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FACULDADE DE SÃO BENTO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA MESTRADO ACADÊMICO Carlos Henrique Pereira de Medeiros O DIREITO DE RESISTÊNCIA NO LEVIATÃ DE THOMAS HOBBES São Paulo 2010

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FACULDADE DE SÃO BENTO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA

MESTRADO ACADÊMICO

Carlos Henrique Pereira de Medeiros

O DIREITO DE RESISTÊNCIA NO LEVIATÃ DE THOMAS HOBBES

São Paulo

2010

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FACULDADE DE SÃO BENTO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA

MESTRADO ACADÊMICO

O DIREITO DE RESISTÊNCIA NO LEVIATÃ DE THOMAS HOBBES

Carlos Henrique Pereira de Medeiros

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação Strictu Sensu em Filosofia da

Faculdade de São Bento do Mosteiro de São

Bento de São Paulo, como requisito parcial para a

obtenção do título de Mestre em Filosofia.

Área de Concentração: Ética e Política

Orientador: Prof. Dr. José Carlos Bruni.

São Paulo

2010

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Exemplar de dissertação defendida e

aprovada no dia 24 de março de 2010, na

Faculdade de São Bento do Mosteiro de São

Bento de São Paulo, no Programa de Pós-

Graduação Strictu Sensu em Filosofia –

Mestrado Acadêmico, pela Banca

Examinadora composta pelos Professores

Doutores José Carlos Bruni, Franklin

Leopoldo e Silva e Douglas Ferreira Barros.

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À Roberta, companhia para todas as ocasiões, amor

incondicional; Ana, astúcia e extrema inteligência,

paixão de muitas vidas; Luís, força pura e sensatez

sem precedentes, amizade eterna, eterno

envolvimento.

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AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva, pela disposição em compor as bancas de

qualificação e de argüição; pelas observações sempre muito valiosas, pelas lições recebidas

tanto em sala de aula como em outros lugares; pela dedicação e incansável desempenho com

que sempre dedica a seus espectadores.

Ao Prof. Dr. Douglas Ferreira Barros, pelas brilhantes, e muito ricas, colocações: as

bancas não teriam o mesmo peso sem a presença deste grande mestre.

À Faculdade de Filosofia de São Bento do Mosteiro de São Bento de São Paulo, o

mais antigo centro de produção em filosofia deste país, uma das mais respeitáveis instituições

de ensino de filosofia do Brasil.

Ao Prof. Dr. Dom Eduardo Uchoa Fagundes, Diretor da Faculdade de Filosofia de São

Bento, em São Paulo, a gratidão por ter aberto as portas dessa grande instituição que é a

Faculdade de Filosofia de São Bento do Mosteiro de São Bento de São Paulo.

Ao Prof. Dr. Elias Humberto Alves, Coordenador do Programa de Pós-graduação

Strictu Sensu em Filosofia, pela confiança.

Ao Prof. Dr. Djalma Medeiros, Vice-coordenador do Programa de Pós-graduação

Strictu Sensu em Filosofia e Coordenador do Curso de Graduação em Filosofia da Faculdade

de São Bento, em São Paulo, pela confiança, pelo apoio e pela compreensão: sem sua

intervenção, o programa teria sido sumariamente abandonado por este aluno em seus

momentos ainda iniciais.

À Secretaria da Faculdade, na pessoas de suas funcionárias, pela permanente

disposição em socorrer e resolver os problemas mais inusitados. À Ordem de São Bento,

Mosteiro de São Bento de São Paulo, mantenedora do curso.

Aos colegas de curso, em especial Leopold, Renato, Cídio, Solange, Valter, José

Carlos, Letícia, Dom João, Mauro, e os das turmas posteriores que acompanhei nas aulas do

Prof. Dr. José Carlos Bruni, pelo carinho, companheirismo, paciência, tolerância, amizade.

Sou muito grato a todos, e a cada um em especial, pela passagem de cada momento

vivenciado ao longo destes dois anos: nenhum momento teria sido o mesmo sem a presença e

a participação de todas essas pessoas.

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Aos meus pais, Abelardo e Marilene, pelo ajuda e apoio; meus lindos e amados filhos,

Júlia e Gustavo pela paciência e pela compreensão, pela ausência de todos os dias; e, minha

grande companheira, Roberta, pelo incentivo, pelo apoio incondicional, pela paciência com os

“surtos caóticos”, pelo acompanhamento integral, e pela ajuda na correção gramatical do

trabalho.

Ao amigo Luiz Carlos Pedroso pelo respeito e compreensão ao distanciamento e ao

isolamento exigidos pela dissertação. E ao amigo intelectual Luciano Nascimento Silva, pelo

apoio e incentivo, ainda que à distância, mas não muito: a Paraíba é logo ali.

Em especial, ao meu grande mestre. Nos últimos dois anos, mais do que desenvolver

uma pesquisa, ou superar créditos necessários para um Programa de Pós-graduação strictu

sensu, iniciava-se uma profunda transformação: abria-se um novo caminho, um caminho para

o conhecimento; árduo caminho, espinhoso, tortuoso, em grave aclive, exigente de uma

obstinação quase ascética; um verdadeiro labirinto de Fauno. Mas este caminho não poderia

ser encontrado por si só, porque está escondido nos pormenores da história, está no jogo do

acaso, na vontade de saber, na vontade de verdade, na vontade de poder, na força da vida. Um

caminho, ademais, praticamente impossível de se percorrer só. Gratidão, muita gratidão ao

Prof. Dr. José Carlos Bruni, grande mestre, guia de muitos caminhos, professor da mais bela

lição: a vida.

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Durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os

manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se

chama guerra; e uma guerra que é de todos homens contra todos homens.

Pois a guerra não consiste apenas na batalha, ou no ato de lutar, mas naquele

lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente

conhecida.

Thomas Hobbes de Malmesbury, Leviatã, Capítulo XIII.

Exigir da força que não se expresse como força, que não seja um querer-

dominar, um querer-vencer, um querer-subjugar, uma sede de inimigos,

resistências e triunfos, é tão absurdo quanto exigir da fraqueza que se

expresse como força

Friedrich Nietzsche, Genealogia da Moral, Primeira Dissertação.

Desde que há uma relação de poder, há uma possibilidade de resistência.

Nunca somos pegos na armadilha do poder: sempre podemos modificar-lhe o

domínio, em determinadas condições e segundo uma estratégia precisa.

Michel Foucault, Dits e écrits, III.

Foi esse discurso da luta e da guerra civil permanente que Hobbes conjurou

ao repor o contrato atrás de toda guerra e de toda conquista e salvando assim

a teoria do Estado. Daí o fato, é claro, de a filosofia do direito ter dado depois,

como recompensa, a Hobbes, o título senatorial de pai da filosofia política.

Quando o capitólio do Estado foi ameaçado, um ganso despertou os filósofos

que dormiam. Foi Hobbes.

Michel Foucault, seminário de 4 de fevereiro de 1976, no Collège de France.

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RESUMO

Intenta-se no presente estudo empreender uma análise da hipótese de resistência na

filosofia política de Thomas Hobbes, especificamente em seu texto maior, o Leviatã. O cerne

central da pesquisa é, especificamente, a relação de poder que se desdobra entre o súdito

declarado inimigo por seus atos tidos como hostis e o soberano que assim o declara. Para isso,

cumpre empreender uma análise do por assim dizer direito de resistência concedido por

Hobbes aos súditos em geral, isto é, aos súditos que permanecem íntegros ao pacto, em seu

significado, seu fundamento, sua possibilidade, seus limites, seus pressupostos, suas

dimensões, para então tentar estendê-lo ao súdito excluído, declarado inimigo pelo soberano.

Analise esta que deve ser conduzida de modo tal que de seu trajeto seja possível extrair as

conseqüências necessárias para a compreensão do discurso, enunciado em termos de relação

de soberania; mas, mais que isso, para que se abra caminho para outra via de análise, agora

em termos outros que não os relativos à soberania, mas, e precisamente, voltados para as

relações singulares de manifestação do poder, para os mecanismos de relação de poder, de um

modo diferente do enunciado no discurso hobbesiano. Intenta-se, pois, partir agora da análise

do poder em termos de um discurso de soberania, para a análise do poder em termos

genealógicos, de Hobbes para Foucault, através de dois textos específicos: as séries de

conferências que formam o compêndio a verdade e as formas jurídicas e o curso ministrado

no College de France, em 1975-76, intitulado Em defesa da sociedade. O intuito, tentar

demonstrar que além do discurso de resistência calcado puramente em termos de soberania,

no âmbito mesmo das relações gerais, essenciais, há uma outra via: aquela que vê entre poder

e resistência uma relação de forças em confronto; uma relação vista desde a perspectiva das

relações singulares travadas entre indivíduos singulares. Ao lado há na hipótese de resistência

hobbesiana, de dimensão político-jurídica, portanto, é possível apreender uma outra

dimensão: a dimensão genealógica das relações específicas de poder, existentes entre

indivíduos, entre indivíduo e indivíduos, entre indivíduo e soberano. Isso para que, com a

extração das conseqüências desta segunda via, desta outra via, o discurso de resistência possa

encontrar também sua dimensão histórica-política, para que se possa então, e somente então,

busca uma análise do poder em seu plano de manifestação real.

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ABSTRACT

There intends in the present study to undertake an analysis of the hypothesis of

resistance in the political philosophy of Thomas Hobbes, specifically in his biggest text, the

Leviathan. The central duramen of the inquiry is, specifically, the relation of power that

unfolds between the declared enemy subject for his acts when had been how hostile and the

sovereign who so declares it. For that, it suits to undertake an analysis of so to speak right of

resistance granted by Hobbes to the subjects in general, i.e. to the subjects who remain honest

to the pact, in his meaning, his basis, his possibility, his limits, his presuppositions, his

dimensions, so that to try to spread it out to an enemy excluded, declared subject for the

sovereign. This analysis that must be driven in such way that of his course is possible to

extract the necessary consequences for the understanding of the speech, expressed in terms of

relation of sovereignity; but, more than that, so that way opens for other one he was seeing of

analysis, now in we had others that not the relative ones to the sovereignity, but, and precisely,

turned to the singular relations of demonstration of the power, to the mechanisms of relation

of power, of a way different from the expressed one in the speech hobbesiano. intend to leave,

so, now from the analysis of the power in terms of a speech of sovereignity, for the analysis of

the power in genealogical terms, from Hobbes for Foucault, through two specific texts: the

series of conferences that form the compendium to truth and the legal forms and the course

administered in the College de France, in 1975-76, entitled In Defense Of The Society. The

intention, to try to demonstrate that besides the speech of resistance trampled purely in terms

of sovereignity, in the extent itself of the general, essential relations, there is another road: she

who sees in between power and resistance a relation of strength in confrontation; a relation

seen from the perspective of the singular connected relations between singular individuals. To

the side there is in the event of resistance hobbesiana, of legal-political dimension, so, it is

possible to apprehend another dimension: the genealogical dimension of the specific relations

of power, existent between individuals, between individual and individuals, between

individual and sovereign. That so that, with the extraction of the consequences of this second

road, of this another road, the speech of resistance can find also his dimension political-

historically, so that one can then, and only then, looks for an analysis of power in his plan of

real demonstration.

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RÉSUMÉ

L'objectif de l'étude actuellement de procéder à une analyse de l'hypothèse de la

résistance dans la philosophie politique de Thomas Hobbes, en particulier sur son texte plus

large, le Léviathan. Le noyau central de la recherche est, précisément, le rapport de force qui

se déploie entre le vassal ennemi déclaré de ses actes considérés comme hostiles et que tant

les États souverains. Pour ce faire, nous devons entreprendre une analyse, il accorde le droit

de résister par Hobbes à des sujets en général, qui est, les sujets qui restent intactes au pacte

dans son sens, son objet, ses possibilités, ses limites, ses hypothèses, ses dimensions, et puis

essayer de l'étendre à vassal supprimé, l'ennemi déclaré par le souverain. Revoir ce qui doit

être menée de telle sorte que son chemin est possible de tirer les conséquences nécessaires à la

compréhension de la parole, a déclaré en termes de respect de la souveraineté, mais plus que

cela, qui ouvre la voie à d'autres moyens d'analyse, Or, dans des conditions autres que celles

relatives à la souveraineté, mais, précisément, centré sur la relation de la manifestation

naturelle d'énergie, les mécanismes de relations de pouvoir, d'une manière différente de parler

à Hobbes. L'intention de ce jour de l'analyse en termes de puissance d'un discours de la

souveraineté, pour l'analyse du pouvoir en termes de pedigree, de Hobbes à Foucault, à

travers deux textes spécifiques: la série de conférences qui composent le recueil vérité et de la

morale et le cours enseigné au Collège de France en 1975-76, intitulé Il Faut Défendre la

Société. L'intention, en tentant de démontrer qu'au-delà des discours de résistance piétinés

purement en termes de souveraineté, dans les mêmes relations générales sont indispensables,

il existe une autre manière: que vous voyez dans la résistance entre le pouvoir et les relations

de pouvoir en question; pour une vue du point de vue des relations entre les individus pris les

célibataires. Suivant la résistance est l'hypothèse hobbesienne de la dimension politico-

juridique, il est donc possible d'apprendre une autre dimension: la généalogie des relations

spécifiques de pouvoir entre individus, entre les individus et les individus, entre l'individu et

souverain. Que tant que l'extraction avec les conséquences de cette deuxième voie, cette autre

manière, le discours de résistance peuvent également trouver leur dimension historique et

politique, de sorte que nous pouvons alors et alors seulement, demander une révision de la

pouvoir dans son plan de démontrer réel.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12

I – POR QUE A RESISTÊNCIA EM THOMAS HOBBES? ................................................. 19

II – É POSSÍVEL APREENDER O DIREITO DE RESISTÊNCIA EM HOBBES? ............. 34

III – QUAIS OS LIMITES DA RESISTÊNCIA NO LEVIATÃ DE HOBBES? .................. 49

IV – QUAIS AS DIMENSÕES DO DISCURSO DE RESISTÊNCIA EM HOBBES? ........ 62

V – É POSSÍVEL UM DISCURSO DE RESISTÊNCIA EM OUTRO NÍVEL .................... 79

VI – É POSSÍVEL QUE O DICURSO BUSQUE SE APROFUNDAR AINDA MAIS ....... 91

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................ 101

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA ...................................................................................... 108

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INTRODUÇÃO

Uma questão levantada por Günter Jakobs, um Professor Catedrático de Filosofia do

Direito e de Direito Penal da Universidade de Bonn, na Alemanha, conduziu a esta pesquisa:

pode um indivíduo ser excluído do direito, via de conseqüência, ser considerado um inimigo e

não um cidadão? A tese conhecida como Direito Penal do Inimigo chegou ao Brasil e na seara

do Direito, ganhou seu espaço. Em apertadíssima síntese, em sua tese, intenta Jakobs

demarcar com precisão o estabelecimento legítimo de uma diferenciação no tratamento penal

para duas categorias distintas de pessoas em direito, os cidadãos e os não-cidadãos, ou, como

ele mesmo diz, cidadãos e inimigos. Para Jakobs, aos cidadãos que cometem delitos é dado o

direito, já aos “inimigos”, os excluídos do direito, é dado fazer a guerra; o inimigo é um

perigo que precisa ser eliminado, excluído do direito, porque sua presença representa um

perigo para a paz e a segurança estabelecida pelo pacto social, para a sociedade juridicamente

constituída. Para fundamentar sua tese, busca Jakobs a filosofia política de Thomas Hobbes;

Jakobs invoca expressamente o filósofo inglês em seu texto. Com efeito, Jakobs pretende

demonstrar que Hobbes permitiu a possibilidade de se excluir o status de cidadão de todos

aqueles que não oferecessem uma segurança cognitiva mínima para a manutenção da

configuração de uma sociedade juridicamente organizada. Jakobs vai buscar arrimo em duas

passagens de Hobbes, nas quais o filósofo confronta o súdito rebelado: inicialmente, o súdito

que por sua manifestação deliberada se nega à sujeição ao soberano, o súdito rebelado, deve

ser declarado “inimigo”, e, por isso, deve ser conduzido de volta ao estado de natureza, no

qual se encontra também aquele “inimigo” que nunca se sujeitou à lei, e contra ambos, um e

outro, se julgado capaz de causar danos, é dado ao Estado-ator, ao soberano-ator, em virtude

de seu direito de natureza originário, fazer legitimamente uma guerra. Seria dado ao Estado,

pois, o poder de aniquilar um cidadão. Mas, e ao cidadão, este indivíduo que será aniquilado,

não seria dado um poder qualquer para resistir ao Estado que lhe quer tirar a vida? Responder

a esta pergunta foi a proposta inicial do presente estudo.

Ora, se se encontrasse em Hobbes um fundamento para resistir ao poder irresistível do

Estado, a tese de Jakobs poderia ser desmontada de dentro para fora; poderia se traçar uma

crítica, ainda em termos jurídicos, para esta questão tão fundamental que é a relação entre

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poder soberano e o “inimigo” individual, o indivíduo declarado inimigo. O caminho que se

apresentou, pois, o direito de resistência hobbesiano. Parecia ser preciso encontrar um oposto

ao fundamento de Jakobs, um oposto tão poderoso que com ele pudesse entrar em confronto

sem o risco de sumariamente sucumbir. Neste diapasão, inicialmente se delineava uma

pesquisa voltada a desdobrar o direito de resistência, afirmar o direito de resistência,

tendenciosamente expandi-lo e conduzi-lo a um grau que pudesse sufocar a pretensão de

Jakobs. Inicialmente, se pretendia, pois, responder a uma pergunta que se desdobrava em

outras cinco: o que é o direito de resistência? Quais os limites da resistência? Qual a natureza

da resistência? Qual o fundamento da resistência? Em que termos se dá a resistência? Qual a

amplitude da resistência? Posteriormente as questões foram reformuladas em 1) É possível

apreender o direito de resistência na filosofia política desenvolvida no Leviathan por Thomas

Hobbes? Quais comentários afastam? Quais afirmam? 2) Em que consiste este direito de

resistência? Quais seus limites? Quais seus pressupostos? Quais são suas hipótese? 3) Qual o

fundamento do direito de resistência? As leis de natureza? A vontade somada dos indivíduos?

O pacto de submissão e seus fins? 4) Seria possível afirmar o direito de resistência em um

outro fundamento? Mas um problema se apresentou ainda maior: a estas perguntas não

poderia dar conta um estudo delineado em termos estritamente político-jurídicos. Fez-se

necessário buscar além de Hobbes.

A busca conduziu então a Nietzsche e a Foucault, principalmente a Foucault, passando

por Deleuze e Heidegger. É que a busca por um fundamento para a resistência abriu a análise

para a colocação da questão da luta de forças estabelecida na leitura de Nietzsche

empreendida por Deleuze, e tão bem apreendida por Foucault. A experimentação da seguinte

hipótese tornou-se então inevitável: é possível empreender uma leitura tal do Leviathan de

Hobbes da qual se possa afirmar que o direito de resistência pode fundar-se na idéia de luta de

forças tal qual concebida pelo Nietzsche de Deleuze ou na idéia apreendida por Foucault. E

uma vez confirmada a hipótese, seria possível retornar aos comentários apreendidos no

primeiro momento da pesquisa e passara uma confrontação com a exposição dos resultados

do confronto? O objetivo do trabalho, então, passou da pura análise político-jurídica do

“direito” de resistência para o desenvolvimento e uma tentativa de resposta aos

questionamentos acima enunciados pautada na leitura da resistência em toda a sua amplitude:

tanto a político-jurídica e a político-histórica; em termos de soberania e em termos de luta de

forças. Ao mesmo tempo em que o texto aparentava perder profundidade, mostrava-se mais

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próximo de um achado: o que está por trás do discurso, o que está escondido pelo discurso.

Ainda que se parecesse superficial, o texto pode mostrar a passagem de um estado a outro da

questão através de um elemento: a luta. Se não é a luta, a guerra, que elemento pode ser mais

fundamental para o corpo político? É a luta de forças que fornece os elementos para se

conhecer as relações de poder que se desdobram antes, durante e depois da constituição do

Estado. Mais do que isso, pode-se notar o que há de mais caro à política: o indivíduo. Com o

indivíduo, muda-se o foco da luz que ilumina a estrela principal no teatro do poder. Há

superficialidade ou há profundidade no texto? Pouco importa; o que no fundo importa é que

realmente houve um ganho sem precedentes: a passagem, uma passagem para a iniciação,

uma iniciação filosófica. A passagem do Direito à Filosofia faz já valer os desdobramentos do

presente estudo; evidencia a metamorfose vivida por seu autor. Do Direito Penal à Filosofia

do Direito, da Filosofia do Direito à Filosofia Política, da Filosofia Política à História da

Filosofia; de Jakobs a Hobbes, de Hobbes a Foucault, de Foucault a Nietzsche.

A escolha do tema da resistência em Hobbes se deu de forma aparentemente arbitrária;

se poderia escolher a resistência em Locke, nos protestantes ou demais grupos ingleses dos

séculos XVI e XVII, ou mesmo nas idéias dos estamentos medievais como inclusive elucida

Schmitt. Mas tal se fez necessária na estreita medida em que havia um objetivo anterior:

desenvolver uma análise crítica, em termos político-jurídicos, da tese apresentada por Günter

Jakobs. A pesquisa de Hobbes, da resistência em Hobbes, portanto, integrava inicialmente

parte de uma pesquisa maior. Inicialmente, porque hoje isto não mais ocorre. Com efeito,

Hobbes mostrou-se tão grandioso e ao mesmo tempo se mostrou indigna a alocação do

filósofo a uma questão meramente jurídica. A riqueza dos trabalhos de Hobbes não poderia

ser simplesmente continuar a ser analisada de forma superficial e muito mal recortada, como

comumente se faz em Direito. Hobbes envolveu, trouxe para o interior de sua filosofia; e

deste ponto, não mais há como retornar o mesmo. Com Hobbes se pode ver o princípio e as

finalidades que norteiam o poder; se pode ver o que pode vir a ser o poder, ainda que

manifestado, aparentemente, apenas em termos político-jurídicos. Com Hobbes, se pode

chegar a problemas muito mais profundos e complexos que a mera crítica a uma tese – não

que isto não tenha seu valor. Com Hobbes se pode chegar a problemas fundamentais do

indivíduo no interior do estado civil político.

Hobbes conduziu com seu princípio de guerra geral a Foucault; Hobbes conduziu,

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pois, a uma filosofia muito valiosa. Valiosa na estreita medida que os problemas enfrentados,

além de retornar ao ponto de partida, o Direito, conduziram a abertura de novos e mais

elaborados problemas: o poder em suas manifestações, em seus fundamentos, em sua

amplitude, em sua dinâmica: o poder e seu contrário; o jogo dos contrários, a luta dos

contrários. A atualíssima filosofia de Michel Foucault conduziu a Nietzsche. Nietzsche abriu

as portas para Heráclito. Com Heráclito, um círculo pareceu se fechar: a guerra dos opostos,

este jogo dos contrários, esta luta constante, o caos pode ser de fato lido como o princípio de

todas as coisas. Estes temas, por evidente, não foram aqui desdobrados – cumpre evidenciar –,

mas permearam o presente estudo do início ao fim; mesmo à distância o acompanham.

A questão da exclusão do direito, da exclusão do indivíduo do direito, ponto suscitado

por Jakobs e tão bem delineado por Agamben, não recebeu a atenção que merecia receber.

Como se optou aqui por evidenciar a resistência como oposto, como o par contrário do poder

soberano, e desdobrá-la tanto em termos político-jurídicos como em termos “genealógicos”, e

não precisamente nos termos que Foucault vai chamar de históricos-políticos: não se procurou

fazer uma história geral ou local da resistência, mas apenas analisá-la em suas vertentes. Com

isso, pôde restar claro uma ligação, um fio condutor possível, para passear entre dois filósofos

tão opostos: Hobbes e Foucault. A discussão de Agamben se mostra fundamental, é claro; mas

a opção foi por não confrontá-la, não ainda. Ora, apenas discutir a exceção como estrutura da

soberania e a soberania como uma “estrutura originária na qual o direito se refere à vida e a

inclui em si através da própria supressão”, ou mesmo a questão do bando enquanto forma de

relação e a forma de lei que nele se exprime1, já seria o suficiente para dar outro norte ao

trabalho, ou mesmo para abandoná-lo por completo. Por isso, a opção foi discutir Agamben

em um outro momento. Principalmente porque sua tese, como ele mesmo vai deixar muito

claro na introdução do seu Homo Sacer, vai confrontar Foucault nas origens e nos

desdobramentos da “bio-política”. Cumpre frisar, de forma bem grosseira que Agamben vai

buscar na categoria do homo sacer, figura do antigo regime romano, as origem da bio-política,

enquanto Foucault vai demonstrar tal se dá somente e tão-somente no Estado moderno, a

partir de determinadas práticas que vão surgir com a modernidade.

Entendeu-se não ser necessária uma demonstração da evolução do conceito de

1 Giorgio AGAMBEN, Homo Sacer, p. 35-36.

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resistência nos trabalhos de Hobbes, porque isto não se mostrou como uma contribuição para

o estudo da resistência hobbesiana, já que Thamy Pogrebinschi já o fez em seu O Problema

da Obediência em Thomas Hobbes2. Por outro lado, optou-se por não trabalhar o Behemoth,

pois não se estava em busca das causas da guerra civil em Hobbes, tampouco em fazer uma

exegese de Hobbes, mas apenas em desdobrar a resistência em todos os termos possíveis. A

idéia, diferente da inicial, restou, de forma muito sintética, assim configurada: apreender a

resistência em Hobbes e desdobrá-la até alcançar sua dimensão genealógica em Foucault.

Neste percurso, seria inevitável esbarrar em temas como a representação, o indivíduo, os

indivíduos, o grupo, o Estado como representação do indivíduo, etc. Recortar um tema de

forma muito arbitrária e trabalhá-lo, desdobrá-lo, também de forma muito arbitrária, este o

objetivo a ser alcançado. Tudo isso, para se chegar a uma concepção inicial para os estudos

procedentes. Objetivo alcançado.

O direito de resistir ao soberano enquanto direito de natureza do indivíduo hobbesiano

é o tema abordado, a questão de fundo, a questão principal em parte do texto. Schmitt, que

veementemente o nega, recebe especial atenção. Schmitt, elencado em um dos extremos da

análise, é refutado, assim como o é Pogrebinschi, situada no outro extremo. No centro dos

extremos, Janine Ribeiro, Souki e Bobbio. A resistência em termos político-jurídicos é

desdobrada, pois, em seus fundamentos: o direito irrestrito à vida, a inalienabilidade de

direitos, o dever de obediência aos preceitos divinos, que exprimem a vontade divina. Em

outros termos, a resistência é trabalhada em termos de auto-preservação, de preservação da

vida e em termos do dever de obedecer irrestritamente a Deus. No fundo, as diferenças

fundamentais são sutis, mas não deixam de ser diferenças. Ao lado desses fundamentos, a

resistência é desdobrada em termos genealógicos: em termos de forças em confronto, em

termos de dominação, de ação e reação, de senhores e escravos. O elo para a ligação, a guerra

geral, a guerra de todos contra todos, o princípio da guerra, o princípio da luta, da oposição.

Em seis capítulos, portanto, busca-se desdobrar a resistência e a partir dela tocar, ainda que de

forma superficial, em temas como a genealogia, a interpretação, a hermenêutica, o poder, a

luta dos contrários, a metafísica, a dialética, o jusnaturalismo, o positivismo, a genealogia, o

papel da história, o individualismo, o indivíduo, a constituição do Estado, a representação, a

metáfora do corpo político, o corpo, o poder sobre o corpo, o biopoder, a biopolítica, as

2 Há no texto dois gráficos em que a autora aborda a evolução da resistência nos escritos de Hobbes. Neste

sentido, Cf. p. 224 e 226, além do capítulo precedente.

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instituições de seqüestro, a resistência no interior do estado civil político.

Se as paixões antes e depois do pacto são mencionadas apenas de forma ligeira, tal se

deve ao fato de que o objetivo da pesquisa passou a ser a de demonstrar que a resistência pode

ser lida em seus pormenores tanto em termos hobbesianos como a autopreservação, a

inalienabilidade de direitos e a obediência divina, quanto em termos genealógicos. As paixões

motivam tanto a constituição do Estado quanto a sua dissolução; interferem de forma

fundamental na questão da resistência. Contudo, como ocorre com a questão da evolução da

questão da resistência nos textos de Hobbes, já há um trabalho publicado neste sentido,

intitulado O homem excêntrico. Logo, entendeu-se que se deter nas paixões poderia não trazer

alguma nova contribuição; não uma contribuição fundamental.

Para cumprir o objetivo, percorreu-se o seguinte caminho. No primeiro capítulo, uma

explicitação geral das causas que motivaram a pesquisa e uma introdução geral aos temas

abordados nos capítulos procedentes. No segundo capítulo, uma abordagem arbitrária das

teses de Carl Schmitt, Nádia Souki e Renato Janine Ribeiro: arbitrária porque se mostra desde

o início uma tendência a afastar uma tese e afirmar outra. No terceiro capítulo, uma

abordagem da leitura de Norberto Bobbio e uma análise da tese de Thamy Pogrebisnchi, a

mais radical das abordadas. No quarto capítulo, uma explanação da leitura que faz Foucault

de Hobbes, e a introdução da questão da guerra; aqui há ainda uma resvalada na questão das

instituições e uma análise já da questão genealógica. No quinto capítulo, uma discussão

acerca da questão da interpretação, e a apreensão por Foucault do procedimento genealógico

nietzscheano. Por fim, no sexto e último capítulo, uma busca por um fundamento ainda mais

fundo para a resistência e a análise, um tanto superficial, da questão do indivíduo em

Nietzsche. Em síntese, os temas e as abordagens que se desdobram nos capítulos do presente

escrito: 1) Introdução a Hobbes a partir de sua doutrina; 2) Afastamento da tese que nega a

resistência (Schmitt) e a abertura para a doutrina que a concebe; 3) Desdobramento da

resistência em seus fundamentos; 4) Evidenciação do princípio de guerra, de luta, contido na

resistência; 5) A partir do princípio de guerra, uma análise da teoria das forças e do

procedimento genealógico em Foucault, evidenciando as diferenças entre seu método e o de

Nietzsche; 6) Demonstração da leitura da luta de forças (luta de raças), evidenciando o

suposto erro de Hobbes: negar a guerra permanente; 8) Abertura de um caminho para a

discussão de muitos temas, como a Biopolítica, o individualismo, o caos, a análise das

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instituições – momento em que se abre a porta para a discussão com Agamben.

Demonstrar que a resistência pode ser lida tanto em seus pormenores em termos de

soberania (autopreservação, inalienabilidade de direitos e obediência divina), quanto nos

termos genealógicos da luta de raças (luta de forças), mostrou-se, pois, como uma grande

oportunidade para apreender o pensamento ainda construtivo, do qual as dissonâncias

conduziram às linhas que levaram à teoria marxista da sociedade, do “escritor sombrio da

burguesia”3; mais do que isso, mostrou-se uma excelente oportunidade para se introduzir na

apreensão dos pensamentos de Foucault e de Nietzsche. Três homens que pensaram

problemas fundamentais da humanidade enquanto vivente em bando, em grupo, em

sociedade. Por isso, mais do que concluir uma etapa, ou preparar o arado da terra para o

plantio futuro, o presente escrito permite a aproximação a problemas que intrigam e

contorcem o intelecto humano durante muitos e muitos anos. E isto, só por só, já é um ganho

sem precedentes.

3 Jünger HABERMAS, O discurso filosófico da modernidade, p. 152.

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I – POR QUE A RESISTÊNCIA EM THOMAS HOBBES?

Na década de 80 do século passado, o professor Catedrático de Filosofia do Direito e

de Direito Penal da Universidade de Bonn, Alemanha, Günter Jakobs desenvolveu uma teoria

conhecida, em língua portuguesa, como Direito Penal do Inimigo.4 Em apertadíssima síntese,

neste estudo, intenta este professor alemão delinear o que chama de um problema filosófico e

jurídico: demarcar com precisão o estabelecimento legítimo de uma diferenciação no

tratamento penal para duas categorias distintas de pessoas em direito, os cidadãos e os não-

cidadãos, ou, como ele mesmo diz, cidadãos e inimigos. Em sua tese, os primeiros, os

cidadãos, os mecanismos próprios do direito se apresentariam como reprimenda necessária a

uma tomada de postura juridicamente reprovável por uma norma positiva; mas, aos segundos,

os chamados inimigos, o direito em si seria já uma pura coação direcionada à eliminação de

um perigo futuro, existente e manifestável na pura e simples existência física desta categoria

de pessoa. Logo, ao contrário do cidadão, a quem se deve por seu ato apenas apenar, o

inimigo na tese de Jakobs deve ser combatido e, via de conseqüência, eliminado, excluído do

direito, pois sua presença pode representar um perigo efetivo para toda uma sociedade

juridicamente constituída. O centro nevrálgico da tese do professor Günter Jakobs radica na

possibilidade de o poder constituído dispor de um aporte de mecanismos que lhe propiciem

tratar de forma diferenciada os não-cidadãos, ou inimigos, no interior de um sistema jurídico.

