1Joel Joo Carini2

    Resumo O trabalho analisa o conflito agrrio na Fazenda Sarandi, capitaneado pelo Governador Leonel Brizola e lideranas do PTB do norte do Estado. O Movimento Master, no incio da dcada de 1960, foi expressivo na luta pela terra no Rio Grande do Sul. Busca-se centrar a anlise em torno da figura do governador Brizola, a liderana regional do Prefeito de Nonoai Jair Calixto, dos intelectuais do PTB, do papel da Igreja Catlica, bem como de faces polticas no interior do Movimento. Palavras-chave: Movimento social, Master, Igreja Catlica. Abstract The work analyses the land conflict in the Sarandi Farm, located in the north of Rio Grande do Sul State, commanded by Leonel Brizola governor and local PTB leaderships. To begin 60's the Master Movement was expressive in the land struggle in this State. Search it focus the analysis around the Brizola governor, the regional leadership of Municipality of Nonai'Mayor, Jair Calixto, of the PTB intellectuals, of the role of Catholic Church as so political factions inside of Movement. Key-words: Social Movement, Master, Catholic Church.

    Consideraes Iniciais

    No presente texto, pretendemos fazer uma breve interpretao histrico-sociolgica da

    atuao do Master (Movimento dos Agricultores Sem Terra 1960-64) no norte do Rio

    Grande do Sul, especificamente no evento denominado: Movimento de Capo da Cascavel,

    ocorrido no ms de janeiro de 1962, prximo a atual cidade de Ronda Alta/RS, movimento

    que resultou na desapropriao da Fazenda Sarandi no norte do Estado, pelo ento governador

    Leonel de Moura Brizola, um latifndio com rea, na poca, de cerca de 22.000 ha

    pertencente a estancieiros e industriais uruguaios.

    O quadro fundirio na regio No final dos anos 1950 o norte do Rio Grande do Sul, especialmente a regio de

    abrangncia dos agricultores envolvidos no Movimento de Capo da Cascavel, apresentava

    um quadro fundirio de forte crise. O estoque de terras devolutas usadas para colonizao j

    se esgotara no comeo dos anos 1940, quando se formaram os ltimos fronts no interior das

    1 Prof. UPF 2Doutorando UFRGS

  • 2

    reservas indgenas especialmente de Serrinha, Nonoai, Ventarra e iniciara a dispora de

    gachos em direo ao oeste de Santa Catarina e sudoeste do Paran (CARINI, 2005).

    Na regio de Ronda Alta, ento pertencente ao municpio de Sarandi, no incio dos

    anos 1960, a Fazenda Sarandi rea remanescente de uma antiga posse de mais de 70.000 ha,

    formada no sculo XIX constitua um latifndio, como j vimos, de mais de 21.000 ha de

    terras, espraiadas por campos e matos da regio, sendo propriedade de empresas uruguaias,

    com sede em Montevideo. As terras eram arrendadas a vrios agricultores e pecuaristas

    (RCKERT, 1997).

    O evento de maior repercusso da primeira quinzena de janeiro de 1962 foi a

    Concentrao Rural de latifundirios -, realizada nos dias 06 e 07, na cidade de Santa Maria.

    O jornal Correio do Povo deu ampla cobertura ao evento patrocinado pela Farsul, tanto na

    divulgao da fase preparatria, quanto na publicao de trechos dos debates e das moes de

    apoio vindas da Assemblia Legislativa e de entidades diversas. Numa das edies, em

    manchete de capa, um jornal destaca: Santa Maria, centro das atenes das classes

    produtoras, reuniu mais de 1000 convencionais. No primeiro dia do encontro, os discursos j

    deixavam transparecer a preocupao dos ruralistas com a questo da Reforma Agrria: No

    somos um acampamento de reacionrios, disse o orador oficial das delegaes, desejamos

    uma Reforma Agrria, mas, sem emoes, paixes subalternas ou interesses escusos.3

    O Master se consolidou, institucionalizou-se e ganhou visibilidade entre os anos 60 a

