carl g. jung -o homem e seus símbolos

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A Editora Nova Fronteira apresentaao público brasileiro uma das obrasfundamentais da psicanálise. Um doslivros de maior influência no progressodas ciências da psicologia analítica, nosseus revolucionários métodos atuais. Oprimeiro e único trabalho em que CarlG. Jung, o famoso psicólogo e filósofosuíço, explica ao leigo aquilo queconstitui a sua maior contribuição aoconhecimento da mente humana: a suateoria a respeito da importância dosimbolismo. Sobretudo, o simbolismodos sonhos.

O Homeme seusSímbolosCarlG.Jung

Não fora um sonho e este livro nãoteria sido escrito. Este sonho — descritona Introdução — convenc eu Jung deque ele poderia e, na verdade, deveria,expor suas idéias aos que não têmqualquer noção de psicologia. Aos 83anos, Jung concebeu este livro,inclusive as seções que entregou aoscuidados dos seus quatro maispróximos discípulos. Dedicou os últimosmeses da vida a editar esta obra e aredigir o capí tulo chave, por eleassinado . E terminou apenas dez diasantes de morrer.

Em O Homem e seus Símbolos Jungacentua que o homem só se realizaatravés do conhecimento e aceitação doseu inconsciente — conhecimento queele adquire por intermédio dos sonhose seus símbolos. Cada sonho é umamensagem direta, pessoal e significativaenviada ao sonhador. Umacomunicação que utiliza símboloscomuns a toda a humanidade, massempre de maneira individual. E que sóalcança interpretação através de um"código" inteiramente particular.

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Mais de 500 ilustraçõescomplementam o texto e fornecem um"comentário visual" ao pensamento deJung, a quem se deve os estudoscriadores sobre o "inconscientecoletivo". Mostram a natureza e afunção dos sonhos; exploram o sentidosimbólico da arte moderna e revelam asignificação psicológica dasexperiências comuns da nossa vidacotidiana. Como escreveu o autor: "...[O homem contemporâneo] nãoconsegue perceber que, apesar de todaa sua racional ização e toda a suaef iciência ,

continua possuído por 'forças' além doseu controle. Seus deuses e demôniosabsolutamente não desapareceram; têmapenas novos nomes. E conservam-noem contato íntimo com a inquietude,apreensões vagas, complicaçõespsicológicas, uma insaciávelnecessidade de pílulas, álcool, fumo,alimento e, acima de tudo, com umaenorme coleção de neurose s."Finalmente, em língua portuguesa, estaobra fundamental do nosso tempo.

Capa: Mandala Tibetana(Foto de L. Courteville-Top)

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OHomeme seusSímbolosCarl G.JungeM.-L. von Franz, Joseph L. Henderson, Jolande Jacobi, Aniela Jaffé

Tradução de Maria Lúcia Pinho

5ª EDIÇÃO

EDITORA NOVA FRONTEIRA

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Editor: Cari G. Junge, após sua morte, M. - L. von Franz

Coordenador Editorial: John Freeman

Editores da Aldus

Texto: Douglas Hill

Desenho: Michael Kitson

Pesquisa: Margery MacLaren

Auxiliares: Marian Morris, Gilbert Doei, Michael Lloyd

Conselheiros: Donald Berwick, Norman MacKenzie

Revisão: Nildon Ferreira

Produção Gráfica: Celso Nascimento

Título original em inglês:THE MAN AND HIS SYMBOLS

© 1964 Aldus Books Limited, Londres exceto o capitulo 2,intitulado "Os Mitos Antigos e o Homem Moderno", de Dr.Joseph L. Henderson. Os direitos deste capítulo sãoexpressamente negados á publicação nos Estados Unidos.

© para a língua portuguesa da Editora Nova Fronteira S.A.Rua Maria Angélica, 168 - Lagoa - CEP.: 22.461 - Tel.: 286-7822Endereço telegráfico: NEOFRONTRio de Janeiro— RJ

Impressão e Acabamento:IMPRES - S.P .

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Introdução: John Freeman

As origens deste livro, dada sua singularidade, são por si só interessantes,mesmo porque apresentam uma relação íntima entre o seu conteúdo e aquilo aqueele se propõe. Por isto, conto-lhe comoveio a ser escrito.

Num dia da primavera de 1959, a BBC (British Broadcasting Corporation)convidou-me a entrevistar o Dr. Carl Gustav Jung para a televisão inglesa. Aentrevista deveria ser feita ''em profundidade''. Naquela época, eu pouco sabia arespeito de Jung e de sua obra, e fui então conhecê-lo em sua bonita casa, àbeira de um lago, perto de Zurique. Iniciou-se assim uma amizade que teveenorme importância para mim e que, espero, tenha trazido uma certa alegria aJungnos seus últimos anos de vida. A entrevista para a televisão já não cabenestahistória a não ser para mencionar que alcançou sucesso e que este livro é, porestranha combinação de circunstâncias, resultadodaquele sucesso.

Uma das pessoas que assistiu à entrevista da TV foi Wolfgang Foges,diretor-gerente da Aldus Books. Desde a infância, quando fora vizinho dosFreuds, em Viena, Foges estivera profundamente interessado na psicologiamoderna. E enquanto observava Jung falando sobre sua vida, sua obra e suasidéias, pôs-se a lamentar que, enquanto as linhas gerais do trabalho de Freuderam bem conhecidas dos leitores cultos de todo o mundo ocidental, Jung nãoconseguira nunca chegar ao público comum e sua leitura sempre foraconsiderada extremamente difícil.

Na verdade, Foges é o criador de O Homem e seus Símbolos. Tendocaptado pela TV o afetuoso relacionamento que me ligava a Jung, perguntou-me se não me uniria a ele para, juntos, tentarmos persuadir Jung a colocaralgumas das suas idéias básicas em linguagem e dimensão acessíveis ao leitornão especializado no assunto. Entusiasmei-me com o projeto e, mais uma vez,dirigi-me a Zurique decidido a convencer Jung do valor e da importância detal trabalho. Jung, no seu jardim, ouviu-me quase sem interrupção duranteduas horas — e respondeu não. Disse-o de maneira muito gentil, mas comgrande firmeza; nunca tentara, no passado, popularizar a sua obra, e não tinhacerteza de poder, agora, fazê-lo com sucesso; e, de qualquer modo, estavavelho, cansado e sem ânimo para empreender tarefa tão vasta e que tantasdúvidas lhe inspirava.

Os amigos de Jung hão de concordar comigo que ele era um homem dedecisões positivas. Pesava cada problema com cuidado e sem pressa, masquando anunciava uma resposta, esta era habitualmente definitiva. Voltei aLondres

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bastante desapontado e convencido de que a recusa de Jung encerrava aquestão. E assimteria acontecido, não fora a interferência de dois fatores que eunão havia previsto.

Um deles foi a pertinácia de Foges, que insistiu em mais um encontro comJung antes de aceitar a derrota; o outro foi um acontecimento que ainda hojeme espanta.

O programa da televisão, como disse, alcançou muito sucesso. Trouxe aJung uma infinidade de cartas de todo tipo de gente, pessoas comuns, semqualquer experiência médica ou psicológica, que ficaram fascinadas pelapresença dominadora, pelo humor e encanto despretensioso, daquele grandehomem ; pessoas que perceberam na sua visão da vida e do ser humano algumacoisa que lhes poderia ser útil. E Jung ficou feliz, não só pelo grande número decartas (sua correspondência era imensa àquela época) mas também por teremsido mandadas por gente com quem normalmente não teria tido contato algum.

Foi nesta ocasião que teve um sonho da maior importância para ele. (E, àmedida que você for lendo este livro, compreenderá o quanto isto pode serimportante.) Sonhou que, em lugar de sentar-se no seu escritório para falar ailustrestres médicos e psiquiatras do mundo inteiro que costumavam procurá-lo,estava de pé num local público dirigindo-se a uma multidão de pessoas que oouviamcom extasiada atenção e que compreendiam o que ele dizia...

Quando, uma ou duas semanas mais tarde, Foges renovou o pedido paraque Jung se dedicasse a um novo livro destinado não ao ensino clínico ou fi-losófico, mas àquele tipo de gente que vai ao mercado, à feira, enfim, ao ho-mem comum, Jung deixou-se convencer. Impôs duas condições. Primeiro, queo livro não fosse uma obra individual, mas sim coletiva, realizada em co-laboração com um grupo dos seus mais íntimos seguidores através dos quais ten-tava perpetuar seus métodos e ensinamentos; segundo, que me fosse destinadaa tarefa de coordenar a obra e solucionar quaisquer problemas que surgissementre os autores e os editores.

Para não parecer que esta introdução ultrapassa os limites da mais razoávelmodéstia, deixem-me logo confessar que esta segunda condição me gratificou— mas moderadamente. Pois logo tomei conhecimento de que o motivo deJung me haver escolhido fora, essencialmente, por considerar-me alguém de in-teligência regular, e não excepcional, e também alguém sem o menor co-nhecimento sério de psicologia. Assim, para Jung, eu seria o "leitor de nível

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médio" deste livro; o que eu pudesse entender haveria de ser inteligível paratodos os interessados; aquilo em que eu vacilasse possivelmente pareceria difícilou obscuro para alguns.

Não muito envaidecido com esta estimativa da minha função insisti, noentanto, escrupulosamente (algumas vezes receio até a exasperação dos autores),que cada parágrafo fosse escrito e, se necessário, reescrito com uma tal clareza eobjetividade que posso afirmar com certeza que este livro, no seu todo, é real-mente destinado e dedicado ao leitor comum e que os complexos assuntos deque trata foramcuidados com rara e estimulante simplicidade.

Depois de muita discussão concordou-se que o tema geral deste livro seriao homem e seus símbolos. E o próprio Jung escolheu como seus colaboradores aDrª Marie Louise von Franz, de Zurique, talvez sua mais íntima confidente eamiga; o Dr. Joseph L. Henderson, de São Francisco, um dos mais eminentes ecreditados jungianos dos Estados Unidos; a Srª Aniela Jaffé, de Zurique, quealém de ser uma experiente analista, foi secretária particular de Jung e sua bió-grafa; e o Dr. Jolande Jacobi, que é, depois de Jung, o autor de maior númerode publicações do círculo jungiano de Zurique. Estas quatro pessoas foram es-colhidas em parte devido ao seu conhecimento e prática nos assuntos específicosque lhes foram destinados e em parte porque Jung confiava totalmente no seutrabalho escrupuloso e altruísta, sob a sua direção, como membros de um gru-po. Coube a Jung a responsabilidade de planejar a estrutura total do livro, su-pervisionar e dirigir o trabalho de seus colaboradores e escrever, ele próprio, ocapítulo fundamental: '' Chegando ao Inconsciente".

O seu último ano de vida foi praticamente dedicado a este livro; quandofaleceu, em junho de 1961, a sua parte estava pronta (terminou-a apenas dezdias antes de adoecer definitivamente) e já aprovara o esboço de todos os ca-pítulos dos seus colegas. Depois de sua morte, a Drª von Franz assumiu a res-ponsabilidade de concluir o livro, de acordo com as expressas instruções deJung. A substância de O Homem e seus Símbolos e o seu plano geral foram,portanto, traçados — e detalhadamente — por Jung. O capítulo que traz o seunome é obra sua e (fora alguns extensos comentários que facilitarão a com-preensão do leitor comum) de mais ninguém. Foi, incidentalmente, escrito eminglês. Os capítulos restantes foram redigidos pelos vários autores, sob a direçãoe supervisão de Jung. A revisão final da obra completa, depois da morte de

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Jung, foi feita pela Drª von Franz, com tal dose de paciência, compreensão ebom humor que nos deixou, a mim e aos editores, em inestimável débito.

Finalmente, quantoà essência do livro.O pensamento de Jung coloriu o mundo da psicologia moderna muito

mais intensamente do que percebem aqueles que possuem apenas co-nhecimentos superficiais da matéria. Termos como, por exemplo, "ex-trovertido", "introvertido" e "arquétipo" são todos conceitos seus que outrostomam de empréstimo e muitas vezes empregam mal. Mas a sua mais notávelcontribuição ao conhecimento psicológico é o conceito de inconsciente — não(à maneira de Freud) como uma espécie de "quarto de despejos" dos desejosreprimidos, mas como um mundo que é parte tão vital e real da vida de um in-divíduo quanto o é o mundo consciente e "meditador" do ego. E in-finitivamente mais amplo e mais rico. A linguagem e as "pessoas" do in-consciente são os símbolos, e os meios de comunicação com este mundo são ossonhos.

Assim, um estudo do homem e dos seus símbolos é, efetivamente, um es-tudo da relação do homem com o seu inconsciente. E desde que, segundo Jung,o inconsciente é o grande guia, o amigo e conselheiro do consciente, este livroestá diretamente relacionado com o estudo do ser humano e de seus problemasespirituais. Conhecemos o inconsciente e com ele nos comunicamos (um serviçobidirecional), sobretudo através dos sonhos; e do começo ao fim deste livro(principalmente no capítulo de autoria de Jung) fica patente quanta im-portância é dada ao papel do sonho na vida do indivíduo.

Seria impertinente da minha parte tentar interpretar a obra de Jung paraos leitores, muitos deles decerto bem melhor qualificados para compreendê-lado que eu. A minha tarefa, lembremo-nos, foi simplesmente servir como umaespécie de "filtro de inteligibilidade", e nunca como intérprete. No entanto,atrevo-me a expor dois pontos gerais que, como leigo, parecem-me importantese que possivelmente poderão ajudar a outros, também não especialistas na ma-téria. O primeiro destes pontos diz respeito aos sonhos. Para os jungianos o so-nho não é uma espécie de criptograma padronizado que pode ser decifrado a-través de um glossário para a tradução de símbolos. É, sim, uma expressão in-tegral, importante e pessoal de inconsciente particular de cada um e tão "real''quanto qualquer outro fenômeno vinculado ao indivíduo. O inconsciente in-

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dividual de quem sonha está em comunicação apenas com o sonhador e se-leciona símbolos para seu propósito, com um sentido que lhe diz respeito e aninguém mais. Assim, a interpretação dos sonhos, por um analista ou pelaprópria pessoa que sonha, é para o psicólogo jungiano uma tarefa inteiramentepessoal e particular (e algumas vezes, também, uma tarefa longa e ex-perimental) que não pode, em hipótese alguma, ser executada empiricamente.

Isto significa que as comunicações do inconsciente são da maior im-portância para quem sonha — o que é lógico desde que o inconsciente é pelomenos a metade do ser total — e oferece-lhe, quase sempre, conselhos ou orien-tações que não poderiam ser obtidos de qualquer outra fonte. Assim, quandodescrevi o sonho de Jung dirigindo-se a uma multidão, não estava relatando umpasse de mágica ou sugerindo que Jung fosse algum quiromante amador, e simcomo, em simples termos de uma experiência cotidiana, Jung foi "acon-selhado" pelo seu próprio inconsciente a reconsiderar um julgamento ina-dequado feito pela parte consciente de sua mente.

Resulta disto tudo que sonhar não é assunto que o jungiano consideresimples casualidade. Ao contrário, a capacidade de estabelecer comunicaçãocom o inconsciente faz parte das faculdades do homem e os jungianos "en-sinam-se" a si próprios (não encontro melhor termo) a tornarem-se receptivos aossonhos. Quando, portanto, o próprio Jung teve que enfrentar a decisão críticade escrever ou não este livro, foi capaz de buscar recursos no consciente e no in-consciente para tomar uma deliberação. E, através de toda esta obra, você vaiencontrar o sonho tratado como um meio de comunicação direto, pessoal e sig-nificativo com aquele que sonha — um meio de comunicação que usa símboloscomuns a toda a humanidade, mas que os emprega sempre de modo in-teiramente individual, exigindo para a sua interpretação uma "chave", tam-bém inteiramente pessoal.

O segundo ponto que desejo assinalar é a respeito de uma particularidadede argumentação comum a todos os que escreveram este livro — talvez a todosos jungianos. Aqueles que se limitam a viver inteiramente no mundo da cons-ciência e que rejeitama comunicação com o inconsciente atam-se a leis formais econscientes de vida. Com a lógica infalível (mas muitas vezes sem sentido) deuma equação algébrica, deduzem das premissas que adotam conclusões in-contestavelmente inferidas. Junge seuscolegasparecem-me (saibam elesou não

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disto) rejeitar as limitações deste método de argumentação. Não é que des-prezem a lógica, mas evidenciam estar sempre argumentando tanto com o in-consciente quanto com o consciente. O seu próprio método dialético é sim-bólico e muitas vezes sinuoso. Convencem não por meio do foco de luz diretodo silogismo, mas contornando, repisando, apresentando uma visão repetidado mesmo assunto cada vez de um ângulo ligeiramente diferente — até que, derepente, o leitor, que não se dera conta de uma única prova convincente, des-cobre que, sem perceber, recebeu e aceitou alguma verdade maior.

Os argumentos de Jung (e os de seus colegas) sobem em espiral por sobreum assunto como um pássaro que voeja em torno de uma árvore. No início tu-do o que vê, perto do chão, é uma confusão de galhos e folhas. Gradualmente àmedida que voa mais alto, os diversos aspectos da árvore repetindo-se formamum todo que se integra no ambiente em torno. Alguns leitores podem achar estemétodo de argumentação "em espiral" um tanto obscuro e até mesmo de-sordenado durante algumas páginas — mas penso que não por muito tempo. Éum processo característico de Jung e logo o leitor vai descobrir que está sendotransportado numa viagem persuasiva e profundamente fascinante.

Os diferentes capítulos deste livro falampor si mesmos e não pedem maiorexplicação. O capítulo do próprio Jung apresenta o leitor ao inconsciente, aosarquétipos e símbolos que constituem a sua linguagem e aos sonhos através dosquais ele se comunica.

O Dr. Henderson ilustra, no capítulo seguinte, o aparecimento de váriosarquétipos da antiga mitologia, das lendas folclóricas e dos rituais primitivos. ADrª von Franz, no capítulo intitulado "O processo da individuação", des-creve o processo pelo qual o consciente e o inconsciente do indivíduo aprendema conhecer, respeitar e acomodar-se um ao outro. Num certo sentido, este ca-pítulo encerra não apenas o ponto crucial de todo o livro, mas talvez, a essênciada filosofia de vida de Jung: o homem só se torna um ser integrado, tranquilo,fértil e feliz quando (e só então) o seu processo de individuação está realizado,quando consciente e inconsciente aprenderem a conviver em paz e completando-se um ao outro. A Srª Jaffé, tal como o Dr. Henderson, preocupa-se em de-monstrar, na estrutura familiar do consciente, o constante interesse do homem— quase uma obsessão — pelos símbolos do inconsciente. Estes símbolos exer-cem no ser humano uma atração íntima profundamente significativa e quase

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alentadora — tanto nas lendas e nos contos de fadas — que o Dr. Hendersonanalisa, quanto nas artes visuais que, como mostra a Srª Jaffé, nos recreiam e de-liciamnum apelo constante ao inconsciente.

Por fim, devo dizer algumas breves palavras acerca do capítulo do Dr. Ja-cobi, de certa forma um capítulo à parte neste livro. É, na verdade, a história re-sumida de um interessante e bem-sucedido caso de análise. É evidente o valor detal capítulo em um trabalho como este. Mas duas palavras de advertência fa-zem-se necessárias. Em primeiro lugar, como a Drª von Franz ressalta, não existeexatamente uma análise jungiana típica, já que cada sonho é uma co-municação particular e individual, e dois sonhos nunca usam da mesma ma-neira os símbolos do inconsciente. Portanto, toda análise jungiana é um casoúnico e seria ilusório considerarmos esta, retirada do fichário do Dr. Jacobi (ouqualquer outra), como "representativa" ou "típica''. Tudo o que se pode dizersobre o caso de Henry e de seus sonhos por vezes sinistros é que são um bomexemplo da aplicação do método jungiano a um determinado caso. Em se-gundo lugar, quero observar que a história completa de uma análise, mesmo deum caso relativamente simples, ocuparia todo um livro para ser relatada. Ine-vitavelmente a história da análise de Henry prejudica-se um pouco com o re-sumo feito. As referências, por exemplo, ao I Ching não estão bastante claras eemprestam-lhe um sabor de ocultismo pouco verdadeiro, por terem sido a-presentadas fora do seu contexto global. Conclui-se, no entanto — e estou certode que o leitor também há de concordar —, que, apesar destas observações, aclareza, sem falar no interesse humano, da análise de Henry muito enriquece estelivro.

Comecei contando como Jung veio a escrever O Homem e seus Símbolos.Termino lembrando ao leitor quão extraordinária — talvez única — é a pu-blicação desta obra. Carl Gustav Jung foi um dos maiores médicos de todos ostempos e um dos grandes pensadores deste século. Seu objetivo sempre foi o deajudar homens e mulheres a melhor se conhecerem para que através deste co-nhecimento e de um refletido autocomportamento pudessem usufruir vidasplenas, ricas e felizes. No fim de sua própria vida, que foi tão plena, rica e felizcomo poucas conheci, ele decidiu empregar as forças que lhe restavam para en-dereçar a sua mensagem a um público maior do que aquele que até então al-cançara. Terminou esta tarefa e a sua vida no mesmo mês. Este livro é o seu le-gado ao grande público leitor.

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Sumário

1 Chegando ao inconsciente 16

CarlG. Jung

2 Os mitos antigos e o homem moderno 100

Joseph L. Henderson

3 O processo de individuação 154

M. - L. von Franz

4 O simbolismonas artesplásticas 225

Aniel a Jaffé

5 Símbolos em uma análiseindividual 267

JolandeJacobi

Conclusão: A ciência e o inconsciente 299

M. - L. von Franz

Notas 306

Fontes iconográficas 310

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1 Chegando ao inconsciente

Carl G.Jung

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Chegando ao inconsciente

A importância dossonhos

O homem utiliza a palavra escrita ou faladapara expressar o que deseja transmitir. Sualinguagem é cheia de símbolos, mas ele também,muitas vezes, faz uso de sinais ou imagens nãoestritamente descritivos. Alguns são simplesabreviações ou uma série de iniciais como ONU,UNICEF ou UNESCO; outros são marcascomerciais conhecidas, nomes de remédiospatenteados, divisas e insígnias. Apesar de nãoterem nenhum sentido intrínseco, alcançaram, peloseu uso generalizado ou por intenção deliberada,significação reconhecida. Não são símbolos: sãosinais e servem, apenas, para indicar os objetos a queestão ligados.

O que chamamos símbolo é um termo, umnome ou mesmo uma imagem que nos pode ser fa-miliar na vida diária, embora possua conotações es-peciais além do seu significado evidente e conven-cional. Implica alguma coisa vaga, desconhecida ouoculta para nós. Muitos monumentos cretenses, porexemplo, trazem o desenho de um duplo enxó.Conhecemos o objeto, mas ignoramos suas implica-ções simbólicas. Tomemos como outro exemplo o

caso de um indiano que, após uma visita à Inglater-ra, contou na volta aos seus amigos que os britânicosadoravam animais, isto porque vira inúmeros leões,águias e bois nas velhas igrejas. Não estava informa-do (tal como muitos cristãos) que estes animais sãosímbolos dos evangelistas, símbolos provenientes deuma visão de Ezequiel que, por sua vez, tem analo-gia com Horus, o deus egípcio do Sol e seus quatrofilhos. Existem, além disso, objetos tais como a rodae a cruz, conhecidos no mundo inteiro, masque pos-suem, sob certas condições, um significado sim-bólico.

O que simbolizam exatamente ainda é motivodecontroversas suposições.

Assim, uma palavra ou uma imagem é simbó-lica quando implica alguma coisa além do seu signi-ficado manifesto e imediato. Esta palavra ou estaimagem têm um aspecto "inconsciente" mais am-plo, que nunca é precisamente definido ou de todoexplicado. E nem podemos ter esperanças de defini-la ou explicá-la. Quando a mente explora um sím-bolo, é conduzida a idéias que estão fora do alcance

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da nossa razão. A imagem de uma roda pode levarnossos pensamentos ao conceito de um sol "divino''mas,neste ponto, nossa razão vai confessar a sua in-competência : o homem é incapaz de descrever umser "divino". Quando, com toda a nossa limitaçãointelectual, chamamos alguma coisa de "divina",estamos dando-lhe apenas um nome, que poderá es-tar baseado em uma crença, mas nunca em uma evi-dênciaconcreta.

Por existirem inúmeras coisas fora do alcanceda compreensão humana é que frequentemente uti-lizamos termos simbólicos como representação deconceitos que não podemos definir ou compreenderintegralmente. Esta é uma das razões por que todasas religiões empregam uma linguagem simbólica ese exprimem através de imagens. Mas este uso cons-ciente que fazemos de símbolos é apenas um aspec-to de um fato psicológico de grande importância: ohomem também produz símbolos, inconsciente eespontaneamente, na forma de sonhos.

Não é matéria de fácil compreensão, mas épreciso entendê-la se quisermosconhecer mais a res-

peito dos métodos de trabalho da mente humana.O homem, como podemos perceber ao refletirmosum instante, nunca percebe plenamente uma coisaou a entende por completo. Ele pode ver, ouvir, to-car e provar. Mas a que distância pode ver, quãoacuradamente consegue ouvir, o quanto lhe signifi-ca aquilo em que toca e o que prova, tudo isto de-pende do número e da capacidade dos seus senti-dos. Os sentidos do homem limitam a percepçãoque este tem do mundo à sua volta. Utilizando ins-trumentos científicos pode, em parte, compensar adeficiência dos sentidos. Consegue, por exemplo,alongar o alcance da sua visão através do binóculoou apurar a audição por meio de amplificadores elé-tricos. Mas a mais elaborada aparelhagem nada podefazer além de trazer ao seu âmbito visual objetos oumuito distantes ou muito pequenos e tornar maisaudíveis sons fracos. Não importa que instru-mentos ele empregue; em um determinado mo-mento há de chegar a um limite de evidências e deconvicções que o conhecimento consciente não podetranspor.

A esquerda, três dos quatroEvangelistas (baixo-relevo daCatedral de Chartres) representadossob a forma de animais: o leão éMar cos, o boi, Lucas, a águia, João.Também como animais aparecemtrês dos filhos do deus egípcio Horus(acima, aproximadamente ano 1250A.C.). Animais e grupos de quatrosão símbolos religiosos universais.

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Representações do sol exprimem, emmuitas comunidades, a indefinívelexperiência religiosa do homem.Acima, decoração da parte posteriorde um trono, que pertence ao séculoXIV A.C. 0 faraó egípcio Tutancâmonestá dominado por um disco solar. Asmãos, em que terminam os raios,simbolizam a energia vivificante dosol. A esquerda, um monge do Japãodoséculo XX ora diante de um espelhoque representa, no xintoísmo, o Soldivino. direita, átomos de tungstênio,aumentados 2.000.000 de vezes porum microscópio. Na extrema direita asmanchas ao centro da gravura são asgaláxias mais distantes que podemosver. Não importa até onde o homemestenda os seus sentidos, semprehaverá um limite à sua percepçãoconsciente.

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Além disso, há aspectos inconscientes na nossapercepção da realidade. O primeiro deles é o fato deque, mesmo quando os nossos sentidos reagem a fe-nômenos reais, a sensações visuais e auditivas, tudoisto, de certo modo, é transposto da esfera da reali-dade para a da mente. Dentro da mente estes fenô-menos tornam-se acontecimentos psíquicos cuja na-tureza extrema nos é desconhecida (pois a psiquenão pode conhecer sua própria substância). Assim,toda experiência contém um número indefinido defatores desconhecidos, sem considerar o fato de quetoda realidade concreta sempre tem alguns aspectosque ignoramos desde que não conhecemos a nature-za extrema da matériaem si.

Há, ainda, certos acontecimentos de que nãotomamos consciência. Permanecem, por assim di-zer, abaixo do limiar da consciência. Aconteceram,mas foram absorvidos subliminarmente, sem nossoconhecimento consciente. Só podemos percebê-losnalgum momento de intuição ou por um processode intensa reflexão que nos leve à subsequente rea-lização de que devem ter acontecido. E apesar determos ignorado originalmente a sua importânciaemocional e vital, mais tarde brotam do inconscien-te como uma espécie de segundo pensamento. Estesegundo pensamento pode aparecer, por exemplo,na forma de um sonho. Geralmente, o aspecto in-consciente de um acontecimento nos é revelado a-través de sonhos, onde se manifesta não como umpensamento racional, mas como uma imagem sim-bólica. Do ponto de vista histórico, foi o estudo dossonhos que permitiu, inicialmente, aos psicólogos

investigarem o aspecto inconsciente de ocorrênciaspsíquicas conscientes.

Fundamentados nestas observações é que ospsicólogos admitem a existência de uma psique in-consciente apesar de muitos cientistas e filósofos ne-garem-lhe a existência. Argumentam ingenuamen-te que tal pressuposição implica a existência de dois"sujeitos" ou (em linguagem comum) de duas per-sonalidades dentro do mesmo indivíduo. E estão in-teiramente certos: é exatamente isto o que ela im-plica. É uma das maldições do homem moderno es-ta divisão de personalidades. Não é, de forma algu-ma, um sintoma patológico: é um fato normal, quepode ser observado em qualquer época e em quais-quer lugares. O neurótico cuja mão direita não sabeo que faz a sua mão esquerda não é o caso único. Es-ta situação é um sintoma de inconsciência geral queé, inegavelmente, herança comum de toda a huma-nidade.

O homem desenvolveu vagarosa e laboriosa-mente a sua consciência, num processo que levouum tempo infindável, até alcançar o estado civiliza-do (arbitrariamente datado de quando se inventou aescrita, mais ou menos no ano 4000 A.C.). E estaevolução está longe da conclusão, pois grandes áreasda mente humana ainda estão mergulhadas em tre-vas. O que chamamos psique não pode, de modoalgum, ser identificado com a nossa consciência e oseu conteúdo.

Quem quer que negue a existência do incons-ciente está, de fato, admitindo que hoje em dia te-mos um conhecimento total da psique. É uma su-

Á esquerda, as manchas ao centroda gravura são as galáxias maisdistantes que podemos ver. Nãoimporta até onde o homem estendaos seus sentidos, sempre haverá umlimite á sua percepção consciente.

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posição evidentemente tão falsa quanto a pretensãode que sabemos tudo a respeito do universo físico.Nossa psique faz parte da natureza e o seu enigmaé, igualmente, sem limites. Assim, não podemosdefinir nem a psique nem a natureza. Podemos,simplesmente, constatar o que acreditamos que elassejam e descrever, da melhor maneira possível, co-mo funcionam. No entanto, fora de observaçõesacumuladas em pesquisas médicas, temos argumen-tos lógicos de bastante peso para rejeitarmos afirma-ções como“não existe inconsciente”' etc. Os que fa-zem este tipo de declaração estão expressando umvelho misoneísmo — o medo do que é novo e des-conhecido.

Há motivos históricos para esta resistência àidéia de que existe uma parte desconhecida na psi-que humana. A consciência é uma aquisição muitorecente da natureza e ainda está num estágio "expe-rimental". É frágil, sujeita a ameaças de perigos es-pecíficos e facilmente danificável. Como já observa-ram os antropólogos, um dos acidentes mentaismais comuns entre os povos primitivos é o que eleschamam "a perda da alma'' — que significa, comobem indica o nome, uma ruptura (ou, mais tecnica-mente, uma dissociação) da consciência.

Entre estes povos, para quem a consciência temum nível de desenvolvimento diverso do nosso, a

"alma" (ou psique) não é compreendida comouma unidade. Muitos deles supõem que o homemtenha uma "alma do mato" (bush soul ) além dasua própria, alma que se encarna num animal selva-gem ou numa árvore com os quais o indivíduo pos-sua alguma identidade psíquica. É a isto que o ilus-tre etnólogo francês, Lucien Lévy-Bruhl chamou"participação mística". Mais tarde, sob pressão decríticas desfavoráveis, renegou esta expressão, masjulgouqueseus adversários é que estavamerrados. Éumfenômeno psicológico bem conhecido o de umindivíduo identificar-se, inconscientemente, comalguma outra pessoa ou objeto.

Esta identidade entre a gent e primitiva to -ma vári as formas. Se a alma do mato é a de umanimal , o animal passa a ser considerado uma es-pécie de irmão do homem. Supõe-se, por exem-plo, que um homem que tenha como irmão umcrocodilo, possa nadar a salvo num rio infestadopor estes animais. Se a alma do mato for uma ár-vore, presume-se que a árvore tenha uma espéciede autoridade paterna sobre aquele determinadoindivíduo. Em ambos os casos, qualquer malcausado à alma do mato é considerado uma ofen-sa ao homem.

Certas tribos acreditam que o homem temvárias almas. Esta crença traduz o sentimen to de

"Dissociação" é um fracionamento dapsique que provoca uma neurose.Encontramos um famoso exemplodeste estado na ficção, no romanceDr. Jekyll e Mr. Hyde (1886), de R.LStevenson. No livro, a "dissociação"de Jekyll se manifesta através de umatransformação física e não (como narealidade) sob a forma de umestadointerior psíquico. A esquerda, Mr.Hyde (no filme de 1932) - a "outrametade" do Dr. Jekyll.

Os povos primitivos chamam ádissociação "perda da alma".Acreditam que o homem tem uma"alma do mato", além da sua própria.A direita, um homem da tribo dosNyangas, do centro-oeste africano,usando uma máscara de calau, aveque ele identifica como a sua alma domato.Na extrema direita, diante de umpainel, telefonistas fazem váriasligações simultâneas. Neste tipo deocupação as pessoas "dissociam"parte da sua mente consciente parapoder concentrar-se. Mas é um atocontrolado e temporário, e não umadissolução espontânea e anormal.

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alguns povos primitivos de que cada um deles éconstituído de várias unidades interligadas ape-sar de distintas. Isto significa que a psique do in-divíduo está longe de ser seguramente unificada.Ao contrário, ameaça fragmentar-se muito facil-mente sob o assalto de emoções incontidas.

Estes fatos, com os quais nos familiarizamosatravés dos estudos dos antropólogos, não são tãoirrelevantes para a nossa civilização como pare-cem. Também nós podemos sofrer uma dissocia-ção e perder nossa identidade. Podemos ser do-minados e perturbados por nossos humores, outornarmo-nos insensatos e incapazes de recordar fa-tos importantes que nos dizem respeito e a ou-tras pessoas, provocando a pergunta: "Que dia-bo se passa com você?". Pretendemos ser capazesde "nos controlarmos" , mas o controle de simesmo é virtude das mais raras e extraordinárias.Podemos ter a ilusão de que nos controlamos,mas um amigo facilmente poderá dizer-nos coi-sas a nosso respeito de que não tínhamos a menorconsciência.

Não resta dúvida de que, mesmo no quechamamos "um alto nível de civilização", aconsciência humana ainda não alcançou um graurazoável de continuidade. Ela ainda é vulnerávele suscetível à fragmentação. Esta capacidade que

temos de isolar parte de nossa mente é, na verdade,uma característica valiosa. Permite que nosconcentremos em uma coisa de cada vez, ex-cluindo tudo o mais que também solicita a nossaatenção. Mas existe uma diferença radical entreuma decisão consciente, que separa e suprimetemporariamente uma parte da nossa psique, euma situação na qual isto acontece de maneiraespontânea, sem o nosso conhecimento ou con-sentimento e mesmo contra as nossas intenções.O primeiro processo é uma conquista do ser civi-lizado, o segundo é aquela "perda da alma" dosprimitivos e pode ser causa patológica de umaneurose.

Portanto, mesmo nos nossos dias, a unidadeda consciência ainda é algo precário e que podeser facilmente rompido. A faculdade de contro -lar emoções que, de um certo ponto de vista, émuito vantajosa, seria, por outro lado, uma qua-lidade bastante discutível já que despoja o rela-cionamento humano de toda a sua variedade, detodo o colorido e de todo o calor.

É sob esta perspectiva que devemos exami-nar a importância dos sonhos — fantasias incons-cientes, evasivas, precárias, vagas e incertas donosso inconsciente. Para melhor explicar meuponto de vista gostaria de contar como ele se foi

«

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desenvolvendo com o passar dos anos e comocheguei à conclusão de que os sonhos são o maisfecundo e acessível campo de exploração paraquem deseje investigar a faculdade de simboliza-ção do homem.

Sigmund Freud foi o pioneiro, o primeirocientista a tentar explorar empiricamente o se-gundo plano inconsciente da consciência. Traba-lhou baseado na hipótese de que os sonhos nãosão produto do acaso, mas que estão associados apensamentos e problemas conscientes. Esta hi-pótese nada apresentava de arbitrária. Firmava-se na conclusão a que haviam chegado eminentesneurologistas (como Pierre Janet, por exemplo)de que os sintomas neuróticos estão relacionadoscom alguma experiência consciente. Parece mes-mo que estes sintomas são áreas dissociadas da nossaco ns ci ên ci a qu e, nu m ou tr o mo me nt o esob condições diferentes, podem tornar-se cons-cientes.

Antes do início deste século, Freud e JosefBreuer haviam reconhecido que os sintomas neu-róticos - histeria, certos tipos de dor e compor-tamento anormal - têm, na verdade, uma sig-nificação simbólica. São, como os sonhos, ummodo de expressão do nosso inconsciente. E sãoigualmente simbólicos. Um paciente, por exemplo,que enfrenta uma situação intolerável pode terespasmos cada vez que tenta engolir : "não podeengolir" a situação. Em condições psicológicasanálogas, outro paciente terá acesso de asma: ele"não pode respirar a atmosfera de sua casa". Umterceiro sofre de uma estranha paralisia naspernas: não pode andar, isto é, "não podecontinuar assim". Um quarto paciente, que vomitao que come, "não pode digerir" um determinadofato. Poderia citar inúmeros exemplos deste gênero,mas estas reações físicas são apenas uma das formaspelas quais se manifestam os problemas que nosafligem inconscientemente.

1 Sigmund Freud (Viena)2 Otto Rank (Viena)3 Ludwig Binswanger (Kreuziling)4 A. A. Brill

5 Max Eitingon (Berlim)6 James J. Putnam (Boston)7 Ernest Jones (Toronto)8 Wilhelm Stekel (Viena)

9 Eugen Bleuler (Zurique)10 Emma Jung (Kúsnacht)11 Sandor Ferenczi (Budapeste)12 C. G. Jung (Kúsnacht)

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Eles se expressam, com muito mais frequência,nos sonhos.

Qualquer psicólogo que tenha ouvido váriasdescrições de sonhos sabe que os seus símbolosexistem numa variedade muito maior que os sin-tomas físicos da neurose. Consistem, inúmerasvezes, de elaboradas e pitorescas fantasias. Mas seo analista que se defronta com este material oní-rico usar a técnica pessoal de Freud da "livre as-sociação" vai perceber que os sonhos podem,eventualmente, ser reduzidos a certos esquemasbásicos. Esta técnica teve uma importante funçãono desenvolvimento da psicanálise, pois permi-tiu que Freud usasse os sonhos como ponto departida para a investigação dos problemas in-conscientes do paciente.

Freud fez a observação simples, mas profun-da, de que se encorajarmos o sonhador a comen-tar as imagens dos seus sonhos e os pensamentosque elas lhe sugerem ele acabará por "entregar-se", revelando o fundo inconsciente dos seusmales, tanto no que diz quanto no que deixa de-liberadamente de dizer. Suas idéias poderão pa-recer irracionais ou despropositadas, mas, depoisde um certo tempo, torna-se relativamente fácildescobrir o que ele está querendo evitar, o pensa-mento ou experiência desagradável que está re-primindo. Não importa como vai tentar camuflartudo isto, o que quer que diga apontará semprepara o cerne das suas dificuldades. Um médicoestá tão habituado ao lado avesso da vida que eleraramente se distancia da verdade quando inter -

preta as insinuações do seu paciente como sinto-mas de uma consciência inquieta. E o que acabapor descobri r vai conf irmar , infelizmente, assuas previsões.

Até aqui nada se pode objetar contra a teo-ria de Freud sobre a repressão e a satisfação ima-ginária dos desejos como origens evidentes dosimbolismo dos sonhos.

Freud atribui aos sonhos uma importânciaespecial como ponto de partida para o processoda livre associação. Mas, depois de algum tempo,comecei a sentir que esta maneira de utilizar a ri-queza de fantasias que o inconsciente produzdurante o nosso sono era, a um tempo, inade -quada e ilusória. Minhas dúvidas surgiram quan-do um colega contou-me uma experiência queteve numa longa viagem de trem através da Rús-sia.

Apesar de não conhecer a língua e nemmesmo decifrar os caracteres do alfabeto cirílico,ele começou a divagar em torno das estranhasletras dos anúncios das estações por onde pas-sava, e acabou caindo numa espécie de devaneio,pondo-se a imaginar todo ripo de signifícação paraaquelas palavras.

Uma idéia leva a outra e, neste estado de re-laxamento em que se encontrava, descobriu queesta livre associação despertara nele muitas lem-branças antigas . Ent re elas , ficou de -sagradavelmente surpreendido com a descobertade alguns assuntos bem incômodos e há muitosepultados na sua memó ria — coisas que de-

À esquerda, muitos dos precursoresda psicanálise moderna, fotografadosem 1 9 1 1 , no Congresso dePsicanálise de Weimar, Alemanha. Aindicação numérica identifica algumasdas personalidades mais conhecidas.

À direita, o teste do "borr ão detinta", projetado pelo psiquiatra suíçoHermann Rorschach. O formato damancha pode servir de estímulo alivres associações. Na verdade,qualquer forma irregular e acidental écapaz de desencadear um processoassociativo. Leonardo da Vinciescreveu no seu Caderno de Notas:"Não deve ser difícil a você pararalgumas vezes para olhar as manchasde uma parede, ou as cinzas de umafogueira, ou as nuvens, a lama eoutras coisas no gênero nas quais . . .vai encontrar idêias verdadeiramentemaravilhosas."

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sejara esquecer e que conseguira esquecer cons-cientemente. Na verdade, chegar ao que os psi-cólogos chamariam de seus "complexos" — istoé, temas emocionais reprimidos capazes de pro-vocar distúrbios psicológicos permanentes oumesmo, em alguns casos, sintomas de neurose.

Este episódio alertou-me para o fato de quenão seria necessário utilizar o sonho como pontode partida para o processo da livre associaçãoquando se quer descobrir os complexos de umpaciente. Mostrou-me que podemos alcançar ocentro diretamente de qualquer dos pontos deuma circunferência , a partir do alfabeto cirílico,de meditações sobre uma bola de cristal, de ummoinho de orações dos lamaístas, de um quadromoderno ou, até mesmo, de uma conversa oca-sional a respeito de qualquer banalidade. O so-nho não vai ser neste particular mais ou menosútil do que qualquer outro ponto de partida quese tome. No entanto, os sonhos têm uma sig-nific ação própria, mesmo quando provocadospor alguma perturbação emocional em que es-tejam também envolvidos os complexos ha-bituais do indivíduo . (Os complexos habituaisdo indivíduo são pontos sensíveis da psique quereagem mais rapidamente aos estímulos ou per-turbações externas.) É por isto que a livre as-sociação pode levar de um sonho qualquer aospensamentos secretos mais críticos.

Nesta altura ocorreu-me, no entanto, que seaté ali eu estivera certo, podia-se razoavelmentededuzir que os sonhos têm uma função própria,mais especial e significativa. Muitas vezes os so-nhos têm uma estrutura bem definida, com umsentido evidente indicando alguma idéia ou in-tenção subjacente — apesar de estas últimas nãoserem imed iatamente inte ligíveis . Comecei ,pois, a considerar se não deveríamos prestar maisatenção à forma e ao conteúdo do sonho em vezde nos deixarmos conduzir pela livre associação

Dois possíveis estímulos da livreassociação: o disco de orações de ummendigo do Tibete (à esquerda) ou abola de cristal de uma quiromante (àdireita, uma moderna quiromante deuma feira inglesa).

de uma série de idéias para então chegar aoscomplexos, que poderiam ser facilmente atin-gidos também por outros meios.

Este novo pensamento foi decisivo para odesenvolvimento da minha psicologia. A partirdeste momento desis ti, gradualmente , de seguiras associações que se afastassem muito do textode um sonho. Preferi, antes, concentrar-me nasassociações com o próprio sonho, convencido deque o sonho expressaria o que de específico o in-consciente estivesse tentando dizer.

Esta mudança de atitude acarretou umaconsequente mudança nos meus métodos, umanova técnica que levava em conta todos os váriose amplos aspectos do sonho. Uma história nar-rada pelo nosso espírito consciente tem início,meio e fim; tal não acontece com o sonho. Suasdimensões de espaço e tempo são diferentes. Paraentendê-lo é necessário examiná-lo sob todos osseus aspectos — exatamente como quando to-mamos um objetivo desconhecido nas mãos e oviramos e revirámos até nos familiarizarmos comcada detalhe.

Talvez, agora, eu já tenha dito o suficientepara most rar como, cada vez mais , foi au-mentando a minha discordância da livre as-sociação, tal como Freud a utilizara inicialmente.Eu desejava manter-me o mais próximo possíveldo sonho, excluindo todas as idéias e associações

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irrelevantes que ele pudesse evocar. É verdadeque tais idéias e associações podem levar-nos aoscomplexos do paciente, mas eu tinha em menteum objetivo bem mais avançado do que a des-coberta de complexos causadores de distúrbiosneuróticos. Há muitos outros meios de identifi-cação dos complexos: os psicólogos, por exem-plo, pode m obter todas as indicações e re-ferências de que necessitam utilizando os testes deassociação de palavras (perguntando ao pa-ciente o que ele associa a um determinado grupode palavras e estudando , então, as suas res-postas). Mas para conhecer e entender a or-ganização psíquica da personalidade global deuma pessoa é importante avaliar quão relevante éa funçãode seus sonhose imagens simbólicas.

A maioria das pessoas sabe, por exemplo,que o ato sexual pode ser simbolizado por umaimensa variedade de imagens (ou representadosob forma alegórica). Cada uma destas imagenspode, por um processo associativo, levar à idéiada relação sexual e aos complexos específicos queincluem no comportamento sexual de um in-divíduo. Mas, da mesma maneira, podemos de-senterrar estes complexos graças a um devaneioem torno de um grupo de letras indecifráveis doalfabeto russo. Fui, assim, levado a admitir queum sonho pode conter outra mensagem além deuma alegoria sexual, e que isto acontece por mo-tivos determinados. Para ilust rar esta obser-vação:

Um homem sonha que enfiou uma chave nu-ma fechadura, ou que está empunhando um pe-sado pedaço de pau, ou que está forçando uma por-ta com uma aríete. Cada um destes sonhos pode serconsiderado uma alegoria, um símbolo sexual. Maso fato de o inconsciente ter escolhido, por vontadeprópria, uma destas imagens específicas — a chave,o pau, ou o aríete — é também de maior sig-nificação. A verdadeira tarefa é compreender por

Uma das inúmeras imagens simbólicasou alegóricas do ato sexual é a caça aoveado. À direita, detalhes de um quadrodo pintor quinhentista alemão Cranach.As implicações sexuais com a caçada aoveado estão acentuadas em umacanção folclórica medieval chamada: 0Guardador. Na primeira corça em queatirou ele não acertou.

A segunda que ele parou, elebeijou.E a terceira fugiu para o coração de

um jovem.E ficou, oh, entre as verdes

folhas.

que a chave foi escolhida em lugar do pau, ou porque o pau em lugar do aríete. E vamos algumas ve-zes descobrir que não é ato sexual que ali está re-presentado, mas algum aspecto psicológico in-teiramente diverso.

Concluí, seguindo esta linha de raciocínio,que só o materia l que é parte clara e visível deum sonho pode ser utilizado para a sua in-terpretação. O sonho tem seus próprios limites.Sua própria forma específica nos mostra o que aele pertence e o que dele se afasta. Enquanto alivre associação, numa espécie de linha em zi-guezague, nos afasta do material original do so-nho, o método que desenvolvi se assemelha mais aum movimento circunvolutório cujo centro é aimagem do sonho. Trabalho em redor da imagemdo sonho e desprezo qualquer tentativa do so-nhador para dela escapar. Inúmeras vezes, na minhaatividade profissional, tive de repetir a frase: "Va-mos volta r ao seu sonho. O que dizia osonho?"

Um paciente meu, por exemplo , sonhoucom uma mulher desgrenhada, vulgar e bêbada.No sonho parecia ser a sua própria mulher, ape-sar de estar casado, na vida real, com pessoa in-teiramente diferente. Aparen temente, portanto,o sonho era de uma falsidade chocante e o pa-ciente logo o rejeitou como uma fantasia tola. Se,como médico , eu tivesse in ic iado um pro -cesso de associação, ele inevitavelmente teria

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Uma chave na fechadura pode ser umsímbolo sexual, mas não invariavelmente.À esquerda, detalhe do retábulo de umaltar pelo artista quatrocentista flamengoCampin. A porta simbolizaria a esperança,a fechadura significaria a caridade, e achave, o desejo de encontrar Deus.Abaixo, um bispo britânico ao consagraruma igreja cumpre uma cerimôniatradicional batendo na porta do templocom o báculo que, obviamente, não ésímbolo fálico, mas símbolo deautoridade, o cajado do pastor. Não sepode dizer de nenhuma imagem simbólicaque ela tenha um significado universal edogmático.

Anima é o elemento feminino noinconsciente masculino (tanto a animaquanto o animus do inconscientefeminino são discutidos no capítulo 3).Esta dualidade interior é simbolizada,muitas vezes, por uma figurahermafrodita, como a que está à direita,ao alto, reproduzida de um manuscritoalquímico do século XVII. À direita, umaimagem física da "bissexualidade"psíquica do homem: uma célula humanacom os seus cromossomas. Todoorganismo tem dois grupos decromossomas, um de cada um dosprogenitores.

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ten tad o afa sta r-se o mai s pos sível da de -sagradável sugestão do sonho. Neste caso, teriaacabado por chegar a um dos seus complexos bá-sicos - complexo que, possivelmente, nada teriaa ver com sua mulher - e nada saberíamos entãoa respeito do significado especial daqueledeterminado sonho.

O que queria, então, o seu inconscientetransmitir com aquela declaração obviamente in-verídica? De uma certa forma, expressava cla-ramente a idéia de uma mulher degenerada, in-timamente ligada à vida do sonhador. Mas desdeque a imagem era realmente inexata e não haviajustificativa na sua projeção sobre a mulher domeu paciente, eu precisava procurar noutro lugar

o que representaria aquela figura repulsiva.Na Idade Média, muito antes de os filósofos

terem demonstrado que trazemos em nós, de-vido a nossa estrutura glandular, ambos os ele-mentos - o masculino e o feminino -, dizia-se que"todo homem traz dentro de si uma mulher". Éa este elemento feminino, que há em tod ohomem, que chamei "an ima". Este aspecto"feminino" é, essencialmente, uma certa maneira,inferior, que tem o homem de se relacionar com oseu ambiente e, sobretudo com as mulheres, e queele esconde tanto das outras pessoas quanto delemesmo. Em outras palavras, apesar de apersonalidade visível do indivíduo parecernormal, ele poderá estar escondendo dos outros —e mesmo dele próprio — a deplorável condição dasua “mulher interior''.

Foi o que aconteceu com meu paciente: oseu lado feminino não era dos melhores. E o seusonho estava lhe dizendo: "Você está se com-portando, em certos aspectos, como uma mulherdegenerada", dando-lhe assim um choque pro-positado. (Não se deve concluir por este exemploque o nosso inconsciente esteja preocupado comsanções "morai s". O sonho não pretendia dizerao paciente que "se compor tasse melhor '': es-tava tentando, simplesmente, contrabalançar anatureza mal-equi librada da sua consciência ,que alimentava a simulação do doente de sersempre um perfeito cavalheiro.)

É fáci l compreender por que quem sonhatem tendência para ignorar e até rejeitar a men-sagem do seu sonho. A consciência resiste, na-turalmente, a tudo que é inconsciente e des-conhecido. Já assinalei a existência, entre os po-vos primitivos, daquilo a que os antropólogos cha-mam "misoneísmo", um medo profundo esupersticioso ao novo. Ante acontecimentos de-sagradáveis, os primitivos têm as mesmas reaçõesdo animal selvagem. Mas o homem "civilizado"reage a idéias novas da mesma maneira, er-guendo barreiras psicológicas que o protegem dochoque trazido pela inovação. Pode-se fa-cilmente observar este fato na reação do in-divíduo ao seu próprio sonho, quando ele é o-brigado a admiti r algum pen samento ines-perado. Muitos pioneiros da filosofia, da ciênciae mesmo da literatura têm sido vítimas desteconservadorismo inato dos seus contemporâneos.A psicologia é uma das ciências mais novas e, portratar do funcionamento do inconsciente, en-controu inevitavelmente o misoneísmo na suaforma mais extremada.

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O passado e o futuro no inconsciente

Esbocei, até aqui, alguns dos princípios em queme baseei para chegar ao problema dos sonhos,pois quando se deseja invest igar a faculdadehumana de produzir símbolos os sonhos são,comprovadamente, o material fundamental emais acessível para isto. Os dois pontos essenciaisa respeito dos sonhos são os seguintes: emprimei ro lugar , o sonho deve ser tratado comoum fato a respeito do qual não se fazem suposi-ções prévias, a não ser a de que ele tem um certosentido; em segundo lugar, é necessário aceitar-mos que o sonho é uma expressão específica doinconsciente.

Dificilmente poder-se-á expor estes princí-pios de maneira mais despretensiosa. E mesmoque algumas pessoas menosprezem o incons-ciente, têm que admitir que é válido investigá-lo; o inconsciente está, pelo menos, no mesmonível do piolho que, afinal, desfruta do interessehonesto do entomologista. Se aqueles que pos-suem pouca experiência e escassos conhecimen-tos a respeito dos sonhos consideram-nos apenasocorrências caóticas, sem qualquer significação,têm toda a liberdade de fazê-lo. Mas se julgar-mos o sonho um acontecimento normal (o que,na verdade, ele é) temos de pondera r que ou eleé causal — isto é, há uma causa racional para asua existência — ou, de um certo modo, inten-cional . Ou ambos.

Vamos agora observar um pouco mais deperto os diversos modos pelos quais se ligam osconteúdos conscientes e inconscientes da nossamente. Tomemos um exemplo com que estamostodos famil iarizados. De repente não podemoslembrar do que íamos dizer, apesar de há instan-tes o pensamento estar perfeitamente claro. Outalvez queiramos apresentar um amigo e o seunome nos escape na hora de pronunciá -lo. Dire-mos que não conseguimos nos lembrar, mas narealidade, o pensamento tornou-se inconscienteou, pelo menos, mome ntaneamente separadodo consciente. Ocorre o mesmo fenômeno comos nossos sentidos. Se ouvirmos uma nota contí-nua emitida no limite da audibil idade o som pa-rece interromper-se a intervalos regulares paracomeçar de novo. Estas oscilações são causadaspor uma diminuição e um aumento periódicosda nossa atenção e não por qualquer modifica-ção na nota.

Quando alguma coisa escapa da nossa cons-ciência esta coisa não deixou de existir, do mes-mo modo que um automóvel que desaparece naesquina não se desfez no ar. Apenas o perdemosde vista. Assim como podemos, mais tarde, vernovamente o carro, assim também reencontra-mos pensamentos temporariamente perdidos.

Parte do inconsciente consiste, portanto, deuma profusão de pensamentos, imagens e im-

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pressões provisoriamente ocultos e que, apesarde terem sido perdidos, continuam a influenciarnossas mentes conscientes. Um homem desaten-to ou "distraído" pode atravessar uma sala parabuscar alguma coisa. Pára, parecendo perplexo;esqueceu o que buscava. Suas mãos tateiam pe-los objetos de uma mesa como se fosse um so-nâmbulo; não se lembra do seu objetivo inicial,mas ainda se deixa , inconscientemente , guiarpor ele. Percebe então o que queria. Foi a sua in-consciência que o ajudou a lembrar-se.

Se observarmos o comportamento de umapessoa neurótica podemos vê-la fazendo muitascoisas de modo aparentemente intencional econsciente. No entanto, se a questionarmos des-cobriremos que ou não tem consciência algumadas ações praticadas ou então que pensa em coi-sas bem diferentes. Ouve, mas está surda, vê, masestá cega, sabe e parece ignorante. Estes exem-plos são tão frequentes que o especialista logocompreende que o que está contido inconscien-temente no nosso espírito comporta -se como sefora consciente e que nunca se pode ter certeza,em tais casos, de pensamento, fala ou ação cons-cientes ou não.

É este tipo de comportamento que leva tan-tos médicos a rejeitarem as afirmações de pacien-tes histéricos como se fossem mentiras. Tais pes-soas certamente arquitetam maio r número de

inexatidões do que a maioria de nós, mas “men-tira” dificilmente será a palavra certa a empre -gar. De fato, o seu estado mental provoca umaconduta indecisa, já que a sua consciência estásujeita a eclipses imprevisíveis causados por in-terferências do inconsciente. Até mesmo as sen-sações da pele de tais pessoas podem revelar se-melhantes flutuações perceptivas. A pessoa his-térica pode, num determinado momento, senti ra agulha com que lhe picam o braço, e em outronada sentir. Se for possível fixarmos sua atençãonum determinado ponto, seu corpo inteiro podeficar anestesiado até haver um relaxamento natensão que causou aquele adormecimento dossentidos. A percepção sensorial é, então, ime-diatamente restaurada. Durante todo o tempo, noentanto, o doente sabe , inconscientemente, oque lhe está acontecendo.

O médico observa claramente todo esteprocesso quando hipnotiza um paciente. E fácildemonstrar que o paciente registrou todos os de-talhes. A picada no braço ou um comentário fei-to durante o eclipse da consciência podem serlembrados, tão exatamente como se não tivessehavido anestesia ou "esquecimento". Lembro-me de uma mulher que chegou à clínica em es-tado de comple ta letargia. Quando, no dia se-guinte, recobrou a consciência, sabia quem era,mas não sabia onde estava, nem como e por que

0 "misoneísmo", medo e ódioirracionais a idéias novas, foi umgrande obstáculo á aceitação geralda moderna psicologia. Também ateoria evolucionista de Darwin sofreuesta oposição — um professor norte-americano, chamado Scopes, foijulgado em 1925 por ter ensinado aevolução. Na extrema esquerda, oadvogado Clarence Darrowdefendendo Scopes. Ao centro, opróprio Scopes. Também contraDarwin é a caricatura, á esquerda, deum número da revista inglesa Punchde 1861. À direita, sátira aomisoneísmo pelo humoristaamericano James Thurber, cuja tia(segundo ele) tinha medo de que aeletricidade "estivesse vazando portoda a casa".

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ali se encontrava; não se lembrava sequer da da-ta. No entanto, depois que eu a hipnot izei, dis -se-me por que ficara doente, como chegara à clí-nica e quem a recebera. Todos estes detalhes pu-deram ser comprovados. Ela foi até capaz de di-zer a hora em que chegara à clínica, porque ha-via um relógio no hall de entrada. Hipnotizada,sua memória mostrava-se tão clara como se esti-vesse estado totalmente consciente o tempo in-teiro.

Quando se discute este assunto traz-se, ha-bitualmente, o testemunho da observação clíni -ca. Por esta razão, muitos críticos alegam que oinconsciente e todas as suas sutis manifestaçõespertencem, unicamente, à esfera da psicopatolo-gia. Consideram qualquer express ão do incons-ciente como um sintoma de neurose ou de psico-se, que nada teria a ver com o estado mental nor-mal. Mas os fenômenos neuróticos não são, demodo algum, produtos exclusivos de uma doen-ça. São, na verdade, apenas exageros patológicosde ocorrências normais; e é apenas por seremexageros que se mostram mais evidentes do queseus correspondentes normais. Sintomas histé -ricos podem ser observados em qualquer pessoanormal , mas são tão diminutos que em geralpassam despercebidos.

O ato de esquecer, por exemplo, é um pro-cesso normal, em que certos pensamentos cons-cientes perdem a sua energia específica devido aum desvio da nossa atenção. Quando o interessese desloca deixa em sombra as coisas de queanteriormente nos ocupávamos, exatamentecomo um holofote ao iluminar uma nova áreadeixa uma outra mergulhada em escuridão. Istoé ine-

vitável, pois a consciência só pode conservar ilu-minadas algumas imagens de cada vez e, mesmoassim, com flutuações nesta claridade. Os pensa-mentos e idéias esquecidos não deixaram deexistir. Apesar de não se poderem reproduzir àvontade, estão presentes num estado subliminar— para além do limiar da memória — de ondepodem tornar a surgir espontaneamente a qual-quer momento, algumas vezes anos depoi s deum esquecimento aparentemente total .

Refiro-me aqui a coisas que vimos e ouvi-mos conscientemente e que, a seguir, esquece-mos. Mas todos nós vemos, ouvimos, cheiramose provamos muitas coisas sem notá-las na oca-sião, ou porque a nossa atenção se desviou ouporque, para os nossos sentidos, o estímulo foidemasiadamente fraco para deixar uma impres-são consciente. O inconsciente, no entanto, to-mou nota de tudo, e estas percepções sensoriaissubliminares ocupam importante lugar no nossocotidiano. Sem o percebermos, influenciam amaneira por que vamos reagir a pessoas e fatos.

Um exemplo, que considero part icula r-mente significativo, foi-me dado por um profes -sor que estivera passeando no campo, com umdos seus alunos, absorvido em uma séria conver-sação. De repente, verificou que seus pensamen-tos estavam sendo interrompidos por uma sériede inesperadas lembranças da sua infância. Nãoconseguia justi ficar tal distração. Nada do queaté então estivera discutindo tinha qualquer li-gação com aquelas lembranças. Olhando paratrás do caminho percorrido, viu que haviam pas-sado por uma fazenda, quando surgira a primei-ra destas recordações da sua infância. Propôs ao

Em casos pronunciados de histeriacoletiva (antigamente chamava-se"estar possuído") a consciência e apercepção-sensorial comum parecemeclipsar-se. À esquerda, o frenesi deuma dança de espadas balinesa fazcom que os dançarinos entrem emtranse e, algumas vezes, voltem assuas armas contra si próprios. Ãdireita, o rock and roll, quandoestava no auge do sucesso e pareciaprovocar uma excitação análoga.

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Entre os povos primitivos, "estarpossuído" significa que um deus oudemônio apossou-se de um corpohumano. Acima, á esquerda, umamulher haitiana desmaia emêxtasereligioso. Acima, no centro e á direita,haitianos possuídos pelo deus Gheda,que se manifesta sempre nesta posição— pernas cruzadas cigarro na boca.

À esquerda, um culto religioso noTennessee, E.U.A., em que seguraremserpentes venenosas faz parte dealgumas cerimônias. A histeria éprovocada pela música, pelo canto e porpalmas. As serpentes passam de mão emmão (e algumas vezes os participantessão fatalmente mordidos pelas cobras).

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aluno que retornassem ao local onde se haviaminiciado aquelas fantasias. Chegando lá, sentiuum cheiro de gansos e, imedia tamente, perce -beu que este cheiro desencadeara a série de re-cordações.

Na sua juventude, ele vivera numa fazendaonde criavam gansos e o seu odor característicolhe deixara uma impressão duradoura, apesar deadormecida. Ao passar pela fazenda naquela ca-minhada, regis trar a subl iminarmente aquelecheiro, e esta percepção inconsciente despertouexperiências da sua infância há muito esqueci-das. A percepção foi subliminar porque a aten-ção estava concentrada em outra coisa qualquere o estímulo não fora bastante forte para desviá -la, alcançando diretamente a consciência. Noentanto, trouxe à tona "esquecidas" lembran-ças.

Este efeito de sugestão ou de uma espéciede "detonação" é capaz de explicar o apareci -mento de sintomas neuróticos e também de ou-tras recordações benignas quando se avista algu-ma coisa , ou se sente um odor, ou se ouve umsom que lembre circunstâncias passadas. Umajovem, por exemplo, pode estar trabalhando noseu escri tório , aparentemente gozando de boasaú de e bom hum or. Moment os depois , pode

estar com uma dor de cabeça terrível e revelandooutros sinais de angústia. Sem que o percebesseconscientemente, ouvira a sirene distante de umnavio, recordando-se inconscientemente da tristedespedida de um homem de quem tentava seesquecer.

Além do esquecime nto normal, Freuddescreveu vários casos de "esquecimento" delembranças desagradáveis - recordações que es-tamos pront os a per der . Como obs ervouNietzsche, quando o orgulho está em causa amemória prefere ceder. Assim, entre as recorda-ções perdidas encontramos várias cujo estadosubliminar (e que não podemos reproduzir vo-luntariamente) se deve à sua natureza de origemdesagradável. Os psicólogos lhes chamam con-teúdos recalcados.

Bom exe mplo é o da secretária que temciú mes de uma das sócias do seu pat rão.Hab itu almente ela se esquece de convida rest a pessoa pa ra reuniões, apesa r de o nomeestar nit idame nte marcado na lis ta queutili za. Se inter pel ada sobre est e fat o dir á,simple smente , que se "es que ceu" ou que a"perturbaram" no momento. Ja mai s admite— nem par a si mes ma — o mot ivo real desua omis são.

Os carrinhos miniatura que, nesteanúncio, formam o emblema daVolkswagem podem "detonar" noespírito do leitor recordaçõesinconscientes de sua infância. Seforem lembranças agradáveis, oprazer estará associado(inconscientemente) ao produto e àmarca.

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Muitas pessoas superestimam erradamenteo papel da força de vontade e julgam que nadapoderá acontecer à sua mente que não seja pordecisão e intenção próprias. Mas precisamos a-prender a distinguir cuidadosamente entre oconteúdo intencional e o conteúdo involuntárioda mente. O primeiro se origina da personalida-de do ego; o segundo, no ent ant o, nasce deuma fonte que não é idêntica ao ego, mas à sua"outra face". É esta "outra face" que faz a se-cretária esquecer os convites.

Há muitas razões para esquecermos coisasque notamos ou experimentamos. E há igualnúmero de maneiras pelas quais elas podem serrelembradas. Um exemplo interessante é o dacriptomnésia, ou "recordação escondida". Umautor pode estar escrevendo de acordo com umplano preestabelecido, trabalhando num deter-minado argumento ou desenvolvendo a tramade uma história quando, de repente, muda derumo. Talvez lhe tenha ocorrido alguma novaidéia, ou uma imagem diferente ou um enredosecundário inteiramente inédito. Se lhe pergun-tarmos o que ocasionou esta digressão ele não se-rá capaz de o dizer. Talvez nem mesmo tenhanotado a mudança, apesar de ter escrito algo in-teiramente novo e do qual não possuía, aparen-temente, nenhum conhecimento anter ior. Noentanto pode-se, muitas vezes, provar-lhe que oque acabou de escrever tem uma enorme seme-lhança com o trabalho de outro escritor — traba-lho que crê nunca ter visto.

Eu mesmo encontrei um exemplo fascinantedeste processo, no livro de Nietzsche, AssimFalou Zaratustra, onde o autor reproduz quaseliteralmente um incidente rela tado num diári ode bordo, no ano de 1686. Por mero acaso euhavia lido um resumo desta história num livropublicado em 1835 (meio século antes do livrode Nietzsche) . Quando encontre i a mesma pas-sagem em Assim Falou Zaratustra espantei-mecom o estilo, tão diverso do de Nietzsche. Con-venci-me de que também Nietzsche lera aqueleantigo livro, apesar de não lhe ter feito qualquerreferência. Escrevi à sua irmã, que ainda vivianaquela ocasião, e ela me confirmou que, naverdade, o livro fora lido tanto por ela quantopelo irmão, quando este tinha 11 anos. Verifica-se, pelo contexto, que é inconcebível pensar queNietzsche tivesse qualquer idéia de estar pla-giando aquela história . Creio que, simplesmen-te, cinquenta anos mais tarde, a história entrouem foco na sua consciência.

Em casos deste tipo há uma autêntica recor-dação, mesmo que a pessoa não se dê conta dofato. A mesma coisa pode ocorrer com um músi-co que tenha ouvido na infância alguma melo-dia folclórica ou uma canção popular e que vemencontrá-la, na idade adulta, presente como te-ma de um movimento sinfônico que está com-pondo. Uma idéia ou imagem deslocou-se doinconsciente para o consciente.

O que expliquei até aqui a respeito do in-consciente não passa de um esboço superficial danatureza e do funcionamento desta complexaparte da psique humana. Mas talvez tenha feitocompreender o tipo de mater ial subl iminar deque se podem, espontaneamente, produzir ossímbolos dos nossos sonhos. Este material subli-minar pode consistir de todo tipo de urgênciaimpulsos e intenções; de percepções e intuições;de pensamentos racionais ou irracionais; de con-clusões, induções, deduções e premissas; e detoda uma imensa gama de emoções. Qualquerum destes elementos é capaz de tornar-se par-cial, temporária ou definitivamente inconsciente.

Este material torna -se inconsciente porque— simplesmente — não há lugar para ele noconsciente. Alguns dos nossos pensamentos per-dem a sua energia emocional e tornam-se subli-minar es (isto é, não recebem mais a mesmaatenção do nosso consciente) porque parecem terdeixado de nos interessar e não têm mais ligaçãoconosco, ou então porque existe algum motivopara que desejemos afastá-los de vista.

"Esquecer", neste sentido, é normal e ne-cessário para dar lugar na nossa consciência a no-vas idéias e impressões. Se tal não acontecesse,toda a nossa experiência permaneceria acima dolimiar da consciência e nossas mentes ficariaminsuportavelmente atravancadas. Este fenôme -no, hoje em dia, é tão amplamente reconhecidoque a maioria das pessoas que conhecem umpouco de psicologia já o aceitaram.

Assim como o conteúdo consciente pode sedesvanecer no inconsciente, novos conteúdos,que nunca foram conscien tes, podem "emer-gir". Podemos ter a impressão, por exemplo, deque alguma coisa está a ponto de tornar-se cons-ciente — que "há alguma coisa no ar" ou que"aqui tem dent e de coel ho". A descobe rta deque o inconsciente não é apenas um simples de-pósito do passado, mas que está também cheiode germes de idéias e de situações psíquicas fu-tur as levou-me a uma ati tud e nova e pes soa l

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quanto à psicologia. Muita controvérsia tem sur-gido a este respeito. Mas o fato é que, além dememórias de um passado consciente longínquo,também pensamentos inteiramente novos eidéias criadoras podem surgir do inconsciente -idéias e pensamentos que nunca foram conscien-tes. Como um lótus, nascem das escuras profun-dezas da mente para formar uma importan teparte da nossa psique subliminar.

Encontramos exemplos disso em nossa vidacotidiana, onde às vezes os dilemas são solucio-nados pelas mais surpreendentes e novas proposi-ções. Muitos artistas, filósofos e mesmo cientis-tas devem suas melhores idéias a inspirações nas-cidas de súbito do inconsciente. A capacidade dealcançar um veio particularmente rico destematerial e transformá-lo de maneira eficaz emfilosofia, em literatura, em música ou emdescobertas científicas é o que comumentechamamos genialidade.

Podemos encontrar na própria história daciência provas evidentes desse fato. Por exem-plo, o matemático francês Poincaré e o químicoKekulé devem importantes descobertas científi-

cas (como eles mesmos admitem) a repentinas"revelações" pictóricas do inconsciente.

A chamada experiência "mística" do filó -sofo francês Descartes foi uma destas revelaçõesrepentinas na qual ele viu, num clarão, a "or-dem de todas as ciências". O escritor inglês Ro-bert Louís Stevenson levou anos procurandouma história que se ajustasse à sua "forte im-pressão da dupla natureza do homem" quando,num sonho, lhe foi revelado o enredo de Dr.Jekyll e Mr. Hyde.

Adiante vou descrever, com maiores deta-lhes, como este material surge do inconsci ente,examinando então a sua forma de expressão. Nomomento desejo apenas assinalar que a capaci -dade da nossa psique para produzir este materialnovo é particularmente significativa quando setrata do simbol ismo do sonho, desde que aminha experiência profissional provou-me,repetidamente, que as imagens e as idéiascontidas no sonho não podem ser explicadasapenas em termos de memória; expressampensamentos novos que ainda não chegaram aolimiar da consciên cia.

0 químico alemão Kekulé (séculoXIX), quando pesquisava a estruturamolecular do benzeno, sonhou comuma serpente que mordia o seupróprio rabo. (Trata-se de umsímbolo antiquíssimo: à esquerda,está representado em um manuscritogrego do século III A.C.). O sonhofê-lo concluir que esta estrutura seriaum círculo fechado de carbono —como se vê, à extrema esquerda,numa página do seu "Manual deQuímica Orgânica " (1861).À direita, uma estrada européia comum cartaz que significa "cuidado:animais na pista". Mas os motoristas(sua sombra aparece no primeiroplano) vêem um elefante, umrinoceronte e até mesmo umdinossauro. Este quadro (do artistasuíço contemporâneo ErhardJacoby) representa um sonho eretrata a natureza aparentementeilógica e incoerente da imagemonírica.

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A função dos sonhos

En tr ei em de ta lh es so br e as or ig en s danossa vida onírica por ser ela o solo de onde,originalmente, medra a maioria dos símbolos.Infelizmente , é difícil compreender os sonhos.Como já assinale i, um sonho em nada separece com uma história contada pela menteconsciente. Na nossa vida cotidiana refletimossobre o que queremos dizer, escolhemos amelhor maneira de dizê -lo e tentamos dar aosnossos comentários uma coerência lógica. Umapessoa instruída evitará, por exemplo, oemprego de metáforas complicadas a fim de nãotornar confuso o seu ponto de vista . Mas ossonhos têm uma textura diferente. Neles seacumulam imagens que parecem contraditórias eridículas, perde-se a noção de tempo, e as coisasmais banais se podem revestir de um aspectofascinante ou aterrador.

Parecerá estranho que o inconsciente dispo-nha o seu material de modo tão diverso dos es-

quemas aparentemente disciplinados que impri-mimos aos nossos pensamentos, quando acorda-dos. No entanto, quem quer que se detenha narecordação de um sonho perceberá estecontraste, contraste este que é uma das principaisrazões para que os sonhos sejam de tão difícilcompreensão para os leigos. Como não fazemsentido em termos da nossa experiência diurnanormal, há uma tendência ou para ignorá-los oupara nos confessarmos desorientados econfundidos.

Talvez este ponto se torne mais claro se to-marmos consciência de que as idéias de que nosocupamos na nossa vida diurna e aparentementedisciplinada não são tão precisas como queremoscrer. Ao contrário, o seu sentido (e a importân-cia emocional que têm para nós) torna -se cadavez mais vago à medida que as examinamos demais perto. A razão para isto é que qualquer coi-sa que tenhamos ouvido ou experimentado pode

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tornar-se subliminar — isto é, passar ao incons-ciente. E mesmo aquilo que retemos no nossoconsciente e que podemos reproduzir à vontadeadquire um meio-tom inconsciente que dá novocolorido à idéia, cada vez que ela é convocada.Nossas impressões conscientes, de fato, assu-mem rapidamente um elemento de sent ido in-consciente que tem para nós uma significaçãopsíquica, apesar de não estarmos conscientes daexistência deste fator subliminar ou da maneirapela qual ambos ampliam e perturbam o sentidoconvencional.

Evidentemente estes meios-tons psíquicosdiferem de pessoa para pessoa. Cada um de nósrecebe noções gerais ou abstratas no contextopart icular de sua mente e, port anto , entende eaplica estas noções também de maneira particu -lar e individual. Quando, numa conversa , usopal avras como "es tad o", "di nhe iro", "saúde"ou "sociedade", parto do pressuposto de que osque me escutam dão a estes termos mais ou me-nos a mesma significação que eu. Mas a expres-são "mais ou menos" é que importa aqui. Cadapalavra tem um sentido ligei ramente diferentepara cada pessoa, mesmo para os de um mesmonível cultural. O motivo destas variações é queuma noção geral é recebida num contexto indi -vidual, particular e, portan to, é também com-preendida e aplicada de um modo individualparticular. As diferenças de sentido são maiores,naturalmente quando as pessoas têm exper iên-cias sociais, políticas, religiosas ou psicológicasde nível desigual.

Sempre que os conceitos são idênticos àspalavras, a variação é quase imperceptível e nãotem qualquer função prática. Mas quando se faznecessária uma definição exata ou uma explica-ção mais cuidada, podemos descobrir as varia-ções mais extraordinárias, não só na compreen-são puramente intelectual do termo, mas parti -cularmente no seu tom emocional e na sua apli-cação. Estas variações são sempre subliminares e,portanto, as pessoas não as percebem.

Podemos rejeitar tais diferenças consideran -do-as supérfluas ou simples nuanças dispensáveispor serem de pouca aplicação às nossas necessi-dades cotidianas. Mas o fato de existirem vemmostrar que até os conteúdos mais banais daconsciência têm à sua volta uma orla de penum-bra e de incertezas. Mesmo o conceito filosóficoou matemáti co mais rigorosamente definido,que sabemos só conter aquilo que nele coloca-

mos, ainda é mais do que pressupomos. É umacontecimento psíquico e, como tal, parcial -mente desconhecido. Os próprios algarismosusados para contar são mais do que julgamosser: são, ao mesmo tempo, elementos mitológi -cos (para os adeptos de Pitágoras chegavam a serdivinos). Mas certamente não tomamos conheci-mento disto quando empregamos os númeroscom objetivos práticos.

Em suma, todo conceito da nossa consciên-cia tem suas associações psíquicas próprias.Quando tais associações variam de intensidade(segundo a importância relativa deste conceitoem relação à nossa personalidade total , ou se-gundo a natureza de outras idéias e mesmo com-plexos com os quais esteja associado no nosso in-

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Nestas páginas, outros exemplos danatureza irracional e fantástica dossonhos. Acima,à esquerda, corujas emorcegos enxameiam em torno deum homem que sonha (água-forte deGoya - século XVIII). Dragões e

outros monstros semelhantes sãoimagens comuns dos sonhos. Àesquerda, um dragão persegue umsonhador numa xilografia de OSonho de Poliphilo, do mongeitaliano Francesco Colonna,

Século XV.Acima, neste quadro de MarcChagall, a inesperada associação deimagens — peixe, violino, relógio eamantes — transmite toda aconfusão de um sonho.

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O aspecto mitológico dos algarismosordinais aparece nesses relevos dosmaias (alto da página, cerca do ano730 A.C, que personificam comodeuses as divisões numéricas dotempo. A pirâmide de pontos, acima,representa o tetraktys da filosofiapitagorista (século VI A.C.). Consistede quatro números — 1,2,3,4 —,perfazendo um total de 10. Osnúmeros 4 e 10 eram adorados pelospitagoristas como divindades.

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consciente), elas são capazes de mudar o caráter"normal" daquele conceito. O conceito podemesmo tornar-se qualquer coisa totalmente dife-rente , à medida que é impulsionado abaixo donível da consciência.

Estes aspectos subliminares de tudo o quenos acontece parecem ter pouca importância emnossa vida diária. Mas na análise dos sonhos, on-de os psicólogos se ocupam das expressões do in-consciente, são aspectos relevantes, pois se cons-tituem nas raízes quase invisíveis dos nossos pen-samentos conscientes. É por isto que objetos ouidéias comuns podem adquirir uma significaçãopsíquica tão poderosa que acordamos seriamenteperturbados, apesar de termos sonhado coisasabsolutamente banais — como uma porta fecha-da ou um trem que se perdeu.

As imagens produzidas no sonho são muitomais vigorosas e pitorescas do que os conceitos eexperiências congêneres de quando estamosacordados. E um dos motivos é que, no sonho,tais conceitos podem expressar o seu sentido in-consciente. Nos nossos pensamentos conscientesrestringimo-nos aos limites das afirmações racio-nais — afirmações bem menos coloridas, desdeque as despojamos de quase todas as suas asso-ciações psíquicas.

Lembro-me de um sonho que tive e queachei realmente difícil interpretar. Neste sonho,um certo homem tentava aproximar-se de mim epular às minhas costas. Nada sabia a respeito de-le a não ser que se utilizara de uma observaçãominha e, transformando o seu significado, tor-nara-a grotesca. Mas eu não conseguia ver qual a

ligação entre este fato e a sua tentativa de saltaràs minhas costas. Na minha experiência profis-sional, no entanto, muitas vezes acontece al-guém interpretar erradamente o que digo — eisto ocorre tantas vezes que já nem me dou aotrabalho de me perguntar se isto me irri ta ounão. De fato, há uma certa conveniência emguardar-se controle, conscientemente, das nos-sas reações emocionais. E era aí que estava, comologo verifiquei, o sentido do meu sonho. Eu usaraum coloquialismo austríaco e o transformara emimagem visual. É uma expressão muito comumna Áust ria dizer-se "Du kannst mir auf denBuckel steigen'' (você pode montar nas minhascostas), que significa ''pouco me importa o quevocê fala de mim".

Pode-se qualificar este sonho de simbólicoporque não representa uma situação de mododireto e sim indiretamente, por meio de umametáfora, que a princípio não percebi . Quandoisto acontece (como é freqüente) não se trata deum "disfarce" proposital do sonho; é resulta -do, apenas, da nossa dificuldade em captar oconteúdo emocional da linguagem ilustrada. Defato, na vida cotidiana precisamos expor nossasidéias da maneira mais exata possível e aprende-mos a rejeitar os adornos da fantasia tanto nalinguagem quanto nos pensamentos — perden-do, assim, uma qualidade ainda característica damentalidade primitiva. A maioria de nós trans-fere para o inconsciente todas as fantásticas asso-ciações psíquicas inerentes a todo objeto e a todaidéia. Já os povos primitivos ainda conservam es-tas propriedades psíquicas , atr ibuindo a ani -

Não apenas os números, mastambém objetos familiares comopedras e árvores podem ter umaimportância simbólica. À esquerda,pedras brutas colocadas à beira daestrada por viajantes, na Índia.Representam o lingam, o símbolofálico hindu da criatividade. À direita,uma árvore da África ocidental, queas tribos chamam ju-ju ou árvore-espírito, e à qual atribuem poderesmágicos.

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mais, plantas e pedras poderes que julgamos es-tranhos e inaceitáveis.

Um habitante da selva africana, por exem-plo, que vê à luz do dia um animal noturno po-de reconhecer nele um médico ou curandeiroque tenha tomado aquela forma tem porár ia-mente ; ou considerá -lo a alma do mato ou o es-pírito ancestral de alguém da tribo. Uma árvorepode exercer um papel vital para um primitivo,possuindo aparentemente sua alma e sua voz, eo homem sentirá os seus dois destinos interliga-dos. Existem alguns índios na América do Sulque afirmam ser araras vermelhas, apesar desaberem muito bem que lhes faltam penas, asase bicos. Isto porque, no mundo primi tivo, ascoisas não têm fronteiras tão rígidas como as dasnossas sociedades “racionais”'.

Aquilo a que os psicólogos chamam identi-dade psíquica, ou "participação mística", foiafastado do nosso mundo objetivo. Mas é exata-mente este halo de associações inconscientes quedá ao mundo primitivo aspecto tão colorido efantásti co; a tal ponto perdemos contato comele que se o reencontramos nem o reconhece-mos. Conosco, estes fenômenos situam-se abai-xo do limite da consciência e quando, ocasional-mente, reaparecem insistimos em dizer que algode errado está ocorrendo.

Fui consultado várias vezes por pessoas inte-ligentes e cultas que estavam profundamentechocadas com certos sonhos, fantasias e mesmovisões. Supunham que este tipo de coisas nãoacontece aos sãos de espírito e que aqueles quetêm visões devem sofrer de algum distúrbio pa-tológico. Um teólogo disse-me, certa vez, que asvisões de Ezequiel eram apenas sintomas mórbi-dos e que, quando Moisés e outros profetas ou-viam "vozes", estavam sofrendo de alucinação.

Imagi nem, pois o pânico de que este ho-mem se viu possuído quando algo deste gênerolhe aconteceu "espontaneamente" . Estamos detal modo habituados à natureza aparentementeracional do nosso mundo que dificilmente pode-mos imaginar que nos aconteça alguma coisa im-possível de ser explicada pelo bom senso co-mum. O homem primitivo, ao se defrontar comeste tipo de conflito, não duvidaria da sua sani-dade — pensaria em fetiches, em espíritos ouem deuses.

As emoções que nos afetam são, no entan-to, exatamente as mesmas. Os receios que nas-cem de nossa elaborada civilização podem sermuito mais ameaçadores do que os atribuídospelos povos primitivos aos demônios. A atitudedo homem civilizado faz-me, por vezes, lembrarum paciente psicótico da minha clínica, que eramédico. Uma manhã perguntei-lhe como se sen-tia. Respondeu-me que passara uma excelentenoite desinfetando o céu inteiro com cloreto demercúrio, mas que durante todo este processosanitário não encontrara o menor traço de Deus.Temos aí um caso de neurose, ou talvez de coisamais grave. Em lugar de Deus ou do "medo deDeus" há uma neurose de angústia ou uma es-pécie de fobia. A emoção conservou-se a mesma,mas, a um tempo, o nome e a natureza do seuobjeto mudaram para pior.

Lembro-me de um professor de filo sofiaque consultou-me, um dia, sobre a sua fobia aocâncer. Sofria da convicção compulsiva de quetinha um tumor maligno, apesar de nada ter si-do acusado em dezenas de chapas de raios X."Sei que não há nada", dizia ele "mas pode ha-ver." Qual seria a causa desta idéia fixa? Obvia-mente vinha de um medo que nada tinha a vercom a sua vontade consciente. Aque le pensa -

A esquerda, um feiticeiro doCameron usando uma máscara deleão. Ele não finge ser um leão; estáconvencido de que é um leão. Comoo congolês e sua máscara de pássaro(pág. 25) ele partilha uma "identidadepsíquica" com o animal —identidade existente no reino do mitoe do simbolismo. 0 homem"racional" moderno tentou livrar-sedeste tipo de associação psíquica(que no entanto subsiste no seuinconsciente); para ele, uma espadaé uma espada e um leão é apenas oque o dicionário (à direita) define.

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À esquerda, São Paulo, caído ante oimpacto de sua visão de Cristo (numquadro do artista italianoCaravaggio, século XVI).

Acima, fazendeiros javanesessecrificam um galo a fim de protegerseus campos dos espíritos. Taiscrenças e práticas são fundamentaisna vida primitiva.

Acima, o homem é apresentado, namoderna escultura do inglês JacobEpstein, como um monstro mecânico— talvez uma imagem moderna dos"espíritos maus".

mento mórbido de repente tomava conta dele, ecom tal força que não conseguia controlar-se.

Era bem mais difícil para este homem cultoaceitar um fenômeno deste tipo do que seria pa-ra o homem primitivo dizer que fora atormenta-do por um fantasma. A influência maligna deespíritos maus é, pelo menos, uma hipótese ad-missível nas culturas primitivas, enquanto quepara o civilizado é uma experiência perturbadoraadmitir que seus males nada mais são que umatola extravagância da imaginação. O fenômenoprimitivo da obsessão não desapareceu; é o mes-mo de sempre. Apenas é interpretado de manei-ra diversa e mais desagradável.

Fiz várias comparações deste tipo entre ohomem moderno e o primitivo. São essenciais,como mostra rei adiante, para compreendermosa tendência do homem de construir símbolos e aparticipação dos sonhos para expressá-los. Poisvamos descobrir que muitos sonhos apresentamimagens e associações análogas a idéias, mitos eritos primitivos. Estas imagens oníricas eramchamadas por Freud "resíduos arcaicos". A ex-pressão sugere que estes "resíduos" são elemen-tos psíquicos que sobrevivem na mente humanahá tempos imemoriais. É um ponto de vista ca-racteríst ico dos que consideram o inconscienteum simples apêndice do consciente (ou, numa

linguagem mais pitoresca, como uma lata de li-xo que guarda todo o refugo do consciente).

Pesquisas posteriores levaram-me a crer queesta é uma atitude insustentável e que deve serdesprezada. Constatei que associações e imagensdeste tipo são parte integrante do inconsciente,e podem ser observadas por toda parte — seja osonhador ins tru ído ou analfabeto, int eligenteou obtuso . Não são, de modo algum, "resí-duos" sem vida ou significação. Têm, ao contrá-rio, uma função e são sobretudo valiosos (comomostra o Dr. Henderson num outro capítulo)devido, exatamente, ao seu caráter "histórico".Const ituem uma ponte entre a maneira por quetransmitimos conscientemente os nossos pensa-mentos e uma forma de expressão mais primiti-va, mais colorida e pictórica. E é esta forma,também, que apela diretamente à nossa sensibi-lidade e à nossa emoção. Essas associações "his-tóricas" são o elo entre o mundo racional daconsciência e o mundo do instinto.

Já comentei a respeito do contraste interes-sante entre os pensamentos "controlados" quetemos quando acordados e a riqueza de imagensproduzidas pelos sonhos. Podemos constataragora uma outra razão para esta diferença: nanossa vida civilizada despojamos tanto as idéiasda sua energia emocional que já não reagimos

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mais a elas. Usamos estas idéias nos nossos dis-cursos , reagimos convencionalmente quandooutros também as utilizam, mas elas não noscausam uma impressão profunda. É necessáriohaver alguma coisa mais eficaz para que mude-mos de atitude ou de comportamento. E é istoque a "linguagem do sonho" faz: o seu simbo-lismo tem tanta energia psíquica que somos o-brigados a prestar-lhe atenção.

Havia, por exemplo, uma senhora conheci -da por seus insuportáveis preconceitos e obstina-da resistência a qualquer argumento racional .Podia-se discutir com ela uma noite inteira; nãotomaria o menor conhecimento das nossas opini-ões. Seus sonhos, no entanto, empregaram umalinguagem inteiramente diferente. Uma noitesonhou que estava numa importante reunião so-cial, onde foi recebida pela anfitriã com as se-guintes palavras: "Que bom você ter podidovir. Todos os seus amigos estão aqui à sua espe-ra." E levou-a até uma porta, que abriu, intro-duzindo-a num estábulo.

A linguagem deste sonho é simples o bas-tante para que até um ignorante a entenda. Amulher, a princípio, recusou-se a admitir o sen-tido de um sonho que vinha atingir tão direta-mente o seu amor-próprio. Mas acabou com-preendendo a mensagem que lhe era enviada, eapós algum tempo aceitou a pilhéria que se au-to-infligira.

Estas mensagens do inconscien te têm umaimportância bem maior do que se pensa. Nanossa vida consciente estamos expostos a todosos tipos de influência. As pessoas estimulam-nos

ou deprimem-nos, ocorrências na vida profissio-nal ou social desviam a nossa atenção. Todas es-tas influências podem levar -nos a caminhosopostos à nossa individualidade; e quer perce-bamos ou não o seu efeito, nossa consciência éperturbada e exposta, quase sem defesas, a estesincidentes. Isto ocorre em especial com pessoasde atitude mental extrovertida, que dão todo orelevo a objetos exteriores, ou com as que abri-gam sentimentos de infer ioridade e de dúvidaenvolvendo o mais íntimo da sua personalidade.

Quanto mais a consciência for influenciadapor preconceitos, erros, fantasias e anseios infan-tis mais se dilata a fenda já existente, até chegar-se a uma dissociação neurótica e a uma vida maisou menos artificial, em tudo distanciada dos ins-tintos normais, da natureza e da verdade.

A função geral dos sonhos é tentar res-tabelecer a nossa balança psicológ ica, pro-duzindo um material onírico que reconstitui, demaneira sutil , o equil íbrio psíquico total . É aoque chamo função complementar (ou com-pensatória) dos sonhos na nossa constituição psí-quica. Explica por que pessoas com idéias poucorealísticas, ou que têm um alto conceito de simesmas, ou ainda que constroem planos gran-diosos em desacordo com a sua verdadeira capa-cidade, sonham que voam ou que caem. O so-nho compensa as deficiências de suas personali-dades e, ao mesmo tempo, previne -as dos peri-gos dos seus rumos atuais. Se os avisos do sonhosão rejeitados, podem ocorrer acidentes reais. Apessoa pode cair de uma escada ou sofrer um de-sastre de carro.

À esquerda, duas outrasrepresentações de espíritos: ao alto,demônios execráveis descem sobreSanto Antônio (quadro deGrünewald, artista alemão do séculoXVI). Abaixo, no painel central deum tríptico japonês do século XIX, ofantasma de um homem assassinadogolpeia seu matador.

Conflitos ideológicos criam muitos"demônios" do homem moderno. Ádireita, uma caricatura do norte-americano Grahan Wilson apresentaKrushchev como uma monstruosamáquina da morte. A extrema direita,uma caricatura da revista russaKrokodil mostra o "colonialismo"como um lobo demoníaco que estásendo empurrado para o mar pelasbandeiras das várias nações africanasindependentes.

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Lembro-me do caso de um homem que seenvolveu numa série de negócios escusos. Comouma espécie de compensação criou uma paixãoquase mórbida pelas formas mais arriscadas dealpinismo. Procurava "erguer-se sobre si mes-mo". Uma noite sonhou que ao escalar o picode uma montanha muito alta prec ipitara-se noespaço vazio. Quando me contou o sonho, ve-rifiquei imediatamente o perigo que corr ia etentei reforçar ainda mais aquele aviso para per-suadi-lo a moderar -se. Cheguei mesmo a dizer -lhe que o sonho pressagiava sua morte num aci-dente de alpinismo. Foi inútil. Seis meses maistarde "precipitou-se no espaço vazio" . Um guiao observava enquanto, com um companheiro,descia por uma corda até um local de difícil aces-so. O amigo encontrara um apoi o temporár iopara os pés, numa saliência, e ele o seguia. Re-pentinamente, soltou a corda como se (segundoo guia) estivesse "se precipitando no ar". Caiusobre o amigo, ambos despencaram montanhaabaixo e morreram.

Outro caso típico foi o de uma senhora queestava vivendo muito acima das suas pos-sibilidades. Altiva e autoritár ia na sua vida co-tidiana, tinha, à noite, sonhos terríveis com todaespécie de coisas desagradáveis. Quando lhe ex-pliquei os sonhos recusou-se, indignada, a to-mar conhecimento deles. Os sonhos foram setornando cada vez mais ameaçadores e cheios de

referências a caminhadas que costumava fazer,sozinha, pelos bosques e onde se entregava aemotivos devaneios. Vi o perigo que corria, masela recusou-se a ouvir os meus conselhos. Poucotempo depois foi atacada por um pervertido se-xual no bosque onde passeava. Não tivesse ha-vido a intervenção de pessoas que ouviram seusgritos ela teria sido morta.

Não há nenhuma magia nestes fatos . Ossonhos daquela mulher revela ram que ela ali -mentava um desejo secreto por tal tipo de aven -tura — assim como o alpinista procurava, in-conscientemente , solução definitiva para os seusproblemas. Obviamente nenhum deles esperavapagar tal preço: nem ela ter várias fraturas, nemele perder a vida.

Assim, os sonhos algumas vezes podemrevelar certas situações muito antes de elas real-mente acontecerem. Não é necessariamente ummilagre ou uma forma de previsão. Muitas crisesda nossa vida têm uma longa his tór ia in-consciente. Caminhamos ao seu encontro passoa passo, desapercebidos dos perigos que se acu-mulam. Mas aquilo que conscientemente dei-xamos de ver é, quase sempre, captado pelo nos-so inconsciente , que pode transmiti r a in -formação através dos sonhos.

Os sonhos muitas vezes nos advertem; mastantas outras parece que não o fazem. Portanto,qualquer suposição de que uma mão be-

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À esquerda, duas das influências aque está exposta a consciência dohomem contemporâneo: apublicidade (um anúncio americanode 1960 destacando a"sociabilidade") e a propagandapolítica (um cartaz para um plebiscitode 1962, recomendando votar "sim",mas recoberto pelos "não" daoposição). Estas e outras influênciaslevam-nos a viver de uma maneiranada condizente com a nossanatureza individual. E o desequilíbriopsíquico que podem provocar deveser compensado pelo inconsciente.

0 faroleiro à direita (caricatura donorte-americano Roland B. Wilson)sofre, aparentemente, de distúrbiospsicológicos devido ao seuisolamento. O seu inconsciente, nafunção de compensador, produziuuma companhia imaginária, a quem ofaroleiro confessa (segundo alegenda da caricatura): "Não é sóisso Bill, mas ontem me surpreeendinovamente falando comigo mesmo!"