Para fundamentar sua tese, busca Jakobs a filosofia política de Thomas Hobbes, evocando

expressamente o filósofo inglês. Jakobs pretende, arrimando na doutrina expressada no

Leviatã de Hobbes, demonstrar que é possível se excluir o status de cidadão de todos aqueles

que não ofereçam uma segurança cognitiva mínima para a manutenção da configuração de

uma sociedade juridicamente organizada. E é no capítulo XXVIII do Leviathan, precisamente

nas duas passagens em que Hobbes confronta o súdito rebelado, que Jakobs intenta se apoiar.

Jakobs quer chamar à colação o fundamento utilizado por Hobbes para declarar que o

súdito que se rebela, por seu ato de alta traição, deve ser considerado um inimigo, portanto,

deve ser considerado excluído do pacto social que fundamenta o Estado. Jakobs parece

4 JAKOBS, Günter; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. Tradução de André

Luis Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2005.

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precisar sua argumentação na natureza da ofensa professada pelo súdito declarado inimigo: a

renúncia à sujeição ao soberano. Vale lembrar que Hobbes, na passagem, evidencia que por

sua manifestação deliberada de se negar à sujeição ao soberano, o súdito rebelado deve ser

declarado “inimigo”, por isso, deve ser conduzido de volta ao estado de natureza, no qual se

encontra também aquele “inimigo” que nunca se sujeitou à lei, e contra ele, se julgado capaz

de causar danos, é dado ao Estado, em virtude do direito de natureza originário, fazer

legitimamente a guerra. Para Hobbes, é por conta deste mesmo direito originário, que legitima

que a vingança do Estado contra o inimigo declarado, que pode o Estado, inclusive, estender

sua vingança não apenas aos pais, mas também a terceira e quarta gerações ainda não

existentes do inimigo. Isto tudo porque, a natureza da ofensa consiste não em um puro delito,

mas na renúncia mesma à sujeição ao pacto, o que, para Hobbes, é um regresso à condição de

guerra; mas uma guerra renovada. Contra o inimigo, portanto, a princípio, em Hobbes,

segundo Jakobs, é dado ao soberano o poder de fazê-lo sofrer como bem entender, pois, as

penas destinadas aos súditos não lhe alcançam, pois, ao contrário destes, que ainda se

encontram em estado de sujeição, o inimigo declarado é aquele que violou o pacto. Hobbes

trata do súdito declarado inimigo em duas passagens específicas do Capítulo XXVIII do

Leviatã:

“Por último, os danos infligidos a quem é um inimigo declarado não podem ser

classificados como penas. Dado que esse inimigo ou nunca esteve sujeito à lei e, portanto, não

pode transgredi-la, ou esteve sujeito a ela e professa não mais o estar, negando em

conseqüência que possa transgredi-la, todos os danos que lhe possam ser causados devem ser

tomados como atos de hostilidade. E numa situação de hostilidade declarada é legítimo infligir

qualquer espécie de danos. De onde se segue que, se por atos ou palavras, sabida e

deliberadamente, um súdito negar a autoridade do representante do Estado (seja qual for a

penalidade prevista para a traição), o representante pode legitimamente fazê-lo sofrer o que

bem entender. Porque ao negar a sujeição ele negou as penas previstas pela lei, portanto deve

sofrer como inimigo do estado, isto é, conforme a vontade do representante. Porque as penas

são estabelecidas pela lei para os súditos, não para os inimigos, como é o caso daqueles que,

tendo-se tornado súdito por seus próprios atos, deliberadamente se revoltam e negam o poder

do soberano.”

“E contra os inimigos a quem o Estado julgue capaz de lhe causar dano é legítimo

fazer a guerra, em virtude do direito de natureza original, no qual a espada não julga nem o

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vencedor faz distinção entre culpado e inocente, como acontecia nos tempos antigos, nem tem

outro respeito ou clemência senão o que contribui para o bem de seu povo. É também com este

fundamento que, no caso dos súditos que deliberadamente negam a autoridade do Estado, a

vingança se estende legitimamente, não apenas aos pais, mas também à terceira e quarta

gerações ainda não existentes, que conseqüentemente são inocentes do ato por causa do qual

vão sofrer. Porque a natureza desta ofensa consiste na renúncia à sujeição, que é um regresso à

condição de guerra a que vulgarmente se chama rebelião, e os que assim ofendem não sofrem

como súditos, mas como inimigos. Porque a rebelião é apenas uma guerra renovada.”

Mas os fundamentos buscados no Leviatã de Thomas Hobbes, especificamente nas

duas passagens evocadas, parecem não se apresentar com a facilidade e a clareza que quer

crer o professor de Bonn em sua tese. Com efeito, Jakobs quer se apoiar, primeiro, em duas

passagens isoladas da obra de Thomas Hobbes, o que pode conduzir a um equívoco, pois,

neste caso, ignora-se o todo do edifício intelectual do Filósofo de Malmesbury, especifica e

principalmente no que diz respeito aos direitos naturais e às leis da natureza, que regem a

vida dos homens no estado de natureza. Ora, se o súdito declarado inimigo é novamente

conduzido ao estado natural, se mantém com o soberano, representante do grande Leviatã,

uma relação de natureza, como se pode ignorar a natureza e os pressupostos desta relação? É

neste contexto que se dá a aproximação ao tema que ora se enfrenta. Eis, portanto o caminho

que conduziu a Hobbes. Mas esta aproximação não poderia dar-se de forma pura e simples.

Por isso, a porta de entrada, e também o fio condutor, da análise, desde o início, mostrou-se

como sendo a relação específica de poder que se desdobra na relação física entre soberano e

súdito declarado inimigo. Mas, desde esta perspectiva, mostra-se necessário encontrar

respostas para uma questão precisa: se, por um lado, Hobbes confere ao Estado o poder de

contra o súdito que julgar capaz de dano, por isso declarado como inimigo, o direito de contra

ele fazer a guerra, por outro, Hobbes não confere a este súdito declarado inimigo o direito de

ao Estado resistir? Este questionamento pode ser desdobrado em dois pontos precisos: Hobbes

concede ao “inimigo declarado”, que do pacto foi excluído, e que por isso mesmo ao estado

de natureza regressou, algum direito de resistir ativamente ao poder do soberano? E, Hobbes

estabelece alguma limitação ao poder soberano de agir como bem entender frente ao “inimigo

declarado”? Em palavras outras, é possível falar-se em resistência ativa e em resistência

passiva no nível da relação de poder que se desdobra entre o soberano e o súdito declarado

inimigo no Leviatã de Hobbes? As questões que envolvem a presente abordagem giram, pois,

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em torno da relação de poder súdito-soberano excluído.

Pois bem, o que faz Hobbes diferenciar-se dos demais teóricos dos direitos naturais da

segunda metade do século XVII, é precisamente conceder ao súdito o direito de resistir ao

soberano, pois o primeiro direito de natureza deve ser, com efeito, a autodefesa.5 Hobbes o faz

expressamente, não se tem dúvidas, ao súdito que se mantém atrelado ao pacto; prova disso a

Segunda Lei de Natureza (capítulo XIV), que determina “que um homem concorde, quando

outro também o faça, e na medida em que tal considere necessário para a paz e para a defesa

de si mesmo, em renunciar seu direito a todas as coisas, contentando-se, em relação aos outros

homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permite em relação a si mesmo.”6

Ora, quando se concorda em renunciar ao seu direito à liberdade plena, isto se dá com a

finalidade específica de se buscar uma garantia para a paz e para a defesa da vida; logo, o fim

último do Estado deve ser assegurar a paz interna aos súditos e defendê-los dos demais vindos

do exterior: o Estado deve garantir a paz externa e internamente, deve assegurar o duplo

gládio. Por isso, se voltar-se o Estado-ator contra os seus autores, os súditos, a representação

se perde e o pacto se quebra: o súdito retoma em toda intensidade sua liberdade. Não é por

menos que o próprio Hobbes vai evidenciar que

“há alguns direitos que é impossível admitir que algum homem, por quaisquer

palavras ou outros sinais, possa abandonar ou transferir. Em primeiro lugar, ninguém pode

renunciar ao direito de resistir a quem o ataque pela força para tirar-lhe a vida, dado que é

impossível admitir que através disso vise a algum benefício próprio. O mesmo pode dizer-se

dos ferimentos, das cadeias e do cárcere, tanto porque desta aceitação não pode resultar

benefício, ao contrário da aceitação de que outro seja ferido ou encarcerado, quando porque é

impossível saber, quando alguém lança mão da violência, se com ela pretende ou não provocar

a morte. Por último, o motivo e fim devido ao qual se introduz esta renúncia e transferência do

direito não é mais do que a segurança da pessoa de cada um, quanto a sua vida e quanto aos

meios de preservá-la de maneira tal que não acabe por dela se cansar. Portanto, se através de

palavras ou outros sinais um homem parecer despojar-se do fim para que esses sinais foram

criados, não deve entender-se que é isso que ele quer dizer, ou que é essa a sua vontade, mas

que ele ignorava a maneira como essas palavras e ações irão ser interpretadas.”7

5 Nádia SOUKI, Behemoth contra leviatã, p. 51.

6 Thomas HOBBES, Leviatã, forma e poder de um estado eclesiástico e civil, p. 83.

7 Idem,ibidem, p. 84.

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Mas a questão que aqui se enfrenta não diz respeito propriamente o súdito que se

mantém atrelado ao pacto, mas àquele que no Capítulo XXVIII é nomeado pelo filósofo como

“inimigo”, o “inimigo declarado”. Aqui um ponto precisa ser antes elucidado: a distinção

entre “inimigo” e “inimigo declarado” deve ser levada a cabo pela necessidade de distinção de

figuras. Com efeito, no corpo do Leviatã Hobbes não faz distinções entre “inimigos”. Para o

filósofo, todos que atentem contra a vontade dos homens é um inimigo. Portanto, pode-se de

início encontrar o inimigo ainda no estado de natureza ou mesmo no estado legal. Mas, no

entanto, cumpre distinguir. Assim, o inimigo pode ser dividido em dois grupos: os inimigos

internos e os inimigos externos. Também podem ser identificados em momentos distintos:

antes ou depois da constituição do Estado. Há certa dificuldade aqui, pois antes da

constituição do Estado, todos são inimigos de todos, portanto, não se poderia falar em

inimigos internos e externos; seria antes necessário trabalhar com mais um elemento, como a

demarcação de uma determinada porção de terra. Mas o que importa por ora é distinguir o

inimigo no Estado Legal. Aqui se pode encontra o interno e o externo. E estes ficam a cargo

do duplo gládio: para o inimigo interno, a Justiça; para o externo, a Guerra. O “inimigo

declarado”, porém, não se enquadra em nenhuma das hipóteses. É ele aquele que, mesmo no

interior do Estado legal, está em estado de natureza, não por sua vontade, mas pela vontade do

soberano-ator. O seu problema fundamental é que não encontra seu campo de delimitação:

não é externo, mas também não é interno; por isso, a princípio, contra ele se pode fazer a

guerra, mas no interior de um corpo moral, criado justamente para que em seu interior não

mais haja a guerra. O “inimigo declarado” é, portanto, o paradoxo do Leviatã.

O que interessa na relação de poder existente entre o Estado-autor e o súdito-ator,

declarado inimigo por sua postura de menoscabo ao pacto de paz e de segurança, é se Hobbes

concede ou não a este “inimigo declarado”, que do pacto foi excluído, não por sua vontade,

mas pela vontade do soberano-ator, isto é, no limite, pela vontade dos demais súditos-autores,

algum direito de resistir ao poder do soberano? Novamente, em palavras outras, ao “inimigo

declarado” pelo Estado-ator é dada pelo Filósofo alguma possibilidade legítima de resistir

ativa ou passivamente à violência daquele que em nome dos demais Súditos-autores intenta

contra sua vida, sua liberdade, depois de ao estado de natureza tê-lo conduzido? E esta

possibilidade, se existente, pode ser evocada pelo “inimigo” para legitimamente fazer frente

contra o poder soberano? Pode ser invocado um poder externo à relação para legitimamente

limitar o agir hostil do Estado-ator? Pois bem, quatro hipóteses, ou quatro teses, podem servir

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de apoio nas respostas aos questionamentos. Uma primeira hipótese foi já apresentada: por

natureza não se pode transferir o direito a resistir, como se delineia no Leviatã. Aliás, este um

delineamento que já se via em termos próximos em Do Cidadão (1642), onde no Capítulo II,

18, Hobbes afirma a invalidade de um pacto de não resistência contra quem viesse, por

qualquer meio, a prejudicar o corpo, quando dizia: “ninguém está obrigado, por qualquer

contrato que seja, a não resistir a quem vier matá-lo, ou ferir ou de qualquer outro modo

machucar o seu corpo”.8 O que resta de fato saber é se tal resistência, fundada em um direito

natural e inalienável, pode ser estendida ao súdito que foi excluído do pacto pela vontade do

soberano-ator, pela vontade daquele que a quem fez representá-lo.9

Mas antes mesmo da análise de tal hipótese, deve-se levar em conta que há antes outra

hipótese que, por imprescindível que é, deve ser lembrada: trata-se da tese em que é

impossível sustentar a impossibilidade de um direito de resistência na filosofia política de

Hobbes. Impossível, inclusive, em favor do súdito que se mantém no pacto. Este parece ser o

cominho que intenta ler em Hobbes uma coerência lógica, total a ponto de afastar qualquer

coexistência permanente entre o poder ilimitado do soberano e o direito de autopreservação

do súdito. Refere-se aqui à leitura do Leviatã de Hobbes empreendida por Carl Schmitt, para

quem o direito de resistir não pode passar de mera utopia e não pode deixar de ser algo factual

e legalmente absurdo. É que em uma leitura como esta, o direito de resistência pode ferir e

enfraquecer a grande teoria de Hobbes, teoria esta que se voltaria ao estabelecimento do

Estado como um ente pleno, absoluto, superior, poderoso: um ente total. Assim, em uma tal

leitura, se por um lado seria possível sustentar que Hobbes concede ao soberano um poder

ilimitado, a um mesmo tempo e na mesma proporção que concede ao súdito um direito

irrestrito aos meios de autopreservação, por outro, seria possível também sustentar que a

segunda concessão não poderia ocorrer. Portanto, se aceita como válida esta hipótese, analisar

e delimitar a relação entre o súdito e o soberano, mais precisamente, buscar no direito e nas

8 Do cidadão, p. 48-49.

9 Pode-se dizer tal exclusão como um terceiro momento do qual precedem, antes do pacto, o primeiro, e, o

segundo, durante o pacto; sendo, pois, a exclusão o terceiro momento linear: depois do pacto. E, antecipada, se

se compreender que o estado de natureza existe sempre e sempre antes de qualquer pacto, pois é inerente à

condição humana; logo, no pacto não há uma transferência de direito, mas uma não manifestação, uma quietude,

do estado natural humano, que a qualquer momento pode manifestar-se: a condição humana seria, pois, como um

vulcão que com o pacto passa à inatividade; mas que se tal ou qual situação ocorrer, pode imediatamente voltar à

atividade. O que está no fundo, nada mais é questão de se o estabelecimento do Estado pode ou não por fim à

guerra que lhe deu origem. Este ponto pode ser melhor compreendido com a apreensão do capítulo IV do

presente escrito

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leis da natureza traçados na filosofia política de Thomas Hobbes os limites da relação entre o

poder do soberano, que lhe autoriza a infringir aos seus “inimigos” os danos que entender

necessários para o bem do Estado, e a liberdade individual de resistir à violência que permeia

e se incrusta no ser deste “inimigo”, poderia ser um caminho a se percorrer. Poderia se tal tese

não devesse ser afastada. Ora, para se buscar o objeto proposto, encontrar os limites da

relação existente entre o soberano e o súdito excluído do pacto, ou entre o soberano e o

inimigo declarado, parte-se da premissa que demonstra a existência do direito de resistência

no Leviatã de Hobbes.

Agora bem, vencida a perspectiva de impossibilidade do direito de resistência na

filosofia política, em especial no Leviatã, de Thomas Hobbes, isto é, de modo inverso,

constatada a presença do direito de resistência na filosofia política de Hobbes, em especial no

seu Leviatã, cumpre retomar a questão. Disse-se que há uma hipótese de resistência concedida

ao súdito que se mantém íntegro ao pacto. Esta hipótese é a que se funda na inalienabilidade

do direito de resistir a quem atente contra a vida do súdito, ou indivíduo, hobessiano. Pauta-

se, pois, na existência no sistema hobbesiano de um direito inalienável e intransferível,

intrínseco ao indivíduo hobbesiano: o direito de autopreservação. Não obstante, é ainda

possível observar uma tese de resistência na filosofia política de Hobbes, fundada não no

direito de autopreservação, mas no direito mesmo de preservação da vida. Trata-se, portanto,

de fundar a hipótese de resistência nos propósitos primordiais do pacto: a preservação da vida

e o bem estar físico. Com efeito, é com Renato Janine Ribeiro, que o apresenta pela primeira

vez em 1978, no seu livro A marca do Leviatã, e que o desdobra em 1984, no seu Ao leitor

sem medo, que o tema da resistência política na Filosofia de Hobbes fundada no direito de

preservação da vida, isto é, nos fins do pacto, vai se consolidar. Aliás, cumpre tributar, antes

de Renato Janine Ribeiro, o tema da resistência pouco era explorado na filosofia de Thomas

Hobbes de Malmesbury. Poucos abordaram o tema. Alguns chegaram a problematizá-lo, mas

por qualquer razão não chegaram a abordá-lo e desenvolvê-lo na posteridade. Não é por

menos que se afirma que no século XX, antes de Janine Ribeiro, apenas o alemão Carl

Schmitt desenvolve a questão da resistência na Filosofia de Hobbes; contudo, ao contrário

daquele, o faz com o fito de negar a hipótese. Mas, depois de Renato Janine Ribeiro, “obras

relevantes envolvendo a questão passaram a ser publicadas, incluindo aí autores como tais

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como Hampton e Kavca.”10

Era lugar comum na filosofia política antes de Renato Janine

Ribeiro abordar a resistência a partir de John Locke, principalmente pela teoria dos dois males

extremos, desenvolvida no § 230 do seu Segundo Tratado Sobre o Governo Civil, e não por

Hobbes; daí a relevância e a inovação do brasileiro. Desde a perspectiva da teoria dos dois

males, se tem a resistência como o contrário da obediência civil, portanto, contrária à idéia de

desobediência. É que na resistência reside o germe da legitimidade, ao passo que isto já não se

vê na idéia de desobediência. E, além do mais, desde uma perspectiva não-teológica, o direito

de resistência somente pode surgir em específico momento e sobre específico pressuposto,

isto é, somente perante a possibilidade da morte violenta, porque, aqui, e somente aqui, o

súdito recupera a autoridade que cedera ao ator-soberano.11

Segundo a fundamentação do direito de resistência empreendida por Renato Janine

Ribeiro, “o soberano tem todo o direito de me matar, invocando simplesmente o direito de

natureza que continua em suas mãos, – mas neste caso eu recupero a liberdade e posso

resistir-lhe.”12

Na teoria dos dois males, entre o despotismo e a falta de governo, sempre deve

valer o mal menor, e como qualquer mal parece dever ser menor do que um governo

despótico, sempre se deve optar pela falta de governo. Mas, em Hobbes, a falta de governo

parece ser inaceitável: a via é bem outra. Com efeito, sem um poder comum capaz de garantir

a paz entre os indivíduos, isto é, sem um Estado, reina o estado de guerra, local em que cada

um é um lobo faminto por sangue: persiste a guerra de todos contra todos. Por isso, a

resistência em Hobbes, embora reconhecida, é bem mais restrita e funda-se em outro

pressuposto: somente quando o Soberano-ator volta-se contra a vida do indivíduo-autor é que

se legitima a hipótese de resistência. A dinâmica consiste no seguinte: transfiro minha

liberdade de auto-gerir a mim mesmo, de governar a mim mesmo da maneira que bem me

interessar, para que, outros assim também o fazendo, minha vida seja mantida, e as condições

de mantê-la me sejam asseguradas; se quem detém o poder de me governar a partir de minha

liberdade que a ele transferi, ao invés de cumprir a finalidade precípua desta transferência,

isto é, garantir minha vida, contra minha existência atenta, o pacto se perde e retomo, pois,

minha liberdade transferida. Agora, voltamos ao estado de natureza, que é o estado

permanente de condição de guerra, eu, autor do poder, e este soberano, ator do poder, que

10

Thamy POGREBINSCHI, O problema da obediência em Thomas Hobbes, p. 200. 11

Renato Janine RIBEIRO, Ao leitor sem medo, P. 78. 12

A marca do Leviatã, p. 93.

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contra mim atentou. Por isso, entre nós reina a possibilidade legítima de guerra. Mas esta –

cumpre ressaltar – deve ser lida como uma hipótese que reconhece a resistência, no entanto,

desde uma perspectiva restrita: somente se houver atentado contra o direito à vida e aos meios

essenciais de garanti-la. Parece que a partir desta hipótese, a terceira aqui considerada, funda-

se a primeira apresentada, que fundamenta o direito de resistência no direito de

autopreservação, melhor, na violação de direitos inalienáveis e intransferíveis, que são

mantidos em poder do indivíduo mesmo com o advento do Estado, isto é, em termos

hobbesianos, com a passagem do estado de natureza para o estado civil político. Mas há entre

ambas uma diferença fundamental no que diz respeito à amplitude do direito de resistência.

Veja: ao passo que Renato Janine Ribeiro parece restringir a resistência apenas ao ataque à

vida e daí derivar ou estendê-la, Nádia Souki, parece estender o direito de resistir além da

morte violenta: garante-o também a quem vier me ferir ou me atirar no cárcere ou na prisão,

pois o direito de resistência aqui derivaria da liberdade não transferida com o pacto. Sutil, mas

reside aí uma diferença fundamental, não se pode negar: enquanto na finalidade do pacto os

corolários da resistência derivam do direito à vida, na violação de direitos inalienáveis a

resistência não apresenta derivações, mas ela mesma se estende a domínios que não dizem

respeito à ausência de vida. Nádia Souki deita sua argumentação, principalmente, na exegese

do Capítulo XIV do Leviatã, ao passo que Renato Janine Ribeiro, não só no XIV, mas, e

principalmente, no Capítulo XXI e na “Conclusão e Revisão” do mesmo tratado.

Há, por fim, no que tange a análise aqui empreendida, uma quarta hipótese a ser

observada: é a que funda o direito de resistência na idéia de obediência divina.

Diferentemente do que se dá nas duas hipóteses anteriormente apresentadas, hipóteses que

concebem o direito de resistência na filosofia política de Hobbes, esta vai estender a

resistência a outras possibilidades, como, inclusive, violação da fé cristã. É a tese da jovem

cientista política Thamy Pogrebinschi que aqui recebe um olhar mais detido. É que esta autora

pretende dar um passo a mais no caminho empreendido por aqueles que desdobram uma litura

de base teológica da obrigação política hobbesiana. Em sua tese, estende a autora o direito de

resistência, que prefere tratar no âmbito próprio da desobediência civil – o que pode, cumpre

observar, ser muito bem contestado –, desde a perspectiva da integridade física, até, inclusive,

à possibilidade de abstenção ao serviço militar. Não abandona, é claro, a possibilidade de

resistência na iminência de uma morte violenta, do vilipêndio corporal e do encarceramento.

Mas inclui ao direito de resistência, desde a perspectiva moral, a possibilidade de não se auto-

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incriminar e a não incriminar a outrem, além da possibilidade de não se obrigar pelas próprias

palavras. Uma grande ampliação em relação às ditas “teses laicas”. Nesta hipótese, o pacto é

celebrado não para garantir a vida, mas para se garantir a obediência às leis de natureza, que

são leis divinas, e o objetivo da soberania é garantir que o pacto de obediência seja obedecido;

logo, “quando o próprio soberano age contrariamente aos fins para os quais a soberania foi

constituída – seja deixando de zelar pelo cumprimento do pacto de obediência, seja atentando

contra os direitos naturais e irrenunciáveis dos súditos – ele deixa de atender à sua finalidade

e necessidade, podendo então ser resistido.”13

Ora, se não é cumprida a finalidade da

representação, que aqui é a garantia de cumprimento das leis divinas, não há como falar-se em

autor e ator, mas somente em autores, pois, perante Deus, não diferença entre Soberano,

indivíduos e indivíduo. Logo, com a violação do pacto, isto é, com a violação das leis de

natureza, o que no limite significa desobedecer a Deus, o que pode restar é apenas a condição

pura e simples de homens. Neste caso, não pode mais haver um resistir ao Soberano, que já

não é ator, mas um puro e simples autor. A relação, portanto, passa a ser de pura e simples

violência entre homens, eliminável apenas pelo poder sobrenatural, pois, além do Deus, já não

pode haver um poder superior capaz de intervir neste confronto para estabelecer a paz.

Não se tem dúvidas de que nesta hipótese, intenta-se estabelecer uma relação entre

soberano-ator a súdito-autor excluído do pacto no campo do estado natural, no âmbito mesmo

do direito natural, regido e limitado, pois, pelas leis de natureza: aqui, as leis provenientes da

reta razão, da vontade de Deus. Esta hipótese cumpre um papel importante na análise, pois é

desde sua perspectiva que se pode evidenciar a hipótese de resistência negativa.14

É que nesta

hipótese haveria um poder maior a ser invocado para estabelecer a paz entre os contendores:

Deus. Na autoridade divina, que aqui é sempre superior a qualquer autoridade terrena, que se

funda o direito de resistir. Ainda que se tenha por autorizado conclamar o Leviatã como um

Deus mortal, cumpre observar que acima dele há um Deus imortal, fundamento e lugar

comum de toda obrigação. Nesta hipótese, as leis de natureza seriam leis em sentido estrito

provindas da reta razão, e não meros preceitos éticos, e, portanto, obrigariam, vinculariam, o

13

Thamy PROGREBINSCHI, O problema da obediência em Thomas Hobbes, p. 198. 14

A idéia de negatividade poderia fica melhor compreendida com o termo passividade. Mas, como o termo não é

utilizado de forma imparcial, mas tendenciosa, a melhor palavra encontrada foi a “negativa”. Cumpre, no

entanto, esclarecer o que significa essa negatividade: é a não-atividade, uma tomada de postura que rejeita a

ação, mas nem por isso assume uma postura de passividade. Neste sentido, a resistência em que há o

enfrentamento do súdito poderia ser, ao contrário, chamada de ativa. Em síntese, a questão é de cunho

eminentemente terminológico.

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soberano-ator a respeitar a vida do súdito, porque, como leis gerais e existentes antes mesmo

do pacto, estariam a obrigar a todos os súditos-autores, vinculando, em efeito, a vontade

destes. Logo, a vontade do soberano-ator estaria vinculada às leis de natureza desde sua

origem, antes mesmo da constituição do pacto. Então, neste caso, o limite da vontade, isto é, o

exercício do direito, encontraria seu limite nas leis de natureza.

A resistência, portanto, pode fundar-se em três hipóteses: na violação por parte do

soberano ao dever de obediência às ordens divinas; na violação por parte do soberano aos

propósitos do pacto; ou, na violação por parte do soberano a direitos indisponíveis,

intransferíveis e inalienáveis. Não obstante, todas as hipóteses estabelecem e desdobram o

direito de resistência em favor do súdito hobbesiano que se mantém no pacto, mas não se

voltam, pelo menos aparentemente, ao “inimigo declarado”. Além disso, ao que parece,

limitam-se à fundamentação e à descrição da hipótese de resistência sempre de um ponto de

vista puramente político-jurídico, ou mesmo teológico. Por isso mesmo, parece ser preciso

virar o olhar para a existência possível de outra dimensão da resistência: não a sua origem

primeira, fundamental e anterior; uma origem escondida, que somente pode ser encontrada no

plano metafísico, mas para a dinâmica da relação de poder que se manifesta no confronto

travado entre o súdito-autor e o soberano-ator excluído do pacto, precisamente porque aqui há

um problema fundamental, mas não muito para a abordagem que ora se empreende: como ser

mantida a relação de soberania quando o representante se volta contra os representados, de

quem extrai a validade de seu poder, precisamente, quando se volta contra quem lhe serve de

fundamento? O que parece ser preciso ao menos evidenciar então é, através da genealogia, o

que está em jogo na relação que se dá por trás do discurso de resistência no âmbito mesmo do

discurso hobbesiano: alguns dos mecanismos de poder que se manifestam na relação entre

soberano e súdito excluído do pacto. Mas para isso, parece ser preciso ir além do argumento

político, jurídico ou teológico: parece ser preciso, pois, ouvir a história para descortinar o jogo

de forças que se manifestam na relação; parece ser preciso, pois, conhecer a qualidade de cada

uma das forças que se colocam em relação; parece ser preciso conhecer a hierarquia existente

entre as forças postas em relação: é preciso ouvir a história para encontrar o poder não em sua

origem, mas ali mesmo onde está manifestado, nos mecanismos de sua manifestação, nas

tramas que envolvem sua manifestação. Parece ser preciso abordar a questão em termos

outros, como “exclusão‟, “dominação”, “verdade”. Isto somente para buscar delinear um

caminho futuro para a análise dos tipos envolvidos, dos desdobramentos singulares, íntimos

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das relações que se manifestam na dinâmica do poder, um poder que se direciona no corpo e

na vida do indivíduo classificado (ou desqualificado) como “inimigo declarado”. Mas esta é

apenas uma ambição posterior: por ora cumpre preparar o terreno para a abertura de mais uma

hipótese; mas uma hipótese a ser ainda experimentada.

O que por ora importa, é que quando se considera que o Soberano-ator permanece ator

em relação aos demais súditos-autores, a relação entre este Soberano-ator e o “inimigo

declarado” será uma relação de hostilidade pura e legítima, pois entre eles não há relação que

não a violência existente entre os homens ausentes de um poder comum. Impera aqui não o

discurso político ou o discurso jurídico que desequilibra as forças – não que estas estejam em

pé de igualdade – desde um ponto de partida arbitrário. É que, em última instância, a relação

mesma deve se dar entre indivíduos que permanecem no pacto e o indivíduo que já não mais

integra o grupo regido pelas condições do pacto. E mesmo que estes súditos em conjunto

possam parecer mais fortes, “quanto à força corporal o mais fraco tem força suficiente para

matar o mais forte, por secreta maquinação, quer aliando-se com outros que se encontrem

ameaçados pelo mesmo perigo.”15

E se assim é, não pode haver uma racionalidade que

determine o que de fato é e que não é. Vale mesmo o que está em jogo no confronto: as forças;

a relação entre estas forças, os meandros desta relação, a legitimidade e a ilegitimidade que

desta relação derivam, mas desde uma outra perspectiva. Parece ser em tais termos que o

problema parece se colocar com mais vigor: o que está em jogo é a relação mesma dos

indivíduos enquanto tais e enquanto sujeitos viventes e dependentes de inter-relacionamentos

mútuos. Portanto, parece ser preciso conhecer não só a legitimidade ou ilegitimidade desta ou

daquela relação, mas, antes, parece ser preciso conhecer como se manifesta o poder em tais

relações, ou, precisamente, nesta relação. E é aqui que pode entrar a genealogia, necessária

para olhar o que de fato se dá no submundo desta relação entre indivíduo e indivíduos no

discurso hobbesiano. Parece ser preciso vontade de saber para tentar ouvir e conhecer as teias

que tecem esta relação específica de poder que se desdobra na relação entre indivíduo e

Estado, no interior do discurso hobbesiano. E para isso, deve ser preciso buscar a vontade de

poder onde ela se manifesta.

Disse-se aqui que se faz necessário conhecer as forças em relação. É com Foucault que

15

Thomas HOBBES, Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil, p. 78.

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tal se deve dar. Mas, não se pode esquecer, é com Nietzsche se pode compreender o sentido de

como se constitui um corpo político: a relação de forças no jogo do acaso; toda e “qualquer

força está em relação com outras forças, seja para obedecer, seja para ordenar. O que define

um corpo é esta relação entre forças dominantes e forças dominadas. Qualquer relação de

forças constitui um corpo: químico, biológico, social, político.”16

É com Nietzsche que se

aclara que duas forças, desiguais, constituem um corpo político a partir do momento em que

entram em relação; para distinguir estas forças, e conhecer a hierarquia que entre elas há, isto

é, aquela que domina e aquela que é dominada, é preciso distingui-las, quantificando-as e

qualificando-as na relação que se dá somente e tão somente com o acaso. É preciso, pois,

conhecer as forças, sem, contudo, ignorar o caos; é necessário saber da diferença e da

desigualdade constante que há entre as forças que constituem o corpo, em uma perspectiva do

múltiplo. Mas, mais do que isso, é preciso conhecer a vontade de poder: o elemento genético

da força: o princípio para a síntese das forças. Sem recorrer a tais elementos, parece restar

inacabada a tentativa de estabelecer a relação de poder que se dá entre as forças em jogo, isto

é, na relação mesma que se dá entre soberano-ator e o súdito-autor-excluído. Isso apenas para

buscar a direção de outra via possível na abordagem da resistência; o necessário: buscar

apreender o grau de resistência que se deve superar para manter-se dominante na relação e o

grau de resistência que se deve enfrentar para buscar a inversão na ordem da hierarquia que se

desdobra nesta específica relação de poder.