    64. Porm, sua articulao no meramente conjuntural e nem regional; havia uma correlao

    e uns fios que se teciam j por alguns anos coligados com mediaes das Ligas Camponesas e

    com a Unio dos Lavradores e Trabalhadores Agrcolas do Brasil (ULTAB), entidades essas

    de pouca repercusso no solo gacho at ento, mas que contriburam para legitimar aes

    reivindicativas em torno da questo fundiria e dos grandes problemas vividos por pees,

    assalariados rurais, agregados, arrendatrios, pequenos camponeses, dentre outras formas de

    expropriao. Estratgias de ocupao de terras, organizaes sindicais rurais j vinham se

    constituindo e inserindo em suas diretrizes aes de justia em torno da terra no Estado. A

    proliferao de aes em torno da mesma e sua dimenso politicamente aceita em nvel

    poltico e, em grande parte, social, expressavam a preocupao de entidades, agremiaes

    polticas, no caso em especial o PCB e o PTB, com a concentrao da propriedade, com o

    aumento do minifndio, com o esgotamento da fronteira agrcola no Estado, aliada a crise do

    trigo, da pecuria, o comeo da cultura da soja e suas polticas de alterao produtiva, a

    3 Jornal Correio do Povo, Porto Alegre, 07 jan. 1962. p. 44

  • 3

    intensa presena de pees, assalariados, parceiros, pequenos proprietrios, assalariados rurais,

    meeiros, arrendatrios, agregados, posseiros, filhos de pequenos agricultores (o Censo de

    1960, indicava a existncia de 297.814 agricultores sem terra no RS).4

    Segundo Eckert, o Movimento se consolida em 1960 por ocasio de uma tentativa de

    retomada de uma rea de 1.800 ha no interior do municpio de Encruzilhada do Sul que h 50

    anos estava em poder de 300 famlias de posseiros. O proprietrio, aps quase 40 anos sem

    reclamar da propriedade, comea a exigir dos posseiros cobrana pelo uso da terra, induzindo-

    os e coagindo-os a comprar a terra sob pena de serem despojados. A reao foi imediata.

    Vrios mediadores, dentre eles, Ruy Ramos, Paulo Schilling e Milton Serres Rodrigues,

    pertencentes ao PTB, passam a pleitear junto ao governo do estado uma soluo. No incio,

    buscou-se uma soluo poltica e jurdica para apenas uma parte da rea em litgio (ECKERT,

    1984). Esse movimento foi o que desencadeou a possibilidade de organizao; porm o da

    Fazenda Sarandi e o do Banhado do Colgio em Camaqu (esse repercutiu por ser uma

    imensa extenso de terra pblica em torno de 50.000 ha na qual o estado estava fazendo

    grandes investimentos em obras de saneamento e de irrigao) foram os mais expressivos no

    perodo pela forte vinculao com o governador Brizola que ambos expressavam.

    A ocupao da Fazenda Sarandi Como j frisamos a dita Fazenda Sarandi foi palco de muitas controvrsias em torno

    de seu tamanho, em torno dos grandes conflitos que constituram sua histria, em torno dos

    grandes expoentes do capital que investiram nela, sejam madeireiras, grandes arrendatrios e

    proprietrios fundirios (dentre eles Ari Dalmolin, grande latifundirio, presidente da

    Coopasso, da Fecotrigo, dentre outras entidades representativas dos grandes interesses

    agropecurios no estado) e camponeses, sem terra em suas vrias identificaes sociais no

    meio rural (assalariados rurais, agregados, meeiros, pequenos arrendatrios, etc) que viam na

    mesma uma possvel soluo para os problemas agrrios da regio. Grupos polticos e de lutas

    sociais pela terra vo acompanhando e mediando esses processos, produzindo, ao mesmo

    tempo, outros grupos de resistncia e contraposio.