0 oráculo de Delfos, abaixo, sendoconsultado pelo rei Egeu de Atenas(pintura em vaso). "Mensagens" doinconsciente são, muitas vezes, tãoambíguas e enigmáticas como asdeclarações dos oráculos.

nevolente nos pode refrear a tempo é duvidosa.Ou, para sermos mais claros, parece que umaforça benéfica por vezes funciona e outrasnão. A mão mis te riosa pode até, ao contrá -rio, indicar um caminho de per diç ão — ossonhos às vezes provam ser armadilhas , ou pelomenos parece que o são. Em certas ocasiões,comportam-se como o oráculo de Delfos quandodisse ao rei Creso que se atravessasse o rio Halydestruiria um grande reino. Só depois de der-rotado numa batalha, após ter transposto o rio, éque descobriu que o reino a que o oráculo se re-feria era o seu próprio.

Não podemos nos permiti r nenhuma inge-nuidade no estudo dos sonhos. Eles têm sua ori-gem em um espí rito que não é bem humano, esim um sopro da natureza — o espír ito de umadeusa bela e generosa, mas também cruel. Sequisermos caracterizar este espírito, vamos a-proximar-nos bem melhor dele na esfera dasmitologias antigas e nas fábulas das florestasprimitivas do que na consciência do homemmoder no. Não estou querendo negar as grandesconquistas que nos trouxe a evolução dasociedade civilizada, mas tais conquist asrealizaram-se à custa de enormes perdas, cujaextensão mal começamos a avaliar. Ascomparações que fiz entre os estados primit ivo ecivil izado do homem tiveram como objetivoparcial mostrar o saldo destes ganhos e perdas.

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O homem primit ivo era muito mais gover-nado pelos instintos do que seu descendente, oKômem "racional", que aprendeu a "controlar-se". Em nosso processo de civilização separamosa consciência, cada vez mais, das camadas ins-tint ivas mais profundas da psique humana, emesmo das bases somáticas do fenômeno psí-quico. Felizmente, não perdemos estas camadasinsti ntivas básicas; elas se manti veram comoparte do inconsciente, apesar de só se expres-sarem sob a forma de imagens oníricas. Estes fe-nômenos instint ivos — que nem sempre podemser reconhecidos como tal, já que o seu caráter ésimbólico — representam um papel vital naqui-lo que chamei função compensadora dos sonhos.

Para benefício do equilíbrio mental e mes-mo da saúde fisiológica, o consciente e o in-consciente devem estar completamente inter li-gados, a fim de que possam se mover em linhasparalelas. Se se separam um do outro ou se ''dis-sociam", ocorrem distúrbios psicológicos. Nesteparticular , os símbolos oníricos são os men-sageiros indispensáveis da parte instintiva damente humana para a sua parte racional, e a suainterpretação enriquece a pobreza da nossa cons-ciência fazendo-a compreender, novamente, aesquecida linguagem dos instintos.

As pessoas, é claro, tendem a pôr em dú-vida esta função já que os seus símbolos muitasvezes passam despercebidos ou incompreendidos.Na vida normal, a compreensão dos sonhos éaté, por vezes, considerada supérflua. Posso darum exemplo da experiênc ia que tive com umatribo primit iva da África Ocidental. Para meuespanto , os seus hab itan tes negavam que ti-vessem sonhos. Através de conversas pacientes ede perguntas indiretas, logo descobri que, comoqualquer outra pessoa, também sonhavam, masque apenas estavam convencidos de que seussonhos não tinham significação alguma. "Ossonhos do homem comum não querem dizer na-da", afirmaram -me. Pensavam que os únicossonhos importantes eram os dos chefes das tribose os dos feiticeiros que, como diziam respeito aobem-estar geral do grupo, tinham grande valoraos seus olhos. O problema, no ent anto, era queo chefe da tribo e o feiticei ro afirmavam teremdeixado de sonhar coisas significativas. Estamudança datava da época em que os ingleseshaviam chegado ao país . O comissário do

distr ito - o oficial britânico encarregadodaquela tribo - tomara para si a função desonhar, ele mes mo, os "grandes sonhos" queaté então regiam o comportamento da tribo.

Qua ndo os hab ita ntes des ta tri bo ad -mitiram que, na verdade, sonhavam, julgandoapenas que seus sonhos não tinham maior im-portância, estavam agindo como o homem mo-derno que pensa que seus sonhos não têm ne-nhuma significação apenas porque não os enten-dem. Mas até mesmo o homem civilizado pode,por vezes, observar que um sonho (de que talvezele nem se lembre) é capaz de piorar ou me-lhora r o seu humor . O sonho foi "com -pr eendido" , só que de uma mane ira sub-liminar . E é isto, aliás, que acontece habitual-mente. Apenas nas raras vezes em que um sonhoé particularmente impressionante, ou que passaa repetir -se a intervalos regulares, é que as pes -soas buscam alguma interpretação.

Devo acrescentar aqui uma palavra de cau-tela a respeito da análise de sonhos feita de ma-neira pouco intel igente ou pouco competente.Existem pessoas cujo estado menta l é de ta-manho desequilíbrio que interpretar os seus so-nhos pode ser extremamente arriscado. São casosem que uma cons ciência extremamenteunilateral se encontra isolada de umainconsciência irracional ou "louca"correspondente, e as duas não devem ser postasem contato sem precauções muito especiais.

De modo geral, é uma tolice acreditar-seem guias pré-fabricados e sistematizados para ainterpretação dos sonhos , como se pudéssemos

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comprar um livro de consultas para nele en-contrar a tradução de determinado símbolo.Nenhum símbolo onírico pode ser separado dapessoa que o sonhou, assim como não existeminterpretações definidas e específicas para qual-quer sonho.

A maneira pela qual o inconsciente com-pleta ou compensa o consciente varia tanto deindivíduo para indivíduo que é impossível saberaté que ponto pode, na verdade, haver uma clas-sificação dos sonhos e seus símbolos.

É claro que existem sonhos e símbolos iso-lados (preferia chamá-los "motivos") típicos, eque ocorrem com bastante freqüência. Entre es-tes motivos estão a queda, o vôo, a perseguiçãofeita por animais selvagens ou por pessoas ini -migas, sentir-se insuficiente ou impropriamentevestido em lugares públicos, estar-se apressadoou per did o no meio de uma mul tid ão tu-multuada, lutar com armas inúteis ou estar semmeios de defesa, correr muito sem chegar a lugaralgum. Um motivo infantil típico é o sonho decrescer ou diminuir infinitamente, ou passar deum para outro extremo como em Alice no Paísdas Maravilhas, de Lewis Carroll. Mas devo, no-vamente, acentuar que são motivos a serem con-siderados dentro do contexto do sonho, e nãocifras de um código que se explicam por si mes-mas.

O sonho recorrente é um fenômeno dignode apreciação. Há casos em que as pessoas so-nham o mesmo sonho, desde a infância até a

idade adulta. Este tipo de sonho é em geral umatentat iva de compensação para algum defeitoparticular que existe na atitude do sonhador emrelação à vida; ou pode datar de um traumatis-mo que tenha deixado alguma marca. Podetambém ser a antecipação de algum aconteci-mento importante que está para acontecer.

Sonhei durante muitos anos um mesmomotivo, no qual eu "descobria" uma parte daminha casa que até então me era desconhecida.Algumas vezes apareciam os aposentos ondemeus pais , há muito falecidos, viviam e ondemeu pai, para grande surpresa minha, montaraum laboratório de estudo da anatomia compara-da dos peixes e onde minha mãe dirigia um ho-tel para hóspedes fantasmas. Habitualmente, es-ta ala desconhecida surgia como um edifício his-tórico , há muito esquecido, mas de que eu eraproprietário. Continha interessante mobiliárioantigo e, lá para o fim desta série de sonhos, des-cobri também uma velha biblioteca com livrosque não conhecia. Por fim, no últ imo sonho,abri um dos livros e encontrei nele uma porçãode gravuras simbólicas maravilhosas. Quandoacordei, meu coração pulsava de emoção.

Algum tempo antes de ter este último so-nho, eu havia encomendado a um vendedor delivros antigos uma coleção clássica de alquimistasmedievais. Encontrara numa obra uma citaçãoque me parecia relacionada com a antiga alqui-mia bizantina e queria verificar isto. Algumassemanas depois de ter tido o sonho do livro que

À esquerda, uma fotografia de Jung(o quarto,à direita), datada de 1926,com indígenas do Monte Elgon, noQuênia.O estudo objetivo dassociedades primitivas feito por Junglevou-o a muitas e valiosas intuiçõespsicológicas.

À direita, dois livros de sonhos — uminglês, contemporâneo, e outro doantigo Egito (um dos mais velhosdocumentos escritos, datandoaproximadamente do século 2000a.C.). Estas interpretaçõespráticas, já "preparadas", dossonhos não têm valor algum. Ossonhos são fenômenoscompletamente individuais e seussímbolos não podem ser catalogados.

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me era desconhecido, chegou um pacote do li-vreiro. Dentro havia um volume em pergami -nho, datando do século XVI. Era ilustrado comfascinantes gravuras simbólicas, que logo melembraram as que eu vira no meu sonho. Comoa redescoberta dos princípios da alquimia tor-nou-se parte importante do meu traba lho pio -neiro na psicologia, o motivo do meu sonho re-corrente é de fácil compreensão. A casa, certa-mente, era o símbolo da minha personalidade edo seu campo consciente de interesses; e a aladesconhecida da residência representava a ante-cipação de um novo campo de interesse e pes-quisa de que, na época, a minha consciência nãose apercebera. Desde aquele momento, há 30anos, o sonho não se repetiu.

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No alto da página, um exemplocélebre do sonho, bastante vulgar,do crescimento exagerado: odesenho de Alice no País dasMaravilhas (1877) mostra Alicecrescendo a ponto de ocupar toda acasa. Ao centro, o sonho tambémmuito comum de voar, num desenho(do artista inglês oitocentista WilliamBlake) intitulado Oh, Como SonheiCoisas Impossíveis!

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A análisedos sonhos

Comecei este ensaio acentuando a diferençaexistente entre um sinal e um símbolo. O sinal ésempre menos do que o conceito que ele repre-senta, enquanto o símbolo significa sempre maisdo que o seu significado imediato e óbvio. Ossímbolos, no entanto, são produtos naturais eespontâneos. Gênio algum já se sen tou comuma caneta ou um pincel na mão dize ndo:"Agor a vou inventar um símbolo." Ninguémpode tomar um pensamento mais ou menos ra-cional, a que chegou por conclusão lógica ou porintenção deliberada, e dar-lhe forma "simbóli-ca". Não importa de que adornos extravagantesse ornamente uma tal idéia — ela vai manter-seapenas um sinal associado ao pensamento cons-ciente que significa, e nunca um símbolo a suge-rir coisas ainda desconhecidas. Nos sonhos ossímbolos ocorrem espontaneamente, pois so -nhos acontecem, não são inventados; eles cons-tituem, assim, a fonte principal de todo o nossoconhecimento a respeito do simbolismo.

Devo fazer notar, no entanto, que os sím-bolos não ocorrem apenas nos sonhos; aparecemem todos os tipos de manifestações psíquicas.Existem pensamentos e sentimentos simbólicos,situações e atos simbólicos. Parece mesmo que,muitas vezes, objetos inanimados cooperam como inconsciente criando formas simbólicas. Hánumerosas histórias autênticas de relógios queparam no momento em que seu dono morre,como aconteceu com o relógio de pêndulo nopalácio de Frederico, o Grande, em Sans Souci,

que parou na hora da morte do rei. Outroexemplo comum é o de um espelho que separte ou de um quadro que cai quando alguémmorre. Ou também pequenos, masinexplicáveis, acidentes de objetos que sequebram numa casa onde alguém sofre umacrise emocional. Mesmo que os céticos serecusem a acreditar nessas histórias, a verdade éque elas estão sempre acontecendo, e só istobasta como prova da sua importância psicológi-ca.

Há muitos símbolos, no entanto (e entreeles alguns do maior valor), cuja natureza e ori -gem não é individual, mas sim coletiva.Sobretu do as imagens religiosas: o crente lhesatribui origem divina e as considera revelaçõesfeitas ao homem. O cético garante que foraminventadas . Ambos estão errados. É verdade,como diz o cético, que símbolos e conceitosreligiosos foram, durante séculos, objeto deuma elaboração cuidadosa e consciente. Étambém certo, como julga o crente, que a suaorigem está tão soterrada nos mistérios dopassado que parece não ter qualquerprocedência humana. Mas são, efetivamente,"representações coletivas" — que procedem desonhos primitivos e de fecundas fant asias.

Este fato, como explico mais tarde, tem re-lação direta e essencial com a interpretação dossonhos. É evidente que se considerarmos o so-nho um símbolo, vamos interpretá-lo de manei-ra diversa daquele que acredita que a emoção e opensamento energético já são conhecidos e estão

Objetos inanimados parecem porvezes "agir" simbolicamente: áesquerda, o relógio de Frederico, oGrande, que parou em 1786, quandoseu dono morreu.

Símbolos são produzidosespontaneamente pelo inconsciente(apesar de poderem posteriormenteser elaborados conscientemente). Àdireita, o ankh, símbolo da vida, douniverso e do homem, no antigoEgito. Em contraste, insígnias decompanhias de aviação (extremadireita) não são símbolos, mas sinaisconscientemente planejados.

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apenas "disfarçados" pelo sonho. Neste últimocaso, não haverá sentido na interpretação dos so-nhos desde que se vai encontrar , apenas, aquiloque já conhecemos.

Por esta razão disse eu sempre a meus alu-nos: "Aprendam tanto quanto puderem a res-peito do simbolismo; depoi s, quando foremanalisar um sonho, esqueçam tudo.'' Este conse-lho tem tal importância prática que fiz dele umalei para lembrar a mim mesmo que jamais pode-rei entender suficientemente bem o sonho a-lheio a ponto de interpretá-lo de modo perfei to.Estabeleci esta regra com o objetivo de impedir ofluxo das minhas próprias associações e reaçõesque, de outro modo, acabariam predominandosobre as perplexidades e hesitações dos meus pa-cientes. Assim como é da maior importância te-rapêutica para um analista captar o mais exata-mente possível a mensagem particular de um so-nho (isto é, a contribuição feita pelo inconscienteao consciente), também é-lhe essencial exploraro conteúdo do sonho com a mais criteriosaminúcia.

Tive um sonho, na época em que trabalha-va com Freud, que ilustra bem este ponto. So-nhei que estava em minha casa, aparentementeno primeiro andar, numa sala de estar muitoconfortável e agradável, mobiliada no estilo doséculo XVIII. Estava admirado por nunca ter-meencontrado naquela saleta antes, e começava aperguntar-me como seria o andar térreo. Desci echeguei a um cômodo bastante escuro, de pare-des almof adadas e uma mobíl ia pertencente ao

século XVI, ou talvez mais antiga ainda. Minhasurpresa e curiosidade aumentaram. Queria co-nhecer toda a disposição da casa. Desci então aoporão, onde encontrei uma porta que abria paraum lance de degraus de pedra, levando a umagrande sala abobadada. O chão era de enormeslajes de pedra e as paredes pareciam muitoantigas. Examinei a argamassa e verifiquei queestava misturada a pedaços de tijolos.Obviamente eram paredes de origem romana.Sentia-me cada vez mais agitado. Num canto viuma laje com uma argola de ferro. Puxei a argolae encontrei outro lance de degraus estreitos queconduziam a uma gruta, uma espécie desepultura pré-histórica, onde se encontravamduas caveiras, alguns ossos e cacos de cerâmica.Neste momento acordei.

Se Freud, ao analisar este sonho, tivesseseguido o meu método na exploração do seucontexto e das suas associações específicas, teriachegado a uma longa história. Mas receio que elea desprezasse considerando-a uma simplestentativa para escapar a um problema que, naverdade, era seu. O sonho, de fato, é um resumoda minha vida ou, mais especificamente, dodesenvolvimento da minha mente. Cresci numacasa que tinha 200 anos, nossa mobília possuíapeças de cerca de 300 anos e minha maioraventura espiritual, até aquela ocasião, fora oestudo das filosofias de Kant e Schopenhauer. Ogrande acontecimento da época era o trabalhode Charles Darwin. Pouco antes deste períodoeu ainda vivia orientado pelos conceitosmedievais de

À direita, o pai e a mãe de Jung. Ointeresse revelado por Jung pelamitologia e religiões antigas afastou-o do mundo religioso de seus pais(seu pai era pastor)— como severifica pelo sonho discutido nestapágina, que teve quando trabalhavacom Freud. Â extrema direita, Jungno Hospital Burghölzli, em Zurique,onde trabalhou como psiquiatra, em1900.

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meus pais , para quem o mundo e os homenseram conduzidos ainda pela onipotência e pro-vidência divinas . Este mundo tornara-se an-tiquado e obsoleto e minha fé cristã perdera seucaráter absoluto ao defrontar-se com as religiõesocidentais e a filosofia grega. Por este motivo oandar térreo do meu sonho era tão silencioso, es-curo e, obviamente, inabitado.

Meu interesse pela história, naquela época,tinha se originado de um outro interesse — aanatomia comparada e a paleontologia, quandotrabalhava como assistente no Instituto Ana-tômico. Ficara fascinado com o estudo fóssil dohomem, particularmente o discutido homem deNeanderthal e a controver tida caveira do Pit-hecanthropus , de Dubois . Na verdade, estaseram as minhas reais associações com o sonho;mas nem ousei mencionar a Freud nada sobrecaveiras, esqueletos ou cadáveres porque sabiaque este tema não lhe era nada simpático. Elealimentava a impressão singular de que eu an-tecipava-lhe uma morte prematura. E chegara aesta conclusão porque eu demonstrara grandeinteresse pelos corpos mumificados da chamadaBleikeller de Bremen, que visitáramos juntos em1909 a caminho do navio que nos levou à Amé-rica.

Por isso relutei em expor-lhe o que pensava,já que outra experiência recente deixara-me pro-fundamente impressionado com o fosso quaseintransponível existente entre os seus pontos devista e idéias básicos e os meus. Receava perdersua amizade se o deixasse penetrar no meu mun-

do interior que, talvez, lhe, parecesse muito es -tranho. Sent indo-me também insegur o quan toà minha própria psicologia, disse-lhe, quase au-toma ticamente, uma ment ira a respei to dasminhas "livres associações", fugindo assim à ta-refa impraticável de esclarecê -lo sobre a minhaconstituição psíquica, tão pessoal e totalmentediversa da sua.

Devo pedir ao leitor que me perdoe estalonga narrativa das dificuldades em que me metipara cont ar meu sonh o a Freud. Mas é umbom exemplo dos embaraços em que a gente seenvolve no decorrer da análise real de um sonho,de tal modo são importantes as diferenças depersonalidade do analista e do analisado.

Verifiquei logo que Freud procurava algum"desejo inconfessável" no meu sonho. Por issosugeri, especulativamente, que as caveiraspoderiam referir-se a alguns membros da minhafamília cuja morte eu desejasse, por um motivoqualquer. Esta suposição foi bem aceita por ele,mas eu não ficara nada satisfe ito com esta so-lução "postiça" .

Enquanto tentava encontrar respostas ra-zoáveis às perguntas de Freud, perturbei-mecom a minha intuição a respeito da funçãoexercida pelo fator subjetivo na compreensãopsicológica. Minha intuição era tão forte que eusó tinha um pensamento — o que fazer parasair desta situação emaranhada em que memetera. Segu i o caminho mais fácil, ment indo,o que não é nem elegan te nem moralmentedefensável ; de outra manei ra, no entanto, eume arriscaria a uma briga fatal com Freud, paraa qual , por vári as razões, não me sentia pre -parado.

Esta minha intuição foi a compreensão ime-diata e bastante inesperada de que o sentido domeu sonho era a minha própria pessoa, a minhavida e o meu mundo, minha rea lidade tot alcontra a estrutura teórica erguida por outra men-te desconhecida, por motivos e propós itos quelhe eram particulares. Não se tratava do sonhode Freud, mas do meu. E num lampejo com-preendi o que meu sonho me queria dizer.

Este conflito ilustra um ponto vital na aná-lise dos sonhos. E menos uma técnica que se po-de aprender e aplicar de acordo com as regras doque uma permuta dialética entre duas personali-dades. Se tratarmos a análise como uma técnicamecânica, perde-se a personalidade psíquica dapessoa que sonha e o problema terapêutico fica

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reduzido a uma simples interrogação: qual dasduas pessoas em jogo — o anali sta ou o so-nhador — dominará a outra? Foi por este mo-tivo que desis ti do tratamento hipnót ico, desdeque não queria impor aos outros a minha von -tade. Desejava que o processo da cura nascesseda própr ia personalidade do paciente e não desugestões minhas, que teriam um efeito apenaspassageiro. Meu objetivo era proteger e preservara dignidade e a libe rdade do meu doente paraque ele vivesse a sua vida de acordo com os seuspróprios desejos. Nesta experiência com Freudfoi-me revelada, pela primeira vez, a noção deque antes de construirmos teorias gerais a res -peito do homem e sua psique deveríamos a-prender bastante mais sobre o ser humano comquem vamos lidar.

O indivíduo é a real idade única. Quantomais nos afastamos dele para nos aproximarmosde idéias abstratas sobre o homo sapiens maisprobabilidades temos de erro. Nesta época deconvulsões sociais e mudanças drásticas é impor-tante sabermos mais a respeito do ser humano,pois muito depende das suas qualidades mentaise morais. Para observarmos as coisas na sua justaperspectiva precisamos, porém, entender tanto opassado do homem quanto o seu presente. Daí aimportância essencial de compreendermos mitose símbolos.

O problemados tipos

Em todos os outros ramos da ciência é líci toaplicar-se uma hipótese a um assunto ou temaimpessoal. A psicologia, no entanto, inevitavel -mente nos confronta com as relações vivas entredois indivíduos , nenhum dos quais pode ser des-pojado da sua personalidade subjet iva nem, naverdade, despersonalizado em qualquer outrosentido. O analista e seu paciente podem estabe-lecer que um determinado problema será trata-do de um modo impessoal e objetivo. Mas, nomomento em que se absorvem no assunto, suaspersonalidades vão ficar totalmente envolvidas.Nesta altura, só podem alcançar êxito chegandoa um acordo mútuo.

Será possível emitir um julgamento objeti-vo sobre o resultado final? Só se fizermos umacomparação entre as nossas conclusões e os pa-drões considerados válidos no meio social a queo indivíduo pertence. E mesmo então preci sa-mos ter em conta o equilíbrio mental (ou "sa-nidade") da pessoa em causa. Pois o resul tadonão poderá ser um nivelamento coletivo do indi-víduo para ajus tá-lo às "normas" da sua socie-

Um extrovertido autoritário dominaum introvertido retraído, nestacaricatura do norte-americano JulesFeiffer. Os termos jungianos paradistinguir os "tipos" humanos nãosão, absolutamente, dogmáticos.Gandhi (à direita), por exemplo, era,a um tempo, um asceta (introvertido)e um líder político (extrovertido). Umindivíduo — qualquer um de umamultidão, á direita — só pode serclassificado de forma genérica.

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dade, já que tal procedimento levá-lo-ia a umacondição totalmente artificial. Uma sociedadesaudável e normal é aquela em que as pessoashabi tualmente entram em divergência , desdeque um acordo geral é coisa rara de existir forada esfera das qualidades humanas instintivas.

Apesar de a divergência funcionar comoveículo na vida mental de uma sociedade, não sepode considerá-la um objetivo em si. A con-cordância é igualmente importante. E porque apsicologia depende, basicamente, do equilíbriodos contrários, nenhum julgamento pode serconsiderado definitivo sem que se leve em contaa sua reversibil idade. A razã o desta par-ticularidade está no fato de não existir nenhumponto de vista, acima ou fora da psicologia, quenos permita formar um julgamento definitivosobre a natureza da psique.

Apesar de os sonhos pedirem um tratamen -to individual, são necessárias também algumasgeneralizações para classificar e esclarecer o ma-terial recolhido pelos psicólogos no seu estudode um grande número de pessoas . Seria logica-

mente impossível formular ou ensinar qualquerteoria psicológica se nos limitássemos a descreveruma porção de casos isolados sem qualquer es-forço para verificar o que têm em comum e aqui-lo em que diferem. Qualquer característica geralpode ser escolhida como base. Pode-se, porexemplo, fazer uma distinção relat ivamentesimples entre indivíduos de personalidades "ex-trovertidas" e aqueles que são "introvertidos".Esta é apenas uma das muitas generalizaçõespossíveis, mas permite-nos logo ver as dificulda-des que podem surgir no caso de o analista per-tencer a um dos tipos e seu paciente a outro.

Como qualquer análise mais profunda dossonhos conduz a um confronto entre dois in-divíduos, logicamente há de fazer uma grandediferença o fato de possuírem ou não o mesmotipo de personalidade. Se ambos pertencem aomesmo tipo, podem caminhar juntos e felizespor longo tempo; mas se um for extrovertido e ooutro introvert ido, seus pontos de vista , di-ferentes e contrários, logo vão entrar em choque,sobretudo se cada um deles não est iver cons-

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cien te do seu tipo de personal idade ou julgarque o seu tipo é o único verdadeiramente bom.O extrovertido, por exemplo, vai adotar sempreo ponto de vista da maioria; o introvert ido há derejeitá-lo, justamente por ser ''o que está na mo-da". Esta divergência é fácil de acontecer, já queo que tem valor para um é exatamente o que nãoo tem para o outro. Freud, por exemplo, con-siderava o tipo introvertido como o de um in-divíduo morbidamente preocupado consigomesmo. No entanto, a introspecção e o au-toconhecimento podem também ser fatores damaior importância.

É de necessidade vital na interpretação dossonhos tomarmos conh ecimento destas di-ferenças de personalidade. Não se deve presumirque o analista seja um super-homem, acima des-tas diferenças, apenas porque é um médico, do-no de uma teoria psicológica e de uma técnicacorrespondente. O médico só se pode considerarsuperior se pretender que sua teoria e sua técnicasão verdades absolutas, capazes de dominar a to-talidade da psique humana. Desde que tal pre-tensão é bastante discutível, ele não poderá tereste tipo de convicção. Como conseqüência, ver-se-á secretamente crivado de dúvidas ao con-frontar com teorias e técnicas (que são simpleshipóteses e tentat ivas) a totalidade humana queé o seu paciente, em lugar de confrontá-lo com asua própria totalidade existencial.

A personalidade global do analista é o úni-co equivalente apropriado da personalidade dopaciente. Experiência e conhecimento psi -cológicos nada mais são que simples vantagensdo lad o do ana lis ta; e não vão liv rá -lo da de-

A "bússola" da psique — outra formajungiana de examinar as pessoas emgeral. Cada ponto da bússola tem umpólo oposto: para o tipo "pensante",o lado "sentimento" é menosdesenvolvido ("sentimento" significa,aqui, a capacidade de pesar e avaliara experiência — no sentido de se dizer"eu sinto que isto é uma boa coisapara fazer", sem precisar analisar ouraciocinar o porquê da ação). É claroque há justaposições em cada pessoa:um indivíduo que age segundo assuas "sensações" poderá possuir,igualmente forte, o lado "pensante"ou o lado do "sentimento" (e a"intuição", o pólo oposto, ser o maisfraco).

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sordem e da confusão a que vai ser posto à prova,juntamente com seu paciente. Assim, é muitoimportante saber se suas personalidades são har-mônicas, divergentes ou complementares.

Extroversão e introversão são apenas duasentre as mui tas pec ulia ridades do com -port amento humano. São, muitas vezes, bas-tante óbvias e facilmente reconhecíveis . Ao es-tudarmos os indivíduos ext rovert idos, porexemplo , logo iremos perceber que diferem umdo out ro em mui tos asp ect os, e que a ex-troversão é, portanto, um critério superficial ebastante genérico para caracter izar um só in-divíduo. Por isto tentei , já há muito tempo, en-contrar outras particularidades básicas capazesde ajudar a pôr alguma ordem nas diferenças,aparentemente ilimi tadas, da individualidadehumana.

Sempre me impressionou o fato de que umnúmero surpreendente de pessoas não utilize ja-mais a sua mente, se for possível evitá-lo, e tam-bém que um número considerável o faça de ma-neira absolutamente estúpida. Também es -pan tou-me enc ont rar mui tas pes soa s inte -ligentes e argu tas que vivem (tanto quanto sepode observar ) como se nunca tivessem a -prendido a usar os seus sent idos : não vêem oque lhes está diante dos olhos , nem ouvem aspalavras que soam aos seus ouvidos ou notam ascoisas em que tocam ou provam. Alguns vivemsem mesmo tomar consciência do seu própriocorpo.

Tive contato, também, com muitas pessoasque pareciam viver no mais estranho estado deespírito, como se a condição a que tivessem che-

Pensamento

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gado hoje fosse definitiva, sem qualquer pos-sibilidade de mudança, ou como se o mundo e apsique fossem estáticos e assim permanecessemeternamente . Pareciam desti tuídas de qualquerima ginação e dep end iam, in te ira e ex-clusivamente, da sua percepção sensorial. Acasose possibil idades não existiam no mundo em quevivi am e no seu "hoje" não havia um "ama -nhã" verdadeiro. O futuro nada mais significavaque a repetição do passado.

Estou tentando aqui dar ao leitor uma rá-pida idéia das minhas primeiras impressõesquando comecei a observar as pessoas que en-contrava. Logo se me tornou evidente, no en -tanto , que as pessoas que utilizavam as suasmentes era m as que "pensa vam" — ist o é,aque las que usavam as suas faculdades in-telectuais tentando adaptar-se a gentes e cir-cunstâncias. As pessoas igualmente inteligentesque não pensavam buscavam e encontravam oseu caminho através do ''sentimento''.

"S en timento" é uma pa la vra que pedeuma certa explicação. Por exemplo, falamos dossentimentos que nos inspira uma pessoa ou umacoisa. Mas também empregamos a mesma pa-lavra para definir uma opinião; por exemplo,um comunicado da Casa Branca pode dizer: "OPresidente sente..." Além disso, a palavra tam-bém pode ser usa da par a exp rimir uma in-tui ção : "Se nti que ... "

Quando uso a palavra "sent imento" emoposição a "pensamento" refiro-me a uma a-preciação, a um julgamento de valores — porexemplo, agradável ou desagradável, bom oumau, etc. O sentimento, de acordo com esta de-finição, não é uma emoção (que é involuntária).O sentir, na significação que dou à palavra (co-mo pensar), é uma função racional (isto é, or-ganizadora) enquanto a intuição é uma funçãoirracional (isto é, perceptiva). Na medida emque a intuição é um "palpite", não será, lo-gicamente, produto de um ato voluntár io; é,antes, um fenômeno involuntário — que de -pende de diferentes circunstâncias externas ouinternas — e não um ato de julgamento. A in-tuição é mais uma percepção sensorial que, porsua vez, também é um fenômeno irracional, jáque depende essencialmente de estímulos ob-jetivos oriundos de causas físicas e não mentais.

Estes quatro tipos funcionais correspondemàs quatro formas evidentes, através das quais aconsciência se orienta em relação à experiência.

A se nsação (i sto é, a percepção sensor ia l)nos diz que alguma coisa existe; o pensamentomostra -nos o que é esta coisa; o sentimento re-vela se ela é agradável ou não; e a intuição dir-nos-á de onde vem e para onde vai.

O leitor deve compreender que estes quatrocritérios, que definem tipos de conduta huma-na, são apenas quatro pontos de vista entre mui-tos outros, como a força de vontade, o tempera-mento, a imaginação, a memória, e assim pordiante . Nada há de dogmático a respeito deles,mas o seu caráter fundamental recomenda-os pa-ra uma classificação. Acho-os particularmenteúteis quando preciso explicar as reações dos paisaos filhos, as dos maridos às mulheres e vice-versa. Ajudam-nos também a compreender nos-sos próprios preconceitos.

Assim, para entender os sonhos de outraspessoas precisamos sacrificar nossas preferênciase reprimir nossos preconceitos. Não é fácil nemconfortável fazê-lo, desde que implica um esfor-ço moral nem sempre do nosso gosto. Mas se oanalista não fizer este esforço para criticar seuspróprios pontos de vista e admitir a sua relativi -dade, não há de obter a informação correta nema penetração suficiente, necessárias ao conheci-mento da mente do seu paciente. O analis ta es-pera da parte do paciente ao menos uma certaboa vontade a respeito das suas opiniões e da suaseriedade de propós itos. Quanto ao paciente,devem-lhe ser concedidos os mesmos direitos.Apesar de este tipo de relacionamento ser indis-pensável para qualquer bom entendimento — e,portanto, de evidente necessidade — precisamoslembrar -nos, repetidamente, que do ponto devista terapêutico é mais importante que o doen-te compreenda do que o analis ta obter a confir-mação de suas expectativas teóricas. A resistênciado paciente à inte rpre tação do anal ista não éuma reação errada; é, antes , sinal de que algonão está bem. Ou o paciente ainda não alcançouo estágio em que pode compreender , ou a inter-pretação não foi bastante adequada.

Nos esforços que fazemos para interpretaros símbolos onír icos de outra pessoa, quasesempre ficamos tolhidos por uma tendência parapreencher as inevitáveis lacunas da nossa com-preensão pela projeção — isto é, pela suposiçãode que aquilo que o analis ta percebe ou pensa éigualmente percebido ou raciocinado pelo autordo sonho. Para superar este manancial de erros,sempre ins ist i na importância de o médico se

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ater ao contexto de cada sonho, excluindo todasas hipóteses teóricas sobre sonhos em geral —exceto a de que os sonhos fazem um certo senti -do.

Com tudo o que dis se, cre io que deixeibem claro, assim, que não é possível estabelecer-se regras gerais para a interpretação dos sonhos.Quando expus a hipótese de que a função geraldos sonhos parece ser a de compensar deficiên-cias ou distorções da consciência queria dizerque esta suposição constituía o mais promissoracesso ao estudo dos sonhos particulares. Em al-guns casos esta função fica claramente evidencia-da.

Um dos meus pacientes tinha-se em altoconceito e não percebia que quase todos os seusconhecidos irritavam-se com seu ar de superiori-dade. Contou-me um sonho no qual vira um va-gabundo bêbado rolar numa sarjeta — espetácu-lo que apenas lhe provocara um comentário in-dulgente: "É horrí vel ver-se o quanto um ho-mem pode cair.'' É evidente que o caráter desa-gradável do sonho consti tuía, em parte, umatentativa de contrabalançar a sua vaidosa opi-nião sobre seus próprios méritos. Mas havia maisalguma coisa além disso. Acontecia que ele ti-nha um irmão alcoólatra. E então o sonho reve-lava, também, que aquela sua atitude superiorcompensava a figura do irmão, tanto interior co-mo exteriormente.

Lembro-me de outro caso de uma mulherque se orgulhava da sua inteligente percepção dapsicologia e que tinha sonhos recorrentes comuma outra mulher de suas relações. Na vidacotidiana não a apreciava, achando-a fútil e in-trigante. Mas nos sonhos ela lhe aparecia comose fora uma irmã, amiga e simpática. Minha pa-ciente não compreendia por que sonhava de ma-neira tão favorável com alguém de quem nãogostava. Mas seus sonhos estavam tentando co-municar-lhe a idéia de que os aspectos inconsci-entes do seu caráter projetavam uma "sombra"muito parecida com a outra mulher. Foi difícil àminha paciente, que tinha opiniões muito defi-nidas sobre a sua personal idade, aceit ar queaquele sonho se referia ao seu próprio complexode autoridade e a suas motivações ocultas — in-fluências inconscientes que, mais de uma vez,haviam provocado desagradá veis atri tos comseus amigos. Sempre culpara os outros por estasdesavenças e nunca a si própria.

Não é apenas o lado da "sombra'' de nossaspersonalidades que dissimulamos, desprezamose reprimimos. Podemos fazer o mesmo com nos-sas qualidades positivas. Um exemplo que meocorre é o de um homem aparentemente mo-desto, apagado e de maneiras encantadoras. Pa-recia contentar-se com um lugar nas últimas filasde qualquer reunião , mas insist ia discretamentecom a sua presença. Quando convidado a falartinha sempre uma opinião correta a dar, a des-peito de nunca intrometer -se. Algumas vezesdava a entender que determinado assunto pode-ria ser tratado de melhor forma e num nível maiselevado apesar de nunca explicar como fazê-lo.

Nos seus sonhos, no entanto, tinha en-contros freqüentes com figuras históricas céle-bres , como Napoleão e Alexa ndre, o Grande.Estes sonhos compensavam, claramente, umcomplexo de infer ioridade. Mas tinham aindaoutras impl icações. Que tipo de homem devoser, perguntava o sonho, para receber a visita depersonalidades tão ilustres? Neste particular osonho assinalava uma secreta megalomania , quecompensava o sentimento de inferioridade dopaciente. Esta idéia inconsciente de grandezaisolava-o da realidade do seu ambiente, manten-do-o afastado de uma série de obrigações que se-

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riam prementes para muitos outros . Não sentianecessidade alguma de provar — ou a si mesmoou a outras pessoas — que a super ioridade doseu autojulgamento estivesse fundamentada emméritos igualmente superiores.

Na verdade , jogava inconscientemente umjogo insano e os sonhos buscavam, de uma ma-neira curiosa e ambígua, dar-lhe consciência dis-to. Ser íntimo de Napoleão e dar-se muito bemcom Alexandre, o Grande é exatamente o tipode fantasia produzido por um complexo de infe-rioridade. Mas por que, pode mos pergunt ar-nos, não pode o sonho ser mais direto e aberto,dizendo o que tem a dizer sem tanta ambigüida-de?

Várias vezes já me fizeram esta pergunta. Eeu também já a fiz a mim mesmo. Fico surpresocom os caminhos tortuosos que os sonhos se-guem para evitar informações precisas ou omitiralgum ponto decisivo. Freud supôs que existiriauma função especial da psique, a que ele cha-mou "censura". A censura, segundo ele, é quedeformava as imagens do sonho tornando-as ir-reconhecíveis a fim de enganar a consciência queestá sonhando sobre o objetivo real do sonho.Ocultando do sonhador o pensamento crítico , a"cens ura " pro teger ia o seu sonho do cho que

provocado por reminiscências desagradáveis.Mas esta teoria que faz do sonho guardião do so-no deixa-me cético. Os sonhos, na verdade, es-tão sempre a perturbar o sono.

Parece-me, antes, que à aproximação daconsciência o conteúdo subliminar da psique se"apaga". O estado subliminar conserva idéias eimagens a um nível de tensão bem menor doque o que elas possuem quando conscientes. De-finem-se com menor clar eza; as suas inte r-relações são menos conseqüentes e repousam emanalogias mais imprecisas ; são menos racionaise, por tan to, mais "incompre ensíve is" . Estemesmo fenômeno pode ser observado em todasas condições vizinhas do sonho, provocadas pelocansaço, pela febre ou por tóxicos. Mas se al-guma coisa acontece, trazendo maior tensão aqualquer destas imagens, elas se tornam menossubliminares e, porque mais próximas do limiarda consciência, mais nitidamente definidas.

É esta observação que nos permite com-preender por que os sonhos tantas vezes se ex-pressam sob a forma de analogias, por que umaimagem onírica se funde numa outra , e por quenem a lógica nem a escala de tempo da nossa vi-da diária parecem ter neles qualquer aplicação.Os son hos tomam um aspec to nat ural par a o

À esquerda, um inveterado alcoólatrade uma favela de Nova Iorque (dofilme On the Bowery,de 1955). Umtipo assim pode aparecer nos sonhosde um homem que se julgue superioraos outros. O seu inconscientecompensa, deste modo, aparcialidade de sua consciência.

À direita, O Pesadelo, quadro dosuíço Henry Fuseli (século XVIII).Quase todo mundo já foi acordado,abalado e perturbado por algumsonho. Nosso sono não parece estarbem protegido contra a intromissãodos conteúdos do inconsciente.

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nosso inconsciente porque o material de que sãoproduzidos é retido em estado subliminar, pre-cisamente desta forma. Os sonhos não protegemo sono daquilo a que Freud chamou “desejo in-compatível” e o que ele considerava "disfarce"do sonho é, na verdade, a forma que os impulsostomam naturalmente no inconsciente. Assim,um sonho não pode produzir um pensamentodefinido. E se começar a fazê-lo, deixa de sersonho na medida em que estará atravessando olimiar da consciência. É por isto que os sonhossempre parecem passar por cima ou saltar exa-tamente os pontos mais importantes para o nos-so consciente, e revelam apenas a "fímbria daconsciência", como o brilho pálido das estrelasdurante um eclipse total do Sol.

Devemos entender que os símbolos do so -nho são, na sua maioria, manifestações de umaparte da psique que escapa ao controle do cons-ciente. Sentido e intenção não são prerrogat ivasda mente; atuam em toda a natureza vivente.Não há diferença de princípios entre o cres-cimento orgânico e o crescimento psíquico. As-sim como uma planta produz flores, assim a psi-que cria os seus símbolos. E todo sonho é umaevidência deste processo.

É, portanto através dos sonhos (além de todotipo de intuições, impulsos e outras ocorrênciasespontâneas) que as forças inst intivas influ-enciam a atividade do consciente. Que esta in-fluência seja boa ou má depende do conteúdoatual do inconsciente. Se contiver muitas coisasque normalmente deveriam ser conscientes, en-tão a sua função torna-se deformada e per-turbada. Aparecem motivos que não se baseiamnos instintos autênticos, mas que devem suaexistência e sua importância psíquica ao fato deterem sido relegados ao inconsciente em con-seqüência de uma repressão ou uma negligência.Eles recobrem, por assim dizer, a psique incons-ciente normal, e distorcem a sua tendência na-tural para expressar símbolos e motivos funda-mentais. Portanto, é aconselhável que o psi-canalista, ao buscar as causas de um distúrbiomental, comece por obter do seu paciente umaconfissão e uma compreensão mais ou menos vo-luntária de tudo o que gosta ou teme.

Este processo lembra a antiga confissão daIgrej a católica que, em muitos pontos, an-tecipou-se às técnicas da moderna psicologia,pelo menos como regra geral. Na prática, no en-tanto, pode dar -se o cont rár io; um sentime nto

de inferioridade excessivo ou uma séria fraquezapodem tornar difícil ou quase impossível ao pa-ciente enfrentar a evidência das suas deficiênciaspessoais. Por isso, muitas vezes preferi inicia rum trata men to dan do ao doe nte uma per s-pectiva positiva, que vai provê-lo de um valiososentido de segurança quando se aproximarem asrevelações mais dolorosas.

Tomemos como exemplo um sonho de"exaltação pessoa l" (mania de grandeza) noqual toma-se chá com a rainha da Inglaterra ouse conversa intimamente com o Papa. Se a pes-soa que sonha não for esquizofrênica, a inter -pretação prática do símbolo depende muito doseu estado de espíri to do momento — isto é, dacondição do seu ego. Se for uma pessoa que su-perestima suas qualidades, será fácil mostrar-lhe(partindo do material produzido pela associaçãode idéias) o quanto suas intenç ões são infantis eincongruentes, e como provêm do desejo puerilde igualar -se ou ser superior a seus pais. Mas sefor um caso de inferioridade — em que o in-divíduo fica de tal maneira saturado por um sen-timento de deméri to que este conceito passa adominar todos os aspectos positivos da sua per-sona lidade — seria um erro depr imi-lo aindamais mostrando-lhe o quanto é infantil, ridículoou mesmo perverso. Seu sentimento de infe-rioridade seria cruelmente aumentado e haveriaainda uma resistência indesejável e desnecessáriaao tratamento.

Não existe uma doutrina ou uma técnica te-rapêutica de aplicação geral já que cada caso quese recebe para tratamento é o de um indivíduoparticular , que possui condições específicaspróprias . Lembro-me de um paciente a quemtratei durante nove anos. Eu só o via umas pou-cas semanas em cada ano, pois morava no estran-geiro. Desde o início verifiquei qual era o seuproblema, mas vi também que a menor ten -tativa para chegar à verdade encontrava, da sua

À direita, os sonhos heróicos comque Walter Mitty (no filme extraído,em 1947, do romance de JamesThurber) compensa seu sentimentode inferioridade.

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parte, uma violenta reação defensiva que po-deria provocar uma ruptura entre nós. Gostasseeu ou não, precisava esforçar -me da melhor ma-neira para manter o nosso relacionamento,acompanhando suas inclinações e tendências,sustentadas por sonhos, e que sempre afastavamnossos diálogos das raízes da sua neurose. Nossasdiscussões perdiam-se em digressões tão longasque muitas vezes acusei-me de estar desviandomeu paciente do caminho acertado. E só não oconfrontei brutalmente com a verdade porque oseu estado melhorava clara , apesar de lenta-mente.

No décimo ano de tratamento, no entanto,meu paciente considerou-se curado e liberto detodos os sintomas antigos. Surpreendi-me porque teoricamente seu estado era incurável . No-tando o meu espanto ele sorriu e disse-me pra-ticamente o seguinte: "Quero agradecer-lhe,sobretudo pelo seu tato infalível e pela paciênciacom que me ajudou a contornar minha neurose .Agora posso dizer-lhe tudo sobre ela. Se conse-guisse falar livremente a seu respeito eu lhe teriacontado na primeira consulta. Mas teria assimdestruído toda a harmoni a da noss a relação. E

que seria de mim? Estaria moralmente arrasado.Nestes 10 anos aprendi a confiar no senhor; e àmedida que a minha confiança aumentava, me-lhorava o meu estado mental. Consegui me-lhorar porque este processo lento restituiu-me aconfiança em mim mesmo. Agora sinto-me forteo bastante para discuti r o problema que me es-tava dest ruindo.' '

Confessou-me então o seu problema deuma manei ra total mente franca, que me con-firmou por que o nosso tratamento teve, real -mente , de seguir aquele determinado curso. Oseu choque inicia l tinha sido de tal ordem quenão conseguira enfrentá-lo sozinho. Precisava daajuda de outra pessoa e o trabalho terapêuticoindicado era, muito mais do que a demonstraçãode uma teoria clínica, o lento restabelecimentoda sua confiança.

Casos como esse ensinaram-me a adaptarmeus métodos às necessidades de cada paciente,em lugar de me entregar a considerações teóricasgerais que talvez não se aplicassem a nenhum ca-so particular . O conhecimento da natureza hu-mana, que acumulei em 60 anos de experiênciaprática, ensinou-me a considerar cada caso como

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O Hospício, quadro de Goya. Notemo "rei" e o "bispo", à direita. Aesquizofrenia muitas vezes tomauma forma de "exaltação pessoal"(ou, em linguagem mais simples, demania de grandeza).

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um caso novo para o qual, em primeiro lugar,precisava encontrar um meio de aproximaçãoparticular e especial. Não hesitei, algumas vezes,em mergulhar num estudo minucioso de ocor -rências infantis e de fantasias. Outras vezes, co-mecei do alto, mesmo quando isto me obrigavaa elevar-me às mais abstratas especulações me-tafísicas. Tudo depende de aprender-se a lin-guagem própria do paciente e de seguir -se assondagens do seu inconsciente em busca de luz.Alguns casos pedem um determinado método,outros exigem um outro.

Isto é especia lmente verdadeiro quando seprocura interpretar sonhos. Dois indivíduos di -ferentes podem ter quase exatamente o mesmosonho (o que na experiência clínica vem-se a des-cobrir que é bem mais comum do que o leigopensa) . Mas se, por exemplo, uma das pessoasque sonha for jovem e a outra velha, o problemaque aflige a cada uma delas há de ser diferente e,logicamente , cometeríamos um absurdo in -terpretando os dois sonhos da mesma maneira.

Um exemplo de que me recordo é o de um

sonho em que um grupo de jovens a cavalo a-travessa um extenso campo. O sonhador é quemcomanda o grupo e salta um va lado cheio deágua, vencendo o obstáculo. O resto do grupocai na água. O jovem que primei ro me contoueste sonho era um tipo cauteloso e introvertido.Mas também ouvi o mesmo sonho de um velhode temperamento ousado, que tivera uma vidaativa e arrojada, mas que na época do sonho a-chava-se inválido e dava imenso trabalho a seumédico e à sua enfermeira. Naquele momento,por desobedecer às prescrições médicas, sua saú-de se agravara.

Estava claro que o sonho dizia ao jovem oque ele devia fazer. Já ao velho expressava o queele ainda fazia. Enquanto o jovem hesitante es-tava sendo encorajado, o velho não necessitavado mesmo tipo de estímulo — o espír ito ativoque ainda o sacudia interiormente era, na ver-dade, seu maior problema. Este exemplo nosmostra o quanto a interpretação de sonhos e desímbolos depende, em grande parte, das cir-cunstâncias individuais de quem sonha e do seuestado de espírito.

Como nos mostra esta vitrina de ummuseu, o feto humano parece-secom o de outros animais (e fornece,assim, indicações sobre a evoluçãofísica do homem). A psique também"evoluiu"; e alguns conteúdos doinconsciente do homem modernoparecem-se com produtos da mentedo homem primit ivo. Jung chamavaarquétipos a estes produtos.

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O arquétipo no simbolismo do sonho

Já sugeri que os sonhos servem a um pro -pósito de compensação. Tal suposição significaque o sonho é um fenômeno psíquico normal,que transmite à consciência reações incons -cientes ou impulsos espontâneos. Muitos sonhospodem ser interpretados com o auxílio do so-nhador, que providencia tanto as associaçõesquanto o contexto da imagem onírica por meiodos quais podemos explorar todos os seus as-pectos.

Este método convém a todos os casos co-muns — aqueles em que um parente, um amigoou um paciente conta um sonho no decorrer deuma conversa. Mas quando é um caso de sonhoobsessivo ou de sonhos com grande carga emo-cional, as associações pessoais produzidas pelosonhador não são, em regra, suficientes parauma interpretação satisfatória. Em tais casos pre-cisamos levar em conta o fato (primeiramenteobservado e comentado por Freud) de que numsonho muitas vezes aparecem elementos que nãosão individuais e nem podem fazer parte da ex-periência pessoal do sonhador. A estes elemen-tos, como já mencionei antes, Freud chamava"resíduos arcaicos" — formas mentais cuja pre-sença não encontra explicação alguma na vida doindivíduo e que parecem, antes , formas pri-mitivas e inatas, representando uma herança doespírito humano.

Assim como o nosso corpo é um verdadeiromuseu de órgãos, cada um com a sua longa evo-lução histórica, devemos esperar encontrar tam-bém na mente uma organização análoga. Nossamente não poderia jamais ser um produto semhistória , em situação oposta ao corpo em queexiste. Por "história" não estou querendo me re-ferir àquela que a mente constrói através de re-ferências conscientes ao passado, por meio da lin-guagem e de outras tradições culturais; refiro-me ao desenvolvimento biológico, pré-históricoe inconsciente da mente no homem primitivo,cuja psique estava muito próxima à dos animais.

Esta psique, infini tamente antiga , é a baseda nossa mente, assim como a estrutura do nossocorpo se fundamenta no molde anatômico dosmamíferos em geral. O olho treinado do anato-

mista ou do biólogo encontra nos nossos corposmuitos traços deste molde orig inal . O pes-quisador experiente da mente humana tambémpode verificar as analogias existentes entre asimagens oníricas do homem moderno e as ex-pressões da mente primitiva, as suas "imagenscoletivas" e os seus motivos mitológicos.

Assim como o biólogo necessi ta daanatomia comparada, também o psicólogo nãopode prescindir da "anatomia comparada dapsique". Em outros termos, o psicólogo precisa,na prática, ter experiência suficiente não só desonhos e outras expressões da atividade in -consciente , mas também da mitologia no seusent ido mais amplo. Sem esta bagagem in-telectual ninguém pode identificar as analogiasmais importantes; não será possível, por exem-plo, verificar a analogia existente entre um casode neurose compulsiva e a clássica possessão de-moníaca sem um conhecimento exato de ambos.

O meu ponto de vista sobre os "resíduos ar-cai cos", a que chamo "arqué tipos" ou "ima-gens primordiais", tem sido muito criticado poraqueles a quem falta conhecimento suficiente dapsicologia do sonho e da mitologia. O termo"arquétipo" é muitas vezes mal compreendido,julgando-se que expressa certas imagens ou mo-tivos mitológicos definidos. Mas estes nada maissão que representações conscientes: seria absur-do supor que representações tão variadas pudes-sem ser transmitidas hereditariamente.

O arquétipo é uma tendência para formarestas mesmas representações de um motivo —representações que podem ter inúmeras varia -ções de detalhes — sem perder a sua configura -ção original. Existem, por exemplo, muitas re-presentações do motivo irmãos inimigos, mas omotivo em si conserva-se o mesmo. Meus críticossupuseram, erradamente, que eu desejava re-ferir-me a "representações herdadas" e, em con-seqüência , rejeitaram a idéia do arquétipo comose fosse apenas uma superstição. Não levaramem conta o fato de que se os arquétipos fossemrepresentações originadas em nossa consciência(ou adquiridas por ela) nós certamente os com-preenderíamos, em lugar de nos confundirmos e

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As imagens arquetípicas do homemsão tão instintivas quanto a habilidadedos gansos para emigrar (emformação); como a das formigas parase organizarem em sociedades; comoa dança das abelhas (acima), que comum movimento traseiro comunicam àcolmeia a localização exata dealimento.

Um professor contemporâneo teveuma "visão" exatamente igual à deuma xilogravura de um velho livroque não conhecia. À direita, a páginade rosto do livro e uma outra gravurasimbolizando a união dos elementosmasculino e feminino. Estes símbolosarquetípicos vêm de uma basecoletiva milenária da psique.

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espantarmos quando se apresentam. O ar-quét ipo é, na realidade, uma tendência ins-tintiva, tão marcada como o impulso das avespara fazer seu ninho ou o das formigas para seorganizarem em colônias.

É preciso que eu esclareça, aqui, a relaçãoentre instinto e arquétipo. Chamamos instintoaos impulsos fisiológicos percebidos pelos sen-tidos. Mas, ao mesmo tempo, estes instintos po-dem também manifestar-se como fantasias e re-velar, muitas vezes, a sua presença apenas a-través de imagens simbólicas. São a estas ma-nifestações que chamo arquétipos. A sua origemnão é conhecida; e eles se repetem em qualquerépoca e em qualquer lugar do mundo — mesmoonde não é possível explicar a sua transmissãopor descendência direta ou por "fecundaçõescruzadas" resultantes da migração.

Recordo-me de muitos casos de pessoas quevieram consultar-me porque estavam confusas eperdidas com os seus sonhos ou com os de seusfilhos. Encontravam-se perturbadas com os ter-mos dos sonhos. Tratava-se de sonhos que con-tinham imagens que aqueles pacientes não con-seguiam relacionar com nenhuma das suaslembranças ou com idéias que pudessem tertransmitido aos filhos. No entanto, muitas des-tas pessoas possuíam instrução superior e haviamesmo, entre eles, alguns psiquiatras.

Lembro-me especialmente do caso de umprofessor que teve de repente uma visão e julgouter enlouquecido. Veio ver-me em estado de pâ-nico. Apanhei da estante um livro de 400 anos emostrei-lhe uma velha xilogravura que retratavaexatamente a visão que tivera. ''Não há razão al-guma para que se creia louco", disse-lhe. "Suavisão já era conhecida há 400 anos.'' Depois dis-so sentou-se, abatido, numa cadei ra, mas já noseu estado normal.

Um caso muito importante foi o de um psi-quiatra que veio procurar -me. Trouxe-me umpequeno cade rno manuscr ito que receber a dasua filha de 10 anos como presente de Natal.Continha uma série de sonhos que ela tivera aosoito anos de idade. Foi a série de sonhos maisfan tás tica que já vi e pude bem entender porque deixaram o pai tão intrigado. Apesar de in-fantis, os desenhos tinham algo de sobrenaturale a origem de suas imagens era absolutamenteincompreens ível para o meu clien te. Seguemabaixo os motivos principais da série de sonhos:

1. A "fera malvada", um monst ro com for -ma de serpente e muitos chifr es, mata e devoratodos os outros animais. Deus, no entanto, aço-de vindo de quat ro cant os (sendo na realidadequat ro deuses separados) e ressusci ta todos osanimais mortos.

2. Uma ascensão aos céus onde se celebram

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danças pagãs; e uma descida ao inferno, onde osanj os estão praticando boas açõ es.

3. Uma ho rd a de pe qu en os an ima is ame -dron ta a menina que so nha. Os animais cresce massustadoramen te e um de le s devora a menina .

4. Um pequeno camu ndongo é inva didopo r vermes , se rpen te s, pe ixes e se re s hu manos.E, assim, torna-se humano . Es te sonho represen-ta as quat ro etapas da or igem da humanidade .

5. Uma gota d'água aparece como se obser -vada ao mic roscópio. A menina vê que a gota es-tá cheia de galhos de árvore . O sonho representaa or igem do mundo.

6. Um me ni no mau te m na s mã os um to r -rão de te rr a e jo ga pequ en os fr agmen to s em to-do s os qu e pa ss am . De st e modo , to do s os tr an -seun te s ta mbém se to rn am maus .

7. Uma mulher bêbada ca i na água e sai re -generada e sóbria.

8. A cena passa-se na América , onde muitaspe ss oa s ro la m so br e um fo rm ig ue ir o, at ac ad aspe la s fo rm ig as . A me ni na, em pâ ni co , ca i de n-tro de um rio.

9. Um de se rt o da lu a, em cu jo so lo a me -ni na pe ne tr a tã o pr of un da me nt e qu e ch eg a aoin ferno.

10. Ne st e so nh o, a me ni na te m a vi sã o deuma bola luminosa e a toca . Saem vapores destabo la . Ch eg a um ho me m qu e a mata .

11. A me nini nha so nha que está gr ave -me nt e do en te .

12. Enxames de mosquitos escurecem o sol ,a lua e todas as estrelas, com exceção de uma. Es-ta es trela ca i em cima da menina .

No te xto al em ão or ig in al cada so nho co -meça com as trad ic ionais pa lavras dos ve lhosconto s de fad a: "Era uma vez .. ." Com iss o, amenininha sugere que cada sonho é uma espéciede conto de fad as , que ela quer conta r ao pai co -mo pres en te de Na ta l. O pa i te ntou en co nt ra rexp licação par a os sonho s em termos do seu con-texto . Mas não consegui u, pois não parec ia havernel es qualq uer associaçã o pesso al.

A possibil idade de que estes sonhos fosse mprod utos de uma elaboração conscien te só po-de ri a, é cl ar o, se r af as ta da po r al gu ém qu e co-

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Algumas referências semelhantes aosmotivos arquetípicos do primeiro sonhoda menina (pág. 70): á esquerda, naCatedral de Strasburgo, Cristocrucificado sobre o túmulo de Adão —simbolizando o tema da reencarnação(Cristo é considerado o segundo Adão).Acima, numa pintura navajo em areia, ascabeças com ch ifres representam osquatro cantos do mundo. Na cerimôniada coroação, na Inglaterra, o monarca (ádireita, a Rainha Elizabeth II em 1953) éapresentado ao povo diante das quatroportas da Abadia de Westminster.

nhecesse suficientemente a criança para ter certe-za da sua sinceridade (mesmo sendo ima-ginários, no entanto, continuariam a desafiar anossa compreensão). Neste caso, o pai estavaconvencido da autenticidade dos sonhos, e nãotenho razões para duvidar disto. Conheci a me-nina antes da época em que deu os sonhos aopai, por isso não lhe pude fazer perguntas a res-peito. Ela vivia no estrangeiro e morreu de umadoença infecciosa um ano depois desse Natal.

Estes sonhos da menina apresentavam umcaráter decididamente singular. As idéias do-minantes são de natureza marcadamente filosó-fica. O primeiro sonho, por exemplo, fala de ummonstro mau que mata todos os outros animais,mas Deus os ressuscita a todos por meio de umApokatastasis, ou restituição.

No mundo ocidental esta é uma idéia co-nhecida graças à tradição cristã. Pode ser en-contrada nos Atos dos Apóstolos III, 21: "[Cris-to] , a quem o céu deve conter até os tempos darestituição de todas as coisas... " Os primitivos

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padres gregos da Igreja (como Orígenes, porexemplo) insistiam especialmente que, no finaldos tempos, tudo seria restituído ao seu estadoperfeito e original pelo Redentor. Mas, de acor-do com São Mateus XVII, 11, havia uma velhatradição judaica de que Elias "em verdade viráprimeiro, e restaurará todas as coisas" . En-contramos a mesma idéia na I Epístola aos Co-ríntios (XV, 22): "Porque assim como todosmorrem em Adão, assim também todos serão vi-vificados em Cristo.' '

Pode-se supor que a criança terá encontradoeste pensamento na sua educação religiosa. Mastin ha uma cul tur a rel igiosa mui to pequena.Seus pais eram protestantes, mas na verdadeconheciam a Bíblia "de ouvir falar". E muitopouco provável , também, que a imagem re-côndita da Apokatastasis tenha sido explicada àmenina. E, certamente, seu pai nunca ouvira fa-lar deste mito.

Nove dos doze sonhos estavam influencia-dos pelo tema de destruição e restauração. Enenhum deles revela qualquer traço de umaeducação ou de uma influência especificamente

cristã. Ao contrário, estão mais relacionados commitos primitivos. Esta relação se confirma emum outro motivo — o mito cosmogô nico (acriação do mundo e do homem), que aparece noquarto e quinto sonhos. A mesma conexão é en-contrada na Epístola aos Coríntios, que citei .Nesta passagem, também Adão e Cristo (mortee ressurreição) estão ligados.

A idéia geral de um Cristo Redentor per-tence ao tema universal e pré-cristão do herói esalvador que, apesar de ter sido devorado porum monstro, reaparece de modo milagroso, ven-cendo seja qual for o animal que o engoliu . Deonde e quando este motivo surgiu, ninguém sa-be. E tampouco sabemos de que maneira condu-zir a investigação deste assunto. A única certezaaparente é que este motivo parece ter sido co-nhecido tradicionalmente em cada geração, quepor sua vez o recebeu de gerações precedentes.Assim, podemos supor, sem risco de erro, que asua "origem" vem de um período em que o ho-mem ainda não sabia que possuía o mito do he-rói ; numa época em que nem mesmo ref let ia,de maneira consciente , naquilo que dizia . A fi-

Acima, o deus-herói Raven (dos índiosHaida, da costa do Pacífico) no ventrede uma baleia —correspondendo aomotivo do "monstro devorador" doprimeiro sonho da menina (pág, 70).

O segundo sonho da menina, a respeitodos anjos e demônios no céu, parecerepresentar a idéia darelatividade damoral. O mesmo conceito estáexpresso no duplo aspecto do anjodecaído queé, a um tempo, Satanás, odemônio, e (á direita) Lúcifer, oresplandecente portador da luz. Estescaracteres opostos podem também serobservados à extrema direita nodesenho de Blake, onde Deus aparecea Jó, num sonho, com os cascosfendidos do demônio.

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gura do herói é um arquétipo, que exis te hátempos imemoriais.

A produção de arquétipos por crianças éespecia lmente importante porque, algumas ve-zes, podemos ter certeza de que a criança não te-rá tido nenhum acesso direto à tradição em jogo.Neste último caso, por exemplo, a família damenina possuía um conhecimento muito super-ficial das tradições cristãs.

Os temas cristãos podem, naturalmente, serrepresentados através de idéias de anjos, deDeus, de céu, do inferno e do mal. Mas a ma-neira por que foram tratados por esta criança nãoindica, absolutamente, uma origem cristã.

Observemos o primeiro sonho de um Deusque, na verdade, é const ituído por quatro deu-ses, que vêm de ''quatro cantos''. Cantos de quelugar? Não há nenhum aposento mencionado nosonho. Nem mesmo caberia a imagem de umquarto naquele acontecimento evidentementecósmico, em que o próprio Ser Supremo in-te rvi nha. A própria idéia de uma "qua-ternidade" (o elemento "quatro") é estranha,apesar de ocupar um lugar de relevo em muitas

religiões e filosofias. Na religião cristã este ele-mento foi substituído pela trindade, noção quea criança provave lmente conhecia. Mas quem,de uma família comum da classe média, teriaouvido falar em uma quaternidade divina? Já foiuma imagem bastante familiar entr e os es-tudantes da filosofia do Hermetismo, na IdadeMédia, mas no início do século XVIII já estavaesgotada como idéia e há bem uns 200 anos tor-nou-se obsoleta. Então, onde a terá ido buscar ameninazinha? Na visão de Ezequiel? Mas ne-nhum ensinamento cristão ident ifica o serafimcom Deus.

Pode-se fazer a mesma pergunta a respeitoda serpente de chifres. Na Bíblia, é certo, exis-tem muitos animais com cornos, como no Apo-calipse. Mas todos parecem ser quadrúpedes,apesar de terem como senhor um dragão, cujonome grego (drakori) também significa ser -pente. A serpente de chifres aparece na alquimialatina do século XVI como a quadricornutus ser-pens (a serpente de quatro cornos) , símbolo deMercúrio e adversária da trindade cristã. Mas estaé uma referência bastante vaga . Tanto quan to

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consegui descobrir, ela só foi mencionadapor um único autor. E a esta criança teria sidoimpossível qualquer conhecimento do assunto.

No segundo sonho , apa rece um mot ivoque, decididamente, não é cristão e contémuma verdadeira inversão de valores — porexemplo, danças pagãs executadas peloshomens no céu e boas ações praticadas poranjos no inferno. Este símbolo sugere umarelatividade de valores morais. Onde teria acriança buscado noções tão revolucionárias,dignas da genialidade de um Nietzsche?

Estas perguntas levam-nos a outra: qual osignificado compensador destes sonhos, a quea menina obviamente atribuía tantaimportância a ponto de oferecê-los ao paicomo presente de Natal?

Se a pessoa que os sonhou fosse o feiticeirode alguma tribo primitiva, podia-se supor querepresentassem variações sobre os temas fi -losóf icos da morte, da ressurrei ção ou res -tituição, da origem do mundo, da criação dohomem e da relatividade dos valores . Masinterpretados num nível pessoal tinha -se quedesistir de analisá-los devido à sua invencíveldificuldade. Contêm, sem dúvida, "imagenscoletivas", e são, de certo modo, análogos àsdoutrinas de iniciação ministradas aos rapazesnas tribos primi tivas . Nesta época, ensinam -lhes o

que Deus, ou os deuses, ou os animais "fun-dadores" fizeram, como o mundo e os homensforam criados, como ocorrerá o fim do mundo equal o significado da morte. Existe alguma cir-cunstância, na nossa civilização, em que se pres-te este tipo de ensinamento? Sim; na ado -lescência. Mas muitas pessoas só chegam a re-memorar estas coisas na velhice, ao sentirem aaproximação da morte.

Ora, acontece que a menina encontrava-se,a um tempo, nestas duas situações. Aproximava-se da puberdade e, ao mesmo tempo, do fim desua vida. Quase nada no simbolismo dos seussonhos indicava o início de uma vida adulta nor-mal, mas existiam inúmeras alusões a des -truições e a reconst ituições. Quando pela pri-meira vez tomei conhecimento dos seus sonhostive, na verdade, a sensação perturbadora de quesugeriam um desastre iminente. A razão para is-to estava na natureza tão peculiar da compensa-ção que percebi no seu simbolismo. Era o opostodo que se poderia encontrar na consciência deuma menina daquela idade.

Estes sonhos revelam-nos um aspecto novoe bastante aterrador da vida e da morte. Podia-seesperar este tipo de imagem em uma pessoa en -velhecida, de olhos voltados para o passado, enão numa criança que normalmente olha à suafrente . A sua atmosfera lembra mui to mais o

Os sonhos da menina (á pág. 70)contêm símbolos da criação, damorte e do renascimento, lembrandoos ensinamentos ministrados aosadolescentes nos ritos primitivos deiniciação. À esquerda, o final de umacerimônia navajo: uma menina,tendo-se feito mulher, vai ao desertomeditar.

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velho ditado romano, segundo o qual "a vida éum curto sonho", do que a alegr ia e a exu-berância da idade primaveril. Para esta criança, avida era o ver sacrum vovendum (o voto de sa-crif ício vernal) de que fala o poeta. A ex-periência nos mostra que a aproximação impres-sentida da morte lança um adumbratio (sombraantecipadora) sobre a vida e os sonhos da vítima.Mesmo o altar das igrejas cristãs representa, deum lado, o sepulcro e, de outro, a ressurreição— isto é, a transformação da morte em vida eter-na.

Foram estas as idéias que os sonhos trouxeramà criança. Eram uma preparação para a morte,expressa através de pequenas histórias, como oscontos narrados nas cerimônias primitivas de ini-ciação ou os Koans, do Zen-budismo. Foi umamensagem em nada parecida com a doutrina or-todoxa cristã, e sim com o pensamento da genteprimitiva. Deve ter-se originado fora da tradiçãohistórica, em fontes psíquicas há muito esqueci-das e que, desde os tempos pré-históricos, têmalimentado a especulação religiosa e filosófica arespeito da vida e da morte.

Foi como se acontecimentos ainda por virprojetassem de volta a sua sombra, despertandona criança certas formas de pensamento que,apesar de habitualmente adormecidas, descre-vem ou acompanham a aproximação de um des-

fecho fatal. Apesar de sua maneira específica deexpressão ter características mais ou menos pes-soais, o seu esquema geral é coletivo. Estasformas de pensamento são encontradas em todasas épocas e em todos os lugares e, exatamentecomo os instintos animais, variam muito deuma espécie para outra, apesar de servirem aosmesmos propósitos gerais. Não acreditamos quecada animal recém-nascido crie seus própriosinstintos como uma aquisição individual, etampouco podemos supor que cada ser humanoinvente, a cada novo nascimento, umcompor tamento específico. Como os instintos,os esquemas de pensamentos coletivos da mentehumana também são inatos e herdados. E agem,quando necessário, mais ou menos da mesmaforma em todos nós.

Manifestações emocionais, a que pertencemestes esquemas de pensamento, são reconhecida-mente as mesmas em toda parte. Podemos iden-tificá-las até nos animais que, por sua vez, asidenti ficam ent re eles, mesmo quando per -tencem a espécies diferentes. E os insetos, comsuas complicadas funções simbióticas? A maioriadeles nem conhece os pais e não tem ninguémpara ensinar-lhes nada. Então por que supor queser ia o homem o único ser vivo privado de ins-tintos específi cos, ou que a sua psique des -conheça qualquer vestígio da sua evolução?

Simbolismos da morte e dorenascimento também aparecem nossonhos finais, quando a aproximaçãoda morte lança a sua sombra sobre opresente. Ao lado, um dos últimosquadros de Goya: a estranha criatura,aparentemente um cão, que emergeda escuridão pode ser interpretadacomo uma premonição que o artistateve de sua morte. Em muitasmitologias, os cães aparecem comoguias para o país dos mortos.

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Naturalmente, se ident ificarmos a psiquecom a consciência, poderemos formar a idéia fal-sa de que o homem vem ao mundo com umapsique vazia e que, anos depois, ela irá conter,apenas, o que aprendeu na sua experiência indi-vidual. Mas acontece que a psique é mais do quea consciência. Apesar de a consciência dos ani-mais ser muito limitada, inúmeros dos seusimpulsos e reações demonstram a exis tênciade uma psique; e povos primitivos praticamuma série de atos cuja significação ignoramtotalmente.

Podemos perguntar, em vão, a muita gentecivilizada sobre o significado da árvore de Natalou do ovo de Páscoa. A verdade é que fazemosinúmeras coisas sem saber por quê. Inclino-me apensar que, geralmente, as coisas eram feitas emprimeiro lugar, e só depois de muito tempo éque alguém indagava por quê. O psicólogo en-contra , com freqüência, pacientes de grande in -teligência que se comportam de maneira singulare imprevisível, não guardando a menor idéia doque dizem ou fazem. De repente, entram numacrise de humor irracional e despropositado, quenão conseguem explicar.

Estas reações e impulsos parecem ser, apa-rentemente, de natureza pessoal muito íntima, enós os consideramos apenas uma forma de com-portamento idiossincrásico. Na verdade, fun-damenta -se num sistema instintivo pré-formadoe sempre ativo, característico do homem. Formasde pensamento, gestos de compreensão univer-sal e inúmeras atitudes seguem um esquema es-tabelecido muito antes de o homem ter de -senvolvido uma consciência reflexiva.

E mesmo poss ível que as longínquas ori-

gens da capacidade de reflexão do homem ve-nham das dolorosas conseqüências de choquesemocionais violentos. Tomemos, à guisa de sim-ples ilus tração, o caso de um homem rústicoque, num momento de raiva e desapontamentopor não ter conseguido pescar um só peixe, es-trangula o seu único filho, e então, enquanto se -gura nos braços o pequeno cadáver, enche-se deremorsos. Este homem vai lembrar-se deste mo-mento de dor o resto de sua vida.

Não podemos saber se este tipo de ex-periência foi, efetivamente, motivo inicial dodesenvolvimento da consciência humana. Masnão resta dúvida de que um choque de naturezaemocional é muitas vezes necessário para que aspessoas acordem e se dêem cont a da maneiraque estão agindo. Há o caso famoso de umfidalgo espanhol do século XIII, Raimon Lull,que consegui u marcar (depois de uma ver -dadei ra "caçada") um encontro secreto com adama a quem admirava. Na ocasião do en-contro, ela abriu silenciosamente o vestido emostrou-lhe o seio, roído pelo câncer. O choquemudou por comple to a vida de Lull; tornou-seum teólogo eminente e um dos mais importan-tes missionários da Igreja. Num destes casos demudança drástica de comportamento pode -se,inúmeras vezes, provar que um arquétipo tra-balhava já há muito tempo no inconsciente, ar-ranjando habilmente as circunstâncias que leva-riam a este tipo de crise.

Estas experiências parecem revelar que asestruturas arquetípicas não são apenas formas es-táticas, mas fatores dinâmicos que se manifes-tam por meio de impulsos, tão espontâneosquan to os instintos . Cert os sonhos, visões ou

Alguns sonhos parecem predizer ofuturo (talvez devido a umconhecimento inconsciente daspossibilidades que estão por vir) e épor isso que foram, durante muitotempo, utilizados como vaticínios.Na Grécia, os doentes pediam aEsculápio, o deus da medicina, umsonho para indicar-lhes a cura. Àesquerda, um alto-relevorepresentando esta terapêutica dosonho: uma serpente (símbolo dodeus) morde o ombro doente de umhomem e o deus (á esquerda) o cura.À direita (num quadro italiano,aproximadamente de 1460),Constantino sonha, antes de umabatalha que deveria fazê-loimperador de Roma. Sonhava com acruz, símbolo de Cristo, quando umavoz lhe disse: "Sob este signovencerás." Tomou aquele sinal comoemblema, ganhando a batalha econvertendo-se, assim, aocristianismo.

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pensamentos podem aparecer de repente e, pormais cuidadosamente que se investigue, não sedescobre o que os motivou. Não quer dizer quenão exista uma causa; certamente há, mas tãoremota e obscura que não se consegue distingui -la. Neste caso, deve-se esperar até compreendermelhor o sonho e seu significado, ou até que al-guma ocorrência externa aconteça, explicando osonho.

No momento do sonho tal ocorrência aindapode pertencer ao futuro. Mas, assim como nos-sos pensamentos conscientes muitas vezes seocupam do futuro e de suas possibil idades, tam-bém ocorre o mesmo com o inconsciente e seussonhos. Duran te muito tempo acreditou-se quea principal função do sonho era prever o futuro.Na antigüidade e até a Idade Média, os sonhosfaziam parte do prognóstico dos médicos. Possoconfirmar por um sonho atual este mesmo ele-mento de prognose (ou premonição) que en-cont ramos num ant igo sonho, citado por Ar -temídores de Daldis, no século II. Um homemsonhou que seu pai morria nas chamas do in-cêndio de sua casa. Não muito tempo depois, opróprio homem morria com um phlegmone (fo-go ou febre elevada), que presumo fosse pneu-monia.

Aconteceu a um colega meu ter uma febregangrenosa fatal — um verdadeiro phlegmone.Um antigo paciente seu, que nada sabia a res-peito do que sofr ia o meu colega, sonhou queele morrera em meio a um grande incêndio. Na-quela ocasião, o médico acabara de ser levado aohospital e sua doença ainda estava em fase ini-cial. A pessoa que teve o sonho não sabia que eleestava doente nem internado num hospital. Trêssemanas mais tarde o médico morreu.

Como mostra este exemplo, os sonhos po -

dem adquirir um aspecto de antecipação ou deprognóstico, e quem os for interpretar deve levaristo em conta , sobre tudo quando um sonho quetenha um sentido evidente não oferece um con-texto que o explique satisfatoriamente. Este tipode sonho pode surgir do nada e a gente se per-gunta o que o motivou. Se conhecêssemos a suamensagem posterior, logicamente esclarecería-mos as suas causas. Porque só a nossa consciênciaé que ainda nada sabe a seu respeito; o incons-ciente está informado e já chegou a uma con-clusão — que é expressa no sonho. Na verdade,parece que o inconsciente tem a capacidade deexaminar e concluir, da mesma maneira que oconsciente. Pode mesmo utilizar certos fatos eantecipar seus possíveis resultados, precisamenteporque não estamos conscientes deles.

Tanto quanto podemos julgar através dossonhos, o inconsciente toma suas deliberaçõesinsti ntivamente . Esta distinção é importante.Uma análise lógica é prerrogativa da consciên-cia: selecionamos de acordo com a razão e o co-nhecimento. O inconsciente, no entanto, pareceser dirigido principalmente por tendências ins-tintivas, representadas por formas de pensamen -to correspondentes — isto é, por arquét ipos.Um médico a quem se pede que descreva a mar-cha de uma doença vai empregar conceitos racio-nais, como "infecção" ou "febre". O sonho émais poético: ele apresenta o corpo doente dohomem como se fosse a sua casa terrestre, e a fe -bre como o fogo que a destrói.

Como mostramos no sonho acima a mente,ao utiliza r o arquétipo, resolveu a situação domesmo modo que o fazia na época de Ar-temídores. Algo de natureza mais ou menos des-conhecida foi intui tivamente dominado pelo in-cons ciente e submeti do à ação dos arquét ipos.

No sonho de Artemídores, citadonesta página, uma casa em chamassimboliza a febre. O corpo humanoé, muitas vezes, representado comouma casa; á esquerda, em umaenciclopédia hebraica do séculoXVIII, um corpo humano e uma casasão comparados detalhadamente -ostorreões são as orelhas, as janelas osolhos, um forno o estômago etc. Âdireita, numa caricatura de JamesThurber, um marido reprimido vê suamulher e sua casa como se fossemum único ser.

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Isto sugere que em lugar do processo de raciocí-nio que o pensamento consciente teria emprega-do a mente arquetípica o substitui, assumindouma tarefa de prognost icação. Os arquétipossão, assim, dotados de iniciativa própria e tam-bém de uma energia específica, que lhes é pecu-liar. Podem, graças a esses poderes, fornecer in-terpretações significativas (no seu estilo simbóli-co) e interferir em determinadas situações comseus próprios impulsos e suas próprias formaçõesde pensamento. Neste particular, funcionam co-mo complexos; vão e vêm à vontade e, muitasvezes, dificultam ou modificam nossas intençõesconscientes de maneira bastante perturbadora.

Pode-se perceber a energia específica dosarquétipos quando se tem ocasião de observar ofascínio que exercem. Parecem quase dotados deum feitiço especial. Qualidade idêntica caracte-riza os complexos pessoais; e assim como oscomplexos pessoais têm a sua história indivi -dual, também os complexos sociais de caráter ar-quetípico têm a sua. Mas enquanto os comple -xos individuais não produzem mais do que sin-gularidades pessoais, os arquétipos criam mitos,religiões e filosofias que influenciam e caracteri-zam nações e épocas inteiras. Consideramos oscomplexos pessoais compensações de atitudesunilaterais ou censuráveis da nossa consciência;do mesmo modo, mitos de natureza religiosapodem ser interpretados como uma espécie deterapia mental generalizada para os males e an-siedades que afligem a humanidade — fome,guerras, doenças, velhice, morte.

O mito universal do herói, por exemplo, re-fere-se sempre a um homem ou um homem-deus poderoso e possante que vence o mal, a-presentado na forma de dragões, serpentes,monstros, demônios, etc. e que sempre livra seu

povo da destruição e da morte. A narração ou re-citação ritual de cerimônias e de textos sagradose o culto da figura do herói , compreendendodanças, música, hinos, orações e sacrifícios,prendem a audiência num clima de emoções nu-minosas (como se fora um encantamento mági-co), exaltando o indivíduo até sua identificaçãocom o herói.

Se tentarmos ver este tipo de situação comolhos de crente talvez possamos compreendercomo o homem comum pôde se libertar da suaimpotência e da sua miséria para ser contempla -do (ao menos temporariamente) com qualidadesquase sobre-humanas. Muitas vezes, uma con-vicção assim pode sustentá-lo por longo tempo edar um certo estilo à sua vida. Poderá até mesmocaracter izar uma sociedade inteira. Temos umexcepcional exemplo disto nos mistérios de Eleu-sis -, que foram por fim extintos no começo doséculo VII da era cristã. Expressavam, juntamen-te com o oráculo de Delfos, a essência e o espí-rito da antiga Grécia. Numa escala muito maior,a própria era cristã deve seu nome e sua signifi -cação ao velho mistério do homem-deus, cujasraízes procedem do mito arquetípico de Osíris eOrus, do antigo Egito.

Supõe-se, habi tualmente , que numa oca-sião qualquer da época pré-histórica as idéiasmitológicas fundamentais foram "inventadas"por algum sábio e velho filósofo ou profeta e,depois disso, então, "acreditadas" por um povocrédulo e pouco crítico. Diz-se também que his-tórias contadas por algum sacerdote ávido de po-der não são "verdades", mas simples "raciona-lizações de desejos". Entretanto, a própria pala-vra "inventar" deriva do latim invenire e signi-fica "encontrar" e, portanto, encontrar "procu-

A energia dos arquétipos pode serconcentrada (através de ritos e outrosapelos à emoção das massas) com oobjetivo de levar as pessoas a açõescoletivas. Os nazistas sabiam disto eutilizavam diversas versões de mitosteutônicos para arregimentar o povopara a sua causa. À extrema direita, umcartaz de propaganda retrata Hitlercomo um heróico cruzado. Ao lado ,uma festa de solstício de verão,celebrada pela Juventude Hitlerista -ressurrei ção de uma antiga solenidadepagã.

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Ao alto, desenho infantil sobre oNatal, incluindo a tradicional árvoreenfeitada de velas. A árvore coníferaestá ligada a Cristo pelo simbolismodo solstício do inverno e do "anonovo" (a nova era da Cristandade).Há muitas conexões entre Cristo e osímbolo da árvore: a cruz é muitasvezes representada por uma árvore,como se vê no afresco medievalitaliano, á esquerda, onde Cristo estácrucificado na árvore da sabedoria.As velas, nas cerimônias de Natal,simbolizam a luz divina, como nafesta sueca de Santa Lúcia (acima),onde as jovens usam coroas de velasiluminadas.

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rando". No segundo caso, a própria palavra su-gere uma certa previsão do que se vai achar.

Retornemos às estranhas idéias contidas nossonhos da menina. Parece pouco provável queela as tenha procurado já que se surpreendeu aoachá-las. É mais fácil que lhe tenham ocorridoapenas como histórias bizarras e inespe radas,que lhe pareceram importantes o bastante paraque as desse de presente de Natal ao pai. Mas aofazer isto, no entanto, ela as elevou à esfera domistério cristão eterno — o nascimento do Se-nhor, associado ao segredo da árvore sempre ver-de, portadora da Luz que acaba de nascer (alusãoao quinto sonho).

Apesar de haver ampla evidência históricana relação simbólica entre Cristo e a árvore, ospais da menininha haviam de ficar seriamenteembaraçados se lhes perguntassem o que signifi-cava enfeitar uma árvore com velas para celebraro nascimento de Cristo. "Ora, é apenas um cos-tume cristão!" teriam respondido. Uma respostamais cuidada envolveria uma dissertação profun-da sobre o antigo simbolismo da morte de umdeus e sua relação com o culto da Mãe Grande eseu símbolo, a árvore — isto para mencionarapenas um dos aspectos deste intrincado proble-ma.

Quanto mais pesquisamos as origens deuma "imagem coletiva" (ou, para nos expres-sarmos em linguagem eclesiástica, de um dog-ma) mais vamos descobrindo uma teia de esque-mas de arquétipos aparentemente interminávelque, antes dos tempos modernos, nunca haviamsido objeto de qualquer reflexão mais séria. As-sim, paradoxalmente, sabemos mais a respeitode símbolos mitológicos que qualquer outra dasgerações que nos precederam. A verdade é queos homens do passado não pensavam nos seussímbolos. Viviam-nos, e eram inconscientementeestimulados pelo seu significado.

Posso dar como exemplo uma experiênciaque tive com tribos primitivas do Monte Elgon,na África. Todos os dias, ao amanhecer, saemdas suas cabanas, sopram ou cospem nas mãos eas erguem em direção aos primeiros raios do sol,como se estivessem oferecendo o seu sopro ou asua saliva ao deus nascente — mungu. (Estetermo do dialeto swahili, usado para explicarum ato ritual, deriva de uma raiz polinésicaequivalente a mana ou mulungu. Esta e outraspalavras semelhantes designam um ''poder'' deextraordinária eficácia e pene tração, a que

poderíamos chamar divino. Assim, a palavramungu equivale ao nosso Deus ou a Alá.)Quando lhes perguntei qual o sentido deste ato epor que o praticavam, ficaram totalmenteconfusos. Só sabiam responder: "Semprefizemos assim. Sempre se faz isto quando o solse levanta." Riram-se quando conc luí que o solé mungu. O sol, na verdade, não é munguquando está acima da linha do horizonte .Mungu é, preci samente, o nascer do sol.

O sentido do que faziam estava claro paramim, mas não para eles. Simplesmente pratica-vam aquele ato sem nunca refletir a respeito. E,portanto, não conseguiam explicá-lo. Concluíque ofereciam suas almas a mungu , porque o so-pro (da vida) e a saliva significam "a substânciada alma". Soprar ou cuspir em alguma coisatem um efeito "mágico" como, por exemplo ,quando Cristo utilizava a sua saliva para curarum cego ou quando um filho aspi ra o últimohausto do pai agonizante para, assim, receber aalma paterna. É pouco provável que esses africa -nos, mesmo num passado remoto, soubessem al-guma coisa sobre a significação daquela cerimô -nia. E, com certeza, seus antepassados ainda de-viam saber menos.

O Fausto de Goethe diz muito acertada-mente: "In Anfang war die Tat " (No começoera o ato). "Atos" nunca foram inventados, fo -ram feitos. Já os pensamentos são uma descober -ta relat ivamente tardia do homem. Primeiro elefoi levado, por fatores inconscientes, a agir; sómuito tempo depois é que começou a refletirsobre as causas que motivaram a sua ação. E gas-tou muito mais tempo ainda para chegar à idéiaabsurda e disparatada de que ele mesmo se deviater motivado, desde que seu espírito era incapazde identif icar qualquer outra força motriz senãoa sua própria.

A idéia de uma planta ou de um animal seinventa rem a si próprios nos faz rir; no entanto,muita gente acredita que a psique, ou a mente ,inventaram-se a elas mesmas e foram, portanto,o seu próprio criador. Na verdade, a nossa mentedesenvolveu-se até o seu atual estado de cons-ciência da mesma forma por que a glande se tor-na um carvalho e os sáurios mamíferos. Da mes-ma maneira que se desenvolveu por muito tem-po, continua ainda a desenvolver-se e assim so-mos conduzidos por forças interiores e estímulosexteriores.

Est as for ças int eriores proced em de uma

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fonte profunda que não é alimentada pela cons-ciência nem está sob seu controle. Na mitologiaantiga chamavam-se a essas forças mana, ou es-píritos, demônios e deuses. Estão tão ativos hojeem dia como no passado. Se se ajustam aos nos-sos desejos, falamos em boa sorte ou inspiraçãofeliz, e congratulamo-nos por sermos "pessoastão sabidas". Se as forças nos são desfavoráveisreferimo-nos à nossa pouca sorte, dizemos quealguém está contra nós ou que a causa dos nossosinfortúnios deve ser patológica, etc. A única coi-sa que nos recusamos a admitir é que depende -mos de ''forças" que fogem ao nosso controle.

É verdade, no entanto, que nestes últimostempos o homem civilizado adquiriu certa dosede força de vontade que pode aplicar onde lheparecer melhor. Aprendeu a realizar eficiente-mente o seu trabalho sem precisar recorrer a cân-ticos ou batuques hipnóticos. Consegue mesmodispensar a oração cotidiana em busca de auxílio

divino. Pode executar aquilo a que se propõe e,aparentemente, traduzir suas idéias em ação semmaiores obstáculos, enquanto o homem primiti-vo parece estar a cada passo, tolhido por medos,superstições e outras barreiras invisíveis. O lema"querer é poder" é a superst ição do homemmoderno.

Para sustentar esta sua crença, no entanto, ohomem contemporâneo paga o preço de uma in-crível falta de introspecção. Não consegue perce-ber que, apesar de toda a sua racionalização e to-da a sua eficiência, continua possuído por "for-ças" fora do seu controle . Seus deuses e de-môn ios abs oluta men te não des apa recer am;têm, apenas, novos nomes. E o conservam emcontato íntimo com a inquietude, com apreen-sões vagas, com complicações psicológicas, comuma insaciável necessidade de pílulas, álcool,fumo, alimento e, acima de tudo, com umaenorme coleção de neuroses.

Dois exemplos de crença naspropriedades "mágicas" do sopro: áesquerda, um feiticeiro zulu cura umpaciente soprando dentro do seu ouvidoatravés de um chifre de boi (paraafastar os espíritos); ao lado, umapintura medieval sobre a criação mostraDeus insuflando vida em Adão. Ádireita, pintura italiana do século Xlllonde Cristo cura um cego com saliva— que, tal como o sopro, foiconsiderada durante muito tempocapaz de dar vida.

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A alma do homem

Aquil o a que chamamos consciência ci-vilizada não tem cessado de afastar-se dos nossosinstintos básicos. Mas nem por isso os instintosdesapareceram: apenas perderam contato com aconsciência, sendo obrigados a afirmar-se de ma-neira indireta . Podem fazê -lo através de sinto -mas físicos (no caso de uma neurose) ou pormeio de incidentes de vários tipos, comohumores inexplicáveis, esquecimentosinesperados ou lapsos de palavra.

O homem gosta de acreditar-se senhor dasua alma. Mas enquanto for incapaz de controlaros seus humores e emoções, ou de tornar-seconsciente das inúmeras maneiras secretas pelasquais os fatores inconscientes se insinuam nosseus projetos e decisões, certamente não é seupróprio dono. Estes fatores inconscientes devemsua existência à autonomia dos arquétipos. Ohomem moderno, para não ver esta cisão do seuser, protege-se com um sistema de "comparti-mentos". Certos aspectos da sua vida exterior edo seu comportamento são conservados em ga-vetas separadas e nunca confrontados uns com osoutros.

Como exemplo desta ''psicologia dos com-partimentos" lembro-me do caso de um al-coólatra que deixou-se influenciar, muito louva-velmente, por um certo movimento religioso e,fascinado pelo entusiasmo que lhe despertou,esqueceu-se da sua necessidade de beber. Decla-raram-no milagrosamente curado por Jesus epassaram a exibi-lo como testemunho da graçadivina e da eficiência da dita organização religio-sa. Mas depois de algumas semanas de confissõespúblicas, a novidade começou a perder sua forçae pareceu-lhe bem indicado um certo revigora-mento feito pelo álcool . E o nosso homem vol-tou a beber. Mas desta vez a caridosa organiza-ção chegou à conclusão de que se tratava de umcaso "patológico" que não se prestava, obvia-mente, a uma intervenção de Jesus, e puseram-no em uma clínica para que o médico resolvessemelhor do que o divino Salvador.

Este é um aspecto da mente "cultural'' mo-derna que merece nossa atenção. Revela umalarmante grau de dissociação e confusãopsicológi ca.

Se, por um ins tan te, considerarmos a hu-

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manidade como um só indivíduo verificaremosque a raça humana lembra uma pessoa arrebata-da por forças inconscientes. Também ela gostade colocar certos problemas em gavetas separa-das. Exatamente por isto devíamos examinarcom mais atenção o que fazemos, pois a huma-nidade hoje em dia está ameaçada por perigosmortais criados por ela mesma e que já escapamao seu controle. Nosso mundo encontra -se, po-de-se dizer, dissociado como se fora uma pessoaneurótica, com a Cortina de Ferro a marcar-lheuma linha divisória simbólica. O homem oci-dental , consciente da busca agressiva de poderdo Oriente, vê-se forçado a tomar medidas extra-ordinárias de defesa enquanto, ao mesmo tem-po, vangloria-se de suas virtudes e boas inten-ções.

O que ele deixa de ver é que são os seuspróprios vícios — que dissimula com muito boasmaneiras no plano internacional — que lhe sãoatirados de volta ao rosto pelo mundo comunistametodicamente e sem nenhum pejo. O que oOcidente tem tolerado (mentiras diplomáticas,decepções contínuas, ameaças veladas), mas emsegredo e um pouco envergonhado, é-lhe de-volvido frontal e prodigamente, pelo Oriente,que nos amarra a todos com muitos "nós" neu-róticos. É o rosto da sua própria sombra malévolaque faz caretas ao homem ocidental, do outrolado da Cortina de Ferro.

Este estado de coisas explica o estranho sen-timento de impotência que envolve tanta gentenas sociedades ocidentais. São pessoas que co-meçar am a perceber que as dificuldades comque nos defrontamos são de ordem moral, e queas tentativas para resolvê-las através de uma polí-tica de acumulação de armas nucleares ou deuma "competição" econômica está trazendopoucos resultados, já que é uma faca de dois gu-mes. Muitos de nós, agora, compreendemos queseria bem mais eficiente o emprego de recursosmorais e intelec tuais, que nos poderiam imu-nizar psiquicamente contra a infecção que sealastra, cada vez mais.

"Nosso mundo está dissociadocomo se fora uma pessoaneurótica." À esquerda, o muro deBerlim.

Todas as tentativas, até agora, revelaram-sesingularmente inefic ientes e assim hão de per-manecer enquanto estivermos tentando nos con-vencer — a nós e ao mundo — de que apenaseles (nossos oponentes) é que estão errados. Seriabem melhor fazermos um esforço sério para re-conhecermos nossa própria "sombra '' e sua ne-fasta atividade. Se pudéssemos ver esta sombra(o lado escuro e tenebroso da nossa natureza) fi-caríamos imunizados contra qualquer infecção econtágio moral e intelectual. No ponto em queestão as coisas, estamos predispostos a qualquerinfecção já que, na verdade, estamos agindo damesma forma por que eles agem, apenas com adesvantagem adicional de, encobertos por nossasboas maneiras, estarmos impedidos de ver ouquerer entender o que nós mesmos fazemos.

O mundo comunista, é fácil notar , tem umgrande mito (a que chamamos ilusão, na vã es-perança de que a nossa superioridade de julga-mento vá fazê-lo desaparecer). Este mito é umsonho arquetípico, santificado através dos tem-pos, de uma Idade de Ouro (ou Paraíso) quandohaverá abundância para todos e um grande che-fe, justo e sábio, reinará dentro de um jardim deinfância humano. Este poderoso arquétipo, nasua forma pueril , apoderou-se do mundo comu-nista e não é porque nos opomos a ele, com a su-perioridade do nosso ponto de vista, que há dedesaparecer da face da Terra. Nós também o ali-mentamos com a nossa infantil idade, pois nossacivilização ocidental está dominada pela mesmamitologia. Inconscientemente, acalentamos osmesmos preconceitos, as mesmas esperanças eexpectativas. Também nós acreditamos no Esta-do da Providência, na paz universal , na igualda-de do homem, nos seus eternos direitos huma-nos, na justiça, na verdade e (não o proclame-mos alto demais) no Reino de Deus sobre a Ter-ra.