É Nietzsche quem demonstra que a vontade de poder aparece não só nos indivíduos

oprimidos, mas também nas espécies ditas mais fortes, que ainda não ascenderam ao poder,

assim como também com as de fato mais fortes, mais ricas, mais independentes, mais

corajosas, etc. Mas, parece ser possível afirmar que Hobbes também pôde perceber as

manifestações da vontade de poder. Com efeito, isto pode ser visto quando se aborda o tema

da escravidão no âmbito do pacto delineado por Hobbes: a relação não é de sujeição, mas de

luta constante; uma relação constante de luta: entre o cativo e o captor a guerra prossegue

sempre e sempre. O que há é uma constante luta entre as forças postas em relação: uma quer o

poder para livrar-se, e a outra o quer para mais e mais para atender seus próprios interesses

sobre o outro: a luta é, pois, constante. O escravo, diferentemente do servo, não se submete,

não se compromete a obedecer. Logo, não é uma relação de trabalho que vai caracterizar a

16

Gilles DELEUZE, Nietzsche e a filosofia, p. 62.

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relação no cativeiro, mas a guerra constante entre duas forças. Também se pode perceber a

manifestação do poder quando se toma como ponto de partida a idéia de indivíduo

contraposto aos indivíduos, ou ao rebanho. Com efeito, se Nietzsche apresenta o indivíduo

como algo inteiramente novo e criador do novo, como algo absoluto17

, algo que deve dizer

inteiro respeito a todas as ações. E Hobbes, por sua vez, não deixa de extrair de algo exterior

ao indivíduo o fundamento de todas as coisas. Com efeito, Hobbes vai buscar na vontade

individual de cada um dos indivíduos que integram o pacto, na vontade reunida de todos os

indivíduos, a origem e fundamento do pacto que constitui o grande Leviatã. “A vontade,

fazendo a representação, constituirá uma política sem modelos naturais.”18

Cumpre frisar que

reside aqui um dos aspectos da originalidade de Hobbes. Com efeito, Hobbes é um dos

primeiros, senão o primeiro, a estabelecer na Filosofia Política moderna o indivíduo como

fundamento de todas as coisas, inclusive do Estado. Mas o problema de Hobbes, dirá

Foucault, não extrai as conseqüências necessárias de seu achado. Hobbes percebe a guerra

como princípio de todas as coisas, mas não vai além disso; ela abafa a guerra com a

constituição do estado civil político.

Há ainda um ponto mais de aproximação que pode ser aqui evocado. Mas para isso,

cumpre ser desdobrada a questão inicial no campo do sistema político hobbesiano, apoiando-

se em um elemento concreto, que pode ser o corpo do indivíduo. Neste caso, parece ser

necessário encontrar mais um recurso: parece ser preciso conhecer os jogos de criação da

verdade nas relações jurídicas específicas. Com efeito, além de buscar a compreensão das

manifestações de poder, que se mostram na relação de forças existente entre o súdito

declarado inimigo e o soberano que assim o declara no contexto hobbesiano, parece ser

preciso descortinar as conseqüências específicas desta relação. Parece ser preciso desdobrar,

pois, as conseqüências desta relação de poder nos domínios do indivíduo do conhecimento e

da verdade, pautando-se não no que se pode chamar de discurso de verdade do indivíduo, mas

no que se pode compreender por verdade derivada e desdobrada na relação específica em

jogo. Eis, pois, uma hipótese possível para se tentar completar o círculo: evidenciar a

possibilidade de outro discurso, não paralelo, mas vindo de baixo, desqualificado; mas

existente. Assim, parece se completar o círculo para a abordagem da resistência conferida por

Hobbes ao indivíduo. Em síntese, parece ser necessário não só a abordagem de Hobbes, mas

17

Friedrich W. NIETZSCHE, A vontade de poder, p. 766. 18

Renato Janine RIBEIRO, A marca do Leviatã, p. 153.

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também ouvir tanto Nietzsche como, e principalmente, Foucault para desdobrar a questão do

direito de resistência em suas possibilidades. É por este meio que se pode de fato empreender

uma verdadeira abordagem ao tema da resistência individual do ponto de vista de uma relação

específica de poder, pois, do contrário, o círculo poderá continuar muito distante do caminho

que o conduz a uma possível solução.

O que importa agora, portanto, é a necessidade de se encontrar um caminho a

percorrer na busca pela compreensão da resistência em sua significação. Por isso, parece ser

necessário delinear antes um traçado possível; parece ser preciso, então, buscar respostas para

quatro questões: é possível falar-se em resistência na Filosofia Política, especificamente no

Leviatã, de Thomas Hobbes? Se sim, como então deve ela ser dar, o que deve ser é e quais os

seus limites no sistema hobbesiano? Quais os fundamentos do direito de resistência

hobbesiano? É possível apreender o direito de resistência enunciado por Thomas Hobbes em

outra dimensão que não a jurídica ou a política? Dois momentos então devem ser

necessariamente ultrapassados: o primeiro, analisar o texto do Leviatã, principalmente nos

capítulos XIII a XXX e na “Revisão e Conclusão”, com o apoio, é claro, de alguns

comentários precisos, para tentar responder os questionamentos ora enunciados; e, em um

segundo momento, depois de firmada questão da possibilidade de se apreender o direito de

resistência enunciado por Hobbes em uma outra dimensão que não a jurídico-política, isto é,

não em termos de soberania, mas em termos outros, como as relações de poder manifestadas

nas relações existentes entre os indivíduos mesmos, e principalmente a relação específica

entre indivíduo representante e indivíduo representado, entre indivíduo e indivíduos (ou, em

outros termos, entre indivíduo e rebanho). Em síntese, analisar o direito de resistência na

construção do discurso político-jurídico e encontrar o caminho para traçar uma linha possível

para observá-lo em suas manifestações singulares, em sua natureza singular, em sua

manifestação singular: um confronto de forças postas em relação no jogo regido pelo acaso,

para depois aprofundar, descer, até o ponto possível de estrangulamento. Portanto, um

segundo momento em que se pode experimentar a plausibilidade de uma hipótese: a hipótese

de Nietzsche, como diria Foucault: a questão das forças como elemento essencial – se é que

se pode utilizar tal termo – da resistência no enfrentamento de seu contrário, o poder.

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II – É POSSÍVEL APREENDER O DIREITO DE RESISTÊNCIA EM HOBBES?

Hobbes há muito é considerado o filósofo inglês de destaque maior. Leo Strauss,

reconhecidamente um dos maiores estudiosos de Thomas Hobbes, conclui que o filósofo

inglês é de fato o fundador da Filosofia Política moderna porque foi ele quem expressou a

convicção de que efetuara – em sua qualidade de filósofo – uma ruptura radical com o

pensamento político precedente de um modo muito mais claro que Zenon de Citio, Marsílio

de Pádua, Maquiavel, Bodin e inclusive Bacon; tal afirmação, inclusive, se confirma pelos

juízos de homens competentes, como Rousseau e Bayle. Também C.B. Macpherson, outro

grande estudioso da doutrina hobbesiana, reconhece a Hobbes lugar de destaque no

pensamento político moderno. Fernando Magalhães, estudioso brasileiro de Hobbes, afirma

que se reconhece a Hobbes não somente o lugar de maior filósofo inglês, mas também o de

primeiro grande teórico do Estado moderno. Os motivos, Hobbes rompe com a tradição do

direito divino dos reis e estabelece uma nova base política, fundada no consentimento, nos

princípios da legitimidade do governo. Muito embora Maquiavel “antecipe, de certo modo, a

autonomia da categoria do político, ele não chega a formular uma filosofia unitária do Estado

nem desenvolve detidamente o conceito de soberania. Nem mesmo Bodin ousa insurgir-se

contra os preceitos familiares. Acreditando que o poder só seria útil se a soberania de uma

república fosse absoluta e perpétua, „fazia o poder soberano parar à porta do lar‟ (Nisbet,

1982, pp. 144 e 146).”19

“Hobbes foi o primeiro pensador político a ver a possibilidade de

deduzir os deveres diretamente dos fatos mundanos das relações reais dos indivíduos entre si,

inclusive a igualdade inerente a essas relações; tendo em vista essa possibilidade, foi o

primeiro a poder dispensar suposições de desígnios ou vontade externa. As tradições das leis

naturais estóicas e cristãs, claro, afirmavam a igualdade entre todos os homens, mas essa era

menos uma afirmação de fatos do que uma aspiração a que todos os homens se considerassem

como iguais por reflexão sobre a racionalidade comum, ou sua criação comum. A

racionalidade comum é uma qualidade tênue e imprecisa em comparação com a insegurança e

subserviência ao mercado que Hobbes encontrou logo abaixo da superfície da vida diária.

Talvez por ser a racionalidade tão tênue, o desígnio e a vontade divinos haviam sido desde os

primórdios, trazidos para a tradição da lei natural, para dar apoio aos postulados da

racionalidade comum, e com sua introdução, o problema de obter os deveres a partir dos fatos

19

Fernando MAGALHÃES, À sombra do Estado universal, p.37.

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mundanos não mais se apresentava.”20

Hobbes também inova quando procura fundamentar sua filosofia política na ciência

natural moderna.21

Hobbes tomou seu método de Galileu. Acreditava que por meio deste

método poderia conseguir em Filosofia Política o que Galileu obtivera na Física. Mas, por

óbvio, a adequação do método de Galileu para a Física não garantia sua adequação para a

Política, pois, enquanto a física se debruça sobre o corpo natural, a política deita análise sobre

o corpo artificial. Se a Filosofia Política se incumbe tanto do conhecimento do corpo artificial

quanto na produção deste corpo, cumpre a ela decompor o Estado em existente em seus

elementos para produzir, por intermédio de uma maior síntese destes elementos, um Estado

justo. Por isso, o procedimento da Filosofia Política deve se assemelhar muito mais aos dos

técnicos que armam e desarmam uma máquina em suas partes, fazendo-a funcionar, que aos

dos físicos, pois assim, e somente assim, a Filosofia Política pode se converter em uma

técnica para a regulação do Estado. Sua tarefa deve ser modificar o equilíbrio instável do

Estado existente para fazê-lo funcionar da forma equilibrada que deve ter um Estado justo.

Somente, segundo Strauss, quando a Filosofia Política se converte em uma técnica como a

que ora se descreve, é que se pode fazer uso do método resolutivo-compositivo.22

Ainda há

algo que torna Hobbes precursor da Filosofia Política moderna: a abordagem da lei de

natureza. Há uma diferença de princípio, aponta Strauss, entre as concepções moderna e

tradicional da lei natural: a lei natural tradicional é primeira e fundamentalmente “regra e

medida” objetiva, uma ordem vinculante anterior à vontade humana e independente dela; já a

lei natural moderna é, ou tende a ser, uma série de “direitos” ou demandas subjetivas que se

originam na vontade humana. Aí reside uma das diferenças fundamentais entre a doutrina

política de Hobbes, o fundador da Filosofia Política moderna, com a doutrina política de

Platão e Aristóteles. Mas, mais do que esta diferença, Hobbes tem como ponto de partida não

a lei, senão que o “direito de natureza”; e é por essa concepção de “direito” como princípio da

moral e da política que a originalidade da filosofia política de Hobbes se manifesta de forma

menos ambígua, pois, ao partir do direito – e negar, em efeito, a supremacia da lei – o filósofo

inglês adota uma posição contrária à tradição idealista. Por outro lado, ao fundar a moral

política no “direito”, e não em inclinações ou apetites puramente naturais, Hobbes adota uma

20

C.B.MACPHERSON, A teoria do individualismo possessivo, p. 97-98. 21

Leo STRAUSS, La filosofia política de Hobbes, p. 11. 22

Idem, ibidem, p. 206.

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postura contrária à tradição naturalista.23

A base da moral e da política em Hobbes não é a “lei

de natureza”, a obrigação natural, mas o “direito de natureza”, pois a “lei de natureza” deve

referência ao “direito natural”, na estreita medida que dele é conseqüência necessária. É desta

perspectiva que se pode notar com maior clareza a oposição entre Hobbes e toda a tradição

fundada em Platão e Aristóteles, ao passo que se pode ver a importância transcendental da

filosofia política de Hobbes.24

Hobbes, portanto, foi o primeiro a distinguir com incomparável

clareza “direito” de “lei”; e isto, de modo tal que conseguiu provar que o Estado se encontra

fundado basicamente no direito, do qual a lei é uma mera conseqüência; também foi o

primeiro a captar a idéia cabal da soberania.

Hobbes fundamenta jus-filosoficamente as razões para a criação do Estado; legitima

por meio do contrato e do consentimento dos súditos, o poder do soberano. Hobbes empenha-

se em estabelecer um certo tipo de unidade de Estado, para garantir aos indivíduos segurança

e paz no interior da sociedade. Os objetivos de Hobbes com a constituição do Estado

mostram-se claros: o desejo de paz, a busca da felicidade, a segurança interna e externa dos

indivíduos através da proteção de um poder soberano comum. Mas o corpo central do

pensamento de Hobbes, principalmente o estabelecido no seu Leviatã, parece ser não só a

perseguição da paz, a busca desta com a fuga da morte violenta. “Na teoria hobbesiana, a

construção do Estado não se deve a um mero capricho dos homens ou a qualquer fato natural,

ou seja, decorrente de uma natureza social. Antes, o Estado é fruto da natureza egoísta do

homem, eterna e imutável, que o filósofo toma conhecimento pela leitura que faz do gênero

humano, no passado, e das atitudes de seus contemporâneos. O Estado hobbesiano nasce com

a função precípua de garantir a paz e assegurar a felicidade dos cidadãos. É o resultado de

uma convenção estabelecida após a conclusão de que a condição natural em que vivem os

homens não deixa lugar para uma vida confortável, pois todos são inimigos de todos.”25

Ora,

os homens em sua condição natural vivem em uma situação de total instabilidade, já que não

há um poder comum capaz de subjugá-los a todos.26

Sem este grandioso poder, o que há é o

23

Leo STRAUSS, La filosofia política de Hobbes, p. 10-11. 24

Op. Cit., p. 210 25

Fernando MAGALHÃES, À sombra do Estado universal, p. 95. 26

Cumpre observar que a hipótese descrita por Hobbes no Capítulo XIII de seu Leviatã, nada mais é que um

argumento lógico, uma “construção lógica”, uma “hipótese da razão”. O próprio Hobbes chega a afirmar

expressamente que crê que uma condição de guerra, aquela por ele descrita, jamais tenha se dado em qualquer

lugar do mundo. Existe uma séria discussão acerca da existência de um estado de natureza histórico. Aliás, esta é

uma objeção à Filosofia Política de Hobbes, pois no mesmo Capítulo XIII do seu Leviatã, o filósofo afirma que

havia no século XVII muitos lugares em que se vivia em estado de natureza, e cita, para arrimar seu argumento,

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medo da morte violenta, a ausência de paz, uma guerra constante e violente de todos os

homens contra todos os homens. Tudo porque os homens são egoístas, vaidosos e lutam por

ninharias; passam todo o seu tempo em busca de lucro e acumulação ilimitada de riquezas e

de poder. Por isso mesmo, enquanto vivem sem um poder para subjugá-los, os homens, os

indivíduos hobbesianos, vivem em condição de guerra constante. É necessário, pois, cessar

esta condição, pois, do contrário, não é possível haver sociedade e o perigo da morte violente

se torna uma constante, “e a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e

curta.”27

O medo da morte violenta forja, pois, o contrato que conduz os indivíduos à paz, à

segurança e à felicidade. O Estado, uma vez constituído, assegura aos indivíduos da morte.

Mas este medo da morte violenta, que move os indivíduos singulares a uma reunião

fundadora de um poder comum, que a todos subjuga, também se mostra como medo de

dissolução desta reunião, porque ainda aqui há uma certa igualdade entre os homens. O meio

necessário para se alcançar a paz, então, além da reunião de vontades, é o controle das paixões

individuais. Logo, com a subjugação das paixões e dos outros desejos individuais pela

inclinação do homem pela paz, há o nascimento do pacto hobbesiano. As paixões egoístas,

que levam os homens à guerra de todos os homens contra todos os homens, devem ser

subjugadas pelas paixões que fazem o homem tender para a paz.28

Como a Razão sugere

adequadas as normas que busquem a paz, e as leis de natureza sugerem que os homens

estabeleçam – e cumpram – contratos de paz, os indivíduos hobbesianos renunciam a seus

direitos sobre todas as coisas, contendo-se todos em relação aos outros homens, com a mesma

liberdade que aos outros homens permitem em relação a si mesmos, em favor de um poder

comum que lhes garanta a segurança, a felicidade e que lhes preserve a vida. É, pois, por meio

do pacto, que os indivíduos hobbesianos abandonam sua condição natural para ingressar em

uma sociedade civil política. É como se cada homem dissesse a cada homem “cedo e transfiro

meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia de homens,

com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as

os povos selvagens de muitos lugares da América. Acerca desta discussão, recomenda-se a leitura de obra Ao

leitor sem medo do Professor Renato Janine Ribeiro. 27

Thomas HOBBES, Leviatã, p. 80. 28

Para Hobbes, são as paixões que fazem os homens tender para a paz: “o medo da morte, o desejo daquelas

coisas que são necessárias para uma vida confortável, e a esperança de consegui-las através do trabalho.” Cf.

Leviatã, p. 81.

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38

suas ações.”29

Cedem e transferem, pois, um e todos os indivíduos hobbesianos sua liberdade

ao Estado, ao poder soberano, seja ele um indivíduo ou uma assembléia, que governa o

Estado.

Sob o jugo de um poder comum, soberano, irresistível e ilimitado, a paz, a segurança e

a boa vida, para Hobbes, podem tornar-se possíveis. Mas a natureza humana e suas paixões,

contudo, permanecem, não obstante o seu controle, e tendem a reconduzir o homem ao seu

estado primitivo. O Estado é, pois, constituído para que aos homens, a reunião de todos os

homens, se assegure a paz, a segurança e a boa vida. O medo da morte violenta reuniu os

indivíduos e os conduziu ao pacto de paz, do qual nasceu o Estado soberano. O medo,

portanto, o ponto de partida para a construção do Estado. Com isto concorda Schmitt, para

quem o ponto de partida para a construção do Estado hobbesiano deve ser o medo do estado

de natureza; sua meta e seu objetivo, a segurança do estado civil político. É que, para Schmitt,

no estado de natureza todos podem tudo ao mesmo tempo, inclusive matarem-se uns aos

outros; todos podem chegar a este extremo. Frente a uma tamanha ameaça, todos se

mostrariam iguais e deveria reinar, por conseguinte, a democracia. Logo, na leitura de

Schmitt, o estado de natureza é o reino da democracia. Mas nem tudo está perdido para o

professor alemão. Há, pois, o estado civil-político, onde, ao contrário do estado de natureza,

todos estão seguros em sua existência física, pois este é o reino não é o medo, mas da

tranqüilidade e da ordem. Assim, o estado civil político deve ser reduzido ao estado de

segurança. Para Schmitt, não é propriamente o medo da morte violenta, mas o terror do

estado de natureza que empurra os indivíduos cheios de medo para o estado de segurança.

Reúnem-se e eis que surge um feixe de luz emanado da razão e ante todos surge subitamente

um novo Deus: o Leviatã, o Deus mortal absoluto, que transforma os lobos em cidadãos e traz

aos homens angustiados a tão sonhada paz e a tão buscada segurança.30

Mas em que funda

este Deus mortal seu poder? Para Schmitt, não é na vontade dos súditos, mas no próprio

caráter divino do poder do Estado. É que para Schmitt, como para Hobbes, Deus é antes de

tudo poder (potestas), o caráter divino do poder político soberano e onipotente não é uma

fundamentação no sentido de uma pura demonstração lógica, mas é a pura demonstração do

caráter divino próprio deste poder. Mas sua onipotência mostra-se de origem muito distinta:

29

Thomas HOBBES, leviatã, p. 109. 30

Mas para Schmitt, no estado de natureza, a angústia – elemento central que fundamenta a criação do Estado -

chega ao extremo. A este elemento, a angústia humana, Schmitt fará uso constante em sua leitura do Leviatã de

Hobbes. Sem a angústia, para este intérprete, não há criação do Estado.

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não é de origem divina, mas uma obra humana; nasce pela virtude de um contrato que

celebram os homens. Pra Schmitt, esta imagem de Deus mortal serve para significar a

concepção do Estado. Mas a totalidade somente pode ser alcançada, quando a isto se aliar a

figuração da concepção cartesiana de homem, isto é, como um mecanismo dotado de alma, ao

homem magno. Logo, o Estado deve ser compreendido como uma máquina animada pela

pessoa representativa soberana, explicada pela construção jurídica do contrato.31

Dois elementos produzem, pois, o Estado na concepção schmittiana. O primeiro, os

indivíduos, movidos pela angústia, juntam-se uns aos outros e, iluminados pela razão,

produzem um consentimento que traz em si mesmo a submissão geral e absoluta ao poder

mais forte; mas, como esta primeira construção não pode ser vista única e exclusivamente

desde a perspectiva de seus resultados, pois se assim se proceder, isto é, se se observar o

primeiro elemento de constituição do Estado desde seus resultados e deixar aparte a

motivação inicial, a angústia, o resultado único que se pode alcançar é um pacto muito

distinto do pacto hobessiano: um contrato social de tipo anarquista. Por isso, a angústia deve

ser observada como o elemento essencial do pacto. Essencial, porém não único. Com efeito –

e eis o segundo elemento constituidor do Estado –, há que se direcionar o olhar para a pessoa

soberana representativa, quem, segundo Schmitt, é o único garantidor da paz. Este soberano

não se produz como obra do puro consentimento, mas do específico consentimento calcado na

angústia dos indivíduos. Ele deve ser infinitamente mais do que o que as forças somadas de

todas as vontades individuais participantes do pacto puderem dar de si mesmas: a angústia

acumulada dos indivíduos que temem por suas vidas produz o Leviatã, um poder novo. Mas,

mais do que um novo poder, o pacto de angústia cria um novo Deus, um Deus mortal que

transcende a um só e mesmo tempo todos os indivíduos que participam do pacto: transcende a

um e a todos. Porém, esta transcendência ocorre somente no plano jurídico; nunca no plano

metafísico. É que, segundo Schmitt, a lógica interna do produto artificial “Estado” não conduz

à pessoa soberana, que exerce a soberania, mas à máquina, pois o que deve importar não é a

representação por meio de uma pessoa, mas a proteção efetivamente presente do Estado; a

representação nada é sem a tutela praesens. E somente se pode assegurar a tutela por meio de

um mecanismo de comando que efetivamente possa funcionar. O Hobbes schmittiano não

apresenta uma pessoa como sendo o Estado em sua totalidade: a pessoa representativa da

31

Carl SCHMITT, El Leviathan em la teoría del Estado de Thomas Hobbes, p. 25-27.

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soberania somente é a alma do homem magno, do Estado. O Estado como totalidade é, pois,

nesta leitura, com seu corpo e alma, um homo artificialis, e como tal, uma máquina. É uma

obra fabricada por homens na qual o material e os artífices, a máquina e seus construtores são

os mesmos: os próprios homens. Por isso, a alma deve converter-se também ela em simples

parte de uma máquina artificialmente fabricada por homens. O leviatã converte-se, assim, em

uma grande máquina, em um gigantesco mecanismo a serviço da segurança da vida física

terrena dos homens dominados e protegidos por ele.32

Logo, contra ele, nada nem ninguém

pode resistir.

Ora, para Schmitt, há uma distância infinita que separa o Estado técnico de Hobbes da

comunidade medieval; e isto, não somente no que diz respeito ao soberano, construído de

maneira racionalista, mas também, e principalmente, no que diz respeito aos conceitos

jurídicos fundamentais: se antes a soberania se calcava na teoria do “direito divino dos reis”,

na idéia de “pessoas sagradas”, agora, com Hobbes, o que há é o mecanismo de mando do

Estado, construído de forma racionalista; e, se nas comunidades medievais o “direito de

resistência” feudal ou estamental contra um governo injusto é plenamente aceitável, no

Hobbes schmittiano isto é coisa impossível. Com efeito, para Schmitt, o indivíduo hobbesiano

não pode invocar, assim como o vassalo ou o estamento o faziam, um direito divino, o mesmo

invocado por seu senhor feudal ou territorial. No Estado absoluto de Hobbes, é uma idéia

absurda colocar a hipótese de “resistência” como um “direito”, e elevá-lo ao mesmo plano que

o direito estatal; isto se mostra para Schmitt absurdo não apenas do ponto de vista dos fatos,

senão que, e principalmente, do ponto de vista do direito. Para Schmitt, frente ao grande

Leviatã, mecanismo de mando tecnicamente perfeito, todo poderoso e capaz de aniquilar

qualquer resistência, resulta praticamente inútil toda e qualquer tentativa de resistir. Mais do

que isso, para Schmitt, a construção jurídica do direito de resistência se mostra como algo

impossível, inclusive mesmo como um problema. Ora, Schmitt apreende que não se pode

construir o “direito de resistência” nem como direito objetivo nem como direito subjetivo,

pois, não encontra espaço dentro do âmbito de domínio da grande máquina irresistível: não

pode encontrar lugar no interior do Estado.

Não pode, porque, segundo Schmitt, carece de ponto de inserção, não encontra seu

32

El Leviathan em la teoría del Estado de Thomas Hobbes, p. 27-29.

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lugar: o direito de resistência mostra-se para Schmitt como algo “utópico”. Para ele, frente ao

incontrastável Leviatã, que a todos submete igualmente sua lei, não pode existir estamento

nem caber resistência de qualquer estamento contrário. O Estado deve existir realmente como

Estado e funcionar como instrumento incontrastável da paz, da segurança e da ordem; deve ter

o direito objetivo e o direito subjetivo a seu favor, já que, como único e supremo legislador,

somente ele é que pode criar todo o direito; se assim não ocorre, se há algo exterior, superior,

que concede ao estamento um direito de resistir ao Estado, está este mesmo Estado fadado a

não cumprir sua função essencial, que é assegurar a paz, já que pode sucumbir frente ao

estamento. O Estado schmittiano deve ser um Estado forte, total; do contrário, não há Estado,

mas estado de natureza. Para Schmitt, pode o Estado parar de funcionar e a grande máquina

quedar vencida pela rebelião e pela guerra civil. Mas, ainda que tal ocorra, nada há que ver

com o “direito de resistência”. A guerra civil e a rebelião corroem o Estado. Não podem ser

admitidas. Para Schmitt, admitir o direito de resistência no âmago do Estado é o mesmo que

admitir um direito à guerra civil, e à rebelião, reconhecidos pelo Estado: é o mesmo que o

Estado reconhecer e permitir passivamente as causas que lhe conduzirão à morte; é o mesmo

que reconhecer aos revoltosos um direito de destruir o Estado. Mas isto é algo impossível para

Schmitt, pois um exclui o outro: O Estado exclui a guerra civil. “O Leviatã de Hobbes,

composto de Deus e homem, animal e máquina, é o deus mortal que aos homens traz paz e

segurança, e que por esta razão – não por virtude do „direito divino dos reis‟ – exige

obediência absoluta. Frente a ele não cabe direito algum de resistência fundado em um direito

superior e distinto, ou por motivos e argumentos de religião. Só ele castiga e premia. Ele só,

em virtude de seu poder soberano, determina, por meio da lei, o que será direito e propriedade

nas questões de justiça e o que será verdade e confissão nas coisas que afetam a fé religiosa.

„mensura boni et mali omni civitati est lex‟.”33

Na concepção de Schmitt, o que Hobbes quer é por fim à anarquia e ao direito de

resistência feudal, canônico ou estamental, e a guerra civil permanentemente viva em seu

tempo; pretende opor ao pluralismo medieval, às pretensões das Igrejas e de outros poderes

“indiretos”, a unidade racional de um poder inequívoco, capaz de proteger eficazmente a

todos os súditos, e de um sistema legal cujo funcionamento possa ser reduzido ao cálculo.

Como a este poder estatal racional incumbe fazer frente a todo e qualquer perigo político,

33

Carl SCHMITT, El Leviathan en la teoría del Estado de Thomas Hobbes, p. 41-47.

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assumindo assim a proteção e a segurança dos súditos, quando cessa esta proteção, deve

também cessar a obediência e o Estado, por isso, deve deixar de existir. Esta, a única hipótese

de o indivíduo hobbesiano recobrar sua liberdade natural. Somente pode haver liberdade

natural fora dos limites do Estado. Em seu interior, o que existe é a vontade do soberano, são

as leis do soberano. Quando a proteção cessa, não há mais Estado. Logo, a relação “proteção e

obediência”, na concepção de Schmitt, é a pedra de toque da construção política de Thomas

Hobbes.34

Schmitt, portanto, nega veementemente a possibilidade de um direito de resistência

no interior do Estado hobbesiano. Para ele, para o Estado hobbesiano ser um Estado, faz-se

necessário que todos os direitos, absolutamente todos, sejam transferidos e que o único

legislador seja o soberano. Nenhum resquício de liberdade pode haver. Por isso, não pode

haver lugar para o direito de resistência. Encontrar lugar para um tal direito na leitura de

Schmitt, mais do que enfraquecê-la, conduz ao enfraquecimento de toda a doutrina da

soberania schmittiana.35

Mas esta concepção não é a única aceitável. Com efeito, em oposição à teoria que

nega por completo o direito de resistência no interior do Estado hobbesiano, há leituras que o

admitem. Como o direito de resistência no interior do Estado hobbesiano, pressupõe a relação

específica de poder entre súdito e soberano, a pergunta parece dever ser neste específico

sentido: existe espaço para a liberdade individual nesta relação? Nádia Souki, ao contrário de

Schmitt, é uma das leitoras de Hobbes que responderá que sim. Para esta autora,

diferentemente da rebeldia, que é tida como a recusa radical e deliberada à autoridade civil

estabelecida, e que por isso mesmo é tida como um ato de hostilidade, que transforma o

rebelde em inimigo do Estado, é a resistência do súdito ao soberano. A resistência, segundo

esta autora, é um direito conferido expressamente ao súdito hobbesiano; direito que torna

possível diferenciar o filósofo dos demais teóricos do direito natural do século XVII. Com

efeito, Hobbes nega expressamente a renúncia ao direito de autopreservação no estado civil

político. Para o filósofo, o primeiro direito de natureza é a autopreservação, a autodefesa, que

embora seja o primeiro direito, cumpre observar, não é o único; como se depreende da leitura

do Capítulo XIV do Leviatã: “há alguns direitos que é impossível admitir que algum homem,

por quaisquer palavras ou outros sinais, possa abandonar ou transferir... ninguém pode

renunciar ao direito de resistir a quem o ataque pela força para tirar-lhe a vida, dado que é

34

Carl SCHMITT, El Leviathan en la teoría del Estado de Thomas Hobbes, p. 67-68. 35

Thamy POGREBINSCHI, O problema da obediência em Thomas Hobbes, p. 203.

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impossível admitir que através disso vise a algum benefício próprio”. E, ainda, “ninguém

pode transferir ou renunciar o seu direito de evitar a morte, os ferimentos e o cárcere”; e

complementa no Capítulo XXI: “se o soberano ordenar a alguém (mesmo que justamente

condenado) que se mate, se fira ou se mutile a si mesmo, ou que não resista aos que o

atacarem, ou que se abstenha de usar os elementos, o ar, os medicamentos, ou qualquer outra

coisa sem a qual não poderá viver, esse alguém tem a liberdade de desobedecer”. Para Nádia

Souki, portanto, o direito natural do homem à liberdade no estado civil político limita-se

àquelas ações que tendem à preservação e não a qualquer coisa.”36

Nádia Souki concebe a hipótese de resistência de forma limitada. Para ela, Hobbes é

explícito em conceder ao soberano um poder ilimitado; todavia reconhece ao súdito um

direito irrestrito aos meios de autopreservação, conforme exposto pelo filósofo no “Do

Cidadão”. Para a autora, no direito de resistência, direito irrestrito à vida, surge uma brecha

para identificar a fragilidade do soberano e a individualidade fulgurante do indivíduo. Com

efeito, o governante hobbesiano mostra-se fraco, mas mesmo assim a obediência se deve às

leis por ele, soberano, emanadas, seja quem for este, e não à pessoa que no poder soberano se

investe. O soberano é incapaz de conter a rebeldia que se apóia no direito de defesa do súdito.

É, pois, nesta brecha que se situa a liberdade. O soberano hobbesiano é tão humano quanto

seu súdito, mas a falha humana marca apenas um dos dois corpos do rei. Por isso, a brecha

aponta para o caráter humanístico do poder e ao mesmo tempo para a sua precariedade. Por

ser passível de falha, o soberano é também semelhante ao súdito, apesar do poder absoluto a

ele, soberano, concedido. Eis, aí, segundo Nádia Souki, a coerência do pensamento

hobbesiano; o conceito de soberania é constituído artificialmente. Sua leitura, embora em

sentido contrário à de Schmitt, mostra-se limitada em relação à de Renato Janine Ribeiro.