    Baseado em boatos, como reconhece o referido Jornal abaixo, o incio do Movimento

    na referida Fazenda, no local chamado Capo da Cascavel, descrito sob a tica da mediao

    das Ligas, ao mesmo tempo sob a tica do voluntarismo e da irracionalidade e do

    reconhecimento da existncia do problema fundirio na regio:

    4 Cf. Jornal Correio do Povo. Porto Alegre, 3 jan. de 1962.

  • 4

    Concentrao de elementos da Liga Camponesa de Nonoai, em Ronda Alta A reportagem colheu informes de que, ontem, diversas famlias tinham vindo de Nonoai, fixando-se em Ronda Alta no Municpio de Sarandi famlias estas que pertenceriam s chamadas Ligas Camponesas. [...] Segundo consta, narrado por pessoas que vieram de Ronda Alta, encontram-se, j no dia de hoje, mais de 600 pessoas no referido local. Reclamam pelas terras de Sarandi, ao que parece disse-nos um dos que informaram. [...]. Consoantes alguns informes, essa concentrao de pessoas pretende realizar algo parecido com o chamado Cimarron, nos Estados Unidos, quando o Estado proclamava a existncia de terras devolutas... Isto , as famlias esto preparadas, a correrem em suas viaturas, o tomar posse das terras indicadas: o que chegar primeiro, apossa-se da terra que conquistou e que de sua preferncia. Segundos alguns informantes os colonos esto armados. J outros dizem que no possuem armas. [...] Infelizmente a reportagem no pode se locomover at Ronda Alta para a verificao exata dos fatos. De qualquer forma, acredita-se que j no se pode esconder a gravidade da situao criada em Nonoai que agora, se reflete sobre o Municpio de Sarandi.5

    O acampamento, utilizando a estratgia da beira da estrada, para no viabilizar a

    justificativa de retirada pro invaso da propriedade, comeou no dia 11 de janeiro com 300

    pessoas, no diz 13 j se contabilizava mais de 1.300. A capacidade de mobilizao, aliada a

    algumas figuras mediadoras do PTB na regio, bem como a intensa demanda pela terra na

    regio, causou impresso e impacto em todos os setores da comunidade gacha, os quais, em

    geral reconheciam o problema e apelavam para soluo na esfera pblica.

    A organizao do acampamento de Capo da Cascavel foi projetada a partir de

    Nonoai, terra do prefeito Calixto. A liderana e o carisma davam-lhe forte poder: olha, o

    Calixto era uma figura folclrica e muito ligado pobreza. (...) era pessoa folclrica, mas,

    tinha tambm uma forte liderana, principalmente no meio da caboclada. Era o Deus da

    caboclada.6 Assim, Nonoai se torna o ponto de articulao e a principal base de apoio ao

    movimento. Os agricultores foram recrutados por Calixto e Chiquinho, os quais mandavam

    emissrios em todas as casas:

    5 Jornal O Nacional, Passo Fundo, 11 de Jan. 1962, p. 1. 6 RIBEIRO, Joo Manuel. Entrevistado por Joel Joo Carini. Ronda Alta/RS, 27 de fevereiro de 2006. O entrevistado aposentado, 64 anos, foi prefeito de Ronda Alta em duas legislaturas (a terceira e a quinta), a primeira vez foi eleito pelo MDB e a segunda pelo PDT; vereador em trs legislaturas, a primeira vez pelo MDB e as outras duas pelo PDT. Alm disso, foi secretrio municipal nos municpios de Sarandi e Constantina. No movimento de Capo da Cascavel, colaborou no recrutamento dos sem terra da regio de Ronda Alta e na assessoria Calixto.

  • 5

    - Nis avisemo que ia pass o caminho. Da viemo a em Ronda Arta, no dia 10 de janeiro pr amanhec dia 11. A gente olhava pr tris e via aquela enorme fila de caminho cheio de gente.7- Um vizinho avisava o outro. Naquela poca era muito difcil. As pessoas tinham medo dessas coisas. Ento a gente saa convidando, sabia que um no tinha terra, ia l e convidava. Este j indicava um outro... A gente ia formando grupos, desde Nonoai. Samos de Nonoai numas 100 famlias, quando chegamos em Ronda Alta tinha mais outro tanto....8

    Por sua vez, o governador Brizola procurou mostrar opinio pblica que o ato partira

    exclusivamente da iniciativa de Calixto e de seus asseclas, ainda que o governo estivesse de

    acordo com um movimento pacfico. o que se depreende pela matria:

    Informa-se, outrossim, que em face da comunicao feita pelo prefeito Ivo Sprandel s autoridades estaduais, o governador Leonel Brizola teria mandado chamar a esta Capital o prefeito de Nonoai, sr. Jair Calixto, a fim de inteirar-se da situao reinante em seu municpio e, se fosse o caso, para moderar os mpetos reformistas de S. S.a do qual, como se sabe, o chefe do Executivo parente prximo.9

    As preocupaes de Brizola com a ordem pblica, com a possibilidade de

    ideologizao do movimento ou em fazer com que o movimento no se parecesse comunista,

    revolucionrio ou subversivo eram constantes:

    Isto no invaso, Calixto... Que ningum meta o p alm do alambrado! Quero que respeitem as propriedades particulares. Cuida para no entrar no grupo algum agitador. O que ns precisamos criar um clima social pacfico, para facilitar a desapropriao (CASALI, 2005: 142).

    Jornais mostravam que Brizola orientava determinadas invases em vrias partes do

    estado e determinava que fossem plantadas cruzes no centro do acampamento para que mais

    tarde no nos chamassem de comunistas.10

    Uma das estratgias para a criao de um clima social pacfico, segundo os nossos

    entrevistados, era conquistar o apoio da Igreja Catlica, at a bastante reticente e, em certos

    casos, abertamente contrria ao movimento, como se ver a seguir.

    7 SILVA, Francisco Santos da. Entrevista j informada. 8 SOARES, Valdomiro. Entrevistado por Joel Joo Carini, Linha Dona Carolina, Ronda Alta/RS, 27 de fevereiro de 2006. O entrevistado, com 64 anos, agricultor, assentado em terras da Fazenda Sarandi. 9 Jornal Correio do Povo. Porto Alegre, 12 de jan de 1962, p. 14. 10 Jornal O Rio Grande. Porto Alegre, 23 a 30 de ago. 1979, n. 16.

  • 6

    Quem tem terra vai com Cristo, quem no tem vai com Calixto A posio da Igreja Catlica frente ao Movimento

    No Rio Grande do Sul, a Igreja Catlica estava concentrada nas mos do arcebispo de

    Porto Alegre Dom Vicente Scherer, que havia assumido como arcebispo em 1947. Como um

    dspota, mantinha a maior parte do clero subordinado s suas ordens e fiel s suas teses,

    sendo sua principal obsesso a do anti-comunismo. Na mensagem de abertura do ano

    litrgico de 1962, Scherer manifestou-se nos seguintes termos:

    Os vanguardeiros das foras de Moscou agem com disfarces, aliciando adeptos e ocupando posies...[...]. No promovemos campanhas negativas de anticomunismo, mostramos os erros da ideologia marxista pelo debate dos princpios doutrinrios em que se funda e pelo exame da experincia desastrosa que se est fazendo nos pases j dominados pelas foras aguerridas do novo imprio colonialista.11

    Sem parecer ser paradoxal ou ambgua, a oficialidade da Igreja Catlica do

    perodo interviu nos movimentos sociais de luta pela terra ao mesmo tempo em que apoiava a

    pequena propriedade por ser ela, de acordo com a doutrina social, a garantia histrica da

    famlia, do familismo em torno do trip terra, trabalho e famlia; as associaes cooperativas e

    sindicais, essas concebidas como assistenciais e prestadoras de servios, seriam agregadoras

    de aes coletivas e comunitrias para alm de dimenses classistas, de representao

    partidria. Com isso, a Igreja mantinha o controle ideolgico dos sindicatos, entendia libertar

    a famlia e a propriedade dos males das doutrinas marxistas. O surgimento da FAG, sob

    influncia da Encclica Mater et Magistra de Joo XXIII, bem como a Populorum Progressio

    de Paulo VI e dos prprios documentos do Conclio Vaticano II, dentre eles o Gaudium et

    Spes, d-se com essas intenes.

    Com o propsito de dar ainda mais nfase ao carter religioso, o acampamento foi

    batizado com o nome do Papa Joo XXIII. Logo na entrada foi identificado por uma faixa:

    Acampamento Joo XXIII. Porm, somente isso no bastava. Era necessria a presena do

    padre para rezar missa, dar a bno aos barracos. Assim em 14 de janeiro, domingo, o padre

    de Sarandi esteve no acampamento para rezar missa para os acampados.