A triste verdade é que a vida do homemconsiste de um complexo de fatores antagônicosinexoráveis: o dia e a noite, o nascimento e amorte, a feli cidade e o sofr imento, o bem e omal. Não nos resta nem a certeza de que um diaum destes fatores vai prevalecer sobre o outro,que o bem vai se transformar em mal, ou que aalegria há de derrotar a dor. A vida é uma bata-lha. Sempre foi e sempre será. E se tal não acon-tecesse ela chegaria ao fim.

Foi precisamente este confli to interior dohomem que levou os primeiros cristãos a espera-

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Cada sociedade tem suas própriasconcepções de caráter arquetípicosobre o paraíso ou uma idade deouro, que se acredita já ter existido eque voltará novamente a existir. Àesquerda, um quadro americano doséculo XIXrepresenta uma utopiaque pertence ao passado: o tratadofeito por William Penn com os índios,em 1682, em um cenário ideal deharmonia e de paz. Abaixo, àesquerda, o reflexo de uma utopiafutura: um cartaz, em um parque deMoscou, mostra Lênin conduzindo opovo russo a um futuro de glória.

Acima, o Jardim do Éden, num quadrofrancês do século XV, apresentado comoum jardim murado (lembrando um útero)e mostrando a expulsão de Adão e Eva.A direita, a "idade de ouro" donaturalismo primitivo está retratada noquadro de Cranach, do século XVI(intitulado O Paraíso Terrestre). Aextrema direita, o País de Cokaygne, doartista quinhentista flamenco Brueghel,uma terra mítica de prazeres sensuais evida amena (estas histórias eram muitopopulares na Europa medieval, sobretudoentre os servos e camponeses,condenados a uma vida de trabalhoárduo).

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rem e desejarem um final rápido para o mundoe os budistas rejeitarem todos os anseios e aspira-ções terrenos. Estas contestações fundamentais e-quivaleriam a um verdadeiro suicídio se não esti-vessem associadas a determinadas idéias e práti-cas morais e intelectuais que constituem a pró-pria subst ância de ambas as religiões e, de umcerto modo, modificam a sua atitude de negaçãoradical do mundo.

Ressalto este ponto porque , em nossa épo-ca, milhares de pessoas perderam a fé na reli -gião, seja ela qual for. São pessoas que não com-pre endem mais as suas pró pri as crença s. En-quant o a vida caminha placidamente a falta dealguma religião não é notada. Mas quando chegao sofrimento, a coisa muda de figura . É aí queas pessoas começam a buscar uma saída e a arefletir a respeito da significação da vida e desuas incríveis e dolorosas experiências.

É significativo o fato de ser maior o númerode judeus e protestantes, do que o de católicos, aconsultar um psiquiatra (de acordo com a minhaexperiência) . O que é natural, desde que a IgrejaCatólica ainda se responsabiliza pela cura ani-marum (o cuidado e o bem -estar das almas).Mas nesta nossa era científica, o psiquiatra estámelhor capacit ado a responder perguntas queantes pertenciam ao domínio dos teólogos. Aspessoas têm a impressão de que há, ou haveria,uma grande diferença se pudessem acreditar po-sitivamente num sentido de vida mais significa-tivo, ou em Deus e na imortalidade. O aspectoda morte próxima muitas vezes estimula taispensamentos. Desde tempos imemoriais os ho-mens especulam a respeito de algum ser supre-

mo (um ou vários) e sobre a terra do "Depois".Só hoje em dia é que julgam poder prescindirdestas idéias.

Porque com um telescópio não consegui-mos descobrir no céu o trono de Deus, nem te-mos como nos certificar de que um pai ou umamãe bem-amados ainda existem nalgum lugar ,em forma mais ou menos corpórea julgamos quetais idéias "não são verdadeiras". Eu diria , an-tes, que elas não são bastante "verdadeiras",pois estes conceitos acompanham o ser humanodesde tempos pré-históricos e ainda irrompemem nossa consciência ao menor estímulo.

O homem moderno afirma que pode per -feitamente passar sem eles, e defende esta opini-ão argumentando que não existe nenhuma pro-va cient ífica da sua autenticidade. Mas emmuitos momentos lamenta -se por te r perdidosuas convicções. No entanto, se estamostratando de coisas invisíveis e desconhecidas(pois Deus está alé m do entendimento huma noe não temos meios de provar a existência daimortalidade) por que exigirmos provas eevidências? Mesmo que o raciocínio lógico nãoconfirmasse a necessidade de sal na comida,ainda assim tiraríamos proveito de seu uso.Poder-se-ia argumentar que o uso do sal é umasimples ilusão do paladar ou uma superst ição;nem por isso o seu emprego deixaria decontr ibuir para o nosso bem-estar . Por que,então, privar-nos de crenças que se mostramsalutares em nossas crises e dão um certo sentidoa nossas vidas?

E o que nos permite afirmar que estas idéiasnão são verdadeiras? Muitas pessoas estariam deacordo comigo se eu declarasse categoricamente

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que talvez não passem de ilusões. O que não sepercebe é que uma declaração desta ordem é tãoimpossível de "provar" quanto a defesa de umacrença religiosa. Temos inteira liberdade para es-colher nosso ponto de vista a respeito; de qual-quer maneira, será sempre uma decisão arbitrá-ria.

Há, no entanto, um forte argumento empí-rico a nos estimular ao cultivo de pensamentosque se não podem provar. É que são pensamen-tos e idéias reconhecidamente úteis. O homemrealmente necessita de idéias gerais e convicçõesque lhe dêem um sentido à vida e lhe permitamencontrar seu próprio lugar no mundo. Pode su-portar as mais incríveis provações se estiver con-vencido de que elas têm um sentido. Mas sente-se aniquilado se além dos seus infortúnios aindativer de admitir que está envolvido numa“históri a contada por um idio ta”.

O papel dos símbolos religiosos é dar signi-ficação à vida do homem. Os índios pueblos a-creditam que são filhos do Pai Sol, e esta crençadá a suas vidas uma perspectiva (e um objetivo)que ultrapassa a sua limitada existência; abre-lhes espaço para um maior desdobramento dassuas personalidades e permite-lhes uma vida ple-na como seres humanos. Estes índios encontram-se em condições bem mais favoráveis do que ohomem da nossa civilização atual, que sabe queé (e permanecerá sendo) nada mais que um po-bre diabo, cuja vida não tem nenhum sentidointerior.

É a consciência de que a vida tem uma sig-nificação mais ampla que eleva o homem acimado simples mecanismo de ganhar e gastar. Se is-to lhe falta, sente -se perdido e infel iz. Se São

À esquerda, o esquife de umíndiocaiapó, da América do Sul. O mortoleva roupa e comida para sua vidafutura. Símbolos religiosos e crenças detoda espécie dão sentido á vidahumana: os povos antigos choravam osseus mortos (à direita, uma estátuaegípcia, encontrada em um túmulo,representa o luto); suas crenças, noentanto, faziam-nos também pensar namorte como em uma transformaçãopositiva.

Paulo estivesse convencido de que era apenas umtecelão ambulante não se teria tornado o ho-mem que foi. Sua vida real, aquela que tinhaverdadeira expressão, repousava em sua íntimaconvicção de que era o mensage iro do Senhor.Podem acusá-lo de megalomania, mas é umaopinião que se enfraquece ante o testemunho dahistória e o julgamento das gerações subseqüen-tes. O mito que se apoderou de São Paulo fezdele algo muito maior que um mero artesão.

Um mito assim, no entanto , consiste de sím-bolos que não foram conscientemente inventa -dos. Aconteceram. Não foi o homem Jesus quecriou o mito do homem-deus: este já exis tiamuitos séculos antes do seu nascimento. E elemesmo foi dominado por esta idéia simból icaque, segundo São Marcos, o elevou para muitoalém da obscura vida de um carpinteiro de Na-zaré.

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A origem dos mitos remonta ao primitivocontador de histórias, aos seus sonhos e às emo-ções que a sua imaginação provocava nos ouvin-tes. Estes contadores não foram gente muito di-ferente daquelas a quem gerações posterioreschamaram poetas ou filósofos. Não os preocupa-va a origem das suas fantasias; só muito maistarde é que as pessoas passaram a interrogar deonde vinha uma determinada histór ia. No en-tanto, no que hoje chamamos a Grécia ''antiga"já havia espíritos bastante evoluídos para conje-turar que as histórias a respeito dos deuses nadamais eram que tradições arcaicas e bastante exa-geradas de reis e chefes há muito sepultados. Oshomens daquela época já tinham percebido queo mito era inverossímil demais para significarexatamente aquilo que parecia dizer. E tenta-ram, então, reduzi -lo a uma forma mais acessí-vel a todos.

Em tempos mais recentes, viu-se acontecero mesmo com o simbolismo dos sonhos. Quan-do a psicologia ainda estava começando a surgir,convencemo-nos de que os sonhos tinham certaimportância. Mas assim como os gregos se auto-persuadiram de que seus mitos eram simples ela-borações de histórias racionais ou "normais",também alguns pioneiros da psicologia chega-ram à conclusão de que os sonhos não significamo que parecem significar. As imagens ou símbo-los que representavam foram, então, reduzidos aformas bizarras pelas quais os conteúdos repri-midos da psique se apresentavam à mente cons-ciente. Assim, tornou-se aceito que o sonho ti-nha uma significação diferente da sua apresenta-ção evidente.

Já relatei como entrei em desacordo com es-ta idéia , discordância que me levou a estudartanto a forma como o conteúdo dos sonhos. Porque haveriam de significar outra coisa além da-quilo que expunham? Existe na natureza algu-ma coisa que seja outra, além do que realmenteé? O sonho é um fenômeno normal e natura l enão significa outra coisa além do que existe den-tro dele. O Talmud mesmo já dizia: "O sonho éa sua própria interpretação." A confusão nascedo fato de serem simbólicos os seus conteúdos e,portanto, oferecerem mais de uma explicação.Os símbolos apontam direções diferentes da-quelas que percebemos com a nossa mente cons-ciente; e, portanto, relacionam-se com coisas in-conscientes, ou apenas parcialmente conscientes.

Acima, o desenho de uma árvore(com o sol em cima), feito por umacriança. A árvore é um dos melhoresexemplos de um motivo que aparececom freqüência nos sonhos (e emoutros lugares) e que pode ter umavariedade incrível de significados:pode simbolizar evolução,crescimento físico, ou maturidadepsicológica. Também pode significarsacrifício ou morte (a crucificação deCristo em uma árvore). Poderárepresentar um símbolo fálico, eainda várias outras coisas. Outrosmotivos comuns aos sonhos, como acruz (á direita) ou o linga (extremadireita), também podem ter umavasta série de significadossimbólicos.

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Para o espírito científico, fenômenos comoo simbolismo são um verdadeiro aborrecimentopor não se poderem formular de maneira precisapara o intelecto e a lógica. Não são o único casodeste gênero na psicologia. O problema começanos fenômenos dos "afetos" ou emoções, quefogem a todas as tentativas da psicologia paraencerrá-los numa definição absoluta. Em ambosos casos o motivo da dificuldade é o mesmo - aintervenção do inconsciente.

Conheço bastante o ponto de vista científi -co para compreender o quanto é irritante lidarcom fatos que não podem ser apreendidos apro-priada ou totalmente. O problema com este tipode fenômenos é que são fatos que não podem sernegados, mas que também não podem ser for-mulados em termos intelectuais. Para formulá -los precisaríamos ser capazes de compreender aprópria vida, pois é ela a grande criadora deemoções e idéias simbólicas.

O psicólogo acadêmico tem liberdade totalpara afastar das suas considerações o fenômenoda emoção ou o conceito de inconsciente (ou osdois). Ambos permanecem como fatores aosquais o médico deve prestar a devida atenção, jáque conflitos emocionais e intervenções do in-consciente são aspectos clássicos da sua ciência.De qualquer modo, quando ele for tratar de umpaciente, vai defrontar-se com estes fenômenosirracionais como fatos resistentes; que não levamem conta a sua capacidade para formulá-los em

termos inte lectuais. Portanto, é muito naturalque as pessoas que não tiveram experiência mé -dica no campo da psicologia encontrem dificulda-de em acompanhar o que acontece quando a psi-cologia deixa de ser uma investigação tranqüila,dentro do laboratório, para tornar -se parte ativana aventura da vida real. Exercícios de tiro ao al-vo num estande são muito diferentes do que sepassa num campo de batalha; o médico trata deacidentes de uma guerra verdadeira; tem quepreocupar-se com realidades psíquicas, mesmonão podendo enquadrá-las numa definição cien-tífica. Por isso nenhum compêndio ensina psico-logia — só se chega a aprendê-la através da expe-riência prática e objetiva.

Estas observações tornam-se claras quandoexaminamos certos símbolos bastante conheci -dos.

A cruz da religião cristã, por exemplo, é umsímbolo dos mais significativos e que expressauma profusão de aspectos, idéias e emoções; masuma cruz ao lado de um nome, em uma lista,indica simplesmente que aque la pessoa estámorta. O falo é um símbolo universal da religiãohindu, mas se um moleque de rua desenha umpênis na parede está simplesmente traduzindo ointeresse que o sexo lhe desperta. Porque as fan-tasias da infância e da adolescência continuam amanifestar-se na vida adulta é que em muitos so-nhos existem, indiscuti velmente, alusões se-xuai s. Seria um absurdo emprestar-lhes qual -

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quer outra significação. Mas quando um eletri-cista fala de tomada macho e tomada fêmea seriaridículo supor que está se entregando aexcitantes fantasias da adolescência. Está apenasutilizando termos coloridos e descritivos do seumaterial de trabalho. Quando um hindu de boacultura conversa conosco a respeito do linga (ofalo que representa, na mitologia hindu, o deusXiva), vamos vê-lo evocar coisas a que nós, oci-dentais, jamais associaríamos à idéia de um pê-nis. O linga não é absolutamente uma insinua-ção obscena; como também a cruz não é umsimples símbolo de morte. Tudo depende muitoda maturidade da pessoa que produziu aquelaimagem no seu sonho.

A interpretação de sonhos e de símbolos re-quer inte ligência . Não pode ser transformadaem um sistema mecânico que vai, depois, servirde recheio a cérebros desprovidos de imagina-ção. Pede tanto um conhecimento progressi voda individualidade de quem sonhou, quantouma crescente percepção da parte de quem in-terpreta o sonho. Ninguém com suficiente expe-riência neste campo poderá negar a existência denormas práticas bastante úteis, mas que devemser aplicadas com inteligência e prudência. Po-de-se seguir as mais acertadas regras teóricas e,no entanto, atolar-se nos mais espantosos con-tra -sensos, simplesmente porque se descuidoude um detalhe aparentemente inút il, que umainteligência mais atilada não teria deixado esca-par. Mesmo um homem altamente intelectuali-zado pode cometer grandes enganos por falta deintuição ou de sensibil idade.

Quando nos esforçamos para compreenderos símbolos, confrontamo -nos não só com opróprio símbolo como com a totalidade do indi-víduo que o produziu. Nesta totalidade inclui -seum estudo do seu universo cultural, processo emque se acaba por preencher muitas das lacunasda nossa própria educação. Estabeleci como re -gra particular considerar cada caso como umaproposição inteiramente nova, sobre a qual co-meço um traba lho de quase alfabetização. Osefeitos da rotina podem ser práticos e úteis en-quanto se está na superfície de um caso, mas lo-go que se chega aos seus problemas vitais é aprópria vida que entra em primeiro plano, e atéas mais brilhantes premissas nada mais são quepalavras totalmente ineficazes.

Imaginação e intuição são auxiliares indis-pensáveis ao nosso entendimento. E apesar de a

opinião popular afirmar que são requisitos valio-sos sobretudo para poetas e artistas e que não sãorecomendáveis às questões de "bom senso"), averdade é que são igualm ente vitais em todos osaltos escalões da ciência. Exercem neste campoum papel de importância sempre crescente, quesuplementa o da inteligência "racional" na suaaplicação a problemas específicos. Mesmo a físi-ca, a mais rigorosa das ciências aplicadas, depen-de em proporção impressionante da intu ição ,que age através do inconsciente (apesar de serpossível reconsti tuir depois o processo lógico,que teria alcançado os mesmos resultados daintuição).

A intuição é um elemento quase indispen-sável na interpretação dos símbolos que, graças aela, são muitas vezes imediatamente percebidospelo sonhador. Mas enquanto, do ponto de vistasubjetivo, este "palpite" feliz pode ser muitoconvincente, também poderá revelar-se bastanteperigoso. É capaz de levar o paciente, com facili-dade, a um falso sentimento de segurança. Podeestimular, por exemplo, tanto quem sonha co-mo quem interpreta o sonho, a prolongar umarelação agradável e relativamente fácil, encami-nhando-a para uma espécie de sonho mútuo. Abase sólida de um conhecimento intelectual ver-dadei ro e de uma compreensão moral autênticaperde a sua força se o analista contentar-se com avaga satis fação que lhe vai dar o "palpite" cer-to. Só se pode verdadeiramente conhecer e ex-plicar quando se reduzem as intuições a uma a-preciação exata dos fatos e das suas conexões ló-gicas.

Um investigador honesto terá de admi tirque nem sempre é possível uma tal redução, masserá desonesto de sua parte não ter isto semprepresente no espírito . O cientista também é umser humano. Por isso é natural que também eledeteste coisas a que não consegue dar explicação.É uma ilusão comum acreditarmos que o que sa-bemos hoje é tudo o que poderemos saber sem-pre. Nada é mais vulnerável que uma teoriacientí fica, apenas uma tentat iva efêmera paraexplicar fatos, e nunca uma verdade eterna.Seres mitológicos antigos são, agora,curiosidades de museu (à direita). Masos arquétipos que exprimiam nãoperderam o seu poder de atingir asmentes humanas. Talvez os monstrosdos filmes de horror modernos(extrema direita) sejam versõesdistorcidas de arquétipos já não maisreprimidos.

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A funçãodos símbolos

Quando um psicana lista se interessa porsímbolos ocupa-se, em primeiro lugar, dos sím-bolos naturais, distintos dos símbolos culturais.Os primeiros são derivados dos conteúdos in-conscientes da psique e, portanto, representamum número imenso de variações das imagens ar-quetípicas essenciais. Em alguns casos pode-sechegar às suas origens mais arcaicas — isto é, aidéias e imagens que vamos encontrar nos maisantigos registros e nas mais primitivas socieda-des. Os símbolos culturais, por outro lado, sãoaqueles que foram empregados para expressar"verdades eternas" e que ainda são utilizadosem muitas religiões. Passaram por inúmerastransformações e mesmo por um longo processode elaboração mais ou menos consciente,tornando-se assim imagens coletivas aceitas pelassociedades civilizadas.

Estes símbolos culturais guardam, no en-tanto, muito da sua numinosidade original ou"magia". Sabe-se que podem evocar reaçõesemotivas profundas em algumas pessoas, e estacarga psíquica os faz funcionar um pouco comoos preconceitos. São um fator que deve ser leva-do em conta pelos psicólogos. Seria insensato re-jeitá-los pelo fato de, em termos racionais, pare-cerem absurdos ou despropositados. Consti-tuem-se em elementos importantes da nossa es-trutura mental e forças vitais na edificação da so-

ciedade humana. Erradicá-los seria perda dasmais graves. Quando reprimidos ou descurados,a sua energia específica desaparece no incons-ciente com incalculáveis conseqüências. Estaenergia psíquica que parece ter assim se dispersa-do vai, de fato, servir para reviver e intensificar oque quer que predomine no inconsciente — ten-dências, talvez, que até então não tivessem en-contrado oportunidade de expressar -se ou, pelomenos, de serem autorizadas a levar uma exis -tência desinibida no consciente.

Estas tendênc ias formam no conscienteuma "sombra", sempre presente e potencial-mente destruidora. Mesmo as tendências quepoderiam, em certas circunstâncias, exercer umainfluência benéfica, são transformadas em de-mônios quando reprimidas. É por isto que mui-ta gente bem-intencionada tem um receio bas-tan te jus tif icado do inconsciente e, in-cidentalmente, da psicologia.

A época em que vivemos tem demonstradoo que acontece quando se abrem as portas destemundo subterrâneo. Fatos cuja brutalidade nin-guém poderia imaginar na inocência idílica daprimeira década do nosso século ocorreram e vi-raram o mundo às avessas. E desde então o mun-do sofre de esquizofrenia. Não só a civilizada Ale-manha vomitou todo o seu terrível primarismo,mas é ele també m que domina a Rús sia , en -

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quanto a África se incendeia. Não é de espantarque o mundo Ocidental se sinta inquieto.

O homem moderno não entende o quantoo seu "racionalismo" (que lhe destruiu a capaci-dade para reagir a idéias e símbolos numinosos)o deixou à mercê do "submundo" psíquico. Li-bertou-se das "supersti ções" (ou pelo menospensa tê-lo feito), mas neste processo perdeuseus valores espirituais em escala positivamentealarmante. Suas tradições morais e espirituaisdesintegraram-se e, por isto, paga agora um altopreço em termos de desorientação e dissociaçãouniversais.

Os antropólogos descreveram, muitas ve-zes, o que acontece a uma sociedade primitivaquando seus valores espirituais sofrem o impactoda civilização moderna. Sua gente perde o senti-do da vida, sua organização social se desintegra eos próprios indivíduos entram em decadênciamoral. Encontramo-nos agora em idênticas con-dições. Mas na verdade não chegamos nunca acompreender a natureza do que perdemos, poisos nossos líderes espirituais, infelizmente, preo-cuparam-se mais em proteger suas insti tuiçõesdo que em entender o mistério que os símbolosrepresentam. Na minha opinião, a fé não excluia reflexão (a arma mais forte do homem); mas,

infortunadamente, numerosas pessoas religiosasparecem ter tamanho medo da ciência (e, inci-dentalmente, da psicologia) que se conservamcegas a estas forças psíquicas numinosas que re-gem, desde sempre, os destinos do homem.Despojamos todas as coisas do seu mistério e dasua numinosidade; e nada mais é sagrado .

Em épocas recuadas, enquanto conceitosinstintivos ainda se avolumavam no espírito dohomem, a sua consciênc ia podia, certamente ,integrá -los numa disposição psíquica coerente.Mas o homem "civilizado" já não consegue fa-zer isto. Sua "avançada" consciência privou-sedos meios de assimilar as contribuições comple-mentares dos instintos e do inconsciente. Estesmeios de assimilação e integração eram, exata-mente, os símbolos numinosos tidos como sagra-dos por um consenso geral.

Hoje, por exemplo, fala-se de "matéria".Descrevemos suas propriedades físicas. Procede-mos a experiências de laboratório para demons-trar alguns de seus aspectos. Mas a palavra "ma-téria" permanece um conceito seco, inumano epuramente intelectual, e que para nós não temqualquer significação psíquica. Como era dife-rente a imagem primitiva da matéria — a MãeGrande — que podia conter e expressar todo o

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profundo sentido emocional da Mãe Terra! Domesmo modo, o que era "esp írito" iden tifi ca -se, atualmente, com intelecto e assim deixa deser o Pai de Todos; degenerou até chegar aos li-mitados pensamentos egocêntricos do homem.A imensa energia emocional expressa na ima-gem do "Pai nosso" desvanece-se na areia deum verdadeiro deserto intelectual.

Estes dois princípios arquetípicos são osfundamentos de sistemas opostos no Ocidente eno Oriente. As massas humanas e seus dirigentesnão se dão conta, no entanto, de que não há di-ferença substancial entre batizar o princípio domundo com o termo masculino pai (espírito) co-mo acontece no Ocidente, ou batizá-lo com otermo feminino mãe (matéria), como o fazem oscomunistas. Essencialmente, sabemos tão poucode um como de outro. Antigamente esses princí-pios eram cultuados com toda espécie de rituaisque, ao menos, mostravam o quanto significa-vam psiquicamente para o homem. Agora tor-naram-se meros conceitos abstratos.

A medida que aumenta o conhecimentocient ífico diminui o grau de humanização donosso mundo. O homem sente-se isolado no cos-mos porque, já não estando envolvido com a na-tureza, perdeu a sua "identificação emocionalinconsciente" com os fenômenos naturais. E osfenômenos naturais, por sua vez, perderam aospoucos as suas implicações simbólicas. O trovãojá não é a voz de um deus irado, nem o raio oseu projéti l vingador. Nenhum rio abriga maisum espírito, nenhuma árvore é o princípio de vi-da do homem, serpente alguma encarna a sabe-doria e nenhuma caverna é habitada por demô-

Quando reprimidos os conteúdosinconscientes da mente podemirromper de maneira destrutiva sob aforma de emoções negativas — comona Segunda Grande Guerra. Àextrema esquerda, prisioneiros judeusem Varsóvia, depois do levante de1943; ao lado, pilhas de sapatos dosmortos de Auschwitz.

À direita, aborígines da Austrália,desagregados desde que perderamsua crença religiosa, devido aocontato com a civilização. Esta tribo,agora, conta apenas com umaspoucas centenas de indivíduos.

nios. Pedras, plantas e animais já não têm vozespara falar ao homem e o homem não se dirigemais a eles na presunção de que possam enten-dê-lo. Acabou-se o seu contato com a natureza, ecom ele foi-se também a profunda energia emo-cional que esta conexão simbólica alimentava.

Esta enorme perda é compensada pelos sím-bolos dos nossos sonhos. Eles nos revelam nossanatureza original com seus instintos e sua ma-neira peculiar de raciocínio. Lamentavelmente,no entanto, expressam os seus conteúdos na pró-pria linguagem da natureza que, para nós, é es -tranha e incompreensível . Somos, assim, obriga-dos a traduzir esta linguagem em conceitos e pa-lavras racionais do vocabulário moderno, que seliber tou de todos os seus embaraços primitivos— notadamente da sua participação mística comas coisas que descreve. Hoje em dia quando fala-mos em fantasmas e outras figuras numinosas jánão os evocamos. Estas palavras, que já foramtão convincentes, perderam tanto o seu poderquanto a sua glória . Deixamos de acreditar emfórmulas mágicas; restaram-nos poucos tabus erestr ições semelhantes; e nosso mundo pareceter sido saneado de todos estes numes "superst i-ciosos", tais como feiticeiras, bruxas e duendes,para não falarmos nos lobisomens, vampiros, al-

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mas do mato e todos os seres bizarros que povoa-vam as florestas primitivas.

Para sermos mais exatos, parece que a su-perfície do globo foi purgada de todo e qualquerelemento irracional e supersticioso. Agora, se onosso verdadeiro mundo inter ior (e não a ima-gem fictícia que dele fazemos) também estáliberto de todo este primitivismo, é uma outraquestão. O número 13, por exemplo , não conti -nua a ser um tabu para muita gente? E quantaspessoas ainda são dominadas por preconceitosirracionais, por projeções e ilusões infantis? Umquadro realístico da mente humana revela queainda subsistem muitos destes traços primitivosagindo como se nada tivesse acontecido nos últi -mos quinhentos anos.

É essencial examinarmos bem este ponto. Ohomem moderno é, na verdade, uma curiosamistura de características adquiridas ao longo deuma evolução mental milenária. E é deste ser,resultante da associação homem — símbolos, quetemos de nos ocupar , inspecionando sua mentecom extremo cuidado. O ceticismo e a convicçãocientífica coexistem nele, juntamente com pre -conceitos ultrapassados, hábitos de pensar e sen-tir obsoletos, erros obstinados e uma cega igno-rância.

São estes seres humanos, nossos contempo-râneos, que produzem os símbolos que nos cabea nós, psicólogos, investigar. Para explicar estessímbolos e o seu significado é vital estabelecer-mos se as suas representações acham-se ligadas aexperiências puramente pessoais ou se foramparticularmente escolhidas pelo sonho de umareserva de conhecimentos gerais conscientes.

Tomemos como exemplo um sonho em quefigure o número 13. A questão primeira é saberse quem sonhou acredita no caráter agourentodo número ou se o sonho refere-se, apenas, apessoas que ainda têm este gênero de superst i-ção. A resposta faz grande diferença para a inter-pretação. No primeiro caso será preciso levar-seem conta que o indivíduo está ainda sob a magiado 13 agourento e, portanto, há de sent ir des-conforto se hospedado no quarto número 13 deum hotel, ou sentando-se à mesa com 13 pessoas.No último caso o 13 não significará, talvez, nadamais que uma observação descortês ou agressiva.O sonhador supersticioso ainda sofre a magia do13, o sonhador mais "rac ional" já desp iu o 13da sua tonalidade emotiva original.

Este exemplo mostra a maneira pela qual osarquétipos aparecem na experiência prática: sãoa um tempo imagem e emoção. E só podemosnos referir a arquétipos quando estes dois aspec-tos se apresentam simul taneamente. Quandoexiste apenas a imagem, ela equivale a uma des-crição de pouca conseqüência. Mas quando car-regada de emoção a imagem ganha numinosida-de (ou energia psíquica) e torna-se dinâmica,acarretando conseqüências várias.

Sei que é difícil apreender este conceito jáque estou tentando descrever com palavras algu-ma coisa que, por natureza, não permite defini -ção precisa. Mas desde que muitas pessoas pre-tendem tratar os arquétipos como se fossem par-te de um sistema mecânico, que se pode apren-der de cor, é importante esclarecer que não sãosimples nomes ou conceitos filosóficos. São por-ções da própria vida — imagens integralmenteligadas ao indivíduo através de uma verdadeiraponte de emoções. Por isso é impossível dar aqualquer arquétipo uma interpretação arbitrária(ou universal); ele precisa ser explicado de acor-do com as condições totais de vida daquele de-terminado indivíduo a quem se relaciona.

Assim, no caso de um cristão devoto o sím-bolo da cruz só deve ser interpretado no seu con-texto cristão — a não ser que o sonho forneçauma razão muito forte para que se busque outraorientação. Mesmo neste caso deve-se ter emmente o sentido cristão específico. Evidente-mente, não se pode dizer que, em qual quer ,tempo ou circunstância, o símbolo da cruz terá amesma significação. Se fosse assim, perderia suanuminosi dade e vita lidade para ser , apenas,uma simples palavra.

Aqueles que não percebem o tom de sensi-bilidade especial do arquétipo vão encont rar -seapenas com um amontoado de conceitos mitoló -gicos que podem evidentemente ser juntadospara provar que todas as coisas, afinal, têm algu-ma sign ific ação — ou nenhuma. Todos os ca-dáveres do mundo são quimicamente idênticos,mas o mesmo não acontece com o indivíduo vi-vo. Os arquétipos só adquirem expressão quan -do se tenta descobrir, pacientemente, por que ede que maneira eles têm significação para umdeterminado indivíduo vivo.

As palavras tornam-se fúteis quando não sesabe o que representam. Isto se aplica especial -mente à psicologia, onde se fala tanto de

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Os antigos chineses associavam alua com a deusa Kwan-Yin (acima).Outras sociedades tambémpersonificaram a lua como divindade.E apesar do arrojo espacial de hojenos ter demonstrado que ela éapenas uma bola de sujas crateras (àesquerda), conservamos traços deuma atitude arquetípica naassociação que fazemos da lua como romance e o amor.

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No inconsciente de uma criançapodemos ver o poder (e auniversalidade) dos símbolosarquetípicos. Um desenho de umacriança de sete anos (á esquerda) -um sol imenso afugentando avesnegras, os demônios danoite - revelaa atmosfera do verdadeiro mito.Crianças que brincam (á direita)dançam espontaneamente numaforma de expressão tão naturalquanto as danças cerimoniaisprimitivas. O folclore antigo aindaexiste nos "ritos" infantis. Porexemplo, as crianças de toda a Grã-Bretanha (e também de outroslugares) acreditam que dá sorteencontrar um cavalo branco, umnotório símbolo de vida. A deusacelta da criação, Epona, mostradaaqui montando um cavalo (extremadireita), foi também muitas vezesrepresentada sob a forma de umaégua branca.

arquétipos como a anima e o animus, o homemsábio , a Mãe Grande, etc. Pode-se saber tudo arespeito de santos, de sábios, de profetas , de to-dos os homens-deuses e de todas as mães-deusasadoradas mundo afora. Mas se são meras ima-gens, cujo poder numinoso nunca experimenta-mos, será o mesmo que falar-se como num so-nho, pois não se sabe do que se fala. As própriaspalavras que usamos serão vazias e destituídas devalor. Elas só ganham sentido e vida quando setenta levar em conta a sua numinosidade — istoé, a sua relação com o indivíduo vivo. Apenasentão começa-se a compreender que todos aque-les nomes significam muito pouco — tudo o queimporta é a maneira por que estão relacionadosconosco.

A função criadora de símbolos oníricos é,assim, uma tentat iva para trazer a mente origi-nal do homem a uma consciência "avançada"ou esclarecida que até então lhe era desconheci-da e onde, consequentemente , nunca existi raqualquer reflexão autocrítica. Num passado dis-tante esta mente original era toda a personalida-de do homem. À medida que ele desenvolveu asua consciência é que a sua mente foi perdendocontato com uma porção daquela energia psí-quica, primitiva. A mente consciente, portanto,jamais conheceu aquela mente original, rejeita-da no próprio processo de desenvolvimento destaconsciência diferenciada, a única capaz deperceber tudo isto.

Ainda assim parece que aquilo a que cha-mamos inconsc iência guardou as características

primitivas que faziam parte da mente original.É a estas características que os símbolos dossonhos quase sempre se referem, como se oinconsciente procurasse ressuscitar tudo aquilode que a mente se libertara no seu processoevolutivo — ilusões, fantasias, formas arcaicasde pensamento, instintos básicos, etc.

Isto explica a resistência, o medo mesmo,que muitas vezes as pessoas sentem de aproxi-mar-se de qualquer coisa que diga respeito aoinconsciente. Estes conteúdos sobreviventes nãosão neutros ou apáticos; ao contrário, estão detal maneira carregados de energia que às vezesnão se limitam a causar mal-estar, chegando aprovocar um medo real. E quanto mais reprimi-dos mais se irradiam através da personalidadeinteira, sob a forma de neurose.

Esta energia psíquica é que lhes dá impor-tância tão significativa. É como se um homem,tendo atravessado um período de inconsciência,de repente descobrisse que há um hiato na suamemória — e que lhe parece terem acontecidocoisas importantes de que se não pode lembrar.Na medida em que acredite que a psique é umassunto estritamente pessoal (e é nisto que geral-mente se crê), este homem vai tentar recuperaras suas lembranças de infância, aparentementeperdidas. Mas estes hiatos nas suas recordaçõesde criança são apenas sintomas de uma perdamuito maior — a perda da psique primitiva.

Assim como a evolução do embrião repro-duz as etapas da pré-história , também a mente

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se desenvolve através de uma série de etapas pré-históricas. A tarefa principal dos sonhos é trazerde volta uma espécie de "reminiscência" da pré-história e do mundo infantil , ao nível dosnossos instintos mais primitivos. Em certos casostais reminiscências podem exercer um efeito te-rapêutico notável, como Freud assinalou já hámuito tempo. Esta observação confirma o pontode vista de que um hiato nas lembranças da in-fância (a chamada amnésia) representa uma per-da efetiva e sua recuperação pode trazer acentua-da melhoria de vida e bem-estar.

Por uma criança ser fisicamente pequena eseus pensamentos conscientes poucos e simples,não avaliamos as extensas complicações da suamente infantil , fundamentadas na sua identida -de original com a psique pré-histórica. Esta"mente original" está tão presente e ativa nacriança quanto as fases evolutivas da humanida-de no seu corpo embrionário. Se o leitor se recor-da do que contamos anter iorme nte a respeitodos incríveis sonhos que uma criança dera depresente ao pai, poderá compreender bem o quequeremos dizer.

Na amnésia infantil encontramos estranhosfragmentos mitológicos que, muitas vezes, apa-recem também em psicoses ulteriores. Imagensdeste tipo são altamente numinosas e, portanto,muito importantes. Quando tais reminiscênciasreaparecem na vida adulta podem, em algunscasos, ocasionar profundos distúrbios psicológi-cos, enquanto em outros poss ibili tam, por ve-

zes, milagrosas curas ou conversões religiosas.Muitas vezes trazem de volta porções há muitodesaparecidas de nossas vidas, enriquecendo edando novo sentido à existência humana.

Reminiscências de memórias da infância e areprodução de comportamentos psíquicos , ex-pressos por meio de arquétipos, podem alargarnossos horizontes e aumentar o campo da nossaconsciência — sob condição de que os conteúdosreadquiridos sejam assimilados e integrados namente consciente. Como não são eleme ntosneutros, a sua assimilação vai modificar a perso-nalidade do indivíduo, já que também eles vãosofrer algumas alterações. Neste estado a quechamamos "o processo da individuação" (que aDra. M.L. von Franz vai descrever mais adiante),a interpretação dos símbolos exerce um papelprático de muito relevo, pois os símbolos repre-sentam tentativas naturais para a reconciliação eunião dos elementos antagônicos da psique.

Naturalmente, apenas constatar a existênciados símbolos e depois afastá-los não teria resul-tado algum e, simplesmente, restabeleceria oantigo estado neurótico, destruindo uma tenta -tiva de síntese. Mas infelizmente as poucas pes-soas que não negam a existência de arquétipostratam-nos, quase invariavelmente, como se fos-sem simples palavras, esquecendo-se da sua reali-dade viva. Quando então a sua numinosidade éassim (ilegitimamente) afastada, tem início umprocesso ilimitado de substituições — em outraspalavras, escorrega-se facilmente de um arquéti-po para outro, tudo querendo signif icar tudo. Ébem verdade que as formas dos arquétipos são,em grande proporção, permutáveis. Mas a suanuminos idade é e se mantém um fato, e consti -tui o valor real de um acontecimento arquetípi-co.

Este valor emocional deve ser lembrado eobservado através de todo processo da interpre-tação dos sonhos. É facílimo perdermos contatocom ele já que pensar e sentir são operações tãodiametralmente opostas que uma exclui a outraquase automaticamente. A psicologia é a únicaciência que precisa levar em conta o fator valor(isto é, o sentimento), pois é ele o elemento deligação entre as ocorrências físicas e a vida. Porisso acusam-na tanto de não ser científica; seuscríticos não compreenderam a necessidade práti-ca e científica de se dar ao sentimento a devidaatenção.

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Curandoa dissociação

Nosso intelecto criou um novo mundoque domina a natureza, e ainda a povoou demáquinas monstruosas. Estas máquinas são tãoincontestavelmente úteis que nem podemosimaginar a possibilidade de nos descartarmosdelas ou de escapar à subserviência a que nosobrigam. O homem não resiste às solicitaçõesaventurosas de sua mente científica e inventiva,nem cessa de congratular-se consigo mesmopelas suas esplêndidas conquistas. Ao mesmotempo, sua genialidade revela uma misteriosatendência para inventar coisas cada vez maisperigosas, que representam instrumentos cada vezmais eficazes de suicídio coletivo.

Em vista da crescente e súbita avalancha denasciment os, o homem já começou a buscarmeios e modos de sustar esta explosão demográ-fica. Mas a natureza pode vir a antecipar estatarefa, voltando contra ele as suas próprias cria-ções. A bomba de hidrogênio, por exemplo, se-ria um freio seguro para este aumento de popu-lação. A despeito da nossa orgulhosa pretensãode dominar a natureza, ainda somos suas vítimasna medida em que não aprendemos nem a nosdominar a nós mesmos. De maneira lenta, masque nos parece fatal, atraímos o desastre.

Já não existem deuses cuja ajuda possamosinvocar. As grandes religiões padecem de umacrescente anemia, porque as divindades presti-mosas já fugiram dos bosques, dos rios, dasmontanhas e dos animais e os homens-deusesdesapareceram no mais profundo do nosso in-consciente. Iludimo -nos julgando que lá no in-

Acima, á esquerda, a maior cidade doséculo XX — Nova Iorque. Abaixo, o fimde uma outra cidade — Hiroxima, 1945.Apesar de o homem julgar ter dominadoa natureza, Jung chama sempre aatenção para o fato de ele ainda não terconseguido controlar a sua próprianatureza.

consciente levam vida humilhante entre as relí-quias do nosso passado. Nossas vidas são agoradominadas por uma deusa, a Razão, que é a nos-sa ilusão maior e mais trágica. É com a sua ajudaque acreditamos ter ''conquistado a natureza''.

Esta expressão é um simples slogan, pois es-ta pretensa conquista nos oprime com o fenôme-no natural da superpopulação e ainda acrescentaaos nossos problemas uma incapacidade psicoló-gica total para realizarmos os acordos políticosque se fazem necessários. Continuamos a acharnatural que homens briguem e lutem com o ob -jetivo de afirmar cada um a sua superioridadesobre o outro . Como pensar, então , em“conquista da natureza?”

Como toda mudança deve, forçosamente,começar em alguma parte, será o indivíduo iso-ladamente que terá de tentar e experimentar le-vá-la avante. Esta mudança só pode principiar,realmente , em um só indivíduo; poderá serqualquer um de nós. Ninguém tem o direito deficar olhando à sua volta, à espera de que algu-ma outra pessoa faça aquilo que ele mesmo nãoestá disposto a fazer.

Mas como ninguém parece saber o que fa-zer, talvez valha a pena que cada um de nós sepergunte se, por acaso, o seu inconsciente co-nhecerá alguma coisa que nos possa ser útil a to-dos. A mente consciente, decididamente, pareceincapaz de ajudar-nos. O home m hoje dá-seconta dolorosamente de que nem as suas grandesreligiões nem as suas várias filosofias parecem ca-pazes de fornecer-lhe aquelas idéias enérgicas edinâmicas que lhe dariam a segurança necessáriapara enfrentar as atuais condições do mundo.

Sei bem o que haveriam de dizer os budis-tas: as coisas andariam bem se as pessoas seguis-sem "a nobre trilha óctupla" do Dharma (lei,doutrina) e compreendessem verdadeiramente oself (ou si-mesmo) . Já os cristãos afirmam que seas pessoas tivessem fé em Deus teríamos ummundo melhor. Os racional istas insistem que seas pessoas fossem inteligentes e ponderadas to-dos os nossos problemas seriam controlados. Averdadeira dificuldade é que nenhum deles tratade resolver estes problemas pessoalmente.

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Os cristãos muitas vezes perguntam por queDeus não se dirige a eles, como se acredita quefazia em tempos passados. Quando ouço este ti-po de questionamento lembro-me sempre do ra-bi a quem perguntaram por que ninguém maishoje em dia vê Deus, quando no passado Eleaparecia às pessoas com tanta freqüência. Res-posta do rabi: ''É que hoje em dia já não mais e-xiste gente capaz de curvar-se o bastante.''

Resposta absolutamente certa. Estamos tãofascinados e envolvidos por nossa consciência sub-jetiva que nos esquecemos do fato milenar deque Deus nos fala, sobretudo através de sonhos evisões . O budista despreza o mundo das fanta-sias inconscientes considerando-as ilusõesinúteis; o cristão coloca sua Igreja e sua Bíbliaentre ele próprio e o seu inconsciente; e oracionalista ainda nem sabe que a suaconsciência não é o total da sua psique. Este tipode ignorância continua a exist ir apesar de oinconsciente ser, há mais de 70 anos, umconceito científico básico e indispensável aqualquer investigação psicológica séria.

Não podemos mais nos permitir uma atitu-de de "Deus Todo -Pode roso", elegendo-nosjuizes dos méritos ou das desvantagens dos fenô-menos naturais. Não baseamos nossos conheci-mentos de botânica na ultrapassada classificaçãoentre plantas úteis e inúteis, ou os de zoologiana ingênua distinção entre animais inofensivos eperigosos. Mas, complacentemente, continua-mos a admitir que consciência é razão e inconsci-ência é contra-senso. Em qualquer outra ciênciatal critério faria rir, tal a sua improcedência. Osmicróbios, por exemplo, são razoáveis ou absur-dos?

Seja o que for a inconsciência, sabe-se que éum fenômeno natural que produz símbolos pro-vadamente relevan tes . Não pode mos esperarque alguém que nunca tenha olhado através deum microscópio seja uma autoridade em micró-bios. Do mesmo modo, quem não fez um estu-do sério a respeito dos símbolos naturais não po-de ser considerado juiz competente do assunto .Mas a depreciação geral da alma humana é de talextensão que nem as grandes religiões, nem asvárias filosofias, nem o racionalismo científico sedispõem a um estudo mais profundo.

Apesar de a Igreja Católica admitir a ocor-rência dos somnia a Deo missa (sonhos enviadospor Deus), a maioria dos seus pensadores não fazum esforço sério para compreender os sonho s.

Duvido que exista um tratado ou uma doutrinaprotestante que se humilhe a ponto de aceitar apossibil idade de a vox Dei ser percebida emalgum sonho. Mas se o teólogo acredita mesmona existência de Deus, com que autoridadepode afirmar que Deus é incapaz de nos falaratravés dos sonhos?

Passei mais de meio século investigando ossímbolos naturais e cheguei à conclusão de quetanto os sonhos como seus símbolos não são fe-nômenos inconseqüentes ou desprovidos de sen-tido. Ao contrário, os sonhos fornecem as maisinteressantes revelações a quem quiser se dar aotrabalho de entender a sua simbologia. O resul-tado, é bem verdade, pouco tem a ver com pro-blemas cotidianos como vender ou comprar. Maso sentido da vida não está de todo explicado pelanossa atividade econômica, nem os anseios maisíntimos do coração humano atendidos por umaconta bancária.

Neste período da história humana em quetoda a energia disponível é dedicada ao estudo eà investigação da natureza, dedica-se pouquíssi-ma atenção à essência do homem — a sua psique— enquanto multipli cam-se as pesquisas sobreas suas funções conscientes. No entanto, as re-giões verdadeiramente complexas e desconheci -das da mente, onde são produzidos os símbolos,ainda continuam virtualmente inexploradas. E éincrível que, apesar de recebermos quase todasas noites sinais enviados por estas regiões, pareçatão tedioso decifrá-los que poucas pessoas se te-nham preocupado com o assunto. O mais im-portante instr umento do homem, a sua psi que,recebe pouca atenção e é muitas vezes tratadocom desconfiança e desprezo. "É apenas psico-lógico" é uma expressão que significa, habitual-men te : "Não é nad a."

De onde exatamente virá este imenso pre-conceito? Estivemos sempre tão manifestamenteocupados com o que pensamos que nos esquece-mos por comple to de indagar o que pensará anosso respeito a psique inconsciente. As idéiasde Sigmund Freud vieram acentuar, em muitaspessoas, o desdém existente com relação à psi-que. Antes dele descurava-se e ignorava-se suaexistência; agora a psique tornou-se uma espéciede depósito onde se despeja tudo que a moral re-fuga.

Este ponto de vista moderno é, certamente,unila teral e injusto. Nosso conhecimento atualdo inconsciente revela que é um fenômeno na-

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tural e, tal como a própria Natureza, pelo menosneutro. Nele encontramos todos os aspectos danatureza humana — a luz e a sombra, o belo e ofeio, o bom e o mau, a profundidade e a sandice.O estudo do simbolismo individual, e do coleti -vo, é tarefa gigantesca e que ainda não foi venci-da. Mas ao menos já existe um trabalho inicial.Os primeiros resultados são encorajadores e pa-recem oferecer resposta às muitas perguntas —até aqui sem nenhuma réplica — que se faz àhumanidade de hoje.

Acima, o Filósofo com Livro Aberto, deRembrandt (1633). Este velho,parecendo estar voltado para dentro desi mesmo, exprime bem a convicção deJung de que cada um de nós deveexplorar o seu pr óprio inconsciente. Oinconsciente não pode ser ignorado; eleé natural , ilim itado e poderoso como asestrelas.

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2 Os mitosantigos e o homemmoderno

JosephL. Henderson

Máscara cerimonial de uma ilha da Nova Irlanda (Nova Guiné).

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Os mitos antigos e o homem moderno

Os símboloseternos

A história antiga do homem está sendoredescoberta de maneira significativa através dosmitos e imagens simbólicas que lhesobreviveram. À medida que os arqueólogospesquisam mais profundamente o passado,vamos atribuindo menos valor aosacontecimentos históricos do que às estátuas,desenhos, templos e línguas que nos contamvelhas crenças. Outros símbolos também nostêm sido revelados pelos filósofos e historiadoresreligiosos, que traduzem estas crenças emconceitos modernos inteligíveis, conceitos que,por sua vez, adquirem vida graças aos antro-pólogos. Estes últimos nos mostram que as mes-mas formas simbólicas podem ser encontradas,sem sofrer qualquer mudança, nos ritos ou nosmitos de pequenas sociedades tribais ainda exis-tentes nas fronteiras da nossa civilização.

Todas estas pesquisas contribuíram imensa-mente para corrigir a atitude unila teral de pes-soas que afirmam que tais símbolos pertencem apovos antigos ou a tribos contemporâneas ''atra-sadas" e, portanto, alheias às complexidades davida moderna. Em Londres ou Nova Iorque é fá-cil repudiar os ritos de fecundidade do homemneolítico como simpl es superstições arcaicas.Se alguém pretende ter tido uma visão ou ou -

vido vozes, não será tratado como santo ou comooráculo: dir-se-á que está com um distúrbiomental . Ainda lemos os mitos dos antigos gre-gos ou dos índios americanos, mas não consegui-mos descobrir qualquer relação entre estas histó-rias e nossa própria atitude para com os"heróis" ou os inúmeros acontecimentosdramáticos de hoje.

No entanto as conexões existem. E os sím-bolos que as representam não perderam impor-tância para a humanidade.

Foi a Escola de Psicologia Analítica do Dr.Jung que, nos nossos dias, mais contribuiu para acompreensão e reavaliação destes símbolos eter-nos. Ajudou a eliminar a distinção arbitrári a en-tre o homem primitivo, para quem os símbolossão parte natural do cotidiano, e o homem mo-derno que, aparentemente, não lhes encont ranenhum sentido ou aplicação.

Como o Dr. Jung assinalou no capítulo an-terior , a mente humana tem sua história própriae a psique retém muitos traços dos estágios ante-riores da sua evolução. Mais ainda, os conteúdosdo inconsciente exercem sobre a psique uma in-fluência formativa. Podemos, conscientemente,ignorar a sua existência, mas inconscientemente

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reagimos a eles, assim como às formas simbólicas— incluindo os sonhos — através das quais se ex-pressam.

O indivíduo pode ter a impressão de queseus sonhos são espontâneos e sem conexão. Maso analista, ao fim de um longo período de obser-vação, consegue constatar uma série de imagensoníricas com estrutura significativa. Se o pacien-te chegar a compreender o sentido de tudo istopoderá, eventualmente, mudar sua atitude paracom a vida. Alguns destes símbolos oníricos pro-vêm daquilo a que o Dr. Jung chamou "o incons-ciente coletivo" — isto é, a parte da psique queretém e transmite a herança psicológica comumda humanidade. Estes símbolos são tão antigos etão pouco familiares ao homem moderno queeste não é capaz de compreendê-los ou assimilá-los diretamente.

É aí que o analista torna-se útil. Possivel-mente o paciente precisará ser libertado de umasobrecarga de símbolos que se tenham tornadogastos e inadequados. Ou, ao contrário, talveznecessite de ajuda para descobrir o valor perma-nente de algum velho símbolo que, longe de es-tar morto, esteja tentando renascer sob uma for-manova e atual.

Antes de o analista poder explorar eficien-temente o significado dos símbolos com o paci-ente, ele precisa adquirir um conhecimento maisamplo das suas origens e do seu sentido. Pois asanalogias entre os mitos antigos e as históriasque surgem nos sonhos dos pacientes de agora

não são analogias triviais nem acidentais. Exis-tem porque a mente inconsciente do homemmoderno conserva a faculdade de fazer símbo-los, antes expressos através das crenças e dos ri-tuais do homem primitivo. E esta capacidadeainda continua a ter uma importância psíquicavital . Dependemos, muito mais do que imagi -namos, das mensagens trazidas por estes símbo-los, e tanto as nossas atitudes quanto o nossocomportamento são profundamente influencia-dos por elas.

Em época de guerra, por exemplo , há umaumento de interesse pelas obras de Homero,Shakespeare e Tolstoi, e lemos com uma novapercepção as passagens que dão à guerra o seusent ido permanente (ou "arquetíp ico"). Hão deevocar uma reação muito mais profunda de nos-sa parte do que em alguém que jamais tenha vi-vido a intensa experiência emocional de umaguerra. As batalhas nas planícies de Tróia emnada se assemelhavam às de Agincourt ou Boro-dino, e no entanto aqueles grandes escritores fo-ram capazes de transcender as diferenças de espaçoe de tempo na tradução de temas universais . Enós reagimos a estes temas porque são, funda-mentalmente, temas simbólicos.

Há um exemplo ainda mais surpreendentee que deve ser familiar a todos os que nasceramnuma sociedade cristã . No Natal, manifestamosa emoção íntima que nos desperta o nascimentomitológico de uma criança semidivina, apesar denão acreditar mos necessar iamente na doutrinada imaculada concepção de Maria ou de possuir-

À extrema esquerda, uma cerimôniasimbólica da antigüidade sob suaforma contemporânea: o astronautanorte-americano John Glenn desfilaem Washington depois de suaviagem em torno da Terra, em 1962— exatamente como um herói antigono seu vitorioso retorno á pátria.

No centro, à esquerda, uma esculturaem forma de cruz de uma deusagrega da fertilidade (cerca do ano2500a . C . ) . Á esquerda,reprodução (vista de dois ângulos) deuma cruz de pedra escocesa doséculo XII, onde foram mantidoscertos elementos femininos dopaganismo: os "seios" da barratransversal. À direita, outro arquétipomilenar renasce sob nova roupagem:um cartaz russo para um festival"ateu" da Páscoa, substituindo afesta cristã — como também aPáscoa cristã foi sobreposta aantigos ritos de solstício pagãos.

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mos qualquer crença religiosa. Sem o saber, so-fremos a influência do simbolismo do renasci -mento. São remanescências de uma antiqüíssi-ma festa de solstício que exprime a esperança deque se renove a esmaecida paisagem de invernodo hemisfério norte. Apesar de toda a nossa so-fisticação, alegramo-nos com esta festa simbólicada mesma forma com que, na Páscoa, nos junta-mos aos nossos filhos no ritual dos ovos de Pás-coa ou dos coelhos.

Mas será que compreendemos o que esta-mos fazendo, ou percebemos a conexão entre ahistória do nascimento, morte e ressurreição deCristo com o simbolismo folclórico da Páscoa?Habitualmente nem chegamos a considerar taisassuntos como merecedores de maior atenção in-telectual.

No entanto, um é complemento do outro.O suplício da cruz na Sexta-Feira Santa parece, aprincípio, pertencer ao mesmo tipo de simbolis-mo da fecundidade que vamos encontrar nos ri-tuais de homenagem a outros "salvadores", co-mo Osíris, Tammuz e Orfeu. Também eles tive-ram nascimento divino ou semidivino, desenvol-veram-se, foram mortos e ressuscitaram. Perten-ciam, é verdade , a religiões cíclicas em que amorte e a ressurreição do deus-rei era um mitoeternamente recorrente.

Mas a ressurreição de Cristo no Domingo dePáscoa é muito menos convincente, do ponto devista ritual, do que o simbolismo das religiõescíclicas. Porque Jesus sobe aos céus para sentar-seà direita do Pai: a sua ressurreição acontece umasó vez e não se repete.

É este caráter final do conceito cristão daressurreição (confirmado pela idéia do Jul-gamento Final , que é, também, um tema "fe-chado") que distingue o cristianismo dos outrosmitos do deus-rei. A ocorrência dá-se uma únicavez, e o ritual apenas a comemora. Este sentidode caráter final, definitivo, será talvez uma dasrazões por que os primeiros cristãos, ainda in-fluenciados por trad ições anteriores, sent iamque o cristianismo deveria ser suplementado poralguns elementos dos ritos de fecundidade maisantigos. Precisavam que esta promessa de res-surreição fosse sempre repetida. E é o que sim-bolizam o ovo e o coelho da Páscoa.

Tomei dois exemplos bem diversos paramostrar como o homem continua a reagir às pro-fundas influênci as psí quicas que , cons-cientemente, há de rejeitar como simples lendasfolclóricas de gente supersticiosa e sem cultura.Mas é preciso irmos bem longe. Quanto mais de-talhadamente se estuda a história do simbolismoe do seu pape l na vida das dife rentes culturas ,

Á esquerda, pintura japonesa empergaminho (século XIII), representandoa destruição de uma cidade; abaixo, acatedral de São Paulo, igualmenteenvolta em chamas e fumaça durante umataque aéreo a Londres, na SegundaGrande Guerra. Mudam-se os métodos,através dos tempos, mas o impacto daguerra é eterno e arquetípico.

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mais nos damos con ta de que há também umsentido de recriação nesses símbolos.

Alguns símbolos relacionam-se com a in-fância e a transição para a adolescência, outroscom a maturidade, e outros ainda com a ex-periência da velhice, quando o homem está sepreparando para a sua morte inevitável. O Dr.Jung descreveu como os sonhos de uma meninade oito anos continham símbolos habitualmenteassociados à velhice. Seus sonhos apresentavamaspectos de iniciação à vida nas mesmas formasarquetípicas que expressam iniciação à morte.Esta progressão de idéias simbólicas, no entanto,pode ocorrer na mente inconsciente do homemmoderno da mesma maneira que nos rituais dassociedades do passado.

Este elo crucial entre os mitos arcaicos ouprimitivos e os símbolos produzidos pelo in-consciente é de enorme valor prático para o Ana-lista. Permite -lhe identificar e interpretar estessímbolos em um contexto que lhes confere tantouma perspectiva histórica quanto um sentidopsicológico. Examinaremos agora alguns dosmais importantes símbolos da antigüidade emostra remos como — e com que propósito —são análogos aos elementos simbólicos que fi -guram em nossos sonhos.

Ao alto, à esquerda, o nascimento deCristo; ao centro, a crucificação; abaixo,a ascensão. Seu nascimento,morte erenascimento seguem os padrões demuitos mitos heróicos antigos — umaestrutura baseada, originalmente, nosritos sazonais de fertilidade, como osque se celebravam há três mil anos emStonehenge, na Inglaterra (abaixo), aoalvorecer, solstício de verão.

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Heróis e fabricantesde heróis

O mito do herói é o mais comum e omais conhecido em todo o mundo. Encontramo-lo na mitologia clássica da Grécia e de Roma, naIdade Média, no Extremo Oriente e entre astribos primitivas contemporâneas. Aparecetambém em nossos sonhos. Tem um poder desedução dramática flagrante e, apesar de menosaparente, uma importância psicológicaprofunda. São mitos que variam muito nos seusdetalhes, mas quanto mais os examinamos maispercebemos o quanto se assemelham naestrutura. Isto quer dizer que guardam umaforma universal mesmo quando desenvolvidospor grupos ou indivíduos sem qualquer contatocultural entre si — como, por exemplo , as tribosafricanas e os índios norte-american os, os gregose os incas do Peru. Ouvimos repetidamente amesma história do herói de nascimentohumilde, mas milagroso, provas de sua forçasobre-humana precoce, sua ascensão rápida aopoder e à notoriedade, sua luta triun fantecont ra as forças do mal, su a fal ibi lidade

ante a tentação do orgulho (hybris) e seu de -clínio, por motivo de traição ou por um ato desacrif ício "heróico", onde sempre morre.

Explicarei adiante, com mais detalhes, porque acredito no significado psicológico deste es-quema tanto para o indivíduo, no seu esforço emencontrar e afirmar sua personalidade, quantopara a sociedade no seu todo, na sua necessidadesemelhante de estabelecer uma identidade co-letiva. Mas uma outra características relevante nomito do herói vem fornecer-nos uma chave paraa sua compreensão. Em várias destas histórias afraqueza inicial do herói é contrabalançada peloaparecimento de poderosas figuras "tutelare s"— ou guardiães — que lhe permitem realizar astarefas sobr e-humanas que lhe ser iam im-possíveis de executar sozinho. Entre os heróisgregos, Teseu tinha como prote tor Poseidon,deus do mar; Perseu tinha Atenéia; Aqui lestinha como tutor Quiron, o sábio centauro.

Estas personagens divinas são, na verdade,

O herói que dá prova prematura desua força aparece na maioria dosmitos desta categoria. Abaixo,Hércules menino matando duasserpentes. Ao alto, à direita, o jovemrei Artur, o único capaz de retirar umaespada mágica de uma pedra. Abaixo,à direita, o norte-americanoDavyCrockett, que aos três anos de idadematou um urso.

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Acima, três exemplos da figuratutelar ou do guardião queacompanha o herói arquetípico. Aoalto, o centauro Quiron, da mitologiagrega, dando instruções ao jovemAquiles. Ao centro, o guardião do reiArtur, o mágico Merlin (segurandoum pergaminho).Abaixo, umexemplo davida moderna:otreinador, de cujo conhecimento eexperiência tanto depende oboxeador profissional.

Muitos heróis precisam enfrentar evencer monstros e forças do mal. Aoalto, o herói escandinavo Sigurd (ádireita da gravura) mata a serpenteFafnir. Ao centro, Gilgamesh, antigoherói épico da Babilônia, lutandocom um leão. Abaixo, o modernoherói americano das histórias emquadrinho, o Super-Homem, cujaguerra individual contra o crime oobriga às vezes a salvar bonitaspequenas.

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Acima, dois exemplos de heróistraídos: o herói bíblico Sansão, traídopor Dalila, e o herói persa Rustam,caindo numa armadilha feita por umhomem de sua extrema confiança.Abaixo, um exemplo moderno dehybris (confiança excessiva):prisioneiros alemães em Stalingrado,1941, depois de Hitler invadir aRússia no inverno.

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representações simbólicas da psique total, en-tidade maior e mais ampla que supre o ego daforça que lhe falta. Sua função específica lembraque é atribuição essencial do mito heróico de-senvolver no indivíduo a consciência do ego — oconhecimento de suas próprias forças e fra-quezas — de maneira a deixá-lo preparado paraas difícei s tarefas que a vida lhe há de impor.Uma vez passado o teste inicial e entrando o in-divíduo na fase de maturidade da sua vida, o mi-to do herói perde a relevância. A morte sim-bólica do herói assinala, por assim dizer, a con-quista daquela maturidade.

Até aqui referi-me ao mito completo do he-rói, em que se descreve minuciosamente o ciclototal do seu nascimento até a sua morte. Mas éimportan te reconhecermos que em cada fasedeste ciclo a história do herói toma formas par-ticulares, que se aplicam a determinado pontoalcançado pelo indivíduo no desenvolvimentoda sua consciência do ego e também aos pro-blemas específicos com que se defronta a um da-do momento. Isto é, a imagem do herói evoluide maneira a refletir cada estágio de evolução dapersonalidade humana.

Este conceito pode ser entendido mais fa-cilmente se o apresentarmos de uma forma quecor res pon da a um diagr ama . Tomo com oexemplo uma tribo de índios norte -americanos,os Winnebagos, porque nela podemos observar,nitidamente, quatro etapas distintas da evoluçãodo herói. Nestas histórias (publicadas pelo Dr.Paul Radin em 1948, sob o título O Ciclo He-rói co dos Winnebagos) pode-se not ar a cla ra

progressão do mito desde o conceito mais pri-mitivo do herói até o mais elaborado. Esta pro-gressão é característica de outros ciclos heróicos.Apesar de suas figuras simbólicas terem nomesdiferentes, sua atuação é idêntica, e vamoscompreendê-las melhor através do que fica evi-denciado neste exemplo.

O Dr. Radin constatou quatro ciclos dis-tintos na evolução do mito do herói. Chamou-lhes: ciclo Trickster, ciclo Hare, ciclo Red Horn eciclo Twin. Percebeu claramente o significadopsicológico desta evolução quando disse:“Representa os esforços que fazemos todos paracuidarmos dos problemas do nosso crescimento,ajudados pela ilusão de uma ficção eterna.”

O ciclo Trickster corresponde ao primeiroperíodo de vida, o mais primi tivo. Trickster éum persona gem dominado por seus apet ites ;tem a menta lidade de uma criança. Sem outropropósito senão o de satisfazer suas necessidadesmais elementares, é cruel, cínico e insensível(nossas histórias do Irmão Coelho ou da RaposaReynard perpetua m o que há de mais es -sencial no mito Trickster).

Este personagem, que inicialmente aparecesob a forma de um animal, passa de uma proezamaléfica a outra. Mas ao mesmo tempo começa atransformar-se e no final da sua carreira de tra-paças vai adquirindo a aparência física de umhomem adulto.

O personagem seguinte é Hare (a Lebre).Ele também, tal como Trickster (muitas vezesrepresentado pelos índios americanos como um

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coiote), aparece inicialamente como um animal.Não tendo ainda alcançado a plenitude da es-tatura humana surge, no entanto , como o fun-dador da cultura — o transformador. Os Win-nebagos acreditam que, tendo ele lhes dado oseu famoso Rito Medicinal, tornou-se seu sal-vador e uma espécie de "herói da cultura". Estemito era tão forte, conta-nos o Dr. Radin, quequando o cristianismo começou a penetrar na suatribo os membros do Rito Peyote custaram a seafastar de Hare. Misturaram-no com a figura deCris to e muitos deles argumentavam que nãolhes era necessário ter Jesus já que tinham Hare.Esta figura arquetípica representa um avanço dis-tinto sobre Trickster: é um personagem que setorna mais civilizado, corrigindo os impulsos in-fantis e instintivos encont rados no ciclo deTrickster.

Red Horn, o terceiro herói desta série, éuma pessoa ambígua e o caçula de 10 irmãos.Atende aos requisitos do herói arquetípico, ven-cendo difíceis provas em corridas e em batalhas.Seu poder sobre-humano revela-se na sua ca-pacidade para derrotar gigantes pela astúcia (nojogo de dados) ou pela força (numa luta cor-poral). Tem um companheiro vigoroso sob a for-ma de um pás sar o-tro vão , cha mado Sto rms -as he walks há tempestade quando ele passa cujovigor compensa qualquer possível fraqueza deRed Horn. Com Red Horn chegamos ao mundodo homem apesar de ser um mundo arcaico, noqual são imprescindíveis poderes sobre-humanosou deuses tutelares para garantir a vitória do in-divíduo sobre as forças do mal que o perseguem.

No final da história o herói-deus vai embora dei-xando Red Horn e seus filhos na Terra. Os pe-rigos que ameaçam a felicidade e a segurançado homem nascem, agora, do próprio homem.

Este tema básico (repetido no último ciclo,o dos Twins) susci ta uma questão vital : porquanto tempo podem os seres humanos alcançarsucesso sem caírem vítimas de seu próprio or-gulho ou, em termos mitológicos, da inveja dosdeuses?

Apesar de os Twins serem considerados fi-lhos do Sol, eles são essencialmente humanos e,juntos, vêm a constituir-se numa só pessoa. Uni-dos originalmente no ventre materno, foram se-parados ao nascer. No entanto, são parte in-tegrante um do outro e é necessário, apesar deextremamente difícil , reuni -los. Nestas duascrianças estão representados os dois lados da na-tureza humana. Um deles, Flesh, é conciliador,brando e sem iniciativas; o outro, Stump, é di-nâmico e rebelde. Em algumas das histórias dosHeróis Twins estas atitudes foram apuradas atéchegarem ao pont o de uma das figu ras re-presentar o introvertido, cuja força principal en-contra-se na reflexão, e outra o extrovertido, umhomem de ação capaz de realizar grandes feitos.

Por muito tempo estes dois heróis per-manecem invencíveis. Tanto apresentados comodois personagens distintos ou como dois em um,nada lhes resiste. No entanto, exatamente comoos deuses guerreiros dos índios Navajos, tornam-se, eventualmente, vítimas do abuso que fazemde sua própria força. Não deixam sobrar mais

Trickster: o estágio inicial, rudimentar,na evolução do mito do herói em queo personagem é instintivo, desinibidoe, por vezes, infantil. Na extremaesquerda (numa ópera moderna emPequim), um herói chinês do séculoXVI, o Macaco, induzindo pelaastúcia um rei dos rios a entregar-lhesua varinha mágica. À esquerda,numa jarra do século VI a.C., oinfante Hermes no seu berço, depoisde ter roubado o gado de Apolo. Àdireita, o deus nórdico Loki, umautêntico arruaceiro (escultura doséculo XIX). À extrema direita,Charlie Chaplin, armando umaconfusão em Tempos Modernos(1936) - nosso Trickster do séculoXX.

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nenhum monstro no céu ou na terra sem sercombatido, e sua conduta desvairada acaba re-cebendo troco. Os Winnebagos contam que, porfim, não restou mais nada que lhes escapasse —nem mesmo os supor tes que sustentam o mun-do. Quando os Twins mataram um dos quatroanimais em que se apoiava o nosso globo, ul-trapassaram todos os possíveis limites, e chegouo momento de se pôr fim à sua carreira. A morteera o castigo merecido.

Assim, tanto no ciclo do Red Horn quantono ciclo dos Twins encontramos o tema do sa-crifício ou morte do herói como a cura necessáriapara a hybris, o orgulho cego. Nas sociedadesprimitivas cujo nível cultural corresponde ao ci-clo do Red Horn , parece que este perigo pôdeser evitado com a instituição do sacrifício hu-mano expia tório — um tema de enorme im-portância simbó lica , que reaparece con-tinuamente na história do homem. Os Win-nebagos, como os Iroquis e algumas tribos Al-gonquins , co miam carn e humana , pro-vavelmente como ritua l totêmico para dominarseus impulsos individualistas e destruidores.

Nos exemplos de traição ou derrota do he-rói que encontramos na mitologia européia , otema do sacrifíc io ritual é mais especificamenteutilizado como punição para a hybris. Mas osWinnebagos, como os Navajos, não vão tão lon-ge. Apesar de os Twins terem errado e me-recerem, portanto, a pena de morte , eles pró-prios ficaram tão assustados com sua força in-controlável que concordaram em viver em estado

de repouso permanente, permitindo aos dois as-pectos contraditórios da natureza humana reen-contrarem, assim, seu equilíbrio.

Fiz uma descrição mais detalhada destesquat ro tipos de heróis porque eles nos de-monstram clara mente o esquema que serve defundamento tanto para os mitos históricos quan-to para os sonhos heróicos do homem con-temporâneo. Tendo isto em mente pode mosagora passar a examinar o sonho de um pacientede meia -idade. A interpre tação deste sonhomostra como o analista consegue, com o co-nhecimento da mitologia, ajudar o seu pacientea encontrar uma resposta ao que, de outromodo, poderia parecer um indecifrável enigma.Este homem sonhou que estava em um teat ro,e que era "um importante espectador, deopinião muito acatada". Representava-se umacena em que havia um macaco branco sobre umpedestal, cercado de homens. Relatando seusonho, dizia o meu paciente:

"Meu guia explica-me o tema. É o drama de umjovem marinheiro que está, a um tempo, exposto aovento e a espancamentos. Argumentei que este ma-caco branco não era, absolutamente, um marinheiro;mas naquele exato momento um rapaz vestido depreto levantou-se e pensei que talvez fosse ele o ver-dadeiro herói da peça. No entanto, um outro bonitojovem dirigiu-se a um altar, onde ficou estendido. Fi-zeram-lhe marcas sobre o peito nu como se o es-tivessem preparandopara sersacrificado.

0 segundo estágio daevolução doheróié o defundadordaculturahumana. Àesquerda, uma pinturaNavajoemareiarepresentandoo mitodoCoiote, que rouba o fogo dosdeusesparadá-loaohomem.Namitologia grega,Prometeutambémrouba o fogo dos deusespara ohomem, tendo sido, por isso,acorrentado a uma rocha e torturadoporumaáguia(abaixo,numa taça doséculoVIa.C.:

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O herói do terceiroestágioé umpoderoso homem-deus —comoBuda. Nesta escultura acima, doséculo I,Sidarta inicia a jornada emque receberá a luz, tornando-seBuda.

Abaixo, à esquerda, uma esculturaitaliana medieval de Rômulo e Remo,os gêmeos (criados por uma loba)que fundaram Roma e que são omais conhecido exemplo do quartoestágio do mito do herói.

No quarto estágio, os Twins muitasvezes abusam do seu poder — comoos heróis romanos Castor e Pólux aoraptarem as filhas de Leucipo(abaixo, num quadro do artistaflamenco Rubens).

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"Vi-me então, com várias outras pessoas, sobreuma plataforma. Podia-se descer dali por umapequena escada, mas hesitei porque havia doisvagabundos por perto e achei que poderiamimpedir-nos. Mas quando uma mulher do grupoutilizou a escada sem que nada lhe acontecesse, vique não havia nenhum risco e todos nós a seguimos.''

Um sonho deste tipo não pode ser rápidaou simplesmente interpretado. È preciso desfiá -lo cuidadosamente, de maneira a estabelecertanto a sua relação com a vida de quem o sonhouquanto as suas implicações simbólicas mais am-plas . O paciente que me contou este sonho eraum homem que, no sentido físico, alcançara amaturidade. Obtivera sucesso em sua carreira eparecia bom marido e pai. No entanto, psi -cologicamente, era imaturo e encontrava-se ain-da na fase da adolescência. Esta imaturidade psí-quica é que se expressava nos seus sonhos sob osdiferentes aspectos do mito do herói . Na suaimaginação, estas imagens ainda exerciam forteatração, apesar de já nada significarem em ter-mos de realidade no seu cotidiano.

Assim, neste sonho, vemos uma série depersonagens apresentados de forma teatral, co-mo diversos aspectos de uma figura que o so-nhador espera venha a revelar-se como o ver-dadei ro herói . O primei ro personagem foi ummacaco, o segundo um marinhei ro, o terceiroum home m de preto e o último "um boni to jo -

vem". Na primeira parte da história , que se su-põe representar o drama do marinheiro, o meupaciente vê apenas um macaco branco. O ho-mem de preto aparece e desaparece su-bitamente; é um personagem novo que, a prin-cípio, contrasta com o macaco branco e depois seconfunde, por um momento, com o próprio he-rói (estas confusões são comuns nos sonhos. Asimagens do inconsciente não se apresentam, ha-bitualmente , de maneira clara e o sonhador éobrigado a decif rar o signi ficado de uma su-cessão de contrastes e paradoxos).

É significativo que estas figuras tenham sur-gido durante uma representação teatral , e estecontexto parece ser uma referência direta do pa-ciente ao tratamento de análise a que estava sesubmetendo: o "guia" a que se refere é, pre-sumivelmente, seu analista. No entanto, ele nãose vê como um paciente que está sendo tratadopor um médico , mas como um "importante es-pectador, de opinião muito acatada". É desteponto de vista privilegiado que contempla certospersonagens, que ele associa à experiência docrescimento. O macaco branco, por exemplo,lembr a-lhe a con dut a bri ncalhona e in -disciplinada de meninos , entre a idade de sete edoze anos. O marinheiro sugere o espírito aven-tureiro da adolescência, ao lado do conseqüentecastigo, sob a forma de espancamento, pelas tra-vessuras feitas. O paciente não encontrou ne-nhuma associação para o jovem de preto, mas orapaz boni to que ia ser imolado lembrou-lhe o

A psique do indivíduo se desenvolve(tal como o mito do herói) a partir deum estágio primitivo infantil — emuitas vezes imagens destas etapasprimitivas podem aparecer nossonhos de adultos psicologicamenteimaturos. O primeiro estágio podeser representado por descuidadas ealegres brincadeiras de crianças —como a guerra de travesseiros(extrema esquerda) do filme francês,de 1933, Zero de Conduite. 0segundo estágio poderá ser atemerária busca de emoções, daadolescência: à direita, jovensamericanos testam os seus nervos navelocidade de seus carros. Umestágio posterior pode suscitar, nofinal da adolescência, sentimentos deidealismo e de sacrificio,exemplificados na fotografia(extrema direita) do levante dosjovens de Berlim ocidental (junho de1953), quando apedrejavam ostanques russos.

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espírito de sacrifício idealista do final da ado-lescência.

Neste estágio é possível reunir o materialhistórico (ou as imagens arquetípicas do herói)aos dados de experiência pessoal do sonhador,para verificar o quanto se confirmam, se con-tradizem ou se qualificam uns e outros.

A primeira conclusão a que se chega é que omacaco branco parece representar Trickster —ou, pelo menos, os traços de personalidade a-tribuídos pelos Winnebagos à figura de Tricks-ter. Mas julgo também que o macaco significaalguma coisa que o meu paciente ainda não ex-perimentara suficientemente — na verdade, eleafirma que no sonho era um simples espectador.Descobri que, quando menino, fora intros-pec tivo, excess ivament e agarrado aos pais.Por estes motivos nunca desenvolvera bastante oscaracteres turbulentos naturais do período finalda infância; nem tomara parte nas brincadeirasde seus colegas de colégio. Nunca fizera, comose diz, "macaquices". E é esta expressão po-pular que nos dá a chave do problema. O ma-caco do sonho é, de fato, uma forma simbólicada figura de Trickster.

Mas por que teria Trickster aparecido comomacaco? E por que branco? Como já salientei ,no mito dos Winnebagos Trickster, no final dociclo, começa a tomar a aparência física de umhomem. Neste sonho, Trickster é um macaco —isto é, um ente tão parecido com o homem aponto de poder ser uma caricatura sua, en-graçada e nada perigosa. O sonhador não con-

seguiu descobrir qualquer associação que ex-plicasse por que era branco o macaco. Mas o nos-so conhecimento do simbolismo primitivo leva-nos a conjeturar que a brancura vem emprestaruma certa qual idade "d ivina" a es te per-sonagem banal (o albino é considerado sagradoem muitas sociedades primitivas). Tudo isto seencaixa muito bem com os poderes semidivinosou semimágicos de Trickster.

Assim, parece que o macaco branco sim-bolizava para o sonhador as qualidades positivasdas brincadei ras infantis, de que não participarao bastante na época, e que agora sentia ne-cessidade de exaltar. Segundo nos relata o so-nho, ele coloca o macaco "sobre um pedestal",onde se torna algo mais que uma perdida ex-peri ência infantil . Há de ser , para o homemadulto, um símbolo de experiência criadora.

Chegamos então ao final do episódio domacaco . Era um macaco ou um marinheiro quese expunha a espancamentos? As próprias as-sociações do paciente indicaram o signif icadodesta transformação. Mas, de qualquer modo,no estágio seguinte do desenvolvimento hu-mano, à irresponsabilidade da infância segue-seum período de socialização, que implica sub-missão a uma dolorosa disciplina. Pode-se dizer,po rt an to , que o marinhei ro é uma formaavançada de Trickster, transformado em umapessoa socialmente mais responsável ao sub-meter-se a uma prova de iniciação. Baseados nahistória do simbol ismo, podemos considerar

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que, neste processo, o vento representa o ele-mento natural e o espancamento a adversidadecriada pela própria humanidade.

Neste ponto então encontramos uma re-ferência ao processo descrito pelos Winnebagosno ciclo de Hare, onde o herói centra l é uma fi-gura frágil, mas combativa, pronto a sacrificar oseu caráter infantil a uma evolução futura. Maisuma vez, nesta fase do sonho o paciente re-conhece que não soube viver plenamente esteimportan te aspecto da infância e da primeiraparte da adolescência. Não participara das tra -vessuras da infância, nem das extravagâncias daadol escênci a, e procura descobr ir como re-cuperar estas perdidas experiências e estas qua-lidades pessoais que lhe faltaram.

O sonho sofre , depois, uma mudança cu-riosa. Aparece o jovem de negro e, por um mo-mento, o sonhador sente que é est e "o ver-dadeiro herói" . É tudo que sabemos sobre o no-vo personagem; no entanto, com esta apariçãofugidia introduz-se um tema de profunda sig-nificação e que intervém com freqüência nossonhos.

É o conceito da sombra, que ocupa lugar vi-tal na psicologia analít ica. O professor Jungmostr ou que a sombra projetada pela menteconsciente do indivíduo contém os aspectos

ocul tos, repr imidos e desfavoráveis (ou ne-fandos) da sua personal idade. Mas esta sombranão é apenas o simples inverso do ego cons-ciente. Assim como o ego contém atitudes des-favoráveis e destrutivas, a sombra possui al-gumas boas qualidades — instintos normais eimpulsos criadores. Na verdade, o ego e asombra, apesar de sepa ra dos, são tã o in -dissoluvelmente ligados um ao outro quanto osentimento e o pensamento.

O ego, porém, entra em conf lito com asombra naquilo a que o Dr. Jung chamou a ''ba-talha pela libertação". Na luta travada pelo ho-mem primitivo para alcançar a consciência, esteconflito se exprime pela disputa entre o herói ar-quetípico e os poderes cósmicos do mal, per-sonificado por dragões e outros monstros. Nodecorrer do desenvolvimento da consciência in-dividual, a figura do herói é o meio simbó licoatravés do qual o ego emergente vence a inérciado inconsciente , liberando o homem ama -durecido do desejo regressivo de uma volta aoestado de bem-aventurança da infância, em ummundo dominado por sua mãe.

Na mitologia, habitualmente, o herói ga-nha a sua luta contra o monstro. (Breve me alon-garei mais a respeito deste assunto.) Mas há ou-tros mitos em que o herói cede ao monstro.Exemplo típico é o de Jonas e a baleia, em que omonstro marinho engole o herói e o transportadurante uma noite intei ra numa viagem do oes-te para o leste , simbol izando o suposto traje tofeito pelo sol do crepúsculo à aurora. O herói fi -ca mergulhado em trevas , que representam uma

A personalidade jovem e aindaindeterminada do ego é protegida pelafigura da mãe — proteção simbolizadapela Madona, á esquerda (numa pinturado artista quatrocentista italiano Pierodelia Francesca), ou pela deusa egípciaNut, à direita, inclinada sobre a Terra(alto-relevo do século V a.C.). Mas oego deve, por fim, libertar-se dainconsciência e da imaturidade e a sua"batalha pela libertação" está muitasvezes simbolizada na luta do heróicontra um monstro — como a batalhado deus japonês Susanoo contra umaserpente (acima, à direita, numagravura do século XIX). O herói nemsempre ganha de saída. Por exemplo,Jonas chegou a ser engolido pela baleia(extrema direita, de um manuscrito doséculo XIX).

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espécie de morte. Encontrei este tema em váriossonhos de pacientes meus.

A batalha entre o herói e o dragão é a formamais atuante deste mito e mostra claramente otema arquetípico do triunfo do ego sobre as tem-dências regressivas. Para a maioria das pessoas olado escuro ou negativo de sua personalidadepermanece inconsciente. O herói, ao contrário,precisa convencer-se de que a sombra existe eque dela pode retirar sua força. Deve entrar emacordo com o seu poder destrutivo se quiser estarsuficientemente preparado para vencer o dragão— isto é, para que o ego triunfe precisa antessubjugar e assimilar a sombra.

Vamos reencontrar este tema em uma fi-gura literár ia célebre — o Fausto de Goethe.Aceitando o desafio de Mefistófeles, Fausto fi -cou sob o domínio de uma "sombra", um per -sonagem que Goethe descreve como "parte deuma força que, desejando o mal, encontra obem". Tal como o homem cujo sonho vimosdiscutindo, Fausto deixara de viver plenamenteuma porção importante da sua mocidade. Con-servou-se, portanto, uma pessoa pouco real e in-comple ta, que se perdia numa inútil busca de

A manifestação do ego não precisaser simbolizada por um combate;pode sê-lo por um sacrifício: oquadro de Delacroix (abaixo), AGrécia expirando sobre as Ruínasde Missolonghi, personifica a naçãodevastada pela guerra civil paradepois libertar-se e renascer. Comosacrifícios individuais, temos osexemplos do poeta Byuron (acima),morto na revolução grega (1824).Abaixo, á esquerda, o martíriocristão de Santa Lúcia, quesacrificou seus olhos e sua vida áreligião.

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obje tivos metaf ísicos nunca real izados. Re-lutava, além disso, em aceitar o desafio da vidapara conhecer tanto o mal quanto o bem.

Era a este aspecto do inconsciente que o jo-vem de negro, no sonho do meu paciente, pa-recia querer referir-se. Esta lembrança do ladoobs cur o (o lado da sombr a) da sua per-sonalidade, do seu poderoso potencial ener-gético e do papel que representa na preparaçãodo herói para os embates da vida, é uma tran-sição essencial entre a primeira parte do sonho eo tema do sacrifício do herói: o belo jovem quese coloca no altar. Esta figura representa umaforma de heroísmo comumente associada aoprocesso de formação do ego, no final da ado-lescência. É nesta fase que o homem expressa osprincípios idealistas de sua vida, sentindo a forçaque exercem para transformá-lo e mudar-lhe orelacionamento com as outras pessoas. Encontra-se no apogeu da juventude, atraente , cheio deenergia e de idealismo. Por que então oferece-seem sacrifício, voluntariamente?

A razão, presumivelmente, é a mesma quefez os Twins do mito Winnebago renunciar aoseu poder , sob pena de se destruíre m. O idea-

lismo da juventude, que nos impulsiona comtanta força, conduz a um excesso de confiança:o ego pode ser exaltado até senti r-se com a-tributos divinos, mas este abuso acaba por levá-lo ao desastre (é este o sentido da história de íca-ro, o jovem que consegue chegar ao céu comsuas asas frágeis, inventadas pelo homem, masque ao aproximar-se do sol precipi ta-se ver-tiginosamente). Apesar de tudo isto, o ego dosmoços sempre há de correr este risco, pois se ojovem não luta r por um objetivo mais alto doque aquilo que lhe é fácil obter, não poderá ven-cer os obstáculos que vai encontrar entre a ado-lescência e a maturidade.

Até aqui referi -me às conclusões que meucliente pôde tirar do sonho graças às suas as-sociações pessoais. Há, no entanto, também umaspecto arquetípico no sonho — o mistério daoferenda do sacrifí cio humano. Exatamente porser um mistério foi expresso em um ato ritual cu-jo simbolismo faz-nos recuar muito na histór iahumana. A imagem de um home m estendidosobre um altar é uma referência a um ato bemmais primitivo do que as cerimônias realizadasno altar de pedra do templo de Stonehenge. Lá,

Abaixo, umamontagem sobre a 1ªGrande Guerra: um cartaz deconvocação ás armas, mostrando ainfantaria e um cemitério. Osmonumentos e os serviçosreligiososem intenção dos soldados mortospela pátria refletem muitas vezes otema cíclico "morte e ressurreição'',sacrifício arquetípico do herói. Emum monumentobritânico aos mortosda 1ª Grande Guerra lê-se: "Ao pôrdo sol e aonascer da aurorahavemos de lembrar-nos deles."

Na mitologia, a morte de um herói émuitas vezes causada por suaprópria hybris, que incita os deusesa humilhá-lo. Um exemplo moderno:em 1912, o navio Titanic bateu emum iceberg, afundando (à direita,uma montagem com cenas doafundamento, do filme Titanic,1943). No entanto, fora considerado"insubmergível"; segundo o escritornorte-americano Walter Lord, ummarinheiro teria dito: "Nem Deusconseguiria afundar este navio!"

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como em outros tantos altares primitivos, po-demos imaginar um rito de solstício anual, com-binado com a morte e o renascimento do heróimitológico.

Este rito tem um clima de tristeza, mas mis-turado a uma certa alegria devido à revelação in-terior de que a morte leva a uma nova vida. Sejaum sentimento expresso na prosa épica dos in-dios Winnebagos, num lamento pela morte deBalder nas sagas nórdicas , nos poemas em queWalt Whitman chora a morte de Lincoln ou nosonho em cujo ritua l o homem retor na às es-per anç as e temore s da juventud e, o tema ésempre o mesmo — o drama do renascimentoatravés da morte.

O termo do sonho traz um epílogo curioso,

no qua l o son had or, fin almen te, par tic ipa dasua ação. Ele e mais outras pessoas estão em umaplataforma de onde deve m descer . Não conf iana escada devido a uma possível interferência dedoi s arr uaceir os, mas uma mulher dá-lhe co-ragem e acaba descendo a salvo. Como, atravésdas suas associações, percebi que toda aquela si-tuação a que assistira no sonho fazia parte da suaanál ise — um processo de transformações in-teri ores a que se estava submetendo — é pro-vável que estivesse pensando na dificuldade queser ia vol tar à rea lidade do cot idiano . O medodos "vagabundos", como dizia, sugere o seu re-ceio de ver aparecer o arquétipo Trickster sobforma coletiva.

Os instrumentos de salvação, no sonho, são

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Os heróis muitas vezes lutam contramonstros para salvar "donzelas emperigo" (que simbolizam a anima). Àesquerda, São Jorge mata um dragãopara libertar uma donzela (pinturaitaliana do século XV). À direita, no filmeThe Great Secret, de 1916, o dragãotornou -se uma locomotiva, mas osalvamento heróico permanece omesmo.

a escada fabricada pelo homem, simbolizandotalvez a razão, e a presença de uma mulher que oencoraja a usar esta escada. O aparecimento des-ta mulher na seqüência final do sonho indicauma necessidade psicológica de envolver umprincípio feminino como complemento de todaesta atividade excessivamente masculina.

Não se deve concluir do que dissemos, oude havermos escolhido o mito Winnebago paraesclarecer o sentido deste sonho, que se procureencontrar paralelos mecânicos absolutos e exatosentre um sonho e os materiais que a mitologianos fornece. Cada sonho é um processo par-ticular individual , e a forma definida que tomaé determinada pelas condições do sonhador. Oque procurei mostrar é a maneira pela qual o in-consciente utiliza o material arquetípico e mo-difica a sua forma de acordo com as necessidadesde quem sonha. Assim, neste sonho que re-latamos não há referências diretas às descriçõesfeitas pelos Winnebagos dos ciclos de Red Hornou dos Twins; a referência é, antes, à essênciadestes dois temas — ao elemento de sacrifícionelesexistente.

Como regra geral, pode-se dizer que a ne-cessidade de símbolos heróicos surge quando oego necessita fortificar-se — isto é, quando oconsciente requer ajuda para alguma tarefa quenão pode executar só ou sem uma aproximaçãodas fontes de energia do inconsciente. No sonhoque estamos tratando, por exemplo, não haviareferência alguma a um dos aspectos mais im-portantes do mito clássico do herói — sua ap-tidão para proteger ou salvar lindas mulheres deum grande perigo (a donzela em apuros era omito preferido na Europa medieval). Esta é umadas formas pelas quais os mitos ou os sonhos sereferem à anima, o elemento feminino da psi-que masculina a que Goethe chamou "o EternoFeminino".

A natureza e a função deste elemento fe-minino serão discutidas mais adiante neste livro,pela Dra. Franz; mas a sua relação com a figurado herói pode ser ilustrada por um sonho queme foi contado por outro paciente, também um

homem de idade madura. Começou a contá-lodizendo: "Eu vol tara de uma longa excursãopela Índia . Uma mulher havia organizadonos sos apetrechos de viagem, os meus e os deum amigo, e na volta repreendi-a por não noster feito levar chapéus impermeáveis pretos, di-zendo-lhe que devi do à sua negl igência ha-víamos nos encharcado com as chuvas!' '.

Esta introdução, descobri mais tarde, referia-se a um período da juventude deste honem emque ele fazia caminhadas "heróicas" através deuma per igosa região mont anhosa , em com -panhia de um colega (como nunca estivera naÍndia, e esclarecido pelas associações que osonho lhe inspirara, pude deduzi r que esta via-gem onírica representava a exploração de umanova região, realizada não em um país real masno reinado do inconsciente). No sonho o pa-ciente parece ter a impressão de que uma um-lher, provavelmente personificando a anima, opreparou mal para esta expedição. A ausência deum chapéu impermeável apropriado sugere quese sente psicologicamente indefeso, e que afetou-oo fato de se ter exposto a experiências novas epouco agradáveis. Julga que a mulher lhe de-veria ter providenciado um chapéu, da mesmaforma que sua mãe lhe entregava as roupas quevestia quando criança. Este episódio lembra suasdivertidas perambulações de garoto, quando es-tava seguro de que a mãe (a imagem feminina ori-ginal) o protegeria de qualquer perigo. Ao en-velhecer, deu-se conta de que tudo isto era umailusão pueril e hoje atribuía os seus infortúnios àsua própria anima, em lugar de fazê-lo à mãe.

No estágio seguinte do sonho o per-

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sonagem parti cipa de uma excursão com umgrupo. Mas sente -se fatigado e volta a um res-taurante ao ar livre , onde encontra seu im -permeável e o chapéu que lhe fal tara an-teriormente. Senta-se para descansar. Ao fazê-lonota um cartaz anunciando que um jovem alunodo liceu daquela localidade vai representar o pa-pel de Perseu em uma peça. O aluno em questãoaparece , mas não é um estudante e sim um ro-busto jovem vestido de cinza e com um chapéupreto. Este homem senta-se para conversar comoutro jovem, vestido de preto . Imediatamenteapós esta cena o sonhador sente -se revigorado everifica que será capaz de reunir -se ao grupo.Todos então sobem uma colina, de onde se avis-ta o lugar a que se destinam: uma bonita cidadeportuária. A descoberta deixa-o animado e re-juvenescido.

Aqui, ao contrário do primeiro episódio,onde fazia uma viagem intranqüila, inconfortávele solitár ia, o sonhador está reunido a um grupo.O contraste marca a passagem de uma primeirasituação de isolamento e de revol ta juvenil paraa influência social izante de uma relação entremuit as pessoas. Como esta evolução implicauma nova capacidade de relacionamento elavem sugerir também que a anima estaria atuan-do melhor que antes, como ficou simbolizadona descoberta do chapéu, que ela não lhe haviafornecido no primeiro episódio.

Mas o sonhador está cansado e a cena norestaurante refle te a sua necessidade de con-siderar, sob um novo ponto de vista, as suas ati-tudes anteriores, na esperança de renovar suasforças nesta regressão. E é o que acontece. O que

observa em primeiro lugar é o cartaz anunciandouma peça a respeito de um jovem herói — Perseu— que será interpretado por um estudante. Vêentão este adolescente, já homem, com um ami-go que contrasta grandemente com ele. Um ves-tido de cinzento, outro de preto, podendo-se re-conhecer nos dois personagens, como já disse-mos, uma versão dos Twins (Gêmeos). São figu-ras de herói expressando os dois aspectos opostosdo ego e do alter ego, representados aqui, no en-tanto , harmoniosamente unidos.

As associações do paciente confirmaramtudo isto, acentuando que a figura de cinza re -presentava uma sábia adaptação ao mundo pro-fano, enquanto a figura de preto significava a vi-da espir itual, no sent ido de que um homem deigreja veste-se, habitualmente, de preto. O fatode os dois personagens se apresentarem de cha-péu (ele mesmo tendo encontrado o seu) indicaque alcançaram uma relativa maturidade na suaident idade psíquica, maturidade que lhe haviafaltado terrivelmente nos primeiros anos da ado-lescência, quando as características de Tricksterainda estavam muito presentes nele, a despeitoda imagem idealista que fazia a seu própriorespeito em sua busca de sabedoria.