Com efeito, o festejado professor de São Paulo, quando aborda o tema da resistência em

Hobbes, evidencia que a relação jurídica do poder define-se principalmente pela troca de

obediência por proteção. O consentimento tem por consideração preservar a vida, pois

somente se renuncia ao direito de natureza o necessário para se viver, como consubstanciado

expressamente no Capítulo XXI do Leviatã de Hobbes. “Articulam-se vontade e razão:

reconhecer o poder, conhecer como defini-lo; renunciar, entender por quê. O princípio

volitivo exclui o direito divino e funda a representação; o racional dá, a esta, sua forma eficaz,

36

Behemoth contra Leviatã, p. 51-54.

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44

adequando o meio (cessão de direito) ao fim (preservação da vida).”37

Para Janine Ribeiro, o

individualismo hobbesiano exige que o poder provenha da vontade de cada súdito, e que este

somente o obedeça quanto e enquanto for racionalmente necessário para a conservação e

manutenção de sua vida no estado político. “A obrigação dura apenas se o soberano me

protege a vida; cessa, não somente se ele me ameaça, mas também quando ele deixa, embora

mau grado seu, de garanti-la. Por isso, ainda que Hobbes condene quem conspirou contra o rei

(Consideration, p. 421), admite que o realista leal se submeta a Cromwell, quando este

assegura a ordem (Leviathan, Rev. e conclusão, p. 719 et. Seq.). Também o servo, a ferro, é

desobrigado cessando a confiança, cessa o vínculo. Em troca da obediência, quer-se a

proteção.”38

Ainda em A marca do Leviathan, Renato Janine Ribeiro já afirmava a hipótese de

resistência do súdito ao poder soberano. Parca hipótese, parco direito, cujo sentido aqui se

manifesta como legitimador da vitória de uma sublevação. Seu fundamento, Renato Janine

Ribeiro extrai de uma leitura sistematizada da conjugação dos capítulos XIV, XXI e da

“Revisão e Conclusão” do Leviatã de Hobbes. Ninguém pode estar obrigado ao pacto a não

resistir à prisão ou à morte, e réus de crimes passíveis de morte podem, inclusive, unir-se para

lutar contra o soberano sem que com isso haja qualquer gravame aos respectivos delitos;

porque somente se pode estar obrigado a obedecer a um soberano quando e enquanto este

puder exercer algum poder sobre os demais. Para este autor, estes três dispositivos

hobbesianos se complementam para dar à resistência inicial do inimigo, face a face com as

forças policiais, uma certa legalidade; o que autoriza também sua aliança com outros fora-da-

lei e, ademais, o apoio ativo ou passivo a outras camadas da população. Aqui se exprime toda

uma história da rebelião, na estrita medida em que sua origem pode estar no indivíduo,

conclui Renato Janine Ribeiro.39

Mas o direito de resistência, alerta o professor paulista, não

pode existir em sua dimensão coletiva. Com efeito, no seu ao leitor sem medo, Renato Janine

Ribeiro chama a atenção para o fato de ser o direito de resistência comum a todos os homens,

na sua condição irrenunciável, o direito de natureza.40

Comum a cada um que não o transferiu

com a submissão ao pacto de paz. A liberdade remanescente de cada súdito diz respeito ao

37

Ao leitor sem medo, p. 169. 38

Ibidem p. 170. 39

A marca do Leviathan, p. 106. 40

Ao leitor sem medo, p. 90.

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45

espaço de vida privada.41

Mas a verdadeira liberdade do súdito não é resto; decorre da

obrigação mesma; ela visa o mesmo fim que constitui o Estado: a preservação da vida de cada

um; compõe-se dos direitos que o homem conserva ao fazer-se social, “porque abandonar o

direito de natureza foi apenas largar meios insatisfatórios para melhor atingir o mesmo fim.”42

O que funda, pois, o direito de resistir do indivíduo é o mesmo fim do Estado: a preservação

da vida.

A preservação da vida é comum ao direito e à lei de natureza; está, pois, a diferença

relacionada ao meio. A liberdade para cada um seguir sua própria razão. Mas o fim deve

suscitar o meio adequado, por isso, o direito de natureza mantém-se no próprio cerne da lei

como reserva “caso o indivíduo não alcance a paz almejada: não se suprime o direito de cada

homem à vida.”43

Por isso, muito embora tenha o soberano o direito de matar o súdito,

invocando simplesmente o direito de natureza que possui, neste caso, o súdito recupera sua

liberdade e pode, portanto, ao soberano resistir. A razão radica, segundo Renato Janine

Ribeiro, no fato de ter o indivíduo se socializado para garantir sua vida, precária na condição

natural de guerra; mas se o próprio soberano, que recebe a incumbência de garantir-lhe a vida,

é quem lhe ameaça, deve haver a retomada da liberdade para ser utilizada na defesa da vida; a

vida é, pois, um supremo e incondicionado valor; pode por ela lutar o inocente e o criminoso.

E a vida é tão valiosa para Hobbes, que o filósofo, segundo Janine Ribeiro, a defende até o

ponto de ampliar tal defesa de modo a permitir a resistência em face de quem intente mutilar-

lhe o corpo, jogar-lhe nas prisões, privá-los das condições mínimas de sobrevivência e,

inclusive contra a propriedade privada. Com efeito, é no Leviathan que Hobbes parece

estabelecer o sentido mais amplo para o tema morte; mais amplo que a morte propriamente

dita. É aqui que inclui a mutilação ao corpo. Por isso, Renato Janine Ribeiro vai evidenciar

que na época de Hobbes, dava-se o nome de pena de morte, ou pena capital, não somente à

perda da vida, mas também à perda de parte do corpo.44

Corolário do irrenunciável direito à

vida, o direito à integridade física assegura ao súdito hobbesiano a plenitude de seu corpo,

pois qualquer privação ou amputação já está a constituir uma pequena morte; algo inaceitável

para o filósofo. E se a própria vida não passa de movimento (Leviatã, Capítulo V), outro

corolário irrenunciável à vida é o direito de não ser preso ou ameaçado de prisão, pois a prisão

41

Ao leitor sem medo, p. 92. 42

Idem, ibidem, p. 93. 43

Ibid.. 44

Op. Cit., p. 94.

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46

abole a liberdade de movimento em que consiste a vida: “aprisionar alguém, ou ameaçá-lo de

cadeias, é já tentar matá-lo.”45

É que a vida no estado social, civil-político, por basear-se

sempre na confiança, deve fornecer aos homens satisfatória mobilidade, pois do contrário, isto

é, se não existir confiança, não há como existir reciprocidade; logo, não pode haver

submissão; por isso, desfeito está o pacto, pois, quando ameaçado de prisão, reposto está o

cidadão em sua condição natural, se assemelha ao cativo, a quem palavras não o prendem,

somente grilhões. Se não tenho proteção, não ofereço minha submissão: só a proteção repõe a

submissão. E isto é válido na estreita medida que a prisão na Inglaterra do século XVII não

constitui uma pena, mas apenas uma condição precária: o suspeito ou o réu somente pode ser

nela mantido à disposição da autoridade, que lhe escolhe a punição; geralmente a morte ou

alguma mutilação.46

Mas além do movimento e da integridade, o irrenunciável direito à vida inclui em si o

direito de não ser obrigado a matar: “nenhum homem está obrigado, pelas palavras [do pacto],

quer a matar-se, quer matar qualquer outro homem (Leviatã, Capítulo XXI).”47

Porque

ingressam no corpo político por medo da morte violenta, os indivíduos não estão obrigados a

matar, tampouco estão obrigados a guerrear pelo Estado, pois este não pode valer-se da

simples obrigação contratual para obrigar os indivíduos aos combates interno e externo: o

duplo gládio, a justiça e a guerra, incumbem ao soberano e seus funcionários. “Foi o medo da

morte violenta que nos conduziu à socialização, tenha-se dado ela por instituição ou por

conquista; como, então, negar ao obediente o direito de ser medroso? Há muitos „homens de

coragem feminina‟, afirma Hobbes, de quem não se pode exigir – como tampouco das

mulheres – o serviço militar.”48

Se não há contrato específico, não há obrigação de matar um

concidadão ou um inimigo. Esta obrigação específica de ser carrasco ou soldado, não integra

a natureza da cidadania: tomar em armas é um compromisso suplementar. A guerra, portanto,

não obriga, via de regra, o súdito hobbesiano ao combate, pois de seu direito irrestrito à vida,

deriva o direito de não ser obrigado a matar. Não obriga ordinariamente, pois há uma exceção:

se da mobilização dos cidadãos depender a defesa do Estado (Leviatã, XXI). A explicação

está no fato de Hobbes aparentemente distinguir a ofensiva em territórios estrangeiros das

ações de defesa no próprio país. Para Renato Janine Ribeiro, esta é uma distinção

45

Ao leitor sem medo, p. 97. 46

Idem, ibidem, p. 98. 47

Op. Cit., p. 95. 48

Ibid.

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47

relativamente fácil para a Inglaterra de Hobbes, na medida em que as ameaças somente

poderiam chegar pelo mar, já que o reino encontrava-se unido. Mas esta distinção, alerta o

professor paulista, não se mostra teoricamente clara. Com efeito, como o Estado é um corpo,

embora político, portanto artificial, que se mantém com seus pares em relação de natureza,

isto é, em constante estado de guerra; por isso, a ele se aplicam também as disposições do

Capítulo XIII do Leviatã, principalmente aquele preceito que determina ser razoável, na

guerra, uma atitude antecipatória ao ataque do inimigo: agredir quem ainda está pacato. Mas

se a prevenção é a melhor proteção, “como distinguir a defesa do Estado, que legitima a

mobilização universal, da invasão predatória do território inimigo – que poupa o povo das

calamidades da guerra e, sobretudo, é a única a capacitar o „homem artificial‟ à expansão que

é sua vida?”49

Na liberdade reside o fundamento do silêncio das leis, das coisas que o

soberano ignora. Aqui deve residir, pois, o resquício da liberdade natural do indivíduo

hobbesiano, a liberdade natural de movimento que vai além dos limites do direito a não ser

jogado na prisão. É no silêncio do governante que reside o movimento ainda livre.

Mas para a conservação da vida, para a plenitude do direito à vida, o indivíduo

hobbesiano carece de condições materiais mínimas; tudo para conservar a vida: viver inclui o

sobreviver. Por isso mesmo, comer, beber, como o respirar, são irrenunciáveis. O direito à

vida permite, inclusive, o furto por necessidade; e aqui está, segundo Renato Janine Ribeiro, o

principal ponto de oposição entre Hobbes e os teóricos da burguesia, que consideram melhor

um pobre morrer que se aceitar que furte um pão, pois, neste caso, a manutenção da vida

proporcionaria um bem inferior ao dano suportado pelo furto.50

Hobbes assegurará sempre a

vida. Por isso, no Capítulo XXVII do Leviatã diz que “quando alguém se encontra privado de

alimento e de outras coisas necessárias à sua vida, e só é capaz de preservar-se através de um

pacto contrário à lei, como quando durante uma grande fome obtém pela força ou pelo roubo

o alimento que não consegue com dinheiro ou pela caridade, ou quando em defesa da própria

vida arranca a espada das mãos de outrem, nesse caso o crime é totalmente desculpado”.51

Neste princípio está a garantia da vida contra a liberdade individual. Com efeito, segundo

Janine Ribeiro, para Hobbes, não pode ser considerado um criminoso quem, coagido pela

necessidade, furta para sobreviver, porque age sem culpa, uma vez que a natureza é quem lhe

49

Ao leitor sem medo, p. 96. 50

Idem, ibidem, p. 99-100. 51

Thomas HOBBES, Leviatã, p. 185.

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48

exige a prática do ato. E se a propriedade, por outro lado, é o meio pelo e para o qual o

soberano exerce seu ofício – garantir a vida dos súditos –, nem o proprietário pode acionar

por danos, nem o soberano pode punir, o esfomeado por infringir as leis civis. E o soberano,

enquanto responsável pela vida dos súditos, deve manter-lhes longe da fome e da miséria,

pois, do contrário, mostra-se incapaz em seu ofício e, com isto, torna possível restituir a cada

um dos esfomeados e miseráveis o direito de natureza suficiente para contra este soberano

fazerem a guerra.

Se de um lado se pode apreender uma leitura que excomunga até a quinta geração o

direito de resistência no Leviatã de Hobbes, de outro, encontram-se leituras que o admitem,

seja pautando-se no direito irrestrito à vida, seja na idéia de inalienabilidade de direitos, isto é,

na idéia de autopreservação e da preservação da vida, assim como nos fins do pacto. Há, pois,

em uma perspectiva em forma de mosaico, de um lado, partindo-se do centro, uma leitura que

não admite de forma alguma o direito de resistência, de outro, leituras que já o permitem,

contudo, de forma muito restrita e específica. Mas há, ainda, talvez ao lado, talvez mais ao

extremo do mosaico, talvez em um ponto mais apartado, porém ainda em seu interior, uma

leitura que conduz o direito de resistência aos seus extremos. Trata-se, pois, da leitura pautada

não somente na idéia de preservação da vida, da inalienabilidade de direitos ou das finalidades

do pacto (preservação da vida, garantia de segurança, manutenção da paz, exercício de uma

boa vida), mas na idéia de obediência divina: a idéia que existe algo superior, um Deus

imortal, que tanto aos súditos quanto ao Deus mortal, o grande Leviatã, dirige o destino e a

eles determina regras, as leis de natureza. Nesta leitura, todos, súdito e soberano, estão a ele,

Deus, vinculados ainda em estado de natureza, assim como no interior do Estado, em plena

vigência do pacto. Se se têm por objeto a pretensão de desdobrar os limites do direito de

resistência na filosofia política de Thomas Hobbes, em especial em seu Leviatã, cumpre, pois,

não deixar de olvidar a esta leitura. Cumpre, pois, apreender as leituras de Norberto Bobbio e,

em especial, de Thamy Pogrebinschi.

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49

III – QUAIS OS LIMITES DA RESISTÊNCIA NO LEVIATÃ DE HOBBES?

Agora bem, Bobbio, cientista político do século XX reconhecido por sua grandeza,

intenta extrair de suas análises todas as conseqüências possíveis da filosofia política de

Hobbes. Para ele, Hobbes apenas admite, em alguns casos, o direito de resistir à lei injusta.

Na leitura de Bobbio, leis naturais e leis divinas estão em relação, porque das leis naturais,

que para Bobbio são leis divinas, nascem todas as leis civis, isto é, as leis do soberano devem

estar em simetria com as leis de Deus. Para Bobbio, portanto, Leis naturais e mandamentos

divinos são uma e a mesma coisa: diferenciam-se apenas no que tange ao conteúdo, já que

jorram da mesma fonte, Deus. Por isso mesmo, deve-se obedecer ao soberano somente, e tão-

somente, enquanto suas leis não contrariarem as leis de Deus: o que é proibido pela lei divina

não pode ser permitido pela lei civil; o que a lei divina ordena não pode ser permitido pela lei

civil. Logo, se a lei civil ordena algo que a lei divina proíbe, pode o súdito desobedecer à lei

civil, que é a vontade de seu soberano, invocando a ordem de seu Deus; se a lei civil proíbe

algo que é permitido pela lei divina, pode o súdito novamente desobedecer à prescrição

terrena, invocando o preceito divino. Mas Hobbes deve limitar o mais possível os efeitos

desta desobediência, deixando evidente quais e tais casos é lícita a desobediência, de modo tal

que não fique ao arbítrio dos indivíduos a interpretação do preceito, já que apenas ao soberano

é dado interpretar os mandamentos de Deus, de um lado, e de modo que não se torne

inoperante ante as interpretações de um soberano. Hobbes, portanto, deve reconhecer o direito

de resistência, na leitura de Bobbio, somente a casos extremos e muito particulares. Ora, se

Hobbes extrai da máxima moral o fundamento segundo o qual a vida, em suas dimensões

terrena e eterna, deve ser conservada, conclui-se que a vida, em sua plenitude, é inalienável.

Mas é inalienável porque se deve protegê-la, principalmente, em sua dimensão espiritual: a

vida eterna. O súdito hobbesiano tem pleno direito à vida eterna: o soberano não pode ordenar

algo que ponha em risco a vida eterna, pois isto contraria diretamente a Deus; se determina

algo que coloca em xeque a vida eterna ao lado de Deus, o súdito pode desobedecer-lhe

legitimamente, porque uma tal determinação contraria a vontade de Deus, que é de que todos

os homens vivam eternamente no paraíso.

Mas as condições para desobedecer, com vistas a garantir a vida eterna, são

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50

extremamente exíguas. E se as leis divinas somente podem ser interpretadas pelo Estado, ou

pelo soberano, a interpretação destas leis depende, por óbvio, da autoridade do Estado. Cabe

ao Estado determinar os cultos, assim como também cabe ao Estado determinar o modo pelo

qual se deve honrar a Deus. Deste modo, se Deus ordena através da voz do soberano, e vice-

versa, o que o soberano ordenar sobre o culto e em matéria secular, deve ser entendido como

ordenado pelo próprio Deus. Logo, o direito de resistência pautado nas leis divinas passa pela

interpretação do soberano. E Hobbes, segundo Bobbio, tinha isto em mente; por isso,

estabeleceu duas exceções ao dever de obediência ao soberano: 1) quando o soberano ordenar

que se ofenda a Deus; 2) quando impuser que ele mesmo seja honrado como se fosse Deus.

Isso porque, se a contrariedade resulta em pecado, este pecado não é do súdito, mas do

soberano que ordena uma lei contrária aos preceitos divinos: “os mandamentos de Deus num

Estado cristão são, no que se refere às coisas temporais (...), as leis e as sentenças do Estado

(...); no que se refere às coisas espirituais (...), as leis e as sentenças do Estado, isto é, da

Igreja, já que Estado cristão e Igreja (...) são a mesma coisa‟ (Leviatã, XLIII). Conclusão: „(...)

num Estado cristão, deve-se obedecer aos governantes em tudo, tanto nas questões espirituais

como nas materiais‟(De Cive, XVIII, 13).”52

O Hobbes que se vê na leitura de Bobbio parece

estar disposto a deixar uma certa margem para a desobediência civil para garantir não só a

vida eterna, mas também a vida terrena, isto é, a vida em suas duas dimensões. Mas a

amplitude da vida eterna parece ser menor que aquela dada para a proteção da vida terrena, já

que como da vida eterna cuida o Estado, os limites para a desobediência são precisos. Mas se

Bobbio funda a resistência no dever de obediência às leis divinas e limita a desobediência,

Thamy Pogrebinschi, uma cientista política brasileira, vai muito mais além: muito embora,

como Bobbio, funde a resistência nas leis de natureza, que entende preceitos divinos,

emanação da vontade de Deus, as conseqüências que extrai são de maior amplitude, pois

estende a resistência inclusive a questões de ordem exclusivamente moral, como o direito de

não se obrigar pelas próprias palavras.

Muito bem, o que parece distinguir as leituras secularistas das leituras teológicas das

obras de Hobbes é, basicamente, a idéia de vontade por parte dos secularistas, e a noção de

autoridade divina por parte das interpretações teológicas. Mas esta distinção não é segura,

tampouco precisa e imutável, uma vez que tanto uma quanto outra podem lançar mão de

52

Norberto BOBBIO, Thomas Hobbes, p.148-149.

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51

ambos, ou de um ou de outro separadamente, os recursos de interpretação. Por isso, o que

pode tornar possível a identificação de qualquer uma destas interpretações na leitura da

obrigação política em Hobbes, é, precisamente, o fundamento em que se apóia a leitura.

Thamy Pogrebinschi é uma das autoras que se filia no que chama interpretação teológica da

obrigação política hobbesiana, visto que os partidários desta concepção, de modo geral,

apóiam suas leituras na compreensão do papel que assume a religião no pensamento

hobbesiano. Para esta autora, somente uma leitura teológica dos escritos hobbesianos pode

tornar coerente o pensamento do filósofo, além de suprimir as ambigüidades lingüísticas e

doutrinárias resultantes dos muitos anos em que se teria lido a obra hobbesiano de forma

parcial: deliberadamente ignorou-se a importância dos textos dedicados à religião. Além

disso, por tratar-se a leitura teológica de uma leitura que busca apoiar-se na literalidade e na

totalidade da obra do filósofo, somente ela pode alcançar uma maior proximidade com a

realidade da obra. Thamy Pogrebinschi pretende afirmar a teoria da obrigação política

hobbesiana em uma base que repousa na idéia de autoridade divina de Deus; o que dentro de

outras conseqüências, serviria para confirmar a tese de que Hobbes não teria rompido com o

jusnaturalismo clássico e nem com a tradição do direito divino dos reis. Hobbes, assim, teria

mesclado tais tradições com a noção de contrato e de consenso, contudo, atribuindo a estes

últimos um peso muito inferior.

Em sua tese, que chama de “nova leitura teológica do problema da obediência”,

Thamy Pogrebinschi aborda pontos significativos da concepção hobbesiana de dever e de

resistência, poder e direito, poder e resistência. Para ela, ao identificar o direito com poder,

Hobbes teria empreendido uma separação entre sociedade e Estado; ao opor poder à potência,

teria sujeitado o medo à liberdade; e ao fundar os alicerces do Estado em uma base jurídica,

teria amarrado sua teoria ao plano da racionalidade, da individualidade, da normatividade e a

da transcendência; e, ao derivar obrigação de um contrato, teria afirmado não somente uma

tradição liberal, mas teria acorrentado sua filosofia à ilusão da transcendência à ilusão dos

universais. Quando analisa a obrigação política, esta autora vai buscar no estado de natureza

hobbesiano o ponto de partida para desdobrar os fundamentos da obrigação política na

autoridade divina, exposta nas leis de natureza. É que a razão, nesta leitura, parece sugerir as

normas de paz que conduzem os homens ao contrato; e as normas de paz devem ser as leis de

natureza, preceitos ditados pela razão. Para ela, as leis de natureza não se limitam a preceitos

ou regras gerais, estabelecidos pela razão, mediante os quais se proíbem aos homens fazer

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52

tudo o que possa destruir suas vidas ou privá-los dos meios necessários para preservá-las, mas

“ditames da razão”; não os ditames que os homens “costumam dar o nome de leis, mas

impropriamente”, e que, por isso mesmo, não seriam possuidores de um caráter vinculante,

por não retirarem seu fundamento de algo externo a si, mas apenas em si, compreendendo-se

este “si” como razão humana individual, fundada na experiência; senão que aqueles ditames

que podem ser considerados leis verdadeiramente obrigatórias e vinculantes. Leis somente

podem derivar da palavra de quem detenha algum poder; por isso, somente leis são

verdadeiramente obrigatórias quando derivadas de alguém que detenha algum poder, algum

poder de mando. E não é apenas o soberano quem detém algum poder de mando.

Definitivamente porque uma tal limitação ao poder poderia excluir a principal passagem do

Leviatã de Hobbes, na qual se expressa que as leis de natureza são transmitidas pela palavra

de Deus, que, para Hobbes tem direito de mando sobre todas as coisas e que, portanto, devem

ser consideradas, as leis de natureza, leis em sentido estrito, vinculando e obrigando ao

mesmo tempo a tudo e a todos. Em uma linha: as leis de natureza devem ser consideradas leis

divinas.53

Thamy Pogrebinschi também se reporta ao Capítulo XXVI do Leviatã, o qual Hobbes

dedica às leis civis, para identificar uma espécie de associação entre leis naturais e razão

divina. Empreende esta autora uma divisão à definição hobbesiana de lei: “lei não é um

conselho, mas uma ordem. E também não é uma ordem dada por qualquer um, pois é dada por

quem se dirige a alguém já anteriormente obrigado a obedecer-lhe”. Mas esta alusão não é

realizada de um modo puro e simples. Com efeito, intenta a autora apenas associar não as leis

civis às leis de natureza, mas também associar o poder de mando a uma obrigação muito

anterior ao pacto de submissão para comprovar que as leis de natureza são leis divinas que

emanam de quem possui o poder originário: Deus. Por isso, por divinas, pretende que sejam

as leis de natureza preceitos teológicos; que as leis divinas e as leis civis contenham-se em si

reciprocamente, fundamentando-se umas nas outras, para alcançar uma ausência de

diferenciação, uma indiferenciação entre umas e outras no que diz respeito à obediência. Por

tudo isso, inclusive o soberano hobbesiano estaria obrigatoriamente subordinado às leis de

natureza e a elas devendo obediência. É, portanto, nas leis de natureza, leis da razão, que são

preceitos divinos que vinculam e obrigam a tudo e a todos, inclusive o próprio soberano,

53

O problema da obediência em Thomas Hobbes, p. 149-157.

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53

porque são mandamentos de Deus, que a autora vai buscar os fundamentos para sua leitura da

obrigação e da resistência hobbesianas. As leis sagradas, leis divinas, são identificadas pela

autora com as leis positivas e com as leis civis. Há, pois, para esta autora, um princípio de

identidade que não se mantém pura e simplesmente, posto haver sempre uma prevalência das

leis de natureza em relação às leis civis.

Mas uma tal prevalência somente pode se mostrar plausível quando analisada desde a

perspectiva do sujeito passivo da lei. Ora, as leis de natureza vinculam tanto ao súdito quanto

ao soberano; mas as leis civis vinculam e obrigam apenas o súdito, pois emanam daquele que

detém o poder de mando. Para Hobbes, segundo esta autora, o que diferencia de fato a lei civil

da lei de natureza, são apenas alguns atributos da lei natural, que precede a lei civil. Enquanto

a lei civil deve ser escrita a publicada, a lei natural não carece de tais requisitos. Também a lei

civil não pode contrariar a lei de natureza, porque as leis naturais, por serem eternas leis de

Deus, são imutáveis. As leis de natureza são retiradas de uma única fonte: as Escrituras

Sagradas. Por isso, o homem hobbesiano, na leitura de Thamy Pogrebinschi, deve obediência

não só às leis civis, mas, e principalmente, às leis de natureza, principalmente porque as leis

civis não teriam validade e eficácia sem as leis divinas. Para a autora, as leis civis retiram seu

fundamento das leis de natureza, por isso, o fundamento da obediência também deve residir

nos ditames emanados pela reta razão, Deus: “o verdadeiro fundamento da obrigação no

Estado-Leviatã não é a sua lei, nem qualquer lei, mas a razão divina manifestada através das

leis naturais.”54

Thamy Pogrebinschi está, ao que parece, com sua leitura a deslocar o

fundamento da obrigação política; donde se pode derivar muitas conseqüências na análise do

direito de resistência pertencente ao súdito hobbesiano. Está, pois, a autora a tocar, ademais,

no papel do soberano frente às leis de natureza. Ora, para ela, a idéia de obediência não se dá

perante às leis civis, mas frente às leis de natureza; logo, se algum poder absoluto pode haver

nesta leitura da filosofia política de Thomas Hobbes, este não pode ser aquele que se reveste o

soberano, mas somente, e tão somente, o do Deus imortal, a quem se sujeita o Deus mortal.

A autora vai buscar fundamento para seus argumentos justamente nos Capítulos

destinados por Hobbes à liberdade dos súditos (XXI) e ao cargo do soberano (XXX). Para ela,

mesmo enquanto juiz supremo, o soberano fica sujeito às leis de natureza, às quais deve

54

O problema da obediência em Thomas Hobbes, p. 166-167.

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54

obediência. Por isso, frente a Deus, autor e ator, súdito e soberano, são colocados pelas leis de

natureza em pé de igualdade; estão no mesmo plano: o da obediência divina. O sobernano

está, pois, na leitura de Thamy Pogrebinschi, submetido à ordem teológica: “o cargo do

soberano consiste no objetivo para o qual lhe foi confiado o soberano poder, nomeadamente a

obtenção da segurança do povo, ao qual está obrigado pela lei de natureza e do qual tem de

prestar contas a Deus, o autor dessa lei, e a mais ninguém além dele” (Leviatã, XXX).

É que para Thamy Pogrebinschi, o jusnaturalismo cristão é preponderante na obra de

Hobbes, assim como é explicita a defesa do direito divino dos reis; no entanto, com uma

abordagem um tanto distinta da tradição dos séculos anteriores ao XVII. O poder e o direito

do soberano não seriam apenas conferidos por Deus, mas afirmados pelo próprio Deus que,

por isso mesmo, exigiria obediência não apenas dos súditos, mas também do próprio

soberano. Deus, como rei dos reis, cuja vontade obriga por si mesma e cuja pretensão de

obediência baseia-se na sua onipotência, deve ser obedecido acima de tudo e todos. Deus,

portanto, enquanto Deus imortal, colocar-se-ia acima do Deus mortal, que, para esta autora, é

o soberano. Thamy Pogrebinschi parece pretender desdobrar uma espécie de teoria da

desobrigação na filosofia política de Hobbes, segundo ela, existente concomitantemente à

teoria da obrigação política desdobrada pelo filósofo inglês. Pretende esta cientista política

defender a existência de um direito de resistência em Hobbes, mas fundando-o, no entanto,

não nas leis de natureza nem na finalidade do pacto, mas na autoridade divina de Deus. Com

isso, consegue a autora ampliar significativamente as hipóteses da resistência, se comparada à

concepção de resistência de Janine Ribeiro ou de Nádia Souki, por exemplo, ou, como

pretende a autora, às concepções secularistas.55

Aborda a autora em sua tese, que chama de “nova leitura teológica do problema da

obediência”, ponto significativo da concepção hobbesiana, tais como dever e obediência,

poder e direito e poder e potência, entre outros. Para Thamy Pogrebinschi, Hobbes, ao

identificar direito com poder, empreender uma separação entre sociedade e Estado e ao opor

poder à potência, sujeitou o medo à liberdade, e ao fundar os alicerces do Estado em uma base

jurídica, direcionou sua teoria ao plano da racionalidade, da individualidade, da

normatividade e da transcendência e, além disso, ao derivar a obrigação de um contrato,

55

Op. Cit., p. 24-33.

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55

afirmou não somente a tradição liberal, mas, acorrentou sua filosofia à ilusão da

transcendência e à ilusão dos universais. E quando analisa a obrigação política, esta autora vai

buscar no último parágrafo do Capítulo XIII do Leviatã o ponto de partida para desdobrar os

fundamentos da obrigação política hobbesiana na autoridade divina: as leis de natureza. É que

a razão sugere as normas de paz que conduzem os homens ao contrato, e estas normas de paz

são essencial e especificamente as leis de natureza.

É que para situar sua tese, Thamy Progrebinschi insere a resistência no âmbito da

obrigação hobbesiana e a funda na idéia de autoridade divina. Com efeito, para esta

comentadora, a obrigação política a que estão sujeitos os indivíduos hobbesianos, seja em

estado de natureza, seja no estado civil político, deriva da razão divina, expressada nas leis de

natureza; as leis promulgadas pelo soberano estão nelas, leis naturais, contidas, e o soberano,

em suas capacidades de julgar, legislar e executar, também a elas, leis de natureza, está

subordinado. Interessante tese, na medida em que se coloca súdito e soberano em pé de

igualdade frente ao poder divino. Estão eles, para a autora, igualmente vinculados às leis

naturais; mas somente às leis naturais, porque às leis civis, somente o súdito está vinculado;

deve, pois, também, obediência ao soberano. Mas o soberano, somente a Deus. Hobbes,

segundo a autora, sabia muito bem disto, tanto que expressa que quando há um conflito entre

ordens contraditórias, entre as dos homens e as de Deus, deve-se obedecer a Deus, muito

embora a ordem desrespeitada seja de seu legítimo soberano, porque as ordens de Deus são

sempre superiores às de qualquer soberano. A essência disso reside na autorização divina da

“desobediência civil”, possível no momento em que uma ordem do soberano contrariar um

preceito divino, pois o indivíduo hobbesiano deve antes de o ser do soberano, súdito de Deus.

“A ordem divina deve ser obedecida sem restrições, mesmo quando o soberano ordene em

sentido contrário; (...) ele pode desobedecer ao soberano justamente para poder prestar sua

obediência a Deus.”56

Por isso, não deve haver dificuldades ao indivíduo em obedecer, ao

mesmo tempo, a Deus e ao soberano civil, pois o fim maior que deve buscar o homem, antes

de tudo, é a salvação divina, a eterna salvação. Logo, somente se deve obediência ao

soberano, na medida em que esta obediência não implique obstáculo para a sua salvação

individual: as ordens do soberano que arrisquem a vida eterna devem ser desobedecidas.

56

Thamy POGREBINSCHI, o problema da obediência em Thomas Hobbes, p. 206.