    A correlao entre o ser cristo e o no ser comunista dava ao movimento,

    segundo os entrevistados, um carter de movimento ordeiro, pacfico e limitado

    reivindicao de um pedao de terra. Isso perceptvel nas palavras de um dos assentados,

    11 Jornal Correio do Povo. Porto Alegre, 03 jan. 1962, p. 7.

  • 7

    nosso entrevistado: Eles falavam no tal comunismo. Mas, na realidade no era um

    movimento comunista. Por que nem nis aceitava o tal comunismo. Nis queria terra, por que

    nis era agregado e a vida de agregado no era fcil.12 O registro encontrado na obra de

    Casali sobre o discurso de Brizola, em visita ao acampamento em 15 de janeiro de 1962,

    tambm elucidativo nesse aspecto:

    A Brizola perguntou: Quem cristo, levante o brao!...Todo mundo explodiu num delrio, levantando os braos. Enquanto isso, um gritou: Ta o padre que rezou a missa com ns ontem, aqui na capelinha!; E agora, quem for comunista que erga a mo! Silncio total. E novo delrio! (CASALI, 2005: 151).

    Os idelogos da FAG, dentre eles D. Edmundo Kunz, reconheciam os humildes e

    indefesos lavradores no campo, porm, como a questo da terra estava em evidncia no

    contexto nacional, era importante livr-los dos lobos marxistas e dos agitadores do Master,

    apresentando uma alternativa dentro do contexto cristo. A Igreja reconhecia a

    concentrao da terra, porm nada podia fazer, pois lhe atribua ao desenvolvimento e

    incorporao da tcnica, ou seja, o fator tcnica e capacidade de percepo e adoo da

    mesma lhe d legitimidade e explicao (ECKERT, 1984).

    Em fim, a terra prometida O desfecho do movimento de Capo da Cascavel deu-se com a desapropriao de uma

    rea de 21.889,14 ha, atravs do Decreto Estadual n 13.034 de 13 de janeiro de 1962,

    abrangendo a Agropecuria Lucena S. A., com 6.151,28 ha; a Ganadero Horcio Mailhos,

    com 7.087,86 ha e a Estncia Jlio Mailhos, com 8.650,00 ha (CASALI, 2005: 155).

    Encerra-se o caso dos sem terra em Nonoai Integra desapropriao da Fazenda Sarandi e seus considerandos. O Governador Brizola assinou, sbado o Decreto 13.034 declarando de utilidade pblica para fins de desapropriao por interesse social, as trs fazendas do Sarandi. A rea a ser desapropriada eleva-se a 24.239 hectares de terras e matos. Acentua o documento que o movimento dos agricultores sem terra, que motivou o ato do governo, no se afastou da ordem, conservando sempre o carter pacfico. [...].13

    No discurso em que Brizola comunicou a desapropriao da Fazenda Sarandi, o

    mesmo diz que quero cumprimentar a todos e felicitar, pela forma ordeira e pacfica com que

    se conduziram, por que a causa da reforma agrria justa, e por isso, devemos empregar os 12 SOARES, Valdomiro. Entrevista direta j informada. 13 Jornal O Nacional. Passo Fundo, 16 jan., 1962, p. 4.

  • 8

    meios justos. A criao das Associaes de Sem Terra tem o meu apoio. Eu vos felicito pela

    ordem e pela alta moral do acampamento. A partir de hoje est desapropriada a Fazenda

    Sarandi e daqui no sair mais um pau de lenha. A fora da Brigada Militar est aqui para

    assegurar essa ordem.14

    No mesmo dia da desapropriao pelo governador Brizola, representantes dos colonos

    e de mediadores, dentre os quais, em maioria, do PTB, reuniram-se e lanaram um manifesto

    intitulado Proclamao dos Lavradores do Capo de Cascavel, no qual insistia-se na

    organizao dos agricultores do RS para viabilizar uma organizao em nvel de estado e de

    pas que congregasse os interesses dos agricultores, um apelo ao necessrio apoio de

    entidades regionais, a agregao de operrios e estudantes e todos os interessados em lutar,

    por meios legais, pela aprovao da reforma agrria, dentre outras questes, o qual reflete a

    influncia de mediadores variados, misturando, tambm intenes variadas, mas, ao mesmo

    tempo, todas convergindo para o problema fundirio no Estado e a necessria democratizao

    do acesso a terra pelos camponeses (ECKERT, 1984).