Sua associação com o herói grego Perseu eracuriosa e revelou-se particularmente significativapor sua gritan te inexatidão. Confundiu Perseucom o herói que matou o Minotauro e salvouAriadne do labir into . Quando lhe ped i que es-crevesse o nome deste herói, descobriu seu en-gano — fora Teseu e não Perseu quem matara oMinotauro. Este equívoco tornou -se repentina-

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mente muito significativo, como ocorre com fre- nhador começou a levar a pior na luta.quência nestes lapsos, quando lhe fiz notar o que Sua mulher , no en tanto — e es te é um fa totinham em comum os dois heróis: Ambos preci- bastante signif icativo — apareceu no sonho e asavam superar o medo que lhes inspiravam as sua presença, de uma certa forma, fez diminuirforças maternais e demoníacas do inconsciente e o tamanho do dragão, tornando -o menos amea-liberar destas forças uma única figura de mulher çador. Esta mudança no sonho mostra que nojovem. casamento o sonhador começava a superar, em-

Perseu teve de cortar a repulsiva cabeça da bora tardiamente, a fixação materna. Em outrasMedusa, cujo horrível semblante e cabeleira de pal avras, pre cis ava encont rar um meio de li -serpentes transformavam em pedra todos os que bertar a energia psíquica ligada a relação mãe -a olhassem fixo. Mais tarde precisou vencer o dra- filho , de maneira a alcançar um relac ionamentogão que guardava Andrômeda. Teseu represen - mais adulto com as mulheres — e mesmo com atava o jovem espírito patriarcal de Atenas, pre- sociedade em geral . A batalha herói -dragão foicisando arrostar os horrores do labirinto e o uma expressão simbólica deste processo de “cres-seu monstruoso habi tante, o Minotauro, sím- cimento".bolos talvez da doentia decadência de uma Cre- Mas a tarefa do herói tem um objetivo queta matriarcal . (Em todas as culturas o labir into vai além do ajus tamento biológico e conjugal :significa uma representação confusa e intrincada libe rar a anima como o compo nent e íntimo dado universo da consciência matriarcal; este uni- psique, necessário a qualquer realização criadoraverso só pode ser transposto por aqueles que es- verdadeira. No caso deste paciente temos de su -tão prontos para fazer uma iniciação especial ao por a probabilidade deste resul tado final , já quemisterioso mundo do inconsciente coletivo.) isto não foi dire tamente mencionado no sonhoTendo vencido este obstáculo Teseu salva Ariad- da viagem à Índia. Mas estou cer to de que elene — uma donzela em perigo. confirmaria a minha hipótese de que a subida à

Este salvamento simboliza a liberação da colina e a vista da cidadezinha portuária comoanima dos aspectos "devoradores" da imagem objetivo da sua caminhada ence rravam a pro-mate rna. Só quando alcança esta libertação é messa fecunda de que iria descobrir a autênticaque um homem torna -se realmente capaz de se função da sua anima, Ficaria, assim, curado da-relacionar bem com uma mulher. O fato de este quele primeiro ressent imento que lhe provocarapaciente não ter conseguido separar ade- a falta de proteção (o chapéu impermeável) daquadamente a sua anima da imagem da mãe foi mulher na sua excursão à Índia (nos sonhos , ci -acentuado em outro sonho, no qual encontrou dades que surgem em certos momentos sig -um dra gão — ima gem simbólic a do asp ect o nificativos podem, muitas vezes, ser símbolos da"devorador" do seu apego à mãe. Este dragão o anima).perseguiu, e como estava desarmado nosso so- O homem conquis tou esta promessa de se-Algumas batalhas e salvamentosheróicos da mitologia grega: áextrema esquerda, Perseu mata aMedusa (vaso do século VI a.C.) ;ao lado, Perseu e Andrômeda (muraldo século I a.C.), a quem salvou deum monstro. Á direita, Teseu matao Minotauro (jarro do século I a.C.),assistido por Ariadne; abaixo, umamoeda de Creta representando olabirinto do Minotauro (ano 67 a.C.)

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gurança pessoal através do seu contato com o au-têntico arquétipo do herói, e descobriu uma no-va atitude, cooperativa e social, em relação aogrupo. Seguiu-se, naturalmente, uma sensaçãode rejuvenescimento. Ele se aproximara da fonteinter ior de energia que o arquétipo de herói re-presenta; esclarecera e desenvolvera a porção delemesmo que, no sonho, estava simbolizada poruma mulher; e através do ato heróico praticadopelo seu ego libertara-se da mãe.

Este e muitos outros exemplos do mito doherói nos sonhos do homem moderno mostramque o ego , quando age como herói, é sempreum condutor de cultura, muito mais que umexibicionista egocêntrico. Mesmo Trickster, noseu jeito despropositado e incoerente, traz umacerta contribuição à realidade cósmica tal como ohomem primitivo a vê.

Na mitologia Navajo, Trickster , sob a for -ma de um coiote, arremessa estre las pelo céu,num ato criador, inventa a necessár ia con -tingênc ia da morte e, no mito da emersão, ajudaseu povo a escapar (através de um caniço oco) deum mundo inferior para outro superior, ondefica a salvo da ameaça de um dilúvio.

Trata-se de uma referência à forma de evo-lução criadora que começa, evidentemente, nu-ma escala de existência pré-consciente, infantilou animal. A ascensão do ego ao estado de açãoconsciente efetiva torna-se clara no mito do ver-dadei ro herói da cultura. Da mesma maneira, oego infant il ou ado lescente liberta -se da o-pressão das ambiçõ es paternas e encontra sua

própria individualidade. Como parte desta as-censão em direção à consciência, a batalha entreo herói e o dragão pode ter que ser várias vezesrepetida a fim de liberar a energia necessária auma imensidão de tarefas humanas que podemformar do caos um esquema cultural .

Quando este processo obtém êxito vemos aimagem total do herói emergindo como uma es-pécie de força do ego (ou, se nos exprimirmosem termos coletivos, como uma identidade tri -bal), que já não necessita então vencer monstrose gig ant es . Ati ngi u um pon to em que est asforças profundas podem ser personalizadas. O"elemento femi nino" não apar ece mais nossonhos como um dragão, mas sim como umamulher; e, de igual modo, o lado "sombra" dapersonalidade toma uma forma men osameaça dora.

Este ponto tão importante está bem ilus-trado no sonho de um homem que se a-proximava dos 50 anos. Durante toda a sua vidasofrerá acessos periódicos de ansiedade, as-sociados ao medo do fracasso (inicialmente pro-vocado pela mãe, que não acreditava nele). Noentanto, as suas realizações, tanto profissionaisquanto no relacionamento pessoal, estavam bemacima da média . No sonho, seu filho de noveanos aparecia como um jovem de 18 ou 19, ves-tido com uma armadura resplandecente de ca-valeiro medieval. O rapaz é chamado para lutarcom uma hoste de homens vestidos de negro, eprepara-se para o combate . No entanto , de re-pe nte, ergue o elmo e sorr i pa ra o ch efe da

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O salvam ento de um a donzela,real izado pelo her ói, pode simboli zar alibertação da an ima dos aspec tos"devoradores" da mã e. Este aspectoé representado, á extrema esquerda,por dan çar inos bal ineses que us am amá scara de Rangda (ao lado), umespí rito feminino mal igno; ou pe laserpente que engo liu e depois expel iuo heró i grego Ja são (acima).Tal como acontece no sonhocom entado na pág. 124, uma cidadeportuária é um sí mbolo comum daanima. Abaixo, um desenho de MarcChaga ll representando Nice sob aforma de uma sereia.

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ameaçadora turma. Está claro que não irão lutare que ficarão amigos.

O filho, neste sonho, é o próprio ego ju-veni l daque le homem que, frequentemente , sesentira ameaçado pela "sombra" sob a forma deum sentimento de insegurança. Num certo sen-tido durante toda a sua vida madura mantiverauma cruzada contra este adversário. Agora, partedevido ao encorajamento que lhe dava ver seufilho crescer sem este tipo de dúvidas, mas prin-cipalmente por ter chegado a formar uma ima-gem aceitável de herói (a mais próxima à es-trutura do seu universo), já não julgava ne-cessário lutar contra a sombra: já pode aceitá-la.É isto que está simbolizado no gesto de amizade.Ele já não se sente impelido a uma luta com-petitiva pela sua supremacia individual, e já sedeixou assimilar pela tarefa cultural de formaruma espécie de comunidade democrática. Talconclusão, alcançada na plenitude da vida, trans-cende a função atribuída a um herói e leva a umaatitude verdadeiramente amadurecida.

Esta mudança, no entanto, não se processaautomaticamente; requer um período de tran -sição, expresso nas várias formas do arquétipo deiniciação.

O arquétipo de iniciação

Do pont o de vist a psicológico, a imagem doherói não deve ser considerada idêntica ao egopropr iamente dito. Trata-se, antes , do meiosimból ico pelo qual o ego se separa dosarquétipos evocados pelas imagens dos pais nasua primeira infância. O Professor Jung julgaque cada ser humano possui, originalmente, umsentimento de totalidade, isto é, um sent ido po -deroso e completo do self. E é do self (o si-mesmo)— a totalidade da psique — que emerge a consciên-cia individualizada do ego à medida que o indiví-duocresce.

Nos últimos anos alguns discípulos de Jungcomeçaram a docu mentar nos seus trabalhos asérie de acontecimentos que marca o apare-cimento do ego individual na trans ição da infân-cia para a meninice. Esta separação nunca poderáser absoluta sem lesar, gravemente, o sentidooriginal de totalidade.

E o ego precisa voltar atrás, continuamente,

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para reestabelecer suas relações com o se/f, demodo a conservar sua saúde psíquica.

De acordo com minhas pesquisas, pareceque o mito do herói é a primeira etapa na di-ferenciação da psique. Demonstre i que ele pa-rece percorrer um ciclo quádruplo, através doqual o ego procura alcançar uma autonomia re-lativa da sua condição original de total idade.Sem que obtenha um certo gra u de in -dependência, o indivíduo será incapaz de re-lacionar -se com o seu ambiente adulto. Mas omito do herói não é garantia suficiente para estalibertação. Mostra apenas como é possível que is-to aconteça para que o ego conquiste cons-ciência. Resta o problema de manter e de-senvolver, de modo significativo, esta cons -ciência, para que o homem possa viver uma vidaútil, guardando a sua individual idade dentro dasociedade.

A história antiga e os rituais das sociedades

Primitivas contemporâneas forneceram-nosabundante material sobre mitos e ritos deiniciação, através dos quais jovens rapazes eraparigas são afastados de seus pais eobrigad os a se integrarem no seu clã ou na suatribo. Mas neste rompiment o com o mundoinfantil o arquétipo parental original pode sermolestado, e para que tal dano seja sanado énecessário um processo "curativo" deassimilação à vida do grupo (a ident idade dogrupo com o indivíduo é, muitas vezes,simbolizada por um animal totêmico). Assim, ogrupo satisfaz as exigências do arquétipo que foilesado e torna-se uma espécie de segundo pai oumãe, aos quais o jovem é simbolicamentesacrificado, renascendo numa nova vida.

Nesta "cerimônia drástica que lembra mui-to um sacrifício oferecido às forças que podemreter um jovem", segundo expr essão do Dr.Jung , vemos que o poder do arquétipo orig inal

O totem de uma tribo primit iva(quase sempre um animal) simbolizaa identidade de cada indiv íduo com aunidade tribal . À esquerda , umoborígine australiano imitando, numadança ritual, o totem da sua tr ibo -um aves truz. Muitos gruposmodernos servem -se de animaistot êmicos como emblemas: abaixo,um le ão heráldico (brasão belga) emum mapa aleg órico do século XVIII.À direita, um falcão, mascote do timede futebol da Academia da ForçaAérea norte -americana. A extremadireita, emblemas totêmicosmodernos que nã o têm a forma deanimais: uma vitrina onde estãoexpostos gravatas, distintivos etc. deescolas e clubes britânicos.

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nunca pode ser total mente dominado, comoacontece nas lutas herói-dragão, sem um mu-tilante sentimento de alienação em relação às fe-cundas forças do inconsciente. Vimos no mitodos Twins como a sua hybris, ao expressar umaseparação excessiva entre o ego e o se/f, foi cor-rigida pelo medo que tiveram das conseqüênciasfinais, o que os obrigou a um retorno às relaçõesharmoniosas entre estas duas forças.

Nas sociedades tribais é o rito de iniciaçãoque resolve de maneira mais eficiente este pro-blema. O ritual faz o noviço retornar às camadasmais profundas da identidade original existenteentre a mãe e a criança ou entre o ego e o selfforçando-o, assim, a conhecer a experiência deuma morte simbólica . Em outras palavras, a suaident idade é temporariamente destruída ou dis -solvida no inconsciente coletivo. É então salvosolenemente deste estado pelo rito de um novonascimento. Este é o primeiro ato de verdadeiraassimilação do ego em um grupo maior, ex-primindo-se sob a forma de totem, clã ou tribo,ou uma combinação dos três.

O ritual, seja de grupos tribais ou de so-ciedades mais complexas, insiste sempre neste ri-to de morte e renascimento, isto é, um "rito depassagem' ' de uma fase da vida para outra, sejada infância para a meninice ou do início para ofinal da adolescência e daí para a maturidade.

Os acontecimentos de caráter inic iatór ionão estão, certamente , limitados à psicologia da

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juventude. Toda nova fase de desenvolvimentode uma vida humana é acompanhada por umarepetição do conflito original entre as exigênciasdo self e as do ego. De fato, este conflito pode semanifestar com mais força no período de tran-sição que vai do início da maturidade à idademadura (entre os 35 e 40 anos, na nossa so-ciedade) do que em qualquer outra época. E atransição da maturidade para a velhice cria, no-vamente, a necessidade de afirmar a diferençaentre o ego e a psique total; o herói recebe umúltimo apelo para defender o ego consciente dapróxima dissolução da vida em morte.

Nesses períodos críticos o arquétipo de ini-ciação é fortemente ativado a fim de promoveruma transição significativa que ofereça algo maisrico de sentido espiritual do que os ritos da ado-lescência, com o seu acentuado caráter profano.Neste sentido religioso, os esquemas dos ar -quétipos de iniciação — conhecidos desde a an-tigüidade como "mistérios" — são elaboradosna mesma textura de todos os rituais eclesiásticosque exigem cerimônias especiais nos momentosde nascimento, casamento ou morte.

Tal como no estudo do mito do herói, tam-bém no estudo da iniciação devemos buscarexemplos nas experiências subjetivas da gentecontemporânea, sobretudo em pessoas que te-nham sido analisadas. Não há nada de sur-preendente no fato de apar ecerem, no in -consciente de alguém que busca o auxílio de um

médico especial ista em desordens psíquicas,imagens que rep rod uze m os pri nci pai s es-quemas de iniciação, tal como nos foram re-latados pela história.

Ent re os jovens, talvez o mais comumdestes temas seja a prova ou teste de força. Éum tema idêntico ao que já observamos em so-nhos atuais que exemplificam o mito do herói,como o do marinheiro afrontando ventos e chu-vas, ou a prova de habilidade da excursão à Ín-dia, feita pelo homem sem chapéu de chuva.Podemos encontrar também este tema de so-frimento físico, levado à sua conclusão lógica, noprimeiro sonho que discutimos, quando o belojovem converte-se em sacrifício humano, em umaltar. Este sacrifício assemelha -se a um prelúdiodo processo de iniciação, mas seu final é bas-tante obscuro. Parece, antes, completar o cicloheróico, dando lugar a um novo tema.

Há uma diferença marcante entre o mito doherói e o rito de iniciação. As figuras típicas deheróis esgotam suas forças para obter o que am-bicionam; em resumo, alcançam sucesso, mesmoque logo depois sejam punidos ou mortos porsua hybr is. Na iniciação, ao contrá rio , o no-viço deve renunciar a toda ambição e a qualqueraspiração, para então submeter -se a uma prova.Deve aceitar esta prova sem esperança de obtersucesso. Na verdade, deve estar preparado paramorrer . Apesar de o grau da provação ser al -gumas vezes benigno (um período de jejum, um

Ritos primitivos de iniciação levam ojovem à maturidade e a participar daidentidade coletiva da tribo. Emmuitas sociedades primitivas ainiciação é realizada pelo ato dacircuncisão (um sacrifício simbólico).Mostramos aqui quatro fases do ritoda circuncisão dos abor íginesaustralianos. Ao alto, à esquerda eno centro, os meninos são colocadossob cobertas (como uma mortesimb ólica da qual renascerão).Abaixo, sã o descobertos e segurospara a operação. À esquerda, depoisde circuncisados, recebem gorroscênicos, sinal de seu novo estado. Àdireita são por fim isolados da tribopara serem purificados e receberemensinamentos.

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dent e arranca do, uma tatuage m), out ras do-loroso (as feridas da circuncisão, incisões ou ou-tras mutilações), o propósi to permanece sempreo mesmo: criar uma atmosfera de morte sim-bólica , de onde vai surgir um estado de espíri tosimbólico de renascimento.

Um jovem de 25 anos sonha que sobe umamontanha em cujo topo há um altar. Perto doaltar vê um sarcófago sobre o qual se encontrauma estátua dele mesmo. Aproxima-se entãoum padre encapuzado carregando um bastão,onde reluz um disco solar. (Discutindo maistarde o sonho, o jovem disse que o ato de galgara montanha lembrou-lhe o esforço que fazia nasua análise para alcançar o domínio próprio.) Pa-ra sua surpresa teve a impressão de estar morto, eem lugar de uma sensação de realização sentiu-se deprimido e assustado. Mas neste momento,com a irradiação dos raios solares, recebeu umsentimento de força e rejuvenescimento.

Este sonho mostra , sucintamente , a dis-tinção que se deve fazer entre a iniciação e o mi-to do herói. O ato de escalar uma montanha pa-rece sugerir uma prova de força. É a vontade dealcançar a consciência do eu (o ego), na fase he-róica da evolução da adolescência. O pacientejulgara, evidentemente, que uma terap ia psi-canalítica seria semelhante a outras provas mar-cantes de transição para a idade viril, isto é, namaneira competitiva característica dos jovens danossa sociedade. Mas a cena do altar corrigiu estafalsa suposição mostrando-lhe que sua tarefa erasubmeter-se a um poder maior que o seu. De-veria ver-se como morto e enterrado de formasimbólica (o sarcófago), lembrando o arquétipomaterno, receptáculo original da vida. Só por esteato de submissão poderia renascer. Um ritualrevigorador o traz então de volta à vida, comofilho simbólico do Pai-Sol.

Podíamos aqui estabelecer uma certa con-fusão com o ciclo heróico — o dos Twins, "fi -lhos do Sol" . Mas neste caso não temos ne-nhuma indicação de que o iniciado se vai su-perest imar. Ao contrár io, recebe uma lição dehumildade, submetendo-se a um rito de morte ede renascimento que marca a sua passagem dajuventude à matur idade.

De acordo com a sua idade cronológica, estepaciente já deveria ter passado esta etapa detransição, mas um prolongado período de es-tagnação havia retardado sua evolução. Este a-

traso o mergulhara na neurose para a qual bus-cava tratamento, e o sonho ofereceu-lhe o mes-mo sábio conselho que lhe teria sido dado porqualquer bom feit iceiro de tribo — que deviadesistir de provar sua força escalando montanhaspara submeter-se ao rito, cheio de significação,de uma transformação iniciatória, que o tornariaapto a assumir as novas responsabilidades moraisda sua verdadeira masculinidade.

O tema da submissão como uma atitudeessencial ao sucesso do rito de iniciação pode serclaramente percebido quando se trata de me-ninas ou de mulheres. O seu rito de transição de-monstra, a princípio, a sua passividade absoluta,reforçada pela limitação psicológica à sua au-tonomia que lhes é imposta pelo ciclo mens-trual. Já se supôs que o cic lo menstrual seja aparte mais importante da iniciação feminina, namedida em que tem o poder de despertar umsentido profundo de obediência ao poder cria-dor de vida. Assim, a jovem aceita de bom gradoas suas funções de mulher, do mesmo modo queo homem aceita o papel que lhe cabe na vida co-munitária do seu grupo.

Por outro lado , a mulher, tanto quanto ohomem, também tem suas provas iniciatórias deforça que a levam a um sacrifício final em be-nefício do renascimento. Este sacrifício permiteque ela se liberte dos laços das suas relações pes-soais e a torna capaz de desempenhar, mais cons-cientemente, as funções de um indivíduo comdireitos próprios. Em contraste, o sacrifício mas-

Um sarcófago do século II a.C.(Tebas) revela uma conexãosimbólica com o arquétipo da MãeGrande (o recipiente da vida). Ointerior tem o retrato da deusaegípcia Nut, que "abraça" o corpo damorta (cujo retrato está na tampa, àdireita).

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culino é uma espécie de entrega da sua sagradaindependênc ia: o homem fica mais conscientedo seu relacionamento com a mulher.

Chegamos aqui a um aspecto da iniciaçãoque, a bem dize r, apresenta o homem à mulhere a mulher ao homem, de maneira a corrigirqualquer oposição originalmente existente entreos sexos. O saber do homem (logos) encontra en-tão a relação da mulher (eros ) e sua união é re-presentada no rito simból ico do casamento re-ligioso, que esteve sempre no âmago da ini -ciação desde a sua origem, nos antigos cultos dosmistérios. Mas isto não é faci lmente com -preendido pelo homem de hoje, e quase sempreé necessário haver uma crise na vida de uma pes-soa para que ela possa perceber isto.

Vários pacientes contaram-me sonhos emque o motivo do sacrifíc io apresentava-se com-binado com o motivo do casamento religioso.Um destes sonhos foi o de um jovem que estavaapaixonado, mas não queria casar -se, receandoque o casamento se tornasse uma espécie de pri-são dirigida por uma vigorosa imagem materna.Sua mãe tivera forte influência na sua infância ea futura sogra prometia um perigo semel hante .A mulher não o iria dominar do mesmo modo?

No sonho ele participava de uma dança ri-tual com mais outro homem e duas mulheres,uma das quais era a sua noiva. Os dois outrospersonagens eram um homem e uma mulhermais velhos que o impressionaram porque ape-sar da int imidade que revelavam pareciam ter

Quatro diferentes cerimônias deiniciação: acima, á esquerda, noviçasde um convento realizam tarefashumildes, como a lavagem doassoalho (do filme The Num Story,1958), e têm os seus cabelos cortados(de uma pintura medieval). Ao centro,passageiros de um navio aoatravessarem o equador submetem-se ao "rito de passagem". Abaixo,calouros americanos em tradicionalbatalha com os veteranos de suaescola. O casamento pode serconsiderado um rito de iniciação noqual o homem e a mulher devemsubmeter-se um ao outro. Mas emalgumas sociedades o homemcompensa sua submissão "raptando"a noiva — como fazem os Dyaks daMalásia e de Bornéus (à direita, nofilme The Lost Continent, de 1955).Uma reminiscência desta prática é ocostume, que hoje ainda existe, de onoivo carregar a noiva paraatravessar a soleira do seu novo lar(extrema direita).

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individualidades próprias, sem que um se mos-trasse possessivo em relação ao outro. Este casalrepresentava para o jovem, portanto, uma con-dição matrimonial que não impunha qualquercoação à individualidade dos cônjuges. Se con-seguisse o mesmo, o casamento se lhe tornariaaceitável.

Na dança ritual, cada homem ficava defrente para uma mulher e todos os quatro to-maram lugar nos quatro cantos do estrado ondedançavam. À medida que a dança prosseguiaficou claro que era uma espécie de dança de es-padas. Cada dançarino trazia na mão uma es-pada curta com a qual executava complicadosarabescos, movendo pernas e braços numa sériede movimentos que lembravam impulsos al-ternados de agressão e submissão de um para ooutro. No final da dança todos os quatro deviammergulhar as espadas em seus próprios peitos emorrer. Apenas o sonhador recusou-se a este sui-cídio e ficou sozinho, de pé, depois de os outrosterem tombado. Sentiu-se profundamente en-vergonhado com a covardia que o impedira desacrificar-se com o resto do grupo.

Este sonho revelou ao meu paciente que eleestava preparado para mudar de atitude em re-lação à sua vida. Fora até então um egocêntrico,que procurara uma segurança ilusória na sua in-dependência pessoal, apesar de interiormentedominado pelo medo que lhe causara, na in-fância, a submissão à mãe. Necessi tava de um

desafio à sua virilidade para poder verificar quese não abandonasse aquele estado de espírito in-fanti l viveria só e humilhado. O sonho e asubseqüente compreensão do seu significadodesfizeram suas dúvidas. Cumprira o ritosimbólico através do qual o homem jovemrenuncia à sua autonomia exclusivista e aceitauma vida em comum, com um espírito desolidariedade e não apenas de heroísmo.

Casou-se e teve um relacionamento ab-solu tamente sati sfatório com a mulher. Longede prejudicar sua eficiência ou de diminuir -lhe aautoridade o casamento, ao contrário, acentuou-as.

Fora do medo de car áte r neu rót ico quemães ou pais invisíveis provocam por detrás dovéu matr imon ial , mesmo os rapazes normaistêm boas razões para se sent irem apreensivoscom o ritual das bodas. E essencialmente um ritode iniciação feminina, no qual um homem podesentir-se tudo, menos um herói vencedor. Não éde espantar que se encontrem nas sociedadestribais certos ri tuai s compensa tórios ("an -tifobias"), como o rap to da noiva. Permite mque o homem no exato momento em que devesub meter-se à mulher e assumir as res-ponsabilidades do casamento se agarre ao quelhe resta do papel de herói.

Mas o tema do casamento é uma imagemde tamanha universal idade que contém, tam-bém, uma significação mais profunda. Além de

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representar a aquisição de uma esposa, é tam-bém uma descoberta simbólica, bem-vinda emesmo necessária, a descoberta do componentefeminino da psique masculina. É por isto que emresposta a um estímulo apropriado podemos en-contrar este arquétipo em homens de qualqueridade.

Nem todas as mulheres , no entanto, rea-gem ao casamento de maneira confiante. Umapaciente, que se sentia frustrada por não ter umacarreira da qual desistira devido a um casamentodifíci l e de pouca duração , sonhou que estavaajoe lhada dian te de um homem, também ajoe-lha do. Ele segura va um ane l e se prepar avapara colocar-lhe no dedo, mas ela esticou e en-rijeceu o anular da mão direita de maneira tensa— evidentemente resistindo a este ritual do ca -samento.

Foi fácil mostrar-lhe o erro significativo quecometera. Em lugar de oferecer-lhe o dedo anu-lar esquerdo (aceitando assim uma relação equi-librada e natural com o princípio mascul ino),pressupusera, erradamente , que era sua totalident idade consciente (isto é, seu lado direito)que devia colocar a serviço do homem. Na ver -

dade, o casamento exigia apenas que com-partilhasse com o homem aquela porção su -bliminar e natural dela mesma (isto é, seu ladoesquerdo) em que o princípio de união ter iauma significação simbólica, e não um sentido li -teral e absoluto. Seu medo era o da mulher queteme perder a personalidade num casamento decaráter patriarcal, a que resistia, com toda a ra-zão.

No entanto, o casamento religioso comoforma arquetípica tem parti cular importânc iapara a psicologia feminina, e para esta cerimôniaas mulheres se preparam durante a adolescênciaatravés de vários acontecimentos de caráter ini-ciatório.

O casamento religioso arquetfpico (aunião dos opostos, dos princípiosmasculino e feminino), representadonuma escultura indiana do séculoXIX pelas divindades Xiva e Parvati.

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A Belae a Fera

Na nossa sociedade as jovenspart icipam dos mitos masculinos do heróiporque, como os rapazes, também precisameducar-se e desenvolver uma personalidadeprópria sólida. Mas há uma região, ou umacamada mais antiga das suas mentes, que parecevir à superfície dos seus sentimentos com oobjetivo de torná-las mulher, e não imitações dehomem. Quando este antigo conteúdo da psiquecomeça a aparecer, a jovem moderna tem atendência de reprimi-lo já que representa umaameaça às suas mais recentes prerrogativas: aemancipação e a igualdade de relacionamento decompetição com os homens.

Esta repressão pode alcançar tanto sucessoque, por algum tempo, ela consegue manter-seidentificada com os objetivos intelectuaismasculinos, com que se familiarizou na escolaou na faculdade. Mesmo quando casa, guardaainda uma certa ilusão de liberdade, apesar deseu ato de submissão ostensiva ao arquétipo docasamento — com a injunção implícita da ma-ternidade. Pode então ocorrer, como se vê comfreqüência hoje em dia, um confli to que, porfim, força a mulher a redescobrir, de maneiradolorosa (mas sumamente gratificante), a sua se-pultada feminilidade.

Constatei um bom exemplo deste processonuma jovem casada, ainda sem filhos, mas quepretendia ter um ou dois, já que era o que delase esperava. No entanto, suas reações sexuaiseram insatisfatórias. Isto a preocupava e ao ma-rido, apesar de não encontrarem explicação parao problema. Ela se diplomara com distinção emuma faculdade feminina e compartilhava comprazer da vida intelectual de seu marido e ami-gos. Apesar deste aspecto de sua vida caminharbastante bem, ela tinha acessos ocasionais demau humor, discutindo de maneira agressiva eafastando os homens de suas relações. Tal fatoprovocava-lhe um intolerável sentimento de dês-contentamento consigo mesma.

Nesta ocasião teve um sonho que lhe pa-receu tão importante que foi procurar ajuda mé-dica para melhor compreendê-lo. Sonhou queestava numa fila de mulheres, jovens como ela,e ao tentar ver para onde se dirigiam verificou

que, à medida que cada uma chegava ao pri -meiro lugar da fila era decapitada numa gui-lhot ina. Sem nenhum medo , manteve-se na fi-la, presumivelmente pronta a sofrer o mesmotratamento quando chegasse sua vez.

Expliquei-lhe que o sonho significava queela estava pronta para renunciar a uma vida di-tada "pela cabeça". Devia aprender a libertarseu corpo para poder descobrir suas reações se-xuais naturais e realizar as funções biológicas damaternidade. O sonho expressava, assim, umanecessidade de mudança drástica; ela teria desacri ficar seu papel de herói "mascu lino' '.

Como era de se esperar, uma mulher cultacomo essa jovem não teve dificuldade em aceitartal interpretação num nível intelectual , dis-pondo-se a transformar-se numa mulher de tipomais submisso. Realmente, sua vida amorosanormalizou-se e teve dois filhos, que lhe derama esperada satisfação. À medida que passou aconhe cer-se melhor, pôde compreender que avida, para o homem (ou para a mulher que tevea mente treinada de forma masculina), é algumacoisa que se toma de assal to, num ato de forçade vontade heróica; mas que para a mulher sen-tir-se em paz com ela mesma a vida se realizamelhor através de um processo de despertarprogressivo.

Há um mito universal que expressa bem es-te tipo de despertar — o conto A Bela e a Fera.A versão mais conhecida conta como a Bela, amais jovem de quatro irmãs, tornou-se, graças àsua bondade e abnegação, a prefer ida do pai.Quando em lugar dos caros presentes exigidospelas irmãs pede -lhe simplesmente uma rosabranca, está consciente apenas da sinceridade in-terior dos seus sentimentos. Não sabe que está aponto de pôr em perigo a vida do pai e o re-lacionamento ideal exis tente entre os dois . Elevai roubar uma rosa branca do jardim encantadoda Fera que, irritada com o roubo, exige que oculpado volte dentro de três meses para ser pu-nido, provavelmente com a morte. (Ao concederao pai este prazo para voltar à casa com o pre-sente, a Fera age de maneira contrária ao seu ca-ráter, sobretudo quando se dispõe a mandar-lhe,

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também, um baú cheio de ouro. Como comentao pai da Bela, a Fera parece ser a um tempo bon-dosa e cruel.)

A Bela insiste em tomar o lugar do pai e,passados os três meses, vai ao castelo para recebero castigo . É instalada num bonito quarto ondenão tem motivos de aborrecimentos ou de re-ceios, com exceção da visita ocasional da Fera,que aparece para perguntar-lhe se um dia acei-tará seu pedido de casamento. A Bela recusa opedido sistematicamente. Um dia, vendo no es-pelho mágico a imagem do pai doente, imploraà Fera que a deixe ir confortá-lo, prometendovoltar dentro de uma semana. A Fera deixa-a ir,dizendo-lhe, entre tanto que morrerá se ela aabandonar.

Em casa, a radiosa presença da Bela trazalegria ao pai e inveja às irmãs, que tramam re-tê-la por mais tempo. Por fim, a Bela sonha quea Fera está a morrer de desespero e, dando-seconta de que seu prazo já se esgotara, volta parafazê-la reviver.

Esquecendo-se da feiúra da Fera que ago-niza, a Bela trata-a com desvelo. A Fera con-fessa-lhe que é incapaz de viver sem ela e quemorrerá feliz só por tê-la visto voltar. A Belacompreende então que também ela não poderáviver sem a Fera, a quem ama. Confessa-lhe esteamor e promete desposá-la, desde que a Fera seesforce por restabelecer-se.

Neste momento, o castelo enche-se de luzese sons harmoniosos e a Fera desaparece. Em seulugar , surge um formoso príncipe que conta àBela ter sido enc ant ado por uma fe it iceira e

transformado em Fera. O sortilégio havia de aca-bar quando uma bela jovem o amasse apenas porsua bondade .

Nesta história , ao elucidarmos todo o seusimbolismo, verificaremos que a Bela representaqualquer jovem ou mulher envolvida numa li-gação afetiva com o pai, ligação que só não seestreita mais devido à natureza espiritual do sen-timento que os une. Sua bondade está sim-bol izada na encomenda de uma rosa branca,mas por uma significativa distorção no sentidodo pedido feito, a sua intenção inconsciente co-loca ao pai e a ela sob o domínio de uma forçaque não expressa apenas bondade, mas bondademisturada a crueldade. É como se ela desejasseser salva de um amor que a mantém virtuosa,mas em uma atitude irreal .

Aprendendo a amar a Fera, a Bela despertapara o poder do amor humano disfarçado na suaforma animal (e, portanto imperfeita), mas tam-bém genuinamente erót ica. Presumivelmenteeste fenômeno representa o despertar das ver-dadeiras funções do seu relacionamento, per-mitindo-lhe aceitar o componente erótico do de-sejo inicial que fora reprimido por medo ao in-cesto. Para deixar o pai precisou, por assim di-zer, aceitar este medo ao incesto e tê-lo presenteapenas na sua fantasia , até conhecer o homem-animal e descobrir suas verdadeiras reações comomulher .

Desta maneira liberta-se, a si e à imagemque faz do homem, das forças repressivas que aenvolvem, tomando consciência da sua ca-pacidade de conf ia r no amor co mo um sen-

Três cenas deLa Belle et Ia Bête(filme dirigido em 1946 por JeanCocteau): á esquerda, o pai da Bela,descoberto quando roubava a rosabranca do jardim da Fera; à direita, aFera agozinante; á extrema direita aFera transformada em Príncipe,passeando com a Bela. A históriapode simbolizar perfeitamente ainiciação de uma jovem, isto é, a sualiberação dos laços paternos paraencontrar o lado animal, erótico dasua natureza. Até que isto se realizeela não consegue ter um verdadeirorelacionamento com um homem.

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timento onde natureza e espírito estão unidos,no mais elevado sentido destas palavras.

Um sonho de uma paciente minha, mulherbastante evoluída, mostrava justamente esta ne-cessidade de afastar o medo do incesto, um me-do real que existia em seus pensamentos devidoao exagerado apego que o pai teve por ela depoisque enviuvou. No sonho estava sendo per-seguida por um touro furioso. A princípio fu-giu, mas verificou depois que era inútil. Caiu e otouro veio sobre ela. Sabia que a única esperançaque lhe restava seria cantar para o touro; ao fa-zê-lo, com a voz trêmula, o touro acalmou-se ecomeçou a lamber-lhe a mão. A interpretaçãomostrou que esta mulher podia agora aprender arelacionar-se com os homens de maneira maisconfiante e feminina — não apenassexualmente, mas também no plano erótico, istoé, no sentido mais amplo de uma relaçãosituada ao nível da sua personalidade consciente.

No caso de mulheres mais velhas o tema daFera pode não indicar uma necessidade de en-contrar resposta para uma fixação pessoal ou delibertar uma inibição sexual, ou ainda qualqueroutra significação que o racionalista de espíritopsicanalítico possa descobrir no mito. Pode, naverdade, ser a expressão de um certo tipo de ini-ciação feminina, tão significativa no início damenopausa quanto no apogeu da adolescência,e possível de aparecer em qualquer idade emque se verifique um distúrbio entre natureza eespírito.

Uma mulher , na época da menopausa, re-latou-me o seguinte sonho:

"Encontro-me com várias mulheres que nãoconheço. Descemos uma escada em uma casaestranha, e nos confrontamos, de repente, com umgrupo grotesco de "homens-macacos", de rostosperversos, vestidos com peles pretas e cinzas, comrabos, e de aparência horrível e lúbrica. Estamoscompletamente dominadas por eles mas, num dadomomento, senti que a única maneira de nossalvarmos seria não entrar em pânico nem correr oulutar, mas sim tratar aquelas criaturas comhumanidade para que tomassem consciência doque possuíam de melhor dentro deles. Um doshomens-macacos, então, aproximou-se de mim eeu o recebi como se fosse meu par em algumbaile, e comecei a dançar com ele.

Mais tarde, fui agraciada com um poder decurar sobrenatural, há um homem às portas damorte; tenho nas mãos uma espécie de pena outalvez um bico de ave, através do qual sopro arpelas narinas do doente, fazendo-o respirarnovamente.''

Durante os anos em que esteve casada e en-quanto criou os filhos, esta mulher fora obrigadaa esquecer seus dotes de escritora, que antes lhehaviam dado peque na, mas autênt ica no -toriedade. Na época do sonho, tentava trabalharnovamente, ao mesmo tempo em que se au-tocrit icava impiedosamente por não ser melhormãe, esposa e amiga. O sonho revelou-lhe esteproblema, mostrando -lhe outras mulheres quetalvez estivessem passando transição análoga, eque, segundo o sonho, desciam de um nível deconsciência muito elevado para regiões inferiores— de uma casa estranha. Pode -se supor que tu-do isto leva a algum aspecto significativo da in-consciência coletiva, com o desafio para aceitar o

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princípio masculino do homem-animal : aquelamesma figura heróica, meio palhaça, de Tricks -ter, que encontramos nos ciclos heróicos pri-mitivos.

Relacionar-se com este homem-macaco,humanizá -lo, ressaltando o que havia nele debom significava que também ela deveria , pri -mei ramen te , acei tar algum elemento im-previsível do seu espír ito criador. Com o auxíliodeste elemento poderia libertar -se dos laços con-vencionais de sua vida e aprender a escrever numnovo estilo, mais apropriado à sua idade.

Que este impulso está relacionado com oprincípio criador masculino verifica -se na se-gunda cena do sonho, quando ela ressuscita omoribundo soprando-lhe ar no nariz. Este mé-todo "pneumát ico" sugere mais a necessidadede um renascime nto espiritua l do que um prin -cípio de calor erótico. É um simbol ismo co-nhecido em todo o mundo: o ato ritual traz umsopro criador de vida a qualquer novo em-preendimento.

O sonho de uma outra mulher acentua o as-pecto da "natureza humana" de A Bela e a Fe-ra:

"Alguma coisa voa ou é jogada pela janela, pa-recendo um grande inseto cujas pernas amarelas epretas rodam em espiral. Depois transforma-se numestranho animal, de listas amarelas e pretas como umtigre, patas de urso, que mais parecem mãos, e umaface pontiaguda de lobo. Poderá soltar-se e machucaruma criança. É domingo à tarde, e vejo uma menina-zinha toda de branco dirigindo-se à escola dominical.Preciso chamara polícia.

Mas noto, então, que aquela criatura tornou-separte mulher parte animal. Festeja-me e vê-se quedeseja ser amada. Sinto-me num clima de conto defadas, ou de sonho, e percebo que só a bondade po-derá transformá-la.

Tento abraçá-la afetuosamente, mas não agüen-to. Empurro-a, mas com a sensação de que devo con-servá-la próxima e habituar-me a ela. Talvez um diaconsiga beijá-la."

A situação deste sonho é diferente da dosonho anterior. Esta mulher estivera muito ab-sorvida pela função criadora masculina que ha-via dentro dela e que se tornara uma preo -cupação compulsiva e cerebral (isto é, "longe daterra"). Isto a impedira de desempenhar nor -malmente sua função feminina como esposa (naassociação que lhe provocou o sonho disse -meela: "Quando meu mari do chega em casa meu

lado criativo se apaga e torno-me uma dona-de-casa superorganizada") . O sonho, numa um-dança imprevista , transforma seu espírito mal-orientado, revelando a mulher que deveria ser ecultivar; deste modo poderia harmonizar seus in-teresses intelectuais criadores com os instintosque lhe permit iriam um relacionamento maischeio de calor com as outras pessoas.

Isto implica uma nova aceitação do prin-cípio duplo da vida natural, que é a um tempocruel e bom ou, como se poderia dizer no casodesta mulher , implacavelmente aventureiro e,também, humilde e criat ivamente domést ico.Estes elementos contrários, evidentemente, só sepodem reconciliar em um nível psicológico depercepção altamente sofisticado, o que seria bas-tante perigoso para aquela inocente criança emsua roupa domingueira.

A interpretação que se poderia dar ao sonhoé que a mulher precisava dominar a imagem ex-cessivamente ingênua que fazia a seu própriorespeito. Era necessário que desejasse acolherplenamente a polar idade dos seus sentimentos— da mesma forma que a Bela preci sou re -nunciar à inocência que a levara a confiar em umpai que não lhe podia oferecer a rosa branca e pu-ra do seu sentimento sem despertar a fúria be-néfica da Fera.

Acima, o deus grego Dionísiotocando extaticamente o alaúde(pintura em vaso). Os ritos frenéticose orgiásticos dos cultos em louvor aDionísio simbolizavam a iniciação aosmistérios da natureza. À direita,bacantes em adoração a Dionísio; àextrema direita, sátiros entregues aomesmo culto desenfreado.

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Orfeue o Filho doHomem

A Bela e a Fera é um cont o de fadasque tem o encanto de flor selvagem, aquela quesurge inesperadamente, despertando em nós umtal deslumbramento que não se percebe, no mo-mento, a que classe, gênero e espécie de florapertence. O mistério inerente a estes contos en-contra uma aplicação universal não apenas nosmitos históricos mais importantes como tambémnos ritos pelos quais o mito se expressa, ou deonde deriva.

O tipo de rito e de mito que melhor ex-pressa esta experiência psicológica está bemexemplificado na religião greco-romana de Dio-nísio e no culto a Orfeu, que o sucede. Ambosestes cultos permitiram uma iniciação bastantesignificativa aos "mistérios". Criaram símbolosassociados a um homem-deus, de caráter an-drógino, que se supunha possuir uma íntimacompreensão do mundo animal ou vegeta l,além de ser o mestre iniciador dos seus segredos.

A religião dionisíaca contém ritos orgiásticosque implicam a necessidade de o iniciado aban-donar-se à sua natureza animal e, assim, ex-per imenta r em sua ple nit ude o poder fer -tilizante da Mãe Terra. O agente de iniciação a

este "rito de passagem" do culto a Dionísio erao vinho: este devia produzi r o enfraquecimentosimbólico da consciência, necessário para a in-trodução do noviço nos segredos da naturezaciumentamente guardados, cuja essência se ex-primia através de um símbolo de realização eró-tica: o deus Dionísio unido a Ariadne, sua com-panhei ra, numa cer imônia mat rimoni al re-ligiosa.

Com o tempo, os ritos de Dionísio per-deram a sua força religiosa emocional. Da preo-cupação exclusiva com os símbolos puramentenaturais da vida e do amor surgiu um desejoquase oriental de libertação. A religião dio-nisíaca, com seu constante vaivém do plano es-piritual para o físico e vice-versa, talvez tenhaparecido muito selvagem e agitada a algumasalmas mais ascéticas, que interior izaram entãoseus êxtases religiosos no culto a Orfeu.

Orfeu deve ter sido um personagem real —can tor , profeta e professor — que foi mar-tirizado e cujo túmulo tornou-se um santuário.Não é de admira r que a primit iva Igreja cri stãtenha visto nele o protót ipo de Cristo. As duasreligiões trouxeram ao mundo helênico que

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findava a promessa de uma vida futura. Porqueambos eram homens, mas também mediadoresentre a humanidade e o divino, Cristo e Orfeurepresentavam para as multidões de gregos queviam a sua cultura agonizar nos dias do ImpérioRomano a esperança há muito acalentada deuma vida futura.

Havia, no entanto, uma importante di -ferença entre a religião de Orfeu e a de Cristo.Apesar de sublimados em uma forma mística, osmistérios de Orfeu conservavam viva a velha re-ligião de Dionísio. O ímpeto espiritual vinha deum semideus no qual estava preservada a maissignificativa qualidade de uma religião cujasraízes vinham da arte agrícola. Esta qualidade setraduzia no velho esquema dos deuses da fer-ti li da de , que ap ar ec iam ap en as em de-terminadas estações do ano — em outras pa-lavras, no ciclo eternamente recomeçado do nas-cimento, crescimento, maturidade e declínio.

O cristianismo, por outro lado, aboliu osmistérios. Cristo era um reformador e o fruto deuma religião patriarcal, nômade e pastoral, cujosprofetas anunciavam um Messias de origem ab-solutamente divina. O filho do Homem, apesarde filho de uma virgem humana, fora concebidono céu, de onde chegara como uma encarnaçãode Deus . Após sua morte, retornou ao céu —mas retornou para sempre, reinando à direit a deDeus até o dia da sua volta , "quando os mortosse hão de levantar''.

Evidentemen te este ascetismo dos pri -meiros crist ãos não durou muito tempo . Alembrança dos mistérios cíclicos continuava aobcecar os fiéis a tal ponto que a Igreja teve deincorporar aos seus ritos muitas práticas pagãs dopassado. As mais significativas podem ser en-contradas em velhos registros das cerimônias dosábado de Aleluia e do Domingo de Páscoa paracelebrar a ressurreição de Cristo — o ofício ba-tismal, por exemplo, que a igreja medievaltransformou num apropriado rito de inic iação,de profundo sentido. Mas é um ritual que poucosubsiste atualmente e que está de todo ausentedo protestantismo.

O rito que mais se conservou e que aindaguarda, para os devotos católicos, o sentido es-sencial dos mistérios da iniciação é a elevação docálice. Este ritual foi descri to pelo Dr. Jung noseu "O Simbolismo da Transformação na Mis-sa": ''A elevação do cálice para o alto prepara aespiritualização.. .. do vinho. Isto é confirmadopela invocação do Espírito Santo, que se segueimediatamente... A invocação serve para fazerpenetrar no vinho o Espírito Santo, pois é Eleque gera, consuma e transforma. .. Após a ele-vação, colocava-se, antigamente, o cálice à di-reita da hóstia, em lembrança do sangue que sederramara do flanco direito de Cristo.''

O ritual da comunhão é o mesmo em todaparte; tanto é expresso ao beber-se da taça deDionísio quanto do cálice sagrado cristão. O que

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difere é o nível de conscientização de cada par-ticipante. Aquele que participa do culto a Dio-nísio volta-se para a origem das coisas, para o"nascimento tempestuoso" do deus arrancadodo útero da Mãe Terra. Nos afrescos da Villa deiMisteri, em Pompéia, o deus é evocado sob a for-ma de uma máscara de terror, que se reflete nataça oferecida pelo padre ao iniciado. Mais tarde,encontramos a joeira, com as preciosas frutas daterra, e o falo, ambos símbolos criadores das ma-nifestações do deus como um princípio de pro-criaçãoe crescimento.

Ao contrário deste exame retrospectivo,concentrado no eterno ciclo de nascimento emorte da natureza, o mistério cristão acena aoiniciado, no futuro, com a esperança suprema deunião com um deus transcendente. A Mãe Natu-reza, com todas as suas belas transformações sa-zonais foi abandonada, enquanto a principal fi-gura do cristianismo oferece uma grande segu-rança espiritual, desde que é o Filho de Deus nocéu.

No entanto, os dois, de um certo modo, sefundem na figura de Orfeu, o deus que lembraDionísio, mas que espera por Cristo. O sentidopsicológico desta figura intermediária está bemdescrito pela escritora suíça Linda Fierz-David,na sua interpretação dos ritos de Orfeu, tal comofiguram na Villadei Misteri.

"Orfeu ensinava enquanto cantava e tocavalira e o seu canto era de tal modo pujante que a

Acima, um rito dionisíacorepresentado no grande afresco daVila dos Mistérios, em Pompéia. Aocentro, um iniciado recebe a taça deDionísio, na qual vê refletir-se amáscara do deus, segura mais atrás.Esta é uma infusão simbólicadabebida com o espírito divino — quese pode comparar à cerimônia daIgreja católica da elevação do cálicedurante a missa (abaixo).

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À esquerda Orfeu enfeitiçando osanimais com o seu canto (nummosaico romano); acima o assassinatode Orfeu por mulheres da Trácia (numvaso grego). Abaixo, á esquerda,Cristo como o Bom Pastor (mosaicodo século VI). Ambos, Cristo e Orfeu,reproduzem o arquétipo do homem danatureza — também refletido noquadro de Cranach (abaixo),representando a inocência do"homem natural". Na página ao lado,a capa de Walden, do escritoroitocentista norte-americano Thoreau,que acreditava em um modo de vidanatural, completamente independenteda civilização, e o praticava.

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natureza toda o obedecia; quando cantava,acompanhando-se na lira, as aves voavam à suavolta, e os peixes saíam da água pulando paraperto dele. O vento e a água aquietavam-se, osrios fluíam em sua direção. Deixava de nevar enão havia granizo. As árvores e até mesmo aspedras seguiam Orfeu; tigres e leões deitavam-se a seus pés, junto às ovelhas. Os lobos que-davam-se perto dos veados e das corças. Que sig-nifica tudo isto? Certamente, graças à intuiçãodivina do deus a respeito do sentido das ocorrên-cias naturais... estes acontecimentos vêm har-moniosamente determinados do seu interior.Tudo se torna iluminado e todas as criaturas pa-cificadas quando o mediador, no ato de adora-ção, representa a luz da natureza. Orfeu é a en-carnação da devoção e da piedade; simboliza aatitude religiosa que soluciona todos os conflitosquando a alma inteira se volta para o que está si-tuado além de todos os conflitos... E ao fazer tu-do isto ele é verdadeiramente Orfeu, isto é, obom pastor, sua primeira encarnação..."

Tanto como pastor quanto como mediador,Orfeu estabelece um equilíbrio entre a religiãode Dionísio e a cristã, já que encontramos a am-bos, Dionísio e Cristo, em papéis semelhantesapesar, como já disse, de orientados de maneiradiferente no tempo e no espaço — uma religião écíclica do mundo subterrâneo, a outra é uma re-ligião do céu, de caráter escatológico, ou final.Esta série de acontecimentos iniciatórios, tiradosdo contexto da história religiosa, repete-se in-definidamente, com toda a possível variação desentido, nos sonhos e fantasias da gente de hoje.

Em estado de grande cansaço e depressão,uma mulher em tratamento analítico teve o se-guinte sonho:

"Estou sentada junto a uma mesa longa e estreita,numasala deabóbadas altas,semjanelas. Meu corpo estáencurvado e encolhido. Cobrindo-me tenho apenas umlongo pano de linho branco, que tomba dos meus om-bros até o chão. Alguma coisa muito importante meaconteceu.Tenhopoucasensação devida.Cruzes verme-lhassobrediscos deouroaparecemdiante dos meus olhos.Lembro-me de ter marcado, há muito tempo, um com-promisso, e o lugar ondeagora meencontrodeveter al-guma relação com este compromisso. Fico sentada du-rantemuitotempo.

Abro então os olhos vagarosamente e vejo um ho-mem que se senta ao meu ladopara curar-me. Tem umarnatural e bondoso e fala-me, apesardeeunão o ouvir.Parece saber tudo sobre os lugares onde estive. Tenhoconsciência dequeestou muito feiae dequedevehaver

um odor de morte à minha volta, pergunto-me seisto o vai afastar. Olho-o longamente. Não se afasta.Respirocommaisfacilidade.

Sinto então uma brisa fresca, ou um pouco de águafria, percorrer meu corpo. Embrulho-me no pano de li-nho e preparo-mepara dormir umsono normal. Asmãossalutares do homem estão sobre meus ombros. Lembro-me vagamente que houve um tempo em que haviaferidas, mas a pressão de suas mãos parece trazer-meforça e saúde."

Esta mulher tivera muitas dúvidas acerca dasua religião original. Fora educada como católicadevota, da escola tradicional, mas desde a ju-ventude lutara por libertar-se das convenções re-ligiosas puramente formais observadas por suafamíl ia. No entanto, durante este processo detransformação psicológica, permaneceram pre-sentes no seu íntimo as ocorrências simbólicasque marcam o ano religioso e uma grande ri-queza de conhecimentos a respeito do seu sig-nificado. Durante o processo de análise este seuatuante conhecimento do simbol ismo religiosofoi de grande utilidade.

Os elementos signif icativos que distinguiuno seu devaneio foram: o pano branco, que con-siderou uma veste sacrificial; a sala abobadada,que lhe pareceu um túmulo; e o compromisso,que lhe lembrou uma experiência de submissão.Este compromisso, como ela chamava, evocavaum rito de iniciação, com uma perigosa descida

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às cavernas da morte, simbolizando o modo porque deixou a igreja e a família para encontrarDeus à sua maneira . Passara por uma "imitaçãode Cristo" no seu verdadeiro sentido simból icoe, tal como Ele, conhecera as chagas que antece-dem a morte.

A veste sacrificial sugere o sudário ou amortalha em que Cristo foi envolvido e depoiscolocado no túmulo. No final do seu sonho apa-rece um homem que tem o poder de curar , fi -gura vagamente associada à minha pessoa comoanal ista, mas aparecendo também como umamigo plenamente consciente do que lhe acon -tecera. Diz-lhe palavras que não consegue ouvir,mas suas mãos são tranqüilizadoras e dão -lheuma sensação de bem-estar. Sente-se nesta figurao gesto e a palavra do bom pastor — Orfeu eCristo — como mediador e, é claro, como al-guém com o dom de curar. Ele está do lado da vi-da e deve convencê-la de que, agora, poderá vol-tar das cavernas da morte.

Devemos chamar a isto renascimento ouressurreição? Ambos, ou talvez nenhum dosdois. O rito essencial afirma-se no final do so-nho: a brisa suave ou a água que percorre seucorpo é um ato de purificação primordial la-vando o ser humano do pecado da morte, isto é,a essência do batismo verdadeiro.

A mesma mulher teve outro sonho no qualestava implíc ito que seu aniversário caía no diada ressurreição de Cristo (isto significava muitomais para ela do que a recordação da mãe, quenunca lhe dera nos seus aniversários de criança asensação de segurança e de renovação que tantodesejara. Mas isto não queria dizer que se iden-tificava com a figura de Cristo. Apesar de todo opoder e de toda a glória de Jesus, alguma coisalhe faltava; e enquanto ela se esforçava por atin-gi-lo através de suas orações, Ele e sua cruz er-guiam-se cada vez mais alto no céu, fora do seualcance.

Neste segundo sonho ela voltou ao símbolodo renascimento , represen tado pelo sol nas-cente, enquanto um novo símbolo feminino co-meçou a aparecer. Primeiro surgiu como "umembrião em um saco cheio de água". Depois elase viu carregando um menino de oito anos a-través da água e "passando num ponto pe-rigoso". Em seguida, houve nova mudança e elajá não se sentia ameaçada nem sob a influênciada mor te. Est ava "numa flore sta ao lado deuma fonte que caía em casca ta... Vinhas verdes

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cresciam por toda parte. Em minhas mãos te-nho uma vasilha de pedra, na qual há água dafonte, um pouco de musgo verde, e violetas.Banho-me na cachoeira. É dourada e 'sedosa' esinto-me como uma criança''.

O sentido destes acontecimentos é claro,apesar da descrição críptica de tantas imagensem mutação permitir que se perca um pouco asua significação interior. Assistimos aqui, pa-rece, a um processo de renascimento de uma in-dividualidade espir itualmente mais rica, ba-tizada em plena natureza como uma criança. Noentanto, ela salva uma criança mais velha que se-ria, de algum modo, o seu próprio ego na épocamais traumatizada da sua infância. Carrega-o a-través da água, passando por um ponto perigoso,e indicando assim que tem medo de se deixarparalisar por um sentimento de culpa caso se afas-te demasiadamente da religião convencional desua família. Mas o simbolismo religioso é sig-nificativo justamente por sua ausência. Tudo estáentregue em mãos da natureza; estamos real-mente muito mais no reino do pastor Orfeu doque no do Cristo elevado aos céus.

A esta seqüência seguiu-se um sonho que alevou a uma igreja parecida com a de Assis, ondese encontram os afrescos de Giotto sobre a vidade São Francisco. Sentia-se mais à vontade nestaigreja do que em outras porque São Francisco,como Orfeu, era um religioso sempre próximoda natureza. Tudo isto veio reavivar-lhe os sen-timentos provocados pela mudança de filiaçãoreligiosa que lhe fora tão difícil, mas agora a-creditava poder enfrentar alegremente esta ex-periência, inspirada pela luz vinda da natureza.A série de sonhos acabava num eco longínquo

da religião de Dionís io (talvez um lembrete deque mesmo Orfeu pode, por vezes, estar afas-tado do poder fecundante do deus -animal quehá no home m). Sonhou que leva va pela mãouma criança loura. "Estamos em uma alegre fes-tividade de que participam também o sol, a flo-resta e as flores que nos rodeiam. A criança trazuma florzinha branca na mão e a coloca na cabe-ça de um touro preto. O touro também faz parteda cerimônia e está coberto de festivos ornamen-tos." Esta referência lembra os antigos ritos quelouvavam Dionísio sob a forma de touro.

Mas o sonho não acabava aí. A mulher ain-da acrescentou: "Algum tempo depoi s o touroé trespassado por uma flecha dourada." Ora,além do culto de Dionísio existe outro rito pré-cristão no qual o touro tem um papel simbólico.O deus-sol persa Mitras representa o anseio deuma vida espiri tual que triunfe sobre as primiti -vas paixões animais do homem e que, após umacerimônia de iniciação, lhe traga paz.

Está série de imagens confirma o que su-gerem muitos devane ios ou seqüências de so-nhos deste tipo — que não existe uma paz de-finitiva, nenhum lugar de repouso absoluto. Nasua busca religiosa, homens e mulheres — so-bretudo aqueles que vivem nas modernas so-ciedades ocidentais cristãs — ainda estão do-minados pelas tradições primitivas que lutamentre si por uma supremacia. É um conflito entrecrenças pagãs e cristãs, ou, pode-se dizer, umconflito entre o renascimento e a ressurreição.

Na primeira parte deste sonho encontra-seuma pista mais segura para solucionar o dilema — éum curioso exemplo de simbolismo que poderia.

Acima, à esquerda, o deus persaMitras sacrif icando um touro. Osacrifício (que também faz parte dosritos dionisíacos) pode serconsiderado um símbolo da vitóriada natureza espiritual do homemsobre a sua animalidade — da qual otouro é um símbolo conhecido (istoexplica a popularidade da touradaem alguns países — à esquerda). Àdireita, uma água-forte de Picasso(1935) mostra uma jovem ameaçadapor um Minotauro — tal como nomito de Teseu, um símbolo dasforças instintivas que o homem nãoconsegue controlar.

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ter passado despercebido. Disse ela que na ca-verna mortuária tivera uma visão de várias cruzesvermelhas sobre discos dourados . Como maistarde tornou-se claro na sua análise, ela estavacomeçando a exper imentar profunda trans-formação psíquica , emergindo desta "mor te"para um novo tipo de vida. Podemos imaginar,assim, que esta imagem que lhe chegou no augedo seu desespero anunciava, de um certo modo,sua futura ati tude rel igiosa . Nos seus co-mentários posteriores evidenciou-se que as cru-zes vermelhas poderiam representar seu apego auma atitude cristã, enquanto os discos douradossignificavam sua inclinação para os mistérios re-ligiosos pré-cristãos. Sua visão onírica lhe aconse-lharia e reconciliar estes elementos cristãos e pa-gãos dentro na nova vida que estava por vir.

Uma última, mas importante observaçãodiz respeito aos ritos de iniciação antigos e suarelação com o cristianismo. O rito de iniciaçãocelebrado nos Mistérios de Elêusis (ritos de ado-ração das deusas da fertilidade, Deméter e Per-séfona) não era destinado apenas aos que bus-cavam viver uma vida mais plena; era utilizadotambém como uma preparação para a morte, co-mo se esta exigisse um rito iniciatório do mesmogênero.

Numa urna funerária encontrada em umtúmulo romano próximo ao Columbarium, naColina Esquelina, encontramos um baixo-relevoque representa cenas de um estágio final de ini-ciação, onde o noviço é admitido à presença e àconvivência de duas deusas. O resto da gravuratrata de duas cerimônias preliminares de pu-rificação — o sacri fício do "porco místico" euma versão mística do casamento religioso. Tu-do isto indicando uma iniciação à morte, mas deuma forma que exclui qualquer tristeza ou luto.A cena já sugere aquele elemento dos mistériosposteriores — especialmente os do orfismo —que acrescenta à morte uma promessa de imor-talidade. O cristianismo ainda foi além, pro-metendo mais que a imortalidade (que, no an-tigo sentido dos mistérios de caráter cíclico, sig-nifi cava, apenas, a reencarnação) ao oferecerao fiel uma vida eterna na esfera celeste.

Vemos assim, novamente, na vida modernaa tendência a uma repetição dos velhos es-quemas . Aqueles que se devem habituar a en-frentar a morte precisarão, talvez, reaprender avelha mensagem que ensina ser a morte um mis-tério para o qual nos devemos preparar com omesmo espírito de submissão e humildade queprecisamos ter para enfrentar a vida.

Tanto a ave quanto o xamã (istoé, umfeiticeiro primitivo) são símboloscomuns de transcendência e, muitasvezes, aparecem combinados. Àdireita, uma pintura pré-históricanuma caverna em Lascaux mostra umxamã com uma máscara de pássaro.

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Símbolos de transcendência

Os sí mb ol os que in fl ue nc ia m o ho me mtêm várias finalidades. Alguns homens precisamser provocados, e a experiência da sua iniciaçãoacontece com a violência de um "rito de trovão"dionisíaco. Outros têm de ser dominados e sãolevados à submissão através da organizada plani-ficação dos templos ou das grutas sagradas, evo-cadora da religião apolínica do último períodogrego. Uma iniciação completa abrange os doistemas, como podemos verificar tanto no mate-rial extraído de antigos textos quanto nas expe-riências no homem atual. Mas o que fica bemclaro é que o objetivo fundamental da iniciação édomar a turbulência da natureza jovem, tal co-mo era, originalmente, representada por Tricks-ter. A iniciação tem, portanto, um propósito ci-vilizador ou espiritual, a despeito da violênciados ritos usados para desencadear este processo.

Exis te, no entanto, um outro tipo de sim -bolismo que faz parte das tradições sagradas

mais antigas e que está também ligado aos pe-ríodos de transição da vida humana. Estes sím-bolos não buscam integrar o iniciado em qual-quer dout rina rel igiosa ou numa forma tem -poral de consciência coletiva. Ao contrário, re-lacionam-se com a necessidade que tem o ho-mem de libertar -se de qualquer estado de imatu -ridade demasiad amente rígido ou categórico.Em outras palavras, estes símbolos dizem respei-to à libertação do homem — ou à sua transcen -dência — de qualquer forma restrit iva de vida,no curso da sua progressão para um estágio supe-rior ou mais amadurecido da sua evolução.

A criança, como já dissemos, possui umsentido de total idade ou de integr idade , masapenas antes do aparecimento do seu ego cons-ciente. No caso do adulto este sentido de in-tegridade é alcançado através de uma união doconsciente com os conteúdos incon scientes dasua mente. Desta união surge o que Jung cha-

Abaixo, uma sacerdotisa xamã de umapovoação siberiana, com suavestimenta de pássaro. À direita,caixão de um xamã (também daSibéria) com figuras de pássaros nasestacas.

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mava "funç ão transcendente da psique",através da qual o homem pode alcançar suamais elevada finalidade: a plena realização daspotencialidades do seu self" (ou ser).

Assim os "símbolos de transcendência'' sãoaqueles que representam a luta do homem paraalcançar o seu objetivo. Fornecem os meiosatravés dos quais os conteúdos do inconscientepodem penet rar no consciente e são também,eles próprios, uma expressão ativa destesconteúdos.

Estes símbolos apresentam múltiplas formase sua importância está sempre patente, tanto fazencontrá-los na história da humanidade ou nossonhos de homens e mulheres contemporâneosque passam por alguma fase crítica em suasvidas. No nível mais arcaico deste simbolismovamos encontrar novamente o tema deTrickster. Mas desta vez não como umafigura ind isc ipl inada com pretensões a herói;tornou-se um xamã — médico feiticeiro — cujaspráticas mágicas e lampejos intuitivos fazemdele um mestre da iniciação. Sua força residena faculdade que lhe é atribuída de conseguirseparar-se do corpo para voar pelo universo, soba forma de um pássaro.

Neste caso, o pássaro é, efetivamente, o sim-bolo mais apropriado da transcendência. Re-presenta o cará ter part icular de uma intu ição

que funciona através de um médium, isto é, deum indivíduo capaz de ter conhecimento deacontecimentos distantes — ou de fatos de queconscientemente nada sabe — entrando numestado de transe.

Encont ramos pro vas des tas forças atémesmo no período paleol ítico da pré-história,como assinalou o sábio americano Joseph Camp-bell nos seus comentários a respeito das famosaspinturas descobertas em cavernas na França. EmLascaux, escreve ele, ''há o desenho de um xamãdeitado, em transe, com uma máscara depássaro, e tendo ao lado a silhueta de umpássaro empole irado num bastão. Os xamãs daSibéria usam até hoje estas indumentár ias depássaros e acredita-se que muitos foramconcebidos da união de uma mulher com umpássaro... O xamã não é, port anto , apenas umhabi tante familiar daquelas esferas de poderque são normalmente invisíveis à nossaconsciência, mas o seu próprio rebento favorito;nós só podemos conhecer estas esferas por meiode alguma breve visão, enquanto ele asfreqüen ta como verdadeiro senhor."

Vamos encontrar na mais alta escala destetipo de atividade iniciatór ia, bem longe do char-latanismo empregado pela magia para substi tuiruma intuição espiritual verdadeira, os iogueshindus. Nos seus estados de transe, eles ul-trapassam as categorias normais do pensamento.

Nos mitos ou nos sonhos, umajornada solitária simboliza, muitasvezes, a liberação da transcendência.Acima, á esquerda, uma pintura doséculo XV onde Dante segura olivro Ia Divina Comédia) que relata oseu sonho de uma viagem ao inferno(base da gravura), ao purgatório e aocéu. À extrema esquerda, gravurarepresentando a jornada doperegrino, no Pilgrim's Progress(1678) de John Bunyan. (Note-se quea viagem está representada por ummovimento circular em direção a umcentro interior.) O livro também éapresentado como um sonho; àesquerda, o peregrino sonha.

Muitas pessoas desejam mudar o seupadrão de vida marcado pelacontenção; mas a liberdade que asviagens proporcionam (e que vemosser encorajada pelo cartaz, á direita,aconselhando uma "fuga para omar") não substitui a verdadeiraliberação interior.

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Um dos símbolos oníricos que exprime commais freqüência este tipo de liberação pelatranscendência é o tema da jornada solitár ia ouperegrinação que, de um certo modo, parece seruma peregrinação experimental em que oiniciado descobre a natureza da morte. Mas nãose trata de morte como julgamento final ouqualquer outra prova de caráter iniciatório. Éuma jornada de libertação, de renúncia eexpiação, dirigida e fomentada por algumespí rito piedoso . Este espírito é, na maioria dasvezes, representado por um "mestre" dainici ação, alguma figura feminina superior (istoé, a anima) como Kwan-Yin no budismo chinês,como Sofia na doutrina gnóst ica -crist ã ou comoa antiga deusa grega da sabedoria, Palas Atenéia.

Este simbolismo não restringe suarepresentação ao vôo das aves ou a uma viagempelo deserto, mas inclu i qualquer movimentopoderoso que signif ique libertação. Na primeiraetapa da vida, quando ainda se está ligado àfamília e ao grupo social, este simbolismo podeocorrer num determinado momento da iniciaçãoem que se precisa aprender a dar, sozinho, osprimeiros passos decisivos. É aquele momentodescrito por T. S. Eliot em "The Waste Land"(Terra Deserta), quando se enfrenta O terríveldestemor de um instante de abandono que umavida inteira de prudência jamais pode apagar.

Num período mais avançado da vida

talvez não se precise romper totalmente com ossímbolos que significam contenção. Mas é bemverdade, também, que se pode estar possuídodaquele divino espírito da insatisfação que levatodo homem livre a enfrentar alguma novadescoberta ou a viver de alguma nova maneira.Esta mudança pode tornar-se especialmenteimpor tante no período que vai da meia-idade àvelhice, época em que as pessoas se perguntamsobre o que vão fazer ao se aposentarem —trabalhar ainda, diverti r-se, viajar oupermanecer em casa.

Se até então tiveram vidas aventurosas,pouco seguras ou ricas de imprevistos, podemdesejar dias mais tranqüilos e o conforto de umaconvicção religiosa. Mas se viveram dentro dospadrões sociais em que foram educados, podemsentir uma desesperada necessidade de uma mu-dança libertadora. Este anseio será atendido,temporariamente, por uma viagem ao redor domundo, ou simplesmente por uma mudança parauma casa menor. Mas nenhuma dessasmudanças externas solucionará o problema senão houver alguma transcendência interior develhos valores para criar, e não apenas inventar,um novo padrão de vida.

Um exemplo típico deste segundo caso é o deuma mulher cujo estilo de vida foi apreciado du-rante muito tempo tanto por ela própria quanto porsua família e amigos, porque tinha raízes profundas

À esquerda, o explorador britânicoR.F. Scott e seus companheiros,fotografados na Antártida em 1911.Exploradores, quando se aventuramno desconhecido, oferecem uma boaimagem da liberação, da ruptura dascontenções que caracteriza atranscendência.

O símbolo da serpente é comumenteligado à transcendência por ela ser,tradicionalmente, uma criatura domundo subterrâneo — portanto um"mediador" entre dois modos devida. À direita, o símbolo do deusgreco-romano da medicina,Asclepíades, num cartão deidentificação dos carros dosmédicos, na França de hoje.

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e proteção contra caprichos mundanos e transitórios.Ela teve o seguinte sonho:

"Encontrei alguns estranhos pedaços de madeiranão trabalhada, mas que tinham formas muito bonitas.Disse-mealguém: "Foi o homem de Neanderthal que astrouxe."Vi, então, a distância, estes homens de Nean-derthal:pareciam uma massaescura, e eu não os podiadistinguir com nitidez. Pensei em levar comigo um dospedaçosdesuamadeira.

Prossegui meu caminho,comose estivesse viajandosó, e vi um enorme abismo que me pareceu um vulcãoextinto. Uma parte deste vulcão continha água e ali euesperava encontrar mais homens de Neanderthal. Maso que vi foram porquinhos-da-índia pretos, saídos daáguaequecorriam,acimaeabaixo,entreasescurasrochasvulcânicas."

Contrastando com os vínculos familiaresdesta mulher e com o seu estilo de vidaextremamente refinado, o sonho levou-a a umperíodo pré-histórico, o mais primitivo que sepossa imaginar. Não podia distinguir naqueleshomens arcaicos um agrupamento social: via-osa distância, como uma "massa escura", verdadei-ramente inconsciente e coletiva. Estavam vivos,no entanto, e ela podia carregar um pedaço dasua madeira. O sonho acentuava que a madeiraestava em estado natural, não trabalhada; vi-nha, portanto, de um nível primitivo do incons-ciente, sem nenhum condicionamento cultural .O pedaço de madeira, singular pela sua antigui -

dade, liga as experiências contemporâneas destamulher às afastadas origens da vida humana.

Sabemos, através de vários exemplos, queuma árvore ou uma planta antigas representam,simbolicamente, o crescimento e o desenvolvi -mento da vida psíquica (enquanto a vida instin -tiva é em geral simbolizada por animais). Assim,naquele pedaço de madeira esta mulher encon -trou um símb olo do seu elo com as camadasmais profundas da inconsciência coletiva.

Prossegue depois, sozinha, a sua jornada.Este tema, como já acentuei, simboliza anecessidade de liberação, sob a forma de umaexperiência iniciatór ia. Portanto, temos aquioutro símbolo de transcendência.

Mais adiante, no sonho, ela vê uma grandecratera de um vulcão extinto, que já fora côn-dutor de uma violenta erupção de fogo vind adas mais profundas camadas da terra. Podemossupor que seja uma referência a uma recordaçãosignificativa, que reconduza a alguma experiên -cia traumatizante do passado. Ela associou estaparte do sonho a uma experiênc ia pessoal dosseus anos de juventude, quando senti ra tãointensamente as forças destruidoras — apesar decriativas — de suas emoções que julgara fosse en-louquecer . Experimentara, no últ imo per íodode sua adolescência, uma inesperada necessidadede romper com os padrões sociais, excessivamen-te convencionais, de sua família. Tinha efetuadoesta ruptura sem maiores problemas e,eventualmente, conseguira viver em paz com asua gente. Mas ainda subsist ia nela um desejoprofundo de se distanciar mais daquelaformação familiar e de se libertar do seupróprio modo de vida.

Este sonho lembra um outro. Foi-me côn-tado por um jovem que tinha um problematota lmente diverso, mas que parecia necessitarde uma ati tude de discernimento semelhante.Também ele ansiava por uma diferenciação.Sonhou com um vulcão de cuja cratera viu duasaves levantarem vôo, como se receosas de que co-meçasse uma erupção. Tudo isto se passava emum local estranho e solitário e havia uma porçãode água entre o vulcão e ele. Neste particular, osonho representou uma jornada de iniciação in-dividual. Assemelha-se a alguns casos encontra-dos em tribos que viviam apenas do que colhiame que são os grupos humanos de sentimentofamiliar menos desenvolv ido que se conhece.Nestas sociedades o jovem iniciado deve fazer,sozinho, uma jornada a algum local sagrado (nas

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culturas índicas da costa norte do Pacífico, pó-derá ser a um lago vulcânico) onde, em estadovisionário ou de transe, ele vai encontrar seu''espír ito protetor" na forma de um animal,uma ave, ou um objeto natural. Ele seidentificará intimamente com a sua "alma domato" e tornar-se-á um homem. Sem passar poresta experiência é considerado, segundoexpressão de um feitice iro Achumaui, "umíndio vulgar, um ninguém".

O jovem teve este sonho no começo de suavida e o sonho anunciava a sua identidade eindependência futuras como homem feito. Já amulher de que falamos antes aproximava-se dotérmino da sua e teve a experiência de umaviagem análoga, também parecendo necessitarfazer-se independente. Pôde viver o resto deseus dias em harmonia com uma lei humanaeterna que, por sua antiguidade , transcendetodos os símbolos conhecidos de nossa cultura.

Mas não se deve concluir que talindependência acabe num desligamento tipoiogue, signif icando uma renúncia ao mundo e atodas as suas impurezas. Na paisagem mona ecrestada do seu sonho a mulher viu vestígios devida animal: os "porquinhos-da-índia" , espécieque desconhecia e que parecia lembrar um tipoparticular de animal, capaz de viver em doismeios, na água e na terra.

Esta é a característica universal do animalcomo um símbolo de transcendência. Estas cria-tur as vindas , em sen tid o figura do, das pro -

fundezas da velha Mãe Terra são manifestaçõessimbólicas do inconsciente coletivo. Trazem aocampo da consciência uma mensagem ctônica(do submundo) particular um tanto diferentedas aspirações espirituais simbolizadas pelas avesdo sonho do jovem.

Outros símbolos transcendentes de pro-fundidade são os lagartos, as serpentes e, por vê-zes, os peixes, criaturas intermediárias, quecombinam atividades subaquáti cas e voláteiscom uma vida terrestre. O pato selvagem e ocisne também estão neste caso. Talvez osímbolo onírico mais comum de transcendênciaseja a serpente , representada como símboloterapêut ico de Esculápio, deus romano damedicina, e que até hoje subsiste como símboloda profissão médica. Tra ta -se origina lmentede uma serpente não venenosa que vivia emárvores; assim como a vemos hoje, enrolada nobastão do deus da medicina, parece representaruma espécie de mediação entre a terra e o céu.

Um símbolo ctônico da transcendência ain-da mais importante e mais conhecido é o motivodas duas serpentes entrelaçadas. São as célebresserpentes naja da Índia antiga; encontramo-lastambém na Grécia, entrelaçadas no bastão dodeus Hermes . Uma antiga herma grega é umacoluna de pedra com um busto do deus em ci-ma, tendo de um lado as serpentes entrelaçadase do outro um falo em ereção. Como as ser-pentes estão representadas no ato sexual e o faloem ereção é, indiscutive lmente, um motivo se-

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À esquerda, uma pintura francesa doséculo XVII revela o papel mediadorda serpente entre este mundo e ooutro. Orfeu toca a sua lira; tanto elecomo os que o ouvem não notamque Eurídice (no centro do quadro)foi mordida por uma cobra —mordida fatal que simboliza suadescida ao submundo, ao inferno.

Acima, o deus egípcio Tote com umacabeça ä de pássaro (um íbis), numalto-relevo do ano 350 A.C. Tote éuma figura do mundo "subterrâneo"associado à transcendência; era elequem julgava as almas dos mortos. Odeus grego Hermes, cujo epíteto erapsicopompo (guia das almas) tinhapor função conduzir os mortos aomundo subterrâneo. À esquerda,uma herma de pedra, que eracolocada nas encruzilhadas(simbolizando o papel de mediadordo deus entre os dois mundos). Aolado da herma há uma serpenteenrolada num bastão; este símbolo (ocaduceu) foi levado para Roma pelodeus Mercúrio (à direita, num bronzeitaliano do século XVI), que tambémpossuía asas, lembrando o pássarocomo símbolo da transcendênciaespiritual.

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xual, podemos tirar conclusões bastante exatas arespeito da função da herma como símbolo defertilidade.

Mas enganamo-nos se julgarmos que istosó se refere à fertilidade biológica. Hermes éTrickster num papel diferente , de mensageiro ,de deus das encruzilhadas e aquele que conduzas almas ao mundo subterrâneo. Seu falopenet ra, portanto, do mundo conhecido para odesconhecido, buscando uma mensagemespiritual de libertação e de cura.

No Egito, originalmente , Hermes era co-nhecido como Tote, o deus com cabeça de íbis,representado como uma forma alada do prin -cípio transcendente . No período olímpico damitologia grega , Hermes readquire novamenteos atributos de pássaro, acrescentados à suanatureza ctônica de serpente. Foram fixadas asasacima das serpentes do seu bastão, que se tornouum caduceu, ou bastão alado de Mercúrio; opróprio deus transformou-se num "homem voa-dor", com chapéu e sandál ias alados. Vemosaqui a força total da transcendência, pela qual aconsciência subterrânea da cobra, ao passar pela

rea lidade ter rena, vai atingi r no seu vôo umarealidade sobre-humana ou transpessoal.

Este caráter composto do símbolo éencontrado em outras representações, como ocavalo ou o dragão alados, e outras criaturas queabundam nas expressões artísticas da alquimiafartamente ilustradas, aliás, na obra clássica doProf. Jung sobre este assunto. Seguimos asinúmeras alterações destes símbolos no trabalhorealizado com nossos pacientes. Revelam aamplitude de resul tados que a nossa terapiapode alcançar quando liberta os conteúdospsíquicos mais profundos, de maneira a torná-los parte do equipamento consciente que nospermite entender melhor a vida.

Não é fácil ao homem moderno perceber asignificação dos símbolos que nos chegam dopassado ou que aparecem em nossos sonhos.Tampouco lhe é fácil verificar de que maneira ovelho conflito entre os símbolos de contenção ede liberação se relacionam com os seus própriosproblemas. No entanto, tudo se torna mais claroquando constatamos que são apenas as formasespecíf icas destes esquemas arcaicos que mu-

Dragões alados (acima, em ummanuscrito do século XV) misturam osimbolismo transcendente daserpente com o da ave. À direita, umaimagem de transcendência espiritual:Maomé, no seu jumento alado Buraq,voa entre as esferas celestes.

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dam, e não o seu significado psíquico.Referimo-nos a aves selvagens como

símbolos de independência ou de libertação. Mashoje poderíamos, do mesmo modo, falar emaviões a jato ou em foguetes espaciais, pois sãoencarnações físicas do mesmo princípio detranscendência quando nos libertam, ao menostemporariamente, da gravidade. Do mesmomodo, os antigos símbolos de contenção quetraziam estabilidade e proteção aparecem agorana busca de bem-estar econômico e social dohomem moderno .

Qualquer um de nós pode faci lmenteverificar que existe em nossas vidas umconfli to entre aventura e disciplina, mal evirtude, ou liberdade e segurança. Mas sãoapenas frases que utilizamos para descrever umaambivalência que nos atormenta e para a qualparecemos nunca encontrar resposta.

Existe, no entanto, uma resposta. Há umpont o de enco ntro entre a cont ençã o e aliberação e vamos achá-lo nos ritos de iniciação aque já nos referimos. Estes ritos podem tornarpossível ao indivíduo, ou aos grupos, a união dassuas forças de oposição, permi tindo-lhesalcançar um equilíbrio duradouro em suas vidas.

Mas os ritos não oferecem invariável ouautomaticamente esta oportunidade. Aplicam-sea determinadas fases da vida de uma pessoa, oude um grupo, e se não forem apropriadamentecompreendidos e traduzidos numa novamaneira de vida o momento pode escapar. Ainiciação é, essencialmente, um processo quecomeça com um rito de submissão, seguido deum período de contenção a que se sucede umoutro rito, o de liberação. Assim, todoindivíduo tem possibilidade de reconciliar oselementos conflitantes da sua personal idade:pode chegar a um equilíbrio que o faça de fatoum ser humano e também, verdadeiramente, oseu próprio dono .

Os foguetes espaciais aparecem comfreqüência nos sonhos e fantasias demuita gente como encarnaçõessimbólicas, no século XX, danecessidade de desprendimento eliberação a que chamamostranscendência.

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O processode individuação

M. -L. von Franz

A rosácea da cadedral de Notre Dame, Paris

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O processo de individuação

A configuraçãodo crescimentopsíquico

No início deste livro o Dr. C. G. Jung apresentouao leitor o conceito de inconsciente, suasestruturas individuais e coletivas, e a linguagemsimbólica pela qual se exprime. Uma vezcompreendida a importância vita l (isto é, seuimpacto benéf ico ou destrutivo) dos símbolosproduzidos pelo inconsciente, resta ainda odifíci l problema da sua interpretação. O Dr.Jung mostrou que tudo depende de haver um"est alo" , o clique necessár io à correta in-terpretação particular em relação ao indivíduoem causa. E é dentro desta perspectiva queindicou a possível significação e função do sonho.

Mas no desenvolvimento da teoria de Jungsurge outra questão: qual o propósito da vidaonírica do indivíduo no seu todo? Que papelrepresentam os sonhos, não apenas naorganização psíquica imediata do ser humano,mas na sua vida como um todo?

Observando um grande número de pessoas eestudando seus sonhos (calculava ter interpret adoao menos uns 80.000 sonhos), Jung descobriu nãoapenas que os sonhos dizem respeito , em grauvariado, à vida de quem sonha mas que tambémsão parte de uma única e grande teia de fatorespsicológicos. Descobriu também que, no conjunto,parecem obedecer a uma determinada configuraçãoou esquema. A este esquema Jung chamou "oprocesso de individuação". Desde que os sonhosproduzem, a cada noite, diferentes cenas eimagens, as pessoas pouco observadoras não sedarão conta de qualquer esquema. Mas seestudarmos os nossos próprios sonhos e suaseqüência inteira durante alguns anos verificaremosque certos conteúdos emergem, desaparecem edepois retornam. Muitas pessoas sonhamrepetidamente com as mesmas figuras, paisagensou situações; se examinarmos a sér ie total des tessonhos observaremos que sofrem mudanças lentas,mas perceptíveis. E estas mudanças podem seacelerar se a atitude consciente do sonhador forinfluenciada pela interpretação apropriada dosseus sonhos e dos seus conteúdos simbólicos.

Assim, a nossa vida onírica cria um esquemasinuoso (em meandros) em que temas e

Abaixo, um meandro (decoração emum manuscrito do século VII). Ossonhos de um indivíduo parecem tãoestranhos e fragmentados quanto odetalhe, acima, da decoração, masnos sonhos de toda uma vidaaparece um estrutura em meandros— revelando o processo decrescimento psíquico.

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tendências aparecem, desvanecem-se e tornam aaparecer. Se observarmos este desenho sinuosodurante um longo período vamos perceber aação de uma espécie de tendência reguladora oudirecional oculta, gerando um processo lento eimperceptível de crescimento psíquico — oprocesso de individuação.

Surge, gradualmente, uma personalidademais ampla e amadurecida que, aos poucos,torna-se mais efetiva e perceptível mesmo aoutras pessoas. O fato de nos referirmos váriasvezes a um "desenvolvimento interrompido"mostra a noss a crença na poss ibi lidade quetodo indivíduo tem de desenvolver tal processode crescimento e maturação. Como estecresc imento psíquico não pode ser efetuado poresforço ou vontade conscientes, e sim por umfenômeno involuntário e natural , ele éfreqüentemente simbolizado nos sonhos poruma árvore, cujo desenvolvimento lento,pujante e involuntário cumpre um esquemabem def inido.

O centro organizador de onde emana estaação reguladora parece ser uma espécie de"núcleo atômico" do nosso sistema psíquico.Poder-se-ia denominá-lo também de inventor,organizador ou fonte das imagens oníricas.Jung chamou a este centro o self e o descreveucomo a totalidade absoluta da psique, paradiferenciá-lo do ego, que constitui apenas umapequena parte da psique.

Através dos tempos, os homens , porintuição, estiveram sempre conscientes destecentro. Os gregos chamavam-lhe daimon, ointerior do homem; no Egito estava expresso noconceito da alma-Ba; e os romanos adoravam-nocomo o "gênio" ina to em cada ind ivíduo . Emsoc ied ade s mais primitivas imaginavam-nomuitas vezes como um espírito protetor,encarnado em um animal ou um fetiche.

Este centro interior é concebido numa for-ma excepcionalmente pura pelos índios Nas-kapi , que ainda habi tam as floresta s da pe-nínsula do Labrador. São caçadores simples quevivem em grupos familiares isolados, tão se-parados uns dos outros que não conseguiram de-senvolver costumes tribais nem crenças e ce -

A psique pode ser comparada a umaesfera, com uma zona brilhante (A) emsua superfície que representa aconsciência. 0 ego é o centro destazona (um objeto só é consciente quandoeu o conheço). 0 self é, a um tempo, onúcleo e a esfera inteira (B); seusprocessos reguladores internosproduzem os sonhos.

rimônias religiosas coletivas. Ao longo da suavida solitária, o caçador Naskapi tem quecontar , apenas, com as suas vozes interiores e asrevelações do seu inconsciente; não tem mestresreligiosos que lhe digam no que acreditar, nemrituais, festas ou costumes que lhe sirvam deapoio. No seu universo elementar sua alma éapenas um "companheiro interior'', a que chama"meu amigo" ou Mista'peo, signif icando"Grande Homem". Mista'peo habita o coraçãodo homem e é um ser imortal. No momento damorte, ou pouco antes, deixa o indivíduo para,mais tarde, reencarnar-se em outro.

Os Naskapi que dispensam atenção a seussonhos e tentam descobri r -lhes o significado etestar-lhes a verdade podem estreitar seurelacionamento com o Grande Homem. Ele osauxilia e manda-lhes mais e melhores sonhos.Assim, a principal obrigação de um Naskapi éobedecer às instruções que lhe são transmitidasatravés dos sonhos e dar aos seus conteúdosuma forma permanente nas artes. Mentiras edesonestidades afastam o Grande Homem doreinado inter ior do indivíduo, enqua nto a ge-nerosidade e o amor ao próximo e aos animaisatraem-no e lhe dão vida. Os sonhos oferecem

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ao Naskapi todas as possibil idades paraencontrar o bom caminho, não só no seumundo interior mas também no mundo exteriorda natureza. Ajudam-no a prever o tempo edão-lhe conselhos inestimáveis na caça, da qualdepende toda a sua vida. Menciono estes povosmuito primitivos porque ainda não foramcontaminados por nossas idéias civilizadas eainda guardam a intuição natural da essência dose/f.

O self pode ser definido como um fator deorientação íntima, diferente da personalidadeconsciente, e que só pode ser apreendido atravésda investigação dos sonhos de cada um. E estessonhos mostram-no como um centro regulador,centro que provoca um constantedesenvolvimento e ama dur ecime nto daper son ali dad e Mas este aspecto mais rico e maistotal da psique aparece, de início, apenas comouma possibil idade inata. Pode emergir demaneira insuficiente ou então desenvolver-se demodo quase completo ao longo da nossaexis tênci a; o quanto vai evoluir depende dodesejo do ego de ouvir ou não as suasmensagens. Assim como o Naskapi percebe quea pessoa receptiva às sugestões do GrandeHomem tem sonhos melhores e mais úteis, onosso Grande Homem nato torna-se mais real aosque o ouvem do que aos que o desprezam.Ouvindo-o tornamo-nos seres humanos maiscompletos.

Tudo acontece como se o ego não tivessesido produzido pela natureza para seguirilimitadamente os seus próprios impulsosarbit rários, e sim para ajudar a realizar,verdadeiramente, a total idade da psique. É oego que ilumina o sistema intei ro, permi tindoque ganhe consciência e, portanto, que se tornerealizado. Se, por exemplo, possuo algum domartístico de que meu ego não está consciente,este talento não se desenvolve e é como se forainexistente. Só posso trazê-lo à realidade se omeu ego o notar. A totalidade inata, masescondida, da psique, não é a mesma coisa queuma totalidade plenamente realizada e vivida.

Pode mos exempli ficar assim esta afir -mati va: a semente de um pinheiro contém, emforma latente, a futura árvore; mas cadasemente cai em determinado tempo , em umdeterminado lugar, no qual intervém um de-terminado número de fatores, como a qualidadedo solo, a inclinação do terreno, a sua exposiçãoao sol e ao vento etc. A totalidade latente dopinheiro reage a estas circunstâncias evitando aspedras , inc linando-se em direção ao sol , mo-

delando, em fim, o crescimento da árvore. Éassim que um pinheiro começa, lentamente, aexis tir, estabelecendo sua total idade eemergindo para o âmbito da realidade. Sem aárvore viva, a imagem do pinheiro é apenasuma possibilidade ou uma abstração. E arealização desta unicidade no indivíduo é oobjetivo do processo de individuação.

De um certa ponto de vista este processoocorre no homem (como em qualquer outro servivo) de maneira espontânea e inconsciente; éum processo através do qual subsiste a suanatureza humana inata . No entanto, em seusent ido estrito o processo de individuação só éreal se o indivíduo estiver consciente dele e,conseqüentemente, com ele mantendo vivaligação. Não sabemos se o pinheiro temconsciência do seu processo de crescimento, seaprecia ou sofre as diferentes alterações que omodelam. Mas o homem, certamente, é capazde participar de maneira consciente do seudesenvolvimento. Chega mesmo a sent ir que,de tempo em tempo , pode cooperar ativamentecom ele, tomando livremente várias decisões. Eesta cooperação pertence ao processo deindividuação, no seu sentido mais estrito.

O homem, no entanto, experimenta algoque não está expresso na nossa metáfora dopinheiro. O processo de individuação é, naverdade , mais que um simples acordo entre asemente inata da totalidade e as circunstânciasexternas que consti tuem o seu destino. Suaexperiência subjetiva sugere a intervenção ativae criadora de alguma força suprapessoal. Porvezes, sentimos que o inconsciente nos estáguiando de acordo com um desígnio secreto. Écomo se algo nos estivesse olhando, algo quenão vemos, mas que nos vê a nós — talvez oGrande Homem que vive em nosso coração eque, através dos sonhos, nos vem dizer o quepensa a nosso respeito.

Mas este aspecto ativo e criador do núcleopsíquico só pode entrar em ação quando o ego sedesembaraça de todo projeto determinado eambicioso em benefício de uma forma deexistência mais profunda, mais fundamental . Oego deve ser capaz de ouvir atentamente e deentregar-se, sem qualquer outro propós ito ouobjet ivo, ao impulso interior de crescimento.Muitos fi lósofos existencialistas tentamdescrever este estado, mas limitam-se a destruiras ilusões da consciência: chegam até a porta doinconsciente e não a conseguem abrir.

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Povos que vivem em culturas de raízes maisfirmes do que a nossa encontram menosdificuldade em compreender que é necessáriorenunciar à atitude utili tarista deplanejamentos conscientes para poder dar lugara um crescimento interior da nossapersonalidade. Encontrei uma vez uma senhorade certa idade que não alcançara muito na vidaem termos de real izações exter iores . Mas fizeraum bom casamento, com um marido detemperamento difíci l e, de certo modo,conseguira uma personalidade bastanteamadurecida. Quando queixou-se a mim de quenada "fizera" na vida, contei-lhe a histórianarrada por Chuang-Tzu, um sábio chinês.Compreendeu-a logo e sentiu-se tranqüila. Eis ahistória:

Um carpinteiro ambulante, chamado Stone, viuno decorrer das suas viagens, em um campo próximode um altar rústico, um velho e gigantesco carvalho.Disse a seu aprendiz, que admirava o carvalho: "Estaárvore não tem qualquer utilidade. Se quiséssemosfazer um barco com sua madeira, ele logoapodreceria; se quiséssemos usá-la para ferramentas,elas logo se haviam de quebrar. Para nada serve estaárvore, por isso chegoua ficar assim tão velha.''

Mas naquela mesma noite, numa hospedaria, ovelho carvalho apareceu em sonhos ao carpinteiro edisse-lhe: "Por que você me compara às árvorescultivadas, como o pilriteiro, a pereira, a laranjeira, amacieira e todas as outras árvores frutíferas? Antes deamadurecerem osseus frutosas pessoas já asatacame

Um altar rústico, ou altar de terra, aolado de uma árvore (pintura chinesa doséculo XIX). Estas estruturasquadradas, ou redondas, simbolizamoselfa que o ego deve submeter-se a fimde cumprir o processo de individuação.

violentam quebrando-lhes os galhos e arrancando-lhes os ramos. As dádivas que trazem só lhesacarretam o mal, impedindo-as de viverintegralmente, até o fim,a sua existência natural. É oque acontece em todos os lugares; por isso esforço-me, há tanto tempo, para permanecercompletamente inútil. Pobre mortal! Crês que se eutivesse servido para alguma coisa teria chegado a estaaltura? Além disso, tu e eu somos ambos criaturas ecomo pode uma criatura erigir-se em juiz de outra?Inútil mortal, que sabes a respeito da inutilidade dasárvores?"

O carpinteiro acordou e pôs-se a meditar sobre osonho. Mais tarde, quando o aprendiz perguntou-lhe: por que só havia aquela árvore a proteger o altarrústico, respondeu-lhe: "Cala-te! Não falemos maisnisso! A árvore nasceu aqui propositadamente,porque em qualquer outro lugar acabaria por sermaltratada. Se não fosse a árvore do altar rústicotalvez já a tivessem derrubado.''

O carpinteiro evidentemente compreendeubem o seu sonho. Verificou, apenas, que realizarseu destino é o maior empreendimento dohomem e que o nosso utilitarismo deve ceder àsexigências da nossa psique inconsciente. Setraduzirmos esta metáfora em linguagempsicológica , a árvore simboliza o processo deindividuação, e dá uma boa lição ao nosso ego,de tão curta visão.

Sob esta árvore que cumpriu o seu destinohavia — na história de Chuang-Tzu — um altarrúst ico, isto é, uma pedra bruta, sobre a qualeram oferecidos sacrifícios ao deus local,"proprietário" daquele pedaço de ter ra. Osimbol ismo do altar signifi ca que para realizarum processo de individuação é preciso nossubmetermos, conscientemente, ao poder doin consciente, em lugar de pensarmos em "quedevemos fazer" ou "o que se considera melhorfazer", ou "o que se faz habitualmente" etc. Épreciso apenas ouvir para poder compreender oque a tota lidade inter ior — o self — quer quefaçamos , aqui e agora em uma determinadasituação .

Nossa atitude deve ser como a do pinheirode que há pouco falamos: não se aborrecequando o seu crescimento é obstruído poralguma pedra, nem faz planos para vencer osobstáculos. Tenta simplesmente sentir se devecrescer mais para a esquerda ou mais para adirei ta, em direção à encosta ou afastado dela.Tal como a árvore, devemos nos entregar a esteimpulso quase imperceptível e, no entanto,poderosamente dominador — um impulso quevem do nosso an-

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seio por uma auto-realização criadora e única. Éum pr ocesso no qual é ne cessár io ,re petidamente, buscar e encontrar algo aindanão conhecido por ninguém. Os sinaisorientadores ou impulsos vêm não do ego, masda totalidade da psique: o self.