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56

A pergunta então que surge é: o que é e o que não é necessário ao indivíduo

hobbesiano para alcançar a vida eterna? Fé em Cristo e obediência às leis; basta reconhecer

Jesus como o Cristo que a fé está assegurada, basta obediência às leis de natureza, as leis

divinas, que a salvação será alcançada. Eis, pois, segundo Thamy Pogrebinschi a regra

estabelecida por Hobbes para conciliar a obediência a Deus com a obediência ao soberano:

não deve haver contradição entre as leis de Deus e as leis de um Estado cristão, porque uma

vez sujeitado às leis de Deus, ao obedecer ao soberano, o súdito hobbesiano obedece duas

vezes a Deus, até porque as mesmas recompensas oferecidas por Deus ao súdito obediente,

são também oferecidas pelo soberano: a salvação e a vida [eterna]. Mas, então, o que pode

impedir e limitar o soberano? O medo do Purgatório e da morte eterna; as mesmas penas

aplicadas aos súditos que desobedecem as palavras divinas. “Assim, o soberano tem o mesmo

incentivo que seus súditos para obedecer às palavras de Deus em primeiro lugar. Ambos

desejam a recompensa, ou temem a punição divina.”57

A solução indica, pois, que o conflito

entre duas ordens conflitantes, uma emanada de Deus e outra do soberano, deve ser resolvido

através da demonstração de que as ordens do soberano estão em simetria com as ordens de

Deus, e isto de modo tal que ao se obedecer o soberano, obedece-se também a Deus. É que

para esta autora, o pacto é realizado não para garantir a preservação da vida, mas para garantir

a obediência às leis de natureza; e a soberania, instituída para assegurar tal obediência. Aqui,

o soberano é o responsável exclusivo pela interpretação e pelo cumprimento das leis de

natureza, isto é, segundo a autora, das leis divinas.

A tese de Thamy Pogrebinschi, segundo por ela mesma apresentada, não está livre de

objeções. E três delas são desde já enfrentadas pela autora. A primeira diz respeito a como

coadunar com a obediência às leis de natureza um soberano não cristão ou, ainda que cristão,

um infiel? A segunda, como haver resistência ao soberano, baseada na obediência às leis

divinas, se os atos do soberano são também, de certo modo, atos dos súditos, pois, se assim é,

o soberano não pode agir frente ao súdito de modo injusto? E a terceira, questiona a

possibilidade da tese com as chamadas teses laicas. À primeira objeção Thamy Pogrebinschi

responde que um soberano infiel ou pecador não apresentará a necessária fé em Cristo,

tampouco obedecerá às leis de natureza, logo, poderá ordenar aos súditos que realizem ações

contrárias aos preceitos divinos; neste caso, resistir-lhe torna-se mais que legítimo. No

57

O problema da obediência em Thomas Hobbes, p. 211.

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57

entanto, se a lei natural é um preceito voltado à preservação da vida, então há aqui um

primeiro ponto de aproximação da tese de Tamy Pogrebinschi com as teses laicas. Logo, tanto

o propósito do pacto, a preservação da vida, e a inviolabilidade de direitos inalienáveis e

intransferíveis, a autopreservação, devem aproximar-se do dever de obediência às leis

naturais, a autoridade divina: teses que se reforçam reciprocamente. “O soberano que

ameaçar a autopreservação dos súditos, e o soberano que desobedecer a Deus pode ser

resistido. E, afinal, o soberano que ameaçar a integridade física ou moral de seus súditos

estará necessariamente desobedecendo as leis divinas.”58

Se um súdito viola o pacto para

obedecer a Deus, esta desobediência é legítima, assim como deve ser legítima a desobediência

do súdito que rompe o pacto para se eximir de ordens atentatórias ao propósito do pacto ou

dos direitos inalienáveis.

Quanto à segunda objeção, a que diz respeito à unidade de ações entre soberano e

súdito, responde a autora que não é possível que um soberano haja injustamente, pois este não

se vincula às leis civis; e somente quem está obrigado a obedecer às leis civis pode agir de

forma injusta. O soberano hobbesiano não está obrigado a obedecer a seus próprios ditames.

Por outro lado, por estar o soberano obrigado a obedecer às leis naturais, não pode agir com

iniqüidade, pois sua ação iníqua pode legitimar a desobediência. Ademais, agir de forma justa

ou injusta não desautoriza a resistência, pois a injustiça á indiferente à legitimação da

resistência: ainda que venha a agir de forma justa e equitativa, podem os súditos a ele resistir,

apoiados no direito natural de autopreservação. E, por fim, quanto à última objeção, Thamy

Pogrebinschi responde que sua tese é plenamente compatível com as interpretações ateístas,

pois funciona, inclusive, quando se considera que nem todos os súditos hobbesianos podem

ser considerados cristãos. Ora, por mais que os súditos ateus não obedeçam motivados pelas

punições e recompensas divinas, o fazem movidos pelas punições e recompensas terrenas; e,

ao evitar as punições civis, os súditos ateus agem de acordo com as leis civis, em efeito, de

acordo com as leis naturais. Além do mais, os súditos ateus estão sujeitos às punições

naturais, que não decorrem das leis naturais, mas são efeitos naturais e não arbitrários de seus

atos consistentes na violação das leis de natureza. Por isso, os súditos ateus recebem, segundo

a autora, um incentivo natural para a dedicação e obediência às leis naturais. Por fim, a

presença de ateus no mundo hobbesiano, além de ser um elemento que aproxima as teses

58

Thamy POGREBINSCHI, O problema da obediência em Thomas Hobbes, p. 212-213.

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58

teológica e laica, é algo que segundo a própria autora afirma sua interpretação, já que são os

ateus que fazem justificar o poder civil, uma vez que somente se consegue a obediência destes

mediante o uso da força.59

Thamy Pogrebinschi reconhece claramente a controvérsia que reside sobre a idéia de

direito de resistência na filosofia política hobbesiana. Para ela, mesmo em termos de

autopreservação, o direito de resistência deve ser lido de forma bem mais ampla que apenas

como derivação do direito à vida; deve ser lido como derivação do direito de natureza,

inalienável e ilimitado, que assegura aos indivíduos hobbesianos o poder de se preservar sua

própria vida. Não se trata apenas, para ela, de fundar a resistência no direito à vida, no direito

a viver, senão que no direito natural, inalienável e irrestrito de garantir a vida contra todo

aquele que contra ela manifeste qualquer ato de hostilidade. Está, pois, fundado, em tais

termo, o direito de natureza na liberdade que o indivíduo hobbesiano conserva sempre e

sempre, por se tratar de algo concebido antes mesmo do pacto e inalienável e não-limitável

com o advento do pacto. Uma posição um tanto ampla em relação aos posicionamentos tidos

por ela como secularistas. O porquê da inalienabilidade, a autora retira do capítulo XIV do

Leviatã, na passagem em que Hobbes declina a impossibilidade de abandonar ou transferir o

direito de resistir a quem venha a atentar contra a vida do indivíduo60

. A amplitude da

59

O problema da obediência em Thomas Hobbes, p. 214-216. 60

“Quando alguém transfere seu direito, ou a ele renuncia, fá-lo em consideração a outro direito que

reciprocamente lhe foi transferido, ou a qualquer outro bem que daí espera. Pois é um ato voluntário, e o objetivo

de todos os atos voluntários dos homens é algum bem para si mesmos. Portanto há alguns direitos que é

impossível admitir que algum homem, por quaisquer palavras ou outros sinais, possa abandonar ou transferir.

Em primeiro lugar, ninguém pode renunciar ao direito de resistir a quem o ataque pela força para tirar-lhe a vida,

dado que é impossível admitir que através disso vise a algum benefício próprio. O mesmo pode dizer-se dos

ferimentos, das cadeias e do cárcere, tanto porque desta aceitação não pode resultar benefício, ao contrário da

aceitação de que outro seja ferido ou encarcerado, quanto porque é impossível saber, quando alguém lança mão

da violência, se com ela pretende ou não provocar a morte. Por último, o motivo e fim devido ao qual se introduz

esta renúncia e transferência do direito não é mais do que a segurança da pessoa de cada um, quanto a sua vida e

quanto aos meios de preservá-la de maneira tal que não acabe por dela se cansar. Portanto se através de palavras

ou outros sinais um homem parece despojar-se do fim para que esses sinais foram criados, não deve entender-se

que é isso que ele quer dizer, ou que é essa a sua vontade, mas que ele ignora a maneira como essas palavras e

ações irão ser interpretadas”, In: Thomas HOBBES, Leviatã, p. 84. Cumpre observar que o caráter atribuído ao

direito de resistência no Leviatã por Hobbes não é o mesmo que o filósofo atribui no Do Corpo Político, Parte II,

Capítulo I, 10. Nesta obra, Hobbes afirma que o contrato implica a renúncia do direito de resistência: “Em todas

as cidades ou corpos políticos não subordinados, mas independentes, é que um homem ou um conselho, a quem

os membros particulares deram o seu poder comum, é chamado seu soberano, e o seu poder, o poder soberano;

este consiste no poder e na força que cada um dos membros transferiu a ele de si mesmo pela convenção. E

porque é impossível para qualquer homem realmente transferir sua própria força a outrem, ou para aquele outro

recebê-la, deve ser entendido que transferir o poder e a força de um homem nada mais é do que pôr de lado ou

abandonar seu próprio direito de resistência àquele a quem ele foi transferido. E qualquer número do corpo

político é chamado de súdito (subject), a saber, do soberano”. In: Tomas Hobbes, Os elementos da lei natural e

política, p. 132. No Do Cidadão, Capítulo II, 18, Hobbes apresenta já uma versão intermediária entre o Corpo

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abrangência que a autora atribui ao direito de resistência pode ser muito claramente vista

quando se observa sua abordagem: atribui duas modalidades ao direito de resistência, uma,

individual, e, coletiva, a outra. Ainda, subdivide a autora o direito de resistência individual em

duas categorias: resistência com vistas à preservação física e a resistência destinada à

preservação moral. Mas não para por aí a autora. No que diz respeito ao direito de resistência

individual, com vistas à preservação física, novamente subdivide em três formas de

manifestação: a) direito de resistir á morte; b) direito de resistir a ferimentos e

aprisionamentos; e, c) direito de se abster ao serviço militar. Já no que diz respeito ao direito

de resistência individual, segunda modalidade, subdivide em três hipóteses: a) direito de não

se auto-incriminar; b) direito de não incriminar a outrem; e, c) direito de não se obrigar pelas

suas próprias palavras. Já o direito de resistência coletivo, subdivide também em duas

categorias: o direito de rebelião e o direito de revolução.

No que diz respeito ao direito de resistência individual, a autora, portanto, não o limita

ao direito à vida, mas o estende muito mais além. É que, para ela, Hobbes não quer apenas

garantir a vida, mas assegurar também aos indivíduos a paz. E para que a noção de resistência

individual seja ilimitada e inviolável, deve ser concedida não apenas em face dos demais

indivíduos, mas também, e principalmente, contra o poder soberano; a ação do soberano, pois,

deve encontrar limite no direito de resistência dos indivíduos. A obediência ao soberano

somente pode ser exigida enquanto estiver garantida a proteção que exige o direito de

natureza de autopreservação; se o indivíduo se encontrar ameaçado em sua existência, seja

por outro indivíduo, por outros indivíduos ou mesmo pelo próprio soberano, o indivíduo

hobbesiano fica livre para desobedecer. Mas Hobbes não se limitava apenas com a vida, senão

que também com sua manutenção. Assim, viver aprisionado, com ferimentos incuráveis ou

com lesões corporais, viver fisicamente debilitado ou enfraquecido significa não viver com o

Político e o Leviatã: “Ninguém está obrigado, por qualquer contrato que seja, a não resistir a quem vier matá-lo,

ou ferir ou de qualquer outro modo machucar seu corpo. Pois em todo homem existe um certo grau, sempre

elevado, de medo, através do qual ele concebe o mal que venha a sofrer como sendo o maior de todos. E assim,

por uma necessidade natural, ele o esquiva o mais possível, e supomos que de outro modo não possa agir. Ora,

quando alguém chega a esse grau de medo, tudo o que dele podemos esperar é que se salve pela luta ou pela

fuga. Ninguém está obrigado ao que é impossível; portanto, quem se vê ameaçado pela morte, que é o maior dos

males que possa afetar a natureza, ou por um ferimento ou ainda por danos físicos de qualquer espécie, e não é

corajoso o bastante para suportá-lo, não está obrigado a sofrê-los. (...) Da mesma forma ninguém está obrigado

por pacto algum, a acusar a si mesmo, ou a qualquer outro, cuja eventual condenação vá tornar-lhe a vida

amarga. Por isso, um pai não está obrigado a depor contra um filho, nem um marido contra uma mulher, nem

homem algum contra quem lhe proporciona sustento; pois é vão todo aquele testemunho que se supõe ser contra

a n atureza”. In: Thomas HOBBES, Do Cidadão, p. 48-49.

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60

mínimo de dignidade exigida pelo direito natural. Logo, se o soberano não garantir a vida

digna, segundo a autora, está o indivíduo hobbesiano autorizado a desobedecer-lhe. O mesmo

se dá se o soberano exigir que o indivíduo tome em armas. Ora, segundo a autora, ao súdito

hobbesiano é dado o direito de ter medo da guerra e de se fazer substituir por outro guerreiro.

Ainda podem resistir os indivíduos hobbesianos quando obrigados a se auto-incriminar,

porque a punição pela não-auto-incriminação representa, por um lado, ameaça à integridade

física, e violação, por outro, à integridade moral. Pelos mesmos fundamentos, os indivíduos

hobbesianos também podem se recusar a matar outrem ou executar tarefas perigosas ou

desonrosas ou a se obrigar por suas próprias palavras. 61

O direito de resistência em sua modalidade coletiva divide-se em duas formas: o

direito de rebelião e o direito de revolução. Para Thamy Pogrebisnchi, o fundamento do

direito de resistência em sua amplitude coletiva está no capítulo XXI do Leviatã.62

Entende

esta autora que se um grande número de homens for ameaçado conjuntamente em sua

integridade, por terem cometido crimes punidos pela pena capital ou por terem já resistido ao

poder soberano, ainda que de forma injusta, Hobbes os autoriza a se unirem para, juntos,

resistir. E este direito, segundo a autora, deve ser estendido incondicionalmente a todos os

homens. Para esta autora, portanto, pode o súdito que já desobedeceu, de forma injusta e não

autorizada pelo direito natural inclusive, unir-se a outros na mesma condição e juntos

resistirem ao poder soberano, agora de forma justa. O fundamento deita no direito de

autopreservação da vida: ora, se não podia o soberano antes atentar contra a vida do

indivíduo, por que o poderá agora? O direito natural existe antes da constituição da soberania.

Parece fazer, nestes termos, muito sentido a posição da autora. Mas esta posição é

questionável, por um lado, e inaceitável, por outro, por muitos autores; Renato Janine Ribeiro

– cumpre elucidar – chega a afirmar em seu Ao leitor sem medo a impossibilidade de um

direito de resistência coletivo. Seja como for, Thamy Pogrebinschi a assume abertamente.

61

Thamy POGREBINSCHI, o problema da obediência em Thomas Hobbes, p.182-191. 62

“Ninguém tem a liberdade de resistir à espada do Estado, em defesa de outrem, seja culpado ou inocente.

Porque essa liberdade priva a soberania dos meios de proteger-nos, sendo portanto destrutiva da própria essência

do Estado. Mas caso um grande número de homens em conjunto já tenha resistido injustamente ao poder

soberano, ou tenha cometido algum crime capital, pelo qual cada um deles pode esperar a morte, terão ou não

eles a liberdade de se unirem e se ajudarem a defender uns aos outros? Certamente que a têm: porque se limitam

a defender suas vidas, o que tanto o culpado como o inocente podem fazer. Sem dúvida, havia injustiça na

primeira falta a seu dever; mas o ato de pegar em armas subseqüente a essa primeira falta, embora seja para

manter o que fizeram, não constitui um novo ato injusto. E se for apenas para defender suas pessoas de modo

algum será injusto. Mas a oferta de perdão tira àqueles a quem é feita o pretexto da defesa própria, e torna

ilegível sua insistência em ajudar ou defender os restantes.” In. Thomas HOBBES, Leviatã, p. 138.

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61

Tanto que afirma que o direito à rebelião, quando a discórdia interna chega a tal ponto que

pode inclusive pôr fim à soberania, transmuda-se para direito de revolução: “se os súditos se

sentem ameaçados em sua integridade pelas ordens e castigos que lhes impõe o soberano, vale

dizer, se consideram que a sua preservação não é satisfatoriamente garantida por ele, podem

rebelar-se conjuntamente instaurando uma revolução que ponha fim à soberania.”63

Para que

isso seja possível, é preciso firmar a leitura que os súditos hobbesianos, ao pactuarem, não

abrem mão de todos os seus direitos e que o poder e o direito que transferem ao soberano

quando do pacto não são irrecuperáveis; pelo contrário, os indivíduos hobbesianos podem

exigi-los de volta quando julgarem que o soberano não cumpre suas atribuições últimas:

preservar e manter de forma digna a vida dos indivíduos e assegurar-lhes a paz.

63

Thamy POGREBINSCHI, O problema da obediência em Thomas Hobbes, p. 194.

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62

IV – QUAIS AS DIMENSÕES DO DISCURSO DE RESISTÊNCIA EM HOBBES?

Ao ler Hobbes, Foucault está, pois, preocupado não em saber como surge do alto o

soberano, isto é, nos termos de soberania, como está em todo caso Schmitt ou Strauss, mas em

procurar saber como se constituíram pouco a pouco, progressivamente, a partir da

multiplicidade dos corpos, das forças, das energias, das matérias, dos desejos, dos

pensamentos, de uma forma real, os súditos e o súdito. Foucault quer apreender a instância

material de sujeição enquanto momento de constituição do súdito, para empreender um

trabalho que entende contrário à pretensão de Hobbes no Leviathan. Foucault está, pois,

voltado à apreensão de uma leitura das condições históricas em que se torna possível um

discurso de resistência paralelo ao apreendido nas leituras já produzidas de Hobbes; Foucault

está, pois, preocupado com a análise desde uma perspectiva não da soberania, mas da luta de

forças. Por isso, Foucault pensa no Leviatã enquanto esquema de homem fabricado pela

reunião de certo número de elementos constitutivos do Estado. Neste esquema, o que constitui

o corpo fabricado como Estado é a soberania, a alma do Leviatã. Mas se Foucault assim o

pensa, é porque quer desta imagem fugir. Ora, o que senão os corpos periféricos e múltiplos,

os corpos constitutivos, constituídos pelos efeitos do poder, os súditos, interessaria mais a

Foucault neste grande corpo fabricado. O que interessaria a Foucault senão a verdadeira luta

de forças que constitui o corpo político. Ora, como faz lembrar Deleuze, o princípio geral de

Foucault assim se enuncia: toda e qualquer forma deve ser um composto de relações de

forças; dadas as forças, cumpre perguntar em primeiro lugar com quais forças do fora entram

elas em relação; em segundo lugar, que forma desta relação resulta. Trata-se, pois, de saber

com que outras forças as forças do corpo [político] entraram em relação, nesta ou naquela

formação histórica, e que forma resulta deste composto de forças.64

Portanto, o que Foucault

está a olhar na leitura de Hobbes, não são de fato os desdobramentos da soberania, a

resistência em termos de soberania, mas a discussão jurídico-política dos direitos do soberano

e dos direitos do povo que se deu na Inglaterra do século XVII, a relação de dominação de

uma raça sobre a outra pela revolta – ou pela ameaça permanente da revolta – dos vencidos

contra os vencedores. Foucault encontra em uma leitura paralela à de Hobbes, isto é, em uma

64

Gilles DELEUZE, Foucault, p. 169-170.

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63

leitura empreendida não em termos propriamente jurídicos-políticos, mas em termos

históricos-políticos, a questão da resistência como um dos elementos centrais da luta de raças,

da teoria das raças, ou tema das raças, tanto na posição do absolutismo monárquico quanto

nas dos parlamentares ou parlamentaristas, quando nas posições mais extremas dos Levelles

ou dos Diggers65

,Foucault, portanto, como já o havia feito no texto de 1971, intitulado

Nietzsche, a genealogia e a história, denuncia Hobbes no curso ministrado em 1976 no

Collège de France; denuncia o fato de o discurso político-jurídico de Hobbes encobrir o

elemento constitutivo do corpo político, o Estado: a luta de forças. Para Foucault, Hobbes

apreendeu, inicialmente, o elemento diferencial das forças que se colocam em relação. No

entanto, não o elevou a suas conseqüências, tornando, pois, esta diferença tão insignificante

que mais pareceu uma indiferença. Logo, mostrou-se para Hobbes, na leitura de Foucault, o

estado de natureza um estado de não diferença, pois aqui as diferenças se mostram

imperceptíveis. Um outro ponto, Hobbes abafa a guerra permanente com a constituição do

estado civil político; ponto este que Foucault vai retomar na vontade de saber.

A guerra primitiva, a guerra de todos contra todos é uma guerra de igualdade, nascida

da igualdade e que se desenrola no elemento dessa igualdade. A guerra é o efeito imediato de

uma não-diferença ou, em todo caso, de diferenças insuficientes. De fato, dizia Hobbes, se

tivesse havido grandes diferenças, se houvesse efetivamente entre os homens desigualdades

que se vêem e se manifestam, que são muito claramente irreversíveis, é evidente que a guerra

seria por isso mesmo imediatamente brecada. Se houvesse diferenças naturais marcantes,

visíveis maciças, das duas uma: ou haveria efetivamente enfrentamento entre o fraco e o forte

– mas esse enfrentamento e essa guerra real se resolveria imediatamente com a vitória do forte

sobre o fraco, vitória que seria definitiva por causa da própria força do forte; ou então não

haveria enfrentamento real, o que quer dizer, pura e simplesmente, que o fraco, sabendo,

percebendo, constatando sua própria fraqueza, renunciaria antes mesmo do enfrentamento. De

sorte que – dizia Hobbes –, se houvesse diferenças naturais marcantes, não haveria guerra;

pois, ou a relação de força seria fixada logo de saída por uma guerra inicial que excluiria que

ela continuasse, ou então, ao contrário, essa relação de força permaneceria virtual dada a

própria timidez dos fracos. Portanto, se houvesse diferença, não haveria guerra. A diferença

pacifica.66

65

Michel FOUCAULT, Em defesa da sociedade, p.118. 66

Idem, ibidem, p.103-104.

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64

Agora bem, no estado de não diferenciação natural a vontade de ambas as partes, do

forte e do fraco, em se enfrentar, mostra-se constante, pois o fraco, que é apenas um pouco

mais fraco que os outros, jamais renuncia, porque ainda que mais fraco que os outros, ainda

assim está suficientemente próximo do mais forte, próximo o bastante para perceber-se forte o

bastante para não ter de ceder; e o forte, que é somente um pouco mais forte que os outros,

nunca pode ser forte o bastante para não ficar inquieto a ponto de não se preocupar em tomar

qualquer cautela. Portanto, a “não-diferenciação natural cria incertezas, riscos, acasos e, por

conseguinte, a vontade, de ambas as partes, de enfrentar-se: é o aleatório na relação primitiva

das forças que cria esse estado de guerra.”67

Aqui, no estado de não-diferenciação, ou de

diferenças medíocres, a relação de forças é feita do jogo de três séries de elementos: das

representações calculadas; das manifestações enfáticas e acentuadas de vontade; e, por fim, da

utilização de táticas de intimidação entrecruzadas. No estado de natureza hobbesiano,

portanto, as forças não estão na ordem direta do enfrentamento, as forças não se enfrentam

diretamente: não há batalhas, não há sangue, não há cadáveres. Há somente, e tão-somente,

representações, manifestações, sinais, expressões. “Está-se no teatro das representações

trocadas, está-se numa relação de medo que é uma relação temporariamente indefinida; não se

está realmente na guerra” (...) “uma espécie de pano de fundo permanente que há de

funcionar, com suas astúcias elaboradas, com seus cálculos mesclados, assim que algo não dê

a segurança, não fixe a diferença e não coloque a força, enfim de um certo lado. Portanto, não

há guerra no início, em Hobbes.”68

Hobbes engendra o Estado a partir de uma relação que não é a relação de guerra, onde

as forças se enfrentam efetivamente, mas em termos de soberania, de soberania por instituição

ou soberania por aquisição, pouco importa. Ora, não importa a vontade de conceder a alguém

o direito de representação total ou parcial, da representação mesma dos próprios indivíduos.

Também não diz respeito à superposição da vontade de viver frente à tentativa de inversão na

relação de forças: a revolta dos vencidos; quando preferiram a vida e a obediência,

reconstituem a soberania, fazendo de seus vencedores seus representantes. Menos ainda

importa a obediência que liga os filhos aos pais. O que importa, é que esteja efetivamente

presente uma certa vontade radical, uma forma radical de vontade que se deve vincular ao

medo, medo daqueles que vivem e querem viver. “A soberania se forma sempre por baixo,

67

Michel FOUCAULT, Em defesa da sociedade, p. 104. 68

Idem, ibidem, p. 106-107.

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65

pela vontade daqueles que têm medo.”69

Hobbes engendra o estado, pois, não da relação de

forças em confronto, mas pelo mecanismo da soberania, na qual uma relação de

enfrentamento originária é indiferente. Indiferente porque para a soberania hobbesiana entre a

soberania por aquisição e a soberania por instituição, em Hobbes, há uma identidade profunda

de mecanismos. Pouco importa se se trate de um acordo, de uma batalha, de uma ralção de

filiação, mas que haja a série: vontade, medo e soberania. Para Foucault, no fundo, essa

inversão empreendida por Hobbes denuncia a intenção do filósofo inglês em eliminar a guerra

como realidade histórica, que, para Foucault, é a gênese da soberania. “Hobbes torna a guerra,

o fato da guerra, a relação de força efetivamente manifestada na batalha, indiferentes à

constituição da Soberania. A constituição da soberania ignora a guerra. E haja ou não guerra,

essa constituição se faz da mesma forma. No fundo, o discurso de Hobbes é um certo „não‟ à

guerra: não é ela que realmente engendra os Estados, não é ela que vê transcrita nas relações

de soberania ou que reconduz ao poder civil – e às suas desigualdades – dissimetrias

anteriores de uma relação de força que teriam sido manifestadas no próprio fato da batalha.”70

Para Foucault, com essa eliminação da guerra no discurso de constituição do Estado,

com essa estratégia teórica e política, Hobbes pretendia eliminar uma certa maneira de fazer o

saber histórico funcionar na luta política, Hobbes quer eliminar a conquista, a utilização no

discurso histórico e na prática política do problema que é o da conquista. O adversário do

Leviatã, para Foucault, é a conquista: “o vis-à-vis estratégico do Leviatã é, acho eu, a

utilização política, nas lutas contemporâneas, de certo saber histórico referente às guerras, às

invasões, às pilhagens, às espoliações, aos confiscos, às rapinas, às extorsões, e os efeitos de

tudo isso, os efeitos de todo esse comportamento de guerra, de todos os efeitos de batalhas e

das lutas reais nas leis e nas instituições que aparentemente regulamentam o poder.”71

Problema que Hobbes teria resolvido no início com a noção de guerra de todos contra todos e

no final com a vontade dos vencidos amedrontados, no crepúsculo da batalha. Mas o inimigo

de Hobbes, o que o filósofo estava, pois, disposto a eliminar, que estava em pleno confronto,

era o discurso que se ouvia nas lutas civis que fissuravam o Estado. Um discurso da luta e da

guerra civil permanente. Um discurso que, segundo Foucault, Hobbes “conjurou ao repor o

69

Michel FOUCAULT, Em defesa da sociedade, p. 111. 70

Idem, ibidem, p. 112. 71

Op. Cit., p. 113.

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66

contrato atrás de toda guerra e de toda conquista e salvando assim a teoria do Estado.”72

Com

a análise do tema da resistência em Hobbes, pode-se chagar ao tema do enfrentamento, mas já

não em termos jurídico-filosóficos, como é próprio em Hobbes, mas em termos históricos-

políticos, como se apresentam em Foucault. Ora, parece que é Foucault quem por uma vez

mais, porém em termos outros, vai denunciar Thomas Hobbes, melhor, o que resolveu chamar

de inimigo de Hobbes: o reconhecimento da guerra como traço permanente das relações

sociais. Com efeito, está bem claro que é Hobbes quem antes nota a questão das forças em

relação, em confronto, na “guerra de todos contra todos”. Contudo, Hobbes ao contrário de

desdobrar o princípio, parece ter preferido encerrá-lo. Com razão, talvez, segundo seus

motivos. Ora, Hobbes via na guerra de todos contra todos a ameaça e a morte do grande

Leviatã. Hobbes vê a guerra, segundo Foucault, não apenas na constituição do Estado, mas

em todos os seus interstícios e, inclusive, nos limites e nas fronteiras deste Estado: Hobbes,

segundo Foucault, segue a guerra.

Estabelece Hobbes, alicerçado na soberania, a diferença na constituição do Estado:

com a entrada em cena do Estado, cessa o estado de não diferença ou das diferenças

medíocres; a soberania fixa a diferença. Com a diferença, intenta Hobbes assegurar a paz,

garantir a segurança dos indivíduos autores, dos indivíduos representados. Hobbes, com

efeito, cria a diferença, diferentemente de Nietzsche, que enxerga na diferença o elemento

genético do corpo político: a diferença é o que determina as forças que estão em luta, que

estão em relação, em uma relação regida pelo acaso, a relação que se constitui o corpo

político. A hipótese de Nietzsche, como observa Foucault, a luta de forças. A diferença pode,

pois, aqui, ser o elemento que aproximou o pensamento de Hobbes a Nietzsche. Ora, Hobbes

vê a diferença, embora insignificante, na luta de todos contra todos. É, pois, a diferença

hobbesiana não aparente, logo, carece o filósofo inglês de um mecanismo para radicalizá-la. E

o mecanismo que a ele se apresenta é a soberania: com a soberania, com uma diferença

radical entre representante e representados, pode-se talvez estabelecer a paz: aqui o forte, o

representante, se deve fazer tão forte que ninguém, nenhum representado, tenha coragem

suficiente para desafiá-lo. Mas Hobbes encerra a guerra com a constituição do Estado;

Hobbes, com a utilização do mecanismo da soberania, coloca por trás da guerra o contrato.

Hobbes se declara inimigo da guerra, inimigo da luta de forças, do confronto das forças. Está

72

Michel FOUCAULT, Em defesa da sociedade, p. 114.

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67

claro, pois, que Hobbes nota o confronto das forças, assim como notou que é a diferença, e

não a identidade, que rege o confronto das forças colocadas em relação; nota também o jogo

do acaso que rege esta relação. Mas, segundo Foucault, não extrai daí as devidas

conseqüências. Ora, se com toda forma de poder inicia-se a dominação, não pode haver, para

Foucault, formas históricas de poder, sejam quais forem elas, que não podem ser analisadas

em termos de dominação de uns sobre os outros. Diggers e os Levellers dirão que é preciso

livrar-se das leis através de uma guerra que corresponderá à guerra. É nestes discursos que se

pode encontrar, pela primeira vez, dirá Foucault, a idéia de que toda lei, toda soberania, todo

poder, sejam eles quais forem, não devem ser analisados em termos de direito natural ou da

constituição da soberania, mas “como o movimento indefinido – e indefinidamente histórico –

das relações de dominação de uns sobre os outros.”73

Para Foucault, é com o discurso inglês da guerra das raças que pela primeira vez no

modo político e no modo histórico, ao mesmo tempo como programação de ação política e

como busca de saber histórico, se pôde ver um esquema binário; um esquema que não se

limita ao simples esquema de oposição entre ricos e pobres, que não se limita a uma maneira

de articular uma queixa, uma reivindicação, de constatar um perigo, mas um esquema que

pontua a sociedade. Em esquema binário que se articula sobretudo a partir de fatos de

nacionalidade, como a língua, o país de origem, os hábitos ancestrais, a espessura de um

passado comum, a existência de um direito arcaico, uma redescoberta das velhas leis. Um

esquema binário que permite, também, decifrar, em toda sua extensão histórica, todo um

conjunto de instituições com a sua evolução. E permite, principalmente, acentua Foucault,

“analisar as instituições atuais em termos de enfrentamento e de guerra, a um só tempo

cientificamente, hipocritamente, mas violentamente travado entre as raças.”74

Um esquema

binário que fundamenta, pois, a revolta; mas não como a situação intolerante dos mais

infelizes, senão que a revolta agora formulada como um tipo de direito absoluto: o direito à

revolta. O direito a uma revolta que se justifica como uma espécie de necessidade da história:

“corresponde a certa ordem social que é a da guerra, a qual ela dará fim como uma derradeira

peripécia.”75

73

Michel FOUCAULT, Em defesa da sociedade, p.131. 74

Ibid.. 75

Op. Cit., p. 132.

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68

As análises de Foucault acerca do tema da sobernania, e de Hobbes, não se limitam ao

curso no Collège. Com efeito, Foucault retoma as análises da luta de raças paralela ao

discurso de soberania na sua vontade de saber. Foucault aqui novamente aborda a questão do

poder articulado em termos de soberania; mas agora, desde a perspectiva do direito de vida e

morte do soberano na formulação dos teóricos clássicos. Na formulação clássica, articula

Foucault, o direito de vida e morte mostra-se como uma fórmula bem atenuada do poder, pois,

ao contrário da patria potestas romana, já não se admite que seja exercida em termos

absolutos e de modo incondicional, mas somente, e tão-somente, nas hipóteses em que

soberano encontre-se exposto em sua própria existência. Aqui é que Foucault esbarra na

relação de poder que se desdobra entre o soberano e o súdito rebelado. Para ele, como

derivação do direito de vida e morte, pode o soberano exercer direito sobre a vida do súdito

que contra ele se levanta e viola suas leis, que o expõe: pode matá-lo a título de castigo; mas,

por isso mesmo, por poder invocar e exercer este direito sobre a vida do súdito somente

quando estiver ameaçado em sua sobrevivência, este poder somente pode ser concebido como

um privilégio condicionado, portanto, não absoluto, mas limitado.76

E nestes termos, Foucault

vai novamente confrontar Hobbes: seria o caso de conceber o direito de vida e morte com

Hobbes, “como a transposição para o príncipe do direito que todos possuiriam, no estado de

natureza, de defender sua própria vida à custa da morte dos outros? Ou deve-se ver nele um

direito específico que aparece com a formação deste ser jurídico novo que é o soberano?”.