    Desde sua origem, o movimento de Capo da Cascavel constituiu-se num plano

    articulado de uma forma ou de outra com a participao do governador Brizola, dentro de

    uma concepo paternalista e sempre com a preocupao em torno da ordem. A anlise das

    fontes, sobretudo das entrevistas, do a entender que a terra fora prometida e distribuda como

    um gesto de benevolncia do governo Brizola, muito mais do que como resultado de uma

    ao coletiva, ainda que tenha havido organizao e mobilizao do grupo.

    Vrios acampamentos tiveram desfechos variados, metodologias de ao das partes

    (governo, Movimento e proprietrios), com violncia ostensiva ou no, represlias ou no de

    ruralistas, da Brigada, da Farsul, de participao pblica, de apoio social. Dentre esses, no

    perodo em questo, esto os acampamentos de Cruz Alta, Giru, Taquari, Gravata, Itapo,

    So Francisco e Paula, Santa Maria, Camaqu, Tupanciret, Sapucaia....

    Eckert coloca que terras foram desapropriadas e distribudas pelo governador Brizola,

    outras adquiridas e no distribudas, outras foram cedidas, outras, no fim de seu mandado

    estavam em vias de serem adquiridas e no o foram mais com o governo Meneghetti, mas

    sempre insistimos que muitas das terras foram distribudas em reservas indgenas (Votouro,

    Guarani, Nonoai, Serrinha...). Dificuldades jurdicas, financeiras, polticas (correlao de

    foras e pela ruptura radical de sua poltica no governo que o sucedeu...) deixaram ou fizeram

    14 Jornal Terra Livre, n. 107, jan., de 1962, apud ECKERT, C., op., cit., p. 107.

  • 9

    com que a reforma agrria do Brizola ficasse muito aqum do aparentemente possvel

    (ECKERT, 1984).

    No obstante, no h dvida em afirmar que o Movimento se fortaleceu enquanto

    ncleo de luta pela terra, pelo sindicalismo, nas suas relaes com outros movimentos e lutas

    sociais sejam elas rurais ou operrias, legislao no campo, suas lutas em correspondncia

    com o que se desenvolvia no pas em torno de preos, produtividade, custos, mercado, crdito,

    etc.

    Referncias bibliogrficas BANDEIRA, M. Brizola e o Trabalhismo. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1979. BRUM, A. O Desenvolvimento econmico brasileiro. 17 ed. Petrpolis/RJ: Vozes; Iju/RS: Editora Uniju, 1997. CARINI, Joel Joo. Estados, ndios e colonos: o conflito na Reserva Indgena de Serrinha Norte do Rio Grande do Sul. Passo Fundo: UPF, 2005. CASALI, J. A. Memrias de Brizola O guerreiro do povo brasileiro. Erechim/RS: Grfica So Cristvo, 2005. ECKERT, C. Movimento dos Agricultores Sem Terra no Rio Grande do Sul: 1960-1964. Rio de Janeiro: UFRRJ, 1984. Dissertao. GEHLEN, I. Uma estratgia camponesa de conquista da terra e o Estado: o caso da Fazenda Sarandi. Porto Alegre: UFRGS, 1983. Dissertao. RCKERT, A. (Coord.) A trajetria da terra: ocupao e colonizao do centro-norte do Rio Grande do Sul 1827/1931. Passo Fundo: EDIUPF, 1997. SOUZA, J. F. de. A democracia dos movimentos sociais populares: uma comparao entre Brasil e Mxico. Recife/PE: NUPEP/ Editora Bagao, 1999.

    Consideraes IniciaisA reportagem colheu informes de que, ontem, diversas famlia[...] Segundo consta, narrado por pessoas que vieram de Rond