Além disso é inútil olharmos furtivamentepara ver como qualquer outra pessoa vairealizando o seu processo de desenvolvimentoporque cada um de nós tem uma maneiraparticular de auto-realização. Apesar de muitosproblemas humanos serem semelhantes elesnunca são perfeitamente idênticos. Todos ospinheiros são muito parecidos (ou não osreconheceríamos como pinheiros), e no entantonenhum é exatamente igual ao outro. Devido aestes fatores de semelhanças e disparidadestorna-se difícil resumir as infinitas variações doprocesso de individuação. O fato é que cadapessoa tem que realizar algo de diferente,exclusivamente seu.

Muitos têm criticado os pontos de vista jun-gianos porque não apresentam um materia l psi-quico sistematizado. Mas esquecem-se de que o

material propriamente dito é a experiência viva,carregada de emoção, irracional e mutável pornatureza, não se prestando a sistematizações anão ser de um modo muito superficial. Amoderna psicologia experimental alcançou osmesmos limites que defrontam a microfísica.Isto é, quando se lida com níveis médiosestatísticos, é possível fazer-se uma descriçãoracional e sistemática dos fatos; mas quandotentamos descrever um acontecimento psíquicoparticular, resumimo-nos a apresentar umquadr o hones to desta ocorrência, de tantosângulos quanto for possível. Do mesmo modo,os cientistas têm de admi tir que não sabemexat amente o que é a luz. Podem dizer apenasque em certas condições experimentais parececonsisti r de partículas, enquanto em outrasparece consisti r de ondas. Mas ignora -se o que éa luz "em si". A psicologia do inconsciente equalquer descrição do processo de individuaçãoencontram dificuldades de definição idênticas.Mas vamos tentar apresentar aqui um esboçode algumas das suas característicasfundamentais.

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O primeiroacesso ao inconsciente

Para a maior ia das pessoas os anos dajuventude caracterizam-se por um despertargradativo, um estado no qual o indivíduo setorna, aos poucos, consciente do mundo e delemesmo. A infância é um período de grandeintensidade emocional, e os primeiros sonhos deuma criança revelam, muitas vezes, a estruturabásica da psique sob uma forma simbólica,indicando como mais tarde ela irá model ar odest ino do indivíduo. Por exemplo, Jungcontou uma vez a um grupo de estudantes ocaso de uma jovem mulher tão obcecada porsua angústia que suicidou-se aos 26 anos.Quando criança ela sonhara que "Jack Frost'' (ohomem da neve) entrara em seu quarto enquantoela estava deitada, e lhe beliscara o estômago.Acordara e descobrira que ela mesma sebeliscara, com a própria mão. O sonho não aassustou; apenas lembrava-se dele. Mas o fato deeste seu estranho encontro com o demônio dofrio — da vida congelada — não lhe terprovo cado nen huma reação emocional nãopressagiava nada de bom para o seu futuro e era,em si mesmo, uma anomalia . Foi com estamesma frieza e insensibilidade que, mais

tarde, pôs fim à vida. Deste único sonho épossível deduzir o destino trágico de quem osonhou, já antecipado na infância por suapsique.

Algumas vezes não é um sonho, mas algumacontecimento real , impressionante einesquecível que, como uma profecia, antecipa ofuturo sob uma forma simbólica. É sabido queas crianças, muitas vezes, esquecem-se deacontecimentos que impressionaram os adultose guardam lembrança viva de algum incidenteou história que mais ninguém notou. Quandoexaminamos estas recordações infantisverificamos quê, habitualmente, retratam(quando interpretadas como um símbolo)algum problema básico da constituição dacriança.

Ao chegar à idade escolar a criança começaa fase de estruturação do seu ego e de adaptaçãoao mundo exterior . Esta fase em geral traz umbom número de choques e embates dolorosos.Ao mesmo tempo, algumas crianças nesta épocacomeçam a sentir-se muito diferentes das outras,e este sentimento de singularidade acarreta umacerta tristeza, que faz parte da solidão de muitos

Uma criança, na sua adaptação aomundo exterior, sofre muitoschoques psicológicos: á extremaesquerda, o temível primeiro dia naescola; ao centro, a surpresa e a dorresultantes do ataque de outracriança; á esquerda, o pesar e oespanto que resultam do primeirocontato com a morte. Para seproteger contra tais choques acriança faz desenhos ou pode sonharcom algum motivo circular,quadrangular ou nuclear (acima),simbolizando o centro de importânciavital, a psique.

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jovens. As imperfeições do mundo, e o mal queexiste dentro e fora de nós, tornam-se prob lemasconscientes; a criança precisa enfrentar impulsosin te ri or es pr em en te s (e ai nd a nã oco mpree ndidos), além das exigências do mundoexte rior.

Se o desenvolvimento da consciência forpe rt ur ba do no se u de sa br oc ha r na tu ra l, acriança, para escapar às suas dificuldadesexternas e internas , isola -se em uma "for taleza"íntima. Quando is to acontece , seus sonhos eseus desenhos, que dão ao material inconscienteuma expressão simbólica, reve lam de maneirainvulgar a recorrência de um tipo de motivocircular, quadrangular ou "nuclear" (que maistarde explicaremos). É uma referênc ia ao núcleopsíquico, que já mencionam os ant es, o cen t rovital da personalidade do qual emana todo odesenvolv imento estrutural da consciência. Énatural que a imagem deste centro apareça demodo especi almente mar can te qua ndo a vid apsíquica do indivíduo está ameaçada. Destenúcleo central (tan to quanto sabemos hoje emdia) é comandada toda a est ruturação daconsciênc ia do ego, que é, aparentemente, umacópia ou réplic a do centro original.

Nesta primeira fase muitas crianças buscamardentemente algum sentido na vida que as pos -sa ajudar a medi r-se com o caos existente dentroe fora delas. Há outras, no entanto, que ainda se

deixam conduz ir inconscientemente pelodinamismo de esquemas arquet ípicos herdadose instintivos. Estes jovens não se preocupam comum sentido mais profundo de vida porque a suaexperiê ncia com o amor, a natu reza , o esporte eo traba lho lhes dá uma satisfação imediata esignifica tiva. Não são, necessariamente, maissuperficiais que os outros jovens; o fluxo da vidaé que os leva com menos atr ito s e per turbaçõesque a seus companheiros mais introspectivos. Seviajamos de carro ou de trem sem olhar pelajanela, só as paradas, par tidas e curvas súbitas éque nos fazem constatar que estamos nosmovendo.

O verdadeiro processo de individuação —isto é, a harmonização do conscien te com onosso próprio centro interior (o núcleo psíquico)ou sel f — em geral começa inf ligindo uma lesãoà per sonalidade, aco mpanhada do conseqüen tesofr imen to. Este choque inic ial é uma espécie de''apelo" , apesar de nem sempre ser reconhecidocomo tal . Ao con trá rio , o ego sente -se tolhid onas suas vontades ou desejos e gera lmenteprojeta esta frustração sobre qua lquer objetoexterior. Isto é, o ego passa a acusar Deus, ou asituação econômica, ou o chefe, ou o cônjugecomo responsáveis por esta frustração.

Alg umas vezes tud o parec e bemexternamen te, mas no ínt imo a pes soa est á so -frendo de um tédio mor tal que torna tudo vaz io

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e sem sentido. Muitos mitos e contos de fadadescrevem simbolicamente este estágio inicial doprocesso de individuação, quando contamhistór ias de um rei que fic ou doe nte ouenvelheceu. Outras histórias características são ado casal real estéril; ou a do monstro que roubamulheres, crianças, cavalos e tesouros de umreino; ou a do demônio que impede o exérc itoou a armada de algum rei de seguir sua rota;ou a da escuridão que cobre todas as terras, eainda histórias sobre secas, inundações, geadasetc. Dir-se-ia que o encontro inicial com o selflança uma sombra sobre o futuro, ou que este''amigo interior" aparece primeiro como umcaçador que prepara sua armadilha para pegar oego indefeso.

Observamos nos mitos que a magia ou otalismã capaz de curar a desgraça de um rei oude seu país é sempre alguma coisa muitopeculiar. Em um determina do conto, porexemplo, podem ser ''um melro branco'' ou "umpeixe com um anel de ouro nas guelras" oselementos necessários para a recuperação dasaúde do rei. Em outro , o rei vai precisar da"água da vida", ou dos "três cabelos douradosda cabeça do Diabo", ou ainda da "trançadourada de uma mulher" (e dep ois,natura lme nte, da dona da trança). Seja elequal for, o remédio para afastar o mal é sempreúnico e difícil de ser encontrado.

Acontece exatamente o mesmo na crise ini-

cial que marca a vida de um indivíduo. Procura-se algo impossível de achar ou a respeito do qualnada se sabe. Em tais momentos, qualquerconselho bem-intencionado e sensato écompletamente inútil — conselho para que apessoa seja mais responsável, para que tomeumas férias, para que não trabalhe tanto (oupara que trabalhe mais) , para que ten ha maior(ou menor ) contato humano, ou que arranje umpassatempo. Nada disto traz ajuda à pessoa, anão ser excepcionalmente. Só há uma atitudeque parece alcançar algum resultado: voltar -separa as trevas que se aproximam, sem nenhumpreconceito e com a maior singeleza, e tentardescobrir qual o seu objetivo secreto e o que vêmsolicitar do indivíduo.

O propósito secreto destas trevas que seavizinham geralmente é tão invulgar, tãoespecial e inesperado que, via de regra, só seconsegue percebê-lo por meio dos sonhos e dasfantasias que brotam do inconsciente. Sefocalizarmos nossa atenção sobre o inconscientesem suposições precipitadas ou rejeiçõesemocionais, o propósito há de surgir num fluxode imagens simbólicas do maior proveito. Masnem sempre. Algumas vezes apar ece,inic ialmente , uma série de dolorosasconstatações do que existe de errado em nós eem nossas atitudes conscientes. Temos então quedar início a este processo engolindo toda a sortede verdades amargas.

À extrema esquerda, gravura emmadeira de um manuscrito do séculoXVII, mostrando um rei enfermo —uma imagem simbólica habitual dovazio e do tédio (na consciência) eque pode marcar o estágio inicial doprocesso de individuação. Ao lado,do filme italiano La Dolce V/ta (1960),outra imagem deste estadopsicológico: convidados exploram ointerior arruinado do castelo de umaristocrata decadente.

À direita, um quadro do artista suíçocontemporâneo Paul Klee, intituladoConto de Fadas. Ilustra a história deum jovem que procurava eencontrouo "pássaro azul da felicidade",podendo assim casar-se com a suaprincesa. Em muitos contos de fadaé necessário buscarum talismã paraa cura de alguma doença oudesgraça, símbolos dos nossossentimentos de vazio e futilidade.

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A realizaçãoda sombra

Quando o inconsciente a princípio semanifesta de forma ou negativa ou positiva,depois de algum tempo surge a necessidade dereadapta r de uma melhor forma a atitude cons -ciente aos fatores inconscientes — aceitando oque parece ser uma "crítica" do inconsciente.Através dos sonhos passamos a conhecer aspectosde nossa personalidade que, por várias razões,havíamos preferido não olhar muito de perto. Eo que Jun g chamou "reali zação da sombra".(Ele empregou o termo "sombra '' para esta parteinconsciente da personalidade porque, real-mente, ela quase sempre aparece nos sonhos sobuma forma personif icada.)

A sombra não é o todo da personalidadeinconsciente: representa qualidades e atributosdesconhecidos ou pouco conhecidos do ego —aspectos que pertencem sobretudo à esfera pés-soal e que poder iam também ser conscient es.Sob certos ângulos a sombra pode, igualmente,consistir de fatores coletivos que brotam de umafonte situada fora da vida pessoal do indivíduo.

Quando uma pessoa tenta ver a sua sombraela fica consc iente (e mui tas vez es em-vergonhada) das tendências e impulsos que negaexisti rem em si mesma, mas que consegue per-

feitamente ver nos outros — coisas como oegoísmo, a preguiça mental, a negligência , asfantasia s irreais, as intr igas e as tramas, aindi ferença e a covardia, o amor excessivo aodinheiro e aos bens — em resumo, todosaqueles pequenos pecados que já se teráconfessado dizendo: "Não tem importância;ninguém vai perceber e, de qualquer modo, asoutras pessoas também são assim. ''

Se você se enche de raiva quando um amigolhe aponta uma falta pode estar certo que aí seencontra uma parte da sua sombra, da qual vocênão tem consciência. É natural que nos sintamosaborrecidos quando gente que "não é melhor"do que nós vem nos criticar por faltas devidas àsombra. Mas que dizer quando é o própriosonho — juiz interior do próprio ser — que nosreprova? É o momento em que o ego ficaencurralado e reduzido, em geral, a um silêncioembaraçoso. Começa, depois, um lento edoloroso processo de auto-educação, tarefa que,pode-se dizer, equivale psicologicamente aostrabalhos físicos de Hércules. A primeira tarefadeste infortunado herói, lembremo-nos, foi lim-par em um só dia os estábulos de Augias, ondecentenas de cabeças de gado haviam deixado ,

Três exemplos de um "contágiocoletivo" que pode levar aspessoas a um tumulto irracional — eao qual a sombra (o lado escuro doego) é vulnerável. À esquerda, cenade um filme polonês de 1961 arespeito de monjas francesas doséculo XVII "possuídas pelodemônio". À direita, um desenho deBrueghel representa a doença (emgeral psicossomática) chamada"dança de São Vito", largamentedisseminada na Idade Média. Áextrema direita, o emblema da cruzem chamas da Ku Klux Klan, a"sociedade secreta" a favor dasupremacia branca, do sul dosEstados Unidos, cuja intolerânciaracial muitas vezes provocoutumultos e violências.

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durante décadas, o seu esterco — uma tarefa tãoimensa que deixaria o mortal comumdesencorajado só de pensar nela.

A sombra não consiste apenas de omissões.Apresenta-se muitas vezes como um ato im-pulsivo ou inadvertido. Antes de se ter tempopara pensar, explode a observação maldosa,comete-se a má ação, a decisão errada é tomada,e confrontamo-nos com uma situação que nãotencionávamos criar conscientemente. Alémdisso, a sombra expõe-se, muito mais do que apersonalidade consciente, a contágios coletivos.O homem que está só, por exemplo, encontra -serelativamente bem; mas assim que vê "osoutros" comportarem-se de maneira primitiva emaldosa começa a ter medo de o consideraremtolo se não fizer o mesmo. Entrega-se então aimpulsos que na verdade não lhe pertencem.Particularmen te quando estamos em cont atocom pessoas do mesmo sexo é que tropeçamostanto na nossa sombra quanto na delas. Apesarde percebermos a sombra da pessoa do sexooposto, ela nos incomoda menos e desculpamo -la mais facilmente.

Nos sonhos e nos mitos, portanto, a sombraaparece como uma pessoa do mesmo sexo que o

sonhador. O seguinte sonho pode ser um bomexemplo para estas observações. A pessoa que osonhou era um homem de 48 anos que tentavaviver por ele e para ele mesmo, trabalhandomuito, discipl inando-se e reprimindo o prazer ea espontaneidade com uma intensidade bemmaior do que seria aconselhável à sua natureza:

Eu possuía e morava numa casa muito grande nacidade, embora ainda não a conhecesse bem. Por issopercorri-a toda e descobri, principalmente no porão,vários quartos que nunca vira, além de várias portasque levavam a outros porões e ruas subterrâneas.Senti-me inquieto ao ver que várias destas portas nãoestavam fechadas e que algumas não tinhamqualquer fechadura. Além do mais havia váriostrabalhadores na vizinhança que poderiam terpenetrado na casa.. .

Quando voltei ao andar térreo passei por umpátio onde tornei a descobrir várias saídas para a ruaou para outras casas. Quando procurei investigarmelhor, um homem dirigiu-se a mim rindo-se alto edeclarando que éramos velhos colegas de colégio.Também me lembrava dele e, enquanto me contavasobre a sua vida, fomos seguindo em direção a umadassaídas e passamos a andar pelas ruas.

Havia um estranho tom claro-escuro na atmosfe-ra enquantoatravessávamos uma enorme rua circular

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e chegávamos a um gramado por onde três cavalospassaram galopando. Eram animais fortes e bonitos,fogosos e bem cuidados, e não traziam cavaleiros(teriamfugido de uma tropa de exército?).

O labirinto do porão com estranhoscorredores, quartos e portas sem chave lembra avelha rep res ent ação egí pci a do mundosubterrâneo, um símbolo bem conhecido doinconsciente e de suas desconhecidaspossibilidades. Mostra também como se está"aberto" a outras influências no lado da sombrado nosso inconsciente, e como elementosbizarros e estranhos podem ali penetrar . O porãoé o subsolo da psique do sonhador. No pátiodaquela estranha casa (que representa aperspectiva psíquica ainda desconhecida da suapersonalidade) um velho colega de escolaaparece repentinamente. E alguém que,obviamente, personifica um outro aspecto dosonhador — um aspecto que fora parte de suavida infantil, mas de que se esquecera. Acontece,muitas vezes, que as qualidades infantis de umapessoa (por exemplo, a alegria, a irascibilidadeou a confiança) desaparecem de repente, e não sesabe para onde ou por quê. E é um destes traçosperdidos do sonhador que volta

(do pátio), tentando refazer uma amizade. Estepersonagem, provavelmente, representa a facul-dade, negligenciada pelo sonhador, de aprovei -tar a vida e o lado extrovertido da sua sombra.

Mas logo percebemos por que o sonhadorsentiu -se "inquieto" antes de encontrar estevelho amigo, aparentemente inofensivo.Quando passeia com ele pelas ruas, cavalospassam em disparada. Julga que se teriamevadido de uma tropa militar (isto é, dadisciplina consciente que até então caracterizarasua vida). O fato de os cavalos não levaremcavaleiro mostra que os impulsos instintivospodem escapar do nosso controle consciente.Neste velho amigo e nos cavalos reaparecemtodas as forças positivas que lhe faltavam antes eque lhe eram tão necessárias.

Este é um problema que aparece comfreqüência ao encontrarmos o nosso "outrolado". Em geral a sombra contém valoresnecessários à nossa consciência, mas que existemsob uma forma que torna difícil a sua integraçãona vida de cada um. No sonho que acabo decitar as inúmeras passagens e a grande casamostram, também que o sonhador ainda nãoconhece as suas

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À esquerda, Anxious Jorney(Jornada Ansiosa), do pintor italianode Chirico. O título e os corredoreslúgubres do quadro exprimem anatureza do primeiro contato com oinconsciente, quando o processo deindividuação começa. O inconscienteé, muitas vezes, simbolizado porcorredores ou labirintos. A direita, emum papiro (1400 A.C.), as seteportas do mundo subterrâneoegípcio, concebidas como umdédalo. Abaixo, desenhos de trêsdédalos; da esquerda para a direita,um dédalo finlandês (Idade doBronze); um gramado inglês emforma de dédalo (século XIX) e umlabirinto (em ladrilhos) do chão daCatedral de Chartres (para serpercorrido como uma peregrinaçãosimbólica á Terra Santa).

próprias dimensões psíquicas, nem está apto acompletá-las.

A sombra, tal como aparece neste sonho, étípica do introvert ido (um homem que tem fortetendência para retirar -se do mundo exterior). Sefosse um extrovertido, mais voltado para objetose vida exteriores, a sombra teria aspecto bemdiferente.

Um jovem de temperamento dinâmicolança va -se con tinua men te em vár iosem preendimentos sempre bem -sucedidos ,en quan to seus sonhos insist iam para queterminasse uma obra pessoal, de carátercriativo, que iniciara há tempos. Um dos seussonhos foi o seguinte:

Um homem está deitado em um divã e puxou ascobertas sobre o rosto. É um malfeitor francês queaceitará qualquer incumbência criminosa. Umfuncionário acompanha-me escada abaixo e tomoconhecimento de que há uma conspiração contramim, isto é, que o francês vai matar-me como queacidentalmente (é o que parecerá quando tudo tiveracontecido).

No momento, ele chega furtivamente por trás demim ao nos aproximarmos da saída, mas estouatento. Um homem grande e corpulento (rico einfluente) encosta-se de repente à parede ao meu

lado, sentindo-se mal. Aproveito imediatamente aoportunidade e mato o funcionário, apunhalando-o no coração. ''Só se nota um pouco de umidade'' —é o que se comenta. Agora estou salvo, pois o francêsnão me atacará já que o homem que lhe dava ordensestá morto (provavelmente o funcionário e o homemcorpulento são a mesma pessoa, um substituindo ooutro).

O malfeitor representa o outro lado dosonhador — sua introversão — que chegou a umtotal estado de carência. Está deitado num divã(isto é, numa situação passiva) e puxa a cobertasobre o rosto porque deseja ficar só. Ofuncionário , por outro lado, e o homemcorpulento e próspero (que são uma só pessoa)personificam as responsabilidades e atividadesexteriores bem-sucedidas do sonhador . Orepentino mal-estar do homem corpulento estáligado ao fato de o sonhador ter, também ele,passado mal várias vezes quando permit ira quea sua energia dinâmica irrompesseviolentamente na sua vida exterior. Mas estehomem tão bem-sucedido não tinha sangue nasveias — apenas uma espécie de umidade —significando que as atividades

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cheias de ambição do sonhador não continhampaixão e vida verdadeiras, eram apenas simplesmecanismos anêmicos. Portanto, não haveriagrande perda com o assassinato do homemcorpulento. No final do sonho, o francês estásatisfeito ; ele representa, obviamente, umasombra positiva, que só se tornara perigosa enegativa porque as atitudes conscientes dosonhador não estavam de acordo com ela.

Este sonho nos mostra que a sombra podecompreender muitos elementos diferentes —por exemplo, a ambição inconsciente (o homemcorpulento e próspero) e a introversão (ofrancês). Esta associação particular do sonhadorcom o francês, além disso, diz respeito à famade amorosos que têm os franceses. Portanto, osdois personagens que representam a sombraexpressam, também, dois conhecidos instintos:o poder e o sexo. O instinto do poder aparecemomentaneamente em forma dúpli ce, comofuncionário e como homem bem-sucedido. Ofuncionário público personifica a adaptação àcoletividade, enquanto o homem prósperodenota ambição; mas ambos , natu ralmente ,estão a serviço do mesmo instinto do poder .Quand o o sonhador consegue deter esta perigosaforça interior, o francês já não é mais hostil. Emoutras palavras, o aspecto igualmente perigosodo impulso sexual também foi dominado.

Obviamente , o problema da sombra exercepapel relevante nos conflitos políticos. Se ohomem que teve este sonho não fosse sensível aoproblema apresentado por sua sombra, poderiafacilmente identificar o francês violento com os''perigosos comunistas" do mundo exterior ou ofuncionário e o homem próspero com os"gananciosos capitalistas". Deste modo teriacontinuado a ignorar, dentro de si, aqueleseleme ntos conflitantes. Quando as pessoasobservam nos outros as suas próprias tendênciasinconscientes, estão fazendo o que chamamos"projeção". As agitações políticas, em todos ospaíses, estão cheias de projeções, assim como asintrigas individuais e de pequenos grupos.Projeções de toda espécie toldam a nossa visãodo próximo e, destruindo a sua objetividade,destroem qualquer possibilidade de umrelacionamento humano autêntico.

Existe ainda uma outra desvantagem naprojeção da nossa sombra. Se a identificarmoscom os comunis tas ou com os capitalistas , porexemplo, uma parte da nossa personalidade per-172

"Durante mais de cinco anos estehomem percorreu a Europa comoum louco, em busca de qualquercoisa a que pudesse deitar fogo.Infelizmente sempre haverámercenários prontos a abrir as portasda sua pátria a este incendiáriointernacional."

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manecerá no lado aposto, isto é, na oposição. Oresultado é que sempre (involuntariamente)faremos coisas por detrás de nós mesmosapoiando este outro lado, e assim, sem querer,estaremos ajudando o nosso inimigo. Se, aocontrário, fincarmos conscientes da projeção econseguirmos discutir o problema semhostilidade ou medo, tratando a outra pessoacom sensibil idade, haverá chance decompreensão mútua — ou pelo menos, detrégua.

Vai depender muito de nós mesmos a nossasombra tornar-se nossa amiga ou inimiga. Comoos sonhos da casa inexplorada e do malfeitorfrancês exemplificaram, nem sempre a sombra énecessariamente um elemento de oposição. Naverdade, ela se parece com qualquer ser humanocom que temos de nos relacionar, algumas vezescedendo, outras resistindo, outras ainda dando-lhe amor — segundo as circunstâncias. Asombra só se torna hostil quando é ignorada ouincompreendida.

Algumas vezes, bem raramente, aliás, oindivíduo sente -se impelido a dar livre curso aopior lado da sua natureza, reprimindo o que hánela de melhor. Nestes casos a sombra aparece-lhe nos sonhos como uma figura positiva. Maspar a que m se aba ndo na realmen te a sua semoções e sentimentos naturais , a sombrapoderá surgir como um intelectual, frio enegativo; personifica, assim, julgamentosvenenosos e pensamentos negativos que tenhamestado contidos. Portanto, seja qual for a formaque tome, a função da sombra é representar olado contrário do ego e encarnar, precisamente,os traços de caráter que mais detestamos nosoutros.

O problema ter ia fácil solução se pu-déssemos integrar a sombra na nossa per-

sonalidade consciente, tentando apenas serhonestos e usar nossa lucidez. Mas infelizmenteesta tentativa nem sempre funciona. Há umimpulso de tamanha veemência na nossasombra que a razão não consegue triunfar. Umaexperiência amarga vinda do exterior pode oca-sionalmente ajudar. É como se fosse necessárioum tijolo cair em nossa cabeça para conseguirdeter os ímpetos e impulsos da sombra. Porvezes uma decisão heróica pode alcançar omesmo efeito, mas este esforço sobre-humano sóé possível quando o Grande Home m dentro denós (o se/f) ajuda o indivíduo a realizá-lo.

O fato de a sombra ter este pode rar rebatador de impulsos irresistíveis nãosignifica que tai s impuls os devam ser sempreher oic amente reprimidos. Algumas vezes asombra é assim poderosa porque o self indicauma orientação idêntica; portanto não sabemosse é o selfou a sombr a que nos press ionam.No incon sci ent e encontramo-nos, infor tuna -damente, na mesma situaçã o de quem pisanuma paisagem lunar: todos os seus conteúdosestão manchados, enevoados e mesclados unsaos outros, não se sabendo nunca exatamente oque é ou onde está determinada coisa, ou ondeela começa ou acaba (chama-se a isto"contaminação" dos conteúdos inconscientes).

Quando Jung chamou "sombra" a umaspecto da personalidade inconsciente referia-sea um fator relat ivamente definido. Mas, porvezes, tudo quanto o ego desconhece mistura -seà sombra, inclu indo as mais valiosas e nobresforças. Quem, por exemplo, poderia decidir se omalfeitor francês do sonho que comentamosseria um vagabundo inúti l ou um introvertidode grande valor? E os cavalos do sonhoprecedente — devíamos deixá-los correrlivremente ou não?

Em lugar de reconhecer os defeitosque a sombra nos revela, nós osprojetamos em outras pessoas — porexemplo, em nossos inimigospolíticos. Acima, á esquerda, umcartaz de uma passeata na ChinaComunista retrata a América doNorte como uma serpente maléfica(cheia de cruzes suásticas) morta pormão chinesa. Â esquerda, Hitlerdiscursando: a citação é a descriçãoque ele fez de Winston Churchill.Projeções também existem emintrigas e bisbilhotices maliciosas (ádireita, cena de um seriado da TVinglesa, Coronation Street).

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Acima, o selvagem garanhão brancodo filme francês Crin Blanc (1953).Cavalos selvagens simbolizam,inúmeras vezes, impulsos instintivosincontroláveis que podem emergir doinconsciente — e que muitaspessoas tentam reprimir. No filme ocavalo e o menino estabelecem umestreito relacionamento (apesar de ocavalo ainda levar a vida selvagem desua manada). Mas vários cavaleirospartem para capturar os cavalosselvagens. O garanhão e o meninoque o monta são perseguidosdurante muitos quilômetros; por fimvêem-se encurralados numa praia.Para não serem capturados, cavalo emenino mergulham no mar e sãoarrastados pelas águas.Simbolicamente, o final da históriaparece representar uma fuga para oinconsciente (o mar) como meio deescapar à realidade do mundoexterior.

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Quando o próprio sonho não oferece indicaçõesclaras à personalidade inconsciente tem detomar suas próprias decisões.

Se a figura da sombra contém forças vitais epositivas devemos assimilá-las na nossaexperiência ativa, e não reprimi-las. Cabe ao egorenunciar ao seu orgulho e vaidade para viverplenamente o que parece sombrio e negat ivo,mas que na realidade pode não o ser. Tudo istoexige, por vezes, um sacrifício tão heróicoquanto o dominar-se uma paixão — mas emsentido oposto.

As dificuldades éticas que surgem aoencontrarmos nossa sombra estão bem descritasno Livro do Alcorão, escrito no século XVIII.Moisés encontra Khidr ("o primeiro anjo deDeus") no deserto. Vagueiam juntos e Khidrexprime o seu receio de que Moisés não sejacapaz de assistir aos seus feitos sem revoltar-se.Se Moisés não puder compreendê-lo nem confiarnele Khidr terá que deixá-lo.

Naquele momento, Khidr põe a pique obarco pesqueiro de alguns pobres aldeães, mata,diante de Moisés, um formoso jovem, e,finalmente , restaura os muros tombados de umacidade de ateus. Moisés não consegue deixar deexprimir-lhe sua desaprovação e Khidr vê-seobrigado a deixá -lo. Antes de partir, no entanto,explica-lhe o motivo daquelas ações: afundandoo barco salvou-o para os próprios donos, já queaproximavam-se piratas para roubar aembarcação; agora os pescadores poderiamrecuperá-lo. O formoso jovem preparava -separa

cometer um crime; matando-o, Khidr poupouda infâmia os seus bondosos pais. Restaurandoos muros, dois piedosos jovens foram salvos daruína, já que um tesouro que lhes pertenciaestava enterrado debaixo deles. Moisés, que seindignara tanto , viu então (tardiamente) oquanto seu julgamento fora precipitado. Asações de Khidr pareciam más; na realidade nãoo eram.

Considerando esta história de um ângulosimples e ingênuo, poderíamos supor que Khidré a sombra indiscipl inada, caprichosa e má dopiedoso e disciplinado Moisés. Mas não é este ocaso. Khidr é, essencialmente, a personif icaçãode algumas ações criadoras e secretas de Deus(encontramos um sentido semelhante nafamosa história indiana O Rei e o Cadáver,interpretada por Henry Zimmer). Não foi poracaso que deixei de ilustrar com um sonho esteproblema sutil. Escolhi a conhecida história doAlcorão porque ela resume a experiência de todauma vida, o que um úni co sonho nãoconseguiria exprimir de modo tão claro.

Quando em nossos sonhos aparecempersonagens sombrios parecendo desejaralguma coisa, é difícil sabermos sepersonificam uma parte da nossa sombra, ou ose/f, ou ambos a um só tempo. Adivinhar,antecipada mente, se o nosso obscuro associadosimboliza alguma deficiência que precisamosvencer, ou um aspecto significativo da vida quedevemos aceitar, é um dos mais difíceisproblemas a nós apresentado em nosso processode individuação. Além disso, os símbolosoníricos são tão sutis e complicados

Pode-se dizer que a sombra tem doisaspectos, um maléfico e outrobenéfico. 0 quadro retratando odeus hindu Vishnu (extremaesquerda) mostra esta dualidade:considerado um deus bondoso,Vishnu aparece aqui sob um aspectodemoníaco, despedaçando umhomem.  esquerda, uma esculturade Buda em um templo japonês (759A.C.), também expressandodualidade: os vários braços do deusseguram símbolos do mal e do bem. direita, Lutero mergulhado emdúvidas (representado por AlbertFinney, em 1961 na peça Lutero, doautor inglês John Osborne): Luteronunca esteve de todo certo se aoromper com a igreja, o fez inspiradopor Deus ou por seu próprio orgulhoe obstinação (em termossimbólicos, o lado "mau" da suasombra).

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que não podemos estar suficientemente segurosda sua interpretação. Neste caso, tudo que sepode fazer é aceitar o desconforto que nos trazuma dúvida de ordem ética — evitando decisõesou compromissos definit ivos e continuando aobservar os sonhos. É uma situação algoparecida com a de Cinderela quando a madrastajogou à sua frente um monte de ervilhas paraque as catasse. Apesar da tarefa desanimadora,Cinderela pôs-se pacientemente a catar aservilhas até que de repente pombas (ouformigas, em algumas versões) vieram ajudá-la.São animais que simbolizam os impulsosconstrut ivos que vêm do fundo do inconsciente,só percebidos de uma maneira orgânica, e quenos mostram o caminho a seguir.

Em algum lugar, lá no mais profundo denós mesmos, em geral sabemos onde ir e o quefazer. Mas há ocasiões em que o palhaço a quecha mamos "eu " age de modo tão irr efl eti doque a voz interior não se consegue deixarouvir.

Algumas vezes falham todas as tentativaspara entender-se as mensagens do inconsciente,e diante desta dificu ldade só resta o recurso dese ter a coragem para fazer o que nos parecemelhor, apesar de prontos para mudar o rumodas nossas decisões quando o inconscienteindicar ou sugerir, subitamente, uma outradireção. Também pode acontecer (mas istoraramente) que uma pessoa antes prefir aresis tir às solicit ações do inconsciente —mesmo que isto o violente — do que afastar-sedemasiado da sua condição de ser humano (seriaa situação de alguém que para sentir-se realizadoprecisasse dar livre curso a tendênciascriminosas).

A força e a clareza interiores, necessárias aoego para tomar tais decisões, emanamsecretamente do Grande Homem, queaparentemente não se deseja denunciar . Podeser que o self queira que o ego faça umaescolha livre; ou que talvez o self, paramanifestar-se, dependa da consciência humana ede suas decisões. Quando surge este tipo deproblema ético ninguém pode verdadeiramentejulgar os atos alheios. Cada homem tem deenfrentar o seu próprio problema e tentardeterminar o que lhe parece mais certo. Comodisse um velho mestre do zen-budismo, devemosseguir o exemplo do pastor que vigia o seu gado"com um cajado à mão para que não vá pastarem campo alheio".

Estas novas descober tas da psicologia ex-

perimental vão, necessariamente, operaralgumas mudanças em nossa apreciação damoral colet iva, pois nos obrigarão a julgartodas as ações humanas de um modo muitomais pessoal e sutil. A descoberta doinconsciente é uma das maiores dos últimostempos. Mas como o reconhecimento da nossarealidade inconsciente implica um processohonesto de autocrít ica, além de umareorganização de vida, muitas pessoascontinuam a comportar-se como se nadahouvesse acontecido. É preciso muita coragempara levar-se a sério o inconsciente e enfrentar osproblemas que ele desperta. E se a maioria daspessoas é por demais indolente para refletir sobreos aspectos morais do seu comportamentoconsciente, não há de ser a influência exercidapelo inconsciente que vai perturbá-las.

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"Anima":o elemento feminino

Prob lemas mora is, dif íce is ou conf usos nãosão invariavelmente provocados peloaparecimento da sombra. Muitas vezes emergeuma outra "figura interior". Se o sonhador forum homem irá descobri r a personificaçãofeminina do seu inconsciente; e caso seja umamulher, será uma personificação masculina.Muitas vezes este segundo personagemsimbólico aparece por detrás da sombra,trazendo novos e diferentes problemas. Jungchamou às formas masculina e feminina,respect ivamente, animus e anima.

Anima é a personif icação de todas astendências psicológicas femininas na psique dohomem — os humores e sentimentos instáveis ,as intuições proféticas, a receptividade aoir racional, a capacidade de amar, a sensibilidadeà natureza e, por fim, mas nem por isso menosimp ort ant e, o rel aci ona men to com oin consciente. Não foi por mero acaso que na-tigamente utilizavam-se sacerdotisas (como Si-

bila, na Grécia) para sondar a vontade divina eestabelecer comunicação com os deuses.

Um bom exemplo da anima como umafigura interior da psique masculina éencontrado nos feiticeiros e profetas (xamãs) dosesquimós e de outras tribos árticas. Algunschegam mesmo a usar roupas femininas, ouseios desenhados nas roupas, de modo aevidenciar o seu interior feminino, que lhes vaipermiti r entrar em contato com "o país dosespíritos" (isto é, com o que chamamosinconsciente).

Cita-se o caso de um jovem que estavasendo iniciado por um velho xamã e que foi porele enterrado em um buraco na neve. Caiu numprofundo estado de sonolência e exaustão. Em-quanto estava nesta espécie de coma viu, de re -pente, uma mulher que emitia luz. Ela ensinou -lhe tudo o que precisava saber e, mais tarde, co-mo seu espírito protetor, ajudou-o a exercitar suadifícil profissão, pondo-o em comunicação com as

A anima (o elemento feminino dapsique masculina) é muitas vezespersonificada por uma feiticeira oupor uma sacerdotisa — mulheresligadas às "forças das trevas" e ao"mundo dos espíritos" (oinconsciente). Á esquerda, umafeiticeira cercada de diabretes edemônios (numa gravura do séculoXVII). Abaixo, um xamã de uma triboda Sibéria, vestido de mulher —porque acredita-se que as mulheressão mais capazes de entrar emcontato com os espíritos.

Acima, uma mulher espírita oumédium (no filme de 1951, TheMediun,baseado em uma ópera deGian Cario Menotti). Atualmente, amaioria dos médiuns é constituídademulheres; ainda se crê serem elasmais receptivas ao irracional do queos homens.

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forças do além. Esta é uma expe riência quemostra a anima como personif icação doinconsciente masculino.

Nas suas manifestações individuais o caráterda anima de um homem é, em geral ,determinado por sua mãe. Se o homem sente quea mãe teve sobre ele uma influência negativa,sua anima vai expressar-se, muitas vezes, demaneira irritada, depressiva, incerta, insegura esusceptível. (No entanto, se ele for capaz dedominar estas investidas de cunho negativo,elas poderão, ao contrário, servir para fortalecer-lhe a masculinidade .) No inter ior da alma destetipo de homem a figura negativa da mãe-animarepet irá, incessantemente, o mesmo tema: "Nãosou nada. Nada tem sentido. Com todas asoutras é diferente, mas comigo.. . Nada me dáprazer." Estes humores da anima provocam umaespécie de apatia, um medo a doenças, àimpotência ou a acidentes. A vida adquire umaspecto tristonho e opressivo. Este climapsicológico sombrio pode, mesmo, levar umhomem ao suicídio, e a anima torna-se então odemônio da morte. É neste papel que ela foiapresentada no filme Orphée, de Cocteau.

Os franceses chamam a esta personificaçãoda anima "femme fatale'' . (Uma versão maisamena deste tipo sombrio de anima é a Rainhada Noite, da Flauta Mágica de Mozart.)

As Sereias da Grécia ou as Lorelei dosalemães também personif icam este aspectoperigoso da anima, simbolizando uma ilusãodestruidora . O seguinte conto siberiano ilustrabem o compor tamento da anima malévola:

Um dia um caçador solitário viu uma lindamulher surgir da densa floresta, do outro lado do rio.Elaacena para ele e canta:

"Oh, vem, solitário caçador no silêncio docrepúsculo,

Vem, vem!Sinto tua falta, sinto tua falta!Agora, vou te abraçar, abraçar!Vem, vem! Meu ninho está próximo, meu ninho

estápróximo.Vem, caçador solitário, vem agora no silêncio do

crepúsculo."O caçador se despe e atravessa o rio a nado, mas

de repente a mulher transforma-se numa coruja efoge, rindo-se e caçoando dele. Ao nadar de voltapara buscar suas roupas, ele se afoga no rio gelado.

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A anima (como a sombra) tem doisaspectos: o benévolo e o maléfico(ou negativo). À esquerda, uma cenade Orphée (filme de Cocteau sobre omito de Orfeu): a mulher pode serconsiderada uma anima letal, poislevou Orfeu (carregado por figurassombrias e infernais) á perdição.Também malévolas são as Lorelei domito germânico (abaixo, em umdesenho do século XIX), espíritosdas águas cujo canto conduz oshomens á morte. Abaixo, à direita,um paralelo deste tipo de anima emum mito eslavo: a Rusalka. Julgava-se que eram espíritos de jovensafogadas que enfeitiçavam oshomens e afundavam-nos nas águas.

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Neste conto, a anima simboliza um sonhoirreal de amor, de felicidade, e de calor materno(o ninho) — um sonho que afasta o homem darealidade. O caçador se afoga porque perseguiuum desejo fantasioso, que não se podia realizar.

Outra maneira pela qual a anima semanifesta de forma negativa na personalidadede um homem é revelada no tipo de observaçãorancorosa, venenosa e efeminada que eleemprega para desvalorizar todas as coisas.Observações deste tipo sempre contêm umamesquinha distorção da verdade e sãoengenhosamente destruidoras. Existem lendaspelo mundo afora em que surge "uma donzelavenenosa" (como dizem no Oriente). E sempreuma bela criatura que traz veneno ou armasescondidas no corpo, com as quais mata seusamantes na primeira noite de amor. Quandoassim se manifesta, a anima é tão fria eindiferente como certos aspectos violentos daprópria natureza, e na Europa até hoje isto setraduz, muitas vezes, por crença em feiticeiras.

Se, por outro lado, a experiência de um ho-mem com sua mãe tiver sido positiva, sua animatambém poderá ser afetada. Mas de um mododife rente, tornando-o efeminado ou explorado

por mulheres, incapaz portanto de fazer face àsdificuldades da vida. Uma anima deste tipopode fazer do homem um sentimental, ou deixá -lo tão melindroso como uma solteirona, ou tãosensível como aquela princesa de um conto defadas que, mesmo deitada sobre 30 colchões,ainda sentia um pequeno grão de ervilha. Umamanifestação ainda mais sutil da anima negativaaparece , em alguns contos de fada, sob a formada princesa que pede a seus pretendentes querespondam a uma série de enigmas ou que seescondam exatamente à sua frente. Oscandidatos morrem se não conseguem encontraras respostas ou se ela descobre onde seesconderam, e a princesa ganha sempre. A animasob este aspecto envolve os homens num jogointelectual destruidor . Podemos notar o efeitodestes seus estratagemas em todos os diálogosneuróticos e pseudo-intelectuais que impedem ocontato direto do homem com a vida e suasverdadeiras definições. Ele pensa tanto a respeitoda vida que não consegue vivê-la e perde toda aespontaneidade e faculdade de comunicação.

A manifestação mais freqüente da anima éa que toma a forma de uma fantasia erótica. Os

Acima, quatro cenas do filme alemãoO Anjo Azul, que conta a paixão deum puritano professor por umacantora de cabaré. A moça usa osseus encantos para desacreditar oprofessor, fazendo-o aparecer vestidode palhaço no seu espetáculo decabaré. À direita, um desenho deSalomé com a cabeça de São JoãoBatista, a quem ela matara paraprovar o seu poder sobre o reiHerodes.

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Acima, um quadro do artistaquatrocentista italiano Stefano diGiovanni, apresentando Stº Antôniotentado por uma atraente jovem.Suas asas de morcego revelam-lhe anatureza demoníaca — outraencarnação da figura letal da anima.

Acima, á direita, cartaz de umcinema da Inglaterra anunciando ofilme francês Eva (1962). 0 filmeconta as aventuras de uma femmefatale (representada por JeanneMoreau)— expressão muito usada,para designar as mulheres"perigosas", cujo tipo derelacionamento com o sexo opostoexemplifica claramente a naturezanegativa da anima.

Segue-se uma descrição (tirada docartaz acima) do personagem centraldo filme (descrição melodramática,mas que serve a muitas daspersonificações da anima negativa):"Misteriosa — provocadora —atraente — caprichosa — masdentro dela, sempre a arder, o fogoviolento que destrói os homens."

homens podem ser levados a alimentar estasfantasias no cinema, nos shows de strip-tease,ou nas revistas e livros pornográficos. É umaspecto primitivo e grosseiro da anima, mas quesó se torna compulsivo quando o homem nãocultiva suficientemente suas relações afetivas —quando a sua atitude para com a vida mantém-seinfanti l.

Todos estes aspectos da anima apresentamas mesmas tendências que observamos nasombra, isto é, podem ser projetados de maneiraa parecerem qualidades pertencentes a umadeterminada mulher. É a presença da animaque faz um homem apaixonar-se subitamente,ao avistar pela primeira vez uma mulher,sentindo de imediato que é "ela". Neste caso,sente -se como se já a conhecesse a vida inteira,prendendo-se a ela de tal maneira que parece aosoutros ter perdido o juízo. Mulheres cujo aspectolembra um pouco a figura de "fada" atraemespec ialmente estas projeções da anima porqueos homens consegue m conferir qualidades semconta a criaturas fascinantemente nebul osas,em torno de quem podem tecer as mais variadasfantasias.

A projeção da anima desta forma arrebata-da e repentina, como ocorre num caso de amor,pode afetar seriamente um casamento, levandoao conhecido "tr iângulo" e todas as dif iculda-

des que o acompanham. Só existe solução paraeste drama quando se reconhece a anima comoum poder interior . Em tudo isto o objetivosecreto do inconsciente ao provocar toda estacomplicação é forçar um homem a desenvolvere a amadurecer o seu próprio ser, integrandomelhor a sua personalidade inconsciente etrazendo -a à realidade da sua vida.

Mas já falamos bastante a respeito do ladonega tivo da anima. Há também igua l númerode importantes aspectos positivos. A anima é,por exemplo, responsável pela escolha da esposacerta. Outra função sua igualmente relevante:quando o espírito lógico do homem se mostraincapaz de discernir os fatos escondidos em seuinconsciente, a anima ajuda-o a identificá-los.Mais vital ainda é o papel que representasintonizando a mente masculina com os seusvalores interiores positivos, abrindo assimcaminho a uma penetração interior maisprofunda. É como se um "rádio" inter no fossesin ton izado em uma onda que excluísse asinterferências inoportunas e captasse a voz doGrande Homem. Estabelecendo esta recepção"radiofônica" interior, a anima assume umpapel de guia, ou de mediador, entre o mundointerior e o self. É assim que ela se revela noexemplo que descrevemos ante-

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A importância excessiva que ohomem consagra ao intelectualismopode ser devida a uma animanegativa —muitas vezesrepresentada nas lendas e mitos porum personagem feminino propondoenigmas, que os homens devemresolver sob pena de perderem a vida.Acima, um quadro francês do séculoXIX mostra Édipo decifrando oenigma da Esfinge.

À esquerda, representação tradicionalda anima demoníaca como uma feiafeiticeira — gravura alemã do séculoXVI.

A anima aparece de forma grosseiraeinfantil nas fantasias eróticasmasculinas— a que muitos homensse entregam através da pornografia.Abaixo, cenas de um show de umcabaré de strip-tease, na Inglaterra.

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No filme japonês Ugetsu Monogatari(1953), um homem deixa-se seduzirpelo fantasma de uma princesa(acima) - exemplo da projeção daanima em "mulheres-fadas",produzindo uma relação fantasiosade caráter destruidor.

Em Madame Bovary, o escritorfrancês Flaubert descreve a "loucurado amor" provocada por umaprojeção da anima: A heroína, "peladiversidade do seu amor, ora místico,ora jovial, loquaz, taciturno,arrebatado ou indolente, evocava nelemil desejos despertando-lhe osinstintos e as reminiscências. Era aamorosa de todos os romances, aheroína de todos os dramas, a vagamusade todos os volumes de poesia.Ele encontrava em seus ombros obrilho do âmbar que tem a odaliscaao banhar-se; possuía o longo talhedas castelãs feudais; parecia-setambém com a "pálida dama deBarcelona", mas era,acima de tudo,um anjo." A esquerda, Emma Bovary(no filme de 1949) com o marido (áesquerda) e o amante.

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riormente, da iniciação dos xamãs; é como surgeno papel da Beatriz, do Paraíso de Dante, etambém no da deusa Ísis, ao aparecer em sonhosa Apuleius, o famoso autor de O Asno de Ouro,iniciando-o em uma forma de vida mais elevadae espiritual.

O sonho de um psicoterapeuta de 45 anospode ajudar-nos a compreender o papel de guiainterior representado pela anima. Ao deitar-se,na noite anterior à que teve este sonho, pensouconsigo mesmo o quanto lhe era difícil suportara vida sozinho, sem o amparo de uma fé. Pôs-sea invejar aqueles que contam com a solicitudematernal de uma organização comunitária (foracriado na religião protestante, mas já não tinhaqualquer filiação religiosa) . E teve o seguintesonho:

Encontro-me na nave de uma velha igreja, cheiade gente. Sento-me, com minha mãe e minhamulher, no final da nave, no que me parecem serlugaresextras.

Devo celebrar a missa como um padre e tenhoum grande missal em minhas mãos, ou talvez umlivro de orações ou uma antologia de versos. O livronão me é familiar e não consigo encontrar o textocerto. Estou muito agitado porque devo começar logoe, aumentando minha aflição, minha mãe e minhamulher me perturbam tagarelando sobre coisasinsignificantes. O órgão pára de tocar e todos esperampor mim; levanto-me então, resolutamente, e peço auma das freiras ajoelhada atrás que me passe o seulivro de missa indicando-me a leitura certa — o queela faz cortesmente. Como se fosse uma sacristã, estareligiosa me precede ao altar, que fica nalgum lugarpordetrásde mim, e à esquerda,como se chegássemosde uma nave lateral. O livro de missa parece umagrande folha ilustrada, uma espécie de tábua, de trêspés de comprimento por um de largura, onde está otexto com gravuras antigas dispostas em colunas,umaao lado daoutra.

Primeiro a freira tem de ler uma parte daliturgia, e continuo sem encontrar o lugar certo dotexto. Ela me dissera ser o número 15, mas osnúmeros estãonebulosos e não consigo achá-lo.

Resolutamente, no entanto, volto-me para acongregação, e encontro agora o número 15 (openúltimo da tábua), apesar de ainda não saber seconseguirei decifrá-lo. Mas quero tentar, de qualquermaneira. Acordo."

Este sonho expressava, de maneira simbóli-ca, a resposta do inconsciente aos pensamentosque o sonhador tivera na véspera. Em substân -cia, dizia -lhe: "Você mesmo deve tornar-se o

Os homens projetam a anima emobjetos como em mulheres. Porexemplo, uma embarcação é semprechamada de "ela": acima, a figura deproa do velho clíper inglês CuttySark. 0 capitão de um navio (palavrasempre feminina em inglês — ship)é, simbolicamente, seu "marido", oque talvez explique por que (deacordo com a tradição) deve afundarcom a embarcação quando "ela"naufraga.

O automóvel é, também, outraespécie de propriedadehabitualmente feminizada - isto é,que se pode tornar o foco deprojeção da anima de muitoshomens. São acariciados e mimados(abaixo) como a mais querida dasamantes.

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padre da sua igreja interior — a igreja da suaalma." Assi m, o sonh o most ra ao sonhadorque ele na verdade, tem o amparo de umaorganização ; está dentro de uma igreja — nãouma igreja edificada no mundo exterior , masuma que existe dentro da sua própria alma.

Os fiéis (todas as suas qualidades psíquicas)querem que ele exerça as funções de padre e quecelebre a missa. O sonho não faz alusão à missareal, pois o seu missal é diferente do verdadeiro.Parece que a idéia da missa foi usada comosímbolo e, portanto, representa um atosacr ificial em que está presente uma divindadecom quem o homem se pode comunicar . Estasolução simbólica, decerto, não é válida de modogeral, mas relaciona -se particularmente com apessoa que teve o sonho. É uma solução típicapara um protestante, já que o católico praticantegeralmente descobre a sua anima sob a formada própria Igreja, enquanto as imagens sacrassão, para ele, símbolos do seu inconsciente.

Nosso sonhador não possuía estaexperiência eclesiást ica e foi por isto que tevede tomar

Duas etapas do desenvolvimento daanima: em primeiro lugar, a mulherprimitiva (acima, num quadro deGauguin); em segundo, a belezaromântica, no retrato idealizado (áesquerda) de uma jovem italiana daRenascença, representando Cleópatra.Esta segunda fase tem a materializaçãoclássica em Helena de Tróia (abaixo, comParis),

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um rumo interior. Além disso, o sonho disse-lhe oque tinha a fazer: "Sua fixação materna e suaextroversão [representada pela mulher , que éuma pessoa extrovertida] perturbam-no etornam-no inseguro, e acrescidas a uma conversasem nenhum sentido impedem que você celebre asua missa interior. Mas se você acompanhar afreira a (anima introvertida) ela o guiará comoacólito e como padre. Ela tem um estranho missalcomposto de 16 (quatro vezes quatro) velhasgravuras. Sua missa consiste na contemplaçãodestas imagens psíquicas que a sua animareligiosa lhe revela." Em outras palavras, se osonhador conseguir vencer a insegurança interiorcausada pelo complexo materno, descobrirá que atarefa que lhe cabe na vida traz a natureza e apropriedade de um serviço religioso, e que semeditar sobre o significado simbólico dasimagens de sua alma, elas hão de conduzi-lo auma realização plena.

Neste sonho, a anima aparece na sua funçãopositiva — isto é, como mediadora entre o ego e ose/f . A configuração de quatro vezes quatro dasgravuras revela que a celebração desta missainterior é realizada a serviço da totalidade. Comodemons trou Jung , o núcleo da psique (o self)expressa-se, normalmente, sob alguma forma deestrutura quaternária. O número quatro estásempre ligado a anima porque , segundo Jung,existem quatro estágios no seu desenvolvimento .O primeiro está bem sim bolizado na figura deEva, que representa o relacionamento puramenteinstintivo e biológico; o segundo pode serrepresentado pela Helena de Fausto: elapersonifica um nível romântico e estético que, noentanto, é também caracter izado por elementossexuais. O terceiro estági o poderia serexemplificado pela Virgem Maria — uma figuraque eleva o amor (eros) à grandeza da devoçãoespiritual. O quarto estágio é simbolizado pelaSapiência, a sabedoria que transcende até mesmoa pureza e a santidade, como a Sulamita dosCânticos de Salomão. (No desenvolvimentopsíquico do homem moderno este estágioraramente é alcançado. Talvez seja a figura daMona Lisa a que mais se aproxima deste tipo deanima.)

No momento é sufic iente notarmos que oconceito de quaternidade ocorre com freqüênciaem certos tipos de material simbólico. Seusaspectos essenciais serão discutidos mais adiante.

Mas qual a signif icação, em termos práti-cos, do papel da anima como guia para o mundo

Acima, o terceiro estágio da anima é personificado pela VirgemMaria (num quadro de Van Eyck). 0 vermelho de sua roupa é acor simbólica do sentimento (ou eros), mas neste estágio erosestá espiritualizado.Abaixo, dois exemplos do quarto estágio: a deusa grega dasabedoria, Atenéia (à esquerda), e a Mona Lisa.

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interior? Esta função positiva ocorre quando ohomem leva a sério os sentimentos, os humores,as expectativas e as fantasias enviadas por suaanima e quando ele os fixa de alguma forma,por exemplo na literatura, pintura, escultura,música ou dança. Quando trabalha calma edemoradamente todas estas sugestões, outrosmateriais ainda mais profundos surgem do seuinconsciente, entrando em conexão com omaterial primitivo. Depois que uma fantasiafixou-se de alguma forma específica, ela deve serexaminada tan to éti ca como int ele ctu alment e,em uma avaliação sensível e calculada. E énecessário considerá-la como absolutamentereal, sem qualquer dúvida de que seja "apenasuma fantasia". Se assim for feito,devotadamente e por um longo período,gradualmente se irá tornando a única realidadeexistente podendo então expandir-se de maneiraplena na sua verdadeira forma.

Muitos exemplos literários mostram aanima como guia e mediadora do mundointer ior: a Hypnerotomachia, de FrancescoColonna, Ela, de Rider Haggard, ou o "EternoFeminino" do Fausto de Goethe. Num textomístico medieval a anima explica sua próprianatureza da seguinte maneira:

Sou flor dos campos e o lírio dos vales. Sou amãe do terno amor, do medo, do conhecimento e dasagrada esperança... Sou a mediadora dos elementos,fazendo com que um entre em comunhão com ooutro; o que está quente torno frio e o que está frio,quente; o que está seco faço úmido, e vice-versa; oque está rijo eu amacio... Sou a lei na boca do padre,a palavra do profeta, e o conselho do sábio. Mato edouvida, e ninguém pode escapar às minhasmãos.

Na Idade Média houve uma perceptíveldiferenciação espiritual nos assuntos religiosos,poét icos e em outras matér ias culturais ; e omundo fantasioso do inconsciente foireconhecido mais nitidamente do que antes.Durante este período, o culto cavalheiresco àdama significava uma tenta tiva para diferençaro lado feminino da natureza masculina narelação do homem com a mulher(exter iormente) e em relação ao seu própriomundo inter ior.

A dama, a cujo serviço o cavalheiro seentregava e por quem praticava os seus feitosheróicos, era, naturalmente, uma personificaçãoda anima. O nome da portadora do Santo Graal,na versão da lenda de Wolfram von Eschenbach,é especialmente significativo: Conduir-amour(condutor, guia do amor) . A dama ensinava o

À esquerda, gravura do século XVIIdominada pela figura simbólica daanima como mediadora entre estemundo (o macaco representandoprovavelmente a natureza instintivado homem) e o próximo (a mão deDeus se estendendo de entre asnuvens). A figura da anima pareceevocar a mulher do Apocalipse, quetambém usava uma coroa com dozeestrelas, as antigas deusas da lua aSapiência do Velho Testamento(quarto estágio da anima, pág. 185),e a deusa egípcia Ísis (que tambémtinha uma cabeleira esvoaçante, umameia-lua no ventre e um dos péscolocado na terra e outro na água).

Á direita, a anima como mediadora(ou guia) em um desenho de WilliamBlake. É uma ilustração de uma cenado "Purgatório" da Divina Comédiade Dante e mostra Beatriz guiandoDante através de um caminhosimbólico, tortuoso e íngreme. Àextrema direita, em um antigo filmebaseado na novela de RiderHaggard, Ela, uma mulher misteriosaconduz alguns exploradoresmontanha acima.

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herói a dist inguir tanto os seus sent imentosquan to a sua cond uta para com as mulheres.Mais tarde, no entanto, este esforço individual epessoal para aperfeiçoar as relações com a animafoi abandonado quando o aspecto sublime dafigura feminina confundiu -se com a imagem daVirgem então objeto de devoção e louvorilimitados. Quando a anima — com os traços daVirgem — foi concebida como uma forçatotalmente positiva, seus aspectos negativosforam encontrar expressão na crença às feiticeiras.

Na China a figura equivalente à VirgemMaria é a deusa Kwan-Yin. Uma figura mais po-pular da anima chinesa é a "Dama da Lua'', queconcede o dom da poesia ou da música a seus fa-vori tos, a quem pode também tornar imortais.Na Índia o mesmo arquétipo é representado por

Uma conexão entre o algarismoquatro e a anima aparece acima noquadro do pintor suíço PeterBirkhäuser. Uma anima com quatroolhos surge numa visão opressiva eaterradora. Os quatro olhos têm umsignificado simbólico, análogo ao das16 gravuras do sonho relatado napág. 183: aludem à possibilidade quetem a anima de alcançar a totalidadeabsoluta.À direita, em um quadro do pintorcontemporâneo Slavko, vê-se oselfseparado da anima mas aindaintegrado à natureza. Poderíamoschamarão quadro "paisagem daalma": à esquerda senta-se umamulher nua, de pele escura — aanima. À direita vê-se um urso, istoé, a alma animal ou o instinto.Próximo á anima está uma árvoredupla, simbolizando o processo deindividuação em que os nossoselementos opostos se unem. Aofundo vê-se, inicialmente, umageleira, mas olhando-se maisatentamente distingue-se também oque poderia ser um rosto. Este rosto(de onde flui o fluxo da vida) é o self(ou ser). Tem quatro olhos e pareceum animal, porque vem da naturezainstintiva. (O quadro nos dá um bomexemplo de como um símboloinconsciente pode,inadvertidamente, encontrar seucaminho numa paisagemimaginária.)

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Shakti, Parvati, Rati e muitas outras. Entre osmaometanos vamos encontrá -lo em Fátima, afilha de Maomé.

O culto da anima como figura religiosa ofi -cialmente reconhecida traz o sério inconvenientede fazê-la perder seus aspectos individuais. Poroutro lado, se a considerarmos apenas um serpessoal há o perigo de, projetando-a no mundoexterior, só nele podermos encontrá-la. Estaúltima situação pode criar grandes problemas,já que neste caso ou o homem se torna vítima defantasias eróticas ou compuls ivamentedependente de uma mulher real.

Apenas a decisão dolorosa, masessencialmente simples, de levar a sério osnossos sentimentos e fant asia s pode , nesteestágio, evitar uma completa estagnação doprocesso de individuação, pois só assim ohomem há de descobrir o que significa estafigura como realidade interior. Neste processo aanima volta ao que era inicialmente — "amulh er no in te rior do homem'' transmitindo-lhe as mensagens vitais do se/f.

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A concepção da Europa medievalsobre o amor cortesão foiinfluenciada pela adoração á VirgemMaria: damas a quem cavaleirosjuravam amor eterno eramconsideradas virgens puras (de quemuma típica imagem medieval,lembrando as feições de umaboneca, é a escultura em madeira,acima, aproximadamente do ano1400). Em um escudo do século XV,à extrema esquerda, um cavaleiro seajoelha diante da sua dama, tendo amorte às costas. Esta imagemidealizada da mulher produziu umaoutra oposta: a crença nas feiticeiras. esquerda, um quadro do séculoXIX— sabá de feiticeiras.Quando a anima é projetada em umapersonificação "oficial", ela tende adesdobrar-se, como no caso daVirgem Maria e da feiticeira. Áesquerda, outro exemplo dadualidade da anima (gravura doséculo XV): a Igreja (á direita, naidentificação com Maria) e aSinagoga (identificada com Eva,pecadora).

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"Animus'': o elemento masculino interior

A personif icação masculina doinconsciente na mulher — o animus —apresenta, tal como a anima no homem,aspectos positivos e negativos . Mas o animusnão costuma se manifestar sob a forma defantasias ou inclinações eróticas; aparece maiscomumente como uma convicção secreta"sagrada". Quando uma mulher anunc ia talconvicção com voz forte, masculina e insistente,ou a impõe às outras pessoas por meio de cenasviolentas reconhece-se, facilmente, a suamasculinidade encoberta. No entanto, mesmoem uma mulher que exteriormente se revelemuito feminina o animus pode também ter umaforça igualmente firme e inexorável. De repentepodemos nos deparar com algo de obst inado,frio e totalmente inacessível em uma mulher.

Um dos temas favoritos do animus, e queeste tipo de mulher remói sem cessar é: "Aúnica coisa no mundo que eu desejo é amor —e 'ele' não me ama"; ou "nesta situação existemapenas duas possibilidades e ambas sãoigualmente más" (o animus nunca aceitaexceções).

Difici lmente podemos contradizer uma opiniãodo animus porque em geral é uma opiniãocerta; no entanto, raramente enquadra-se numadeterminada situação individual. É uma opiniãoque parece razoável, mas que está fora depropósito.

Assim como o caráter da anima masculina émoldado pela mãe, o animus é basicamentein fluenciado pelo pai da mulher. É o pai que dáao animus da filha convicçõesincontestavelmente "verdadeiras" , irretrucáveise de um colorido todo especial — convicçõesque nunca têm nada a ver com a pessoa real queé aquela mulher. Por isso o animus, tal como aanima, pode, algumas vezes, tor nar-se odemôni o da mor te. Por exemplo, em um contode fadas cigano uma mulher solitária acolhe umencantador estranho, apesar de ter tido umsonho que lhe anunciava a chegada do rei damorte. Depois de estarem jun tos por algumtempo ela ins iste para que ele lhe diga quem é.A princípio o jovem recusa dizendo-lhe que elamorrerá se ele assim o fizer . Ela

Acima, Joana d'Arc (representadapor Ingrid Bergman no filme de 1948)cujo animus — o lado masculino dapsique feminina — toma a forma deuma "convicção sagrada". À direita,duas imagens do animus negativo:um quadro do século XVI onde umamulher dança com a morte e (de ummanuscritode1500,aproximadamente) Hades ePerséfona, que ele arrebatoupara oinferno.

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Heathcliff, o sinistro protagonista deWuthering Heights (O Morro dosVentos Uivantes, de Emily Brontè,1847), é, em parte, uma figuranegativa e demoníaca do animus —provavelmente uma manifestação dopróprio animus da autora. Heathcliff(interpretado por Laurence Olivier,no filme de 1939) defronta-se comEmily (num retrato feito por seuirmão). Ao fundo, os MorrosUivantes, tal como ainda existemhoje.

Dois exemplos de figuras perigosasdo animus: á esquerda umailustração (do artista francês GustaveDoré, século XIX) do conto do BarbaAzul, que está avisando sua mulherpara que não abra uma determinadaporta (evidentemente ela odesobedece e encontra os corposdas primeiras mulheres de BarbaAzul. É descoberta e vai fazercompanhia às suas predecessoras).À direita, num quadro do século XIX,o salteador de estradas Claude Duvalque, certa vez, ao roubar umaviajante acabou por restituir-lhe tudocom a condição de que ela dançassecom ele á beira da estrada.

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insiste, no entanto, e de repente ele lhe confessaque é a própria morte. Naquele mesmo instantea mulher morre de medo.

Do ponto de vista mitológico, o beloforasteiro é, provavelmente , a imagem pagã dopai ou de um deus, que aparece aqui como o reidos mortos (lembrando o rapto de Perséfona porHades). Mas psicologicamente ele representauma forma particular do animus, que afasta asmulheres de qualquer relacionamento humanoe, sobretudo, de qualquer contato com oshomens. Personifica uma espécie de "casulo"dos pensamentos oníricos, dos desejos ejulgamentos que definem as situações como elas"deveriam ser", afastando a mulher de toda arealidade da vida.

O animus negativo não aparece apenascomo o demônio da morte. Nos mitos e contosde fadas faz o papel de assaltante ou o deassassino. Barba Azul, que mata em segredotodas as suas mulheres, é um exemplo destetipo de animus. Sob esta forma, o animuspersonifica todas as reflexões semiconscientes,frias e destruidoras que invadem uma mulherdurante as horas da madrugada, especialmentequando ela deixou de realizar alguma obrigaçãoditada pelos seus sentimentos. É então que ela sepõe a pensar nas heranças de família e outros

problemas do mesmo tipo — tecendo umaespécie de rede de pensamentos calculistas, demalícia e intriga, que a leva até mesmo a desejara morte de outras pessoas ("Quando um de nósmorre r, vou mudar -me para a Riviera'', disseuma mulher ao marido quando visitavam a costamediterrânea — um pensamento que se tornourelat ivamente inocente porque ela o exprimiu!) .

Acalentando secretamente estas atitudesdestruidoras , uma mulher pode levar o maridoou a mãe pode levar os filhos a adoecerem, seacidentarem ou até mesmo morrerem. Ou poderesolver impedir o casamento dos filhos — umaforma de aberração profundamente oculta e queraramente vem à superfície da consciênciamaterna (uma velha e ingênua senhora disse -me uma vez enquanto me mostrava o retrato dofilho, que morrera afogado aos 27 anos: "Prefiroassim; é melhor do que perdê-lo para outramul her ") .

Uma estranha passividade, uma paralisaçãode todos os sentimentos ou uma profundainsegurança que pode levar a uma sensação denulidade e de vazio é, às vezes, o resultado deuma opinião inconsciente do animus. No maisintimo de uma mulher murmura o animus:"Você não tem salvação. Para que lutar? Nãovale a pe-

O animus é, muitas vezes,personificado como um grupo dehomens. O animus negativo podesurgir encarnado num perigosobando de criminosos, como osprovocadores de naufrágios (acima,num quadro italiano do século XVIII)que, por meio das luzes de fogos,atraíam os navios de encontro àsrochas, matavam os sobreviventes epilhavam os destroços.

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Uma personificação freqüente doanimus negativo nos sonhos dasmulheres é a do bando de bandidosromânticos, mas perigosos. Acima,um grupo ameaçador de bandidosno filme brasileiro O Cangaceiro(1953), onde uma professora, mulherde espírito aventureiro, apaixona-sepelo chefe do grupo.

Abaixo, uma ilustração de Fuseli dosSonhos de uma Noite de Verão, deShakespeare. Um sortilégio faz arainha-fada apaixonar-se por umcamponês, a quem um outrosortilégio dera uma cabeça de asno.É uma variação cômica do tema emque o amor de uma jovem podelibertar o homem de um feitiço.

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na realizar nada. Não adianta querer fazeralguma coisa. A vida nunca há de mudar paramelhor ."

Infelizmente, cada vez que uma destaspersonificações do inconsciente se apodera denossa mente parece que somos nós mesmos quecriamos aquele tipo de pensamentos esentimentos. O ego se identifica com eles a talponto que se torna incapaz de destacá-los e dereconhecê-los exatamente como são. Fica -se defato "possuído" pelo personagem doinconsciente. Só quando cessa este estado dedependência é que se verifica, horrorizado, quese fez e disse coisas diametralmente opos tas aoque, na verdade, se pensa e sente — isto é, quese foi vítima de um fator de alienação psíquica.

Tal como a anima, o animus não consisteapenas de qualidades negativas como abrutalidade, a indiferença, a tendência àconversa vazia, às idéias silenciosas, obstinadase más. Também apresenta um lado muitoposit ivo e valioso ; também pode lançar umaponte para o self através da atividade criadora.O seguinte sonho de uma mulher de 45 anosajuda-nos a ilust rar esta afirmação:

Duas figuras mascaradas sobem por um balcão epenetram na casa. Estão envoltas em casacos comcapuzes e parecem querer perseguir-me e a minhairmã. Ela se esconde debaixo da cama, mas as duasfiguras puxam-na com uma vassoura e torturam-na.Chega a minha vez. A figura que parece ser o chefeme empurra de encontro à parede fazendo gestosmágicos diante do meu rosto. Enquanto isto, asegunda faz um desenho qualquer na parede, equando olho digo-lhe, para mostrar-me simpática:"Ah! Mas que bem desenhado!" De repente quemme está torturando apresenta-se com o rosto nobre deum artista e diz, orgulhosamente: "É mesmo", ecomeça a limparosóculos.

Acima, à esquerda, o cantor FranzGrass no papel principal da ópera deWagner O Navio-Fantasma, baseadana história de um capitão condenadoa navegar em um navio-fantasma atéque o amor de uma mulher quebre oseu sortilégio.Em muitos mitos, o amante é uma figuramisteriosa a quem a mulher nunca deveprocurar ver. Â esquerda, uma gravurado século XVIII exemplifica um velhomito da Grécia: a jovem Psique, amadapor Eros, mas proibida de vê-lo.Finalmente ela acaba por desobedecê-loe ele a deixa; só depois de longa procurae muito sofrimento ela conseguerecuperar o seuamor.

O aspecto sadis ta destas duas figuras erabem familiar à minha paciente, que sofria desérios ataques de ansiedade durante os quaisficava obcecada pela idéia de que as pessoas aquem amava encontravam-se em perigo ouestavam mortas. Mas o fato de o animus estarrepresentado por um personagem duplo sugereque os ladrões personificam um fator psíquicotambém de efeito duplo, e que poderia seralguma coisa bem diferente destes pensamentosatormentadores. A irmã, que foge dos homens, éapanhada e torturada. Na realidade, esta irmãmorrera há tempos, muito jovem. Fora muitobem dotada do ponto de vista artístico, masaproveitara pouco o seu talento. A seguir, osonho revela que os ladrões mascarados sãoartistas disfarçados e que se a sonhadorareconhecer os seus dons (que são os dela própria)eles desistirão das suas intenções malévolas.

Qual o sentido profundo do sonho? É queos espasmos de ansiedade denunciam,realmente, um perigo mortal e genuíno, mastambém uma possibilidade de atividade criadorapara aquela mulher. Tal como sua irmã, elatinha bastante talento para a pintura , mas estavaem dúvida se seria uma ocupação realmenteválida para ela. Agora o sonho vem dizer-lhe demaneira enérgica que deve aproveitar estetalento. Se obedecer, o animus destruidor que aatormenta será transformado numa atividadecriadora e rica de sentido.

O animus aparece muitas vezes, como nestesonho, simbol izado por um grupo de homens;neste caso, o inconsciente indica que o animusrepresenta um elemento mais coletivo quepessoal. Devido a este caráter coletivo, asmulheres referem-se habitualmente (quando oanimus se expre ssa por seu intermé dio) a"nós" ou a "eles" ou a "todos" e, em taiscircunstâncias , empregam na sua conversapalavras como "sempre", "devíamos","preci samos" etc .

Um grande número de mitos e de contos defada conta a história de um príncipetransformado por feitiçaria em animal oumonstro, que é redimido pelo amor de umajovem — processo que simboliza o processo deintegração do animus na consciência. (O Dr.Henderson comentou sobre o significado destemotivo de A Bela e a Fera no capítuloprecedente.) Muitas vezes a heroína não tempermissão para fazer qualquer pergunta arespeito do seu misterioso e desconhecidomarido e amante ; ou então só o enc ontra noescuro e nunca pode olhar -lhe o rosto.

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Está implícito que amando-o e conf iando nelecegamente, ela poderá libertá-lo. Mas isto nãoacontece nunca. Ela sempre quebra a promessafeita e só vai encontrar novamente o seu amadodepois de longa e penosa busca e de muitosofrimento .

A analogia deste tipo de situaçãomitológica com a vida comum está em que aatenção consciente que uma mulher tem de daraos problemas do seu animus toma muitotempo e envolve bastante sofrimento. Mas se elase der conta da natureza deste animus e dainfluência que ele exerce sobre a sua pessoa, e seenfrentar esta realidade em lugar de se deixarpossuir por ela, o animus pode tornar-se umcompanheiro interior precioso que vaicontemplá-la com uma série de qualidadesmasculinas como a iniciativa, a coragem, aobjetividade e a sabedoria espiritual.

O animus, tal como a anima, apresentaquatro estágios de desenvolvimento: o primeiroé uma simples personificação da força física —por exemplo, um atlet a ou "homemmusculoso". No estágio seguinte, o animuspossui iniciativa e capacidade de planejamento;no terceiro torna -se "o verbo", aparecendomuitas vezes como professor ou clérigo;finalmente , na sua quarta manifestação oanimus é a encarnação do ''pensamento". Nestafase superior torna-se (como a anima) omediador de uma experiência religiosa atravésda qual a vida adquire novo sentido. Dá àmulher uma firmeza espir itual e um invisívelamparo interior, que compensam a sua branduraexterior . O animus, na sua forma mais altamentedesenvolvida, relaciona a mente feminina com aevolução espiritual da sua época, tornando-aassim mais receptiva a novas idéias criadoras doque o homem. É por este motivo que

Personificações dos quatro estágiosdo animus: primeiro o homem que éapenas força física — Tarzan, o heróida floresta (acima JohnnyWeismuller). Segundo estágio, ohomem "romântico" — o poetainglês do século XIX, Shelley(centro, à esquerda) ou o "homemde ação" — o norte-americanoErnest Hemingway, herói de guerra,caçador etc. Terceiro, o condutor do"verbo" — Lloyd George, o grandeorador político. Quarto, o sábio guiaque leva à verdade espiritual —tantas vezes representado porGandhi (á esquerda).

Acima, à direita, miniatura indiana deuma jovem contemplandoamorosamente o retrato de umhomem. Uma mulher que seapaixona por um retrato (ou por umator de cinema) está evidentementeprojetando o seu animus em umhomem. O ator Rodolfo Valentino (àdireita, em um filme de 1922) atraiu aprojeção do animus de milhares demulheres enquanto vivo — e mesmodepois de morto. Á extrema direita,parte da imensa quantidade de floresenviadas por mulheres de todo omundo em homenagem a Valentino,no seu enterro, em 1926.

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antigamente, em muitos países, cabia àsmulheres a tarefa de adivinhar o futuro ou avontade dos deuses. A audácia criadora do seuanimus posi tivo expressa, por vezes,pensamentos e idéias que estimulam os homensa novos empreendimentos.

O "homem interior" da psique femininapode provocar problemas semelhantes aosmencionados em relação à anima. O quecomplica bastante tudo isso é o fato de um doscônjuges, quando possuído pelo animus (oupela anima) , criar automaticamente tal clima deirritação em torno do outro que ele (ou ela)também acabam por ficar "possuídos''. Animuse anima tendem sempre a levar o diálogo ao seunível mais baixo, gerando uma desagradávelatmosfera de irascibilidade e emoção.

Como já assinalamos, o lado positivo doanimus pode personificar um espírito deiniciativa, coragem, honestidade e, na sua formamais elevada, de grande profundidadeespiri tual. Através do animus a mulher podetornar-se consciente dos processos básicos dedesenvolvimento da sua posição objetiva, tantocultural quanto pessoal, e encontrar, assim, o seucaminho para uma atitude intensamenteespir itual em relação à vida. Isto naturalmentepressupõe que seu animus já cessou de emitiropiniões absolutas. A mulher deve buscar acoragem e a largueza de espírito interior capazesde lhe permiti rem avaliar a inviolabilidade dassuas convicções. Só então estará capacitada aaceitar sugestões do seu inconsciente , sobretudoas que contradizem as opiniões do seu animus.Só então, repetimos, é que as manifestações doself hão de chegar a ela e fazê-la compreenderconscientemente o seu sentido.

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O "self'': símbolo da totalidade

Se um indivíduo lu tou séria e longa men tecom a sua anima ou o seu animus de maneira anão se deixar identificar parcialmente com eles,o inconsciente muda o seu caráter dominante eaparece numa nova forma simbólica,representa da pelo self, o núcleo mais profundoda psique. Nos sonhos da mulher este núcleo emgeral é personi ficado por uma figura femininasuperior — uma sacerdotisa, uma feiticeira, umamãe-terra, ou uma deusa da natureza ou doamor. No caso do homem, manifesta-se comoum iniciador masculino ou um guardião (o guru,dos hindus), um velho sábio, um espírito danatureza e assim por diante. Duas lendasfolclóricas ilustram o papel que podedesempenhar este tipo de personagem. Aprimeira é uma lenda austríaca:

Um rei ordenara a seus soldados que montassemguarda, à noite, ao corpo de uma princesa negra, quefora enfeitiçada. Todas as noites, à meia-noite,ela seerguia e matava um guarda. Finalmente, um soldadoque deveria estar de serviço àquela hora conseguiufugir, apavorado, para os bosques. Lá encontrou um"velho guitarrista que era Nosso Senhor empessoa". Este músico indica-lhe como se escondernuma igreja e o que fazer para não ser descobertopela princesa negra. Graças a esta ajuda divina osoldado consegue libertar a princesa do encantamentoe casa-se como ela.

Logicamente, o "velho guitarrista que eraNosso Senhor em pessoa" é, em termospsicológicos, uma personificação simbólica doself. Graças ao seu auxílio o ego evita a suadestruição e é capaz de vencer — e mesmo deliber tar — um aspecto altamente perigoso dasua anima.

Na psique da mulher, como já dissemos, oself adquire personificações femininas. Esteconto esquimó ilustra a nossa observação:

Uma jovem solitária, que sofreu uma decepçãoamorosa, encontra um mágico que viaja num barco.Ele é o "Espírito da Lua", aquele que deu à hu-manidade todos os animais e que também garanteboa sorte aos caçadores. Ele carrega a moça para o rei-nado dos céus. Uma ocasião em que a deixa sozinha,ela vai visitaruma pequena casaque ficaperto da sua

mansão. Ali encontra uma mulher minúscula, vestidacom "a membrana intestinal de uma foca barbuda",que previne a heroína para que se acautele contra oEspírito da Lua, dizendo-lhe que ele pretende matá-la. [Parece que este Espírito é uma espécie de BarbaAzul. Arranja-lhe uma longa corda pela qual ajovem poderá descer à Terra quando chegar a luanova, que é justamente o momento em que oEspírito da Lua pode ser enfraquecido pelamulherzinha. A jovem desce pela corda, mas aochegar à Terra não abre os olhos tão rapidamentequanto lhe fora recomendado por sua protetora. Poristo transforma-se numa aranha e nunca mais retornaà sua forma humana.

Como já havíamos observado, o músicodivino da primeira lenda é uma encarnação do"velho homem sábio", uma personificação típicado self. Pertence à mesma família do feiticeiroMerlin das lendas medievais, ou do deus gregoHermes. A mulherzinha, na sua estranhavestimenta de membrana, é uma figuraparalela, que simboliza o self da psiquefeminina. O velho músico salva o herói da açãodestruidora da anima e a mulherzinha protegea jovem do "Bar ba Azul " esquimó (que é oseu animus, sob a forma do Espírito da Lua).Neste caso, no entanto, as coisas funcionam mal— assunto a que voltarei mais adiante.

O self nem sempre toma a forma de umvelho sábio ou de uma criteriosa senhora. Estaspersonificações paradoxais são tentativas paraexprimir uma entidade que não estáinteiramente contida no tempo — algo que ésimultaneamente novo e velho. No sonho de umhomem de meia-idade vamos encontrar o selfcom traços de um jovem:

Vindo da rua, um jovem entra a cavalo em nossojardim (não havia arbustos nem cerca, como na vidareal, e o jardimera um espaço aberto, de livre acesso).Eu não sabia se ele o fizera deliberadamente ou se ocavalo o trouxera contraa suavontade.

Eu estava numa alameda, que leva ao meuestúdio, e assisti à chegada do jovem com grandeprazer. A figura do rapaz no seu belo cavalo meimpressionou profundamente.

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Personificações do self nos sonhosmasculinos tomam, muitas vezes, aforma de "velhos homens sábios". Áextrema esquerda, o mágico Merlin,das lendas do Rei Artur (de ummanuscrito inglês do século XIV). Aocentro, um guru (um sábio), de umapintura indiana do século XVIII. Âesquerda, um velho de asas, comooque apareceu em um dos sonhos dopróprio Dr. Jung, carregando váriaschaves: de acordo com o Dr. Jung,ele representava "umacompreensão superior"

O self aparece nos sonhosusualmente em momentos críticosda vida do sonhador — instantesdecisivos em que suas atitudesbásicas e todo o seu modo de vidaestão em processo de mutação. Aprópria mudança é, muitas vezes,simbolizada pelo ato de atravessarum curso d'água. Acima, umatravessia de rio, verdadeira, queacompanhou uma importantetransformação: George Washingtonatravessando o rio Delaware naRevolução Americana (quadro doséculo XIX). À esquerda, outrogrande acontecimento que envolveuuma travessia aquática: o primeiroataque contra as praias daNormandia no Dia D, junho de 1944.

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O self nem sempre é personificadopor uma figura superior "idosa". Áesquerda, representação de umsonho (por Peter Birkhäuser) noqual aparece como um maravilhosojovem. Enquanto o artista trabalhavaneste quadro, outras idéias eassociações surgiram no seuinconsciente. O objeto redondo,como um sol, que aparece por detrásdo jovem é um símbolo quádruploque caracteriza a integraçãopsicológica. Diante das mãos dorapaz flutua uma flor - como se lhebastasse erguer as mãos para quesurgissem flores mágicas. Ele énegro devido á sua origem noturna(isto é, inconsciente).

O cavalo era um animal pequeno, selvagem evigoroso, um verdadeiro símbolo de energia(parecia um javali) e tinha o pêlo espesso, eriçado ede cor cinza-prateado. O jovem passou por mim,entre o estúdio e a casa, saltou do cavalo e guiou-ocuidadosamente para que ele não pisasse nas belastulipas amarelas e alaranjadas. O canteiro foraplantadoe arrumado recentementepor minha mulher(nosonho).

O jovem significa o self e o seu poder derenovação, um élan vital criador, uma novaorientação espiri tual através da qual tudo setorna cheio de vida e de iniciativa.

Quando um homem segue as instruções doseu inconsciente pode receber e aplicar este domque permite, de repente, fazer da sua vida, atéentão desinteressante e apática, uma aventurainterior sem fim, repleta de possibilidadescriado ra s. Nu ma mulh er , es ta mesmape rsonificação do self pode surgir sob a formade uma jovem possuidora de donssobrenaturais. Vejamos como exemplo o sonhode uma mulher que se aproximava dos cinqüentaanos:

Eu estava diante de uma igreja e lavava a calçadacom água. Depois corri rua abaixo, no exatomomento da saída da escola de uns estudantesginasianos. Cheguei a um rio de águas paradas sobreo qual haviam colocado uma tábua ou um tronco deárvore; quando tentava transpô-lo um estudantetravesso pulou na tábua, que se quebrou, e quase caín'água. "Idiota!" gritei-lhe. No outro lado do rio,três meninazinhas estavam brincando e uma delas es-tendeu a mão para ajudar-me. Julguei que a sua pe-

quena mão não teria força bastante para puxar-me,mas quando a segurei ela conseguiu sem o menoresforço fazer-me atravessar a água e pular na margemoposta.

A sonhadora é uma pessoa religiosa, mas deacordo com seu sonho, não podia continuar pormais tempo na sua Igreja (a protestante); naverdade, parece ter perdido a possibi lidade deentrar na Igreja apesar de tentar conservar tãolimpo quanto possível o acesso a ela. Segundo osonho, ela deve atravessar um rio de águasestagnadas e isto indica que o seu fluxo de vidatornou-se mais lento devido ao problemareligioso não solucionado (atravessar um rio équase sempre uma imagem simból ica de umamudança de ati tudes fundamental) . Oestudante foi interpretado pela própriasonhadora como a personificação de umpensamento anterior — isto é, que deveriaatender às suas necessidades espirituaisfreqüentando um curso secundário.Obviamente o sonho não se preocupa muitocom este plano. Quando ela ousa atravessarsozinha o rio, uma personif icação do self (amenina), apesar do seu pequeno fís ico , ajuda-a com força sobrenatural.

Tomar a forma humana, de um jovem oude um velho é apenas um dos muitos modospelos quais o self pode aparecer em sonhos ouvisões. O fato de adquirir várias idades mostranão só que nos acompanha por toda a nossa vida,como também que subsiste além do fluxo davida de que temos consciência, de onde nasce anossa experiência de tempo.

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Muitas pessoas personificam o selfnos seus sonhos como figuraspúblicas proeminentes. Ospsicólogos jungianos descobriramque nos sonhos masculinosaparecem, com freqüência, asimagens do Dr. Albert Schweitzer (áextrema esquerda) e deSirWinston Churchill (à esquerda); nossonhos femininos, as figuras deEleanor Roosevelt (á direita) e daRainha Elizabeth II (extrema direita,num quadro no interior de umacasa africana).

O sel f não está inteiramente con tido nanossa experiência consciente de tempo (na nossadimensão espaço -tempo), mas é, no entanto ,simultaneamente onipresente. Além disso,apa rece com freqüência sob uma forma quesugere esta onipresença de uma maneira todaespecial ; isto é, manifesta-se como um serhumano gigantesco e simbólico que envolve econtém o cosmos inteiro. Quando esta imagemsurge nos sonhos de uma pessoa podemos teresperanças de uma solução criadora para o seuconflito porque agora o centro psíquico vital estáativado (isto é, todo o ser encontra -secondensado em uma só unidade ) de modo avencer as suas dificuldades.

Não é de espantar que esta figura doHomem Cósmico apareça em muitos mi tos eens inamentos religiosos. Geralmente é descritocomo uma força posi tiva e complacente.Apresenta-se como Adão, como o persaGayomart, ou o hindu Purusha. Pode serdescrito como o princípio básico do mundo. Osantigos chineses, por exemplo, acreditavam queantes da criação existira um homem divinocolossal, chamado P'an Ku, que dera forma àterra e ao céu. Ao chorar, fez nascer das suaslágrimas o rio Amarelo e o Yangtze; ao respirar ,pôs o vento a soprar, quando falou, ribombaramos trovões; e quando olhou à sua volta osrelâmpagos coruscaram. Se estava de bomhumor fazia bom tempo; se se entristecia o céuse enevoava. Ao morrer, do seu corpo tombadooriginaram-se as cinco montanhas sagradas daChina: na sua cabeça localizou-se a montanhaT'ai , a leste; do seu tronco ergueu-se amontanha Sung, ao centro; do braço direi tosurgiu a montanha Heng, ao nor te; doesque rdo, a mon tanha Hen g ao sul, e a seuspés a montanha Hua, a oeste. Seus olhostornaram-se o sol e a lua.

Já vimos que a estrutura simbólica que pa-rece referir-se ao processo de individuação tendea basear -se no motivo do algarismo quatro - co-

mo as quatro funções da consciência e os quatroestágios da anima ou do animus. Este motivoreaparece aqui na forma cósmica de P'an Ku. Sóem circuns tâncias específicas é que seapresentam, no material psíquico, outrascombinações numéricas. As manifestaçõesnaturais e livres do centro psíquico caracterizam-se pela quaternidade — isto é, por quatrodivisões, ou qualquer outra estrutura derivadada série numérica de 4, 8, 16 etc. O número 16tem uma função importante, já que é compostode quatro vezes quatro.

Na nossa civilização ocidental, idéiassemelhantes à do Homem Cósmico foramassociadas ao símbolo de Adão, o PrimeiroHomem. Segun do uma lenda judai ca, D eusao criar Adão apanhou, inicialmente, dos quatrocantos do mundo, pó vermelho, preto, branco eamarelo, e ass im Adão "se estend ia de umaponta à outra da terra". Quando se incl inava,sua cabeça ficava no leste e os pés no oeste. Deacordo com uma outra tradição judaica, ahumanidade inteira estava contida, desde o seuinício, em Adão, o que signif ica que nele seencontravam todas as almas por nascer. A almade Adão, portanto, era "como o pavio de umalamparina, composto de incontáveis fios". Nestesímbolo está claramente expressa a idéia de umaunidade total da existência humana, além dequalquer unidade individual.

Na antiga Pérsi a o mesmo PrimeiroHomem — chamado Gayomart — era descritocomo uma figura imensa, que irradiava luz.Quando morreu, todas as qualidades de metaisirromperam do seu corpo, e da sua alma surgiuo ouro. Seu sêmen caiu sobre a terra e delenasceu o primeiro casal humano, na forma dedois pés de ruibarbo. É espantoso que o chinêsP'an Ku também tenha sido representadocober to de folhas, como se fora uma planta.Talvez porque se concebesse a idéia doPrimeiro Homem como uma unidade viva quenas cer a soz inh a e que

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O Homem Cósmico — figuragigantesca e aconchegante, quepersonifica e encerra o universointeiro — é uma representaçãocomum do self nossonhos e nosmitos. A esquerda, a página de rostodo Leviathan, de autoria do filósofoseiscentista inglês Thomas Hobbes. Afigura imensa do Leviatã é compostade todos os povos do Commonwealth— a sociedade idealde Hobbes, naqual os homens escolhiam sua própriaautoridade central (ou "soberana", daía coroa, a espada e o cetro deLeviatã). Acima, a figura cósmica doantigo P'an Ku chinês — coberto defolhas para indicar que o HomemCósmico (ou Primeiro Homem)existiu, simplesmente, como umaplanta da natureza. Abaixo, em umafolha de iluminuras de um manuscritoindiano do século XVIII, a deusacósmica Leoa segurando o sol (afigura da leoa é formada de sereshumanos e animais).

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existia sem qualquer impulso animal ou vontadeprópria. Um grupo de pessoas que vive àsmargens do Tigre continua, ainda hoje, acultuar a figura de Adão como uma"superalma'' secreta ou um "espírito protetor"místico de toda a raça humana. Diz esta genteque ele surgiu de uma tamareira — outrarepetição do motivo vegetal.

No Oriente e em alguns círculos gnósticosdo Ocidente, as pessoas logo compreenderamque o Homem Cósmico seria antes uma imagempsíquica interior do que uma realidade concretaexterior . De acordo com a tradição hindu, porexemplo, ele é algo que vive dentro do serhumano, sendo a sua única parte imortal. EsteGrande Homem interior age como um redentor,retirando o indivíduo do mundo e de seussofrimentos para levá-lo de volta à sua esferaoriginal eterna . Mas só pode fazê-lo quand o ohomem o reconhece e ergue-se do seu sono parasegui-lo. Nos mitos simbólicos da velha Índiaesta figura é conhecida como Purusha, quesignifica simplesmente "homem" ou "pessoa".Purusha vive dentro do coração de cadaindivíduo, e ocupa, ao mesmo tempo, todo ocosmos.

De acordo com vários mitos, o HomemCósmico não significa apenas o começo da vida,mas também o seu alvo final, a razão de ser detoda a criação. ''Todo cereal significa trigo, todotesouro natural significa ouro, toda procriaçãosignifica Homem", diz o sábio medieval MeisterEckhart. E se analisarmos esta observação doponto de vista psicológico verificaremos que elaestá absolutamente certa. Toda realidadepsíquica interior de cada indivíduo é orientada,em última instância, em direção a este símboloarquetípico do self.

Em termos práticos, isto significa que aexistência do ser humano nunca serásatisfatoriamente explicada por meio deinstintos isolados ou de mecanismosintencionais como a fome, o poder, o sexo, asobrevivência, a perpetuação da espécie etc. Istoé, o objetivo principal do homem não é comer,beber etc , mas ser humano. Acima e alémdestes impulsos, nossa realidade psíquicainterior manifesta um mistério vivente que sópode ser expresso por um símbolo; e paraexprimi -lo o inconsciente muitas vezes escolhe apoderosa imagem do Homem Cósmico.

Na nossa civilização ocidental o HomemCósmico tem sido identificado com Cristo, e naoriental com Krishna ou com Buda. No VelhoTestamento esta mesma figura simbólica aparececomo "o Filho do Homem" e no misticismojudeu surge, mais tarde, como Adão Kadmon.Certos movimentos religiosos do fim daantiguidade chamaram-no simplesmenteAnthropos (a palavra grega que significahomem). Como todos os símbolos, esta imagemrevela um segredo impene trável — o sentidoextremo e desconhecido da existência humana.

Acima, à esquerda, pintura em umarocha da Rodésia, onde o PrimeiroHomem (a lua) desposa a estrela damanhã e a estrela vespertina paragerar os seres da Terra. 0 HomemCósmico aparece muitas vezes comoo homem original, uma espécie deAdão — e Cristo também acabousendo identificado com estapersonificação do self. Á direita, aoalto, uma pintura do artista alemãoGrúnewald, do século XV, mostra afigura de Cristo em toda a majestadede Homem Cósmico.

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Como já assinalamos, certas tradiçõesafirmam que o Homem Cósmico é o objetivo, oalvo da criação, mas a realização destepropósito não deve ser compreendida como umpossível acontecimento de ordem exterior.Segundo os hindus, por exemplo, não significaque o mundo exterior se irá dissolver um dia noGrande Homem original , mas sim que aorientação extrovert ida do ego em direção aomundo exterior há de desaparecer para dar lugarao Homem Cósmico. Isto acontece quando oego se incorpora ao self. O fluxo discursivo dasrepresentações do ego (que vai de umpensamento a outro) e seus desejos (que corremde um objeto para outro) acalmam-se quando éencontrado o Grande Homem inter ior. Naverdade, não devemos nunca nos esquecer deque para nós a realidade exterior só existe namedida em que a percebemos conscientemente,e que não podemos provar que ela existe ''em sie por si mesma''.

Os inúmeros exemplos oriundos decivilizações e épocas as mais diversas mostram auniversalidade do símbolo do Grande Homem.Sua imagem está presente no espí rito humano

Exemplos do "casal real" (umaimagem simbólica da totalidadepsíquica e do self):à esquerda, umaescultura indiana do século III A.C.,representando Xiva e Pavati, umaligação hermafrodita; abaixo, asdeidades indus Krishna e Radha emum bosque.