Foucault parece não responder diretamente a questão. Não na vontade de saber. Mas, de

qualquer modo, serve a questão para abrir caminho para o princípio que vai nortear as

pesquisas acerca do “bio-poder”. Com efeito, o direito de vida e morte, direito assimétrico,

pois o soberano somente exerce o direito sobre a vida exercendo o seu direito de matar ou o

contendo – somente marca o soberano o seu direito sobre a vida pela morte que tem condições

de exigir –, direito este simbolizado pelo gládio. Mas, a partir da época clássica, há uma

transformação muito profunda nesse mecanismo de poder: “o direito de morte tenderá a se

deslocar ou, pelo menos, a se apoiar nas exigências de um poder que gere a vida e a se

ordenar em funções de seus reclamos.”77

As guerras então, já não mais serão travadas em

nome do soberano, mas em nome da existência de todos; populações serão levadas à

destruição em nome de uma necessidade de viver: o poder de expor uma população à morte

geral é o inverso do poder de garantir a outra sua permanência em vida. Daí o princípio:

76

Michel FOUCAULT, A vontade de saber, p. 147-148. 77

Idem, ibidem, p. 148.

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“poder matar para poder viver, que sustenta as táticas dos combates, tornou-se princípio de

estratégia entre Estados; mas a existência em questão já não é aquela – jurídica – da

soberania, é outra – biológica – de uma população. Se o genocídio é, de fato, o sonho dos

poderes modernos, não é por uma volta, atualmente, ao velho direito de matar; mas é porque o

poder se situa e exerce ao nível da vida, da espécie, da raça e dos fenômenos maciços de

população.”78

Foucault fala de toda uma inversão que se dá a partir da época clássica. E para

evidenciá-la com maior vigor, evidencia esta inversão desde a perspectiva da pena de morte, a

outra face do duplo gládio, do direito de gládio. Em Hobbes, por exemplo, se pode ver com

facilidade o direito do soberano se exercendo como resposta àquele que ataca sua vontade,

que desrespeita sua lei. Mas, desde o momento em que o poder assume a função de gerir a

vida, sua razão de ser e a lógica de seu exercício tornam cada vez mais difícil a aplicação da

pena de morte. É que a pena capital, na dinâmica de um poder deste tipo, mostra-se ao mesmo

tempo como o limite, o escândalo e a contradição. Logo, a pena de morte não pode ser

mantida senão a partir da invocação do perigo biológico que representam os criminosos

condenados a tal reprimenda para os demais. “Pode-se dizer que o velho direito de causar a

morte ou deixar viver foi substituído por um poder de causar a vida ou devolver a morte.

Talvez seja assim que se explique esta desqualificação da morte, marcada pelo desuso dos

rituais que a acompanhavam.”79

Agora, sobre a vida a ao longo do seu desenrolar que o poder

estabelece seus pontos de fixação: a morte é o limite, o momento que lhe escapa, ela se tornou

o momento mais secreto da existência, o mais privado. Com estas palavras, Foucault intenta

evidenciar a passagem de um mundo para outro: encerra-se a era da soberania e abre-se a do

“bio-poder”; a velha potência da morte passa a ser, cuidadosamente, recoberta pela

administração dos corpos e pela gestão calculista da vida. Um bio-poder que, segundo

Foucault, desenvolve-se concretamente a partir do século XVII em duas formas principais:

uma, o corpo máquina, outra, no corpo-espécie; “as disciplinas do corpo e as regulações da

população constituem os dois pólos em torno dos quais se desenvolveu a organização do

poder sobre a vida.”80

Um bio-poder que se apresenta como elemento indispensável ao

desenvolvimento do capitalismo e como garantidor das relações de dominação e efeitos de

78

Michel FOUCAULT, A vontade de saber, p. 149-150. 79

Idem, ibidem, p. 150. 80

Op. Cit., p. 152.

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hegemonia. O seu efeito, uma sociedade normalizadora; uma sociedade que não põe a morte

em ação, em termos de soberania, mas que trata de distribuir os vivos em um domínio de

valor e utilidade; já não traça a linha que separa o súdito do inimigo do soberano, mas opera

distribuições em torno da norma. Contra esse poder, as forças resistem, para exercer seu

resistir, deverão apoiar-se exatamente naquilo que o poder se exerce: na vida e no homem

enquanto ser vivo. Agora, o que é reivindicado e serve de objeto é a vida; vida entendida por

Foucault não como o viver, mas como as necessidades fundamentais, a plenitude do possível,

a realização das virtualidades humanas.

Foucault, no limite, está a tratar do poder em termos nietzscheanos, ou, como prefere,

dizer, em termos genealógicos: a luta de forças, a dominação, a inversão da relação de

dominação realizada através da tomada de dianteira, da subversão do sistema de regras.

Novamente a luta de forças. Com efeito, quer o Filósofo evidenciar um processo real de luta

desdobrado sobre a vida. Não é por menos que Foucault vai afirmar que a vida enquanto

objeto político foi de alguma forma tomada ao pé da letra e voltada contra o sistema que

intentava controlá-la; que a vida, muito mais do que o direito, é que se torna objeto das lutas

políticas, mesmo que tais lutas sejam formuladas em termos jurídicos. “O „direito‟ à vida, ao

corpo, à saúde, à felicidade, à satisfação das necessidades, o „direito‟, acima de todas as

opressões ou „alienações‟, de encontrar o que se é e tudo que se pode ser, esse „direito‟ tão

incompreensível para o sistema jurídico clássico, foi a réplica política a todos esses novos

procedimentos de poder que, por sua vez, também não fazem parte do direito tradicional de

soberania.”81

É aqui que se abrem as portas para o lugar das instituições no sistema – se é que

se pode utilizar tal expressão – foucaultiano. As instituições de reclusão, com precedentes nos

séculos XVII e XVIII, vão se diferenciar em muito das instituições de seqüestro que Foucault

vai denunciar nas conferências ministradas em 1973 no Rio de Janeiro. Instituições como as

escolas, hospitais psiquiátricos, casas de correção, prisões, etc., e em seguida a reclusão em

sua forma branda, difusa, encontrada em instituições como a cidade operária, a caixa

econômica, a caixa de assistência, vão demonstrar especial importância para o estudo dos

mecanismos de poder que se desdobrarão a partir do século XIX. Estas instituições, embora

com raízes nos séculos XVII e XVIII, vão se mostrar um fenômeno muito distinto no século

XIX. Segundo Foucault, os mecanismos de controle exercidos nestas instituições são muito

81

Michel FOUCAULT, A vontadede saber, p. 158.

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distintos daqueles exercidos pelo grupo sobre o indivíduo no sistema inglês do século XVIII,

já que no sistema surgido no século XIX, o indivíduo não é mais vigiado por ser um membro

de um grupo, mas é vigiado por ser um indivíduo que se encontra colocado em uma

instituição; e já que é esta instituição que vai constituir o grupo, a coletividade será vigiada.

“É enquanto indivíduo que se entra na escola, é enquanto indivíduo que se entra no hospital,

ou que se entra na prisão. A prisão, o hospital, a escola, a oficina não são formas de vigilância

do próprio grupo. É a estrutura de vigilância que, chamando para si os indivíduos, tomando-os

individualmente, integrando-os, vai constituí-los secundariamente enquanto grupo.”82

De

forma diferente não ocorre no modelo francês. Por isso, segundo Foucault, estas instituições

têm por finalidade não excluir, mas fixar os indivíduos. “A escola não exclui os indivíduos;

mesmo fechando-os; ela os fixa a um aparelho de transmissão do saber. O hospital

psiquiátrico não exclui os indivíduos; liga-os a um aparelho de correção, a um aparelho de

normalização dos indivíduos. O mesmo acontece com a casa de correção ou com a prisão.

Mesmo se os efeitos dessas instituições são a exclusão do indivíduo, elas têm por finalidade

primeiro fixar os indivíduos a um aparelho de normalização dos homens. A fábrica, a escola, a

prisão ou os hospitais têm por objetivo ligar o indivíduos a um processo de produção, de

formação ou de correção dos produtores. Trata-se de garantir a produção ou os produtores em

função de uma determinada norma.”83

A reclusão do século XIX, diferentemente da reclusão do final do século XVII e início

do século XVI, que tem por finalidade a exclusão dos indivíduos do círculo social, tem por

função ligar os indivíduos a um aparelho preciso de produção, de formação, de reforma ou de

correção de produtores. Cuida-se, pois, de uma “inclusão por exclusão”; daí porque Foucault

vai chamar estas instituições de instituições de seqüestro: enquanto a reclusão do século

XVIII tem por função essencial a exclusão dos marginais ou o reforço da marginalidade, o

seqüestro do século XIX tem por fim a inclusão e a normalização. Estas instituições

apresentam precisamente, segundo Foucault, três funções: elas implicam o controle, a

responsabilidade, sobre a totalidade ou a quase-totalidade do tempo dos indivíduos; implicam,

além disso, um controle sobre simplesmente os corpos dos indivíduos; e, finalmente,

implicam a criação de um novo tipo de poder: um poder polimorfo. Pois bem, a sociedade

moderna que se forma no século XIX exige que o tempo dos homens seja oferecido ao

82

Michel FOUCAULT, A verdade e as formas jurídicas, p. 112-113. 83

Idem, ibidem, p. 113-114.

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aparelho de produção e que este aparelho possa utilizar o tempo de vida dos homens: o tempo

dos homens deve ser oferecido a quem possa comprá-lo, pagando por ele um salário e, ao

mesmo, este tempo comprado deve ser transformado em tempo de trabalho. Por isso mesmo,

instituições de controle e transformação do tempo dos indivíduos em tempo de trabalho

começam a se proliferar. Ao mesmo tempo, inúmeras medidas passam a ser adotadas para

diminuir o tempo ócio dos homens. Medidas como caixas econômicas, caixas de assistências,

que visam controlar o uso das economias dos operários, para utilizá-las no momento oportuno

– do desemprego -, também passam a encontrar lugar. Através de mecanismos sutis, que

oferecem uma aparência de segurança e proteção, estabelece-se um mecanismo pelo qual o

tempo de existência dos indivíduos é colocado à disposição de um mercado de trabalho,

conforme as exigências do trabalho. A extração da totalidade do tempo dos indivíduos, tal

como evidenciada por Foucault, é, pois, a primeira função das instituições modernas de

seqüestro.84

Mas, além da extração e do controle total do tempo dos indivíduos, as instituições de

seqüestro têm por função controlar os corpos dos indivíduos. O funcionamento destas

instituições, que inicialmente aparentam especificidade, implica uma disciplina geral da

existência que ultrapassam as finalidades aparentemente especificas de cada uma delas: a

moralidade [sexual] se mostra importante para os patrões ou os diretores de hospitais,

psiquiátricos ou não, ou, a higiene ultrapassa os hospitais para ser ensinada nas escolas e etc.

Este controle encontra razão na exigência de controle, de formação, de valorização, segundo

um determinado sistema, do corpo do indivíduo. Para as instâncias que surgem no século

XIX, o corpo adquire uma significação específica: mais do que ser explicado, o corpo de ser

formado, reformado, corrigido, para adquirir aptidões, receber um certo número de

qualidades: qualificar-se como um corpo capaz de trabalhar. A segunda função das instituições

de seqüestro consiste, portanto, em fazer com que os corpos dos homens se tornem força de

trabalho; esta função reponde à função de transformação do tempo em tempo de trabalho.

Existe ainda uma terceira função própria das instituições de seqüestro: a criação de um novo

poder: um poder polimorfo, polivalente. Por força de seu polimorfismo, este poder se

manifestará como poder econômico; poder político; poder judiciário; poder epistemológico.

Ora, na fábrica oferece-se um salário em troca do tempo de trabalho em um aparelho de

84

Michel FOUCAULT, A verdade e as formas jurídicas, p. 115-118.

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produção de propriedade do patrão; nos hospitais, o pagamento pelos tratamentos oferecidos

evidenciará esta vertente econômica do poder. Este poder mostra-se também político: as

pessoas que integram as instituições de seqüestro e as administram se delegam o poder de dar

ordens, de estabelecer regulamentos, de tomar medidas, de expulsar indivíduos; além disso,

decisões são tomadas nestas instituições. Mas, mais do que tomar decisões, dar ordens, nestas

instituições também se tem o direito de punir e recompensar, se tem o poder de fazer os

indivíduos comparecer perante instâncias de julgamento: este micro-poder é também um

poder judiciário. Ora, nas prisões, para onde os indivíduos são enviados depois de uma

condenação por um Tribunal de Justiça, a existência destes indivíduos é colocada

intermitentemente à observação por um micro-tribunal, constituído pelo diretor do presídio e

por seus guardiões, de durante todo o tempo vão punir ou recompensar de acordo com o

comportamento de cada um; também no sistema escolar a todo momento se pune, se

recompensa, se avalia, se classifica, se diz quem é o melhor, quem é o pior. Poder judiciário

que se manifesta de maneira bastante arbitrária e não observa o modelo geral do poder

judiciário. Mas o polimorfismo deste novo poder é animado por uma característica específica:

trata-se também de um poder epistemológico. Esta característica do poder consiste em extrair

dos indivíduos um saber e extrair um saber sobre os indivíduos submetidos ao olhar,

controlados pelos poderes; desta produção de saber vai permitir um reforço do controle. Mais

do que isso, a partir desta situação nasce um saber sobre os indivíduos. Logo, ao lado dos

saberes tecnológicos, próprios das instituições de seqüestro, surge um saber de observação,

um saber clínico, do tipo científico: deste poder se forma um saber psiquiátrico; um saber

criminológico; um saber psico-sociológico; um saber psicológico; um saber pedagógico.85

Destas análises sobre as instituições, Foucault deriva três conclusões, que nas

conferências de 1973: a primeira consiste em permitir explicar a partir de tais análises o

aparecimento da prisão, como a partir de uma teoria do Direito Penal como a de Beccaria se

pôde chegar a uma instituição tão paradoxal como a prisão, como uma instituição tão

paradoxal e tão cheia de inconvenientes pode impor-se a um Direito Penal de, ao menos

aparentemente, rigorosa racionalidade, como a prisão se impôs à racionalidade legalista de

Beccaria; permitir explicar que o trabalho não é a essência concreta do homem ou a existência

do homem em sua forma concreta – eis a segunda conclusão -, e, no fundo, negar a análise

85

Michel FOUCAULT, A verdade e as formas jurídicas, p. 118-122.

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tradicionalmente marxista que supõe o sistema capitalista como transformador do trabalho,

tido como essência concreta do homem, em lucro, em sobre-lucro, em mais-valia; e,

finalmente, que o sub-poder como condição de possibilidade do sobre-lucro, ao se estabelecer,

“provocou uma série de saberes – saber do indivíduo, da normalização, saber corretivo – que

se multiplicaram nestas instituições de sub-poder fazendo surgir as chamadas ciências do

homem e o homem como objeto da ciência.”86

O que pretende demonstrar Foucault, é que

tanto os poderes quanto as formas de poder enunciadas são o que exprime as relações de

produção ou que permite reconduzi-las, porque estes saberes e estes poderes encontram-se

firmemente enraizados tanto na existência dos homens quanto nas relações de produção. Isso

porque, poder e saber não se supõe às relações de produção, mas se encontram arraigados

naquilo que as constitui. Por isso é que, para Foucault, também as definições de ideologia

devem ser revistas.87

Mas o que isso tudo tem a ver com Hobbes? Foucault está a tratar

precisamente do mesmo assunto que Hobbes: o poder. Ainda que de forma transversal, ainda

que primando pela relação ao invés do objeto, ainda que com desinteresse por uma obra

sistêmica, ainda que devolvendo à interpretação o seu papel de relevância, ainda que desde

uma perspectiva genealógica, e ainda que com uma importância sem precedente aos

procedimentos estratégicos, Foucault está a tratar do mesmo tema de Hobbes: a resistência

como força que se opõe ao poder, uma força que luta com outra, que se relaciona com outra

em um jogo de dominação. Não é por menos que dirá Foucault que onde houver poder,

sempre haverá resistência, já que um é co-extensivo ao outro. Dirá expressamente Foucault

que “desde que há uma relação de poder, há uma possibilidade de resistência. Nunca somos

pegos na armadilha pelo poder: sempre podemos modificar-lhe o domínio, em determinadas

condições e segundo uma estratégia precisa (DE, III, 200: 267). O campo no qual se espraia o

poder não é, pois, o de uma dominação „sombria e estável‟: Em toda parte estamos em luta

[...] e, a todo instante, vamos da rebelião à dominação, da dominação à rebelião, e é toda essa

agitação perpétua que eu gostaria de fazer que apareça‟ (DE, III, 216: 407).” 88

Para Foucault, o que pode caracterizar o poder em seus escopos e suas manobras é

86

Michel FOUCAULT, A verdade e as formas jurídicas, p. 123-124. Foucault retoma aqui análises

desenvolvidas em Le Mots et les choses (1966) e enuncia análises que consagrará em Surveiller et punir (1975). 87

Op. Cit., p. 126. 88

Michel FOUCAULT, Em defesa da sociedade, p. 337-338.

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somente uma espécie de ineficácia constitutiva. O poder não pode ser tido como onipotente,

onisciente, mas o contrário. O poder não pode ser apreendido, é preciso, pois, conhecer o

caráter estritamente relacional das relações do poder, das relações de força. As relações de

poder, para Foucault, somente podem existir em função de uma multiplicidade de pontos de

resistência: estes desempenham, nas relações de poder, o papel de adversário, de alvo, de

apoio, de saliência onde se agarrar. Esses pontos de resistência estão presentes em toda parte

na rede do poder.89

Por isso, o poder do Estado não se exprime nas leis, principalmente se se

as concebe como um estado de paz imposto às forças brutas – o erro de Hobbes denunciado

por Foucault –, como resultado de uma guerra ou de uma luta vencida pelos mais fortes. Para

Foucault, ensina Deleuze, a lei é sempre uma composição de ilegalismos que ela própria

diferencia, com o intuito de formalizá-los. A lei se mostra como uma gestão dos ilegalismos,

uns que ela permite ou cria como privilégio da classe dominante, outros que ela tolera como

compensação das classes dominadas, e outros que ela reprime, proíbe, isola e toma como

meio de domínio. Isso explica as alterações legais: elas têm por fim sempre uma nova

distribuição de novos ilegalismos, não somente porque as infrações tendem a mudar de

natureza, mas porque os poderes disciplinares tratam de um outro modo as infrações,

definindo o que é delinqüência, de modo a permitir um novo controle de ilegalismos. É por

isso que, “certas resistências populares à revolução de 1789 explicam-se claramente pelo fato

de haver ilegalismos tolerados ou suavizados pelo antigo regime que se tornaram intoleráveis

para o poder republicano. Mas o que é comum às repúblicas e às monarquias ocidentais é o

fato de terem erigido à entidade da Lei como princípio suposto do poder, para se dotarem de

uma representação jurídica homogênea: o „modelo jurídico‟ veio cobrir o mapa estratégico. O

mapa dos ilegalismos, porém, continua a funcionar segundo o modelo de ilegalidade. E

Foucault mostra que a lei não é mais que o estado de paz do que o resultado de uma guerra

vencida: a lei é a própria guerra e estratégia desta guerra em ato, exatamente como o poder

não é uma propriedade adquirida da classe dominante, mas um exercício atual da sua

estratégia.”90

O poder não pode ser apreendido como um a priori. O poder somente pode ser

apreendido em suas suas extremidades, em seus últimos lineamentos, onde ele se torna

capilar: tomar o poder em suas formas e instituições regionais, mais locais, sobretudo onde ele

89

Michel FOUCAULT, Em defesa da sociedade, p. 337-338. 90

Gilles DELEUZE, Foucault, p. 46-48.

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se prolonga além das regras de direito que o querem limitar e organizar; onde estas formas

consolidam-se nas técnicas e fornecem instrumentos de intervenções naturais. Em efeito,

afastar-se da análise das formas regulamentadas e legítimas do poder em seu centro, no que

pode ser seus mecanismos gerais ou seus efeitos de conjunto é a forma de se apreender as

relações do poder. O poder também não pode ser analisado no nível das intenções ou das

decisões, não procurar considerar o poder do lado de dentro; mas procurar estudar o poder do

lado em que sua intenção estiver inteiramente concentrada no interior das práticas reais e

efetivas; estudá-lo do lado de sua face externa, do ponto em que ele está em relação direta e

imediata com o que se pode dominar (seu alvo, seu objeto, seu ponto de aplicação); isto para

responder a um questionamento: como as coisas acontecem no momento mesmo no nível, na

altura do procedimento de sujeição, ou nos processos contínuos e ininterruptos que sujeitam

os corpos, dirigem os gestos, regem os comportamentos? O poder não pode e não se deve ser

tomado como um fenômeno de dominação maciço e homogêneo, pois o poder deve ser

analisado como algo circundante e que funciona em cadeia, abrangendo todas as chaves e

esferas. O poder funciona; ele é exercido em rede e os indivíduos estão sempre em posição de

serem submetidos por este poder, e de exercê-lo; logo, o poder não pode ser partilhado, não

pode ser apossado, não pode ser detido exclusivamente; o poder transita pelos indivíduos, não

se aplica a eles. Não se pode fazer uma espécie de dedução do poder a partir do centro e que

se prolonga por baixo; é preciso, ao contrário, examinar o modo como nos níveis mais baixos,

os fenômenos, as técnicas, os procedimentos de poder atuam. É preciso, partir de baixo, dos

níveis mais baixos da sociedade. Por fim, não se pode analisar as relações do poder sem se

observar que o poder quando se exerce em seus mecanismos finos, coloca em circulação um

saber, aparelhos de saber que não são edifícios ideológicos.91

Para se analisar as relações do

poder, portanto, é preciso “desvencilhar-se do modelo do Leviatã, desse modelo de homem

artificial, a um só tempo artificial, a um só tempo autômato, fabricado e unitário igualmente,

que envolveria todos os indivíduos reais, e cujo corpo seriam os cidadãos, mas cuja alma seria

a soberania. É preciso estudar o poder fora do modelo do Leviatã, fora do campo delimitado

pela soberania jurídica e pela instituição do Estado; trata-se de analisá-lo a partir das técnicas

e táticas de dominação.”92

Poder e resistência, resistência e poder. Quando analisa diretamente a resistência,

91

Michel FOUCAULT, Em defesa da sociedade, p. 32-40. 92

Idem, ibidem. p. 40.

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Foucault evidencia que o poder só se desenvolve e só se exerce quando assume a forma de

direito e de lei. Se o poder não pode ser algo que se toma, que se troca, que se transfere, que

se apreende, se não pode ser algo que se constrói a partir de interesses, de vontades, de

intenções, se o poder é algo que não se origina no Estado, se não é algo dedutível, inteligível

desde a categoria político-jurídica da soberania, a resistência também não o é. A resistência,

em Foucault, não pode dar-se na ordem do direito, de um direito, como em Hobbes, mas vai

muito mais além do que se convencionou chamar “direito de resistência”: a resistência não se

funda em um sujeito prévio; “poder e resistências se enfrentam, com duas táticas mutáveis,

móveis, múltiplas, num campo das relações de força cuja lógica é menos aquela,

regulamentada e codificada, do direito e da soberania, do que aquela, estratégica e belicosa,

das lutas. A relação entre poder e resistência está menos na forma jurídica da soberania do que

naquela, estratégica, da luta que então cumprirá analisar.”93

Poder e resistência são, pois,

indissociáveis: não há poder sem resistência; não há resistência sem poder: a resistência,

portanto – assim como o poder –, somente pode ser apreendida em termos de luta, em uma

idéia de luta; de luta constante, que não cessa mesmo no interior do Estado constituído. É o

verdadeiro eixo de movimento dos opostos, em termos nietzscheanos mesmo. “Como dois

contendores, os opostos combatem, de sorte que a tensão que se instala entre eles faz com que

ora um, ora outro tenha a supremacia. Como os atletas nos estádios, os artistas nos anfiteatros,

os partidos políticos na ágora e as cidades-Estado na Hélade, os inúmeros pares de opostos

lutam „em alegre torneio‟.”94

Poder e resistência não podem ser propriedade de uma e outra

classes. Poder e resistência são menos uma propriedade que uma estratégia e seus efeitos não

podem ser apropriados. Poder e resistência funcionam. Lutam em numerosos pontos de

confronto, em numerosos focos de estabilidade, “cada qual com os seus riscos de conflito, de

lutas e de inversão pelo menos transitória das relações de força, sem analogia ou homologia,

sem univocidade, mas com um tipo original de continuidade possível.”95

Poder e resistência não possuem essência ou atributo. O poder – assim como a

resistência, seu oposto – é operatório. O que caracteriza o poder em Foucault não pode ser a

sua essência, senão que o conjunto das relações das forças, um conjunto que passa tanto pelas

forças dominantes quanto pelas forças dominadas, sendo ambas constituídas como

93

Michel FOUCAULT, Em defesa da sociedade, p. 338-339. 94

Scarlett MARTON, Nietzsche, p. 50-51. 95

Gilles DELEUZE, Foucault, p. 41-42.

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singularidades. O poder deve investir os dominados, passando por eles e através deles,

apoiando-se neles, assim como eles próprios, os dominados, em sua luta conta o poder,

apóiam-se na influência que sobre eles exerce o poder. Longe de exercer uma esfera geral, as

relações do poder devem inserir-se em toda e qualquer parte onde houver singularidades,

ainda que muito reduzidas, onde houver relações de forças, como “„disputas entre vizinhos,

querelas entre pais e filhos, desentendimentos conjugais, excessos de vinho e de sexo, brigas

públicas e muitas paixões secretas‟.”96

O poder não age por violência ou por ideologia, não

está ora a enganar ou fazer crer, ora a controlar ou a fazer propaganda. O poder não procede

por ideologia; ele se exerce sobre os corpos. A violência, por si só, não é capaz de exprimir

uma relação da força com a força. O poder produz realidade e também produz verdade muito

antes de reprimir ou de abstrair ou disfarçar. “Foucault não ignora a repressão e a ideologia,

mas; mas, como Nietzsche já vira, elas não constituem a luta das forças, são apenas a poeira

levantada na luta.”97

96

Gilles DELEUZE, Foucault, p. 44-45. 97

Idem, ibidem, p. 45-46.

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V – É POSSÍVEL UM DISCURSO DE RESISTÊNCIA EM OUTRO NÍVEL?

“O fundamento da relação de poder é o enfrentamento belicoso das forças – hipótese

que chamarei, também aqui, por comodidade, hipótese de Nietzsche.”98

Foucault apreende o

que parece ser a natureza da resistência: a luta de forças. É, portanto, no nível da relação das

forças em confronto que se pode situar a questão da resistência. Mas do que se trata esta

“teoria das forças”? Trata-se, de forma bem grosseira, de uma questão de hermenêutica. Pois

bem, Foucault manifesta-se contrário ao caminho que conduz o projeto de saber da

modernidade. Não busca Foucault o homem concebido como sujeito ativo, autor de seu

próprio ser, destina à revolução, à liberdade ou à conquista da natureza, como nos projetos

marxista, fenomenológico ou positivista, mas, sim, a análise do processo mesmo de sujeição:

o conjunto de obstáculos que antecedem a constituição do sujeito. Foucault parte de

mecanismos sociais complexos que incidem sobre os corpos, que se formam historicamente

em mil formas de sujeição: “os homens são, antes de mais nada, objeto de poderes, ciências,

instituições”; por isso, preocupa-se Foucault – lembra-nos Bruni – com a exclusão, lugar mais

profundo da sujeição, e com a arqueologia do silêncio, que significa “a reconstrução das

práticas, saberes, regras e normas que determinam a percepção social do louco, o imaginário

que nele se investe, o medo que dele se tem, a proteção que dele se necessita, o espaço

peculiar onde é enclausurado (pela família, pelo Estado, pelos juízes, pelos médicos), o olhar

que o objetiva”. E isto se verifica também na análise da delinqüência e da prisão: “todo

interesse está em mostrar as formas concretas de objetivação do poder, seu modo de operação

a incidir basicamente sobre os corpos através da ordenação meticulosa do espaço e do tempo

no interior da instituição, enfim, como se estabelece uma tecnologia da punição”. É também

por este motivo que Foucault apresenta ao seu leitor um novo olhar, uma nova forma de olhar

que faz com que tudo necessite ser re-visto, re-sentido, re-pensado: as formas instituídas são

viradas por Foucault no avesso, “deixando escapar suas garras ocultas, constituídas por uma

contingência irredutível.” Nada mais pode aparecer como um valor. Dos olhares à norma, da

repreensão à punição, da discriminação à exclusão, da ordenação à instituição, Foucault

conduz seu leitor às entranhas do poder. Mas o que é o poder? Foucault, segundo Bruni, diria

98

Michel FOUCAULT, Em defesa da sociedade, p. 24.

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que não é um sentido, pois este é obra da racionalização, mas a “força social múltipla que se

assimila ou exclui, ou melhor, é o confronto belicoso das forças: a hipótese de Nietzsche que

constitui o fundamento último de suas análises.”99

Em Nietzsche, Freud, Marx, texto de 1967, Foucault propõe discutir temas relativos às

técnicas de interpretação em Nietzsche, Freud e Marx. No entanto, o que parece estar a

interessar Foucault neste momento, é uma análise das técnicas de interpretação em geral;

todas as técnicas que se pode conhecer desde os gramáticos gregos até os dias atuais: uma

história das técnicas de interpretação. E parte Foucault em sua empreitada da análise da

linguagem nas culturas indo-européias. Para ele, foi a linguagem nestas culturas o elemento

que fez nascer dois tipos de suspeitas: que a linguagem não diz exatamente o que quer dizer,

pois, o sentido que se apreende pode mostrar-se, na verdade, em sentido menor, que protege,

restringe e transmite um outro sentido, este, um sentido mais forte e sentido por baixo: o que

os gregos chamavam de allegoria e hyponoïa; por outra lado, que a linguagem ultrapassa sua

forma previamente verbal e faz evidenciar que no mundo há outras coisas que falam, mas que,

contudo, não fazem parte da linguagem, não são linguagem. A isto, esta segunda suspeita,

Foucault atribui o semaïnon dos gregos. Duas suspeitas que nascem, que se vêem aparecer,

nos gregos, mas que se mostram, para Foucault, ainda muito contemporâneas.

Contemporâneas porque, desde o século XIX, voltou-se a crer que os gregos mudos também

podiam falar; por outro lado, está-se à escuta de toda linguagem possível, no intuito de

surpreender por baixo das palavras um discurso que seria mais essencial. Crê, pois, Foucault

que cada forma de cultura na civilização ocidental teve seu sistema de interpretação, com

técnicas, métodos, maneiras próprias de supor que a linguagem quer dizer efetivamente uma

outra coisa do que aparentemente diz; que cada forma de cultura, com seus sistemas, suas

técnicas, seus métodos, suas maneiras próprias, pôde supor que há linguagem para além da

própria linguagem.

Mas se Foucault está interessado na técnica de interpretação em geral, especialmente

está interessado no tipo de técnica de interpretação fundada no século XIX. Por isso, para

compreender o sistema de interpretação que se funda no século XIX, entende Foucault ser

necessário retomar uma referência, um tipo de técnica, tal a que pôde existir no século XVI: o

99

José Carlos BRUNI, “Foucault: o silêncio dos sujeitos”, In: Tempo Social, p. 199-207

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corpus da semelhança, um corpus perfeitamente organizado, no qual havia ao menos cinco

noções totalmente definidas de semelhança: a) a noção de convivência; b) noção de emulatio;

c) noção de assinatura; d) noção de analogia; e, e) noção de simpatia. Um corpus fundador de

dois tipos de conhecimento completamente distintos: a cognitio, a passagem lateral de uma

semelhança à outra, e a divinatio, conhecimento profundo, em profundidade, que vai de uma

semelhança superficial para outra semelhança mais profunda. Todas essas semelhanças

manifestam um consensus do mundo que as funda; elas se opõem ao simulacrum, a má

semelhança, que repousa na dimensão entre Deus e o Diabo. Por que retomar essa referência,

essas técnicas? Porque o século XIX, muito singularmente com Marx, Nietzsche e Freud,

coloca uma nova possibilidade de interpretação; estes senhores, pensa Foucault, fundam no

século XIX a possibilidade de uma nova hermenêutica. Se no século XVI a teoria do signo e

as teorias da interpretação se baseavam em uma definição dos tipos possíveis de semelhança,

que fundavam os tipos de conhecimento, no século XIX, a coisa muda por completo. Com

efeito, com Nietzsche, Freud e Marx há um novo confronto com as técnicas interpretativas:

suas obras colocam os intérpretes em uma postura desconfortável; elas implicam ao intérprete

que assuma uma obrigação de se interpretar pelas técnicas de interpretação. Ao mesmo tempo,

estas mesmas técnicas de interpretação impõem uma interrogação aos intérpretes que foram

Nietzsche, Freud e Marx: eles teriam modificado profundamente o espaço de distribuição no

qual os signos podem ser signos? Nietzsche, Marx e Freud, pensa Foucault, não multiplicaram

os signos no mundo ocidental; não deram novo sentido a nada que não tinha sentido: “na

realidade, eles mudaram a natureza do signo e modificaram a maneira pela qual o signo em

geral poder ser interpretado.”100

Para Foucault, Nietzsche não cessou de se manter sobre a

profundidade. O jogo de Nietzsche com a profundidade somente pode ser percorrido quando

se interpreta para restituir a exterioridade que se encontrava encoberta e soterrada. Com

Nietzsche, o intérprete deve ir até o fundo como um escavador, mas o movimento de

interpretação deve ser um desaprumo, de um desequilíbrio cada vez maior, que deixa sempre

acima dele a profundidade revelar-se cada vez mais de maneira visível. Mas, na medida em

que a profundidade deve ser, por isso, restituída como um segredo absolutamente superficial,

toda verticalidade acaba por se mostrar como sendo a reviravolta da profundidade, a

descoberta de que a profundidade não passa de um jogo da superfície: “à medida que, sob o

olhar, o mundo se torna mais profundo, nos apercebermos que tudo o que exerceu a

100

Michel FOUCAULT, Nietzsche, Freud, Marx, Ditos e escritos II, p. 42.

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profundidade do homem não passava de uma brincadeira de criança.”101

Esta espacialidade de

Nietzsche, pode ser comparadas ao que Marx faz com a platitude e o que Freud faz com a

topologia do Consciente e Inconsciente.

Através de Nietzsche, Freud e Marx, pensa Foucault, a interpretação tornou-se uma

tarefa infinita. Ainda que já o fosse no século XVI, quando os signos remetiam uns aos outros,

é no século XIX que os signos se encadeiam em uma espécie de rede inesgotável, infinita. E

este inacabado da interpretação é, de forma bem análoga, encontrado em Marx, Freud e

Nietzsche, sob a forma de recusa do começo; mas esta recusa deve apresentar-se sobretudo

em Nietzsche e Freud – em menor intensidade em Marx. É em Nietzsche que se vê delinear a

uma experiência muito importante para a hermenêutica moderna: quanto mais longe se vai na

interpretação, ao mesmo tempo mais se aproxima de uma região absolutamente perigosa,

onde a interpretação vai, além de encontrar seu ponto de retrocesso, desaparecer como

interpretação; o que pode ocasionar, inclusive, o desaparecimento do próprio intérprete. A

aproximação do ponto absoluto da interpretação delineia a aproximação de um ponto de

ruptura. Por isso, a interpretação é algo sempre inacabado. Assim o é em Freud; assim o é em

Nietzsche. Em Nietzsche, segundo Foucault, a filosofia não é nada senão uma filologia

sempre em suspenso, uma filologia sem término, desenvolvida sempre mais adiante, uma

filologia que não seria nunca absolutamente fixada. Este aspecto de inconclusão da

interpretação está ligado a dois princípios: um, a interpretação não pode ser concluída porque

nada há a interpretar, já que, no fundo, tudo não passa de interpretação, nada há de

absolutamente primeiro a ser interpretado; cada signo é nele mesmo o que se oferece à

interpretação, à interpretação de outros signos: nunca há um interpretandum que não seja já

um interpretans; e, dois, se a primazia da interpretação sobre os signos, para Foucault, parece

ser o que há de mais significativo na hermenêutica moderna, os signos, desde Freud, Marx e,

sobretudo, Nietzsche, deixam de ser interpretações que se dão como tais, e passam a ser

interpretações que tentam se justificar, como funcionam as palavras, a justiça e as

classificações binárias em Nietzsche, por exemplo. Com isto, os signos perdem seu ser de

significante e passam a se precipitar na abertura de todos os conceitos negativos. “Agora

poderá organizar-se no interior do signo todo um jogo de conceitos negativos, de

contradições, de oposições, enfim, o conjunto desse jogo de forças reativas que Deleuze tão

101

Michel FOUCAULT, Nietzsche, Freud, Marx, Ditos e escritos II, p. 44

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bem analisou em seu livro sobre Nietzsche.”102

Juntos, com os dois aspectos iniciais da

interpretação, estes dois princípios constituem os postulados da hermenêutica moderna. A

interpretação – por fim – confronta-se com a obrigação de interpretar a si mesma

infinitamente, com a obrigação de sempre retornar. Se assim é, a interpretação deve perguntar

pelo quem, por quem interpreta: “não se interpreta o que há no significado, mas, no fundo,

quem colocou a interpretação. O princípio da interpretação nada mais é que o intérprete.”103

Além disso, a interpretação deve interpretar-se a si mesma e não deixar de retornar a si

mesma: “em oposição ao tempo dos signos, que é um tempo do fracasso, e em oposição ao

tempo da dialética, que, apesar de tudo, é linear, há um tempo da interpretação, que é

circular.”104

Acreditar, portanto que “há signos que existem primeira e originalmente,

realmente, como marcas coerentes, pertinentes e sistemáticas”, dirá Foucault, é a morte da

interpretação, ao passo que sua vida, “é acreditar que só há interpretações.”105

Em Nietzsche, a Genealogia e a História, texto de 1971, Foucault parece se preocupar

em delinear o caminho possível para uma genealogia das relações poder-saber. Para Foucault,

a genealogia de Nietzsche, ou a genealogia nietzscheana, confronta a crença na metafísica e a

maneira tradicional de se fazer história: a genealogia opõe-se à pesquisa da origem, porque na

pesquisa da origem há um esforço para se captar a essência de todas as coisas, suas mais

puras possibilidades, suas identidades cuidadosamente guardadas em si mesmas, a forma

interior e imóvel a tudo o que é externo, acidental e sucessivo. A genealogia, ao escutar a

história, aprende que “por trás das coisas há „algo completamente diferente‟: não

absolutamente seu segredo inicial e sem data, mas o segredo de que elas são sem essência ou

que são sem essência ou que sua essência foi construída peça por peça a partir de figuras que

lhe eram estranhas.”106

A genealogia não pode ser uma análise presa ao postulado da origem,

a ursprung, Nietzsche recusa a pesquisa de origem. O genealogista tem o cuidado de escutar a

história ao invés de crer na metafísica. A história ensina ao genealogista a rir das solenidades

da origem, porque a alta origem é o exagero metafísico. O começo histórico não é anterior à

queda das coisas, perfeitas em sua origem: ele é baixo, no sentido de derrisório, irônico,

adequado para desfazer qualquer envaidecimento. E a origem, não é o local da verdade; a

102

Michel FOUCAULT, Nietzsche, Freud, Marx, Ditos e escritos II, p. 49. 103

Idem, ibidem, p. 49. 104

Ibid. 105

Idem, ibidem, p. 50. 106

Michel FOUCAULT, Nietzsche, a Genealogia e a História, Ditos e Escritos II, p. 262.

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verdade espécie de erro que se declara o direito de não poder ser refutado, que se declara

oposto à aparência, têm sua história na história. É por isso que dirá Foucault que

Fazer a genealogia dos valores, da moral, do ascetismo, do conhecimento, nunca será,

portanto, partir em busca da “origem”, negligenciando como inacessíveis todos os episódios

da história; será, ao contrário, deter-se nas meticulosidades e nos acasos dos começos; prestar

uma atenção escrupulosa em sua derrisória maldade; esperar para vê-los surgir, máscaras

finalmente retiradas, com o rosto do outro; não ter pudor de ir buscá-los onde eles estão,

“escavando as profundezas”; dar-lhes tempo para retornarem do labirinto onde nenhuma

verdade jamais os manteve sob sua proteção. O genealogista tem necessidade da história para

conjurar a ilusão da origem, um pouco como o bom filósofo tem necessidade do médico para

conjurar a sombra da alma. É preciso saber reconhecer os acontecimentos da história, seus

abalos, suas surpresas, as vacilantes vitórias, as derrotas mal digeridas que dão conta dos

começos, dos atavismos e das hereditariedades; assim como é necessário saber diagnosticar as

doenças do corpo, os estados de fraqueza e energia, seus colapsos e resistências para avaliar o

que é um discurso filosófico. A história, com suas intensidades, seus desfalecimentos, seus

futuros secretos, suas grandes agitações febris, assim como suas síncopes, é o próprio corpo do

devir. É preciso ser metafísico para procurar a alma na identidade longínqua da origem.107

Mas o objeto da genealogia pode melhor ser explicitado por palavras como

Entstehung, que Foucault traduzirá por emergência, e Ursprung, entendida como

proveniência. A proveniência é o que tradicionalmente liga aqueles da mesma altura ou da

mesma baixeza: a antiga pertinência de um grupo. É o que permite buscar todas as marcas

sutis, as singularidades, que podem se entrecruzar e formar uma rede difícil de se

desmembrar; é o que permite ordenar, para colocá-las à parte, todas as marcas diferentes. É

também a proveniência que permite reencontrar a proliferação dos acontecimentos através dos

quais, graças aos quais e contra os quais os conceitos se formaram: a tarefa da genealogia não

é recuar no tempo e estabelecer uma grande continuidade que vai muito além da dispersão do

tempo, como a dialética, mas mostrar que o passado existe, está bem ali, muito vivo,

animando o presente ainda em segredo: seguir a proveniência é manter o que se passou na

dispersão que é própria da proveniência: situar os acidentes, os ínfimos desvios ou as

completas inversões, os erros, as falhas de apreciação, os cálculos errôneos: “é descobrir que,

na raiz do que conhecermos e do que somos, não há absolutamente a verdade e o ser, mas a

107

Michel FOUCAULT, Nietzsche, a Genealogia e a História, Ditos e Escritos II, p. 264.

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exterioridade do acidente.”108

. A proveniência, também, se relaciona com o corpo, superfície

de inscrição dos acontecimentos, lugar da dissociação do Eu, volume em perpétua

pulverização, e tudo que se relaciona com o corpo: alimentação, clima, solo, o sistema

nervoso, o humor, o aparelho digestivo, má-respiração, má-alimentação, etc. A genealogia,

enquanto análise da proveniência deve estar, pois, na articulação do corpo com a história: “ela

deve mostrar o corpo inteiramente marcado pela história, e a história arruinando o corpo.”109

E a emergência, princípio e lei singular de um acontecimento, vai demonstrar que não

se pode procurá-la em termos finais, já que os fins, aparentemente últimos, não passam de

episódios atuais de séries de submissões; a genealogia deve restabelecer os diversos sistemas

de submissão, o jogo causal da dominação, encoberto pela metafísica. A emergência produz

um determinado estado de forças; e este jogo de forças somente pode ser demonstrado pela

análise da emergência: e ela que deve mostrar o modo pelo qual elas lutam umas contra as

outras, o combate que travam umas contra as outras, e contra si mesmas. É, pois, pela

emergência que as forças entram em cena. Pela emergência as forças passam dos bastidores

ao palco da luta, entram no teatro para o confronto, cada um com o vigor e a jovialidade que

lhe são próprios. A peça encenada neste teatro sem lugar, aquela que dominantes e dominados

repetem perpetuamente: homens dominam homens, classes dominam classes, homens se

apoderam de coisas que necessitam para viver: nasce a diferenciação dos valores, a idéia de

liberdade, a lógica. A relação de dominação e o lugar da dominação, em cada momento da

história, se fixam em determinados rituais: a dominação impõe obrigações e direitos, cosntitui

cuidadosos procedimentos, estabelece marcas, grava lembranças nas coisas e nos corpos. A

relação de dominação cria um universo de regras que não é voltado a apaziguar, mas a

satisfazer a violência. Por isso, afirma Foucault, seria um erro, acreditar com Hobbes,

segundo o seu esquema, “que a guerra geral, esgotando-se em suas próprias contradições,

acaba por renunciar a violência e aceita se suprimir nas leis da paz civil. A regra é o prazer

calculado da obstinação, é o sangue prometido. Ela permite relançar ininterruptamente o jogo

da dominação; ela encontra a violência minuciosamente repetida.”110

Seria um erro, também,

acreditar no esquema dialético, pois “a humanidade não progride lentamente, de combate em

combate, até uma reciprocidade universal, na qual as regras substituiriam, para sempre, a

108

Michel FOUCAULT, Nietzsche, a Genealogia e a História, Ditos e Escritos II, p. 266. 109

Idem, ibidem, p. 267. 110

Idem, ibidem, p. 269-270.

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guerra; ela instala cada uma dessas violências em um sistema de regras, e prossegue assim de

dominação em dominação.”111

Para Foucault, porque há regras é que se permite fazer

violência para a violência e que uma outra dominação possa dobrar aqueles mesmos que

dominam. São as regras que podem ser burladas ao sabor da vontade de uns e de outros. Por

isso, “o grande jogo da história será de quem se apossar das regras, de quem tomar o lugar

daqueles que as utilizam, de quem se disfarçar para pervertê-las, utilizá-las pelo avesso e

voltá-las contra aqueles que as tinham imposto; de quem, introduzindo-se por completo no

aparelho, o fará funcionar de tal forma que os dominadores se encontrarão dominados por

suas próprias regras.”112

A genealogia permite demonstrar que as diferentes emergências não

são figuras sucessivas de uma mesma significação: são efeitos de substituições,

reposicionamentos e deslocamentos, de conquistas disfarçadas, de inversões sistemáticas. Por

isso, interpretar não pode ser focalizar lentamente uma significação oculta na origem, mas

“apoderar-se, pela violência ou sub-repção, de um sistema de regras que não tem em si a

significação essencial e impor-lhe uma direção, dobrá-lo a uma nova vontade, fazê-lo entrar

em um outro jogo e submetê-lo a novas regras, então o devir da humanidade é uma série de

interpretações. E a genealogia deve ser sua história: história das morais, dos ideais, dos

conceitos metafísicos, história do conceito de liberdade ou da vida ascética, como

emergências de diferentes interpretações. Trata-se de fazê-las surgir como acontecimentos no

teatro dos procedimentos.”113

Mas as forças que estão em jogo na história, o campo de batalha, não obedecem a uma

destinação ou a uma mecânica; obedecem o acaso da luta. Elas sempre vão surgir no aleatório

singular do acontecimento. Seguir Nietzsche quando faz a genealogia dos valores, da moral,

do ascetismo, do acontecimento, não será partir em busca de uma origem, negligenciando os

episódios singulares da história; mas reconhecer os abalos, as surpresas, as vitórias vacilantes

e as derrotas mal digeridas dos acontecimentos da história, que dão conta dos começos. A

proveniência, para Nietzsche, revela Foucault, o objeto específico da genealogia, deve

demonstrar as singularidades; e a emergência, a demonstração dos jogos causais da

dominação. A história, “história efetiva”, o sentido histórico deve ser permitir se mostrar o

jogo da dominação: a história será efetiva – e oposta à história dos historiadores – somente, e

111

Michel FOUCAULT, Nietzsche, a Genealogia e a História, Ditos e Escritos II, p. 270. 112

Op. Cit., p. 270. 113

Ibid..

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tão-somente na medida em que reintroduzir o descontínuo no ser do homem. Mais do que

isto, deve ser o que faz surgir o acontecimento, uma relação de forças que se inverte: o

acontecimento têm também o poder de inverter as relações entre o próximo e o longínquo. A

história efetiva deve lançar seu olhar para o mais próximo; ela não deve temer olhar para

baixo, olhar embaixo, mas olha do alto, mergulha para apreender as perspectivas; ela olha

para o mais próximo para dele se afastar e apreendê-lo à distância. A história efetiva também

não teme um saber perspectivo: o sentido histórico se sabe perspectiva, e não recusa o sistema

de sua própria injustiça: “ele olha sob um certo ângulo, com o propósito deliberado de

apreciar, de dizer sim ou não, de seguir todos os traços do veneno, de encontrar o melhor

antídoto. Em vez de fingir um discreto pagamento diante daquilo que ele olha, em vez de ali

buscar sua lei e a isso cada um de seus movimentos, é um olhar que sabe para onde olha,

assim como o que olha. O sentido histórico dá ao saber a possibilidade de fazer, no próprio

movimento de seu conhecimento, sua genealogia. A Wirkliche Historie efetua uma genealogia

da história como a projeção vertical do lugar em que ela se sustenta.”114

Não há início na origem das coisas, e não há um ponto final para a interpretação; a

interpretação é algo inacabado, que deve sempre retornar. A interpretação é uma tarefa

infinita: ela não pode acabar, por isso, encontra-se obrigada a voltar-se sobre si mesma. Seu

tempo é circular e ela não se ocupa com o significado, mas indaga quem interpretou.

Interpretar as interpretações, inaugurar uma nova hermenêutica: eis, pois, o caráter inovador

do pensamento nietzscheano na leitura que lhe empreende Foucault. Palavras não devem

indicar significados, mas devem impor interpretações; interpretá-las, nisto consiste a tarefa da

genealogia: enquanto história das emergências de diferentes interpretações, deve a genealogia

colocar a pergunta por quem interpreta a cada nova emergência, além de perguntar por quem

se apodera dos sistemas de regras em cada novo estado de forças. Para Scarlett Marton, esta

afirmação faz surgir alguns problemas que Foucault não resolve: primeiro, Foucault não

compreende a força como um efetivar-se; segundo, Foucault, quando coloca a pergunta por

quem interpreta, pressupõe a existência de algo anterior à interpretação; terceiro, a teoria das

forças apreendida por Foucault difere da teoria nietzscheana das forças; quarto, Foucault,

carece de um critério externo às avaliações para distinguir as forças. Em linhas gerais, para a

professora Scarlett Marton, a leitura que Foucault faz de Nietzsche somente pode se dar nos

114

Michel FOUCAULT, Nietzsche, a Genealogia e a História, Ditos e Escritos II, p. 274-275.

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textos em que o francês não trata diretamente do alemão, mas naqueles que há um momento

de silêncio em relação ao filósofo do martelo. “Seus momentos de silêncio em relação ao

filósofo podem ser mais reveladores do que aqueles em que dele fala. „Hoje‟, diz Foucault em

1975, „fico mudo quando se trata de Nietzsche. No tempo em que era professor, dei freqüentes

cursos sobre ele, mas não mais o faria hoje. (...) A presença de Nietzsche é cada vez mais

importante. Mas me cansa a atenção que lhe é dada para fazer sobre ele os mesmos

comentários que se fizeram ou se fariam sobre Hegel ou Mallarmé. Quanto a mim, os autores

de que gosto, eu os utilizo. O único sinal de reconhecimento que se pode ter para com um

pensamento como o de Nietzsche, é preciso utilizá-lo, deformá-lo, fazê-lo ranger. Que os

comentadores digam se se é ou não fiel, isto não tem nenhum interesse‟.”115

Talvez tenha razão a professora Scarlett Marton; mas isto não vem ao caso; não aqui,

pois não se discute a leitura de Nietzsche que faz Foucault, mas a questão da resistência, dos

seus aspectos em Foucault; e é ai que entra a genealogia. Aliás, acerca do estudo de Nietzsche,

Foucault o faz não de forma direta, como um comentador, mas por meio de interpretação de

uma interpretação: Foucault parece ter apreendido Nietzsche por meio da leitura de

Heidegger116

. Foucault não é um comentador, é um filósofo; um filósofo de primeira ordem.

Da genealogia nietzscheana Foucault parece se apoderar para fundamentar o que

posteriormente virá a ser sua própria análise genealógica; sua análise genealógica do poder,

sua análise genealógica da resistência. Pouco importa se Foucault não faz uma exegese da

teoria das forças nietzscheana, se Foucault não faz uma exegese de Nietzsche, se Foucault não

comenta Nietzsche, se Foucault não apreende as forças como Nietzsche, se Foucault não

trabalha em uma perspectiva cosmológica como Nietzsche; o que importa é que Foucault

apreende Nietzsche e dele faz sua ferramenta de trabalho. Prova disso é a resposta que

Foucault dará quando perguntado sobre o que o conceito de acontecimento. Com efeito,

responderá Foucault que “é preciso compreendê-lo não como uma decisão, um tratado, um

reino ou uma batalha, mas como uma relação de forças que se inverte, um poder confiscado,

um vocabulário retomado e voltado contra seus utilizadores, uma dominação que se

115

Scarlett MARTON, Foucault leitor de Nietzsche, Recordar Foucault, p. 207-208. 116

Cumpre observar que a leitura que Foucault faz de Nietzsche deve-se, de certo modo, aos estudos que

apreendeu do Curso sobre Nietzsche ministrado por Heidegger. Foucault diz expressamente que Heidegger foi

para ele o filósofo essencial. Diz Foucault: “todo o meu futuro filosófico foi determinado por minha leitura de

Heidegger (...). É provável que se eu não tivesse lido Heidegger, não teria lido Nietzsche. Tentei lei Nietzsche

nos anos 50, mas Nietzsche sozinho, não me dizia nada. Já Nietzsche com Heidegger foi um abalo filosófico.”

In: Ditos e Escritos II, XLIX.

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enfraquece, se amplia e se envenena, e uma outra que faz sua entrada, mascarada. As forças

que estão em jogo na história não obedecem nem uma destinação, nem uma mecânica, mas o

acaso da luta.”117

. Em outra oportunidade, que

o problema é ao mesmo tempo distinguir os acontecimentos, diferenciar as redes e os

níveis a que pertencem e reconstituir os fios que os ligam e que fazem com que se engendrem,

uns a partir dos outros. Daí a recusa das análises que se referem ao campo simbólico ou ao

campo das estruturas significantes, e o recurso às análises que se fazem em termos de

genealogia das relações de força, de desenvolvimentos estratégicos e de táticas. Creio que

aquilo que se deve ter como referência não é o grande modelo da língua e dos signos, mas sim

da guerra e da batalha. A historicidade que nos domina e nos determina é belicosa e não

lingüística. Relação de poder, não relação de sentido. A história não tem „sentido‟, o que não

quer dizer que seja abusada e incoerente. Ao contrário, é inteligível e deve poder ser analisada

em seus menores detalhes, mas segundo a inteligibilidade das lutas, das estratégias, das táticas.

Nem a dialética (com lógica de contradição), nem a semiótica (como estrutura da

comunicação) não poderiam dar conta do que é a inteligibilidade intrínseca dos confrontos. A

„dialética‟ é uma maneira de evitar a realidade aleatória e aberta desta inteligibilidade

reduzindo-a ao esqueleto hegeliano; e a „semiologia‟ é uma maneira de evitar seu caráter

violento, sangrento e mortal, reduzindo-a à forma apaziguada e platônica da linguagem do

diálogo.118

Ora, a questão das forças, central na obra de Nietzsche, tem caráter relacional: toda

força se deve encontrar em relação essencial com outra força. Segundo Deleuze, “qualquer

força está em relação com outras, seja para obedecer, seja para ordenar. O que define um

corpo é esta relação de forças dominantes e forças dominadas. Qualquer relação de forças

constitui um corpo: químico, biológico, social, político. Duas forças quaisquer, sendo

desiguais, constituem, um corpo a partir do momento em que entrem em relação: é por isso

que o corpo é sempre fruto do acaso, no sentido nietzscheano, e aparece como a coisa mais

„surpreendente‟, muito mais surpreendente em verdade do que a consciência e o espírito.”119

As forças possuem quantidade e qualidades: qualidade corresponde à diferença de quantidade

das forças; a diferença de quantidade é a essência da força, a relação da força com a força. Já

a qualidade, o que há de inigualável na força, é a quantidade que corresponde à quantidade de

117

Michel FOUCAULT, Nietzsche, a Genealogia e a História, Ditos e Escritos II, p. 270-271. 118

Idem, Microfísica do poder, p. 5. 119

Gilles DELEUZE, Nietzsche e a filosofia, p. 62-63.

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cada força em relação, por isso, o que permite medir as forças em relação faz intervir toda

uma interpretação e uma avaliação das qualidades. E as relações das forças somente podem

ser afirmadas pelo acaso. O acaso é o contrário de um continuum. É pelo acaso que as forças

entram em relação; os encontros de forças de tal e tal quantidade devem ser entendidas como

partes concretas do acaso. “Ora, é nesse encontro que cada força recebe a qualidade que

corresponde à sua quantidade, quer dizer a afecção que preenche efectivamente o seu

poder.”120

A força somente pode ser quando está em relação essencial com a força; a essência

da força é sua diferença de qualidade em relação a outras forças; a qualidade reenvia

necessariamente para um elemento diferencial das forças em relação: este também é o

elemento genético da qualidade destas forças: a vontade de potência, é isso a vontade de

poder. “A vontade de poder é o elemento de onde dimanam simultaneamente a diferença de

quantidade das forças postas em relação e a quantidade que, nessa relação, marca cada

força. A vontade de poder revela aqui a sua natureza: é o princípio para a síntese de forças.”121

A força é quem pode, a vontade de poder é, quem quer: o que há na relação da força com a

força, com efeito, é a dominação: de duas forças em relação, uma é dominante, a outra

dominada. Assim, a vontade de poder acrescenta-se à força, mas como elemento diferencial e

genético, como elemento interno de sua produção. A síntese das forças: o eterno retorno.

120

Gilles DELEUZE, Nietzsche e a filosofia, p. 63-69.. 121

Idem, ibidem, p. 77.

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VI – É POSSÍVEL QUE O DISCURSO BUSQUE SE APROFUNDAR AINDA MAIS?

Foucault parece não se distanciar muito de Nietzsche; não tanto quanto parece querer

Scarlett Marton. Foucault não se afasta, principalmente quando se lhe aproxima da

interpretação deleuziana da teoria nietzscheana das forças. Vale lembrar que na teoria

nietzscheana, como as forças afirmam suas diferenças, as noções de luta, guerra e comparação

tornam-se secundárias, já que as forças definem-se qualitativamente a partir de um elemento

diferencial: a vontade de potência. Desde a perspectiva da diferença de quantidade, as forças

podem ser classificadas em dominantes e dominadas; da qualidade, ativas e reativas. Como

fonte das qualidades das forças, portanto, a vontade de potência precisa apresentar elementos

qualitativos primordiais: o afirmativo e o negativo. É nesse registro, segundo Deleuze, que se

pode compreender a crítica de Nietzsche ao positivismo, ao humanismo e à dialética, pois,

como todos ignoram as qualidades das forças, suas maneiras de pensar devem se revelar

inoperantes para a interpretação e incapazes de avaliação: a dialética, em especial, seria uma

força que não mais age, já que se mostra impossibilitada de afirmar sua diferença: ela se

limita a reagir às forças que a dominam. Ela apenas tenta por o elemento negativo em

primeiro plano, com a negação de tudo o que é; com a negação em primeiro plano, a dialética

faz da negação a própria essência e o princípio mesmo da existência. Como pensamento

fundamentalmente cristão que é, a dialética para Nietzsche, segundo Deleuze, aparece como a

ideologia natural do ressentimento, da má-consciência. “E Deleuze conclui: 'não existe

compromisso possível entre Hegel e Nietzsche. A filosofia de Nietzsche tem grande alcance

polêmico; ela forma uma antidialética absoluta, propõe-se denunciar todas as mistificações

que encontram na dialética um último refúgio‟”.122

Mas mesmo assim, o filósofo francês não

deixará de receber críticas. Foucault não é um comentador, é mesmo um filósofo, pois,

Foucault se mostrou um homem que “continuamente vê, vive, ouve, suspeita, espera e sonha

coisas extraordinárias; que é colhido por seus próprios pensamentos, como se eles viessem de

fora, de cima e de baixo, constituindo a sua espécie de acontecimentos e coriscos; que é talvez

ele próprio um temporal, caminhando prenhe de novos raios; um homem fatal, em torno do

qual há sempre murmúrio, bramido, rompimento, inquietude. Um filósofo: oh, um ser que

122

Scarlett MARTON, “Nietzsche e Hegel, leitores de Heráclito ou a propósito de uma fala de Zaratustra: 'da

superação de si', In: Extravagâncias, p. 95-97.

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tantas vezes foge de si, que muitas vezes tem medo de si – mas é sempre curioso demais para

não „voltar a si‟...”123

Foucault também será criticado por Habermas. Para Habermas, Foucault deixou de

lado tanto o matematização da natureza quanto o mecanicismo, para apoderar-se apenas do

sistema de signos ordenados. Para Habermas, Foucault ignorou o procedimento adotado por

Hobbes, Descartes e Leibniz, para os quais, segundo Habermas, “a natureza se transforma na

totalidade daquilo que pode ser „representado‟ e, enquanto representação, exposto mediante

signos convencionais.”124

O conceito de vontade de potência de Nietzsche e o conceito de

soberania de Bataille assumem em Foucault, segundo Habermas, uma forma mais ou menos

aberta. Em contrapartida, o seu conceito de poder, Foucault o toma emprestado da tradição

empirista, mas o priva do potencial de experiência. Por isso, o poder manteria nas mãos de

Foucault também uma referência estética literal da percepção do corpo com a experiência

dolorosa do corpo escorchado. “Esse momento”, afirma Habermas, “é inclusive determinante

para a formação moderna do poder, que deve o nome de „biopoder‟ por penetrar

profundamente, pelas vias sutis da objetivação científica e de uma subjetividade produzida

pelas tecnologias de verdade, no corpo reificado, apossando-se de todo o organismo.” 125

Por

isso, biopoder deve significar, na leitura de Habermas, “aquela forma de socialização que

elimina toda naturalidade e transforma em um substrato para o alastramento das relações de

poder com o corpo vivo em sua totalidade. A assimetria, plena de conteúdo normativo, que

Foucault vê estabelecida nos complexos de poder, não subsiste propriamente entre a vontade

detentora de poder e a submissão forçada, mas entre os processos de poder e os corpos que

neles são triturados. É sempre o corpo que é escorchado na tortura e convertido em palco da

vingança soberana; que é submetido ao treinamento, trinchado e manipulado no campo das

forças mecânicas; que é objetivado e controlado pelas ciências humanas, ao mesmo tempo

estimulado e despido de seus desejos.”126

A morte impediu Foucault de responder Habermas.

A morte prematura “impediu que Foucault desenvolvesse todas as implicações do conceito de

bio-política e mostrasse em que sentido teria aprofundado ulteriormente a sua

investigação”127

. Mas, de qualquer forma, em sua Vontade de saber, Foucault resume o

123

Friedrich NIETZSCHE, Além do bem e do mal, p. 176. 124

Jüngen HABERMAS, O discurso filosófico da modernidade, p. 362. 125

Idem, ibidem, p. 398. 126

Idem, ibidem, p. 398-399. 127

Giorgio AGAMBEN, Homo Sacer, p. 12.

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processo pelo qual a vida começa a ser incluída nos mecanismos e nos cálculos do poder, para

transformar-se a política em bio-política. Dirá Foucault: “se pudéssemos chamar „bio-história‟

as pressões por meio das quais os movimentos da vida e os processos da história interferem

entre si, deveríamos falar de „bio-política‟ para designar o que faz com que a vida e seus

mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do poder-saber um agente de

transformação da vida humana; não é que a vida tenha sido exaustivamente integrada em

técnicas que a dominem e gerem, ela lhes escapa continuamente.”128

. Eis, pois, o que um

caminho para se esboçar uma resposta para a crítica de Habermas a Foucault.

Muito do que Foucault desdobra está em inicialmente em Nietzsche, não há dúvida.

De Nietzsche Foucault apreendeu a teoria das forças e a utilizou ao seu modo. Com Nietzsche

se pôde conhecer a essência das forças; com ele, também se pode conhecer o fundamento

primeiro de todo corpo político: o confronto de forças em relação. Ora, como já evidenciado,

mostra Deleuze que em Nietzsche, o que define o corpo é a relação entre forças dominantes e

dominadas. Para ele, “qualquer relação de forças constitui um corpo: químico, biológico,

social, político. Duas forças quaisquer, sendo desiguais, constituem um corpo a partir do

momento em que entrem em relação: é por isso que o corpo é sempre fruto do acaso, no

sentido nietzscheano, e aparece como a coisa mais „surpreendente‟, muito mais surpreendente

em verdade do que a consciência e o espírito.”129

Parece que o que está por trás disso,

principalmente quando Nietzsche está a tratar da questão do corpo em sua totalidade, é a idéia

de “caos”. Caos, para Nietzsche, nos termos de Heidegger, não pode designar um emaranhado

confuso no campo das sensações, senão que “a vida corporificante, a vida como corporificante

em grande escala. Nietzsche tampouco tem em vista com caos o pura e simplesmente sem pé

nem cabeça em sua confusão, não o sem ordem, surgindo a partir do alijamento de toda

ordem, mas aquilo que acossa, corre e é movimentado, aquilo cuja ordem está velada, cuja lei

não conhecemos imediatamente.”130

O caos deve ser o nome dado a um projeto muito peculiar preliminar do mundo em

sua totalidade e sua vigência. O caos é o que vai representar o mundo como uma espécie de

corpo gigantesco. A vida e a corporificação deste corpo é o que deve, em termos

128

Michel FOUCAULT, História da sexualidade 1, a vontade de saber, p. 155-156. 129

Gilles DELEUZE, Nietzsche e a filosofia, p. 62-63. 130

Martin HEIDEGGER, Nietzsche, vol I, p. 440.