A cabeça grega, abaixo, à esquerda,era considerada pelo Dr. Jungligeiramente hermafrodita. Jungacrescentou ainda que a cabeça"tem, como as figuras análogas deAdônis, Tamuz e... Baldur, toda agraça e o charme dos dois sexos"

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À direita, a deusa-ursa Artio, dos celtas,escultura pré-romana encontrada emBerne (que significa "urso"). Era,provavelmente, uma deusa-mãe,parecida com a ursa do sonho relatadonesta página. Outras analogias com asimagens simbólicasdeste sonho: aocentro, aborígines australianos comsuas "pedras sagradas", que acreditamencerrar o espírito dos mortos. Abaixo,de um manuscrito alquímico do séculoXVII, o símbolo do casal real, sob aforma de um casal de leões.

como uma espécie de objetivo ou expressão domistério fundamental de nossa vida. E porqueeste símbolo representa o que é total e pleno eleé, muitas vezes, concebido como um serbissexual. Sob esta forma, reconcilia um dosmais importantes pares conflitantes dapsicologia: a elemento feminino e o masculino.Esta união aparece também com freqüência nossonhos como um casal divino, real ou, de certamaneira, eminente. O seguinte sonho , de umhomem de 47 anos, mostra de modo intenso esteaspecto do self:

Encontro-me numa plataforma e vejo, abaixo demim, uma imensa e bela ursa preta, de pêlo ásperomas cuidado. Ergue-se nas patas traseiras e dápolimento a uma pedra chata e oval, que se tornacada vez mais brilhante, e que está colocada sobreuma laje. Não muito distante, uma leoa e sua criafazem a mesma coisa, mas as pedras que estãopolindo são maiores e de formato redondo. Depoisde algum tempo a ursa transforma-se numa mulhergorda e nua, de cabelos pretos e olhos escuros efaiscantes. Comporto-me, em relação a ela, demaneira provocantemente erótica e, de repente, ela seaproxima para agarrar-me. Assusto -me e me refugiona plataforma onde me encontrava antes. Vejo-me,depois, no meio de várias mulheres; a metade dogrupo é de mulheres primitivas, com abundantecabeleira negra (como se fossem animaismetamorfoseados), a outra metade é constituída pormulheres nossas (isto é, da mesma nacional idade dosonhador) e têm cabelos louros ou castanhos. Asmulheres primitivas cantam uma canção muitosentimental, em voz aguda e melancó lica. Agora,numa elegante car ruagem chega um jovem trazendona cabeça uma coroa real, dourada e cravejada derubis. E um belo espetáculo! A seu lado está umajovem loura, provavelmente sua mulher , mas semcoroa. Parece que a leoa e seu fi-

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lho te foram transformados neste casal. Fazem partedo grupo de gente primitiva. Depois, todas asmulheres (as primitivas e as outras) entoam umcântico solene, e a carruagem real parte lentamenteem direção ao horizonte.

Aqui, o núcleo interior da psique dosonhador aparece, inicialmente, na visão fugidiadeste casal real que emerge das profundezas desua natureza animal e das camadas maisprimitivas do seu inconsciente. A ursa doprincípio do sonho é uma espécie de deusa-mãe (Artemisa , por exemplo , era adorada naGrécia sob a forma de ursa). A pedra escura eoval que ela está polindo simboliza ,provavelmente , o ser mais íntimo do sonhador,sua verdadeira personalidade. Esfregar e polirpedras é uma conhecida e antiqüíssimaatividade do homem. Na Europa, pedras"sagradas", enroladas em cortiça e escondidasem cavernas foram encontradas em várioslugares, provavelmente guardadas pelos homen sda Ida de da Pedra, como receptáculos depoderes divinos. Atualmente, alguns aboríginesda Austrália acreditam que seus ancestraismortos cont inuam a existi r como forçasbenéficas e divinas dentro de pedras, e que aoesfregarem estas pedras o seu poder é aumentado(como se estivessem carregadas de eletricidade)em benefício de ambos, o morto e o vivo.

O homem cujo sonho estamos discutindorecusara até então casar-se.

Seu medo ao casamento o fez fugir damulher-ursa para a sua plataforma deespectador, onde podia assistir a todas asocorrências passivamente e sem se deixarenvolver. Por intermédio do motivo da pedrapolida pela ursa o inconsciente está tentandomostrar -lhe que ele deveria tomar contato comeste aspecto da vida e que é através dos atritos davida de casado que o seu ser interior pode sermoldado e polido.

Ao ser polida, a pedra começará a brilharcomo um espelho e, assim, a ursa poderá ver-serefletida; isto significa que só ao aceitar ocontato humano e o sofrimento é que a almahumana se transforma em um espelho no qual ospoderes divinos se reproduzem. Mas o nossosonhador corre para um lugar mais alto — isto é,para toda sorte de reflexões e de contemplaçõesatravés das quais pode escapar às imposições davida; o sonho então mostra-lhe que se fugir dês-tas exigências, uma parte da sua alma (sua ani-ma) ficará indiferençada, fato simbolizado pelo

Nos sonhos, um espelho pode simbolizaro poder que tem o inconsciente de"refletir" objetivamente o indivíduo —dando-lhe uma visão dele mesmo quetalvez nunca tenha tido antes. Sóatravés do inconsciente tal percepção(que por vezes choca e perturba a menteconsciente) pode ser obtida — tal comono mito grego onde a repulsiva Medusa,cujo olhar transformava os homens empedra, só podia ser contemplada em umespelho. Abaixo, a Medusa refletida numescudo (pintura de Caravaggio, séculoXVII).

grupo indef inido de mulheres que se subdivideem uma metade primitiva e outra civilizada.

A leoa e sua cria, que intervêm então nacena, personificam o anseio misterioso dealcançar a individuação, indicado pelopolimen to que dão às pedras redondas (a pedraredonda é símbolo do self). Os leões, um casalreal, são também um símbolo de totalidade. Nosimbolismo medieval, a "pedra filosofal" (umsímbolo preeminente da total idade do homem)é representada por um casal de leões, ou por umcasal humano montado em leões.Simbolicamente, isto indica que muitas vezes oimpulso para a individuação aparece de formavelada, escondida na paixão arrebatadora que sesente por alguém.

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(Na verdade, a paixão que excede os limitesnaturais do sentimento de amor tem como fimsupremo o mistério da totalidade, e é por istoque quando se ama apaixonadamente tornar -secom o ser amado uma só pessoa é o únicoobjetivo válido de nossa vida.)

Enquanto a imagem da totalidade, nestesonho, se encontra expressa sob a forma de umcasal de leões, está implícito o seu envolvimentoneste tipo de paixão devastadora. Mas quando oleão e a leoa tornam-se rei e rainha, anecessidade de individuação já alcançou umnível de realização consciente e pode, agora, sercompreendida pelo ego como sendo overdadeiro objetivo da vida.

Antes de os leões se terem transformado emseres humanos só as mulheres primitivascantavam, e de modo sentimental, significandoque os sentimentos do sonhador conservavam-seem um nível primi tivo e emotivo. Mas emhomenagem aos leões humanizados tanto asmulheres primitivas quanto as civilizadas unemsuas vozes num só canto de louvor. A expressãoem uníssono de seus sentimentos mostra que adissociação interior transformou -se emharmonia.

Uma outra personificação do self aparece nadescrição feita por uma mulher a respeito da sua"imaginação ativa" . (Imaginação ativa é umacerta forma de meditar com o auxílio daimaginação, e em cujo processo pode-se entrardeliberadamente em contato com oinconsciente, estabelecendo uma relaçãoconsciente com os seus fenômenos psíquicos.)A imaginação ativa está entre as maisimportantes descobe rtas de

Muitas vezes o self é representadocomo um animal bondoso. Acima, áesquerda, a raposa mágica do contode fadas de Grimm, "0 PássaroDourado". Ao centro, o deus-macaco dos hindus, Hanuman,carregando dentro do seu coração osdeuses Xiva e Parvati. Abaixo, Rin-Tin-Tin, o herói cachorro dos filmesamericanos e da TV, célebre naprimeira metade deste século. Pedrassão imagens comuns do self porquesão objetos completos -imutáveis eduradouros. Muitas pessoas, hojeem dia, procuram naspraias pedrasde beleza peculiar (acima, à direita).Alguns hindus passam de pai parafilho pedras (centro) que acreditampossuir poder mágico. Pedras"preciosas", como as jóias da RainhaElizabeth I (1558-1603) representamum sinal exterior de riqueza e posição(abaixo).

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Jung. Em um certo sentido, pode comparar-se àsformas de meditação orientais, como a técnicado zen-budi smo e da ioga associada aotantrismo, ou a técnicas ocidentais como as dos"Exercícios Espirituais" dos jesuítas. É, noentanto, fundamentalmente diferente , nosent ido de que a pessoa que medita está de todoausente de qualquer objetivo ou programaconsciente. Assim, a meditação torna-se aexperiência solitária de um indivíduo livre, istoé, o oposto de uma tentat iva dir igida paradominar o inconsc iente. Não é aqui, noentanto, a ocasião de fazermos uma análisedetalhada da imaginação ativa; o leitor podeencontrar uma descrição feita pelo próprio Jung,no seu ensaio sobre "A FunçãoTranscendente". )

Nas meditações desta mulher o self apareciacomo uma corça, que dizia ao ego: "Sou seufilho e sua mãe. Chamam-me 'animal deligação' porque ligo pessoas, animais e mesmopedras entre si quando penetro dentro deles. Souo seu destino ou o seu 'eu objetivo'. Quandoapareço, redimo você das eventualidades semsentido da vida. O fogo que me consome ardeem toda a humanidade. Se o homem perder estefogo, tornar-se-á egocêntrico, solitário,desorientado e fraco."

O self é, muitas vezes, simbolizado por umanimal que representa a nossa naturezainstintiva e a sua relação com o nosso ambiente.(É por isto que existem tantos animais bondosose prestimosos nos mitos e contos de fada.) Estarelação do self com a natureza à sua volta emesmo com o cosmos vem, provavelmente, dofato de o "átomo nuclear" da nossa psique estar,de certo modo, interligado ao mundo inteiro,tanto inter ior como exteriormente. Todas asmanifestações superiores da vida estão, de umacerta maneira, sintonizadas com o contínuoespaço-tempo. Os animais, por exemplo, têm asua alimentação especial, seu material particularpara construir a sua habitação, e seus territóriosbem definidos, com os quais os seus esquemasinstintivos encontram-se perfeitamente ajustadose adaptados. Os ritmos temporais tambémacompanham este mesmo sistema: por exemplo,a maioria dos animais herbívoros tem suas criasprecisamente na época do ano em que a relva émais abundante e viçosa. Foi com estasconsiderações em mente que um zoólogo famosologo declarou que o "interior" de cada animal seestende amplamente sobre o mundo à sua volta,''ps iquif icando" tempo e espaço.

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De um modo que foge completamente ànossa compreensão, o nosso inconscientetambém está sintonizado com o nosso meioambiente — nosso grupo, a sociedade em gerale, além de tudo, com o contínuo espaço-tempo ea natureza no seu todo. Por isso, o GrandeHomem dos índios Naskapi não lhes revelaapenas verdades interiores: ele também lhes dásuges tões de onde e quando caçar. E é partindodos seus sonhos que o caçador Naskapi elabora aspalavras e as melodias das canções mágicascom que atrai os animais.

Mas este auxílio específico do inconscientenão é dado, apenas, ao homem primi tivo. Jungdescobriu que também ao homem civilizado ossonhos podem dar a orientação de que elenecessita para a solução dos problemas da suavida interior e exterior . Na verdade, muitos dosnossos sonhos dizem respeito, detalhadamente,à nossa vida exterior e ao nosso ambiente. Aárvore que cresce diante da nossa janela, a nossabicicleta, o nosso carro ou uma pedra que seapanhou durante uma caminhada pode m,através da nossa vida onírica, ser elevados aonível de símbolos, tornando -se especialmentesignificativos. Se prestarmos atenção a nossossonhos, em lugar de vivermos em um mundofrio,

impessoal, de acasos sem maior sentido,poderemos emergir, aos poucos, para um mundorealmente nosso, repleto de acontecimentosimportantes que obedecem a uma ordemsecreta.

Nossos sonhos, no entanto, não têm comopreocupação dominante a nossa adaptação à vidaexterior. Em nosso mundo civilizado a maioriados sonhos cuida do desenvolvimento (pelo ego)da atitude interior "correta" em relação ao self,pois devido à nossa moderna maneira de pensare agir sofremos um número muito mais intensode perturbações nest e relacionamento do queos povos primitivos. Eles em geral vivemdiretamente apegados ao seu centro interior,enquanto nós temos a nossa consciência de talforma desenraizada e envolvida em assuntosexteriores e mesmo "forasteiros" que é difícil aoself nos enviar suas mensagens. Nossa menteconsciente cria, continuamente, a ilusão de ummundo exterior "real" , claramente definido, quebloqueia muitas outras percepções. No entanto,através da nossa natureza inconscienteconservamo-nos inexplicavelmente ligados aonosso ambiente psíquico e físico.

Já mencionamos o fato de que o self ésimbolizado, com muita freqüência, na formade uma pedra , preciosa ou de outro tipoqualquer.

A qualidade "eterna" das pedras éencontrada em rochas e montanhas,como estas, á esquerda, no MonteWilliason, Califórnia, sendo usadas emmonumentos comemorativos (ascabeças dos quatro presidentes norte-americanos, no Monte Rushmore,Dakota do Sul, acima). Empregavam-nas também em locais de culto religioso(a pedra sagrada do Templo deJerusalém, à extrema direita),marcando o centro da cidade, que,conforme o mapa medieval à direita; eratida como o centro do mundo.

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Vimos um exemplo na pedra que estava sendopolida pela ursa e pelos leões. Em muitos sonhoso núcleo central — o self— também aparececomo um cristal. A disposição de precisãomatemática do cristal desperta em nós osentimento intuit ivo de que mesmo na matériadita "inanimada'' existe um princípio deordenação espiritual em funcionamento. Assim,o cristal simboliza muitas vezes a união dosextremos opostos — a matéria e o espírito.

Talvez cristais e pedras sejam símbolos doself sobremaneira adequados devido à"exa tidão" da sua natureza. Muitas pessoas nãoresistem ao impulso de apanhar pedras de cor ouforma pouco comuns para guardá -las, semsaber por que o fazem. É como se as pedrascontivessem um mistério vivo que as fascina. Oshomens colecionam pedras desde o início dostempos, e aparentemente admi tiram quealgu mas delas são receptáculos de força vital,com todo o seu conseqüente mistério. Osantigos germânicos, por exemplo, acreditavamque os espíritos dos morto s continuavam aexis tir nas lápides dos seus túmulos. O costumede colocar pedras sobre os túmulos deve tersurgido da idéia simbólica de que algo eternodo morto subsiste, e encontra nas pedras a suarepresentação mais adequada.

Pois apesar de o homem ser, tanto quantopossível, diferente da pedra, o seu centro maisíntimo é, de uma maneira estranha e muitoespecia l , bastante semelhante a ela (talvezporque a pedra simbolize a existência pura,estando o mais possível distanciada dasemoções, sentimentos, fantasias e do pensamentodiscursivo do nosso ego consciente). Nestesentido, a pedra simboliza a experiência talvezmais simples e mais profunda, a experiência dealgo eterno que o homem conhece naquelesfugazes instantes em que se sente inalterável eimortal.

A necessidade existente em quase todas ascivilizações de erigir monumentos de pedra ahomens famosos ou nos cenários deacontecimentos importantes vem,provavelmente, deste mesmo significadosimbólico da pedra. A pedra que Jacó colocou nolugar onde teve seu famoso sonho, ou certaspedras que pessoas simples depositam sobre ostúmulos do santo ou do herói local, mostram anatureza original deste impulso humano deexpressar pelo símbolo da pedra experiências deoutro modo inexprimíveis. Não nos surpreendeque tantas religiões usem uma pedra pararepresentar Deus ou para marcar o local de umculto. O santuár io mais sagrado do mundoislâmico é o de Ka'aba, a pedra negra de

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Meca, aonde todo muçulmano piedoso esperaum dia chegar em peregrinação.

De acordo com o simbolismo eclesiásticocristão, Cristo é "a pedra que os edificadoresreprovaram" e que "foi feita a cabeça daesquina" (Lucas XX:17), isto é, a pedra angular.Ao mesmo tempo foi chamado também de"rocha espiritual", de onde jorra a água da vida(I Coríntios X:4). Os alquimistas medievais quebuscavam com um método pré-científico osegredo da matéria, na esperança de assimencontrar Deus, ou ao menos alguma açãodivina, julgavam que este segredo estariaencerrado na famosa "pedra filosofal". Masalguns deles tiveram a vaga intuição de que asua tão procurada pedra simbolizava algo que sóse poderia encontrar na psique do homem. DisseMorienus, um velho alquimista árabe: "Estacoisa [a pedra filosofal] é extraída de vós: vóssois o seu minério e é em vós que se podeencontrá-lo; ou, para falar mais claramente , eles[os alquimistas] a tiram de vós. Sereconhecerdes isto, o amor e a aprovação dapedra crescerão dentro de vós. Saibam que istoé, indubitavelmente , uma verdade."

A pedra alquímica (o lápis) simboliza algo

que nunca pode ser perdido ou dissolvido, algode eterno que alguns alquimista s compararamcom a exper iência mística de Deus dentro denossas almas. É necessário, em geral, umsofrimento prolongado a fim de consumir todosos elementos psíquicos supérfluos que ocultama pedra. Mas a maioria das pessoas tem, aomenos uma vez na vida, uma experiên cia interiorprofunda do self. De um ponto de vistapsicológico, uma atitude genuinamente religiosaconsiste no esforço feito para descobrir estaexperiência única e para manter-seprogressivamente em harmonia com ela (épreciso notar que uma pedra é em si mesmo algode permanente) , de maneira que o self se torneum companheiro interior para quem a nossaatenção vai estar sempre voltada.

O fato de este símbolo do self o mais nobree o mais freqüente, ser um objeto inanimadoleva ainda a um outro campo de pesquisa eespec ulação: a relação, ainda desconhecida,entre o que chamamos a psique inconsciente e oque chamamos "matéria" — um mistér io que amedicina psicossomática tenta resolver.Estudando esta conexão indefinida e inexplicada(pode ser que "psique" e matéria sejam omesmo fenô-

À esquerda, a pedra negra de Mecavenerada por Maomé (ilustração deum manuscrito árabe), que aintegrou na religião islâmica. Estásendo carregada por quatro chefestribais (nos quatro cantos do tapete)para o interior do Ka'aba, o santuáriode peregrinação anual de milhares demaometanos (abaixo, à esquerda)

À direita, outra pedra simbólica: aPedra do Destino, sobre a qual osreis escoceses eram coroadosantigamente. Foi levada para aAbadia de Westminster, naInglaterra, no século XIII, mas nuncaperdeu seu valor para os escoceses.No Natal de 1950 um grupo denacionalistas escoceses roubou apedra da Abadia e levou-a de volta àEscócia (foi devolvida à Abadia emabril de 1951).

A direita, um turista beija a famosaPedra Blarney, da lenda irlandesa.Supõe-se que concede o dom daeloqüência àqueles que a beijam.

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meno, observado respect ivamente do "interior"e do "exterior"), o Dr. Jung evidenciou umnovo conceito a que chamou "sincronicidade".É um termo que significa uma "coincidênciasignificativa" entre acontecimentos exteriores einteriores que não têm, entre si, relação causal. Eo importante aqui é a palavra "significativa''.

Se acontece um desastre de avião à minhafrente enquanto eu estiver assoando o nariz, estacoincidência não tem signif icação alguma. Eapenas um tipo de situação fortuita que se repetecom freqüência. Mas se eu comprar uma roupaazul e a loja me entregar uma roupa preta no diada morte de um parente próximo, isto sim seráuma coincidência significativa. Os doisacontecimentos não têm uma relação causal,mas estão ligados pela significação simbólica queconferimos à cor preta.

Todas as vezes em que o Dr. Jung observoutais coincidências significativas na vida de umindivíduo parece (segundo revelações dos sonhosdestas pessoas) que havia um arquétipo ativadono seu inconsciente. Para ilustrarmos este pontovoltemos ao exemplo da roupa preta: pode serque a pessoa que receba uma roupa preta tenhatido, também, um sonho sobre morte. É como seo arqué tipo ocu lto se man ife stasse,simultaneamente, em acontecimentos interiorese exteriores. O denominador comum é umamensagem expressa simbolicamente — nestecaso, uma mensagem sobre morte.

Assim que se percebeu que certos tipos deacontecimentos "gostam" de se agrupar emdeterminados momentos, começamos a entendera atitude dos chineses, cujas teorias a respeitode medicina, filosofia e mesmo de construçãosão baseadas em uma "ciência" de coincidênciassignificativas. Os textos clássicos chineses nãoperguntam o que causa alguma coisa, mas sim

O quadro do artista moderno HansHaffenrichter lembra a estrutura docristal que, como a pedra comum, étambém um símbolo da totalidade.

que fato "gosta" de ocorrer juntamente com umoutro. Encontramos este mesmo tema subjacentena astrologia, e na maneira pela qual váriascivilizações dependeram de consultas a oráculose atenderam a presságios. São sempre tentat ivasque buscam encontrar uma explicação para acoincidência, diversa da mera relação de causa eefeito.

Criando o conceito da sincronicidade, o Dr.Jung del ine ou um método par a penetr armosmais profundamente na inter-relação da psiquecom a matéria. E é precisamente na direção destarelação que parece apontar o símbolo da pedra.Mas esta é uma matéria ainda de todo emaberto, e insuficientemente explorada, quecaberá às futuras gerações de psicólogos e físicosesclarecer.

Pode parecer ao leitor que as minhasobservações a respeito da sincronicidade nostenham afastado do nosso tema principal, massenti necessi dade de fazer ao menos uma brevereferência introdutória a este assunto por ser eleuma hipótese jungiana cheia de futuraspossibilidades de pesquisa e aplicação.Acontecimentos "sincronizados", além de tudo,quase sempre acompanham as fases cruciais doprocesso de individuação. No entanto, muitasvezes passam despercebidos quando oindivíduo não aprendeu a observar taiscoincidências nem a lhes dar um sentido emrelação ao simbol ismo dos seus sonhos.

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As relaçõescom o "self''

Hoje em dia um número cada vez maiorde pessoas, sobretudo as que vivem nas grandescidades, sofre de uma terrível sensação de vazioe tédio , como se estivesse à espera de algo quenunca acontece. Cinema e televisão, espetáculosesportivos, agitações políticas podem distraí-laspor algum tempo, mas exaustas edesencantadas, acabam sempre por voltar aodeserto de suas próprias vidas.

A única aventura ainda válida para ohomem moderno está no reino interior da suapsique inconsciente. Com uma idéia vaga eindefinida deste conceito, algumas pessoasvoltam-se para a ioga e outras práticas orientais ,que não chegam a oferecer uma aventuragenuinamente nova, pois são velhos exercíciosespirituais já do conhec imento dos hindus ouchineses, que não entram em contato direto como nosso centro interior de vida. Apesar de estesmétodos orientais favorecerem a concentraçãomental encaminhando-a para o nosso íntimo(sendo este procedimento , num certo sentido,semelhante à introversão no tratamentoanalítico), existe uma diferença muitoimportante. Jung desenvolveu uma maneira dechegar ao nosso centro interior e de entrar emcontato com o mistério vivo do nossoinconsciente, só e sem qualquer auxílio. Éinteiramente diferente de seguir -se uma trilha jádesbravada.

A tentativa para darmos à realidade viva doself uma porção de atenção cotidiana constanteé como tentar viver simultaneamente em doisplanos ou em dois mundos diferentes .

Ocupamo-nos com as nossas tarefas exteriores,mas ao mesmo tempo mantemo -nos alertas àsinsinuações e sinais , tanto dos sonhos quantodos acontecimentos exteriores que o selfutil iza para simbolizar suas intenções - adireção para onde se move o fluxo da vida.

Velhos textos chineses que tratam destetipo de experiência empregam, muitas vezes, aimagem de um gato observando o buraco de umcamundongo. Diz um dos textos que não sedeve permitir a intromissão de nenhumpensamento incidental, mas que também nossaatenção não deve estar nem excessivamenteaguçada nem excessivamente inerte. Há um nívelexato e bem-definido par a a percepção. "Se otreino for praticado desta maneira... tornar -se-áeficaz com o tempo, e quando a causa chegar àsua consecução — tal como um melão quequando amadur ece cai automaticamente —qualquer coisa que aconteça de modo a tocá-laou entrar em contato com ela provocará odespertar supremo do indivíduo . É o momentoem que o praticante parece alguém que estábebendo água: só ele poderá saber se está friaou quente. Liberta-se então de todas as dúvidasa seu próprio respeito e experimenta uma grandefelicidade, semelhante à que se sente aoencontrar nosso próprio pai no cruzamento deum caminho.' '

Assim, no meio da nossa vida exteriorcomum, de repente se é envolvido em umaempolgante aventura interior; e porque éúnica para

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cada indivíduo, não pode ser copiada ouroubada.

Há duas razões principais que fazem ohomem perder contato com o centro reguladorda sua alma. Uma delas é algum impulsoinstintivo ou imagem emocional que, levando-oa uma unilateralidade, o faz perder o equilíbr io.Isto acontece também com os animais; porexemplo, um cervo sexualmente excitadoesquecerá por completo a sua fome e a suasegurança. E esta unilateralidade e conseqüenteperda de equilíbrio são muito temidos pelospovos primitivos, que se referem à "perda daalma''. Outra ameaça ao equilíbrio interior vemdo devaneio excessivo que, em geral, volteiasecretamente em redor de certos complexos. Defato, os devaneios surgem exatamente porquerelacionam o homem com os seus complexos;ao mesmo tempo ameaçam a concentração e acontinuidade da sua consciência.

O segundo obstáculo é exatamente ooposto, e deve-se a uma consolidação excessivada consciência do ego. Apesar de umaconsciência disciplinada ser indispensável àrealização de atividades civilizadas (sabemos oque acontece quando um sinaleiro de estrada deferro se entrega a devaneios), há também a sériadesvantagem de ela se tornar um obstáculo àrecepção de impulsos e imagens vindos docentro psíquico. É por isto que muitos sonhosdos homens civilizados cuidam com tantafreqüência de restaurar esta receptividade,tentando corr igir a atitude da

consciência em relação ao centro inconsciente doself.

Entre as representações mitológicas do selfquase sempre encontramos a imagem dos quatrocantos do mundo, e muitas vezes o GrandeHomem, representado no centro de um círcu lodividido em quatro. Jung usou a palavra hindumandala (círculo mágico) para designar este tipode estrutura, que é uma representação simbólicado "átomo nuclear" da psique humana — cujaessência não conhecemos. E interessanteobservar que o caçador Naskapi não representapictoricamente o seu Grande Homem como umser humano, mas como uma mandala.

Enquanto os Naskapis, sem a ajuda de ritosou doutrinas religiosas, alcançam umaexperiência direta e ingênua do centro interior,outras comunidades usam o motivo da mandalapara restabelecer o equi líbr io inte rior perdido.Por exemplo, os índios Navajo tentam por meiode pinturas na areia, às quais dão a estrutura damandala, trazer uma pessoa doente aharmonizar-se consigo mesma e com o cosmos— e portanto a restabelecer sua saúde.

Nas civilizações orientais são utilizadasimagens análogas para consolidar o ser interiorou favorecer uma meditação profunda. Axontemplação de uma mandala deve trazer pazinterior , uma sensação de que a vida voltou aencontrar a sua ordem e o seu significado. Amandala também produz este sentimentoquando aparece, espontaneamente , nos sonhosdo home m mo-

Os sentimentos de tédio e apatia deque sofrem hoje em dia os habitantesdas grandes cidades é apenastemporariamente afastado pelosfilmes de aventura (extremaesquerda) e os "passatempos"(esquerda). Jung salientou que aúnica aventura real que resta aoindivíduo é a exploração da suaprópria inconsciência. 0 alvosupremo de tal busca é a formaçãode um relacionamento harmonioso eequilibrado com o self. A manda/acircular retrata este equilíbrio perfeito- encarnado na estrutura damoderna catedral (á direita) deBrasília.

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No alto um índio Navajo faz umapintura na areia (uma mandala) numritual de cura; os pacientes sentam-se no interior do desenho. Acima,uma perspectiva do desenho; odoente deve andar â sua volta antesde nele entrar.À esquerda, uma paisagem deinverno do pintor alemão KasparFriedrich. Os quadros de paisagensem geral exprimem "humores"indefinidos — do mesmo modo queas paisagens simbólicas nos sonhos.

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derno, que não está influenciado por qualquertradição religiosa deste tipo e nada sabe a esterespeito. Talvez o efeito positivo seja até maiorem tais casos, já que conhecimento e tradiçãopor vezes confundem ou mesmo bloqueiam aexperiência espontânea.

Um exemplo de mandala surgidaespontaneamente é encont rado no seguintesonho de uma mulher de 62 anos. Apareceucomo se fora um prelúdio a uma nova fase desua vida, na qual ela teve uma atividadecriadora especialmente intensa:

Vejo uma paisagem à meia-luz. Num planoafastado vejo, em uma linha uniforme, o topo de ummorro. No ponto onde este morro começa a elevar-semove-se um disco quadrangular que brilha comoouro. No primeiro plano vejo terra negra, arada,começando a germinar. Percebo, de repente, umamesa redonda comuma lajede pedra cinza por cima,e no mesmo instante o disco quadrangular coloca-sesobre a mesa. O disco saiu do morro, mas não seicomo nemporquemudou de lugar.

Paisagens nos sonhos (e na arte) em geralsimbolizam um estado de espírito inexprimível.Neste sonho, a luz sombria da paisagem indicaque a claridade diurna da consciência estátoldada. A "natureza interior" pode agoracomeçar a revelar-se à sua própria luz, e assim odisco quadrangular faz-se visível no horizonte.Até aqui o símbolo do Self, o disco, fora,sobre tudo uma idéia intuitiva no horizontemental do sonhador, mas agora, no sonho, eledesloca sua posição e torna-se o centro dapaisagem da alma. Uma semente, há muitoplantada, começa a germinar:

durante muito tempo aquela mulher vinhaprestando cuidadosa atenção aos seus sonhos eagora este trabalho começa a dar frutos.(Lembremo-nos da relação entre o símbolo doGrande Homem e a vida vegetal , quemencionamos anteriormente .) De repente odisco dourado move-se para o lado "direito" —o lado onde as coisas se tornam conscientes.Entre outras acepções, "dire ita" significa,muitas vezes, do ponto de vista psicológico, olado da consciência, da adaptação, do que é"d ir ei to", enquan to "esq uerda" significa aesfe ra das reações inadaptadas e inconscientesou, algumas vezes, de uma coisa "sinistra". Porfim o disco dourado pára de se movi mentar epousa — signif ica tivamente — numa mesaredonda de pedra. Encontrou sua basepermanente.

Como Aniela Jaffé observa adiante, aforma redonda (o motivo da mandala) quasesempre simbol iza uma total idade natura l,enquanto a forma quadrangular representa atomada de consciência desta totalidade. Nosonho há um encontro do disco quadrado com amesa redonda e temos, assim, uma realizaçãoconsciente do centro. A mesa redonda ,incidentalmente, é um símbolo muitoconhe cido da total idade e tem também lugarrelevante na mitologia, como a mesa redondado Rei Artur, que é, por sua vez, uma imagemderivada da mesa da Última Ceia.

De fato, cada vez que o ser humano volta-sehonestamente para o seu mundo inter ior e tentaconhecer-se — não remoendo pensamentos esentimentos subjet ivos, mas seguindo asexpressões da sua própria natureza objetiva,como os sonhos e as fantasias genuínas —,mais cedo

Nos desenhos à esquerda, baseadosno sonho relatado nesta página(pintados pela pessoa que o sonhou),o motivo da mandala aparece maiscomo um quadrilátero do que comoum círculo. Usualmente, formasquadriláteras simbolizam umarealização consciente da totalidadeinterior; a totalidade em si érepresentada, na maioria das vezes,em forma circular, como a mesaredonda, que também aparece nosonho. À direita, a lendária TávolaRedonda do Rei Artur (de ummanuscrito do século XV) onde oSanto Graal apareceu numa visão,lançando os cavaleiros à sua famosaaventura. O Graal simboliza atotalidade interior, sempre tãobuscada pelos homens.

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ou mais tarde o self emerge. O ego vaiencontrar, assim, uma força interior onde estãocontidas todas as possibilidades de renovação.

Mas existe uma grande dificuldade quemencionei apenas indi retamente até agora. Éque cada personificação do inconsciente — asombra, a anima, o animus e o self - apresentatanto um aspecto claro e luminoso como umaspecto escuro e sombr io. Vimosanteriormente que a sombra pode ser mesquinhae má, um impulso inst intivo que precisamosvencer. Pode, no entanto, ser um impulso decrescimento que devemos cultivar e seguir. Domesmo modo, a anima e o animus têm umduplo aspecto: podem trazer umdesenvolvimento vivificante e criativo dapersonalidade ou podem provocar oempedernimento e a morte física. E mesmo oself, o símbolo que abrange todo o inconsc iente,tem um efeito ambivalente, como por exemplona lenda esquimó (pág. 196), quando a"mulherzinha" ofereceu-se para salvar a heroínado Espírito da Lua mas acabou transformando-anuma aranha.

O lado sombrio e obscuro do self representaum grande perigo , precisamente porque ele é amaior força da psique. Pode levar as pessoas a"tecer" fantasias megalomaníacas ou outrasilusões capazes de envolvê-las e "possuí-las".Uma pessoa que se encontre neste estado poderápensar com crescente excitação ter aprendido eresolvido, por exemplo, os grandes enigmascósmicos; perde, portanto, todo o contato com arealidade

humana. Um sintoma característico deste estadoé a perda do senso de humor e dos contatoshumanos.

Assim, a manifestação do self podeacarretar grave perigo ao ego consciente dohomem. Este duplo aspecto do self estáexcelentemente ilustrado neste velho conto defadas iraniano, "O Segredo do BalneárioBâdgerd' ':

O grande e nobre príncipe Hâtim Tâi recebeordens do seu rei para investigar o misteriosoBalneário Bâdgerd [castelo da não-existência]Quando se aproxima, depois de ter passado pormuitas aventuras perigosas, ouve contar que ninguémjamais regressou deste lugar, mas insiste emcontinuar. É recebido, num edifício redondo, porum barbeiro munido de um espelho que o leva aobanho, mas logo que o príncipe entra na águaouve-se um barulho tonitruante. Tudo se tornaescuro, o barbeiro desaparece e a água começa asubir lentamente.

Hâtim nada desesperadamente em círculos atéque a água finalmente alcança o topo da cúpularedonda, que forma o teto daquele local. Julga-seperdido, mas diz uma oração e agarra-se à pedracentral da cúpula. Novamente ouve um barulhoensurdecedore encontra-se então só em um deserto.

Depois de errar aflito e por muito tempo, chegaa um belo jardim, no meio do qual há um círculo deestátuas de pedra. No centro deste círculo vê um pa-pagaio numa gaiola e uma voz do alto lhe diz: "Oh,herói, você provavelmente não vai escapar com vidadeste balneário. Uma vez Gayomart [o Primeiro Ho-mem] encontrou um enorme diamante que brilhavamais que o sol e a lua. Decidiu escondê-lo onde nin-

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guém o pudesse achar e para isso construiu umbalneário mágico de modo a protegê-lo. O papagaioque você está vendo aqui faz parte da mágica. A seuspés estão um arco e flecha presos a uma correntedourada; com eles você pode tentar, por três vezes,matar o papagaio. Se o acertar a maldição vaiterminar; se não conseguir, você será petrificado,como todas estasoutraspessoas."

Hâtim tentou uma primeira vez, e errou. Suaspernas tornaram-se de pedra. Na segunda veztambém falhou, e foi petrificado até o peito. Naterceira vez apenas fechou os olhos, exclamando"Deus é grande", atirando às cegas e, desta vez,acertando o papagaio. Ouviu-se uma verdadeiraexplosão de trovões; levantaram-se nuvens de pó.Quando tudo passou, no lugar do papagaio estavaum enorme e belo diamante e todas as estátuasvoltaram à vida. As pessoas agradeceram-lhe por tê-las libertado.

O leit or reconhecerá os símbolos do selfnesta história — o Primeiro Homem Gayomart, aconstrução redonda era forma de mandala, apedra central e o diamante. Mas um diamantecercado de perigo. O papagaio demoníacosignifica o nefasto espírito de imitação que nosfaz errar o alvo e nos deixa psicologicamentepetrificados. Como assinalei anteriormente, oprocesso de individuação exclui qualquerimitação, tipo "papagaio". Inúmeras vezes e emtodas as terras, as pessoas tentaram copiar peloseu comportamento exterior ou ritualístico aexperiência religiosa original de seus grandesmestres - Cristo, ou Buda, ou algum outro líder -e tornaram -se, assim, ''petrificados''.Acompanhar os passos de

um grande líder espiri tual não significa que sedeva copiar exatamente o seu processo deindividuação e sim que se tente, com a mesmasinceridade e devoção destes mestres, viver aprópria vida.

O barbeiro com o espelho que desaparecesimbol iza o dom da reflexão de que Hâtim sepriva justamente quando mais necessita dele; aságuas montantes representam o risco demergulharmos na inconsciência e de nosperdermos em nossas próprias emoções. Paraentendermos as indicações simbólicas doinconsciente devemos cuidar para não sairmos denós mesmos (o "ficar fora de si"), mas sim depermanecermos emocionalmente dentro de nósmesmos. Na verdade, é de importância vitalque o ego continue a funcionar de maneiranormal . Só mantendo-me um ser humanocomum, consciente do quanto sou imperfeito, éque me posso tornar receptivo aos conteúdos eprocessos significativos do inconsciente. Mascomo pode o ser humano resistir à tensão desentir -se em união total com o universo inteiro,sendo, ao mesmo tempo, nada mais que umamiseráve l cria tura humana? Se por um lado eume desprezo considerando-me uma simplescifra estatística, minha vida não terá significaçãoalguma e não valerá a pena vivê-la. Mas se, aocontrário, sinto-me parte de alguma coisa muitomais vasta, como conservar meus pés em terra?É, na verdade, muito difícil guardar unidos nonosso íntimo estes dois extremos sem cair emum ou outro extremo.

Á extrema esquerda, as águastorrenciais do rio Heráclitosubmergem um templo grego, numquadro do pintor moderno francêsAndré Masson. O quadro pode serconsiderado uma alegoria dodesequilíbrio e seus resultados: aênfase excessiva dos gregos sobre alógica e a razão (o templo),conduzindo a uma deflagraçãodestrutiva das forças instintivas. Aolado, uma alegoria ainda mais claraem uma ilustração do poemaalegórico francês do século XV ORomance da Rosa:a figura da Lógica(â direita) fica perturbada aodefrontar-se com a Natureza. Àdireita, Sta. Maria Madalenaarrependida contempla-se numespelho (quadro do artista francêsGeorges de Ia Tour, século XVII).Aqui, como no conto do BalneárioBâdgerd, o espelhosimboliza acapacidade tão necessária de fazer-se uma "reflexão" interiorverdadeira.

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O aspectosocial do "self"

Hoje em dia o aumento considerável dapopulação, sobretudo nas grandes cidades,exerce inevitavelmente sobre nós um efeitodepressivo. Pensamos: "Bem, sou uma pessoaqualquer, que vive no endereço tal, comomilhares de outras pessoas. Se alguns de nósformos mortos , que diferença faz? De qualquermaneira, há gente sob rando no mundo. " Equando lemos nos jornais a respeito da morte deinúmeros desconhecidos que pessoalmente nadanos significam aumenta a sensação de que nossavida nada vale. É neste momento que a atençãodada ao inconsciente é particularmentepreciosa, pois os sonhos mostram ao sonhadorcomo cada pequeno detalhe da sua vida estáinte rligado às mais significativas e importantesrealidades da existência humana.

O que todos nós sabemos teoricamente —que tudo depende do indivíduo — torna-se,através dos sonhos, um fato palpável que cadaum pode conhecer pessoalmente. Temos,algumas vezes, uma poderosa sensação de que oGrande Homem quer alguma coisa de nós,estabelecendo algumas tarefas especiais paracumprirmos. Nossa reação positiva a estaexperiência pode ajudar-nos a adquiri r forçaspara nadar contra a corrente do preconceitocoletivo, levando a sério nossa própria alma.

Naturalmente, nem sempre há de ser umatarefa agradável. Por exemplo, se você pretendefazer uma viagem com amigos no próximodomingo, um sonho pode proibir -lhe estepasseio pedindo que, em seu lugar, faça algumtrabalho criativo. Se atender ao seu inconscientee obedecê-lo, pode esperar daí em dianteinterferências constantes aos seus planosconscientes. Nossa vontade é sempreinterrompida por outras intenções a que nosdevemos submeter ou ao menos considerar comseriedade. É por isto, em parte, que a idéia dedever, de obrigação ligada ao processo deindividuação parece-nos, muitas vezes, mais umpeso do que uma bênção imediata.

São Cristóvão, padroeiro dos viajantes, éum bom exemplo deste tipo de experiência.Segundo a lenda, ele orgulhava-searrogantemente da sua tremenda força física egostava de servir apen as aos mais fortes .Serviu primeir o a um rei; mas quandoverif icou que o rei tinha medo do Diabo,deixou-o e empregou-se com o Diabo.Descobr iu, um dia, que o Diabo tinha medo docrucifixo e decidiu-se então servir a Cristo, se oencontrasse. Um padre aconselhou-o a queesperasse Jesus no vau de um rio. Passaram-sevários anos durante os quais ele carregou eajudou sempre muita gente a atravessar o rio.Mas uma vez , numa noi te escura etempestuosa , uma

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Alcançar a maturidade psicológica éuma tarefa individual — e por issocada vez mais difícil hoje em dia,quando a individualidade do homemestá ameaçada por um conformismolargamente difundido. À extremaesquerda, um conjunto habitacionalbritânico, com suas casasestereotipadas. À esquerda, umaexibição esportiva suíça nos dá umaimagem da arregimentação das

cr iança chamou -o pe dindo-lhe que aatravessasse. São Cristóvão colocou-a nos ombroscom a maior fac ili dade, mas a cad a passoavançava mais lentamente, pois o seu fardotornava-se cada vez mais pesado. Quandochegou ao meio do rio parecia-lhe que"carregava o universo intei ro". Percebeu entãoque fora Cristo que ele trouxera aos ombros —e Cristo absolveu-o de seus pecados e deu-lhevida eterna..

Esta criança milagrosa é o símbolo do selfque, literalmente, "deprime" o ser humanocomum, apesar de ser a única coisa capaz deredimi-lo. Em muitos trabalhos de arte Cristo éretratado como — ou com — a esfera domun do, motivo que signif ica claramente o self,já que a criança e a esfera são símbolosuniversais da totalidade.

Quando uma pessoa tenta obedecer oinconsciente fica muitas vezes, como vimos,impossibilitada de fazer o que quer. E vai estarigualmente incapacitada de fazer o que as outraspessoas querem que ela faça. Acontece muitasvezes que precisará separar-se do seu grupo -família, parceiro ou outras relações pessoais -para poder encontrar-se. É por isto que se dizque atendendo ao inconsciente as pessoastornam-se anti-sociais e egocêntricas. Comoregra geral isto não é verdade absoluta, pois háum fa-

Acima, uma página dos Cantos daInocência e da Experiência deWilliam Blake, onde o poeta revela oseu conceito da "criança divina" —um conhecido símbolo do self. Âdireita, uma pintura do século XVI deSão Cristóvão carregando Cristocomo a criança divina, circundadapela esfera do mundo (a manda/a éum símbolo do self). Este fardosimboliza o "peso", que é o dever daindividuação — tal como o papel deSão Cristóvão como padroeiro dosviajantes (à extrema direita, umamedalha de São Cristóvão na chavede ignição de um carro) reflete anecessidade de o homem percorrer ocaminho que leva á totalidadepsicológica.

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tor pouco conhec ido que intervém nestaatitude: o aspecto coletivo (ou, podemos mesmodizer, social) do self.

De um ponto de vista prático este fator semanifesta no fato de que um indivíduo,acompanhando seus sonhos durantedete rminado tempo, vai descobrir que elesdizem respeito ao seu relacionamento com asoutras pessoas. Os sonhos podem desaconselhá-loa depositar excessiva confiança em alguém; oupoderá sonhar sobre um encontro produtivo eagradável com uma pessoa a quem antes talveznão tenha notado conscientemente. Se o sonhonos der deste modo a imagem de outra pessoaexistem duas interpretações possíveis. Primeiro,a imagem pode ser apenas uma projeção, o quesignif ica que a imagem onírica é um símbolo deum aspecto interi or qua lqu er do própriosonhador. Podemos sonhar, por exemplo , comum vizinho desonesto, mas o vizinho estarásendo usado pelo sonho simplesmente comouma imagem da nossa própria desonestidade.Cabe descobrir na interpretação do sonho emque áreas especiais a nossa própriadesonestidade entra em ação (é a interpretaçãodo sonho em plano objetivo) . Mas tambémacontece, por vezes, que os sonhos nos revelamlegitimamente alguma coisa a respeito de outraspessoas. Neste caso o inconsciente age de umamaneira que não nos é fácil compreender. Comoem todas as formas mais elevadas de vida , ohomem está sintonizado em alto grau com osseres humanos que o rodeiam. Percebe seussofrimentos e problemas, seus valores positivos enegativos, de maneira instintiva —comple tamente independente dos pensamentosconscientes que tem a respeito destes seres.

Nossa vida onírica permite-nos contemplarestas percepções subliminares e nos mostra oquanto elas nos influenciam. Depois de sonhar -mos com alguém de uma maneira simpática eagradável, mesmo sem interpretarmos o sonhoolha-se involuntariamente esta pessoa com novo

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A conscientização do self pode criarum vínculo entre pessoas que nãoparticipam, habitualmente, degrupos mais comuns e naturais,como a família (acima, à esquerda).Este parentesco espiritual conscientepode, muitas vezes, ser um núcleode desenvolvimento cultural; acima,os enciclopedistas franceses doséculo XVIII (incluindo Voltaire, coma mão erguida); abaixo, um quadrode Max Ernst, retratando osdadaístas do início deste século, e afotografia de um grupo de físicosingleses do laboratório britânicoWills.

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O equilíbrio psicológico e a unidade deque o homem necessita hoje em diaforam simbolizados em muitos sonhoscom a união da moça francesa e dohomem japonês no famoso filmefrancês Hiroxim, Meu Amor (1959),acima. E nestes mesmos sonhos ooposto datotalidade (isto é, adissociação psicológica total, ou aloucura) foi simbolizado por umaimagem relacionada ao século XX —uma explosão nuclear (à direita).

interesse. A imagem onírica pode nos iludir,devido a nossas projeções, ou dar -nos umainformação objetiva. Para descobrirmos qual ainterpretação correta é necessário uma atitudehonesta e atenta e um cuidadoso raciocínio. Mascomo acontece em todo processo interior, é o selfque, em última instância, ordena e regula nossorelacionamento humano, desde que o egoconsciente se dê ao trabalho de detectar estasprojeções irreais, ocupando-se delas no seuíntimo, e não exter iormente. É assim quepessoas que têm afinidades espirituais e umamesma orientação descobrem-se umas às outras,criando um novo grupo, que se sobrepõe àsorganizações e estruturações sociais comuns. Talgrupo não entra em conflito com outros; éapenas diferente e independente. O processo deindividuação conscientemente realizado muda,assim, as relações humanas do indivíduo. Laçosde parentesco ou de interesses comuns sãosubstituídos por um tipo de união diferente,vinda do self.

Todas as atividades e obrigações quepertencem exclusivamente ao mundo exteriorsão decididamente nocivas às atividades secretasdo inconsciente. Através destes elosinconscientes, aqueles que foram feitos uns paraos outros acabam por encontrar-se. Esta é umadas razões por que as tentativas para influenciaras pessoas através de anúncios e propaga ndapolítica são

destruidoras, mesmo quando inspiradas nosmotivos mais idealistas.

Levanta-se assim a relevante questão de sesaber se a parte inconsciente da psique humana épassível de sofrer qualquer influência.Experiências práticas e observações cuidadosasmostram que não se pode influenciar os própriossonhos. Existem pessoas, no entanto, queafirmam poder fazê-lo. Mas se verificarmos osseus materiai s oníricos, descobriremos quefazem apenas aquilo que costumo fazer com omeu cachorro desobediente: ordeno -lhesempre que faça tudo o que sei que de qualquermodo ele irá fazer, e assim preservo a minhailusão de autoridade. Só um longo processo deinterpretação dos nossos sonhos e o confrontocom o que eles nos dizem podem transformar,gradualmente, o inconsciente. Neste processo,também as atitudes conscientes devem mudar.Se um homem deseja influenciar a opiniãopública e, com este objetivo, abusa do empregode símbolos, estes irão impressionar as massasse forem símbolos verdadeiros, mas é impossívelprever-se antecipadamente se o inconscientedesta massa vai ser ou não emocionalmenteafetado. Nenhum editor musical , por exemplo ,pode adiantar se uma determinada canção vaialcançar sucesso ou não, mesmo que ela traduzaimagens e melodias populares. Tentat ivaalgu ma para inf luenciar

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deliberadamente o inconsciente já produziuqualquer resultado significat ivo, e parece que oinconsciente das massas preserva, tanto quanto oinconsciente individual, a sua autonomia.

Por vezes o inconsciente, para expressar seuspropósitos, pode empregar um motivo do nossomundo exter ior, dando a impressão de que foiinfluenciado por ele. Vários sonhos que meforam relatados, por exemplo, diziam respeito àcidade de Berlim. Nesses sonhos, Berlim erasímbolo de algum ponto psíquico fraco —Berlim, o local perigoso — e, por esta razão,lugar que o self está pron to a freqüentar. E oponto onde se manifestam os conflitos quedilaceram o sonhador e onde, portanto, eletalvez possa solucionar suas contradiçõesinteriores. Encontrei também um númeroextraordiná rio de sonhos relacionados com ofilme Hiroxima, Meu Amor. A idéia principalexpressa nesses sonhos era a de que ou os doisamantes do filme se deviam unir (simbolizandoa união dos opostos interiores) ou a de quehaveria uma explosão atômica (símbolo de umatotal dissociação, equivalente à loucura). Sóquando os manipuladores da opinião públicaadicionam às suas atividades certa pressãocomercial ou atos de violência é que parecemalcançar sucesso temporário. Mas na realidadetudo isto provoca apenas uma repressão dasreações inconscientes autênticas. E repressão demassa leva ao mesmo resultado da repressãoind ividual, isto é, à dissociação neurótica e àenfermidade mental. Todas as tentativas parareprimir as reações do inconsciente a longoprazo acabam por falhar, já que estão emoposição fundamental aos nossos instintos.

Como vimos no sonho citado à pág.223, imagens posi tivas da animamuitas vezes assistem e guiam oshom ens. Ao al to, em um sal tér io doséculo X, David inspirado pelasmusas. Acima, um a deusa sal vandoum náuf rago (num quadro do séculoXVI) . À direi ta, um cartão -postal deMonte Car io, do iníci o do século: "adam a da sor te" dos jogador es —também uma an ima positi va.

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À direi ta, a Liberdade conduzindo osrevolucionár ios franceses (nu mquadro de Delacroix) representa afunção da anima de auxi liar aindividuação, liberando os conteúdosinconscientes. Â extrema direi ta,num a cena do filme Met rópole(1925), uma mulher incenti vatrabalhadores-robôs a encontrarem a"liberação" espi ritual .

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Através do estudo do compor tamentosocial dos animais superiores sabemos quepequenos grupos (de cerca de 10 a 50indivíduos) criam as melhores condições de vidatanto para o indivíduo único quanto para ogrupo, e o homem não parece constituir exceçãoa esta afirmativa. Seu bem-estar físico, suasaúde mental e, além da esfera das atividadesanimais, sua eficiência cultural parecem florescercom mais vigor neste tipo de estrutura social.

Tanto quanto compreendemos hoje oprocesso de individuação , o self tende,apa rentemente, a produzir estes pequenosgrupos criando, ao mesmo tempo, laços afetivosbem-definidos entre certo s indivíduos e umsent imento de solidariedade geral. Só quandoestas conexões são criadas pelo self é que sepode ter alguma certeza de que o grupo nãoserá dissolvido pela inveja, pelo ciúme, porlutas e toda sorte de projeções negativas. Assim,a devoção incondicional ao nosso processo deindividuação traz também melhor adaptaçãosocial.

Isto não significa, é certo, que vão deixar dehaver choques de opinião e deveres conflitantes,ou desacordos sobre o que está "certo", por issodevemos entregar -nos constantemente a umrecolhimento que nos deixe ouvir a nossa vozinterior a fim de descobrirmos o ponto de vistaindividual que o self nos reserva.

A atividade política fanática (mas não odesempenho de deveres políticos essenciais)parece, de certa maneira, incompatível com aindividuação. Um homem que se devotaraintegralmente a liberta r o seu país da ocupaçãoestrangeira teve o seguinte sonho:

Com alguns de meus compatriotas subo umaescada até o sótão de um museu, onde há umvestíbulo pintado de negro lembrando uma cabinade navio. Uma senhora de meia-idade, de aspectodistinto, abre a porta; seu nome é X, filha de X [Xfoi um famoso herói nacional da pátria do sonhadoreque tentou, há alguns séculos, libertar seu país.Poderia ser comparado a Joana d'Arc ou a GuilhermeTell. E não tivera filhos]. No vestíbulo vemos osretratos de duas senhoras de aspecto aristocráticovestidas de brocado florido. Enquanto a Srta. X nosdá explicações sobre os quadros, eles de repente seanimam; primeiro os olhos das senhoras parecemvivos, depois é o peito quecomeça a arfar. As pessoasficam surpresas e dirigem-se a uma sala deconferências onde a Srta. X lhes vai falar acercadaquele fenômeno. Diz-nos que através da suaintuição e sensibilidade deu vida aos retratos.Algumas das pessoas ficam indignadas e afirmamquea Srta. X está louca; outros retiram-se da sala.

O ponto importante deste sonho é que afigura da anima, a Srta. X, é pura criação dosonho. Ela traz, no entanto, o nome de umfamoso herói libertador (como se fosse, porexemplo, Guilhermina Tell, filha de GuilhermeTell). Pelas implicações contidas neste nome, oinconsciente está indicando que hoje o sonhadornão deverá tentar, como X o fez em outra época,liber tar seu paí s de um mod o ext eri or.Ago ra, diz o sonho, a liberação deve ser feitapela anima (a alma do sonhador) , que vairealizá -la dando vida as imagens doinconsciente.

É significativo que o vestíbulo do sótão dês-te museu lembre , de uma certa maneira, a ca-bina de um navio pintada de preto . A cor pretasugere escuridão, noi te, interi orização, e se o

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vestíbulo é uma cabina então o museu será,também, uma espécie de navio. Estes aspectosdo sonho sugerem que quando o cont inente daconsciência coletiva se inunda de barbarismo ede inconsciência, este navio-museu, ondeexistem quadros vivos, pode vir a ser uma arcasalvadora que levará os que nela entrarem a umaoutra praia espiri tual. Retratos depe ndur adosem um museu são, geralmente, remanescentesmortos de um passado e, muitas vezes, asimagens do inconsciente também são assimconsideradas, até descobrirmos que estão vivase cheias de sentido. Quando a anima (queaparece aqui no seu legítimo papel de guiaespiri tual) contempla estas imagens comintuição e sensibi lidade, elas começam a viver.

As pessoas que no sonho se mostraramindignadas representam a parte do sonhadorinfluenciada pela opinião coletiva — algumacoisa nele que rejeita e desconfia desta evocaçãoviva das imagens psíquicas. Elas personificamuma resis tência ao inconsciente que poder iaexpressar-se da seguinte maneira: "Mas e secomeçarem a jogar bombas atômicas sobre nós?A nossa compreensão psicológica de nada nosvai servir!''

Este lado que oferece resistência é incapazde libertar-se de pensamentos estatíst icos epreconceitos racionais extrovertidos. O sonho, noentanto, indica que nos tempos atuais averdadeira liberação só pode ter início com umatransformação psicológica. Com que propósitovamos libertar a nossa pátria se, depois, nãotemos um alvo de vida signif icativo, nenhumobjetivo pelo qual valha a pena ser-se livre? Se ohomem não encontrar mais qualquer sentido emsua vida, não lhe faz maior diferença dissipá-lasob um regime comunista ou capit alist a. Só seele puder usar a sua liberdade para criar algosignificativo é que vai valer a pena obter estaliberdade. E por isto que encontrar o sentidoprofundo da vida é mais impor tante para umindivíduo do que tudo o mais, e é por estemotivo que o processo de individuação deve terprioridade.

Tenta tivas para influenciar a opiniãopública através dos jornais, rádio, televisão eanúncios estão baseadas em dois fatores. De umlado, fundamentam-se em técnicas de sondag emque revelam a inclinação da "opinião" ou dos"precisa-se" — isto é, das atividades coletivas.De outro lado, exprimem os preconcei tos, asprojeções e os complexos inconscientes(sobretudo o complexo de poder) daqueles que

manipulam a opinião pública. Mas as estatísticasnão fazem justiça ao indivíduo. Mesmo que otamanho médio das pedras de uma pilha seja decinco centímetros, vamos encontrar nesta pilhapouquíssimas pedras de exatamente cincocentímetros.

De saída, fica bem claro que o segundofator não pode criar nada de positivo. Masquando um indivíduo dedica-se à individuação,ele freqüen temente tem um efeito cont agiantesobr e as pessoas que o rodeiam. É como se umacentelha saltasse de um a outro. E istogeralmente ocorre quando não se tem aintenção de influenciar ninguém e quandomuitas vezes, não se empregam palavras. Foiatravés deste caminho inter ior que a Srta . Xtentou conduzir o nosso sonhador.

Quase todos os sistemas religiosos contêmimagens que simbolizam o processo deindividuação ou, pelo menos, algumas das suasfases. Nos países cristãos o self é projetado,como já mencionei , no segundo Adão: Cristo.No Oriente, as figuras de relevo são Krishna eBuda.

Para as pessoas que dependem de umareligião (isto é, que ainda acreditam nos seusconteúdos e ens ina mentos ), os precei tospsi cológicos de suas vidas são efetuados porsímbolos religiosos e mesmo seus sonhos, muitasvezes, giram em torno deles . Quando o PapaPio XII proclamou o dogma da Assunção deMaria, uma mulher catól ica sonhou, porexemplo, que era uma sacerdotisa católica. Seuinconsciente parecia ter dado ao dogma oseguinte desenvolvimento: "Se Maria é agoraquase uma deusa, ela deve ter tido sacerdotisas.''Outra mulher católica, que se opunha a algunsaspectos menores e exteriores da sua religião,sonhou que a igreja da sua cidade natal forademolida e reconstruída, mas que o tabernáculocom a hóstia consagrada e a estátua da VirgemMaria deviam ser transferidos da velha igrejapara a nova. O sonho mostrou-lhe que algunsdos aspectos da sua religião, criados pelohomem, precisavam ser renovados, mas que seussímbolos básicos — Deus feito Homem, e aMãe Grande (a Virgem Maria) — sobreviveriama estas mudanças.

Tais sonhos demonstram o vivo interesseque o inconsciente tem nas representaçõesreligiosas conscientes do indivíduo. E levantamo problema de sabermos se é possível encontrar -se uma tendência de ordem geral nos sonhosreligiosos da gente contemporânea . Nas ma-

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nifestações do inconsciente examinadas entrehomens e mulheres da nossa moderna culturacrist ã, tanto a protestan te quant o a catól ica, oDr. Jung observou que existe muitas vezes umatendência inconsciente para acrescentar à nossafórmula trini tária da divindade um quartoelemento , que tende a ser feminino, sombr io emesmo maléfico. Na verdade, este quartoelemento sempre existiu em nossasrepresentações religiosas, mas foi separado daimagem de Deus tornando-se a sua antítese, soba forma da matéria em si (ou do senhor damatéria — o demônio). Agora, o inconscienteparece querer juntar estes extremos, talvezporque a luz se tenha feito demasiadamentebril hante e a escuridão excessivamentesombria. Claro que o símbolo central dareligião, a Divindade, está mais exposto àstendências do inconsciente para realizar umatransformação.

Um monge tibetano disse uma vez ao Dr.Jung que as mandalas mais impress ionantes doTibet são concebidas pela imaginação, ou pelafan tas ia dir igida, quando o equilíbriopsi cológico do grupo está perturbado ouquando um determinado pensamento não pôdeser expresso por não estar contido ainda nasagrada doutrina, sendo preciso, primeiro,encontrá-lo. Nestas observações surgem doisaspectos básicos igualmente impor tantes emrelação ao simbolismo da mandala. A mandalaserve a um propósito conservador — isto é,restabelece uma ordem preexistente; mas servetambém ao propósito criador de dar forma eexpressão a alguma coisa que ainda não existe,algo de novo e único.

O segundo aspecto é, talvez, mais importanteque o primeiro, mas não o contradiz. Pois namaioria dos casos o que restaura a antiga ordemenvolve, ao mesmo tempo, algum elementonovo de criação; na nova ordem, o esquemaantigo retorna em um nível mais elevado. Oprocesso lembra uma espiral ascendente, quecresce em direção ao alto enquanto retorna,simultaneamente, ao mesmo ponto .

Um quadro pintado por uma mulhersimples, educada em ambien te protestante,mostra uma mandala na forma de espiral. Estamulher recebera, através de um sonho, umaordem para fazer um desenho de Deus. Maistarde (também num sonho) ela O viu em umlivro. De Deus propriamente só percebeu omanto ondulado , em cujo drapeado luz esombra se alternavam magnif icamente. Tudoisto contrastava de maneira impress ionante coma estabilidade da espiral no profundo céu azul.Fascinada pelo manto e pela espiral, a mulhernão prestou maior atenção a uma outra figuraque estava sobre os rochedos. Quando acordou ecomeçou a pensar quem seriam aquelas figurasdivinas , percebeu de repente que era "Deus,ele mesmo". Teve um choque terrível de que seressentiu por muito tempo.

O Espí rito Santo é habi tualmente re-presentado na arte cristã por um roda de fogo oupor uma pomba, mas neste sonho apareceu naforma de uma espiral. Era um novo pen -samento, "que ainda não fazia parte da dou -trina", e que surgira espontaneamente do in-consciente. Não é uma idéia nova a de que o Es-

Esta estátua da Virgem Maria doséculo XV contém no seu interiorimagens de Deus e de Cristo—exprimindo claramente que a VirgemMaria pode ser considerada umarepresentação do arquétipo da "MãeGrande".

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Uma miniatura da obra francesaLivro das Horas (século XV)mostrando a Virgem Maria com aSantíssima Trindade. 0 dogma daAssunção da Virgem, da IgrejaCatólica— no qual Maria, comodomina rerum, Rainha da Natureza,entra no Paraíso com seu corpo esua alma reunidos —, pode-se dizerque se tornou uma trindadequádrupla, correspondendo aoarquétipo básico de plenitude.

píri to Santo seja uma força que trabalhe paraum maior desenvolvimento da nossacompreensão rel igiosa , mas é nova a suarepresentação simbólica em forma de espiral.

A mesma mulher pintou então um segundoquadro, também inspirado num sonho, no qualela se encontrava com o seu animus positivosobre Jerusalém, quando as asas de Satanásdescem para mergulhar a cidade em escuridão. Aasa satânica lembrou-lhe o manto ondulado deDeus, do seu primeiro quadro; mas nesteprimeiro sonho o espectador encontrava-se noalto, em algum ponto do céu, quando vê à suafrente uma terrível brecha entre os rochedos. Omovimento do manto de Deus é uma tentativafalha para alcançar Cristo, a figura que está àdireita. No segundo quadro, a mesma situação éobservada de baixo — de um ângulo humano.Visto do ângulo mais elevado, o que se move ese estende é uma parte de Deus; acima ergue-sea espiral como símbolo de um eventualdesenvolvimento ulterior. Já visto de baixo, danossa perspectiva humana, o que se move no aré a asa negra e sinistra do demônio .

Na vida daquela mulher estas duas imagenstornaram-se reais em um sentido que aqui nãonos diz respeito, mas é óbvio que encerram,também, uma significação coletiva quetranscende a vida pessoal da sonhadora. Poderáser uma profecia da descida das trevas divinassobre o hemisfério cristão, trevas que indicam,no entanto, a possibilidade de evolução futura.Desde que o eixo da espiral não se move paracima, mas sim para o fundo do quadro, estafutura evolução nem vai levar a grandes alturasespirituais nem há de descer até a matéria, masapresentará uma outra dimensão, provavelmentenum segundo plano destas duas silhuet asdivinas. O que quer dizer, dentro doinconsciente.

Quando símbolos religiosos, parcialmentediferentes dos que conhecemos, emergem doinconsciente individual, receia-se, muitas vezes,que possam alterar de manei ra errada ouenfraquecer os símbolos religiosos oficialmentereconhecidos. E é o temor de que isto realmenteaconteça que faz muita gente reje itar apsicologia analítica e todo o inconsciente.

Analisando esta resistência de um ponto devista psicológico, devo fazer notar que emrelação à religião os seres humanos podem serdivididos em três tipos. Primeiro existem os quecrêem verdadeiramente nas suas doutrinas re-ligiosas, quaisquer que sejam elas. A estas pes-

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soas, os símbolos e doutrinas ajustam-se de umamaneira tão satis fatória com o que sentem noseu íntimo que não há possibilidade de que seinsinuem quaisquer dúvidas mais sérias. Istoacontece quando os pontos de vista do conscientee o segundo plano do inconsciente estão emrelativa harmonia. Gente deste tipo podepermiti r-se o conhecimento de novos fatos edescobertas psicológicas sem nenhumpreconceito e sem receio de que lhes possamfazer perder a fé. Mesmo quando os seus sonhostrazem qualquer detalhe inortodoxo, conseguemintegrá-lo facilmente no conjunto geral de suascrenças.

O segundo tipo consiste de pessoas queperderam completamente a fé e subs tituíram -na por opiniões puramente conscientes eracionais. Para estas a psicologia profundasignifica apenas uma introdução às áreas recém-descobertas da psique e não lhes causa maiorproblema o entregar-se a uma nova aventura,investigando os seus sonhos para provar-lhes averacidade.

Há um terce iro grupo que, de um lado(provavelmente o do cérebro), não acredita maisnas suas tradições religiosas, enquanto emalguma outra parte da sua pessoa a crençapermanece. O filós ofo Voltaire é um bomexemplo deste terceiro grupo. Atacouviolentamente a Igreja Católica com argumentosracionais ("é-crasez l'infâme''), mas em seu leitode morte dizem que pedi u a extrema -unção. Seé verdade ou não , o cer to é que seu

esp íri to era seguramente o de um ant i-rel igioso, enquan to seus sentimentos e emoçõesconservaram-se cristãos. Estas pessoas lembram-nos o indivíduo que fica imprensado nas portasautomát icas de um ônibu s se m po de r sa ir ouen tr ar . Evi de nt em en te , os sonhos destaspessoas poderiam ajudá-las a sair deste dilema,mas quase sempre elas hesitam em se voltar parao seu inconsciente já que elas mesmas nãosabem o que pensam ou querem. Levar oinconsciente a sério é, afinal de contas, umaquestão de coragem pessoal e integridade.

A intrincada situação daqueles que seencontram numa verdadeira terra -de-ninguémsituada entre estes dois estados de espíri to éparcialmente criada pelo fato de todas asdoutrinas religiosas oficiais pertencerem àconsciência coletiva (ao que Freud chamavasuperego). Mas originalment e sur giram doinc ons cie nte há mui to tempo . Est e é umpon to mui to cont est ado pelos histo riadores dareligião e teólogos. Preferem crer que o queexistiu foi uma espécie de "revelação". Procurei,durante anos, uma evidência concreta para ahipótese jungiana a respeito deste problema,mas é uma tarefa difícil já que a maioria dosrituais é tão antiga que torna-se impossíveltraçar-lhes a origem. O seguinte exemplo, noentanto, parece-me conter uma indicação damaior importância:

Black Elk (o alce negro), um médico dosSioux Oglala que morreu há pouco tempo, con-

Representações dos sonhosdiscutidos ás págs. 225 e 226: áesquerda, a espiral (uma forma demandala) representa o EspíritoSanto; á direita, a asa negra deSatanás, do segundo sonho. Paramuitas pessoas nenhum destesmotivos seria um símbolo religiosoconhecido (como não o eram para amulher que com eles sonhou);surgiram espontaneamente doinconsciente.

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ta-nos na sua autobiografia Black Elk Speaks (OAlce Negro Fala) que aos nove anos ficouseriamente doente e durante uma espécie deest ado de coma teve uma visão terrível. Viuquatro grupos de belos cavalos vindos dos quatrocantos do mundo, e depois avistou, sentadodentro de uma nuvem, os Seis Pais-Grandes, osespíritos ancestrais da sua tribo, "os avós domundo inteiro". Deram-lhe, para uso do seupovo, seis símbolos com poder de cura emostra ram -lhe novas maneiras de viver. Masquando estava com 16 anos manifestou-se neleuma terrível fobia às tempestades, pois ouviasempre os "seres dos trovões" dizendo-lhe que"se apressasse". Lembrou-se do barulhotonitruante dos cavalos da sua visão. Um velhocurandeiro explicou -lhe que aquele medo vinhado fato de ele estar guardando a visão para simesmo, quando devia contá-la à tribo. Assim ofez e, mais tarde, o povo reconstituiu a visão emum rito, empregando cavalos verdadeiros. Nãoapenas Black Elk, mas vários outros membros datribo sentiram -se muito melhor depois quefizeram esta representação. E alguns ficaramcurados das doenças que os afligiam. DisseBlack Elk: "Depois da dança até os cavalospareciam mais saudáveis e felizes.

O ritual não se repetiu porque a tribo,pou co depois, foi destru ída. Mas temos oexemplo de um caso diferente em que o ritualfoi conservado. Várias tribos de esquimós quevivem no Alasca, perto do rio Colville, explicamassim a origem do seu festival da águia:

Um jovem caçador atirou em uma águia deaspecto raro e ficou tão impressionado com a suabeleza que empalhou-a e fez dela um fetiche, aquem oferecia sacrifícios. Um dia, quando seembrenhara mato adentro para caçar, dois homens-animais lhe apareceram como mensageiros elevaram-no à terra das águias. Lá ouviu um barulhosurdo de tambores, e os mensageiros explicaram-lheque era o pulsar do coração da mãe da águia morta.Apareceu-lhe então o espírito da águia sob a formade uma mulher vestida de preto. Ela pediu-lhe queinstituísse entre o seu povo uma festa em homenagemàs águias e em memória do seu filho morto. Depoisde ter aprendido como realizar este cerimonial, eleencontrou-se novamente, exausto, no lugar ondedeparara com os mensageiros. De volta à casa ensinouao seu povo como organizar a grande festa da águia— que até hoje celebram, fielmente.

Estes exemplos nos mostram como umritual ou um costume rel igioso pode nascer

de uma revelação inconsciente, transmitida aum único indivíduo. Partindo destas origens, aspessoas que vivem em agrupamentos culturaiselaboram suas várias atividades religiosas, queexercem enorme influência na vida dasociedade. Durante um longo processo evolutivoo material original é moldado por palavras eações, é embelezado, e adquire formas cada vezmais definidas. Este processo de cristalização,no entanto, apresenta uma grande desvantagem:as pessoas perdem gradativamente oconhecimento da experiência original e ficamlimitadas ao que os mais velhos e os mestresespirituais lhes ensinam a respeito. Já não sabemque estes conhecimentos fo ram reais e,logicamente, desconhecem as emoções queacompanham tais experiências.

Na sua forma atual, produto de longa eantiga elaboração, estas tradições religiosasresistem muitas vezes a outras alteraçõescriadoras vindas do inconsciente. Os teólogospor vezes chegam mesmo a defender estessímbolos religiosos e doutrinas simbólicas, queconsideram "verdadeiros", contra amanifestação de uma função religiosa da psiqueinconsciente, esquecendo-se de que os valorespelos quais estão lutando devem sua existênciaexatamente a estas mesmas funções. Sem apsique humana para receber inspirações divinase traduzi-las em palavras ou amoldá-las atravésda arte nenhum símbolo religioso se teriatornado realidade (basta lembrarmo-nos dosprofetas e dos evangelistas).

Se alguém objetar que existe uma realidadereligiosa em si mesma, independente da psiquehumana, só se pode responder com a pergunta:"E quem afirma isto, senão a psique humana?"Não importa o que sustentamos, a verdade é quenunca nos poderemos dissociar da existência dapsique — pois estamos contidos nela e é ela oúnico meio que temos para alcançar a realidade.

Ass im, a descoberta moderna doin consciente fecha uma porta para sempre . Elaexclui definitivamente a idéia, defendida poralguns, de que o homem pode conhecer area lidade espiritual em si. Na física moderna,outra porta foi cerrada pelo "princípio da in -determinação" de Heisenberg, que destrói ailusão de se poder compreender uma realidadefísica absoluta. A descoberta do inconsciente, noentanto, compensa a perda destas ilusões tãoqueridas, abrindo-nos um enorme e inexplorado

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campo de realizações no qual a investigaçãocientífica objetiva combina-se de modo novo ecurioso com a aventura ética individual.

Mas, como dissemos no iníc io, épraticamente impossível transmitir a realidadetotal da nossa experiência neste novo campo. Elaé, muitas vezes, única e só pode ser expressa pelalinguagem de modo parcial. E aqui tambémfecha-se uma outra porta, desta vez à quimera deque se pode entender completamente uma outrapessoa e dizer -lhe o que melhor lhe convém.Mais uma vez, no entanto, vamos encontrar umacompensação para esta lacuna no novo reinoque se apresenta à nossa experiência graças àdescoberta da função social do self, quetrabalha secretamente para unir indivíduos quese acham separados e que foram feitos, noentanto, para se entender.

O bate-papo inte lectual é, assim,subs tituído por acontecimentos significativosque se produzem na psique. E por isso quequando o indivíduo se entrega seriamente aoprocesso de individuação do modo queesboçamos acima ele vai adquiri r umaorientação totalmente nova e diferente emrelação à vida. Para os cientistas significatambém uma diferente e nova maneira deabordar os fenômenos exteriores.

Não se pode predizer o que vai resultar detudo isto no campo do conhec imento e na vidasocial dos seres humanos. Mas a mim parece-mecerto que a descober ta do processo deindividuação pelo Dr. Jung é um fato que asgerações futuras terão de levar em conta sedesejarem evitar a estagnação ou mesmo umaperspectiva de regressão.

Este quadro (de Erhard Jacoby)ilustra o fato de que cada um de nós,conhecendo o mundo através da suapsique individual, conhece-o demaneira um pouco diferente dasoutras pessoas. 0 homem, a mulhere a criança estão olhando a mesmacena, mas para cada um deles osdiferentes detalhes aparecem maisou menos claros e mais ou menosescuros. Só através da nossapercepção consciente é que omundo "lá de fora" existe: estamoscercados por algo completamentedesconhecido e impenetrável(representado pelo segundo planoacinzentado do quadro).

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4 O simbolismonas artesplásticas

Aniela Jaffé

Variação dentro de uma esfera n° 10:0 sol, por Richard Lipp

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O simbolismo nas artes plásticas

Símbolossagrados:a pedrae o animal

A história do simbolismo mostr a quetudo pode assumir uma signif icação simbólica:ob-jetos naturais (pedras , plantas, animais ,homens, vales e montanhas, lua e sol, vento,água e fogo) ou fabricados pelo homem (casas,barcos ou carros) ou mesmo formas abstratas (osnúmeros, o triângulo, o quadrado, o círculo). Defato, todo o cosmos é um símbolo em potencial.

Com sua propensão para criar símbolos, ohomem transforma inconsc ientemente obje tosou formas em símbolos (conferindo-lhes assimenorme importância psicológica) e lhes dá ex-pressão, tanto na religião quanto nas artes vi-suais. A interligada história da religião e da arte,que remonta aos tempos pré-históricos, é o re-gistro deixado por nossos antepassados dos sím-bolos que tiveram especial significação para elese que, de alguma forma, os emocionaram. Mes-mo hoje em dia, como mostram a pintura e a es-cultura modernas, continua a existi r viva in-teração entre religião e arte.

Na primeira parte desta exposição sobre osimbolismo nas artes plást icas pretendo exa -minar alguns dos problemas específicos que fo-ram, de uma maneira universal , sagrados oumisteriosos para o homem. No restante do ca-pítu lo tratarei do fenômeno da arte do sécu loXX, não sob o ângulo da sua utilização comosímbolo, mas em termos da sua significação co-mo o próprio símbolo — isto é, como uma ex-pressão simbólica das condições psicológicas domundo moderno.

Nas páginas seguintes, escolhi três motivosrecorrentes para ilustrar a presença e a naturezado simbolismo na arte, em várias e diferentesépocas: a pedra, o animal e o círculo . Cada umdestes símbolos teve uma signif icação psi -cológica que se manteve cons tante, desde asmais primitivas expressões da consciência até asmais sofisticadas formas da arte do século XX.

Sabemos que mesmo a ped ra não tra -balhada tinha uma significação altamente sim -bólica para as sociedades antigas e primitivas.Pedras naturais e em forma bruta eram, muitasvezes, consideradas morada de espíritos ou deu-ses, e nas culturas primitivas utilizavam-nas co-

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mo lápides, marcos ou objetos de veneração re-ligiosa. Podemos considerar este emprego dapedra como uma forma primi tiva de escultura— uma primeira tentativa de dar à pedra maiorpoder expressivo do que o oferecido pelo acasoou pela natureza.

A história do sonho de Jacó, no Velho Tes-tamento, é um exemplo típico de como, há mi-lhares de anos, o homem sentia que um deus vi-vo ou um espírito divino estavam corporificadosnuma pedra e de como a pedra veio, então, atornar-se um símbolo:

E Jacó. . . foi a Haran. E chegou a um lugar ondepassou a noite, porque já o sol era posto, e tomouuma das pedras daquele lugar e a pôs por sua ca-beceira, e deitou-se ali para dormir. E sonhou: e eisuma escada colocada na terra, cujo topo alcançava oscéus; e eis que os anjos de Deus subiam e desciampor ela. E eis que o Senhor estava em cima dela e dis-se: Eu sou o Senhor, o Deus de Abraão teu pai, e oDeus de Isaac: esta terra, em que estás deitado, t'adarei a ti e à tuasemente.

Acordado, do seu sono, disse Jacó: Certamenteo Senhor está neste lugar; e eu não o sabia. E temeu,

e disse: Quão terrível é este lugar! Este não é outrolugar senão a casa de Deus, e esta é a porta dos céus.Então levantou-se Jacó pela manhã de madrugada etomou a pedra que tinha posto por sua cabeceira e apôs por coluna, e derramou azeite em cima dela. Edeuàquele lugar o nomeBeth-el.

Para Jacó, a pedra fazia parte integrante darevelação. Era o mediador entre ele e Deus.

Em muitos santuários de pedra primitivos adivindade é representada não por uma únicapedra mas por muitas pedras brutas, arrumadasem configurações precisas (os alinhamentos geo-métricos de pedras na Bretanha e o círculo depedras de Stonehenge são exemplos famosos).Arranjos de pedras brutas são, também, parteimportante nos jardins altamente civilizados dozen-budismo. Sua disposição não é geométrica eparece devida ao mero acaso. São, no entanto, aexpressão da mais refinada espiritualidade.

Muito cedo o homem começou a tentarexpr imir aquilo que sentia ser a alma ou o es-pírito de uma rocha trabalhando-a de forma dis-tinta. Em muitos casos, a forma era uma a-proximação mais ou menos definida da figu ra

Acima, á esquerda, os alinhamentosde pedra do Carnac, na Bretanha,que datam do ano 2000 A.C. -pedras toscas alinhadas em fileirasque se julga terem sido utilizadas emrituais sacros e procissões religiosas.À esquerda, pedras brutas sobre aareia trabalhada, em um jardim depedra zen-budista (no temploRyoanji, Japão). Emboraaparentemente natural, o arranjo depedras expressa, na verdade, umaespiritualidade altamente refinada.

À direita, um menir pré-histórico -uma rocha esculpida superficialmentecom forma feminina (provavelmenteuma deusa-mãe). À extrema direita,uma escultura de Max Ernst (nascidoem 1891) onde a forma natural dapedra sofreu poucas alterações.

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humana — por exemplo, os antigos menires queesboçam toscamente as linhas de um rosto, ou ashermas nascidas dos marcos divisórios da antigaGrécia , ou os vár ios ído los primit ivos comfeições humanas. A animização da pedra é ex-plicada como a projeção de um conteúdo maisou menos preciso do inconsciente sobre a pedra.

A tendênc ia primiti va de apenas sugeri ruma figura humana, conservando muito da for-ma natural da pedra, pode ser encont rada tam-bém na escultura moderna. Muitos exemplosmostram-nos a preocupação do artista em man-ter a "expressão própria" da pedra ; usando-seuma linguagem mitológica, permite -se que apedra ''fale por ela mesma''. E o caso da obra doescultor suíço Hans Aeschbacher, do escultoramericano James Rosati e do alemão Max Ernst.Em uma carta de Maloja, datada de 1935, es-creve Ernst: "Alber to (o art ista suíço Gia -comett i] e eu estamos atacados de esculturite.Trabalhamos grandes e pequenos blocos de gra-nit o, na moraina da geleira Forno. Ma-ravi lhosamente polidos pelo tempo , pela geadae pelas intempéries, eles já são fantasticamentebelos por si mesmos. Mão humana alguma con-segue fazer isso. Portanto, por que não deixar otrabalho essencial à natureza e nos limitarmos arabiscar sobre estas pedras as ruínas do nossopróprio mistério?''

O que Ernst queria dizer por "misté rio"não está explicado. Mais adiante, neste capítulo,tentarei mostrar que os "mistér ios" do artistamod erno não são mui to di ferentes daque lesdos velhos mestres que conheciam o "espíri toda pedra" .

O relevo dado por muitos escul tores a este''espírito" é uma indicação da indefinível e mo-vediça fronteira existente entre religião e arte.Algumas vezes uma não se pode separar da ou-tra. A mesma ambivalência pode ser encontradaem um outro motivo simbólico, existente nasobras de arte mais antigas: o símbolo do animal.

As figuras de animal recuam até o últimoperíodo glaciário (entre 60.000 e 10.000 anosA.C.). Foram descobertas nas paredes de ca-vernas da França e da Espanha no final do úl-timo século, mas só no início deste século é queos arqueólogos começaram a perceber sua ex-trema importância e a pesquisar o seu sig -nificado. Estas pesquisas revelaram uma culturapré-histórica infinitamente remota, de cuja exis-tência jamais se suspeitara.

Mesmo hoje em dia um estranho sortilégioparece assombrar as cavernas onde estão os bai-xos-relevos e as pinturas. De acordo com um his-toriador de arte, o alemão Herbert Kuhn, os ha-bitantes das regiões da África, Espanha, França eEscandinávia onde estas pinturas foram en-contradas recusavam-se a chegar perto destas ca-vernas. Uma espécie de temor religioso, ou tal-vez um medo dos espíritos que pairavam entre asrochas e as pinturas, os detinha. Viajantes nô-mades ainda depositam oferendas votivas diantedas velhas pinturas rupestres na África do Norte.No século XV, o Papa Calisto II proibiu a rea-lização de cerimônias religiosas na "caverna compinturas de cavalos". Não sabemos a que ca-verna se referia o Papa, mas não temos dúvidasde que seria uma caverna da Idade Glacial, comanimais pintados. Tudo isto demonstra que ca-

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À extrema esquerda, pinturas deanimais nas paredes das cavernas deLascaux. As pinturas não eramapenas decorativas: tinham umafunção mágica. À esquerda, desenhode um bisão coberto de marcas deflecha e lança. Os moradores dascavernas acreditavam que "matando"ritualmente a imagem, ficava maisgarantido matarem o próprio animal.

Mesmo hoje em dia a destruição deuma efígie ou de uma estátuasignifica a morte simbólica da pessoarepresentada. À direita, uma estátuade Stálin destruída pelos húngarosrevoltados, em 1956; ao lado,rebeldes enforcam um busto doantigo premier húngaro stalinista,Matyas Rakosi.

vernas e rochas com desenhos de animais foramsempre ins tinti vam ent e inves tid as de umafunção religiosa, como lhes acontece desde a suaorigem. O nume do lugar resistiu aos séculos.

Em numerosas cavernas o visitante de agoradeve caminhar através de passagens estreitas, es-curas e úmidas até chegar ao local onde se a-brem, de repente, as grandes "câmaras" pin -tadas. Este acesso difícil parece expressar o de-sejo dos homens primitivos de salvaguardar dosolhares comuns o que estas cavernas guardavame todas as cerimônias que ali aconteciam, alémde proteger o seu mistério. A repentina e ines-perada visão das pinturas, recebida após umaprogressão trabalhosa e amedrontadora atravésdas passagens escuras, devia causar uma enormeimpressão ao homem primitivo.

As pinturas paleolíticas das cavernas con-sistem, quase intei ramente, de figuras de ani-mais cujos movimentos e posturas foram ob-servados na natureza e reproduzidos com grandehabilidade artísti ca. Há no entanto muitos de-talhes que mostram ter havido a intenção de fa-zer das figuras mais do que simples reproduções.Escreve Kühn: "O curioso é que um bom nú-mero de pinturas foi utilizado como alvo. EmMontespan há um cavalo sendo impelido parauma armadilha; está crivado de marcas de pro-jéteis. Um urso de argila, na mesma caverna,apresenta 42 orifícios.''

Estas imagens sugerem uma espécie de ma-gia, como a praticada hoje pelas tribos de caçado-res da África. O animal pintado tem a função deum double , isto é, de um subst ituto . Com o seu

massacre simbólico os caçadores antecipam e as-seguram a morte do animal verdadeiro. É umaforma de "simpatia", baseada na "veracidade"atribuída ao subst ituto: o que acontece com apintura deve acontecer com o original. A expli-cação psicológica subjacente é uma forte identifi-cação entre o ser vivo e sua imagem, que é consi-derada a alma daquele ser. (Esta é uma das ra-zões por que um grande número de gente primi-tiva, hoje em dia, evita ser fotografada.)

Outras pinturas de cavernas provavelmenteserviram como ritos mágicos de fecundidade.Mostram animais no instante do acasalamento,como o casal de bisões da caverna Tuc d'Au-dubert, na França. Assim, as reproduções realís-ticas dos animais eram enriquecidas por elemen-tos de magia e ganhavam significação simbólica:tornavam-se a imagem da essência viva do ani -mal.

As mais interessantes figuras pintadas nascavernas são as de seres semi-humanos disfarça-dos em animais, por vezes encontrados ao lado daimagem do animal verdadeiro. Na caverna TroisFrères, na França, vê-se um homem envolto poruma pele de animal tocando uma flau ta pri -mitiva, como se quisesse enfeitiçar os bichos. Namesma caverna existe a pintura de um ser hu-mano que dança , com chifres de veado, cabeçade cavalo e patas de urso. Este personagem, do-minando uma massa de algumas centenas deanimais, é, sem dúvida , o "Rei dos Animais".

Os usos e costumes de certas tribos a-fricanas primitivas de hoje podem trazer algumaluz sobre o signif icado que teriam estas figurasmisteriosas e indubi tavelmente simból icas. Nas

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iniciações, nas sociedades secretas e mesmo nainstituição monárquica destas tribos, os animaise as máscaras de animais têm um papel muitoimportante; o rei e o chefe são animais — em ge-ral leões ou leopardos. Vestígios destes costumesainda permanecem no título do último impera -dor da Etiópia, Hailé Selass ié ("O Leão de Ju -dá") ou no títu lo honor ífico do Dr. HastingsBanda (''O Leão de Malawi '').

Quanto mais rec uar mos no tempo, ouquanto mais primitiva e mais próxima à na -tureza for a sociedade, mais ao pé da letra devemser considerados estes títulos. Um chefe pri -mitivo não se disfarça apenas de animal; quan-do aparece nos ritos de iniciação intei ramentevestido com sua roupa de animal, ele é o animal.Mais ainda, é o espírito do animal, um demônioaterrador que pratica a circuncisão. Nestas oca-siões ele encarna ou representa o ancestral da tri-bo e do clã, portanto o própr io deus original.Representa e é o totem animal . Assim, não háengano em vermos na figura do homem-animalque dança na caverna Trois Frères uma espéciede chefe, transformado pelo disfarce em um ani-mal demoníaco.

Com o passar dos tempos, a roupa ou a fan-tasia completa de animal foi substituída, emmuitos lugares, por máscaras de animais e de de-mônios. Os homens primitivos empregavam to-da a sua habilidade artística nestas máscaras e al-gumas delas têm uma força e uma intensidadede expressão insuperáveis. E são, muitas vezes,

objeto da mesma veneração dedicada ao deus ouao demônio. Máscaras de animais fazem parteda arte popular de muitos países modernos, co-mo a Suíça, e também dos antigos dramas ja-poneses No, ainda representados no Japão mo-derno e onde são utilizadas máscaras ad-miravelmente expressivas . A função simból icada máscara é a mesma do disfarce completo doanimal original. A expressão do indivíduo hu-mano desaparece, mas em seu lugar o portadorda máscara adquire a dignidade e a beleza (etambém a expressão aterradora) de um demônioanimal. Em termos psicológicos, a máscaratransforma o seu portador em uma imagem ar-quetípica.

A dança, que originalmente nada mais eraque um complemento do disfarce animal, commovimentos e gestos apropriados, foi pro-vavelmente acrescentada à iniciação e a outros ri-tos. Era, a bem dizer, uma dança de demôniosexecutada em homenagem a um demônio. Naargila macia da caverna Tuc d'Audubert, Her-bert Kühn encontrou sinais de pegadas ao redordas figuras de animais. Mostram que a dança fa-zia parte dos ritos da Idade Glacial. "Só se podever a marca dos calcanhares", escreve Kühn ."Os dançarinos moviam-se como bisões. Teriamdançado uma dança de bisões para assegurar afertilidade e a proliferação dos animais que ma-tariam mais tarde.''

Em seu capítulo introdutório , o Dr. Jungassinalou a relação ínt ima, ou mesmo a iden-

À extrema esquerda, uma pinturapré-histórica da caverna Trois Frèresincluindo (canto inferior, à direita)uma figura humana, talvez um xamã,com chifres e patas. Vários exemplosde danças de "animais": à esquerda,uma dança birmanesa de búfalos, naqual os dançarinos mascarados sãopossuídos pelo espírito do animal; àdireita, uma dança boliviana dodiabo, onde os dançarinos usammáscaras de animais demoníacos; àextrema direita, uma antiga dançapopular do sudeste da Alemanha,com os dançarinos disfarçados emfeiticeiras e em "homens selvagens"de aspecto animal.

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tifi cação, entre o nativo e o seu totem animal(ou "alma do mato"). Existem cerimônias es-peciais para o estabelecimento desta relação,sobretudo nos ritos de iniciação dos meninos. Osrapazes tomam posse da sua ''alma animal" e aomesmo tempo sacrificam o seu próprio "ser ani-mal" através da circuncisão. Este duplo processoé que o admite no clã totêmico, estabelecendo oseu relacionamento com o seu totem animal.Vai tornar-se, acima de tudo, um homem e(num sentido mais amplo) um ser humano.

Os africanos da costa oriental descreviam osincircuncisos como "animais": não haviam re-cebido uma alma animal nem sacrificado a sua"animalidade" . Em outras palavras, já que nemo lado humano nem o lado animal da alma deum menino incircuncisado se tinha tornadoconsciente, o que predominava era o seu aspectoanimal.

O motivo animal simboliza habitualmentea natureza primitiva e instintiva do homem.Mesmo os homens civilizados não desconhecema violência dos seus impulsos instintivos e a suaimpotência ante as emoções autônomas que ir-rompem do inconsciente. Esta é uma realidadeainda mais evidente nos homens primitivos, cujaconsciência é menos desenvolvida e que estãomenos bem equipados para suportar as tem-pestades emocionais. No primeiro capítulo destelivro, quando discute os meios pelos quais o ho-mem desenvolve o seu poder de reflexão, o Dr.Jung cita o exemplo de um africano enraivecido

que mata seu filhinho. Quando o homem re-cobrou o sangue-frio, ficou acabrunhado de dore remorso pelo que fizera. Neste caso, um im-pulso negativo escapou ao controle do indivíduoe fez sua obra de morte, independe nte da von-tade consciente . O animal-demônio é um sím-bolo altamente expressivo deste impulso. O ca-ráter intenso e concreto da imagem permite queo homem se rel aci one com ela como re-presenta tiva do poder irresist ível que exis tedentro dele. E porque a teme procura abrandá-laatravés de sacrifícios e ritos.

Grande número de mitos diz respe ito aoanimal original que deve ser sacrificado para as-segurar a fertilidade ou mesmo a criação. Umexemplo desta prática é o sacrifício de um touropor Mitras, o deus-sol dos persas, dando origemà Terra com toda a sua riqueza e fecundidade.Na lenda cristã de São Jorge matando o dragãotambém aparece o mesmo sacrifício ritual pri -mitivo.

Nas religiões e na arte religiosa de quase to-das as raças os atributos animais associam-se aosdeuses supremos , ou estes deuses são re -presentados como ani mais. Os ant igos ba-bilônios projetavam seus deuses nos céus, sob aforma dos signos do Zodíaco: o Leão, o Es-corpião, o Touro, o Peixe etc. Os egípcios re-presentavam a deusa Hator com cabeça de vaca,o deus Amon com cabeça de íbis ou sob a formade um cinocéfalo. Ganesha, o deus hind u dasort e, tem corpo humano e cabeça de elefante ,

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Vishnu é um javal i, Hanuman é um deus -macaco etc. (Os hindus, incidentalmente, nãocolocam os homens em primeiro lugar nahierarquia dos seres: o elefante e o leão estãoacima dele.)

Na mitolog ia grega encontramos inúmerossímbolos animais . Zeus, o pai dos deuses,muitas vezes se aproxima das jovens a quem amasob a forma de um cisne, um touro ou umaáguia. Na mitologia germânica, o gato éconsagrado à deusa Freya, enquanto o javali, ocorvo e o cavalo o são a Wotan.

Mesmo no cristianismo, o simbolismo ani-mal representa um papel surpreendentementeimportante. Três dos evangelistas têm emblemasde animais: São Lucas, o boi; São Marcos, oleão, e São João, a águia. Apenas São Mateus érepresentado como um homem ou um anjo. Opróprio Cristo aparece simbolicamente como oCordeiro de Deus ou como o Peixe; é também aserpente, louvada na cruz, o leão, e, em algunscasos raros, um unicórnio. Estes atributos ani -mais de Cristo indicam que mesmo o Filho deDeus (a personificação suprema do homem) nãoprescinde da sua natureza animal, do mesmomodo que da sua natureza espiritual. Considera -se tanto o subumano como o sobre -humano co-mo partes do reino divino. Esta relação entre osdois aspectos do homem é admiravelmente sim-bolizada na imagaem do nasciment o de Cristoem um estábulo, entre animais.

À esquerda, máscara usada nosantigosdramas No japoneses, em que osatores, muitas vezes, fazem o papel dedeuses, espíritos ou demônios. Acima,à direita, um ator no drama japonêsKabuki, vestido como um herói medievale com uma maquilagem que imita amáscara.

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A profusão de símbolos animais na religiãoe na arte de todos os tempos não acentua apenasa importância do símbolo: mostra também oquanto é vital para o homem integrar em sua vi-da o conteúdo psíquico do símbolo, isto é, o ins-tinto. O animal em si não é bom nem mau; éparte da natureza e não pode desejar nada que aela não pertença. Em outras palavras, ele obe-dece a seus instintos. Estes instintos por vezesnos parecem misteriosos, mas guardamcorrelação com a vida humana: o fundamentoda natureza humana é o instinto.

Mas no homem, o "ser animal" (que é asua psique instintual) pode tornar-se perigoso senão for reconhecido e integrado na vida do in-divíduo. O homem é a única criatura capaz decontrolar por vontade própria o instinto, mas étambém o único capaz de reprimi-lo, distorcê-loe feri-lo — e um animal, para usarmos de umametáfora, quando ferido, atinge o auge da suaselvageria e periculosidade. Instintos reprimidospodem tomar conta de um homem, e, mesmo,destruí-lo.

O sonho, mui to comum, em que o so-nhador é perseguido por um animal indica, qua-se sempre, que um instinto se dissociou da cons-ciência e deve ser (ou está tentando ser) read-mitido e integrado na vida do indivíduo. Quan -to mais perigoso o comportamento no animal nosonho mais inconsciente é a alma primitiva ins-tintiva do sonhador e mais imperativa a sua in-tegração à sua vida para que seja evitado algummal irreparável.