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heideggerianos, constituir o ente na totalidade e deixar o ser aparecer como um devir. É por

isso que o corpo, tomado como fio condutor para as considerações do homem e do mundo,

será fundamental nos últimos anos de Nietzsche; a projeção do mundo a partir da posição do

animal e da animalidade será, portanto, o local em que se encontra arraigada a experiência

fundamental do caos. Como o corpo deve se mostrar como uma configuração de domínio, o

caos deve visar ao velado estado da riqueza do devir no fluxo do mundo em sua totalidade. “A

suspeita de um biologismo, evidente por toda parte, parece encontrar por meio daí a sua

confirmação inequívoca e total.”131

Esse confronto de forças, esta relação de forças, parece ser o que há de fundamental na

relação entre poder e resistência. São as forças em confronto desiguais, e esta desigualdade

aferida pelo elemento genético das forças, a vontade de potência. A vontade de potência, ou

vontade de poder, como dirá Deleuze, manifesta-se de diferentes maneiras: nos oprimidos,

nos escravos de toda sorte e espécie, como vontade de “liberdade”, como o mero conseguir-se

livrar para ser a meta; nas espécies mais fortes e que cresceu até o poder, mas que ainda não é

“a” mais forte, como vontade de supremacia, e quando esta obtém resultado logo no início,

como uma vontade de “justiça”, a vontade pelo mesmo nível de direitos que aparenta possuir

a espécie dominante; e, finalmente, nos mais fortes, os mais ricos, mais independentes, mais

corajosos, os que dominam, como vontade de “amor à humanidade”, como compaixão,

“como dominar, arrebatar consigo, tomar a seu serviço; como um instintivo unificar-se com

uma grande quantidade de poder, para a qual se é capaz de dar um direcionamento: o herói, o

profeta, o César, o salvador, o pastor (– também o amor sexual tem aqui o seu domicílio: ele

quer o domínio, o tomar posse, e aparece como um dedicar-se... No fundo, [trata-se] apenas

do amor a seu „instrumento‟, a seu „cavalo‟..., sua convicção de que isso e aquilo lhe

pertencem na condição de alguém que está em condições de fazer uso). „Liberdade‟, „justiça‟

e „amor‟!!!”132

No jogo da dominação, no jogo das forças em relação, no jogo do acaso, onde há o

triunfo das forças reativas, a vontade de potência, o elemento genético das qualidades das

forças em relação, este mostrar-se como um querer interno, aparece como vontade de

dominação, como vontade de permanecer por cima. Mas para se permanecer por cima, deve-

131

Martin HEIDEGGER, Nietzsche, vol I, p. 440-441. 132

Friedrich NIETZSCHE, A vontade de poder, p. 385-386.

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se superar a resistência daqueles que estão por baixo. O grau de resistência que se deve

superar constantemente para se manter em sua posição, para Nietzsche, é o que dará a medida

da liberdade individual ou coletiva, pois a liberdade é postulada como vontade de poder, como

poder positivo. Segundo Nietzsche, a soberania, a forma mais elevada de liberdade-individual

crescia de acordo com a medida em que se confrontava com seu contrário: a resistência,

“muito provavelmente, a menos de cinco passos de seu contrário, ali onde o perigo da

escravidão pende sobre a existência com cem espadas de Damoclés. Vai-se, por esse ponto de

vista, pela história: as épocas nas quais o “indivíduo” amadureceu até aquela perfeição, quer

dizer, tornou-se livre, as épocas em que o tipo clássico de homem soberano foi alcançado: oh,

não! Jamais essas épocas foram épocas humanas. Não se deve ter nenhuma escolha: ou se está

por cima – ou se está por baixo, como um verme, escarnecido, aniquilado, destroçado. Deve-

se ter os tiranos contra si para tornar-se tirano, quer dizer, livre. Não é nenhuma pequena

vantagem ter sobre si cem espadas de Damoclés: com isso aprende-se a dançar, com isso

chega-se à “liberdade de movimento.”133

O indivíduo, pois, aquele que não deve estar por baixo, e que, por isso mesmo, postula

liberdade, parece tomar em Nietzsche um papel fundamental. Não é por menos que dirá que o

erro fundamental da política é colocar os fins no rebanho e não nos indivíduos isolados, pois o

rebanho para Nietzsche é somente e tão-somente o meio e mais nada. Buscar compreender o

rebanho como indivíduo e atribuir-lhe uma posição superior ao indivíduo isolado, para

Nietzsche é o mais profundo mal-entendido, pois o indivíduo é algo inteiramente novo e

criador do novo, “algo absoluto”, já que todas as coisas a ele dizem respeito; “os valores para

suas ações, o indivíduo as retira, em última instância, de si mesmo: pois ele também deve

interpretar para si, de modo inteiramente individual, as palavras legadas pela tradição. Ao

menos a interpretação das fórmulas é pessoal, mesmo que ele não crie também novas

fórmulas: como intérprete, ele sempre cria.134

O indivíduo nietzscheano é um indivíduo

soberano, o fruto mais maduro da árvore da sociedade e da moralidade do costume; ele é igual

apenas a si mesmo, ele está liberado da moralidade do costume, ele é um indivíduo autônomo

supramoral, o homem da vontade própria, da vontade duradoura, da vontade independente. O

indivíduo soberano é aquele que pode fazer promessas: ele é liberto e a ele é permitido

prometer, pois é um senhor do livre-arbítrio. O indivíduo nietzscheano é soberano, e se sabe

133

Friedrich NIETZSCHE, A vontade de poder, p. 383. 134

Idem, ibidem, p. 382.

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soberano, conhece a superioridade que possui, conhece o que o coloca em um grau acima

daqueles que não podem prometer nem responder por si. Ele é dotado de confiança, de temor,

de relevância desperta; ele domina a si, ele possui um domínio sobre si. Homem livre e

possuidor de uma duradoura e inquebrantável verdade, “tem nessa posse a sua medida de

valor: olhando para os outros a partir de si, ele honra ou despreza; e tão necessariamente

quanto honra os seus iguais, os fortes e confiáveis (os que podem prometer) – ou seja, todo

aquele que promete como um soberano, de modo raro, com peso e lentidão, e que é avaro com

sua confiança, que distingue quando confia, que dá sua palavra como algo seguro, porque

sabe que é forte o bastante para mantê-la contra o que for adverso, mesmo “contra o

destino.”135

Sua verdade, não é uma verdade ressentida, não é “um batalhão móvel de metáforas,

metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas

poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem para um povo

sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são,

metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e

agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas.”136

O indivíduo

nietzscheano não é obra do pessimismo: ele não sente desconfiança diante da vida. Ele não é

cansado da vida, ele não se envergonha, ele não tem vergonha de si mesmo. Para ele não há

vergonha diante do homem. Seu olhar não é enfastiado; ele confia no enigma da vida. O

indivíduo nietzscheano não se envergonha de seus instintos, como o quer o pessimismo; ele

diz não “à moralização e ao amolecimento doentios, em virtude dos quais o bicho “homem”

aprende afinal a se envergonhar de seus instintos. A caminho de tornar-se “anjo” (para não

usar palavra mais dura) o homem desenvolveu em si esse estômago arruinado e essa língua

saburrenta, que lhe tornaram repulsivas a inocência e a alegria do animal, e sem sabor a

própria vida – de modo que por vezes ele tapa o nariz diante de si mesmo, e juntamente com o

papa Inocêncio III prepara, censura no olhar, o rol de suas repugnâncias („concepção impura,

nauseabunda nutrição no seio materno, ruindade da matéria de que se desenvolve, cheiro

hediondo, secreção de escarro, urina e excremento‟).”137

135

Friedrich NIETZSCHE, Genealogia da moral, p. 49. 136

Idem, Obras incompletas, p. 56. 137

Idem, Genealogia da moral, p. 56-57.

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O ressentimento torna o homem fraco e infeliz, a má-consciência faz a força voltar-se

contra si mesma, o ideal ascético nega a vida; nada disso pode acometer o indivíduo absoluto,

soberano. Mas, no entanto, a história mostra que quem triunfa não é o indivíduo soberano, a

força ativa, mas as forças reativas: a negação leva a melhor. “Em toda parte vemos o triunfo

do „não‟ sobre o „sim‟, da reacção sobre a acção. Mesmo a vida torna-se adaptativa e

reguladora, reduz-se às suas formas secundárias: já nem sequer compreendemos o que

significa agir. Mesmo as forças da Terra esgotam, sobre esta face desolada. A vitória comum

das forças reactivas e da vontade de negar, Nietzsche chama-lhe „niilismo‟ – ou o triunfo dos

escravos. A análise do niilismo é objeto da psicologia, segundo Nietzsche, entendendo que

esta psicologia é também a do cosmos.”138

Os trabalhadores da filosofia do ressentimento não o percebem, mas o indivíduo se

fortaleceu; tornou-se forte “sob condições inversas: vós descreveis o enfraquecimento e o

definhamento mais extremos do homem, vós quereis esse enfraquecimento e definhamento e,

para tanto, precisais de todo o aparato de mentiras do antigo ideal! Sois de tal espécie que

sentis realmente como ideal as vossas necessidades de animal de rebanho! Absoluta falta de

retidão psicológica!”139

Nietzsche refere-se aqui aos franceses; cita, inclusive, Alfred Fouillée.

Mas Nietzsche se voltará também contra os ingleses, dentre os quais se encontra Hobbes.

Com efeito, precisamente duas são as passagens em que Nietzsche dirige-se diretamente a

Hobbes em seu Para além do bem e do mal. Na primeira, que se dá no capítulo 8, dedicado

por Nietzsche ao tratamento dos povos e das pátrias, o filósofo alemão acusa o inglês de não

pertencer a nenhuma raça filosófica. Acusa também Hobbes de representar uma

desvalorização do conceito de “filósofo” por mais de um século, e de tentar bestificar anglo-

mecanicamente o mundo.

Para Nietzsche, o que faltou à Inglaterra, a esta raça não-filosófica, e a Hobbes em

conseqüência, foi uma autêntica pujança de espiritualidade, autêntica profundidade do olhar

espiritual: faltou filosofia. Os ingleses, segundo Nietzsche, atêm-se firmemente ao

cristianismo, porque precisam da disciplina cristã para se “moralizar” e humanizar. Este “gado

de beberrões”, de rude e rústica seriedade, disfarçada e reelaborada na linguagem dos gestos

cristãos, nas orações dos salmos cantados, é carente de música, a sociedade inglesa “não

138

Gilles DELEUZE, Nietzsche, p. 24-25. 139

Friedrich NIETZSCHE, A vontade de poder, p. 388.

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possui, nos movimentos da alma e do corpo, nem cadência nem dança, ou sequer o desejo de

cadência e dança, de „música‟. Ouçam-no falar; vejam-se as mais belas inglesas caminhar –

não há, em país algum da Terra, pombas e cisnes mais belos – por fim: ouçam-nas cantar! Eu

exijo demais...”140

Na segunda passagem, Nietzsche acusa Hobbes de tentar difamar o riso:

“não obstante aquele filósofo que, como autêntico inglês, tentou difamar o riso entre as

cabeças pensantes – „o riso é uma grave enfermidade da natureza humana, que toda cabeça

pensante se empenharia em superar‟ (Hobbes) – eu chegaria mesmo a fazer uma hierarquia

dos filósofos conforme a qualidade do seu riso – colocando no topo aqueles capazes de

risadas de ouro.”141

A história demonstrou que o ressentimento dos escravos triunfou sobre os senhores, os

indivíduos absolutos, os indivíduos soberanos. Para Nietzsche, o que caracteriza o homem

moderno, são dois elementos opostos: o individualismo e a exigência de direitos iguais. Como

o indivíduo, dotado de vaidade extremamente vulnerável, exige em sua consciência que todos

os outros indivíduos sejam com ele postos em pé de igualdade, surge a caracterização de uma

raça onde as forças não se elevam umas em relação às outras. Nesse contexto, o orgulho não

pode ser compreendido, os sucessos “realmente grandes” somente podem existir com as

massas, porque “as morais nada sabem da „hierarquia‟ entre os homens; os professores de

direito nada sabem da consciência-coletiva.”142

O princípio do individualismo moderno rejeita

os homens realmente grandes e exige dos demais, dos mais ou menos iguais, o

reconhecimento mais ágil de um talento, já que todos têm algum talento: tem lugar, pois,

como nunca antes, o “realce dos pequenos méritos”, o realce das mocidades, já que a não-

mocidade tem em sua mira os homens nobres, os quais desprezam a sorte de muitos

[ressentidos]. É por isso que a exigência da igualdade de direitos deve ser antiaristocrática e

igualmente os homens muito elevados. Por isso dirá Nietzsche que igualmente estranho para o

princípio individual é o “indivíduo apagado, a submersão em um grande tipo, o não-querer-

ser-pessoa: o que constituía outrora a distinção e o entusiasmo de muitos homens elevados (os

grandes poetas estão entre eles); ou “ser-cidade”, como na Grécia; jesuitismo, corpo de

oficiais e de servidores prussianos; ou ser discípulo e continuador de um grande mestre: para

140

Friedrich NIETZSCHE, Além do bem e do mal, p. 144-145. 141

Idem, Além do bem e do mal, p. 177. 142

Idem, A vontade de poder, p. 388-389.

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o que são necessárias disposições não sociais e a falta da pequena vaidade.143

O individualismo é, portanto, ao contrário da doutrina no indivíduo, uma modesta e

inconsciente “vontade de poder”. Ao indivíduo é dado libertar-se do poder superior da

sociedade, manifestado seja no poder da Igreja ou no poder de Estado como algo suficiente,

porque não é como pessoa que se opõe, mas somente enquanto indivíduo; é somente enquanto

indivíduo que o indivíduo pode defender todos os indivíduos contra a coletividade. O

indivíduo põe-se em pé de igualdade com todo indivíduo, pois combate somente enquanto

indivíduo, a coletividade. Em tais termos, o socialismo somente poderá ser considerado o

meio de agitação do individualismo; o socialismo, por equívoco dos socialistas, não quer a

sociedade como fim do indivíduo, mas como um meio para possibilitar muitos indivíduos. O

anarquismo, meio de agitação do socialismo, suscita o medo, e com o medo começa a fascinar

e a aterrorizar; por isso mesmo, consegue atrair para si espíritos corajosos e ousados. Mas,

mesmo assim, o individualismo é ainda o grau mais modesto da vontade de potência. Ora,

logo que se alcança uma certa independência, quer-se mais: “destaca-se a separação segundo

o grau de força: o indivíduo não se nivela mais, pura e simplesmente, mas antes busca os seus

iguais, – distingue outros de si. Ao individualismo segue-se a formação de membros e órgãos:

as tendências aparentadas compondo-se e ativando-se como poder, e entre esses centros de

poder há atrito, guerra, conhecimento mútuo das forças, equiparação, aproximação, fixação do

intercâmbio de realizações. Por fim: uma hierarquia.”144

Ora, a hierarquia é o lugar da diferença entre as forças ativas e reativas, a

superioridade das forças ativas sobre as reativas. Mas a hierarquia, por outro lado, designa

também o triunfo das forças reativas, “o contágio das forças reativas e a organização

complexa que daí resulta, em que os fracos venceram, em que os fortes são contaminados, em

que o escravo que não deixou de ser escravo impera sobre um senhor que deixou de o ser: o

reino da lei e da virtude.”145

Temos a hierarquia que merecemos. É por isso que aquela força

que está separada do que pode triunfa: os indivíduos dominados tornam-se livres; vão à luta

em busca de igualdade de direitos; quando a igualdade é alcançada, os indivíduos organizam-

se em grupos que buscam privilégios, e estes grupos se enfrentam: o combate não cessa, pois

143

Friedrich NIETZSCHE, A vontade de poder, p. 388-389. 144

Idem, A vontade de poder, p. 389-390 145

Gilles DELEUZE, Nietzsche e a filosofia, p. 92-93.

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as desigualdades reais das forças não podem ser abafadas pela igualdade estabelecida pelo

direito; o combate que era brando enfurece-se novamente. “Quer-se liberdade enquanto ainda

não se tem poder. Tendo-o, quer-se supremacia; não se a conquistando (sendo-se ainda fraco

demais para ela), quer-se “justiça”, isto é, poder igual.”146

Conclusão, a luta prossegue

sempre e sempre.

146

Friedrich NIETZSCHE, A vontade de poder, p. 390.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O fundamento do direito de resistência reside nas relações de forças, que no correr do

tempo, segundo Janine Ribeiro, são reversíveis: o problema, em razão mesmo da relação de

forças, se dá no registro da “duração”, pois, no tempo se pode fortalecer o fraco, ou se coligar

e inverter, assim, sua condição, de modo que “a submissão do vencido se dá frente ao

'iminente golpe de morte' (Leviathan,, XX, p. 255) que não lhe permite a astúcia, vigília ou

sorte.”147

De fato, parece não haver dúvidas que se pode levar a cabo um estudo da resistência

que vai de Hobbes a Foucault, passando por Nietzsche; o fio condutor, a relação das forças

que se confrontam sempre e sempre. O confronto parece ser a gênese do Estado, da sociedade,

enfim, de todas as relações, as micro-relações, que são travadas cotidianamente em todas as

camadas dos grupos de indivíduos. Onde há poder há resistência, onde há resistência há

poder; não se pode afastar os contrários tampouco evitar o confronto: a guerra não cessa; não

pode ser abafada. O caos deve se sobrepor à ordem. As forças, todas as forças, devem se

afirmar sempre e sempre: o confronto é o lugar das forças. Hobbes sabia disso. Mas viu na

guerra, ameaça e morte do grande Leviatã, e não sua origem. Preferiu abafar a guerra com

uma construção jurídica. Mas a guerra, como todo elemento real que o direito tenta ofuscar,

não pode ser deste modo superada. Onde há forças em relação, onde há poder e resistências,

sempre há vontade de potência, vontade de poder. Esta vontade de poder produz a síntese das

forças que sempre devem retornar. Sempre as forças estão em relação, seja para ordenar, seja

para obedecer, seja para dominar, seja para ser dominado; quem domina, quer mais dominar,

mas quem é dominado, quer liberdade, quer inverter o jogo da dominação: quer dominar.

Quer inverter a relação. É por isso que o jogo das forças nunca pode ter fim. Este jogo não é

linear, ele é caótico.

Foi preciso aguardar dois séculos para que esta relação das forças fosse desvendada e

desdobrada com precisão. Depois, foi preciso aguardar mais um século para que a história

fosse revista em tais termos. A luta de forças, com a diferença inicial permanente das forças,

com a sua relação, com o acaso, com a vontade de potência como o elemento genético das

forças, tudo isso como fundamento do corpo político: eis o que há. O indivíduo, como

147

Ao leitor sem medo, p. 172.

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elemento do qual, pelo qual e para o qual se devem produzir os corpos e as representações. A

luta de forças efetiva, o confronto efetivo, real, como elemento histórico e político que

efetivamente engendra o corpo político. Nada disso está explícito, mas está lá. Desde Hobbes

se pode ter noção da guerra e da política como continuação dessa guerra por outros meios.

Hobbes tinha noção; do contrário, não garantiria ao indivíduo o direito “natural” e anterior de

resistir ao poder soberano, superior a ele. Se a guerra não prossegue, não há necessidade de se

garantir a força oposta; bastaria garantir o poder. Mas não é isso que Hobbes faz. Hobbes, de

fato, garante o direito de resistência, como corolário do direito irrestrito à vida. Ora, se a

configuração da representação repousa no medo da morte violenta, e aquele que detém o

poder o faz com o fim último de garantir a vida dos verdadeiros detentores deste poder, se a

finalidade é quebrada, a configuração está desfeita. Juridicamente, parece ser fácil resolver a

equação. Mas, e do ponto de vista real? A representação não se desfaz, simplesmente porque

aquele que dela se favorece, aquele que domina, não quer deixar sua condição. As forças

reativas triunfaram ao longo da história, Nietzsche o mostra. As forças reativas privam as

forças ativas daquilo que elas podem, com isso, aparentemente as forças ficam em pé de

igualdade; ao menos até que as forças reativas assumam uma dominação: o triunfo das forças

reativas, o triunfo dos escravos.

A história está aí, é nela que a genealogia tem seu lugar. O dever de obediência, o

direito à vida, a irrenunciabilidade de direitos, em termos de comentários ou análises textuais,

dão conta do estudo da resistência na literalidade dos textos de Thomas Hobbes. Mas não

servem para apreender a resistência em toda a sua complexidade e força. A resistência está

sempre lá, onde há poder, como seu contrário, seu par contrário. Hobbes sabia que não

poderia jamais ofuscar a resistência, porque ela sempre voltaria: ela é a manifestação do

poder; sem resistência, não há poder, sem poder, não há resistência. Aí está o segredo oculto

pelo direito. O direito não pode ofuscar o brilho das forças no campo de batalha. O calor do

embate nas tribunas não se compara ao gosto do sangue adversário, do suor do rosto

embaçando os olhos, do peso das armas em um corpo cansado. A vitória no tribunal não traz a

honra da vitória ou mesmo da morte em um campo de batalha. O guerreiro assusta o jurista,

este ser medroso. Hobbes, irmão gêmeo do medo, sabia disso. As forças precisavam ser

abafadas. A guerra precisava cessar, mas as forças não poderiam ser apagadas por completo:

daí garantir a resistência. Que comentadores concordem, como diria Foucault, isto pouco

importa. O que importa é que o jogo das forças foi desvendado. As forças em constante

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relação permearam o pensamento de Hobbes, ainda que o filósofo não o exponha

expressamente em seus escritos. O que vale, não só o que está expresso, mas, e

principalmente, o que parece estar escondido. Foucault tem razão: é preciso ir aos

submundos; a interpretação não cessa jamais.

As conseqüências com a resistência em Hobbes, o indivíduo é excluído do contrato

apenas do ponto de vista metafórico, pois pode sempre e sempre lutar por força de seu direito

de resistência originário. Quando o soberano-ator contra ele, autor, se volta, juridicamente se

pode desconsiderar o pacto e contra ele resistir. Do ponto de vista genealógico, como retoma

sua liberdade, retoma o que pode, a força ativa assume-se em sua qualidade e retoma o

confronto; com isso, o jogo pode ser revirado e a força reativa devolvida ao seu lugar de

dominada: o antigo soberano pode ser decapitado. Em relação aos demais indivíduos, a

reunião de indivíduos, e o soberano, do ponto de vista jurídico, o pacto pode persistir, caso o

soberano se mantenha no poder; caso o poder seja tomado, um novo pacto será feito ou

mesmo imposto ou o poder pode ser contestado; do ponto de vista das forças, três opções:

persistem as desigualdades sutis e o confronto permanece apenas em pequenas proporções;

aceitam-se enquanto dominadas e assim se mantém até que consigam inverter as posições; ou,

partem para o confronto, resistem, reagem e se afirmam na relação. Entre todos os indivíduos

e o indivíduo resistente, segue uma relação de hostilidade: como são os autores da

representação, a luta contra o representante é também a luta contra os representados; as forças

entram em relação, aflorando as desigualdades ofuscadas pelo direito. Em síntese, a posição

que as forças assumem na relação altera por completo a relação. Mas, realmente, estas

posições somente podem ser lidas na história. A metafísica não dá conta das forças e da

realidade. Nietzsche tem muita razão.

O Estado não cai com a aceitação da resistência; se assim não o fosse, muito

provavelmente, Hobbes não a conceberia. Hobbes estava preocupado em fundar um Estado

forte, poderoso, capaz de combater, sem sucumbir, os inimigos externos e internos. A sedição

é a doença do Estado, a revolução e a revolta sua morte. Por isso, impossível se falar de

direito de resistência coletivo, como que Thamy Pogrebinschi, na filosofia política de Thomas

Hobbes. A razão aqui está com o professor Renato Janine Ribeiro. E se se concebe o corpo

político como um campo em que forças lutam constantemente, ainda assim não há que se falar

em doença deste corpo com a resistência, já que esta lhe é integra, como um dos opostos que

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em seu interior se confrontam. Ora, se qualquer relação de forças constitui um corpo político,

a posição destas forças não interfere em sua existência, mas em seus rumos. Não se trata mais

da existência ou não do corpo, mas da posição das forças que estão em relação em seu

interior. Neste caso, não há o que se discutir: a resistência não faz sucumbir o corpo. Em

síntese, seja do ponto de vista político-jurídico, seja do ponto de vista histórico-político, seja

do ponto de vista da soberania, seja do ponto de vista da genealogia, o corpo político, o

Estado, não sucumbe com o reconhecimento da resistência. O Estado, esta construção

metafórica não pode cair ao reconhecer seu fundamento: as forças individuais que travam

batalhas constantes, que entram constantemente em relação, no seu interior

Textualmente, o presente escrito buscou uma formatação um tanto original. A idéia foi

responder, ainda que não de forma direta, as perguntas enunciadas em cada título. Mas no

fundo, o que sempre se pretendeu, foi discutir temas fundamentais para a filosofia política, a

teoria do Estado, a filosofia do direito, como o Estado, o indivíduo, o poder. A discussão, de

Hobbes a Foucault, passando por Nietzsche, não de forma menos valorosa, acerca de tais

temas, tendo como ponto de apoio a idéia de resistência, o “direito” de resistência, mostrou-se

ao final muito produtiva. Por que, então, não escolher um título mais abrangente? Porque é

devido a Hobbes o seu valor de filósofo de grande valor na história da filosofia política.

Hobbes, embora muito rejeitado, não é menor que Foucault ou que Nietzsche, apenas é

diferente; suas abordagens são de outra ordem. A resistência parte de Hobbes para toda a

modernidade, da modernidade para a contemporaneidade. Hobbes é, pois, o grande pai da

filosofia política moderna. E este, não é um título senatorial, mas seu lugar de direito.

Ao que parece, o texto foi concluído de forma prematura; um fruto colhido ainda

verde. Poderia se atribuir tal fato à necessidade temporal da pós-graduação na atualidade, que

exige dos pós-graduandos a produção em um lapso não superior a dois anos, não se pôde

desdobrar muitos dos problemas suscitados no decurso do texto. Poderia ser atribuída esta

ausência total de maturidade a inúmeros fatores, mas este não é o caso. O caso é que não há

ainda, e talvez em muito não haja, e talvez ainda sequer haja um dia, maturidade para um

texto de cunho filosófico. O texto, em síntese, reflete o momento intelectual de seu autor. Mas

nem por isso se trata de um texto inacabado; se algo não está acabado e definitivamente

delineado, este algo se refere às idéias apreendidas ao longo do caminho. De fato, mais do que

o apresentado poderia ser extraído; as questões poderiam ser desdobradas com mais precisão,

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ser elencadas e escalonadas com mais precisão. Mas se assim o fosse, uma tal apresentação,

uma exposição em tais moldes não poderia ser daquele que ora escreve.

Há ainda muito caminho a ser percorrido; a maturidade está no topo de uma montanha

muito íngreme, e seu caminho é muito tortuoso, muito espinhoso, e aqueles que o conhece

sabem, com efeito, reconhecer aquele que ainda não o percorreu. Somente os mestres podem

reconhecer um discípulo, podem formá-lo, conduzi-lo ao caminho que eles mesmos

percorreram; somente os mestres podem avaliar aquele que está em busca de um caminho,

aquele que está a aprender um caminho, porque eles mesmos já buscaram – e percorreram –

um caminho Somente quem é mestre pode conhecer, reconhecer e compreender os resultados

de um discípulo, de um aluno, daquele que busca um caminho. Se não se trata de um texto em

que as idéias apreendidas estão perfeitamente delineadas, trata-se, pois de um texto em que os

caminhos que conduzem à saída do labirinto começam a ser delineados. Se não há a

profundidade de uma grande obra, há, pois, o primeiro encontro e o primeiro enfrentamento

de muitos problemas: chegou-se a encruzilhadas que somente podem ser encontradas por

quem enfrenta o desafio de tentar percorrer um caminho. Se esta tentativa não é acabada, isto

não deve ser tido como um fator predominantemente negativo, pois já se começam a mostrar

os caminhos que conduzem à saída do labirinto e ao pé da montanha. Se se empreendeu um

estudo da resistência, foi porque se queria, no fundo, ver o poder; ver o poder não como algo

em si mesmo acabado, perfeito, mas como algo que poderia ser vulnerado, ser atacado: a

resistência seria o caminho para retirar o véu que esconde as vulnerabilidades do poder.

Mas esse estudo mostrou-se ao final insuficiente não por suas limitações ou por uma

ausência de aprofundamento, mas por uma questão mais precisa: não se estudou o poder,

estudou-se apenas o oposto: a resistência. Houve, pois, apenas um estudo do oposto do poder:

a resistência. Mas o poder, o objeto de fundo, não foi observado em sua totalidade e sua

singularidade; o foi apenas de forma indireta, superficial, refletida. Estudou-se a resistência

por via de, e através de, Hobbes e, em parte, o poder por meio de Foucault. Hobbes,

tradicionalmente conhecido como o delineador do poder soberano, o “pai” da Filosofia

Política moderna, o “grande criador” do Estado moderno, foi apreendido por meio de seu

ponto mais contrário, inverso, controverso: a resistência; e Foucault, que no fundo está

preocupado com as resistências, pelo poder de certo modo em geral, algo que sempre se

negou a fazer o filósofo. Estranha, de um lado, mas original, por outro, apreensão de idéias e

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de temas. Poder pela resistência e resistência pelo poder; opostos conhecidos somente por

seus pares, o mesmo que tentar conhecer o bem pelo mal e o mal pelo bem, a luz pela

escuridão e a escuridão pela luz, etc. Em tais termos, ao que parece, a relação não pode estar

completa: falta conhecer os pares de opostos por si e em si mesmos e em relação aos

respectivos opostos: conhecer o poder pelo poder, pela resistência, e por sua relação com a

resistência, e vice-versa. Enquanto uma tal análise não for apreendida, o estudo estará

incompleto. Eis, pois, o que se pode considerar, talvez, a maior insuficiência do texto.

Para finalizar definitivamente o presente escrito, ao que tudo está a indicar, o presente

texto nada mais é, portanto, que o desdobramento de uma pura relação de forças, a descrição

de uma relação de forças, de um confronto belicoso de forças: o poder, poder soberano, de um

lado, e a resistência, resistência individual, resistências individuais, resistência de todos em

uma comunidade, de outro, enfrentando-se em um jogo pela dominação. No fundo, o que se

parece ser pretendido no texto é colocar Hobbes, aqui como precursor moderno do Estado

desde a perspectiva do poder soberano, uma perspectiva político-jurídica, em um jogo com

Foucault, estudioso das resistências desde uma perspectiva político-histórica. Como pano de

fundo do confronto, recortes, particular e parcialmente selecionados, de disposições

doutrinárias. Inconscientemente no início, mas com muita consciência no final, Hobbes e

Foucault são colocados neste jogo que é o do poder, são colocados em relação, são levados ao

teatro da representação para ali jogar; jogar o jogo das forças, regido pelas regras do

enfrentamento, as regras das forças: as regras do acaso, da desigualdade, da dominação, da

vontade de potência: as regras conhecidas através de Nietzsche.

São intencionalmente colocados para dialogar, dialogar de forma estratégica, através

de um ponto preciso: o paradigma da resistência. Foucault e Hobbes, Hobbes e Foucault, lidos

de uma maneira transversal, de forma parcial e tendenciosa, através de uma seleção de

extratos textuais estrategicamente recortados. Pintou-se um quadro para apenas ilustrar um

ponto, um personagem de certo modo coadjuvante, bem ao fundo, à esquerda do personagem

aparentemente principal, em um pequeno ponto sem muita expressão, com pouca aparência,

mas que, contudo, mostra-se aos olhos mais atentos, como o ponto principal da obra: quis-se

aqui analisar, esboçar os caminhos para o início de uma análise do poder, do poder soberano,

do poder popular, do poder em geral, das relações deste poder, do modo como este poder

opera, dos efeitos derivados deste poder. Pintou-se um quadro onde o ponto principal, o

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personagem coadjuvante apenas observa à espreita seu inimigo, se oposto: o poder espreita a

resistência, aguarda-a para novo confronto, para o confronto sem fim: a guerra segue e

prossegue sem parar, infindável; o caos não cessa de sufocar a ordem; onde se pensa haver

regras, ordenações que estabeleçam a paz, a guerra se manifesta, ela se mostra com toda sua

força; a guerra se mostra como princípio e fundamento do Estado; a guerra, esta guerra

permanente, este confronto belicoso infindável das forças, dominantes e dominadas, ativas e

reativas, dos senhores e dos escravos, estes confrontos dos opostos, este princípio

nietzscheano, esta hipótese nietzscheana, como bem afirma Foucault, este jogo sem fim, deve

se mostrar como o elemento central, delineador, para uma análise possível das relações que se

travam entre os indivíduos mais singulares, entre os grupos de indivíduos e entre as reuniões

de grupos de indivíduos: só se pode conhecer Estado e sociedade civil se se conhecer as

relações, as pequenas relações de poder que são travadas entre os indivíduos, pois a estes se

deve dar o papel central de todas as questões: é do indivíduo que se deve partir e para o

indivíduo que se deve voltar; o indivíduo deve ser absoluto.

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