Instintos reprimidos e feridos são os perigosque rondam o homem civilizado; impulsos de-senfreados são os piores riscos que ameaçam ohomem primitivo. Em ambos os casos o "ani-mal" encontra-se alienado da sua natureza ver-dadeira; e para ambos a aceitação da alma ani -mal é a condição para alcançar a totalidade e avida plena. O homem primitivo precisa domar oanimal que há dentro dele e torná -lo um com-panheiro útil; o homem civilizado precisa cui-dar do seu eu para dele fazer um amigo.

Outros colaboradores deste livro discutirama importância dos motivos da pedra e do animalem termos de sonho e de mito ; eu os util izeiaqui apenas como exemplos, de ordem geral, darecorrência destes símbolos vivos através dahistória da arte (em especial da arte religiosa).Vamos agora examinar, com o mesmoenfoque, um símbolo universal de enormeforça: o círculo.

Exemplos de símbolos animais dedivindades pertencentes a trêsreligiões: no alto da página, o deushindu Ganesha (escultura pintada noPalácio Real do Nepal), deus daprudência e da sabedoria; acima, odeus grego Zeus sob a forma de umcisne (com Leda); á direita, nas duasfaces de uma moeda medieval, oCristo crucificado apresentado comohomem e como serpente.

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O símbolo do círculo

A Dra. M.-L. von Franz explicou ocírculo (ou esfera) como um símbolo do self:ele expressa a totalidade da psique em todos osseus aspectos, incluindo o relacionamento entreo homem e a natureza. Não importa se osímbolo do círcu lo está presente na adoraçãoprimi tiva do sol ou na religião moderna, emmitos ou em sonhos, nas mandalas desenhadaspelos monges do Tibete, nos planejamentos dascidades ou nos conceitos de esfera dosprimei ros astrônomos, ele indica sempre o maisimportante aspecto da vida — sua extrema eintegral totalização.

Um mito indiano da criação conta que odeus Brama, erguido sobre um imenso lótus demilhares de pétalas , voltou seus olhos para osquatro pontos cardeais. Esta inspeção quádrupla,feita do círculo do lótus, era uma espécie deorientação preliminar, uma tomada de contasindispensável antes de ele começar o seu tra -balho da criação.

Conta-se história semelhante a respeito deBuda. No moment o do seu nas ciment o, umaflor de lótus nasceu da terra e ele subiu em cimadela para contemplar as 10 direções do espaço.(O lótus, neste caso, tinha oito pétalas; e Budaolhou também para o alto e para baixo, per-fazendo 10 direções.) Este gesto simbólico deinspeção foi a maneira mais concisa de mostrarque, desde o instante de seu nascimento , Budafoi uma personal idade única, dest inada are ceber luz. Sua personalidade e existênciaulterior receberam o cunho da unidade .

Esta orientação espacial realizada por Bra-ma e por Buda pode ser considerada um símboloda necessidade de orientação psíquica do ho-mem. As quatro funções da consciência descritaspelo Dr. Jung no capítulo inicial deste livro — opensamento, o sent imento, a intuição e a sen -sação — preparam o homem para lidar com asimpressões que recebe do exterior e do interior.É através destas funções que ele compreende eassimila a sua experiência. E é ainda através delasque pode reagir. A inspeção quádrupla do uni-verso feita por Brama simboliza a integração des-tas quatro funções que o homem deve alcançar.(Em arte, o círculo tem muitas vezes oito raios,

exprimindo a superposição recíproca das quatrofunções da consciência, que dão lugar a quatrooutras funções intermediárias — por exemplo, opensamento realçado pelo sentimento ou pelaintuição, ou o sentimento inclinando-se para asensação.)

Nas artes plásticas da Índia e do Extremo -Oriente o círculo de quatro ou de oito raios é opadrão habitual das imagens religiosas que ser-vem de instrumento à meditação. No lamaísmo,particularmente dos tibetanos, mandalas ri -camente ornamentadas representam um im-portante papel. Em geral elas significam o cos-mos na sua relação com os poderes divinos.

Entretanto , muitas destas imagens de me-ditação oriental são apenas desenhos geo -métricos ; chamam-se iantras. Além do círculo,um motivo muito comum do iantra é formadopor dois triângulos que se interpenetram, umapontando para cima, outro para baixo. Tra-dicionalmente, esta forma simboliza a união deXiva e Shakti, as divindades masculina e fe-minina, e parece também na escultura em umsem-número de variações. Com relação ao sim-bolismo psicológico, expressa a união dos opos-tos — a união do mundo pessoal e temporal doego com o mundo impessoal e intemporal donão -ego . Conclu ind o, est a uni ão é a con -sumação e o alvo de todas as religiões: é a uniãoda alma com Deus. Os dois triângulos in-terpenetrados têm um significado simbólico se-

À direita, um iantra (uma forma demandala) composto de nove triângulosunidos. A mandala, simbolizando aunidade,é muitas vezes associada aseres excepcionaisdo mito ou da lenda.À extrema direita, uma pintura tibetanarepresentando o nascimento de Buda;no canto esquerdo inferior, Buda dá osseus primeiros passos sobre uma cruzformada de flores circulares. Acima, àdireita,nascimento de Alexandre, oGrande (ilustração de um manuscrito doséculo XVI), anunciado por cometas —em forma circular ou demandala.

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melhante ao da mandala circular mais comum:representam a unidade e a totalidade da psiqueou self, de que fazem parte tanto o conscientequanto o inconsciente.

Em ambos, tanto nos triângulos iantrasquanto nas esculturas representando a união deXiva e Shakti, é acentuada a tensão entre oscontrários. Daí o caráter marcadamente erótico eemocional de muitos destes símbolos. Esta qua-lid ade dinâmica implic a um pro ces so — acriação ou o nascimento da unidade —, en-quant o o círculo de quatro ou oito raios re-presenta a própria unidade, isto é, uma entidadeexistente.

O círculo abstrato também aparece na pin-tura zen. Referindo-se a um quadro intitulado OCírculo, do famoso padre zen Sanga i, outromestre zen escreve: "Na seita zen, o círculo re-presenta o esclarecimento, a iluminação. Sim-boliza a perfeição humana.''

Mandalas abstra tas também aparecem naarte cristã européia. Alguns dos mais admiráveisexemplos são as rosáceas das catedrais: re-presentam o self do homem transposto para umplano cósmico (Dante teve uma visão da man-dala cósmica sob a forma de uma resplandecenterosa branca). Podemos considerar mandalas asauréolas de Cristo e dos santos cristãos das pin-turas religiosas. Em muitos casos, apenas a au-réola de Cristo é dividida em quatro, uma alusãosignificativa ao seu sofrimento como Filho doHomem e à sua morte na cruz e, ao mesmo tem-po, um símbolo da sua unidade divers ificada.Nas paredes das primeiras igrejas romanas en-contram-se, algumas vezes, figuras circularesabstratas; devem remontar a origens pagãs.

Na arte não-cristã estes círculos são cha-mados "rodas solares". Aparecem gravadas emrochedos que datam da época neolíti ca, quandoa roda ainda não fora inventada. Como Jung as-sinalou, a expressão "roda solar" demonstraapenas o aspecto exterior da figura. O que real-mente importa em todas as époc as é a ex -periênc ia de uma imagem arquet ípica interior,que o homem da Idade da Pedra exprimiu de

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À esquerda, exemplo da mandala naarquitetura religiosa: o templobudista de Angkor Wat, no Camboja,uma construção quadrada comentradas pelos quatro cantos. Àdireita, as ruínas de um forte naDinamarca (mais ou menos do ano1000), construído em círculo — comona cidade fortificada (centro, àdireita) de Palmanova, na Itália(construída em 1593) com suasfortificações em forma de estrela. Àextrema direita, as avenidas que sejuntam na Étoile, em Paris, e formamuma mandala.

maneira tão fiel quanto na sua pintura de tou-ros, gazelas ou cavalos selvagens.

Encontramos muitas mandalas na arte pic-tórica cristã, como a raríssima imagem da Vir -gem no centro de uma árvore circular, que ésímbolo divino do evônimo. As mais comuns sãoas que representam Cristo cercado pelos quatroevangelistas. Têm sua origem nas antigas re-presentações egípcias do deus Horo com seusquatro filhos.

Na arquitetura a mandala também ocupaum lugar relevante — embora às vezes passe des-percebida. Constitui o plano básico das cons-truções seculares e sagradas de quase todas as ci-vilizações ; figura no traçado das cidades antigas,medievais e mesmo modernas. Um exemploclássico aparece no relato de Plutarco sobre afundação de Roma. De acordo com Plutarco,Rômulo mandou buscar arquite tos na Etrúriaque lhe ensinaram costumes sacros e leis a res-peito das cerimônias a serem observadas — domesmo modo que nos "mistér ios". Primeiro ca-varam um buraco redondo — onde se ergue ago-ra o Comitium, ou Congresso — e dentro delejogaram oferendas simbólicas de frutos da terra.Depois cada homem tomou um pouco de terrado lugar onde nascera e jogou-a dentro da covafei ta. A esta cova deu-se o nome de mundus(que também significava o cosmos). Ao seu re-dor Rômulo, com uma charrua puxada por umtouro e uma vaca, traçou os limites da cidade emum círculo. Nos lugares planejados para asportas retirava-se a relha do arado e carregava-sea charrua.

A cidade fundada sob esta cerimônia solenetinha forma circular. No entanto, a velha e fa-mosa descrição de Roma refere-se à urbs qua-drata, a cidade quadrada. De acordo com uma

teoria que tenta explicar esta contradição a pa-lavra quadrata deve ser entendida como qua-driparti ta, isto é, a cidade circular dividida emquatro partes por duas artérias principais quecorriam de norte a sul e de leste a oeste. O pontode interseção coincidia com o mundus men-cionado por Plutarco.

De acordo com outra teoria , a contradiçãopode ser compreendida como um símbolo, istoé, como a representação visual do problema ma-tematicamente insolúvel da quadratura do cír-culo, que tanto preocupava os gregos e que de-veria ocupar um lugar tão significativo na al-quimi a. Estranhamente, também Plutarco, an-tes de descrever a cerimônia do traçado do cír-culo por Rômulo, refere-se a Roma como Romaquadrata. Para ele, Roma era, a um tempo, umcírculo e um quadrado.

Em cada uma destas teorias está sempre en-volvida a mandala verdadeira, e isto condiz coma declaração de Plutarco de que a fundação dacidade foi ensinada a Rômulo pelos etruscos,"como nos mistérios", como um rito secreto.Era mais do que uma simples forma exterior. Porsua planta em forma de mandala a cidade, comseus habitantes , é exaltada acima do domíniopuramente temporal. E isto é ainda acentuadopelo fato de a cidade ter um centro, o mundus,que estabelece a sua relação com "outro" reino,a morada dos espíritos ancestrais. (O mundus eraco be rt o co m um a gr an de pe dr a, cham ad a a''pedra da alma''. Em certas ocasiões a pedra eraremovida e, dizia -se, os espír itos dos mortossaíam da cova.)

Inúmeras cidades medievais foram edi-ficadas sobre a planta -baixa de uma mandala ero de ad as po r mu ra lh as de fo rm a a-proximadamente circular. Nestas cidades como

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em Roma, as artérias principais dividiam-nas em"quartos" e levavam a quatro portões. A igrejaou a catedral erguia-se no ponto de interseçãodestas artérias. O modelo de inspiração destas ci-dades fora a Jerusalém Celeste (do Livro do Apo-calipse), que tinha uma planta-baixa de formatoquadrado e muralhas que comportavam três ve-zes quatro portões. Mas Jerusalém não tinha umtemplo no seu centro, já que este era a presençapróxima de Deus. (A planta de uma cidade emforma de mandala não está fora de moda. Was-hington, D.C. é um exemplo atual.)

A planta -baixa em forma de mandalanunca foi, tanto na arquitetura clássica quantona primitiva, ditada por considerações estéticasou econômicas. Era a transformação da cidadeem uma imagem ordenada do cosmos, umlugar sagrado ligado pelo seu centro ao "outro"mundo. E esta transformação estava conforme ossentimentos e necessidades vitais do homem re-ligioso.

Toda construção, religiosa ou secular, ba-seada no plano de uma mandala é uma pro-jeção da imagem arquet ípica do interior do in-consciente humano sobre o mundo exterior. Acidade, a fortaleza e o templo tornam-se sím -bolos da unidade psíquica e, assim, exercem in-fluência específica sobre o ser humano que entraou que vive naquele lugar. (É inútil sal ientarque mesmo na arquitetura a projeção doconteúdo psíquico é um processo puramente in-consciente. "Estas coisas não podem ser in-ventadas", escreveu o Dr. Jung, "devendo res-surgir de profundezas esquecidas para expressaras mais elevadas percepções da consciência e asmais sublimes intuições do espíri to, unindo as-sim o cárater singular da consciência modernacom o passado milenar da humanidade.'')

O símbolo central da arte cristã não é a man-dala, mas a cruz ou o crucifixo. Até a época ca-rolíngia a forma usual era a cruz grega ou eqüi-lateral, e portanto a mandala estava in-

A arquitetura religiosa medieval erabaseada, comumente, no formato dacruz. À esquerda, uma igreja doséculo XIII (na Etiópia), talhada narocha.

A arte religiosa da Renascençamostra um retorno à terra e ao corpo:à direita, projeto de uma igreja oubasí lica circular, baseada nasproporções do corpo (desenho doartista e arquiteto italiano do séculoXV, Francesco di Giorgio).

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diretamente envolvida naquele desenho. Mas como correr do tempo o centro deslocou-se para o al-to até que a cruz tomou sua forma latina, com a es-taca e o travessão, como se usa até agora. Esta evo-lução é importante porque corresponde à evo-lução interior da cristandade até uma épocaadiantada da Idade Média . Em termos maissimples, simboliza a tendência para deslocar daterra o centro do homem e sua fé e "elevá-lo" auma esfera espiritual. Esta tendência surgiu dodesejo de traduzir em ação as palavras de Cristo:"Meu reino não é deste mundo." A vida terre-na, o mundo, o corpo eram, portanto, forças aserem vencidas. As esperanças do homem me-dieval estavam dirigidas para o além, pois só oparaíso lhe acenava com a promessa de uma rea-lização total.

Esta busca alcançou seu clímax na Idade Mé-dia e no misticismo medieval. As esperanças doalém não encontraram expressão apenas na ele-vação do centro da cruz; podem ser percebidastambém na altur a crescente das catedrais gó-ticas, que parecem desafiar as leis da gravidade.Seu projeto cruciforme é o da cruz latina alon-gada (apesar de os batistérios, com suas fontesbatismais ao centro, serem construídos sobre aplanta da verdadeira mandala).

Na aurora da Renascença uma mudança re-volucionária começou a ocorrer na concepçãoque o homem fazi a do mundo. O movimento"para o alto" (que alcançara o seu clímax no fi-nal da Idade Média) foi invertido; o homemvoltou-se para a terra. Redescobriu as belezas docorpo e da natureza, fez a primeira viagem decircunavegação do globo e provou que o mundoera uma esfera. As leis da mecânica e da cau-salidade tornaram-se o fundamento da ciência.O mundo do sentimento religioso, do irracionale do misticismo, que tivera um papel tão im-port ante na época medieval , estava cada vezmais oculto pelos triunfos do pensamento ló -gico.

Da mesma maneira, a arte tomou -se maisrealista e mais sensual. Libertou-se dos temas re-ligiosos da Idade Média e abrangeu a totalidadedo mundo visíve l. Foi dominada pela mul-tiplicidade de aspectos da terra, por seus es-plendores e horrores, e tornou-se o que fora a ar-te gótica: um verdadeiro símbolo do espíri to daépoca. Assim, dificilmente poderemos con -siderar acidental a mudança ocorrida também naarquitetura eclesiástica. Em contraste com as ele-vadas catedrais góticas, fizeram-se mais plantas-

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baixas circulares. O círculo substituiu a cruz la-tina.

Esta mudança de forma, no entanto — e é oque importa para a história do simbolismo —,deve ser atribuída a causas estéticas e não re-ligiosas. E a única explicação possível para o fatode o centro dessas igrejas redondas (o verdadeirolugar "sagrado") ser um espaço vazio, enquantoo altar se ergue fora deste centro, no recanto deuma parede. Por este motivo não se pode des-crever este plano como uma mandala. Exceçãoimportante é a Igreja de São Pedro, em Roma,construída segundo plantas de Bramante e Mi-guel Ângelo, situando-se o alta r no cent ro.Temos a tentação de atribuir esta exceção à ge-nialidade dos arquitetos, pois os grandes gêniostranscendem sempre a sua época.

A despeito de alterações consideráveis nasartes, na filosofia e na ciência produzidas pelaRenascença, o símbolo central do cristianismomanteve-se imutável. O Cristo continuou a serrepresentado sobre a cruz latina, como ainda ho-je. Isto significava que o centro do homem re-ligioso permanecia baseado em um plano maiselevado e espir itual do que o do homem ter-restre, que retornava à natureza. Assim, fez-se

uma divisão entre o cristianismo tradicional e amente racional ou inte lectual. Desde aque laépoca, estes dois aspectos do homem modernonunca mais se encontraram. Com o correr dos sé-cul os, e à medida que se amplia va o co -nhecimento da natureza e de suas leis, esta di-visão mais se alargou; e ainda hoje em dia se-para a psique do cristão ocidental.

Certamente, o breve resumo histórico queaqui apresentamos foi muito simplificado. Alémdo mais, ele omite os movimentos religiosos se-cretos dentro do cristianismo que cuidavam, nassuas crenças , do que era ignorado pela maioriados cristãos: o problema do mal, do espírito cto-niano (ou terrestre) . Tais movimentos foramsempre minori tários e rarame nte exerceramqualquer influência visível. A seu modo, porém,realizaram o importante papel de um acom -panhame nto em contraponto com a es -piritualidade cristã.

Entre as muitas seitas e movimentos quesurgiram por volta do ano 1000, os alquimistasocuparam lugar especialmente importante.Exaltaram os mistérios da matéria e colocaram-nos no mesmo plano daqueles de espírito "ce-leste" do cristianismo. O que buscavam era a to-

O interesse da Renascença pelarealidade exterior produziu ouniverso copérnico, centralizado nosol (à esquerda) e desviou o artistada arte "imaginativa" para levá-lo ánatureza. Abaixo, à esquerda, oestudo do coração humano feito porLeonardo da Vinci.

A arte renascentista — com o seuinteresse sensual pela luz, pelanatureza e pelo corpo (à extremaesquerda, um Tintoretto, século XVI)— estabeleceu um padrão que seconservou até os impressionistas.Abaixo, um quadro de Renoir (1841 -1919).

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À extrema esquerda, o conceitosimbólico alquímico da quadraturado círculo — símbolo da totalidade eda união dos contrários (notem-se asfiguras masculina e feminina). Àesquerda, um exemplo do círculoquadrado na arte moderna, peloartista britânico Ben Nicholson(nascido em 1894). É uma formaestritamente geométrica e vazia, deharmonia e beleza estéticas, massem qualquer significação simbólica.

À direita, a "roda do sol", quadro doartista japonês contemporâneo SofuTeshigahara (nascido em 1900),mostra a tendência de muitospintores modernos de usar formas"circulares" para torná-lasassimétricas.

talidade humana que abrangesse corpo e mente,e para representá-la inventaram inúmeros nomese símbolos. Um dos seus símbolos principais foia quadratura circuli (a quadratura do círculo),que nada mais é que uma mandala.

Os alquimistas não consignaram apenas nosseus escritos este trabalho; criaram uma imen-sidão de imagens de seus sonhos e visões — ima-gens simbólicas, tão profundas quanto des-concertantes. Eram inspiradas pelo lado sombrioda natureza — o mal, o sonho, o espírito da ter-ra. A forma utilizada para expressá-las era fa-bulosa, sonhadora e irreal , tanto na palavraquan to na imagem. O grande pintor holandêsdo século XV Hieronymus Bosch é o principalrepresentante desta arte imaginativa .

Mas, enquanto isto, os pintores mais ca-racteríst icos da Renascença (trabalhando, pode-se dizer , à luz do dia) produziam as maiores emais esplêndidas obras da arte sensorial. O fas-cínio que sentiam pela terra e pela natureza eratão profundo que foi, prati camente, o fator de-terminante da evolução da arte visual nos cincoséculos que se seguiram. Os últimos grandesrepresentantes da arte sensorial, a arte do ins-tante que passa, a arte da luz e do ar, foram osimpressionistas do século XIX.

Pode mos aqui fazer uma distinção entredois modos de expressão artística radicalmenteopostos. Muitas tentativas foram feitas para de-finir as suas características . Recentemente, Her-bert Kühn (cujo trabalho sobre a pintura das ca-vernas já foi mencionado aqui) ten tou es -tabelecer uma distinção entre o que chama estilo

"imaginativo" e estilo "sensorial". O estilo"sensor ial" faz uma reprodução direta da na-tur eza ou do ass unt o do quadro . O "ima-ginativo", por seu lado, apresenta uma fantasiaou uma experiência do artista, de maneira "ir-real" e sonhadora, e algumas vezes "abstrata".Estas duas concepções de Kühn são, realmente,tão claras e tão simples que alegro -me de poderservir-me delas.

Os primórdios da arte imaginativa al-cançam uma longa distância na História. Na ba-cia mediterrânea, o seu florescimento data doterceiro milênio A.C. Só há pouco tempo per-cebeu-se que estas antigas obras de arte não sãoresultado de incompetência ou ignorância, massim expressões de uma emoção religiosa e es-piritual perfeitamente definida . E exercem hojeem dia um fascínio todo especial pois nesta úl -tima metade do século a arte vem passando no-vamente por uma fase a que pode ser aplicado oter mo "imagi nat ivo".

Hoje em dia, o símbolo geométr ico, ou"abstrato", do círculo volta a ocupar um lugarrespeitável na pintura. Mas com raras exceções, omodo tradicional de representá-lo sofreu umatransformação característica que corresponde aodilema da existência do homem moderno. O cír-culo já não é uma única figura significativa queenvol ve o mundo intei ro e domina o quadro.Algumas vezes o artista o retira desta posição do-minante, substituindo-o por um grupo de cír -culos dispostos de maneira solta outras vezes oplano circular é assimétrico.

Um exemplo do plano circular assimétrico

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pode ser visto nos famosos discos solares do pin-tor francês Robert Delaunay . Um quadro dopintor inglês moderno Ceri Richards, que agorafaz parte da coleção do Dr. Jung, contém umplano circular inte iramente assimétr ico en-quanto, bem à esquerda, aparece um círculo va-zio, muito menor.

No quadro Natureza morta — Vaso decapuchinhas, de Henri Matisse, o centro é cons-tituído por uma esfera verde sobre uma travenegra inclinada, que parece reunir em si os múl-tiplos círculos das folhas da capuchinha. A esferasobrepõe-se a uma forma retangular, cujo cantosuperior esquerdo está dobrado. A perfeição ar-tística do quadro faz esquecer que no passado es-tas duas figuras abstratas (o círculo e o qua -drado) estari am unidas para exprimir um mun-do de pensamentos e de sentimentos. Mas quemse lembrar disso e interrogar-se a respeito do sen-tido do quadro vai encontrar bom alimento parasuas reflexões: neste quadro as duas figuras que,desde o início dos tempos , formaram um todoestão ali separadas ou relacionadas de maneiraincoerente. No entanto, ambas estão ali presen -tes e em contato uma com a outra.

Em um quadro pintado pelo russo WassilyKandinsky há uma reunião de bolas coloridas oucírculos soltos, que parecem vagar sem rumo, co-mo bolhas de sabão. Também estas bolas estãotenuamente ligadas a um grande retângulo, aofundo, que contém dois retângulos menores,quase quadrados. Em outro quadro, a que o pin-tor chamou Alguns Círculos, uma nuvem negra(ou será um pássaro que alçou vôo?) encerra umgrupo de bolas brilhantes ou círculos, tambémnum arranjo solto.

À esquerda,Limits of Understanding(Os Limites do Entendimento) de PaulKlee (1879 - 1940) - um quadro doséculo XX,século em que o símbolo docírculo tem posição dominante.

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Nas misteriosas concepções do artista bri-tânico Paul Nash muitas vezes aparecem círculosem conexões imprevistas . Na solidão primit ivada sua paisagem Event on the Downs (Acon-tecimento nas Dunas), uma bola jaz à dire ita,no primeiro plano. Apesar de ser aparentementeuma bola de tênis, o desenho da sua superfíciefor ma o Tai-gi -tu, símbol o chi nês da ete r-nidade. Abre-se assim uma nova dimensão nasolidão da paisagem. Algo semelhante aconteceno seu Ldndscape from a Dream (Paisagem deum Sonho). Bolas rolam a perder de vista numapaisagem infini ta reflet ida em um espelho, comum imenso sol aparecendo no horizonte. No pri-meiro plano há uma outra bola, diante de umespelho quase quadrado.

No seu desenho Limits of Understanding oartista suíço Paul Klee coloca a simples figura deuma esfera ou de um círculo sobre uma com-plexa estrutura de escadas e linhas. O Professor

Os círculos aparecem quebrados oulivremente espalhados em O Sol eaLua,acima, de Robert Delaunay (1885-1941); em Alguns Círculos, â esquerda,de Kandinsky (1866-1944); e naPaisagem de um Sonho, à direita, de PaulNash (1889 - 1946). Abaixo, aComposição, de Piet Mondrian (1872-1944), é dominada por quadrados.

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Jung assinalou que o símbolo autêntico só apa-rece quando há necessidade de expressar aquiloque o pensamento não consegue formular ouque é apenas adivinhado ou pressentido; é esteo propósi to da imagem simples de Klee a res-peito dos "limi tes do entendimento''.

É importante observarmos que o quadrado,ou grupo de quadrados e retângulos , ou re-tângulos e rombóides, aparecem na arte mo-derna tão frequentemente quanto os círculos. Omestre em composições harmoniosas (podemosdizer mesmo musicais) com quadrados é o artistaholandês Piet Mondrian. Como regra geral, seusquadrados não têm um centro verdadeiro, e noentanto formam um conjunto ordenado, de for-mação rigorosa e quase ascética. Mais comunsainda nos quadros de outros artistas são as com-posições quaternárias irregulares , ou de nu-merosos retângulos combinados em grupos maisou menos soltos.

O círculo é um símbolo da psique (o pró -prio Platão descreveu a psique como uma es-fera) ; o quadrado (e muitas vezes o retângulo) éum símbolo da matéria terrest re, do corpo e darealidade. Na maior parte das obras da arte mo-derna a conexão entre estas duas formas pri-márias ou não existe ou é absolutamente livre eacidental. Esta separação é outra expressão sim-bólica do estado psíquico do homem do séculoXX: sua alma per deu as raí zes e ele est áameaçado de uma dissociação. Mesmo no plano

político do mundo de hoje (como o Dr. Jung as-sinalou em seu capítulo introdutório) esta cisãotorna-se evidente: as duas metades da terra, aocidentral e a oriental, estão separadas por umaCortina de Ferro.

Mas não devemos desprezar a frequênciacom que aparecem o quadrado e o círculo. Pa-rece haver um impulso psíquico constante paratrazer à consciência os fatores básicos de vida queeles simbolizam. Também em certas pinturasabstratas de hoje (que apenas representam umaestrutura colorida ou uma espécie de "matériapr imi tiva" ) est as for mas aparecem oca-sionalmente, como se fossem os germes de umnovo crescimento.

O símbolo do círculo tem representado, eeventualmente ainda representa, uma parte cu-riosa de um fenômeno invulgar da nossa vida dehoje. Nos últ imos anos da Segunda GrandeGuerra houve "rumores" a respeito de visões decorpos voadores redondos, que se tornaram co-nhecidos como "discos voadores" (ou "objetosvoadores não identificados"). Jung explicou es-tes objetos como a projeção de um conteúdo psí-quico (de totalidade) que, em todas as épocas,sempre foi simbolizado pelo círculo. Em outraspalavras, estas "visões", como também se podeverificar em muitos sonhos de agora, são umatentat iva da psique inconsciente coletiva paracurar a dissociação de nossa época apocalípticaatravés do símbolo do círculo.

Acima, uma ilustração alemã, doséculo XVI, de alguns estranhosobjetos circulares vistos no céu —semelhantes aos "discos voadores"recentemente observados. Jungsugere que tais visões seriam projeçõesdo arquétipo da totalidade.

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A pinturamoderna como um símbolo

As expressões "arte moderna" e "pinturamoderna" são usadas, neste capítulo, no sentidoque lhes dá o leigo. Tratarei aqui da modernapintura imaginativa (segundo as expressões deKühn). Quadros deste gênero podem ser "abs-tratos" (ou antes, "não-figurativos"), mas nãonecessariamente. Não vou procurar estabelecerdistinção entre as várias escolas, como o fovismo,o cubismo, o expressionismo, o futurismo, osuprematismo, o construt ivismo, o orfismo etc.Qualquer alusão particular a um ou outro destesgrupos será feita em caráter excepcional. Tam-pouco estou preocupada em fazer uma di-ferenciação estética da pintura moderna; nem,acima de tudo, em estabelecer hierarquias ar-tísticas. A pintura moderna imaginativa será dis-cutida apenas como um fenômeno da nossa épo -ca. É a única maneira de justif icar e explicar oseu conteúdo simbólico. Neste breve capítulo sóse poderá mencionar alguns artistas e selecionaralgumas das suas obras, mais ou menos ao acaso.Devo contentar-me em discorrer sobre a pinturamoderna em termos de um número limitado deseus representantes .

Nosso ponto de partida é o fato psicológicode que o artista sempre foi o instrumento e o in-térprete do espírito de sua época. Em termos depsicologia pessoal, sua obra só pode ser par-cialmente compreendida. Consciente ou in-conscientemente, o artista dá forma à natureza eaos valores da sua época que, por sua vez, sãoresponsáveis pela sua formação.

O artista moderno muitas vezes reconhece,ele próprio, a inter-relação entre a sua obra de ar-te e a sua época. Assim escreve a este respeito ocrítico e pintor francês Jean Bazaine em suas No-tas sobre a Pintura Contemporânea: "Ninguémpinta como quer. Tudo que um pintor pode fa-zer é querer, com todas as suas forças, a pinturade que a sua época é capaz." E declara o artistaalemão Franz Marc, morto na 1ª Grande Guerra:"Os grandes artistas não buscam suas formas nasbrumas do passado, mas sondam tão pro-fundamente quanto podem o centro de gra -vidade recôndito e autêntico da sua época." E,já em 1911, Kandinsky escrevia no seu famoso

ensaio A Propósito do Espiritual em Arte: "Cadaépoca recebe sua própria dose de liberdadeartística, e nem mesmo o mais criador dos gênioscon segue tra nspor as front eiras des ta li -ber dade."

Nos últimos 50 anos a "arte moderna" temsido um pomo de discórdia geral, e a discussãoainda não perdeu nem um pouco do seu calor .Seus partidários são tão exaltados quanto seusadversários; no entanto, a reiterada profecia deque a arte "moderna" est á liquidada nunca severificou. Este novo modo de expressão tem feitouma carreira triunfal e surpreendente . E seexiste ameaça a este triunfo será por se ter de-gen erado em man ei ri smo e mod ismo. (NaUnião Soviética, onde a arte não-figurativa foitantas vezes oficialmente desencorajada e só con-seguiu desenvolver-se clandest inamente, a artefigura tiva est á ameaçada de idêntica de -generação.)

De qualquer modo, na Europa o grandepúblico ainda está em plena batalha. A violênciada discussão mostra que as paixões continuambem vivas em ambos os campos. Mesmo os hos-tis à arte moderna não podem deixar de se im-pressionar com as obras que rejeitam; irritam-seou revelam o seu desdém, mas (como revela aviolência de seus sentimentos) também se per-turbam. Em geral o fascínio negativo é tão fortequanto o positivo. O caudal de visitantes às ex-posições de arte moderna, onde quer que se rea-lizem, prova que há algo mais que uma simplescuriosidade. A curiosidade já estaria satisfeita. Eos preços fantásticos que alcançam as obras dearte moderna dão a medida do status que lhesconfere a sociedade.

O fascínio resulta de uma emoção do in-consciente. O efeito que a obra de arte modernaproduz não pode ser explicado exclusivamentepor sua forma visível e aparente. Para o olhotre inado na arte "clássica" ou na arte "sen-sori al", ela é nova e estranha . Nada na con-cepção da arte não-figurativa lembra ao es-pectador o seu próprio mundo — nenhum ob-jeto do seu ambiente cotidiano, nenhum ser hu-mano ou animal que lhe fale em linguagem fa-

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miliar. Ela não o acolhe de maneira cordial e ocosmos criado pelo artista não lhe faz concessões.E no entanto estabelece-se sem dúvida um vín-culo humano, talvez mais intenso que nas obrasde arte sensoriais, que fazem um apelo direto àsensibilidade e à empatia.

O objet ivo do artis ta moderno é dar ex-pressão à sua visão interior do homem, ao se-gundo plano espiritual da vida e do mundo. Aobra de arte moderna abandonou não só o do-mínio do mund o concre to, "natural" e sen -sorial, mas também o universo individual. Tor-nou -se altamente coletiva e, portanto (mesmona sua forma abreviada, o hieróglifo pictórico),deixou de tocar a uns poucos para atingir a mui-tos. O que resta de individual é a maneira deexpressão, o estilo e a qualidade da moderna o-bra de arte. Muitas vezes é difícil para o leigo re-conhecer se as intenções do artista são sinceras esuas expressões espontâneas, e não o resultadode imitações ou de uma busca de efeitos. Emmuitos casos vai ter de acostumar-se a novos ti-pos de linhas e de cor. Precisa aprendê-las comose aprende uma língua estrangeira, antes de po-der julgar sua expressividade e qualidade.

Os pionei ros da ar te moderna apa-rentemente compreenderam o quanto estavamexigindo do públi co. Nunca os artistas pu-blicaram tantos "manifestos" e explicações dosseus objetivos como neste nosso século. No en-tanto, não é apenas para os outros que eles ten-tam explicar e justif icar o que estão fazendo; é

também para si mesmos. A maioria destes ma-nifestos são confissões de fé artísticas — tentativaspoéticas, e muitas vezes confusas ou autocontra-ditórias, para trazer alguma claridade ao estra -nho resultado das atividades artísticas de hoje.

O que é realmente importante, na verdade ,é (e sempre foi) o encontro direto com a obra dearte. No entanto, para o psicólogo que estápreocupado com o conteúdo simból ico da artemoderna , o estudo destes textos é muito ins-trutivo. Por esta razão, sempre que possível, serápermitido que os próprios artistas falem por simesmos nesta discussão que se segue.

Os primórdios da arte moderna datam doinício deste século. Uma das persona lidadesmais impressionantes desta fase inicial foi Kan-dinsky, cuja influência é ainda claramente sen-tida na pintura da segunda metade do século .Muitas de suas idéias provaram-se proféticas. Emseu ensaio A Propósito da Forma escreveu: "Aarte de hoje encarna o espi ritual amadurecidoaté o ponto de revelação. As formas desta in-corporação podem ser ordenadas entre dois pó-los : 1) uma grande abstração; 2) um grande rea-lismo. Estes dois pólos abrem dois caminhos,que levam a um único alvo final. Estes dois ele-mentos sempre estiveram presentes na arte: oprimeiro expressava -se no segundo. Hoje pareceque estão a ponto de levar existências separadas.A arte parece ter posto fim ao agradável e per-feito acabamento do abstrato feito pelo concretoe vice-versa."

Arte sensorial (ou representativa)versus arte imaginativa (ou "irreal").À direita, um quadro do artistainglês William Frith (século XIX),pertencente a uma série que mostraa derrocada de um jogador. É umlimite extremo da arte representativa:desviou-se para o maneirismo e parao sentimentalismo. À esquerda, umextremo da arte imaginativa (e, aqui,"abstrata"), por Kazimir Malevich(1878 - 1935). A composição Brancono Branco (1918), Museu de ArteModerna, Nova York.

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À esquerda e acima, duascomposições de Kurt Schwitter(1887- 1948). Esta forma de arteimaginativa utiliza (e transforma)coisas comuns — neste caso, velhosbilhetes, papel, metal etc. Abaixo, àesquerda, peças de madeiraempregadas do mesmo modo porHans Arp (1887-1966). Abaixo, emuma escultura de Picasso (1881-1973) objetos comuns —folhas —são parte do assunto, mais que domaterial.

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Para ilustrar o ponto de vista de Kandinskyde que os dois elementos de arte, o abstrato e oconcreto, estão de relações rompidas: em 1913,o pintor russo Kazimir Malevich pintou umquadro que consistia apenas de um quadradonegro sobre um fundo branco. Talvez tenha sidoo primeiro quadro puramente "abstrato" que sepintou. Escreveu ele a respeito: "Na minha lutadesesperada para liberar a arte do lastro destemundo de objetos , refugie i-me na forma doquad rado.' '

Um ano mais tarde, o pintor francês MarcelDuchamp colocou um objeto escolhido ao acaso(um porta-garrafas) sobre um pedestal e o expôs.Jean Bazaine escreveu a propósito: "Este porta-garrafas, arrancado ao seu destino útil, posto delado, foi investido da dignidade solitár ia dodestroço abandonado. Servindo a nada, dis-ponível, pronto para tudo, vive. Vive à margemda existência a sua própria vida inquietante e ab-surda — o inquietante objeto, o primeiro passopara a arte."

Nest a estranha dignidade e neste aban -dono, o objeto foi exaltado de maneira ilimitadae ganhou um significado que se pode considerarmágico. Daí sua "vida inquietante e absurda".Tornou -se ídolo e, ao mesmo tempo, objeto dezombaria. Sua realidade intrínseca foi anulada.

Tanto o quadrado de Malevich quanto odescanso de garrafas de Duchamp foram gestossimbólicos que nada tinham a ver com arte, nosentido estrito da palavra . No entanto, marcamos dois extremos ("grande abstração" e "granderealismo") entre os quais a arte imaginativa dasdécadas que se sucederam pode ser situada ecompreendida.

Do ponto de vista psicológico, estes doisgestos , um em direção do objeto puro (matéria)e outro em direção da abstração pura (espírito)indicam uma cisão psicológica coletiva que criousua expressão simbólica nos anos que an-tecederam a catástrofe da Primeira GrandeGuerra . Esta div isão se manifesta ra, ini-cialmente, na Renascença, sob a forma de umconflito entre o conhecimento e a fé. Nesse ín-terim, a civilização distanciava o homem cadavez mais para longe dos seus fundamentos ins -tintivos, abrindo -se um abismo entre a naturezae a mente, entre o inconsciente e o consciente.Estes contrários caracterizam a situação psíquicaque está buscando expressão na arte moderna.

A almasecreta das coisas

Como já vimos , o ponto de parti da do"concreto" foi o famoso porta-garrafas de Duc-hamp. Este porta-garrafas não pretendia qua-lificar-se de artístico e Duchamp o definia mes-mo como "antiar tíst ico" . Entretanto, trouxe àluz um elemento que iria significar muito paraos artistas nos anos que se seguiram. O nome quelhe deram foi objet trouvé ou ready-made, isto é,o assunto já feito, pronto, preparado.

O pintor espanhol Juan Miro, por exemplo,vai à praia toda manhã para "colecionar coisastrazidas pela maré. Coisas largadas por ali, à es-pêra de que alguém lhes descubra a persona lidade". Guarda seus achados no estúdio.Vez por outra reúne alguns deles, resultando daías mais curiosas composições: "O artista muitasvezes se surpreende com as formas das suas pró-prias criações."

Já em 1912, Picasso e o francês GeorgesBraq ue fazi am o que chamavam "colagens",com todo tipo de lixo e entulhos. Max Ernstcortava tiras de jornais ilustrados da "idade doouro" dos negócios fáceis e reunia-os segundo afantasia do momento, transformando assim a so-lidez sufocante da época burguesa em pesadelosirreais e demoníacos. O pintor alemão KurtSchwitter trabalhava com os detritos da sua latade lixo: usava pregos, papel de embrulho, tirasde jornais , bilhetes de estrada de ferro, pedaçosde fazendas . Conseguia reunir todo este lixocom tanta seriedade e com tanta pureza que ob-tinha efeitos de estranha beleza. A obsessão deSchwit ter por este tipo de materia l, no entanto,resu ltava por vezes em composições sim-plesmente absurdas. Fez uma construção de vá-rios detritos a que chamou "uma catedral cons-truída para as coisas". Schwitter trabalhou nesta"catedral" durante 10 anos , e três anda res desua própria casa foram demolidos para dar-lheespaço.

A obra de Schwitter e a exaltação mágica doobjeto foram a primeira indicação do lugar queocupa a arte moderna na história do espírito hu-mano e de sua significação simbólica. Revelamuma tradição que estava sendo perpetuada in-conscientemente, a tradi ção das herméticas ir-

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mandades crist ãs da Idade Média e dos al -quimi stas, que consideravam a matér ia a es-sência da terra, digna da sua contemplação re -ligiosa.

A promoção feita por Schwit ter dos ma-teriais mais grosseiros ao nível de arte, uti -lizando-os para uma "catedral" (na qual o en -tulho quase não deixava mais lugar para o serhumano), seguia fielmente o velho princípio dosalquimistas, segundo o qual o objeto preciosoque buscamos será encontrado na matéria maisvil. Kandinsky expressou as mesmas idéias quan-do esc reveu: "Tudo que est á mor to pal pit a.Não apenas o que pertence à poesia, às estrelas ,à lua, aos bosques e às flores, mas também umsimples botão branco de calça a cintilar na lamada rua... Tudo possui uma alma secreta , que secala mais do que fala.' '

Os artistas, como os alquimistas, pro-vavelmente não se deram conta do fato psicoló-gico que estavam projetando parte da sua psiquesobre a matér ia ou sobre obje tos inanimados.Daí a "misteriosa animação" que se apossa des-tas coisas e o grande valor que se atribui até mes-mo aos detritos. Os artistas projetavam suaspróprias trevas , sua sombra terrestre, um con-teúdo psíquico que tanto eles quanto sua épocahaviam perdido e abandonado.

Ao contrár io dos alquimistas, no entanto,homens como Schwitter não estavam integradosnem protegidos pela ordem cristã. Em um certosentido, a obra de Schwitter está mesmo emoposição àquele sistema: uma espécie de mo-nomania o liga à matéria , enquanto o cris-tiani smo procura vencer a matér ia. E, no en -tanto, paradoxalmente, é a mono mania deSchwitter que despoja o material de que se serveda significação inerente à sua realidade concreta.Em seus quadros a matéria é transformada emcomposição "abstrata". Começa portanto a per -der seu caráter de substância e a dissolver -se.Neste processo, estes quadros se tornam umaexpressão simbólica da nossa época, um séculoque ass ist iu ao concei to de "absoluta" con -creção da matéria ser minado pela física atómicamoderna .

Os pintores começaram a pensar a respeitodo "objeto mágico" e da "alma secreta" dascoisas. O pintor italiano Carlos Carrà escreveu:"São as coisas comuns que nos revelam as for-mas simples através das quais podemos alcançaresta condição mais elevada e significativa do ser,

onde se encontra todo o esplendor da arte.'' DizPaul Klee: "O objeto expande-se além dos li-mites da sua aparência pelo conhecimento quetemos de que ele significa mais do que o que ve-mos exteriormente, com os nossos olhos." E es-creve Jean Bazaine: "Um objeto desperta o nos-so amor simplesmente porque parece ser por-tador de forças maiores que ele mesmo.''

Declarações deste tipo lembram o velhoconceito alquimis ta do "espírito da matéria" ,que se considerava como sendo o espírito que seencontra dentro e por detrás de objetos ina-nimados , como o metal ou a pedra. Em termospsicológicos, este espírito é o inconsciente. Ma-nifesta-se sempre que o conhecimento cons-ciente ou racional alcança seus limites extremos eo mistério se estabelece, pois o homem tende apreencher o inexplicável e o imponderável comos conteúdos do seu inconsciente: é como se eleos projetasse em um receptáculo escuro e vazio.

A sensação de que o objeto significa "maisdo que o olho pode perceber", e que é com-partilhada por muitos artistas, encontrou ex-pressão realmente notável no trabalho do pintoritaliano Giorgio de Chirico. De temperamentomístico, era um investigador trágico, que nãoencontrava nunca o que buscava. Escreveu noseu auto-retrato, em 1908: Et quid amabo nisiquod aenigma est ("E que devo eu amar, senãoo enigma ?").

De Chirico foi o fundador da chamada pit -tura metafísica. "Todo objeto", escreveu ele,"tem dois aspectos: o aspecto comum, que é oque vemos em geral e que os outros tambémvêem, e o aspecto fantasmagórico e metafís icoque só uns raros indivíduos vêem nos seus mo-mentos de clarividência e meditação metafísica.Uma obra de arte deve exprimir algo que nãoapareça na sua forma visível.''

As obras de De Chirico revelam este "as-pecto fantasmagórico" das coisas. São trans-posições sonhadoras da realidade que surgem co-mo visões do inconsciente. Mas sua "abstraçãometafís ica" é expressada numa rigidez que tocaas raias do pânico, e a atmosfera dos seus qua-dros é de pesadelos e de melancolia ilimitada.As praças de cidades italianas, as torres, os ob-jetos são colocados numa perspectiva exa-geradíssima, como se estivessem no vácuo, ilu-minados por uma luz fria e impiedosa vinda deuma fonte invisível. Cabeças antigas e estátuasde deuses evocam o passado clássico.

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Um exemplo de arte "surrealista": OsSapatos Vermelhos, do pintor francêsRené Magritte (1898-1967). Grandeparte do efeito perturbador da pinturasurrealista vem da associação ejustaposição de objetos sem nenhumarelação entre si — muitas vezesabsurdas, irracionais e oníricas.

Em um dos seus quadr os mai s im -pressionantes ele colocou ao lado da cabeça demármore de uma deusa um par de luvas de bor-racha vermelhas, um "objeto mágico", no sen-tido moderno. Uma bola verde no chão atua co-mo um símbolo, unindo estes contrários ab-solutos ; sem ela haveria ali mais do que uma in-sinuação de desintegração psíquica. Este quadronão é, evidentemente, resultado de uma ela-boração sofisticada; deve ser apreciado como aimagem de um sonho.

De Chirico foi profundamente influenciadopelas filosofias de Nietzsche e Schopenhauer.Escreveu: "Schopenhauer e Nietzsche foram osprimeiros a ensinar a profunda significação donenhum sentido da vida, e a mostrar como sepodia transformar isto em arte. . . O vazio ter -rível que descobriram é a verdadeira beleza, im-perturbada e despida de alma, da matéria.' ' Nãose sabe ao certo se De Chirico teve sucesso em tra-duzir este "vazio terrível " em "beleza im-perturbada". Alguns dos seus quadros são ex-tremamente perturbadores ; alguns são ater -radores como um pesadelo. Mas no seu esforçopara dar ao vazio uma expressão artística, ele pe-netrou no âmago do dilema existencial do ho-mem contemporâneo.

Nietzsche, a quem De Chirico cita comoautoridade no assunto , deu nome ao "vazio ter -rível" quando disse "Deus está morto". Sem re-ferir-se a Nietzsche, escreveu Kandinsky no seuO Espir itual na Arte: "O céu está vazio. Deusestá morto." Uma frase deste tipo soa de ma-neira abominável. Mas não é nova. A idéia da"morte de Deus" e sua consequência imediata,o "vazio metafís ico", já inquietava o espíri todos poetas do século XIX, sobretudo na França ena Alemanha. Passou por uma longa evoluçãoque, no século XX, alcançou um estágio de dis-cussão livre e encontrou expressão na arte. A ci-são entre a arte moderna e o cristianismo foi, afi-nal, consumada.

O Dr. Jung também percebeu que este es-tranho e misterioso fenômeno da morte de Deusé um fato psíquico de nossa época. Escreveu, em1937: "Sei — e expresso aqui o que inúmeraspessoas também sabem — que a época atual é ado desaparecimento e morte de Deus.'' Duranteanos ele observara como a imagem cristã deDeus vinha se enfraquecendo nos sonhos dosseus pacientes — isto é, no inconsciente do ho-mem moderno. A perda dessa imagem é a perdado fator supremo que dá significação à vida.

Deve ser ressaltado porém que nem a de-claração de Nietzsche de que Deus está morto,nem o "vazio metafís ico" de De Chir ico, nemas deduções de Jung constituem afirmações de-finitivas sobre realidade e existência de Deus oude algum ser ou não-ser transcendenta l. Sãoapenas afirmações humanas. Em cada caso estãofundamentadas, como Jung mostrou em Psi-cologia e Religião, nos conteúdos da psique in-consciente que penetraram na consciência sob aforma tangível de imagens, sonhos, idéias ou in-tuições. A origem destes conteúdos e a causa detal transformação (de um Deus vivo para umDeus morto) vão permanecer desconhecidas, si -tuadas nas fronteiras do mistério

De Chirico jamais encontrou solução de-finitiva para o problema que lhe foi apresentadopelo inconsciente. Esta derrota é facilmente ob-servada na sua representação da figura humana.Devido às condições religiosas atuais é ao pró-prio homem que deve ser outorgada uma dig-nidade e uma responsabilidade novas, ainda queimpessoais (Jung a define como uma res-ponsabilidade para com a consciência). Mas naobra de De Chir ico o homem é privado de sua

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Tanto Giorgio de Chirico (nascidoem 1888) como Marc Chagall(nascido em 1887) procuraram verpara além da aparência exterior dascoisas; suas obras parecem terbrotado das profundezas doinconsciente. Mas a visão de DeChirico (abaixo, o seu Filósofo ePoeta) era sombria, melancólica,vizinha do pesadelo, enquanto a deChagall sempre foi rica, quente eviva. À direita, uma das suas grandesjanelas coloridas, criada em 1962para uma sinagoga de Jerusalém.

Na Canção de Amor (à esquerda) deDe Chirico, a cabeça de mármore dadeusa e a luva de borracha sãoelementos absolutamente opostos. Abola verde parece funcionar comoum símbolo de união.

À direita, Musa Metafísica de CarlosCarrà (1881-1966). O manequim semrosto é também um tema freqüenteem De Chirico.

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alma; torna-se um manichino, um boneco semrosto (e portanto também sem consciência).

Nas vári as versões do seu Grande Me -tafísico, uma figura sem rosto está entronada emum pedestal feito de detritos . A figura é, cons-ciente ou inconscientemente, uma representaçãoirônica do homem que luta para descobrir a"verdade" metafísica e, ao mesmo tempo, umsímbolo de solidão e insensatez totais. Ou talvezos manichini (que também perseguem as obrasde outros artistas contemporâneos) sejam umapremonição do homem massificado, sem face.

Quando estava com 40 anos, De Chiricoabandonou sua pittura metafísica; voltou ao es-tilo tradicional, mas sua obra perdeu em pro-fundidade. Temos aí uma prova segura de quepara a mente criadora, cuja inconsciência foi en-volvida no dilema fundamental da existênciamoderna, não existe a "volta às origens''.

O pintor russo Marc Chagall pode ser con-siderado a contrapartida de De Chirico . Tam-bém ele busca na sua obra uma ''misteriosa e so-litária poesia" e o "aspecto fantasmagórico dascoisas que só raros indivíduos conseguem vis-lumbrar". Mas o simbolismo de Chagall, mui-to rico, está enraizado na piedade do judaísmooriental e em um sentimento de cálida ternurapela vida. Não enfren tou nem o problema dovazio nem o da morte de Deus. Escreveu: "Tu-do pode mudar no nosso desmoralizado mundo,menos o coração, o amor do homem, e sua lutapara conhecer o divino. A pintura, como toda apoesia, participa do divino; e as pessoas sentemisso hoje em dia tanto quanto antigamente. ''

O autor britânico Sir Herbert Read escreveuuma vez que Chagall nunca transpôs totalmentea fronteira do inconsciente, tendo "sempre con-servado um pé na terra que o alimentara". Estaé a relação "correta" que se deve ter com o in-consciente. E o mais importante, como acentuaRead, é que "Chagall ficou sendo um dos maisinfluentes artistas da nossa época''.

Este contraste estabelecido entre Chagall eDe Chirico levanta um questão importante paraa compreensão do simbolismo na arte moderna:que forma toma o relacionamento entre a cons-ciência e a inconsciência na obra do artista mo-derno? Ou, melhor ainda, onde fica o homemnisto tudo?

Pode -se encontrar resposta a esta s in-dagações no movimento chamado surrealismo,que se considera ter sido fundado pelo poe ta

francês André Breton (De Chirico também podeser considerado um surrealista). Como estudantede medicina, Breton tomara conhec imento daobra de Freud. Assim, os sonhos vieram a ocuparum lugar importante em seus pens amentos."Não se poderá usar os sonhos para resolver osproblemas fundamentais da vida?'' escreveu ele.''Creio que o antagonismo aparente entre sonhoe realidade será resolvido por uma espécie derealidade absoluta — o surrealismo.''

Breton percebeu admiravelmente este pon-to. O que ele buscou foi a reconciliação doscontrários, o consciente e o inconsciente. Mas amaneira que utilizou para alcançar este objetivosó podia levá-lo a extraviar-se. Começou ex-perimentando o método de Freud da livre as-sociação e o da escrita automática, em que as pa-lavras e frases que surgem do inconsciente sãoconsignadas sem nenhum controle consciente.Breton chamava a isto "ditado do pensamento,independente de qualquer preocupação estéticaou mora l".

Mas este processo significa, simplesmente,que o caminho está aberto para o fluxo das ima-gens inconscientes , e que a parte importante emesmo decisiva representada pelo consciente fi-ca ignorada. Como o Dr. Jung mostrou em seucapítulo, é o consciente que detém a chave dosvalores do inconsciente e que, portanto, re-presenta a parte decisiva. Só o consciente é com-petente o bastante para determinar o significadodas imagens e reconhecer o seu sentido para ohomem, aqui e agora, na realidade concreta doseu presente. É apenas na interação do cons-ciente com o inconsciente que este último podeprovar o seu valor e, talvez mesmo, revelar umamaneira de vencer a melancolia do vazio. Se oinconsciente, uma vez ativado, for abandonadoa si próprio, há o risco de os seus conteúdos setornarem dominadores ou manifestarem o seulado negativo e destruidor.

Se observarmos quadros surrealistas (como AGirafa em Fogo, de Salvador Dali) tendo estasconsiderações em mente, podemos sentir a ri-queza da fantasia e a pujança das imagens in-conscientes destes artistas, e ao mesmo tempoconstatamos o horror e o simbolismo de um fimpara todas as coisas que emanam de tantos deles.O inconsciente é natureza pura e, como a na -tureza, distribui prodigamente as suas dádivas .Mas, entregue a si próprio e sem a reação hu-mana da consciência, pode (mais uma vez tal co-

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mo a natureza) destruir seus dons e mais cedo oumais tarde aniquilá -los.

O problema da função da consciência napintura moderna aparece também em conexãocom o uso do acaso como meio de composição.Em Beyond Painting (Para Além da Pintura)Max Ernst escreveu: "A associação de uma má-quina de costura com um guarda-chuva sobreuma mesa cirúrgica [citação do poeta Lau -tréamont] é um exemplo famil iar, agora clás-sico, do fenômeno descoberto pelos surrealis tasde que a associação de dois (ou mais) elementosaparentemente estranhos um ao outro sobre umplano estranho aos dois é o fator de combustãomais potente da poesia.''

Isto é provavelmente tão difícil para o leigoentender quanto o comentário de Breton sobre omesmo assunto: "O homem que não pode vi-sualizar um cavalo galopando sobre um tomate éum perfeito idiota.'' (Podemos evocar aqui a as-sociação fortuita da cabeça de mármore com asluvas de borracha vermelhas no quadro de DeChirico.) Certamente, muitas dessas associaçõesforam simples brincadei ras e disparates. Mas oque a maiori a dos artis tas modernos pretendenada tem de engraçado.

Um dos mais conhecidos pintores"surrealistas" é Salvador Dali(nascido em 1904). Acima, seufamoso quadro A Girafa em Fogo.Abaixo, um dos frottagres (desenhoobtido por uma técnica de raspageme esfrega de ladrilhos) de Max Ernst,da sua História Natural.

A série História Natural de Ernstlembra o interesse que havia emtempos passados pelas formas"acidentais" da natureza. Abaixo,gravura de uma coleção holandesa,do século XVIII, também umaespécie de "história natural"surrealista, com suas pedras, corais eesqueletos

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O acaso tem um papel significativo na obrado escultor francês Jean (ou Hans) Arp. Suas gra-vuras de folhas e outras formas jogadas ao acasosão uma outra expressão da busca, como diz ele,de "um significado secreto e primitivo que dor-mita sob o mundo das aparências". Chamou aestas composições Folhas agrupadas segundo asleis do acaso e Quadrados agrupados segundo asleis do acaso. Nestas composições é o acaso quedá profundidade à obra de arte, salientando umprincípio desconhecido, mas ativo, de sentido ede ordem que se manifesta nas coisas como sua"alma secreta".

Foi acima de tudo o desejo de "tornar oacaso essencial" (segundo Paul Klee) que fun-damentou os esforços dos surrealistas para tomarveios da madeira, formações de nuvens etc. co-mo pont o de partida para a sua pintura vi-sionária. Max Ernst, por exemplo, retornou aLeonardo da Vinci, que escreveu um ensaio so-bre observações feitas por Botticelli de que jo-gando-se uma esponja mergulhada em tinta nu-ma parede as manchas resultantes nos fazem vercabeças, animais, paisagens e uma extensa hostede configurações.

Erns t descreve como foi perseguido poruma visão, no ano de 1925. A visão se impôs

verdadeiramente a ele quando fixava um chãoladrilhado e marcado por milhares de ranhuras."Para dar base às minhas faculdades de me-ditação e alucinação, fiz uma série de desenhosdos ladrilhos colocando sobre eles, ao acaso, fo-lhas de papel e depois esfregando creion por ci-ma . Quando olhei o resul tado espantei-me emsentir , de repente, com uma intensa acuidade, asérie alucinante de imagens contras tantes e su-perpostas. Reuni os primeiros resultados obtidosdaquelas esfregadelas [frottages] e chamei-osHistória Natural.''

E importante notarmos que Ernst colocoupor cima ou por trás destes frottages um anel oucírculo dando à imagem uma atmosfera e umaprofundidade particulares. O psicólogo pode re-conhecer aqui o impulso inconsciente de opor aoacaso caótico daquela linguagem natural da ima-gem um símbolo de totalidade psíquica auto-suficiente, estabelecendo assim o equilíbr io. Oanel ou círculo domina o quadro. A total idadepsíquica, tendo um sentido próprio e dando umsentido às coisas, rege a natureza.

Nas tentativas de Max Ernst para descobrir aordem secreta das coisas, podemos perceber umaafinidade com os românticos do século XIX. Elesse refe riam à "cal igra fia" da natureza , que po-

À direita, moedas romanas usadasem localidades progressivamentemais distantes de Roma. A face daúltima moeda (a mais distante docentro de controle) desintegrou-se.Há nesta imagem uma estranhacorrespondência com adesintegração psíquica que drogascomo o LSD podem provocar.Abaixo, desenhos de um artistadrogado para uma experiênciarealizada na Alemanha, em1951. Osdesenhos vão se tornando cada vezmais abstratos á medida que ocontrole do consciente vai sendovencido pelo inconsciente

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demos ver escrita em todos os lugares — nas asasdos pássaros, nas nuvens, nas cascas dos ovos, naneve, nos cristais de gelo, e em outras "estranhasconjunções do acaso", assim como nos sonhosou nas visões. Os românticos viam em tudo aexpressão de uma única e mesma "linguagempictórica da natureza". Foi assim um gesto ge-nuinamente românt ico o de Max Ernst ao cha-mar "história natura l" os quadros resultantesdas suas experiências. E estava certo, pois o in-consciente (que evocara as suas imagens na con-figuração acidental das coisas) é natureza.

É com a História Natural de Ernst ou comas composições do acaso de Arp que começam asurgir as reflexões do psicólogo. Ele se defrontacom o problema de saber que sent ido pode terum arran jo devido ao acaso — onde e quandoquer que ele aconteça — para o homem que oca-sionalmente o encontra. Com esta indagação, ohomem e a consciência também intervêm no as-sunto e, com eles, a possibi lidade de descobrir-se-lhe o sentido.

O quadro que é consequência do acaso po -de ser bon ito ou fei o, har mon ios o ou dis -sonant e, rico ou pobre de con teú do, bem oumal pintado. Estes fatores determinam o seu va-lor artís tico, mas não satisfazem ao psicólogo(para desespero do artis ta e dos que encont ramna contemplação da forma a sua su prema ale-gria). O psicólogo investiga mais além é tentacompreender o "código secreto" do arranjo re -sult ante do acaso, na medida em que o homemo pode decifrar . O número e a forma dos objetosjogados juntos e ao acaso por Arp suscitam tan-tas questões quanto qualquer dos detalhes dasfantásticas frottages de Ernst. Para o psicólogos,eles são símbolos, e portanto não podem ser ape-

nas sent idos , devendo, até certo ponto, ser in-terpretados.

O afastamento aparente ou real do homemde muitas obras de arte moderna, a falta de re-flexão, a predominância do inconsciente sobre oconsciente oferecem ao crítico inúmeros pontosde ataque. Referem-se eles, então, à arte pa-tológica ou comparam este tipo de composiçãocom quadros pintados por loucos, pois uma dascaracterísticas da psicose é a consciência e o egoficarem submersos, "afogados" no fluxo dosconteúdos provenientes das regiões inconscientesda psique.

É bem verdade que as comparações críticasde hoje não são tão violentas quanto as que se fa-ziam há uma geração. Quando o Dr. Jung es -tabeleceu, pela primeira vez, uma analogia destetipo em um ensaio sobre Picasso (1932), pro-vocou uma tempestade de protestos. Hoje o ca-tálogo de uma conhecida galeria de arte de Zu-rique refere-se à "obsessão quase esquizofrêni-ca" de um famoso artista, e o escritor alemãoRudolf Kassner , apontando Georg Trakl como"um dos maiores poetas germânicos" , prosse-gu e di ze nd o: "H av ia ne le al go de es -quizofrênico. Pode-se perceber na sua obra mar-cada, també m ela, por um toque de es-quizofrenia. Sim, Trakl é um grande poeta .''

Hoje já se admite que a esquizofrenia nãoexclui a visão artística e vice-versa. Em minhaopinião, as famosas experiências com mescalinae drogas similares contribuíram para esta mu-dança de atitude. Estas dro gas criam um estadovisionário onde cores e formas se intensificam,como na esquizofrenia. E mais de um artistacontemporâneo tem buscado este tipo de ins-piração.

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A fugada realidade

Franz Marc disse um dia: "A arte do futurodará expressão formal às nossas convicções cien-tíficas." Foi uma afirmação profética. Já obser-vamos a influência que exerceram sobre os ar-tistas, nos primeiros anos do século XX, a psi-canálise de Freud e a descoberta (ouredescoberta) do inconsciente. Outro pontoimportante foi a relação entre a arte moderna e osresultados obtidos nas pesquisas da física nuclear.

Em termos simples, não científicos, a físicanuclear despojou as unidades básicas da matériado seu caráter absolutamente concreto. Tornou amatéria misteriosa. Paradoxalmente, massa eenergia, onda e partícula provaram suapermutabilidade. As leis de causa e efeitomostraram-se válidas apenas até certo ponto. Jápouco importa que todas essas relatividades,descontinuidades e paradoxos só se apliquemaos limites extremos do nosso mundo oinfinitamente pequeno (o átomo) e oinfini tamente grande (o cosmos) . Provocaramuma mudança drástica no conceito de realidade,pois uma realidade nova, e irracional etotalmente diferente, surgiu por trás darealidade do noss o mun do "natural" , regidopelas leis da físicaclássica.

Relatividades e paradoxos análogos foramdescobertos no domínio da psique. Aqui tam-bém surgiu um outro mundo às margens domundo da consciência , governado por novas eaté então desconhecidas leis, estranhamente se-melhantes às leis da física nuclear. O paralelismo

entre a física nuclear e a psicologia do inconsci-ente coletivo foi matéria muitas vezes discutidapor Jung e por Wolfgang Pauli, prêmio Nobelde física. O contínuo tempo-espaço da física e oinconsciente coletivo podem ser considerados,por assim dizer, como o aspecto exterior e in-terior de uma única e mesma realidade que se es-conde por trás das aparências. (A relação entre afísica e a psicologia será discutida pela Dra. M.-L. von Franz na conclusão deste livro.)

É característica deste mundo único que seencontra por detrás do universo da física e dapsique ter leis, processos e conteúdos ini-magináveis. E este é um fator de extrema im-portância para a compreensão da arte de nossostempos, pois o tema principal da arte moderna étambém, em um certo sent ido, inimaginável .Por este motivo, grande parte da arte modernatornou-se "abstrata". Os grandes artistas desteséculo procuraram dar forma visível à "vida queexiste por detrás das coisas'', e por isso suas obrassão a expressão simbólica de um mundo que se

Os quadros destas páginas, todos deFranz Marc (1880-1916), mostram asua evolução progressiva de uminteresse por objetos exteriores parauma arte completamente "abstrata"À extrema esquerda, Cavalos Azuis(1911); ao centro, Cabritos em umBosque (1913-14); abaixo, Jogo deFormas(1914).

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À esquerda, Tela n.° 7 de PietMondrian — um exemplo daaproximação moderna à "formapura" (termo de Mondrian) atravésdo emprego de estruturasgeométricas totalmente abstratas.

A arte de Paul Klee é exploraçãovisual e expressão do espírito que seesconde por trás da natureza — oinconsciente, ou como ele diz, "osecretamente percebido". Algumasvezes sua visão pode serperturbadora e demoníaca, como emMorte e Fogo, á direita; ou revelaruma imaginação mais poética, comoem Simbad, o Marinheiro (extremadireita).

encontra por detrás da consciência (ou, talvez,por detrás dos sonhos, pois só raramente os so-nhos não são figurativos). Assinalam, assim, area lid ade "ún ica", a vida "ún ica" que par eceser um segundo plano comum aos dois domíniosdas aparências, o da física e o da psicologia.

Só alguns poucos artistas tomaram cons-ciência da relação existente entre a sua forma deexpressão e a física e a psicologia. Kandinsky éum dos mestre s que exp res sou a pro fun daemoção que lhe despertaram as primeiras des-cobertas da física moderna. "No meu espírito , ocolapso do átomo foi o colapso de todo ummundo: de repente, tombaram as minhas maisfirmes muralhas. Tudo se tornou instável, in-seguro e sem substância. Não me surpreenderiase uma pedra se volatizasse diante de meus o-lhos. A ciência parecia -me ter sido aniquilada."O resultado desta decepção foi o afastamento doartista do "reino da natureza", do "populosopri mei ro pla no das coi sas ". "Parec ia" , a -crescentou Kandinsky, "que eu estava vendo aarte desprender -se firmemente da natureza.''

Esta ruptura com o mundo das coisas acon-teceu mais ou menos ao mesmo tempo com ou-tros artistas. Escreve Franz Marc: "Nãoaprendemos, depois de milhares de anos de ex-periências, que as coisas falam cada vez menosquando lhes damos a precisão ótica de um es-pelho? A aparência será eternamente pobre derelevos..."

Para Marc, o objetivo da arte era "revelar avida sobrenatural que existe por detrás de tudo,quebrar o espelho da vida para que se possa con-templa r o verdadeiro rosto do Ser". E escrevePaul Klee: "O artista não atribui às formas na-turais do universo aparente a mesma significação

convincente dos realistas que o criticam. Ele nãose sente intimamente ligado a esta realidadeporque não consegue ver nos produtos formaisda natureza a essência do processo criador. Estámais interessado nas forças format ivas do quenas formas que estas forças produzem." PietMondr ian acusou o cubismo de não ter per-seguido a abstração até a sua conclusão lógica ,"a expressão da realidade pura". Isto só se con -segue com a "criação da forma pura", livre dequa lqu er condic ion amento a sen timent os eidéias subjetivas. "Por detrás das mudanças dasformas naturais existe a realidade pura, que nãomuda jamais ."

Um grande número de artis tas tentou pas -sar das aparências à realidade de um segundoplano, ou ao "espírito da matéria'', por um pro-cesso de transmutação dos objetos — através dafantasia, do surrealismo, das imagens oníricas,do acaso etc . Os art istas "abstratos", no en -tanto, voltaram as costas aos objetos. Seus qua-dros não continham obj etos identi ficáveis;eram, segundo expressão de Mondrian , nadamais que ''forma pura ''.

Mas é preciso nos darmos conta de que oque interessava a estes artistas era um problemamuito mais vasto que o da forma ou da distinçãoentre "concreto" e "abstrato" , figurativo e não-figurativo. Seu objetivo era o centro da vida edas coisas, o seu imutável segundo plano, e aaquisição de certeza interior. A arte se tornaraem misticismo.

O espírito em cujo mistério a arte estavasubmersa era um espírito terrestre, aquele a queos alquimistas medievais chamavam Mercúrio.Mercúrio é o símbolo do espírito que estes ar-tistas pressentiam ou buscavam por trás da na -

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tureza e das coisas, "por trás da aparência da na-tureza". O seu misticismo não era cristão, pois oespírito de Mercúrio é estranho ao espírito "ce-leste". Na verdade, era o velho e tenebroso ad-versário do cristianismo que maquinava seu ca-minho arte adentro. Começamos a ver aqui averdadeira significação histórica e simbólica da"arte moderna". Tal como os movimentos her-méticos da Idade Média, ela deve ser com-preendida como um misticismo do espírito daterra e, portanto, uma expressão de nossa épocade compensação ao cristianismo.

Nenhum artista sentiu este segundo planomístico da arte mais agudamente ou falou a seurespeito com paixão mais intensa do que Kan-dinsky. A importância das grandes obras de artede todos os tempos não repousa, a seu ver, "nasuperfície, no exterior, mas na raiz das raízes —no conteúdo místico da arte". E por isto afirma:"O olho do artista deveria estar sempre voltadopara a sua vida íntima, e seu ouvido sempre aler-ta à voz da necessidade interior. É o único meiopara dar expressão ao que a visão mística co-manda."

Kandinsky descrevia seus quadros comouma expressão espiritual do cosmos, uma músicadas esferas, uma harmonia de cores e formas. "Aforma , mesmo quando abstrata e geométrica,tem uma ressonânci a interior; é um ser es-piritual cujas qualidades coincidem exatamentecom aquela for ma." "O impact o do ânguloagudo de um triângulo com um círculo tem umefeito tão surpreendente quanto o dedo de Deustocando o dedo de Adão, em Miguel Angelo.''

Em 1914, Franz Marc escreveu nos seusAforismos: "A matéria é um assunto que o ho-mem cons egue , no máximo, tolerar ; ele se re-

cusa a reconhecê-la. A contemplação do mundotornou-se a penetração do mundo. Não exist emístico que, nos seus momentos de êxtase maissublimes, jamais alcance a abstração perfeita dopensamento moderno, ou que auscul te as suasressonâncias com sonda mais profunda. ''

Paul Klee, que podemos considerar o poetados pintores modernos, diz: "É missão do ar-tista penet rar o mais fundo possível naque leâmago secreto onde uma lei primitiva sustenta oseu crescimento. Que artista não desejar ia ha-bitar a fonte central de todo o movimento es-paço-tempo (esteja ele situado no cérebro ou nocoração da criação), de onde todas as funçõesextraem a sua seiva vital? Onde se esconde a cha-ve secreta de todas as coisas? No ventre da na-tureza, na fonte original de toda criação?... Co-ração a palpitar, somos levados cada vez mais pa-ra baixo, em direção à fonte primeira." E o queencontramos nesta jornada "deve ser levadomui to a sér io, desde que , comb inado in -tegralmente com os meios artísticos apropriados,desabroche em estru tura". Porque, como a-crescenta Klee, não é apenas questão de re-produzir o que se vê, mas de ''tornar visível tudoo que se percebe secretamente". Toda a obra deKlee se inspira e se fixa diretamente nesta fonteoriginal das formas. "Minha mão é, inteira, oinstrumento de uma esfera mais distante . E tam-pouco é a minha mente que age; é alguma outracoisa..." Na sua obra, o espírito da natureza e oespírito do inconsciente são forças inseparáveis.E atraíram-no, a ele e a nós, espectadores, paradentro do seu círculo mágico.

A obra de Klee é a expressão mais complexa— ora poética ora demoníaca — do espírito ctô-nico ou terrestre. O humor e a bizarria lançam

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uma ponte do mundo subterrâneo para o mun-do humano. O liame entre a sua fantasia e a ter-ra é a observação atenta das leis da natureza e oamor por todos os seres. "Para o artista" , es-creveu uma vez, "o diálogo com a natureza é acondição sine qua non de sua obra.''

Encontramos uma expressão diversa desteespíri to inconsciente e secreto em um dos maisjovens pintores "abstratos", Jackson Poll ock,um americano morto aos 44 anos em um aci-dente de automóvel. Sua obra exerceu enormeinfluência nos artistas mais jovens de nossa épo-ca. Em Minha Pintura, ele revelou que tra -balhava em uma espécie de transe: "Quandopinto não me dou conta do que estou fazendo.Só após um período de 'familiarização' é que ve-rifico o que resultou. Não receio fazer mudançasou destruir imagens etc. porque o quadr o temvida própria. E tento deixá-la surgir. Apenasquando perco contato com o quadro é que o re-sultado é confuso . De outro modo há harmoniapura, um cômodo tomar e dar, e o quadro re-sul ta bem."

Os quad ros de Poll ock, pintados pra -ticamente em estado de inconsciência, são car-regados de uma veemência emocional sem li-mites. Na sua falta de estrutura são quase caó-ticos, um ardente fluxo de lava de cores, linhas,planos e pontos. Podem ser considerados aná-logos àquilo que os alquimistas chamavam, mas-sa confusa, a prima matéria ou caos — termostodos que definem a preciosa matéria-prima do

processo alquímico, o ponto de partida da buscada essência do ser. Os quadros de Pollock sig-nificam o nada, que é tudo — isto é, o próprioinconsciente. Parecem vir de uma época anteriorao aparecimento da consciência e do ser; ou pa-recem, ainda, evocar fantásticas paisagens deuma época em que a consciência e o ser estariamextintos.

Na metade do nosso século a pintura pu -ramente abstrata, sem qualquer disposição re-gular de formas e cores, tornou -se a expressãomais comum da pintura. Quanto mais profundaa dissolução da "realidade" mais o quadro perdeseu conteúdo simbólico. A razão deste fe-nômeno está na natureza do símbolo e na suafunção. O símbolo é um obje to do mundo co-nhecido que sugere alguma coisa desconhecida;é o conhecimento expressando vida e sentido doinexprimível. Mas nos quadros meramente abs-tratos o mundo conhecido é completamenteafastado. Nada resta que permi ta lançar umaponte para o desconhecido.

Por outro lado, estas pinturas revelam umsegundo plano inesperado, um sent ido oculto.Muitas vezes são imagens mais ou menos exatasda própria natureza, e mostram uma im-pressionante semelhança com a estrutura mo-lecular de elementos orgânicos e inorgânicosdest a mesma natureza, o que nos deixa per-plexos. A abstração pura tornou-se uma imagemda natureza concreta. Mas Jung pode dar-nos,talvez, a chave do problema:

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"As camadas mais profundas da psique" ,disse ele, "perdem sua singularidade individualà medida que mergulham na escuridão. Nos ní-veis mais baixos, isto é, quando se aproximamdos sistemas funcionais autônomos, tornam-secada vez mais coletivas até que se universalizame desaparecem na materialização do corpo, istoé, em substâncias químicas. O carbono do corpoé carbono, simplesmente. Assim, 'intrinseca-mente' a psique é apenas 'mundo'. ''

Uma comparação entre pintura abstrata emicrofotografia mostra que a abstração pura naarte imaginativa tornou-se, de um modo secretoe surpreendente, "naturalista", já que tem porobjeto os elementos da matéria. A "grande abs-tração" e o "grande realismo" que se haviamseparado no início do nosso século juntaram-sede novo. Lembremo-nos das palavras de Kan-dinsky: "Os pólos abrem dois caminhos que le-vam, no final , a um único alvo." Este "alvo",este ponto de união, é alcançado na pintura abs-trata moderna. Mas o é de maneira totalmenteinconsciente. O processo não é determinado pornenhuma intenção do artista.

Esta observação nos leva a um dado muitoimportante da arte moderna: o artista não é, co-mo parece, tão livre na sua criação quanto a-credita ser. Se sua obra for realizada de maneiramais ou menos inconsciente, ela será controladapor leis da natureza que, no plano mais pro -fundo, correspondem às leis da psique, e vice-versa.

Os grandes pioneiros da arte moderna de-ram a mais clara expressão a seus verdadeiros ob-jetivos e às profundezas de onde nasce o espíritoque os marcou com suas impressões. Este pontoé importante , apesar de nem sempre os artistasque os sucederam (e que podem não ter per-cebido tudo isto) terem auscultado as mesmasprofundezas. No entanto, Kandinsky ou Kleejamais avaliaram o grave risco psicológico a quese expunham com a sua submersão mística noespírito terrestre e no cerne original da natureza.Este risco deve ser, agora, explicado.

Como pont o de part ida podemos abordaroutro aspecto da arte abstrata. O escritor alemãoWilhelm Worringer interpretou a arte abstratacomo a expressão de um mal-estar e de uma an-gústia metafísica que lhe pareciam mais acen-tuados entre os povos nórdicos. Como explicou,a realidade lhes é motivo de sofrimento. Nãoposs uem a naturalidade da gent e sul ina e an -

seiam por um mundo super-real e supersensual aque dão expressão através da arte imaginativa ouabstrata.

Mas como assinala Sir Herbert Read na suaHistória Concisa da Arte Moderna (Concise His-tory of Modern Art) a ansiedade metafísi ca jánão é só germânica ou nórdica; atualmente, éuma característica de todo o mundo moderno.Read cita Klee, que escrevia em seu Diário noiníci o de 1915: "Quanto mais horr ível se tornao mundo (como nestes nossos dias) mais a arte setorna abstra ta ; já um mundo em paz produzuma arte realística." Para Franz Marc, a abstra-ção oferecia um refúgio contra o mal e o feioexi stentes no mundo. "Cedo em minha vidasent i que o homem era feio . Os animais pa-reciam mais amáveis e puros, e no entanto, mes-mo entre eles, descobri tanta coisa revoltante eodiosa que minha pintura tornou -se cada vezmais esquemática e abstrata.''

Muito podemos aprender com um diálogoque ocorreu em 1958 entre o escultor italianoMarino Marini e o escritor Edouard Roditi. O te-ma dominante de que Marini se ocupara duranteanos, sob múltiplas formas, fora a figura de umjovem nu sobre um cavalo. Nas primeiras versõesque ele descreveu, na conversa a que nos re-ferimos, como "símbolos de esperança e gra-tidão" (após o término da Segunda GrandeGuerra), o cavaleiro monta seu cavalo com osbraços estendidos e o corpo um pouco inclinadopara trás. Com o correr dos anos o tratamento do

Os quadros de Jackson Pollock (áesquerda, o N.º23) eram pintados emtranse (inconscientemente), a exemplodo que acontece com outros artistasmodernos — como o francês GeorgesMathieu (à extrema esquerda), adeptoda pintura "de ação". O resultadocaótico, mas forte, pode ser comparadocom a "massa confusa" da alquimia, elembra estranhamente formasreveladas nas microfotografias (vejapág. 22). À direita, uma configuraçãosemelhante: vibrações produzidas pelosom das ondas na glicerina.

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tema tornou -se mais "abst rato" . A forma maisou menos "clássica" do cava lei ro foi gra -dualmente se dissolvendo.

Referindo-se ao sentimento que motivouesta transformação, disse Marini: "Se repararemnas minhas estátuas equestres dos últimos 12anos, em ordem cronológica, vão verificar que opâni co do animal cresce cont inuamente, masque ele fica transido de terror e paralisado emlugar de empinar -se ou disparar. Tudo isto por-que acredito que estamos nos aproximando dofim do mundo. Em cada estátua esforcei -me porexprimir este medo e este desespero crescentes.Deste modo, tento simbol izar a última etapa deum mito agonizante, o mito do indivíduo, heróivitorioso , do homem virtuoso do humanismo.''

Nos contos de fada e nos mitos o "herói vi-torioso" simboliza a consciência. Sua derrota,como diz o próprio Marini, significa a morte doindivíduo, um fenômeno que se manifesta so-cialmente pela dissolução do indivíduo na massae artis ticamente pelo declín io do elemento hu-mano.

Quando Roditi perguntou se Marini estavarenunciando aos cânones clássicos para tornar-se"a bs tr at o" , o pi nt or re sp on de u: "N o mo -mento que a arte tem de expressar medo, deixapor ela mesma o ideal clássico.''

Encontrou temas para sua obra nos corposdescobertos em Pompéia. Rodit i denominou aarte de Marini "estilo Hiroxima", pois ela evocavisões do fim do mundo. Marini, aliás, con-cordou com a classificação. Sentia-se, dizia ele,como se tivesse sido expulso de um paraíso ter -restre. "Até recentemente, o escultor visava aovigor das formas e à plenitude sensual. Mas nosúltimos 15 anos, a escultura prefere formas emdesintegração ."

O diálogo entre Marini e Roditi explica atransformação da arte "sensor ial" em abstra tade maneira clara para qualquer um que já tenhapercorrido atentamente uma expos ição de artemoderna. Não importa o quant o o visit ante vaiapreciar ou admira r suas qualidades con -vencionais , ele difici lmente poderá deixar desentir o medo, o desespero, a agressão e a zom-baria que soam como um grito lançado de mui-tas das obras expostas. A "inquietude me-tafísica" expressa na angústia destes quadros eesculturas pode ter brotado, como acon teceucom Marini , do desespero de um mundo con-dena do. Em outros casos, pode ter sido acen-

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tuado o fator religioso ante o sentimento de queDeus está morto . Há uma íntima ligação entreos dois motivos.

Na raiz desta angústia interior está a derrota(ou melhor, o recuo) da consciência. No estuárioda experiência mística, tudo que já ligou o ho-mem ao universo humano, à terra, ao tempo eao espaço, à matéria e à vida natural, foi re-jeitado ou destruído. Mas se a inconsciência nãofor contrabalançada pela experiência consciente,ela vai manifestar, implacavelmente, o seu as-pecto desfavorável ou negativo. A riqueza dosom criador que fez a harmonia das esferas ou osmaravilhosos mistérios da natureza original fo-ram substituídos pela destruição e pelo desespe -ro. Em mais de um caso o artista tornou-se umavítima passiva do seu inconsciente.

Na física, também, o mundo que jaz numsegundo plano revelou sua natureza paradoxal ;as leis dos elementos mais íntimos da natureza,as estruturas e as relações recentemente des-cobertas na sua unidade básica, o átomo, tor-naram-se o fundamento científ ico de armas dedestruição sem precedente, e abriram caminhoao aniquilamento. O conhecimento máximo e adestruição do mundo são dois aspectos destadescoberta dos alicerces primordiais da natureza.

Jung , tão fami liar izado com o perigo dadupla natureza do inconsciente quanto com aimportânc ia da consciência humana , só pôde

Ao alto e ao centro, duas esculturas deMarino Marini (1901-66),respectivamente de 1945 e 1951,mostram como o tema do cavalo e docavaleiro passou de uma expressão detranquilidade para uma expressão demedo torturante e desespero, enquantoas esculturas se foram tornando cadavez mais abstratas. As obras maisrecentes de Marini foram influenciadaspelo aspecto igualmente tocado depânico, de corpos encontrados emPompéia (à esquerda).

oferecer à humanidade uma arma contra a ca-tástrofe: o apelo à consciência individual, queparece tão simples mas é no entanto tão árduo.

A consciência não é apenas indispensávelcomo contrapeso ao inconsciente, e não é só elaque dá significado à vida. Tem também umafunção eminentemente prática. Podemos, damesma maneira que vemos o mal no mundo ex-terior, nos nossos vizinhos ou em outros povos,tomar consciência dele também nos conteúdosnefastos da nossa própria psique, e este co-nhecimento seria o primeiro passo para uma ra-dical mudança de atitude para com o nosso pró-ximo.

A inveja, a luxúria, a sensualidade, a men-tira e todos os outros vícios são o aspecto "es-curo" e negativo do inconsciente, que se podemanifestar de dois modos. No seu aspecto po-sitivo, aparece como um "espíri to da natureza",cuja força criadora anima o homem, as coisas e omundo. É o "espírito ctônico" ou terrestre, quetantas vezes mencionamos neste capítulo. No as-pecto negativo, o inconsciente (aquele mesmoespírito) manifesta-se como o espírito do mal,como uma propulsão destruidora.

Como já observamos, os alquimistas per-sonificaram este espírito como "o espírito deMercúrio" e chamaram-no muito adequada-mente, Mercurius duplex (o Mercúrio de duascaras, dual). Na linguagem religiosa do cris-tian ismo, chamam-lhe diabo. Mas, tão im-provável quanto possa parecer, também o diabotem um aspecto de dualidade. No sentido po-sitivo, aparece como Lúcifer — literalmente,aquele que traz a luz.

Considerada sob o ângulo des tas di-ficuldades e paradoxos, a arte moderna (que re -conhecemos como um símbolo do espírito ter -restre) também tem um aspecto duplo. No sen -tido positivo, é a expressão de um misticismo danatureza, tão misterioso quanto profundo; nonegativo, só pode ser interpretada como a ex -pressão de um espírito mau ou destruidor. Osdois aspectos são inseparáveis, pois o paradoxo éuma das qualidades básicas do inconsciente edos seus conteúdos.

Para evitar qualquer mal-entendido, deveser mais uma vez assinalado que estas con-siderações nada têm a ver com os valores ar-tísticos e estéticos das obras, dizendo respeitoapenas à interpretação da arte moderna comosímbolo de nossa época.

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A uniãodos contrários

Há mais um ponto a abordar. O espíri to deuma época está em movimento incessante. É co-mo um rio que corre, de maneira invisível masconstante, e dado o ritmo de vida do nosso sé-culo até mesmo o espaço de dez anos é um tem-po bastante longo.

Mais ou menos na metade deste século co-meçou a manifest ar-se uma mudança na pin -tura. Nada de revolucionário, nada comparávelà transformação de 1910, que reconstruiu a artesobre bases novas. Mas certos grupos de artistasformularam seus objetivos em termos ainda nãoconhe cidos . E esta trans formação prosseguedentro das fronteiras da pintura abstrata .

A representação da realidade concreta, quenasce da necessidade elementar que tem o serhumano de agarrar o momento que passa aindaem pleno vôo , tornou-se uma ar te ver -dadeiramente concreta e sensorial graças à fo-tografia , tal como é praticada na França porHenri Cartier -Bresson, na Suíça por WernerBischof, e outros. Podemos, assim, compreenderpor que os artis tas continuam no rumo de umaarte interior e imaginativa . Para muitos artistasjovens, no entanto, a arte abstrata como foi pra-ticada durante anos não oferece mais aventura enenhuma possibilidade original de conquista.Buscando o novo, encontraram-no no que lhesestava mais próximo e que fora perdido — nanatureza e no homem. Não estavam nem estãopreocupados em reproduzir a natureza, mas simem expressar a sua experiência emocional par-ticular neste reencontro.

O pintor francês Alfred Manessier definiuos objetivos da sua arte nas seguintes palavras:"O que temos de reconquistar é o peso da rea-lidade perdida. Precisamos fazer para nós mes-mos um novo coração, um novo espíri to, umanova alma, na exata medida do homem. A ver-dadeira realidade do pintor não está nem naabstração nem no realismo, mas na recuperaçãodo seu peso como ser humano. Atualmente , aarte não-figurativa parece -me oferecer ao pintora única oportunidade de abordar sua realidadeinterior e de tomar consciência do seu eu es-sencial ou mesmo do seu ser. Só reconquistando

esta posição, creio eu, é que o pintor será capaz,em tempos vindouros, de volt ar lentamente aele mesmo, de redescobrir seu próprio peso e defortalecê-lo de tal maneira que possa chegar a al -cançar a realidade exterio r do mundo.' '

Jean Bazaine se exprime de maneira aná-loga: "É uma grande tentação para o pintor dehoje pintar o próprio ritmo do seu sentimento, opulsar mais secreto do seu coração, em lugar deincorporá-los a uma forma concreta. Isto porémleva apenas a uma matemát ica dessecada ou auma espécie de expressionismo abstrato, que ter-mina em monotonia e em um progressivo em-pobrecime nto da forma... Mas uma forma queconsegue reconciliar o homem com o seu am-biente é uma 'art e de comunhão', através daqua l, a qua lquer moment o, ele poderá re-conhecer no mundo o seu próprio semblante in -forme ."

O que na verdade interessa aos artistas dehoje é a união consciente da sua realidade in -terior com a realidade do mundo ou da nature-za; ou, em última instância, uma nova união decorpo e alma, de matéria e espírito. É a sua ma-neira de "reconquistar seu peso como ser hu-mano". Só agora é que a enorme fenda existentena arte moderna entre a "grande abstração" e a"grande realidade" está sendo conscientizada ea caminho de encontrar a sua cicatrização.

Para o espectador isto se torna evidente, emprimeiro lugar, pela mudança de atmosfera nasobras destes artistas. Irradiam-se dos quadros depintores como Alfred Manessier ou como o belgaGustave Singier, a despeito de toda a abstração,

Neste século, a representação daatualidade — outrora domínio dopintor e do escultor — foi assumidapelo fotógrafo, cuja câmara não sódocumenta (como qualquer quadropaisagístico dos séculos passados)como também expressa a suaexperiência emocional em relação aoassunto. À direita, uma cenajaponesa fotografada por WernerBischof (1916-54).

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uma nova crença no mundo e, a despeito de to-da a intensidade emocional, uma harmonia deformas e cores que muitas vezes alcança a se-renidade. As famosas tapeçarias de Jean Lurçatda década de 50 estão impregnadas de toda aexuberância da natureza. Sua arte pode ser cha-mada a um tempo sensoria l e imaginativa.

Encontramos também uma serena har -monia de formas e cores na obra de Paul Klee.Esta harmonia é que ele sempre buscara. Acimade tudo, ele tomou consciência da necessidadede não negar o mal. "O próprio mal não deveser um inimigo triunfante ou degradante , masuma força que colabora com o todo." Mas oponto de partida de Klee não foi o mesmo. Eleviveu perto "dos mortos e dos que não nas -ceram", a uma distância quas e cósmica, en -quanto a geração mais jovem de pintores estámais firmemente enraizada na terra.

Um ponto importante a fixar é que a pin-tura moderna, ao avançar o bastante para dis -tinguir a união dos contrários, retomou os temasreligiosos. O "vazio metafísico" parece ter sidovencido. E aconteceu o absolutamente ines -perado: a Igreja tornou-se freguesa da arte mo-derna! Basta mencionar aqui a Igreja de Todosos Santos, em Bale, com vitrais de Alfred Ma-nessier; a Igreja de Assy, com um grande nú-mero de quadros modernos; e a de Audincourt,com obras de Jean Bazaine e de Fernand Léger.

A abe rtura da Igr eja à art e mod ern a sig-

nifica mais que um ato de tolerância de seus pa-tronos: simboliza o fato de que a parte re -presentada pela arte moderna em relação ao cris-tianismo está mudando. A função compensató -ria dos velhos movimentos herméticos deu lugara uma possibilidade de cooperação. Quando dis-cutimos os símbolos animais de Cristo, as -sinalamos que o espírito luminoso e o ctônico outerrestre se pertenciam mutuamente. Parece quechegou o momento de se alcançar uma nova eta-pa na solução deste problema milenar.

Não sabemos o que nos reserva o futuro —se esta aproximação dos contrários dará re-sultados positivos ou se vai levar ainda a maiorese inimagináveis catástrofes. Há muita ansiedadee medo no mundo e estes ainda são fatores quepredominam na arte e na sociedade. Acima detudo, o homem ainda está pouco disposto a a-plicar a ele mesmo e à sua vida as conclusões quepôde deduzi r da arte, apesar de estar pronto aaceitá-las sob o ponto de vista estético. O artistaconsegue expressar muitas coisas, inconsciente-mente e sem despertar hostil idade, que quandoformuladas por um psicólogo provocam res-sentimentos (fato que pode ser ainda melhorexemplificado na literatura do que nas artesplásticas). Confrontado com as revelações do psi-cólogo, o indivíduo sente-se diretamente de-safiado ; mas o que o artista tem a declarar, par-ticularmente em nosso século, em geral man-tém-se em um campo impessoal.

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E no entanto parece impor tante que umaforma de expressão mais completa, e portantomais humana, tenha surgido em nossa época. Éafinal um vislumbre de esperança, simbolizadopara mim (em 1961, ano em que escrevo estaspalavras) por inúmeros quadros do artista francêsPierre Soulages. Por trás de um amontoado decaibros imensos e escuros cintila um azul claro epuro ou um radioso amarelo. A aurora começa araiar ao fundo das trevas.

Na metade do séculoXX, a arte pareceestar se afastando do desespero de umMarini para voltar á natureza e á terra —como se vê nogesto de Jean Lurçat, aoexpor suas obras em pleno campo(acima, á esquerda). Acima, DédicaceàSainte Maríe Madeleine, de AlfredManessier (nascido em 1911). Acima, ádireita, Pour la Naissance duSurhomme, do francês Pierre-YvesTrémois (nascido em 1921). Ambos ostrabalhos indicam uma tendência deabertura á vida e á plenitude. O quadro,â direita, de Pierre Soulages (nascidoem 1919) pode ser traduzido como umsímbolo de esperança: por trás docataclismo das trevas, distingue-se umbruxulear de luzes.

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5 Símbolos em umaanálise individual

Jolande Jacobi

Gravura francesa do século XVII: "O Palácio do Sonhos"

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Símbolos em uma análiseindividual

O começo da análise

Exis te uma crença mui to dif undida deque os métodos da psicologia jungiana só seaplicam às pessoas de meia-idade. Na verdade,muitos home ns e mulheres alcança m a "meia -idade" sem a correspondente maturidadepsicológica, sendo portanto necessário ajudá-losa reparar as fases negligenciadas do seudesenvolvimento. São pessoas que nãoterminaram a primeira parte do processo deindividuação, descrito pela Dra. M.- L. vonFranz. Mas é certo também que um jovem podeenfrentar sérios problemas no curso do seucrescimento. Se tem medo da vida e encontradificuldades para ajustar-se à realidade, podepreferir viver dentro das suas fantasias ouconservar-se criança. Neste tipo de jovem (so-bretudo se introvertido) vamos descobrir, porvezes, no seu inconsciente insuspeitados te-souros, e trazendo-os à consciência podemos for-talecer-lhe o ego e dar-lhe a energia psíquica ne-cessária para tornar-se uma pessoa amadurecida.É esta a poderosa função do simbolismo de nos-sos sonhos.

Os outros autores deste livro descreveram anatureza destes símbolos e o papel que re -presentam na natureza psicológica do homem.Quero mostrar como a análise pode favorecer oprocesso de individuação relatando o caso de umjovem engenheiro de 25 anos, a quem chamareiHenry.

Henry nasceu num distrito rural da Suíçaoriental. Seu pai, de família camponesa pro-testante , era médico de clínica geral. Henry odescreveu como um homem de elevados padrõesmorai s, mas alguém muito recolhido dentro desi mesmo e com dificuldades para relacionar-secom outras pessoas. Era melhor pai para os seuspacientes do que para seus filhos. Em casa, apersonal idade dominante era a da mãe deHenry: "fomos criados pela vigorosa mão denossa mãe", disse ele uma vez. Ela pertencia auma famíl ia de boa formação intelec tual, genteque se interessava também por arte. Possuía, adespeito de sua severidade, um largo horizonteespiritual. Era impulsiva e romântica (amava aItália). Apesar de ser católica de nascimento, osfilhos foram educados na religião protestante do

pai . Henr y tinha uma irmã mais velha, comquem se dava muito bem.

Nosso jovem era introvert ido, tímido, lou-ro, de traços finos, estatura elevada, testa alta epálida, olhos azuis e grandes olheiras . Não jul -gava que fora neurose que o trouxera a mim (co-mo de hábito) mas sim uma necessidade interiorde se ocupar da sua psique. Por trás deste anseio,no entanto, escondiam-se uma fixação na figurada mãe e um grande medo de entregar -se à vida,problemas que só foram descobertos durante oprocesso de análise. Ele acabara de se formar, ar-ranjara emprego em uma grande fábrica e estavaenfrentando os muitos problemas de um jovemque chega à idade adulta . "Parece-me" , es -cre veu na car ta em que me ped ia uma con -sulta , "que esta fase de minha vida é par -ticularmente importante e signif icativa . Devodecidir se permaneço inconsciente, ao abrigo deminha bem-protegida segurança, ou se me aven-turo por um caminho ainda desconhecido, masno qual deposito grandes esperanças." A es -colha com que se defrontava era portanto oupermanecer um jovem solitário, vacilante e forada realidade ou tornar -se um adulto responsávele auto-suficiente.

Henry disse-me que preferia os livros à so-ciedade; sentia-se inibi do entre as pessoas emuitas vezes atormentava-se com dúvidas e au-tocrít icas. Era bastante culto para sua idade etinha uma inclinação para o intelectualismo es-tético. Depois de uma fase de ateísmo, tornara-se protestante convicto e adotara , por fim, umaati tude rel igiosa absolutamente neut ra. Es-colhera um ramo de estudos técnico porque re-conhecia seu talento para a matemática e a geo-metria. Tinha uma inteligência lógica, dis -ciplinada pelas ciências naturais , mas tambémuma propensão ao irracional e ao místico quenão queria admitir nem a si próprio.

Cerca de dois anos antes de começar a aná-lise, ficara noivo de uma jovem católica, daSuíça Francesa. Descreveu-a como uma pessoaencantadora, eficien te e cheia de iniciat iva. Noentanto, perguntava-se se deveria assumir as res-ponsabi lidades de um casamento. Como tinha

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pouca convivência com moças, julgava melhoresperar ou mesmo continuar solteiro, dedicando-sea uma vida de estudos. Suas dúvidas eram su-ficientemente fortes para impedi-lo de tomaruma decisão; precisava dar mais alguns passosem direção à maturidade antes de se sentir se-guro.

Apesar das características de seus pais es-tarem bastante combinadas em Henry, ele eraa ce n tu ada me n t e l i gad o à mã e . C ons -cientemente, identificava-se com aquela mãereal (com o seu lado "claro") que representavapara ele um conjunto de ideais elevados e am-bições intelectuais. Mas inconscientemente es-tava sob o poder dos aspectos tenebrosos da fi-xação materna. Seu inconsciente sufocava-lhe oego de maneira asfixiante. Todo o seu bem-delineado raciocínio e seus esforços para en-contrar um ponto de vista firme no plano ra-cional não passavam de puro exercício in-telectual.

Expressava a necessidade de escapar a esta"prisão materna" com reações hostis à mãe ver-dadei ra e uma reje ição à "mãe inter ior", sím-bolo do lado feminino do seu inconsciente. Masuma força no seu íntimo tentava prendê-lo à in-fância, resistindo a tudo que o atraía ao mundoexterior: nem mesmo as encantador as qua -lidades da noiva eram suficientes para libertá-lodos laços maternos e ajudá-lo a encontrar-se.Não se dava conta de que o seu anseio interiorpara desenvolver-se (anseio que sentia tão agu-damente) incluía a necessidade de desligar-se damãe.

Meu trabalho de análise com Henry durounove meses. Tive mos 35 sessões, durante asquais contou -me 50 sonhos. Uma análise de du-ração tão curta é muito rara. Só se torna possívelquando sonhos carregados de energia , como osde Henry, aceleram o processo evolutivo. Na-turalmente, do ponto de vista jungiano, não háuma regra geral para o tempo necessário ao su-cesso da análi se. Tudo depende da capacidadedo indivíduo para tomar consciência das ocor-rências interiores e do material apresentado peloseu inconsciente.

Como a maioria dos introvertidos, Henrylevava uma vida exterior bastante monótona.Durante o dia, estava completamente absorvidopelo trabalho. À noite, saía algumas vezes com anoiva ou com amigos com quem gostava de terdiscussões literárias. Muitas vezes ficava em casa,mergulhado em algum livro ou nos própriospen samentos. Ape sar de dis cut irmos re-gularmente os acontecimentos da sua vida diáriae também os da sua infância e juventude, ha-bitualmente chegávamos logo ao estudo dos seussonhos e aos problemas que a sua vida interiorlhe apresentava. Era impressionante ver com queinsistência os sonhos o convocavam a um cres-cimento espiritual.

Devo deixar claro que nem tudo o que aquiestá descrito foi comentado com Henry. No pro-cesso de análise precisamos sempre estar cons-cientes do quanto os símbolos oníricos podemter um valor explosivo para o paciente. O ana-lista nunca será cuidadoso e reservado o bas-tant e. Se uma luz excessivamente forte for

À esquerda, o palácio e monastériodo Escorial, na Espanha, construído em 1563 por FelipeII. Sua estrutura de fortaleza simboliza o afastamento dointrovertido do mundo. Abaixo, um desenho feito porHenry do estábulo que construiu quando criança, comameias de fortaleza.

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lançada sobre a linguagem onírica dos símbolos,o sonhador pode ser levado a um estado de an-siedade e, como mecanismo de defesa, à ra-cionalização. Ou então não consegue mais as-similar estes símbolos e entra em séria crise psí-quica . Os sonhos relatados e comentados aquinão são a totalidade dos que Henry teve durantea análise. Posso discutir apenas os mais im-portantes, aqueles que influenciaram par -ticularmente o seu processo evolutivo.

No começo do nosso trabalho, a-presentaram-se algumas recordações de in-fância de importante sentido simbólico. A maisrec uada alcanç ava o qua rto ano de vida deHenr y. Disse-me ele: "Uma manhã fui comminha mãe à padar ia e lá ganhei da mulher dopadeiro um croissant (pequeno pão de massa es-pecial, em forma de um crescente). Não o comimas segurei -o orgulhosamente. Só minha mãe ea padeira estavam presentes; assim, era eu o úni-co homem.'' O nome popular dado a estes pãesé "dente de lua", e esta alusão simbólica à luaacentua o poder dominante feminino — um po-der ao qual o pequeno menino pode se ter sen-tido exp ost o e ao qua l, como o "único ho-mem" , estava orgulhoso de enfrentar.

Outra lembrança de sua infância datava dosseus cinco anos. Dizia respeito à irmã, que che-gara de exames na escola e o encontrara cons-truindo um estábulo de brinquedo . Utili zavablocos de madeira arrumados na forma de umquadrado, rodeado de uma espécie de cerca quelembrava as ameias de um castelo. Henry estavacontente com a sua obra e disse brincando à ir-mã : ''Você começou a ir à escola, e já está de fé-rias ." Respondeu-lhe a menina que, enquantoisso, ele passava o ano de férias, o que o abor-receu tremendamente. Magoou-se ao ver queseu "'trabalho'' não fora levado a sério.

Anos mais tarde, Henry ainda não es -quecera a mágoa pungente e o sentimento de in-justiça que lhe causara ver sua construção re-jeitada. Os problemas posteriores que encontroupara firmar a sua masculinidade e o conflito en-tre valores racionais e fantasia já são perceptíveisneste primeiro incidente. E são os mesmos pro-blemas que aparecem nas imagens do seu pri-meiro sonho.

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O sonho inicial

No dia seguinte à primeira consulta que mefez , Henry teve o seguinte sonho :

"Eu fazia uma excursão com um grupo de pes-soas desconhecidas. Íamos a Zinalrothorn. Saíramosde Samaden. Andamos apenas durante uma horaporque devíamos acampar e organizar uma re-presentação teatral. Eu não tinha nenhum papel napeça. Lembro-me part icularmente de uma atriz —uma jovem que interpretava um personagem patéticoe que usava um longo vestido esvoaçante.

Era meio-dia e eu desejava prosseguir em direçãoao desfiladeiro. Como todos os outros preferiam ficar,caminhei sozinho, deixando meu equipamento deexcursão. No entanto, encontrei-me de novo no valee perdi completamente o rumo. Queria voltar ao meugrupo, mas não sabia por qual lado da montanha de-via subir. Hesitava em perguntar. Por fim, uma velhame indicou o caminho.

Escalei por um ponto diverso do que o nossogrupo usara pela manhã. A uma determinada altura,deveria virar à direita e seguir a encosta da montanhapara reencontrar meus camaradas. Subi ao longo deuma estrada de ferro de cremalheira, pelo lado di-reito. À minha esquerda passavam incessantementepequenos carros, cada um deles com um homenzinhotodo inchado e vestindo um terno azul. Dizia-se queestavam mortos. Eu estava com medo que viessemcarros por trás de mim, e olhava constantemente paranão ser atropelado. Mas minha angústia não tinhafundamento.

No lugar em que eu deveria virar à direita haviapessoas à minha espera. Levaram-me a um albergue.Caiu um aguaceiro: Lamentei não ter trazido meuequipamento (minha mochila e minha bicicleta amotor), mas disseram-me que só fosse buscá-lo namanhã seguinte. Aceitei o conselho.

Uma das recordações de infância deHenry aludia a um croissant (pãozinhoem forma de lua crescente) que eledesenhou (á esquerda, ao alto). Aocentro, o mesmo desenho na tabuleta deuma padaria moderna, na Suíça. A formade crescente está associada, já há muitotempo, à lua e portanto ao princípiofeminino, como na coroa (à esquerda)da deusa Ishtar da Babilônia (século IIIA.C.).

O Dr. Jung dava grande importância ao pri-meiro sonho em uma análise pois, no seu en-tender, tinha muitas vezes um valor de an-tecipação. A decisão de ir a um analista estásempre acompanhada de uma convulsão emo-cional que perturba as camadas psíquicas maisprofundas, de onde surgem os símbolos ar-quetípicos. Os primeiros sonhos, portanto, mui-tas vezes apresentam "imagens colet ivas" quedão uma perspectiva global à análise e permitemao terapeuta melhor percepção dos conflitos psí-quicos do paceinte.

O que nos conta o sonho, acima relatado,acerca do desenvolvimento futuro de Henry? Pre-cisamos inicialmente examinar algumas as-sociações que o próprio Henry forneceu. A vilade Samaden era o lugar onde vivera Jürg Je-natsch, famoso batalhador suíço em prol da li-berdade de sua pátria, no século XVII. A re-presentação teatral trouxe-lhe a idéia dos Anosde Aprendizage m de Wilhelm Meisters (Wi-lhelm Meisters Lehrjahre), de Goethe, de queHenry gostava especialmente . Na mulher viuuma certa semelhança com um personagem daIlha dos Mortos, do pintor suíço do século XIXArnold Bocklin . A "sábia velha", como ele di-zia, parecia estar associada por um lado ao seuanal ista e, por outro , à empregada diar ista dapeça de J.B. Priestley, They Came to a City (Che-garam a uma cidade). A estrada de ferro de cre-malheira lembr ou -lhe o es tábulo (com asameias) que construíra quando criança.

O sonho descreve uma "excursão", es-tabelecendo uma impressionante analogia com adecisão de Henry de fazer análise. O processo deindividuação é muitas vezes simbolizado poruma viagem de descobrimento a terras des-conhecidas. Ocorre uma viagem assim no "Pil-grim's Progress (Viagem de um Peregrino), deJohn Bunyan e na Divina Comédia, de Dante. O"viajante", no poema de Dante, buscando umcaminho chega a uma montanha a que decidegalgar. Mas devido a três estranhos animais (ummotivo que também aparece em um dos últimossonhos de Henry) é obrigado a descer até o vale emesmo ao inferno. (Mais adiante sobe no-

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A fase inicial do processo deindividuação pode ser um período de"desorientação" — como aconteceucom Henry. À esquerda, a primeiragravura em madeira de um livro doséculo XV, O Sonho de Poliphilo,mostra o sonhador penetrandomedrosamente num bosque escuro— representando, talvez, o ingressono desconhecido.

Associações fornecidas por Henrypara o seu primeiro sonho: à direitaA ilha dos Mortos, do pintor suíçoArnold Böcklin (século XIX). Àextrema direita, cena da produçãoinglesa (1944) da peça de Priestley,They Came to a City, que diz respeitoás relações de um grupo de pessoas— vindas de diferentes caminhos davida — a uma "cidade ideal". Umdos personagens principais é umaempregada diarista (à esquerda, nafotografia).

vamente ao purgatório e alcança, afinal, o pa-raíso.) Desta analogia pode-se deduzir que Henrytambém pode rá atraves sar um período se-melhante de desorientação e busca solitária. Aprimeira parte desta jornada existencial, re-presentada na escalada da montanha, simbolizauma ascensão do inconsciente até um ponto devista mais elevado do ego — isto é, até uma cons-cientização maior.

Samaden é o ponto de partida da excursão.Foi a vila onde Jenatsch (encarnando a "ne -cessidade de liberdade" no inconsciente deHenry) começou sua campanha para liberta r aregião de Veltlin dos franceses. Jenats ch possuíaoutras caracter ísti cas comuns com Henry: eraum protestante que se apaixonara por uma jo -vem católica; tal como Henry, cuja análise de-veria libertá-lo da fixação materna e do medo àvida, Jenat sch também lut ava por uma li -bertação. Podia -se interpretar isto como um au-gúrio favorável para Henry na sua luta pela li -ber dad e. O obj eti vo da exc urs ão era Zi -nalrothorn, uma montanha na Suíça ocidentalque ele não conhecia. A palavra rot (vermelho) ,contida em Zinalrothorn, toca diretamente noproblema emocional de Henry. O vermelho sim-boliza, usualmente, sentimento ou paixão; aquiindica o valor da função do sentimento, in -suficientemente desenvolvido em Henry. E a pa-lavra horn (chifre) lembra o croissant da padariada infância de Henry.

Depois de uma cur ta cami nhada o grupofaz uma parada, e Henry pode voltar ao seu es-

tado de passividade, um traço da sua natureza.Este traço é acentuado pela representação tea-tral . Ir ao teat ro (que é uma imitação da vidareal) é uma maneira comum de fugir -se ao papelativo que nos cabe no drama da vida. O es -pectador pode identificar-se com a peça, con-tinuando a entregar -se a suas fantasias. Este tipode identificação permi tiu aos gregos a ex-per iência da catarse tal como o psicodramacriado pelo psiquiatra norte -americano J.L. Mo-reno é utilizado agora na terapêutica. Um pro-cesso deste tipo pode ter ajudado Henry a evo-luir interiormente, quando suas associações fi-zeram -no lembrar o Wilhelm Meisters, ondeGoethe descreve o amadurecimento de um jo-vem.

Não causa surpresa o fato de Henry se terimpressionado com o aspecto romântico de umamulher . É uma imagem que lembra sua mãe eque, ao mesmo tempo, personif ica o seu lado fe-minino inconsciente . A conexão que fez entreela e a Ilha dos Mortos, de Böcklin, revela o seuestado depressivo, tão bem expresso pelo quadroonde uma figura de branco, lembrando um pa-dre , dir ige um barco, com um esq uife den troem direção a uma ilha. Temos aqui um pa-radoxo duplo e significativo: a quilha do barcoparece indicar um curso contrário, para longe dailha; e o "padre" é uma figura de sexo incer to.Nas associações de Henry esta figura tem, cer-tamente, caráter hermafr odi ta. O duplo pa-radoxo coincide com a ambivalência de Henry:os cont rár ios na sua alma ainda estão bastante

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indiferençados para se apresentarem claramenteseparados.

Após este interlúdio em seu sonho, Henrypercebe, de repente, que é meio-dia e que devepartir. Dirige-se então ao desfiladeiro. Um des -filadeiro é símbolo bastante conhecido de uma"situação transitória", que leva de uma antigaatitude mental para uma nova. Henry deve se-guir só; é essencial ao seu ego vencer o teste semauxílio. Assim, deixa a mochila para trás — umaação que mostra o quanto o seu equipamentomental tornou-se um fardo, ou que precisa aomenos mudar de método nos seus em-preendimentos.

Mas não chega ao desfiladeiro. Desorienta -se e encontra-se de novo no vale. Este fracassomostra que enquanto o ego de Henry decide ati-var-se, suas outras entidades psíquicas (re-presentadas pelos outros membros do grupo)permanecem passivas e recusam-se a acom-panhar o ego. (Quando o sonhador aparece pes-soalmente no sonho representa em geral só o seuego consciente; os outros personagens re-representam suas qualidades inconscientes, maisou menos desconhecidas.)

Henry acha-se numa situação indefesa, masenvergonha -se de admiti -lo. Neste momento en-contra uma velha que lhe indica o caminho cer-to. Só lhe resta seguir seu conselho. A "velha"prestimosa é um símbolo bem conhecido dos mi-tos e contos de fada, onde representa a sabedoriado eterno feminino. O racionalista Henry hesitaem aceitar seu auxí lio porque isto impl ica um

sacrificium intellectus — um sacrifício ou umarejeição de um pensamento racional (esta exi-gência será feita várias vezes, nos sonhos sub-sequentes). É um sacrifício inevitável, e aplica-setanto ao seu relacionamento com a análise quan-to ao seu cotidiano.

Associou a figura da "velha" com a em-pregada doméstica da peça de Priest ley a res-peito de uma nova cidade, uma cidade "de so-nho" (talvez uma analogia à Nova Jerusalém doApocalipse), onde os personagens só podem en-trar após uma espécie de iniciação. Esta as-soc iação parece mostra r que Henry, in -tuitivamente, reconhecera neste confronto algode decisivo para ele. A empregada da peça dePriestley declara que, na cidade, "prometeram-me um quarto só para mim". Lá ela vai se sentirconfiante e independente, como Henry procuraser.

Se um jovem de espírito científico comoHenry escolhe conscientemente o caminho daevolução psíquica ele deve estar preparado parauma muda nç a co mple ta em suas an tigasatitudes. Portanto, a conselho da mulher, devereiniciar sua escalada de um outro local. Sóentão ser-lhe-á possível decidir em que pontodeve fazer o desvio que lhe vai permitir alcançaro grupo — as outras qualidades da sua psiqueque deixou para trás.

Sobe um caminho de trem de cremalheira(um motivo que talvez reflita a sua educação téc-nica) e conserva-se à direita — seu lado cons -ciente. Na história do simboli smo o lado direito

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representa, gera lmente, o domínio da cons -ciência ; a esquerda significa o inconsciente. Pelolado esquerdo descem pequenos carros onde háhomenzinhos escondidos. Henry receia que,inesperadamente, suba um automóvel e o a-tropele pelas costas. Não existe fundamento paraesta sua ansiedade, mas ela revela que Henry te-me, por assim dizer, o que está por trás do seuego.

Os homens balofos , de azul, podem sim-bolizar pensamentos intelectuais estéreis que es-tão sendo mecanicamente eliminados. O azuldenot a, muitas vezes , o pensamento. Portanto,os homens podem ser símbolos de idéias ou ati -

tudes que morreram nas elevadas altitudes in-telectuai s, onde o ar é rarefeito . Podiam tam-bém representar os aspectos mortos do interiorda psique de Henry.

Há um comentário no sonho a respeito des-tes homens: "Dizia -se que estavam mortos."Mas Henry está só. Quem fez esta declaração?Uma voz — e quando se ouve uma voz num so-nho é uma ocorrência das mais significativas. ODr. Jung ident ifica o aparecimento de uma voznum sonho como uma intervenção do self . Ex-prime um conhecimento que tem suas raízes nosfundamentos coletivos da psique. O que é ditopela voz não pode ser discutido.

Este conhecimento que Henry teve a res-peito das fórmulas "mortas" nas quais confiarapor tanto tempo marca um momento im-portante do sonho. Ele alcançou, finalmente, olugar certo de onde deve tomar uma nova di-reção — para a direita (direção da consciência),isto é, em direção à consciência e ao mundo ex-ter ior . Lá enc ont ra as pes soa s que dei xar a àsua espera; e assim conscientiza aspectos até en-tão desconhecidos da sua personalidade. Desdeque o seu ego suplantou sozinho os perigos queencontrara (um feito que podia torná -lo maisamadurecido e estáve l), ele consegue reunir-seao grupo, isto é, à coletividade, e abrigar-se ealimentar -se.

À esquerda, a donzela grega Dánae, queZeus fecundou tomando a forma de umachuva de ouro (quadro do século XVI doartista flamenco Jan Gossaert). Talcomo no sonho de Henry, este mitoreflete o simbolismo do aguaceiro comobodas sagradas entre o céu e a terra.

Em outro sonho de Henry aparece umacorça — imagem da feminilidade tímida,como a do cervo no quadro à direita, dopintor oitocentista inglês EdwinLandseer.

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Vem então a chuva, um aguaceiro que re-laxa a tensão existente e torna a terra fértil. Namitologia a chuva era considerada, muitas vezes,uma "união amorosa" do céu e da terra. Nosmistérios de Eleusis, por exemplo, depois de tu-do se ter purificado pela água, elevava-se umainvocação ao céu: "Deixai chover !" e à terra :"Sê fecunda!" Era o casamento sagrado dosdeuses. Deste modo, pode-se dizer que a chuvarepresenta literalmente uma "solução"

Ao descer, Henry torna a encontrar os va-lores coletivos simbolizados pela mochila e amotocicleta. Atravessara uma fase na qual for-talecera seu ego consciente, provando sua ca-pacidade de manter-se firme, e sente uma re-novada necessidade de contato social. No en-tanto, aceita a sugestão dos amigos para esperare apanhar suas coisas na manhã seguinte. Sub-mete-se assim, pela segunda vez, a um conselhoque vem de outros: da primeira vez, ao conselhoda velha mulher , um poder subjetivo, uma fi-gura arquetípica; da segunda vez, a uma es-trutura coletiva. Com este proceder Henry trans-põe um marco importante no seu caminho paraa maturidade.

Como antecipação da evolução interior queHenry almejava alcançar através da análise, estesonho revelou-se extremamente promissor. Oconflito dos contrários, que deixava tensa a almade Henry, está aí simbolizado de modo im-pressionante. De um lado o seu impulso cons-ciente para elevar-se, e de outro sua tendência àcontemplação passiva. Há também a imagem dapatética jovem de vestido branco (representandoos sentimentos românticos e sensíveis de Henry)contrastando com os cadáveres intumescidos,vestidos de azul (representando o seu mundo in-telectual estéril). No entanto, vencer estes obs-táculos e estabelecer um equilíbrio entre eles sóse tornaria possível para Henry após as mais se-veras provas.

O medo do inconsciente

Os pro ble mas que enc ont ramos no sonhoinicial de Henry apareceram em vários outrossonhos — problemas como a oscilação entre aatividade mascul ina e a passividade feminina,ou a tendência a refugiar-se em um ascetismo in-telectual. Temia o mundo, mas ao mesmo temposentia -se atraído por ele. Fundamentalmente,receava as obrigações do casamento, que exigiama responsabilidade de uma relação permanentecom uma mulher . Esta ambiva lência é comumno limiar da vida adulta. Apesar de, em termoscronológicos, Henry já ter passado esta fase, suamaturidade interior não estava no mesmo nível.É problema frequente no introvertido, que temea realidade e a vida exterior.

O quarto sonho contado por Henry ilust rade maneira impressionante este estado psi -cológico :

Parece-me que já tive este sonho inúmeras vezes.Serviço militar, uma corrida de fundo. Vou sozinho.E nunca alcanço a meta de chegada. Chegarei por úl-timo? Conheço bem o caminho, todo ele já fora vistoantes ("déjà vu"). O lugar da partida é num pe-queno bosque, e o chão está coberto de folhas mar-rons. O terreno desce docemente até um pequeno eidílico riacho, que nos convida a um retardamento.Adiante, há uma poeirenta estrada campestre. Leva aHombrechtikon, uma pequena vila perto do lago su-perior de Zurique. Um riacho orlado de salgueiroslembra um quadro de Böcklin, no qual uma figurasonhadora de mulher segue o curso da água. A noitecai. Numa aldeia pergunto que direção devo tomar.Dizem-me que a estrada continua por umas sete ho-ras até chegar a um desfiladeiro. Encho-me de ânimoe prossigo.

Entretanto, desta vez o final do sonho é di-ferente. Depois do riacho margeado de salgueiros,entro num bosque. Lá descubro uma corça que foge.Fico orgulhoso de ter feito esta observação. A corçaaparecera pelo lado esquerdo e, agora, volto-me paraa direita. Vejo três estranhas criaturas, metade porco,metade cachorro, com pernas de canguru. As carassão meio indistintas, com grandes orelhas pen-duradas. Talvez sejam mascarados. Quando menino,fantasiei-me uma vezde jumentode circo.

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O começo do sonho é manifestamente se-melhante ao primei ro sonho de Henry. Uma fi -gura sonhadora de mulher torna a aparecer, e ocenário do sonho está associado a outro quadrode Böcklin. O quadro, Pensamentos de Outono,e as folhas secas mencionadas no início do sonhoacentuam o clima outonal. Reaparece também aatmosfera romântica. Aparentemente, esta pai -sagem interior , representativa da melancolia deHenry, lhe é muito familiar . Está novamentenum grupo de pessoas, mas desta vez com ca-maradas militares numa corrida de fundo.

Toda esta situação (como sugere também oserviço militar) pode representar o destino dohomem comum. O pró prio Henry comentou:"É um símbolo da vida." Mas o sonhador nãoquer adaptar -se a ele. Segue sozinho — o queprovavelmente sempre devia acontecer comHenry. E por isto que tem a impressão do déjàvu. Seu comentário ("nunca alcanço a meta dechegada") indica um forte sent imento de in -ferioridade e a convicção de que não poderá ga-nhar a "corr ida de fundo".

O caminho leva a Hombrechtikon, um no-me que lhe lembra seu projeto secreto de sair decasa (Hom = casa , brechen = brecha, rom-pimento) . Mas por que este rompimento com acasa não acontece, ele novamente (como no so-nho inicial ) perde o rumo e precisa pedir que oorientem.

Os sonhos compensam de modo mais oumenos explíci to a atitude consciente de quemsonha. A figura jovem e romântica , um idealconsciente de Henry, é contrabalançada pelo

aparecimento de animais estranhos que parecemfêmeas. O mundo dos instintos de Henry é sim-bolizado por algo feminino. O bosque é símbolode uma área inconsciente, um lugar escuro ondevivem os animais. Inicialmente surge uma corça— símbolo da femini lidade tímida, fugidia einoce nte — mas por um momen to ape nas .Henry vê então três animais híbridos, de apa-rência estranha e repulsiva. Parecem representara instintividade indiferençada — uma espécie demassa confusa de instintos, contendo matéria-prima de uma evolução futura. Sua característicamais gritante é que virtualmente não possuemrostos e, portanto, nenhum vislumbre de cons-ciência.

Para muitos o porco está intimamente as-sociado com a baixa sexualidade (Circe, porexemplo, transformava em porcos os homensque a desejavam). O cachorro representa a fi-delidade mas também a promiscuidade, desdeque não mostra discriminação na escolha doscompanheiros. O canguru, no entanto, é umsímbolo da maternidade e de terna capacidadeprotetora.

Todos este s animais apresentam apenastraços rudimen tares e, assim mesmo, ab-surdamente misturados. Na alquimia, a "ma-téria-prima" era muitas vezes representada poreste tipo de criaturas monstruosas — formasmisturadas de vários animais. Em termos psi-cológicos , simbolizam provavelmente a to-talidade original do inconsciente, de onde o egoindividual pode emer gir e começar a de-senvolver-se até a maturidade.

À esquerda, o desenho feito por Henrydos estranhos animais do seu sonho.Mudos e cegos, incapazes de qualquercomunicação, representam oinconsciente. O animal que está no chão(que ele coloriu de verde, a cor davegetação e da natureza e símbolofolclórico da esperança) exprime apossibilidade de crescimento e dediferenciação.

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O medo que os monstr os ins pir avam aHenry torna-se evidente através da tentativa quefez para dar-lhes uma aparência inofensiva. De-seja convencer-se de que são apenas homens dis-farçados, como ele mesmo num baile à fantasiade sua infância. Sua angústia é natural. Quandoum homem descobre tais monstros inumanosdentro de si como símbolos de certos traços doseu inconsciente, ele tem todos os motivos parater medo.

Um outro sonho most ra também o medoque as profundezas do inconsciente inspiravam aHenry:

Sou grumete de um veleiro. Paradoxalmente, asvelas estão desfraldadas, apesar de haver uma com-pleta calmaria. Minha tarefa consiste em segurar umacorda que fixa um mastro. Estranhamente, aamurada do barco é uma parede recoberta de lajes depedra. Toda esta estrutura fica exatamente no limiteentre a água e o barco, que flutua sozinho. Agarro-me à corda (e não ao mastro) e proíbem-me de olhar aágua.

Neste sonho Henry encontra-se numa si-tuação psicológica extrema. A amurada é umaparede que o protege, mas ao mesmo tempo lheimpede a visão. Está proibido de olhar a água(onde pode descobrir forças ocultas). Todas estasimagens revelam suas dúvidas e seu medo.

O homem que teme entrar em contato comas suas profundezas interiores (como Henry) temtanto medo do eleme nto feminino que há den-tro dele quanto de mulheres reai s. Ao mesmo

tempo que o fascinam ele tenta escapar -lhes;enfeitiçado e aterrorizado, foge para não se tor-nar sua "presa". Não ousa aproximar -se dacompanheira amada (e portanto ideal izada porele) com a sua sexualidade animal.

Como resultado típico da sua fixação ma-terna, Henry encontrava dificuldade em con-jugar ternura e sensualidade e dá-las a uma mes-ma mulher. Seus sonhos testemunhavam re-petidamente o seu desejo de libertar-se deste di-lema. Em um dos sonhos apareceu como um"monge em missão secreta" ; em outro seus ins-tintos o levaram a um bordel:

Junto com um camarada militar que tivera mui-tas aventuras eróticas, encontro-me à espera na portade uma casa, numa rua escura de uma cidade des-conhecida. Só é permitida a entrada a mulheres. Porisso, no saguão, meu amigo coloca uma máscara car-navalesca com um rosto de mulher e sobe as escadas.Possivelmente devo ter feito o mesmo que ele, masnãome recordoclaramente.

O que este sonho propõe satisfar ia a cu-rio sidade de Henry, mas a um preço frau-dulento. Como homem, falta-lhe coragem paraentrar na casa, que é obvi amente um bordel .Mas se se despojar da sua masculinidade poderádescobrir este mundo proibido — proibido pelasua mente consciente. O sonho não nos diz, noentanto, se decidiu entrar . Henry ainda não do-minara suas inibições — uma falha com-preensível se considerarmos as implicações con-tidas na ida ao bordel.

O animal do sonho, parecido comum porco, une a bestialidade àluxúria— como no mito de Circe,que transformava os homens emporcos. Acima, à esquerda, em umvaso grego, um homem-porco,Ulisses e Circe. À direita, em umadas caricaturas de George Grosz deataque á sociedade germânica deantes da guerra, um homem (emcompanhia de uma prostituta) comcabeça de porco, como sinal da suavulgaridade.

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Este sonho pareceu -me revelar uma de-formação homossexual de Henry: julgava queuma "máscara'' feminina o tornar ia atraente paraos homens. Esta hipótese foi confirmada noseguinte sonho:

Volto aos meus cinco ou seis anos. Meu colegadesta época diz-me como se entregou a um ato obs-ceno com o diretor de uma fábrica. Colocou sua mãodireita sobre o pênis do homem para aquecê-lo e, aomesmo tempo, para aquecer sua mão. O diretor eraamigo íntimo de meu pai e eu o respeitava por inú-meras razões. Mas ríamo-nos dele chamando-o "oeterno adolescente''.

Para crianças desta idade, brincadei ras decaráter homossexual não são raras . O fato deHenry voltar a este assunto no sonho indica queestava dominado por um sent iment o de culpafort emente repr imido. Estes sent imentos es-tavam ligados a um profundo receio de contrairum laço duradouro com uma mulher. Um outrosonho e suas associações ilustram este conflito:

Tomo parte no casamento de um casal des-conhecido. A uma da manhã o pequeno grupo — osrecém-casados, o padrinho e a dama de honra — vol-ta da cerimônia. Entram num grande pátio onde osespero. Parece que os noivos já tiveram uma briga, as-sim como o outro casal. Solucionam o problema de-cidindo que os dois homens e as duas mulheres irãodormirseparados.

Henry explicou: "É a guerra dos sexos co-mo Giraudoux a descreve." E acrescenta: "Opalácio da Bavária, onde me lembro ter visto estepátio, esteve até pouco tempo transformado emabrigo de emergência para pessoas pobres.Quando visitei este palácio perguntei -me se nãoseria preferível levar uma existência de pobrezaentre as ruínas de uma beleza clássica a uma vidaativa na feiúr a de uma grande cidade. Per -gunt ei-me também, quan do fui tes temunha docasamento de um colega, se esta união iria du-rar, pois não tive boa impressão da noiva. ''

O desejo de recolher-se na passividade e naint rovers ão, o medo de um cas amento fra -cassado, a separação dos sexos feita no sonho —são todos sintomas indubitáveis das dúvidas se-cretas escondidas no fundo da consciência deHenry.

O santo e a prostituta

A condição psíquica de Henry foirevelada de maneira ainda mais impressionanteno sonho seguinte, que exprime o seu medo dasensualidade primitiva e o seu desejo de fugirpara uma espécie de ascetismo. Podemos verneste sonho o rumo que estava tomando o seudesenvo lv imento. Por es ta razão a sua in -terpretação será mais longa.

Encontro -me numa est rei ta estrada de mon-tanha. À esquerda, em declive, há um abismo pro-fundo, e à direita uma mura lha de pedra. Ao longoda estrada existem várias cavernas e abrigos cortadosna rocha, para proteger do tempo o viajante solitário.Em uma das grutas, meio escondida, refugia-se umaprostituta. Estranhamente eu a vejo por trás, isto é,do lado do rochedo. Tem um corpo esponjoso e in-forme. Olho-a com curiosidade e toco em suas ná-degas. Parece-me, de repente, que talvez não sejauma mulher, mas um homem que se prostitui.

Esta mesma criatura aparece em primeiro planocomo se fora um santo, um casaco escarlate jogadosobre os ombros. Desce a estrada e dirige-se para ou-tra caverna, muito maior que a primeira, onde há ca-deiras e bancos toscos. Com olhar altivo, expulsa to-dos os que se encontram no local, e também a mim.Então ele e seus discípulos entram e se instalam ali.

A associação pessoal que Henry achou paraa prosti tuta foi a "Vênus de Wil lendorf", uma

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pequena estatueta (da era paleolít ica) de umamulher carnuda , provavelmente uma deusa danatureza ou da fecundidade. Acrescentou de-pois:

"Ouvi falar pela primeira vez que tocar nasnádegas é um rito de fecundidade em uma ex-cursão que fiz ao Valais [um cantão da SuíçaFrancesa] onde visitei túmulos e escavações anti-gas dos celtas. Lá disseram-me que, em outrostempos, havia uma superfície inclinada e lisa deladrilhos, besuntada com todo o tipo de subs-tâncias. As mulheres estéreis deviam escorregarnesta superfície com as nádegas desnudas, paracurar a sua esterilidade. ''

Com o casaco do "santo", Henry fez a se-guinte associação: "Minha noiva tem uma ja-queta parecida, mas é branca. À noite, antes dosonho, estávamos dançando e ela vestia esta ja-queta. Outra moça, sua amiga, estava conosco.Usava uma jaq ueta escarlate de que gosteimais."

Se os sonhos não são a realização de desejos(como ensinou Freud) mas antes, como supõeJung, "auto -representações do inconsciente",então devemos admitir que as condições psíqui-cas de Henry dificilmente estariam melhor re-presentadas do que na sua descrição do sonho do"santo".

Henry é um "viajante solitá rio" em umaestrada estreita. Mas (talvez graças à análise) está

em vias de descer de suas inóspitas alturas. À es-querda, no lado do inconsciente, sua estrada émargeada por terríveis abismos. No lado direito,o lado da consciência, o caminho está bloqueadopela rígida muralha de pedra das suas opiniõesconscientes. No entanto, nas cavernas (que po-dem representar, por assim dizer, zonas in-conscientes no interior do campo da consciênciade Henry) há lugares onde se pode encontrar re-fúgio em caso de mau tempo — em outras pala-vras, quando as tensões externas tornam-se pordemais ameaçadoras.

As cavernas são resultado de trabalho hu-mano determinado: cortadas na rocha . De umcerto modo lembram as lacunas que ocorrem emnossa consciência quando o nosso poder de con-centração alcançou seu limite máximo e se rom-pe, deixando que os produtos da fantasia nos in-vadam à vontade. Nestas ocasiões, alguma coisainesperada pode nos ser revelada permitindo-nosobservar atentamente o segundo plano da nossapsique e deixando-nos entrever as regiões in-conscientes, onde a nossa imaginação tem livrecurso. Além disso, as cavernas podem ser sím-bolos do ventre da Mãe Terra, onde ocorremtransformações e renascimentos.

Assim, o sonho parece representar a re-tirada introvertida de Henry — quando o mun-do se torna demasiadamente difícil — paradent ro de uma "caverna" no in terior da sua

À esquerda, o desenho que Henryfez do barco do seu sonho, com ummuro de pedra como amurada —outra imagem da sua introversão edo medo que a vida lhe provocava.

À direita, escultura pr é-históricaconhecida como a "V ênus deWillendorf" — uma das associa çõesde Henry com a prosti tuta do seusonho. No mesmo sonho, o santo évisto numa gruta sagrada. Muitasgrutas, atualmente, são lugaressacros — como a Gruta deBernadette (extrema direita) emLourdes, onde a menina teve umavisão da Virgem Maria.

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consciência, onde pode se entregar a fantasiassubjetivas. Esta interpretação explicaria tambémpor que ele busca a figura feminina — réplica dealguns dos traços interiores femininos da sua psi-que. E uma mulher sem formas, esponjosa, umaprosti tuta meio escondida representando a ima-gem reprimida do seu inconsciente , a imagemde uma mulher por quem Henry, cons -cientemente , nunca se apaixonaria. Ela seriasempre um tabu para Henry (como o oposto deuma mãe a quem ele muito respei tava), a des-peito de exercer um fascínio secreto sobre ele —como sobre todo filho que tem um complexomaterno .

A idéia de limitar suas relações com mu-lheres a uma sensualidade puramente animal émuitas vezes sedutora para este tipo de jovem.Numa união deste gênero ele pode pôr de lado aparte sentimenta l e assim permanecer, em úl-tima instância, "fiel" à sua mãe. O tabu es-tabelecido pela mãe a respeito de qualquer outramulher permanece, portanto, inflexivelmentepresente na psique do filho.

Hen ry, que par ece se ter ret ira do to-tal men te par a o fundo da sua caver na ima -

ginária, vê a prostituta "por trás''. Não ousa en-cará-la. Mas vê-la "por trás" significa, também,ver o seu aspecto menos humano — as nádegas(isto é, a parte do seu corpo que estimular ia aatividade sexual do macho).

Tocando nas nádegas da prostituta, Henryinconscientemente prati ca uma espécie de ritoda fecundidade, semelhante aos ritos praticadosem muitas tribos primitivas. Tocar com as mãose curar são ações que muitas vezes ocorrem jun-tas; do mesmo modo, tocar qualquer coisa coma mão pode ser um gesto de defesa ou de mal-dição.

Logo surge em Henry a idéia de que aquelanão é uma figura de mulher , mas a de um ho-mem prostituído. A figura torna-se, assim, her-mafrodita, como muitas figuras mitológicas (ecomo o "padre" do primeiro sonho). A insegu-rança a respeito do seu próprio sexo pode, mui-tas vezes, ser observada na puberdade; e por issoa homossexualidade no período da adolescêncianão é um fator raro. Tampouco é excepcional es-sa incer teza num jovem com a estru tura psi-cológica de Henry; ele j á deixara entrever istoem alguns dos seus primeiros sonhos.

Um casaco pode simbolizar, muitasvezes, a máscara exterior ou persona,que apresentamos ao mundo. Omanto do profeta Elias trazia umsentido semelhante: quando subiu aoscéus (à esquerda, numa pinturaprimitiva sueca) deixou o manto paraseu sucessor, Eliseu. O mantorepresentava, assim, o poder e afunção do profeta, que deveriam serassumidos por seu substituto (Noquadro o manto é vermelho, como ocasaco do santo de Henry.)

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Mas também a repressão (além da indecisãode ordem sexual) pode ter provocado esta con-fusão a respeito do sexo da prostituta. A figurafeminina que tanto atraiu quanto repeliu Henryé transformada — primeiro em um homem edepois em um santo. A segunda metamorfoseelimina da imagem qualquer idéia de sexo, e su-bentende que o único meio para escapar à rea-lidade sexual está na adoção de uma vida as-cética e santa, de negação da carne. Estas in-versões dramáticas são comuns nos sonhos: ascoisas transformam-se no seu contrário (como aprosti tuta num santo), como a demonstrar quepela transmutação mesmo os extremos opostosse podem converter um no outro.

Henry viu também algo significativo no ca-saco do santo. Um casaco é, muitas vezes, sím-bolo de abrigo protetor ou da máscara (a queJung chamava persona ) que o indivíduo a-presenta ao mundo. Tem dois propósitos: pri-meiro, dar determinada impressão aos outros;segundo, ocultar o íntimo do indivíduo da curi-osidade alheia. A persona dada por Henry aosanto diz-nos um pouco da sua atitude para coma noiva e a amiga desta. O casaco do santo tem amesma cor da jaqueta da amiga, que Henry ad-mirara, mas também o feitio da jaque ta da noi-va. Isto implica que o inconsciente de Henryqueria santificar ambas as mulheres, de maneiraa proteger -se contra a sua sedução feminina. Epreciso notar também que o casaco é vermelho,cor tradicionalmente simbólica de sentimento epaixão (como já acentuamos antes). Assim, é da-

da à figu ra do santo uma espécie de es-pi ri tual idade erót ica — qual idade fre-quentemente encont rada nos homens que re-primem sua própria sexualidade e tentam con-fiar no seu "espír ito" ou na sua razão.

Esta fuga ao mundo da carne, no entanto,não é natural nos jovens. Na primeira metade davida devemos justamente aprender a aceitar nos-sa sexualidade: é essencial à preservação e à con-tinuação da nossa espécie. O sonho parece lem-brar justamente este ponto a Henry.

Quando o santo deixa a caverna e desce aolongo da estrada (do alto para o vale), entra nu-ma segunda caverna com bancos e cadeiras tos-cos, que lembra um dos primitivos lugares cris-tãos de culto e refúgio às perseguições. Esta grutaparece ser um local de regeneração e santidade —um lugar de medi tação, onde o que é terrestrese transforma misteriosamente em celeste, e ocarnal em espiritual.

Henry não tem permissão para seguir o san-to, que o expulsa da caverna com todos os pre-sentes (isto é, com suas entidades inconscientes).Aparentemente, está sendo sugerido que Henrye todos os outros que não são seguidores do san-to devem viver no mundo exterior. O sonho pa-rece dizer que Henry deve primeiro obter sucessona sua vida exterior antes de penetrar numa es-fera religiosa ou espiritual. A figura do santo pa-rece também simbolizar (de um modo re-lativamente indist into e antecipado) o self; masHenry ainda não está bastante maduro para per-manecer na vizinhança imediata desta imagem.

O fato de Henry ter tocado naprostituta pode estar ligado á crençano poder mágico do toque. Àesquerda, o irlandês ValentineGreatrakes (séculoXVII), famosopelas curas que realizava com osimples toque das mãos.

À direita, outro exemplo de persona:as roupas usadas pelos beatniksingleses na década de 1960 indicamos novos valores de vida quedesejavam mostrar ao mundoexterior.

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Evoluçãoda análise

A despeito de seu ceticismo e resistênciainiciais, Henry começou a tomar interesse peloque estava acontecendo na sua psique. Mostrava-se claramente impressionado com os seus so-nhos. Pareciam compensar a sua vida in -consciente de um modo signif icativo e davam-lhe uma valiosa percepção da sua ambivalência,das suas vacilações e da sua preferência pela pas-sividade.

Depois de algum tempo, surgiram sonhosmais posit ivos revelando que Henry já estava"em bom caminho". Dois meses depois do iní-cio da sua análise, relatou-me o seguinte sonho:

No porto de um lugarejo perto de minha casa,estão retirando do fundo de um lago próximo lo-comotivas e caminhões submersos na última guerra.Primeiro veio à tona um grande cilindro parecendouma caldeira de locomotiva. Depois um caminhãoenorme e enferrujado. O quadro é ao mesmo tempohorrível e romântico. As peças recuperadasprecisam

ser transportadas para a estação da estrada de ferro vi-zinha. Depois o fundo do lago transforma-se numacampina verdejante.

Vemos aqui o notável avanço interior feitopor Henry. Locomotivas (símbolos, provavel-mente, de energia e dinamismo) foram "sub-mersas" — isto é, reprimidas no inconsciente —mas estão agora sendo içadas à luz do dia. Juntocom elas há caminhões, nos quais todo o tipo decargas de valor (qualidades psíquicas) podem sertransportadas.

Agora que estes "objetos" tornaram-se no-vamente disponíveis para a vida consciente deHenry, ele começa a se dar conta de quanta ener-gia ativa pode dispor. A transformação do fundoescuro do lago em uma campina acentua a suapotencialidade positiva.

Algumas vezes, na "solitár ia jornada" deHenry em direção à maturidade, ele também foiauxil iado pelo lado feminino da sua psique. No

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seu 24º son ho, enc ont ra uma "me nina cor-cunda":

Estou a caminho da escola junto com uma jovemdesconhecida, pequena e graciosa, mas desfiguradapor uma corcunda. Muitas outras pessoas entram naescola conosco. Enquanto os outros se dispersam pelasdiferentes salas para tomar lições de canto, a meninae eu sentamo-nos numa pequena mesa quadrada. Elame dá uma aula de canto part icular. Sinto pena delae por isso beijo-a na boca. Tenho consciência, no en-tanto, de que com este ato estou sendo infiel à minhanoiva — mesmo havendo uma desculpa para ele.

O canto é uma expressão imediata de sen-sibilidade. Mas (como já vimos) Henry receia osseus sentimentos; só os conhece sob uma formaadolescente e imaginária. No entanto, neste so-nho ensinam-lhe a cantar (a exprimir seus senti-mentos ) numa mesa quadrada. A mesa, comseus quatro lados iguais, é uma representação domot ivo da "quat ern idade ", um símbo lo co-

Como no quadro à esquerda (do pintoroitocentista inglês William Turner),intitulado Chuva, Vapore Velocidade, alocomotiva é uma imagem clara deenergia motora e dinâmica. No sonho deHenry (que ele desenhou, abaixo) aslocomotivas são retiradas de um lago —exprimindo a liberação de uma valiosacapacidade de ação que até entãoestivera reprimida no seu inconsciente.

mum da totalidade. Assim, a relação entre ocant o e a mesa quadrada parece indicar queHenry deverá, integralizar seus "sentimentos"antes de alcançar a totalidade psíquic a. De fato,a lição de canto o emociona, e ele beija a meninana boca. Portanto, num certo sentido, ele a "es -posa" (de outro modo não se teria considerado"infiel"). Aprendeu a relacionar-se com a "mu-lher inter ior' '.

Um outro sonho demonstra o papel que es-ta menina corcunda desempenhou na evoluçãointerior de Henry:

Estou numa escola desconhecida, de meninos.Durante o período de aulas me introduzo se-cretamente no edifício, não sei para que fim. Es-condo-me na sala atrás de um pequeno armárioquadrado. A porta para o corredor está entreaberta.Passa um adulto sem me ver. Mas uma meninazinhacorcunda entra e logo me descobre. Elame fazsairdomeuesconderijo.

Não só a mesma jovem aparece em ambosos sonhos, mas nas duas vezes estas apariçõesocorrem numa escola. De cada vez Henry precisaaprender alguma coisa que irá ajudar o seu de-senvolvimento . Aparentemente, ele gostaria desatisfazer seu desejo de aprender, mas per-manecendo despercebido e em atitude passiva.

A figura de uma menina corcunda apareceem inúmeros contos de fada. Nestes contos afealdade da corcunda esconde, em geral, umagrande formosura, revelada quando o "homemcerto" surge para libertar a jovem de um sor-tilégio — muitas vezes através de um beijo. Ajovem do sonho de Henry pode ser um símboloda sua alma, que também precisa libertar -se da"magia" que a desfigurou. Quando a jovemcorcunda ten ta desper tar os sentimentos deHenry através do canto, ou quando o tira do seuesconde rijo (forçando -o a enfrentar a luz dodia), revela-se uma excelente guia. Henry pode eprecisa, num certo sentido, pertencer si-multaneamente à sua noiva e à jovem corcunda(à primeira como representante da mulher ex-terior e real, e à segunda como uma encarnaçãoda anima psíquica interior).

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O sonhodo oráculo

Pessoas que conf iam tota lme nte no ra -ciocínio e afastam ou reprimem qualquer ma-nifestação de vida psíquica muitas vezes se in-clinam inexplicavelmente para a superstição.Ouvem oráculos e profecias e podem ser fa-cilmente burladas ou influenciadas por mágicose charlatães. E porque os sonhos compensamnossa vida exterior, a importância que estas pes-soas dão ao intelecto é contrabalançada pelossonhos, onde encontram o irracional sem pos-sibilidade de fuga.

Henr y expe rimentou este fenômeno, nocurso de sua análise, de modo impressionante.Quatro sonhos extraordinários, baseados em te-mas irracionais, representaram etapas decisivasno seu desenvolvimento espiri tual. O primeiroaconteceu cerca de 10 semanas depois do inícioda análise. Ele o narrou da seguinte maneira:

Sozinho numa viagem arriscada pela América doSul, sinto finalmente vontade de voltar à casa. Numacidade de um país estrangeiro, situada na montanha,tento alcançar a estação de trens que julgo, ins-tintivamente, situar-se no centro da cidade, em seuponto mais alto. Receioestar atrasado.

Felizmente no entanto uma passagem abobadacorta uma fileira de casas à minha direita. São casasconstruídas muito juntas, como na arquitetura me-dieval, e formam uma muralha impenetrável atrás daqual suponho estar a estação. Todo o cenário é muitopitoresco. Vejo as fachadas ensolaradas e pintadas dascasas, e a arcada sombria em cuja obscuridade quatrosilhuetas andrajosas acomodaram-se na calçada. Comum suspiro de alívio corro em direção à passagem,quando de repente um tipo estranho, parecendo umcaçador, surge à minha frente, evidentemente com omesmo propósito de apanhar o trem.

À nossa aproximação os quatro porteiros, quesão chineses, levantam-se de um salto para evitar nos-sa passagem. Na luta que se segue minha perna es-querda se machuca nas longas unhas do pé esquerdode um dos chineses. Um oráculo tem então de de-cidir se nos podem deixar passar ou se devemos per-dera vida.

Sou eu o primeiro. Enquanto meu companheiroé amarrado e afastado, os chineses consultam o orá-culo usando pequenas varetas de marfim. O jul-gamento é contra mim, mas dão-me outra opor-

tunidade. Sou algemado e posto de lado, tal comomeu companheiro, e ele agora toma meu lugar. Nasua presença o oráculo vai decidir minha sorte, pelasegunda vez. Desta vezela me é favorável. Salvo-me.

Nota-se logo a singularidade e o significadoexcepcional do sonho, a sua riqueza de símbolose a sua densidade. No entanto, parece que oconsciente de Henry queria ignorar o sonho. De-vido ao ceticismo que manifestava em relaçãoaos pro dut os do seu inc ons cie nte , era im-portante não expor o sonho ao perigo de uma ra-cionalização, e antes deixá -lo agir sem in-terferências. Abstive-me de dar minha in-terpretação. Ofereci -lhe uma única sugestão:aconselhei -o a ler e consultar (como as figuraschinesas do sonho) o famoso livro chinês de orá-culos, o I Ching.

O I Ching, chamado "Livro das Trans-mutações", é um velho livro de sabedoria; suasraízes remontam aos tempos mitológicos e, nasua forma atual, data do ano 3000 A.C. De acor-do com Richard Wilhelm (que o traduziu para oalemão e fez-lhe admirável comentário), os doisprincipais ramos da filosofia chinesa — o taoís-mo e o confucionismo — originaram -se do IChing. O livro baseia-se na hipótese da unidadedo homem e do cosmos, e da existência de umpar de princíp ios opostos e complementares, oYang e o Yin (isto é, os princípios masculino efeminino). Consiste de 64 "sinais", cada umrepresentado por um desenho de seis linhas.Nestes sinais estão contidas todas as possíveiscombinações de Yang e Yin. As linhas retas sãoconsideradas masculinas , as linhas quebradas,femininas.

Cada sinal descreve mudanças na situaçãohumana ou cósmica, e cada um prescreve, emlinguagem pictórica, a atitude a adotar em taisocasiões. Os chineses consultavam este oráculode uma maneira que lhes indicava qual destes si-nais se aplicaria a um momento defin ido. Em-pregavam para isto, de um modo bastantecomplicado, 50 pequenas varetas, obtendo en-tão um determinado número. (Incidentalmente,Henry já me havia dito que lera — provavelmen -

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te no comentário de Jung sobre O Segredo daFlor Dourada — a respeito de um estranho jogousado pelos chineses para adivinhar o futuro.)

Hoje em dia, o método usado para con -sultar o I Ching utili za três moedas. Cada vezque se lançam as moedas obtém-se uma linha."Cara" significa a linha masculina e vale três;"coroa", uma linha quebrada, feminina, e valedois. Jogam-se seis vezes as moedas e o númeroobtido indica o sinal do hexagrama (isto é, oconjunto de seis linhas) a ser consultado.

Mas o que significa nos dias de hoje esta"adivinhação"? Mesmo aqueles que aceitam aidéia de ser o I Ching um depósito de sabedoriahão de achar difíci l acredi tar que a consul ta aooráculo seja qualquer coisa mais que uma sim-ples experiência de ocultismo. Não é fácil real-mente perceber que estas consultas envolvemoutros fenômenos, pois o homem comum, hojeem dia, considera qualquer técnica divina tóriaum contra-senso arcaico. No entanto, não sãocontra-sensos. Como mostrou o Dr. Jung, estesistema de consultas está baseado no que cha-mou "o princípio da sincronicidade" (ou, maissimple smente , coi nci dência s signif ica tivas) .Descreveu esta nova e difíci l concepção no seu

ensaio Sincronic idade: um Princípio de RelaçãoAcausal. Baseia-se na hipótese de umconhecimento interior inconsciente ligar umacontecimento físico a uma condição psíquica,de modo que um determinado acontecimentoque par ece "ac identa l" ou "co inc ide nte" po -de, na verdade, ser psiquicamente significativo;e o seu significado é, muitas vezes, indicadosimbolicamente através de sonhos que coin -cidem com o acontecimento.

Várias semanas depois de ter estudado o IChing, Henry seguiu minha sugestão (com umaconsiderável dose de ceticismo) e jogou as moe-das. O que encontrou no livro causou-lhe enor -me impacto. Em resumo, o oráculo que resultoucontinha referências espantosas ao seu sonho e àsua condição psicológica geral. Por uma incrívelcoincidência "sincronística", o sinal indicadopelas moedas chamava-se Meng — ou "Lou -cura da Mocidade''.

Neste capítulo há várias analogias com osmotivos do sonho. De acordo com o texto do IChing, as três linhas superiores deste hexagramasimbol izam uma montanha, e signif icam"aquietar-se" ; pode m também ser interpreta -das como um portão. As três linhas inferioressimbolizam a água, o abismo e a lua.

À esquerda, duas páginas do / Chingmostrando o hexagrama Meng (quesignifica "loucura da mocidade"). Astrês linhas do alto do hexagramasimbolizam uma montanha e podem,também, representar um portão; astrês linhas inferiores simbolizam aágua e o abismo.

À direita, o desenho feito por Henryda espada e do elmo que lheapareceram em sonho, e quetambém se relacionam com umaseção do I Ching — Li, "o apego, ofogo".

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Todos estes símbolos ocorreram em sonhos an-ter iores de Henr y. Entr e muitas outras de-clarações que parecem aplicar-se a Henry havia oseguinte aviso: "Para a loucura da juventude, acoisa mais perigosa é entregar-se a fantasias ocas.Quanto mais obstinadamente apegar-se a este ti-po de irrealidade, mais certo a humilhação há dechegar .''

Deste modo e por outros mais complexos, ooráculo parecia aplicar-se diretamente ao pro-blema de Henry. Isto o chocou bastante. A prin -cípio tentou apagar aquelas impressões atravésda força de vontade, mas não conseguiu escaparnem ao que leu nem aos sonhos. A despeito dalinguagem enigmática, a mensagem do I Chingpareceu tocá -lo profundamente. Sentiu-se der-rotado pela irracionalidade que tanto negara.Ora silencioso ora irritado relia as palavras quepareciam coincidir tão fortemente com os sím-bolos dos seus sonhos, dizendo-me por fim:"Preciso pensar sobre tudo isto ." E saiu, antesde nossa sessão ter terminado. Cancelou por te-lefone a sessão seguinte, devido a um resfriado,e não reapareceu. Esperei ("aquietei -me") por -que imaginei que ele ainda não tivesse digeridoo oráculo.

Passou-se um mês. Finalmente Henry apa-receu de novo, excitado e desconcertado, e con-tou-me o que acontecera até então. A princ ípioseu intelecto (no qual sempre confiara" tanto)sofrera um grande choque — que ele de iníciotentara negar. No entanto, logo teve de admit irque as comunicações do oráculo o perseguiam.Tencionara consultar novamente o livro, porqueno seu sonho o oráculo fora consultado duas ve-zes. Mas o texto do capítulo "Loucura da Ju-ventude" proibia expressamente uma segundapergunt a. Durante duas noites Henr y se de -batera, insone; mas na terceira, uma imagemonírica, luminosa, de grande força, apareceu derepente ante seus olhos : um elmo com uma es-pada flutuando no vácuo.

Henry imediatamente retomou o I Ching eabriu-o ao acaso no comentário ao capítulo 30onde (para grande surpresa sua) leu o seguintetrecho: "A obstinação é fogo, significa armadu -ra, elmos; signif ica lanças e armas." Entendeuentão por que uma consulta intencional ao orá -culo teria sido proibida. Pois no seu sonho o egofora excluído da segunda pergunta, fora o caça -dor quem consultara o oráculo a segunda vez.Do mesmo modo, foi por um ato semi-

inconsciente que Henry fizera , sem intenção, asegunda pergunta ao I Ching, abrindo o livro aoacaso e encont rando um símbolo que coincidiacom a sua visão noturna.

Henry estava tão visível e profundamenteagitado que me pareceu ter chegado o momentode tentar interpretar o sonho que desencadearaaquela metamorfose. Diante dos acontecimentosdo sonho, era óbvio que os elementos oníricosdeviam ser interpretados como conteúdos da per-sonalidade interior de Henry, e as seis figuras dosonho como personificações das suas qualidadespsíquicas. Estes sonhos são relativamente raros,mas quando ocorrem provocam as mais intensasrepercussões. Por isso, poderiam ser chamados''sonhos de transformação".

Com sonhos de tal poder pictórico, o so-nhador raramente encontra poucas associaçõespessoais. Toda a contribuição que Henry pôde o-ferecer foi a de que recentemente tentara arran-jar um emprego no Chile e fora recusado porquenão aceitavam homens solteiros. Sabia tambémque alguns chineses deixam crescer as unhas damão esquerda como sinal de que, em lugar detrabalhar, resolveram dedicar -se à meditação.

O fracasso de Henry (em obter um empregona América do Sul) foi-lhe apresentado no so-nho. Nele Henry foi transportado a um mundotropical e meridional — um mundo que, emcomparação com a Europa, poderia qualificar deprimiti vo, livre de inibições e sensual. Re-presenta uma excelente imagem simbólica doreino do inconsciente.

À direita, uma analogia com osporteiros do "sonho do oráculo" deHenry: uma das esculturas (são umpar) que guardam a entrada dascavernas Mai-chi-san, na China(séculos X a XIII).

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Este mundo era o oposto do intelectualismorefinado e do puritanismo suíço que dominavama mente consciente de Henry. Na verdade, era aterra natural da sua "sombra", pela qual tantoansiara. Mas depois de um certo tempo não pa-recia sentir -se muito confortável nela. Destasforças ctônicas, sombrias e maternais (simboli-zadas pela América do Sul) ele retorna, no so-nho, à mãe real e luminosa e à noiva . De re-pente, dá-se conta do quanto se afastara delas:encontra-se só, numa "cidade de um país es-trangei ro".

Esta maior conscient ização é simbolizadano sonho como "o ponto mais alto": a cidadeestá construída numa montanha. Assim, Henry"galgou" uma conscientização mais aguda no"país da sombra". Dali esperava "encontrar ocaminho de casa". Este problema de subir umamontanha já lhe fora proposto em seu primeirosonho. E, tal como no sonho do santo e da pros-tituta, ou em muitos contos mitológicos , a mon-tanha muitas vezes simboliza um lugar de reve-lação, onde se produzem mudanças e trans-formações.

A "cidade na montanha" é também umconhecido símbolo arquetípico que aparece nahistória da nossa cultura sob inúmeras variações.A cidade, cuja planta corresponde a uma man -dala, represen ta a "reg ião da alma" em cujocentro o self (centro e totalidade da psique) temsua morada.

Surpreendentemente, a sede do self está. re-presentada no sonho de Henry como um centrode circulação da coletividade humana — umaestação de estrada de ferro. Talvez isto aconteçaporque o sel f (quando o sonhador é jovem etem um nível de desenvolvimento espiri tual re-lat ivamente baixo) é, de hábi to, simbolizadopor um objeto que faz parte da sua experiênciapessoal — muitas vezes um objeto banal, paracompensar as suas aspirações mais elevadas. Sóna pessoa amadurecida, familiarizada com asimagens da alma é que o self é representadopor um símbolo que corresponde ao seu valorúnico.

Apesar de Henry não saber onde está locali-zada a estação, supõe que fique no centro da ci -dade, em seu ponto mais elevado. Aqui, comonos primeiros sonhos, ele é auxiliado pelo seuinconsciente. A mente consciente de Henry esta-va identificada com a sua profissão de engenhei -ro e por isso, certamente, ele gostaria que o seumundo interior estivesse relacionado com pro -dutos racionais da civilização, como o é uma es-trada de ferro. O sonho no entanto rejeita estaatitude e indica um caminho intei ramente dife -rente.

O caminho leva-o através de uma passagemabobadada e escura. Um portão abobadado étambém símbolo de soleira , de limiar , um pontoonde o perigo está à esprei ta, um lugar que unee separa a um só tempo. Em vez da estação detrem procurada por Henry, e que ligaria a a-greste América do Sul à Europa, ele encontrou-se diante de uma entrada escura e abobadada,onde quatro chineses andrajosos, estendidos nochão, bloqueiam a passagem. O sonho não faznenhuma distinção entre estes chineses, por issoeles podem ser considerados como quatro as-pectos ainda indiferençados da totalidade mas-culina. (O número quatro, um símbolo de tota-lidade e integridade, representa um arquétipoque o Dr. Jung discutiu amplamente nos seus li-vros.)

Os chineses representam, assim, partes in-conscientes da psique masculina de Henry queele não consegue evita r, desde que o "cami nho

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para o self (isto é, para o centro psíquico) estábarrado por estes aspectos e ainda precisa lhe serfranqueado. Até resolver este problema ele nãopode continuar sua jornada.

Ainda sem perceber o perigo iminente ,Henry corre para a passagem esperando ao menosalcançar a estação ferroviária. Mas no caminhoencontra sua "sombra" — seu lado primitivo enegligenciado que surge sob a forma de umcaçador, grosseiro e rude. O aparecimento destafigura significa, provavelmente, que o ego intro-vertido de Henry associou -se ao seu lado extro-vertido (e compensador), que representa os seusaspectos afetivos e irracionais reprimidos. Esta fi-gura da "sombra" ultrapassa o ego consciente,colocando -se em primeiro plano e, porque per-sonifica a atividade e a autonomia dos caracteresinconscientes, torna -se um enviado do destino,através do qual tudo acontece.

O sonho caminha para o clímax. Durante aluta entre Henry, o caçador e os quatro chinesesandra josos , a perna esquerda de Henry é ar-ranhada pelas longas unhas do pé esquerdo de umdos quatro. (Aqui, parece-nos, o caráter europeudo ego consciente de Henry colide com uma per-sonificação da antiga sabedoria oriental, isto é,com o seu contrário absoluto. Os chineses vêm deum continente psíquico totalmente diferente, deum "outro lado" ainda bastante desconhecido deHenry e que lhe parece perigoso.)

Os chineses também podem ser consideradosrepresentantes da "terra amarela", pois são umpovo vinculado à terra como poucos. E foi jus-tamente esta qual idade ter restre e ctônica que

Henry teve de aceitar.A totalidade masculina in-consciente da sua psique, que ele encontrou nosonho, tinha um aspecto material ctônico que fal-tava ao seu lado intelectual consciente. Assim, ofato de ter identificado como chineses as quatro fi-guras andrajosas mostra que Henry aumentara asua percepção interior a respeito da natureza deseus adversários.

Henry ouvira dizer que os chineses por vezesdeixam as unhas da mão esquerda crescerem exa-geradamente. Mas no sonho as unhas longas sãodo pé esquerdo: são, por assim dizer, garras. Istopode significar que os chineses têm um ponto devista tão diferente de Henry que isto chega a feri-lo. Como sabemos, a atitude consciente de Henryem relação ao ctônico e ao feminino e em relação

Abaixo, desenho de um pacientedurante o seu processo de análise,revelando um monstro negro (no ladovermelho ou do "sentimento") e umamulher, semelhante a uma madona (nolado azul ou espiritual). Era esta aposição de Henry: insistência exageradasobre a pureza, a castidade etc. e medodo inconsciente irracional. (Note-secontudo que a flor verde, lembrandouma mandala, age como elemento deligação entre os dois lados conflitantes.)Abaixo,à esquerda, desenho de umoutro paciente representando a suainsônia —causada pela repressãoexpressiva dos seus impulsospassionais, vermelhos e instintivos (quepodem dominar sua consciência),repressão exercida poruma "parede"negra de ansiedade e depressão.

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às profundezas materiais da sua natureza era in-certa e ambivalente. Esta atitude, simbolizada porsua "perna esquerda" (o ponto de vista ou "opi-nião" do seu lado feminino e inconsciente, queele ainda receia), foi "machucada" pelos chi -neses.

Não foi porém este "ferimento" que pro-vocou uma mudança na personalidade de Henry.Toda transformação pede como condição primeira"o fim de um mundo" — o colapso de uma ar-raigada filosofia de vida. Como o Dr. Hendersonacentuou anter iormente neste livro , nas ce-rimônias de iniciação o jovem deve sofrer umamorte simbólica antes de renascer como homem eingressar na tribo como seu membro efetivo. As-sim, a atitude científica e racional do engenheiroprecisa desaparecer para dar lugar a uma nova ati-tude.

Na psique de um engenheiro tudo que é "ir-racional" deve ser reprimido e vem revelar-se,muitas vezes, em paradoxos dramáticos do mun-do onírico. O irracional apareceu no sonho deHenry como um "jogo de oráculos" de origemestrangeira, que teria o poder assustador e inex-plicável de decidir a sorte dos seres humanos. Aoseu ego racional não resta outra alternativa senãoa de capitular incondicionalmente, num ver-dadeiro sacrificium intellectus.

No entanto, a mente consciente de umapessoa imatura e inexperiente como Henry nãoestá suficientemente preparada para um ato des-ta espécie. O oráculo lhe é desfavorável e ele de-ve pagar com a vida. Fica imobilizado, incapazde seguir seu caminho habitual ou de volta r àsua casa — para escapar às suas responsabilida-des de adulto. (Era para chegar a este dis -cernimento que Henry devia ser preparado poreste "grande sonho".)

Em seguida, o ego consciente e civili zadode Henry é algemado e posto de lado enquantopermitem que o caçador primitivo tome seu lu-gar e consulte o oráculo. A vida de Henry de-pende deste resultado. Mas quando o ego encon-tra-se aprisionado no seu próprio isolamento, es-tes conteúdos do inconsciente, personificados nafigura da "sombra", podem trazer auxílio e so-lução. Isto se torna possível quando se reconhecea existência de tais conteúdos e já se ex-perimentou o seu poder. Podem, então, serconscientemente aceitos como nossos constantescompanheiros. Porque o caçador (sua sombra)ganhou o jogo em seu lugar, Henry se salva.

Confronto com o irracional

O comportamento subseqüente de Henr ymostra claramente que o sonho (e o fato de osseus sonhos e de o livro de oráculos, o I Ching,terem-no obrigado a enfrentar forças irracionaisque estavam no fundo dele mesmo) o im-pressionou muito. Daí em diante ele passou aouvir ansiosamente as comunicações do seu in-consciente, e a análi se tomou um caráter cadavez mais inquieto. A tensão que até aí ameaçararomper as profundezas da sua psique veio à to-na. No entanto, ele corajosamente agarrou-se àcrescente esperança de que chegaria a um epí -logo satisfatório.

Mal haviam transcorrido duas semanas dosonho do oráculo (mas antes de o termos dis-cutido e interpretado) e Henry teve outro sonhono qual se defrontou, novamente, com o per-turbador problema do irracional:

Estou só em meu quarto. Uma porção de be-souros pretos e repugnantes saem de um buraco e seespalham sobre minha prancheta. Tento fazê-los vol-tar ao buraco com uma espécie de passe de mágica.Consigo que tal aconteça e restam do lado de foraapenas quatro ou cinco besouros, que deixam a mi-nha mesa de trabalho e se dispersam pelo quarto. De-sisto de persegui-los; já não me parecem tão as-querosos. Ponho fogo no seu esconderijo. As chamaserguem-se numa coluna alta. Receio que meu quartose incendeie, mas é um medo sem qualquer fun-damento.

Nesta época, Henry tornara-se bastante há-bil na inte rpre tação dos seus sonhos, e tentoudar a este uma explicação própr ia. Disse ele:"Os besouros são minhas qualidades obscuras.Foram despertadas com a análise e vêm, agora, àsuperfíc ie. Há perigo de invadirem meu tra -balho profissional (simbolizado pela prancheta).No entanto não ouso esmagar os besouros, queme lembram um tipo de escaravelho negro, coma mão, como pretendi inicialmente, e por issoprecisei fazer uma ''mágica''. Pondo fogo ao seuesconderi jo eu, por assim dizer, pedi a ajuda dealguma coisa divina, pois a coluna de chamasfaz-me lembrar o fogo que associo à Arca daAliança, da Bíblia."

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Para chegar mais ao fundo do simbolismodeste sonho precisamos, primeiramente, notarque estes besouros são pretos, cor da escuridão,da depressão, da morte. No sonho, Henry está"só" no seu quarto — uma situação que podelevar à introversão e a um correspondente estadode melancolia. Na mitologia, os escaravelhos sãomuitas vezes dourados; no Egito eram animaissagrados que simbolizavam o sol. Mas se são pre-tos simbolizam o lado oposto do sol: algo de-moníaco. Portanto, o instinto de Henry está certoquando quer lutar contra os besouros com al-guma mágica.

Apesar de quatro ou cinco dos besouros te-rem sobrevivido, a diminuição do seu número ésuficiente para libertar Henry do medo e do no-jo. Procura então destruir o foco com fogo. Éuma açã o pos iti va, por que o fogo, sim-bolicamente, pode levar à transformação e ao re-nascimento (como acontecia, por exemplo, noantigo mito do fênix).

Na sua vida diurna, Henry parecia agora es-tar dono de um auspicioso espírito de iniciativa,mas aparentemente ainda não aprendera a usá -lo de maneira apropriada. Por isso quero rel ataroutro sonho posterior, que mostra ainda maisclaramente o seu problema. Este sonho exprimeem linguagem simbólica o medo que Henry ti -nha de qualquer relacionamento com uma mu-lher que envolvesse responsabilidade, e a suatendência em fugir do lado sentimental da vida:

Um velho homem exala seu último suspiro. Estácercado por seus parentes e encontro-me entre eles.Cada vez chega mais gente ao grande quar to, cadaum se dist inguindo por alguma declaração precisa.Há bem umas 40 pessoas ali presentes. O velho gemee resmunga a respeito de "uma vida não vivida''. Suafilha, que deseja facilitar sua confissão, pergunta-lheem que sentido ela não foi bem vivida, se moral oucultura lmente. O velho não responde. A filha manda-me ir a uma pequena sala contígua, onde devo en-contrar a resposta deitando cartas. O "nove" que euvirar dará a resposta, de acordo com a cor.

Espero logo no início virar um nove, mas apa-recem vários reis e rainhas. Fico desapontado. Agorasó viro pedaços de papel que não pertencem ao ba-ralho. Por fim verifico que não há mais cartas, apenasenvelopes e mais papel. Procuro as cartas por todaparte, juntamente com minha irmã , que está pre -sente . Afinal encontro uma, debaixo de um livro oude um caderno. É um nove, o nove de espadas. Pa-

Acima, um relevo egípcio (cerca doano 1300 A.C.) mostra umescaravelho e o deus Amon dentrodo círculo do sol. No Egito, oescaravelho dourado simbolizava osol.Abaixo, um tipo de inseto bemdiferente, mais parecido com osbesouros "demoníacos" do sonhode Henry: gravura de James Ensor(século XIX) mostrando sereshumanos com corpos escuros erepulsivos de insetos.

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rece-me que o significado disto é apenas um: que fo-ram grilhões morais que impediram o velho homemde "viver sua vida".

A mensagem essencial deste estranho sonhofoi avisar a Henry o que o aguardava se ele dei-xasse de "viver sua vida". O "velho homem"provavelmente representa a agonia de um"princípio dominante" — o princípio que do-mina a consciência de Henry, mas cuja naturezalhe é desconhecida. As 40 pessoas presentes sim-bolizam a total idade dos traços psíquicos deHenry (40 é um número de totalidade, um múl-tiplo de quatro) . O fato de o velho estar mor-rendo poderia significar que parte da per-sonalidade masculina de Henry está às portas deuma transformação final.

A indagação da filha sobre a possível causada morte é a questão inevitável e decisiva. Pareceestar implícito que a "moralidade" do velhoimpediu-lhe de expandi r plenamente os sen-timentos e impulsos naturai s. No entanto, omoribundo está silencioso. Por isto sua filha (apersonif icação do princípio feminino mediador,a anima) precisa intervir.

Ela manda Henry descobrir a resposta nascartas — resposta que será dada pela cor do pri-meiro nove a ser virado. A sorte tem que ser ti-rada num cômo do separado e sem uso (re-velando o quanto este acontecimento está dis-tante da atitude consciente de Henry).

Ele se desaponta quando vira apenas reis erainhas do baralho (talvez imagens coletivas queexprimem a sua admiração juvenil pelo poder epela riqueza). Esta decepção aumenta quando ascartas acabam, mostrando que os seus símbolosdo mundo interior também se esgotaram. Res-tam apenas "pedaços de papel", sem qualquerimagem. Assim, a fonte de imagens secou no so-no. Henry tem, então, de aceitar a ajuda do seulado feminino (desta vez representado por sua ir-mã) para encontrar a última carta. Juntos, afinalencontram uma carta — o nove de espadas, quedeve indicar pela cor o que quer dizer a frase"uma vida não vivida". É significativo que acarta esteja oculta sob um livro ou caderno —representando, provavelmente, as áridas fór-mulas intelectuais dos interesses técnicos deHenry.

O nove foi por muitos séculos um "númeromágico". De acordo com o simbolismo tra-dic ional dos núme ros , ele rep resenta a forma

perfei ta de uma trindade aperfeiçoada por suatripla elevação. E há significados sem conta as-sociados ao número nove, em várias épocas e emdiferentes culturas. A cor do nove de espadas é acor da morte, da ausência de vida. E a figura de"espadas" evoca a forma de uma folha, en-quant o sua cor negra acentua que em lugar deser verde, vital e natural, ela está morta. Alémdisso, a palavra "espada" é derivada do italianospada, que significa lança ou espada, armas quesimbol izam a função "co rtante" e penetrantedo intelecto.

Assim, o sonho torna claro que eram os ''la-ços mora is" (mais do que os "cul tura is") quenã o pe rm it ia m ao ve lh o "v iv er su a vi da ".No caso de Henry, estes "laços" eram, provavel-mente, o seu medo de entregar-se por completoà vida e de aceitar responsabilidades em relaçãoa uma mul her , torna ndo-se ent ão "in fie l" àmãe. O sonho declara que "uma vida não vi-vida" é uma doença de que se pode vir a morrer.

Henry não podia desconhecer por maistempo a mensagem deste sonho. Compreendeuque não basta a razão para que nos orientemosnos emaranhados da vida; é necessário tambémbuscar conselhos nas forças inconscientes queemergem como símbolos das profundezas dapsique. Tendo reconhecido este fato, o objetivodesta parte de sua análise foi alcançado. Sabiaagora que fora afinal expulso do paraíso de umavida sem compromissos, para onde nunca maispoderia voltar.

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Acima, um fênix renascendo daschamas (de um manuscrito medievalárabe) — exemplo muito conhecidoda morte e do renascimento pelofogo. Abaixo, uma gravura do artistafrancês Grandville (século XIX) quereflete alguns dos valores simbólicosdas cartas. As espadas, por exemplo(piques em francês, lança), estãosimbolicamente ligadas à"penetração" do intelecto e, porsua cor preta, à morte.

O sonhofinal

Um outro sonho posterior veio conf irmar ir-revogavelmente os conhecimentos adqui ridosaté então por Henry. Depois de alguns sonhoscurtos e sem especial importância a respeito desua vida cotidiana, o último sonho (o quin-quagé simo da série ) apareceu com toda a ri-queza de símbolos que caracteriza os chamados"grandes sonhos".

Somos quatro pessoas que formam um gru-po de amigos e temos as seguintes experiências:

Entardecer — Estamos sentados a uma mesa lon-ga, de tábuas toscas, e bebendo de três vasilhas di-ferentes: de uma garrafa de licor, um líquido claro,amarelo e doce; de uma garrafa de vinho, um Cam-pari vermelho escuro; de um recipiente maior, deforma clássica, chá. Além de nós quatro há uma jo-vem retraída e delicada que despeja o seu licor nochá.

Noite — Voltamos de uma grande bebedeira.Um de nós é o presidente da República Francesa. Es-tamos no palácio. Chegando à sacada, percebemosque embaixo, na rua toda branca, o presidente, bê-bedo, está urinando num monte de neve. Parece quesua bexiga tem uma capacidade inexaurível. Agora,ele corre atrás de uma solteirona que carrega nosbraços uma criança embrulhada em um cobertor mar-rom. Borrifa a criança de urina. A mulher se sentemolhada, mas julga que foi a criança. Ela anda ra-pidamente, a passos largos.

Manhã — Pela rua, que brilha com o sol do in-verno, caminha um negro: uma figura magnífica,completamente nu. Vai em direção leste, para Berna(a capital suíça). Estamos na Suíça Francesa. De-cidimos ir visitá-lo.

Meio-dia — Depois de uma longa viagem decarro por uma região deserta e cheia de neve, che-gamos a uma cidade e a uma casa sombria onde di-zem que está o negro. Temos medo que ele tenhamorrido enregelado. No entanto o seu empregado,escuro como ele, nos recebe. Tanto o negro quanto oempregado são mudos. Procuramos em nossas mo-chilas para ver o que cadaum de nós podedar de pre-sente a ele. É preciso que seja algum objeto carac-terístico da nossa civilização. Sou o primeiro a me de-cidir e apanho do chão uma caixa de fósforos, ofe-recendo-a respeitosamente ao negro. Depois de todosterem dado o seu presente juntamo-nos a ele numaalegre farra.

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Mesmo à primeira vista o sonho em quatropartes causa uma impressão pouco comum.Compreende um dia intei ro e move-se "à di-reita", na direção de uma consciência crescente.O movimento começa ao entardecer, entra pelanoite e termina à tarde, quando o sol está no seuapogeu. Assim, o ciclo de vinte e quatro horasaparece com um esquema de totalidade.

Neste sonho, os quatro amigos parecemsimbolizar a expansão da masculinidade da psi-que de Henry, e sua progressão através de quatro"atos" tem um esquema geométrico, que noslembra a estrutura essencial da mandala. Comovêm primeiramente do lado leste, depois do oes-te, dirigindo-se para a "capital" da Suíça (isto é,para o centro), parecem descrever uma esquemaque procura unir os contrários em um mesmocentro. Este ponto é acentuado pelo escoar dotempo — a descida na noite da inconsciência,acompanhando a marcha do sol, e depois a as-censão ao claro apogeu da consciência.

O sonho começa ao anoitecer, hora que olimiar da consciência está mais enfraquecido,permit indo a passagem de impulsos e imagensdo inconsciente. E nestas condições (quando olado femini no do homem manifesta-se mais fa-cilmente) é natural que um personagem fe-minino venha juntar -se aos quatro amigos. E afigura da anima que pertence a todos eles ("re-traí da e delicada", lembrando a Henry sua ir-mã) e que os liga uns aos outros. Sobre a mesa es-tão três vasilhas de forma diversa, acentuandopela sua forma côncava a receptividade simbólicada mulher. O fato de estas vasilhas serem uti-lizadas igualmente por todos os presentes indicauma relação mútua e íntima entre eles. Diferemna forma (garrafa de licor, de vinho e um re-cipiente de formato clássico) e na cor do que contêm.Os con trá rio s em que se div ide m os líq uid os— doce e amargo, vermelho e amarelo, alcoólicoe não-alcoólico — estão todos entremisturados,desde que consumidos por todos os cinco per-sonagens do sonho, que mergulham, assim, nu-ma comunhão inconsciente.

A jovem parece ser o agente secreto, o ca -talisador que precipita os acontecimentos (pois é

papel da anima levar o homem ao seu incons -ciente, forçando-o assim a reminiscências maispr ofundas e a uma aguda co nscien ti zaçã o) .E como se a mistura do licor e do chá con -duzisse a reunião a um clímax próximo.

A segunda parte do sonho conta-nos osacontecimentos da "noite". De repente os qua -tro "amigos encontram-se em Paris (que para osuíço representa a cidade da sensualidade, daalegria e do amor sem inibições). Aqui se pro -duz uma certa discriminação entre os quatroamigos, sobretudo entre o ego do sonho (que seidentifica em grande parte com a função diretrizda reflexão) e o "Presidente da República '', querepresenta as funções afetivas não desenvolvidasdo inconsciente.

O ego (Henry e dois amigos, que podem serconsiderados representantes das suas funções se-mi-inconscientes) olha do alto de um balcão oPresidente, cujas características são exatamenteas que se poderia esperar do lado não dis-criminado da psique. Ele é instável, e aban-donou-se aos seus instintos. No estado de em-briaguez em que se encontra , urina na rua; nãotem consciência de si, como uma pessoa primáriaque obedece apenas aos instintos animais. OPresidente exprime, portanto, um grande con-traste em relação às normas de conduta conscien-temente aceitas por um bom cient ista suíço daclasse média. Este lado da psique de Henry só sepoderia revelar na mais escura noite do seu in-consciente.

No entanto, a figura do Presidente tem tam-bém um aspecto muito positivo. Sua urina (quepoderia simbolizar o fluxo da libido) pareceinesgotável. Evidencia abundância, força cria-dora e vital (os primitivos, por exemplo, con-sideram tudo que vem do corpo — cabelo, ex-crementos, urina ou saliva — como criativo e do-tado de poderes mágicos). Esta desagradávelimagem presidenci al, por tanto, pode ria tam-bém ser um sinal de uma ener gia e de umaabundância que se jun tam mui tas vezes à"sombra" do ego. Não só ele urina sem qual -quer constrangimento como corre atrás de umavelha mulher que carrega uma criança.

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Esta "solteirona" é, de um certo modo, ooposto ou o complemento daquela anima tí-mida e frágil da primeira parte do sonho. Aindaé virgem, apesar de velha e parecendo mãe dacriança. Na verdade, Henry associou-a à imagemarquetípica de Maria com o menino Jesus. Mas ofato de o bebê estar embrulhado num cobertormarrom (côr da terra) fá-lo mais parecer a ima-gem oposta , ctônica e terrestre do Salvador doque uma criança divina. O Presidente, que res-pinga a criança com a urina, parece realizar umaparódia do batismo. Se tomarmos a criança co-mo símbolo de uma potencia lidade ainda em es-tado infantil dentro de Henry, pode ser que esterito a forti fique. Mas o sonho não acrescentamais nada e a mulher se afasta com a criança.

Esta cena marca o ponto crítico do sonho. Émanhã novamente. Tudo que era escuro, preto,primitivo e vigoroso no último episódio foi reu-nido e simbolizado num magnífico negro, nu —isto é, real e verdadeiro.

Uma vasilha de água, do antigo Peru,com forma de mulher, reflete osimbolismo feminino destesrecipientes, como ocorre no sonhofinal de Henry.

Assim como a obscuridade da noite e a luzda manhã, ou a urina quente e a neve fria sãoelementos contrár ios, também agora o homemnegro e a paisagem branca formam uma violentaantítese . Os quatro amigos precisam orientar-sedentro destas novas dimensões. Sua posição estámudada: o caminho que os levava a Paris trouxe-os, inesperadamente, à Suíça Francesa (pátria danoiva de Henry). Na primeira fase, quandoestava dominado pelos conteúdos inconscientesda psique, operou-se uma transformação emHenry. Agora, pode afinal começar a encontrarseu caminho, partindo do lugar onde nascerasua noiva (mostrando que ele aceita o passadopsicológico da jovem).

No início, foi da Suíça oriental para Paris(de leste para oeste, caminho que leva à obs-curidade, à inconsciência). Faz agora uma voltade 180° em direção ao nascer do sol e à claridadecada vez maior da consciência. Este caminho le-va ao centro da Suíça, à sua capital, Berna, esimboliza o esforço de Henry para chegar a umcentro que una os contrários existentes dentrodele.

O negro é, para algumas pessoas, a imagemarquetípica da "criatura primitiva e sombria",portanto uma personificação de certos conteúdosdo inconsciente. Talvez seja esta uma das razõespor que o negro é, tantas vezes, rejeitado e te-mido pela gente branca. Nele o homem brancovê, diante de si, a sua contrapar tida viva, o seulado secreto e tenebroso (exatamente o que aspessoas tentam sempre evita r, o que elas ig-noram e reprimem). Os brancos projetam no ho-mem negro os impulsos primitivos, as forças ar-caicas, os instintos incontrolados que se recusama admitir em si próprios, de que estão in-conscientes e que imputam, consequentemente,a outros.

Para um jovem da idade de Henry o negropode representar, por um lado, a soma de todosos aspectos tenebrosos reprimidos na sua in-consciência; e por outro, a soma da sua forçamasculina, primitiva, e das suas potencialidadese faculdades emocionai s e físicas. O fato deHenry e seus amigos terem a intenção conscientede se confrontar com o negro signif ica, assim,um passo decisivo no caminho da sua mas-culinidade total.

Neste meio-tempo já é meio -dia, o sol estáno seu apogeu e a consciência alcançou tambéma sua maior clar idade. Poderíamos dizer que o

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ego de Henry continua cada vez mais compactoe que ele intensificou sua capacidade de tomardecisões conscientemente. Ainda é inverno, oque pode indicar uma certa falta de sentimentoe calor em Henry; sua paisagem psíquica ainda éinvernosa e aparentemente muito fria, do pontode vista intelectual. Os quatro amigos estão re-ceosos de que o negro nu (acostumado a um cli-ma quente) morra enregelado. Mas seu temor éinfundado pois, após uma longa viagem atravésde uma região deserta e coberta de neve, paramnuma estranha cidade e entram numa casa es-cura. Esta viagem e a região erma são simbólicasda longa e fatigante busca de autodesenvolvi-mento.

Uma nova complicação espera os quatroamigos. O negro e seu empregado são mudos.Portanto não é possível estabelecer contato ver-bal com eles; os quatro amigos precisam en-contrar outro meio de comunicação. Não podemusar meios intelectuais (palavras) , mas sim al-gum gesto que exprima seus sentimentos. Ofe-recem-lhe um presente, como se costuma fazerofertas a um deus para obter as suas graças. Pre-cisa ser um objeto da nossa civilização, qualquercoisa que faça parte dos valores intelectuais dohomem branco. Novamente é exigido um outrosacrific ium intellectus para ganhar o favor donegro, que encarna a natureza e o instinto.

Henry é o primeiro a decidir o que fazer, oque é natural já que é ele quem representa o egocuja orgulhosa consciência (ou hybris) deve sehumi lhar. Apanha uma caixa de fósforos nochão e oferece-a "respeitosamente" ao negr o.À primeira vista pode parecer absurdo que umpequeno objeto apanhado do chão e que fora,provavelmente, jogado fora seja um presente a-propriado; mas foi uma escolha certa. Fósforossão fogo controlado e guardado em reserva, ummeio pelo qual se pode acender uma chama quese apaga quando queremos. Fogo e chama sim -bolizam afeição e calor , sent imento e paixão;são qualid ades inerentes ao coração e en -contradas onde quer que exista um ser humano.

Dando ao negro este presente Henry com-bina, simbol icamente, um produto altamentecivilizado do seu ego consciente com o centro doseu primiti vismo e da sua força viri l, re-presentados no negro. Deste modo, ele podeentrar em plena posse do seu lado mascul ino,com o qual o seu ego deve manter contato fre-quente daí em diante.

Como resultado final, os seis personagensmasculinos — os quatro amigos, o negro e o seuempregado — reúnem-se alegremente numa re-feição comum. Está claro que a totalidade mas-culina de Henry foi agora completada. Seu egoparece ter encontrado a segurança necessária pa-ra poder submeter-se, consciente e livremente, àsua personalidade arquetípica superior que pre-nuncia, dentro dele, a emergência do self.

O que aconteceu no sonho é análogo com oque aconteceu na vida de Henry. Agora sente-seseguro. Toma ndo uma deci são rápida, con -tinuou o seu noivado. Exatamente nove mesesapós ter iniciado a análise casou-se numa pe-quena igreja da Suíça ocidental, partindo no diaseguinte com a sua jovem esposa para o Canadá,onde lhe haviam oferecido um lugar durante assemanas decisivas dos seus últimos sonhos. Des-de então vem levando uma vida ativa e fecundacomo chefe de uma pequena família e ocupandoum cargo de direção numa grande indústria.

O caso de Henry mostra um processo ace-lerado de amadurecimento que levou a uma va-ronil idade independente e responsável. Re-presenta uma iniciação à realidade da vida ex-terior , um fortalecimento do ego e da mas-culinidade concluindo, assim, a primeira me-tade do processo de individuação. A outra me-tade — o estabelecimento de uma relação cor-reta entre o ego e o self — ainda será realizadapor Henry na segunda parte de sua vida.

Nem todos os casos de análise seguem umcurso tão bem-sucedido e tão rápido e nem to-dos podem ser tratados de maneira semelhante.Pelo contrário, cada caso é diferente em si. Otratamento não difere apenas segundo a idade eo sexo, mas também em função da individuali-dade dentro de todas estas categorias. Até osmesmos símbolos requerem uma interpretaçãodiversa para cada caso. Escolhi particularmenteeste porque é um exemplo impressionante daautonomia dos processos do inconsciente e tam-bém porque mostra, na sua abundância de ima-gens, a incansável faculdade de criar símbolosque tem o nosso segundo plano psíquico. Provaque a ação auto-reguladora da psique (quandonão está perturbada por explicações ou dis-secações demasiado racionais) pode sustentar efortalecer o processo de desenvolvimento da al-ma.

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Na obra Psicologia e Alquimia(Psychology and A/chemy), o Dr.Jung discute uma sequência decerca de 1000 sonhos de um sóhomem. Esta sequência revelou umaquantidade e uma variedadeimpressionantes de representaçõesdo motivo da mandala — que étantas vezes ligado à realização doself (ver pág. 213). Estas páginasapresentam alguns exemplos defigurações da mandala nos sonhos,mostrando a imensa variedade deformas em que este arquétipo podese manifestar, mesmo noinconsciente do indivíduo. Asinterpretações aqui propostas,devido à sua concisão, podemparecer arbitrárias. Na prática,nenhum jungiano oferecerá ainterpretação de um sonho sem umconhecimento da pessoa que osonhou e um cuidadoso estudo dassuas associações com o sonho.Portanto, estas interpretações devemser consideradas simples sugestõesde possíveis significados — e nadamais que isto. A esquerda: no sonho,a anima acusa o homem de não lhedar atenção. Um relógio marca cincominutos para a hora exata. O homemestá sendo "atormentado" pelo seuinconsciente; a tensão que se criou éaumentada pelo relógio, pela esperado que vai acontecer dentro de cincominutos.Abaixo: uma caveira (que o homemtenta afastarem vão) transforma-senuma bola vermelha e depois numacabeça de mulher. Aqui, o homemparece rejeitar o inconsciente(afastando o crânio), mas afirma-sepor meio de uma bola (talvez umaalusão ao sol) e da figura da anima.

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À esquerda, num sonho, um príncipecoloca um anel com brilhantes no quartodedo da mão esquerda da pessoa quesonha. O anel usado como uma aliançaindica um "juramento" feito ao self.Abaixo, á esquerda: uma mulher de véudescobre o rosto, que brilha como o sol.A imagem revela uma iluminação doinconsciente (envolvendo a anima)—bem diferente de uma elucidaçãoconsciente. Abaixo: de uma esferatransparente contendo outras esferasmenores, nasce uma planta. A esferasimboliza unidade; a planta simbolizavida e crescimento.

Abaixo: tropas que não estão empreparativos bélicos formam umaestrela com oito braços que gira para aesquerda. Esta imagem talvez queirasignificar que algum conflito interiordeu lugarà harmonia.

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Conclusão: M. - L. von Franz

A ciênciae o inconsciente

Nos capítulos precedentes, Carl G.Jung e alguns dos seus colegas procuraramdeixar claro o papel representado pela funçãocriadora de símbolos na psique inconsciente dohomem e indicaram alguns campos de aplicaçãodeste aspecto da vida recentemente descoberto.Ainda estamos longe de compreender oinconsciente ou os arquétipos — estes núcleosdinâmicos da psique — em todas as suasimplicações. Tudo que podemos constataragora é o enorme impacto que os arqué tiposproduze m no in divíduo, determinando suasemoções e perspectivas éticas e mentais,influenciando o seu relacionamento com asoutras pessoas e afetando, assim, todo o seudest ino. Vemos também que os símbolosarquetípicos combinam-se no indivíduoseguindo uma estru tura de total idade e que épossível que uma compreensão adequada destessímbolos tenha efeito terapêutico. Podemosverificar ainda que os arquétipos são capazes deagir em nossa mente como forças cria doras oudestruidoras; criadoras quando ins piram idéiasnovas, destruidoras quando estas mesmas idéiasse consolidam em preconceitos conscientes queimpossibilita rão futuras des cobertas.

Jung mostrou no seu capítu lo ini cia l oquanto as tentat ivas de interpretação devem sersuti s e dife rençadas para que não se igua lemnem se enfraqueçam os valores individuais e cul-turais das idéias e símbolos arquetípicos com oseu nivelamento — isto é, com a possibilidadede dar-lhes um sentido estereotipado e de fór-mula intelectualizada. Jung dedicou a vida a es-tas pesquisas e a este trabalho de interpretação;e, evidentemente, este livro esboça apenas umaparte infini tesimal da sua intensa atuação nestenovo campo de descobertas psicológicas. Foi umpioneiro que se conservou absolutamente cons-ciente de que muitas questões continuam semresposta e pedem investigações adicionais. Poristo, seus conceitos e hipóteses são concebidosem uma base extremamente ampla (sem torná-las demasiadamente vagas e generali zadas) esuas opiniões formam um "sistema aberto'' quenão cerra nenhuma porta a possíveis novas des-

cobertas. Para Jung, seus conceitos eram simplesinstrumentos ou hipóteses heurísticas destinadosa facilitar a exploração da vasta e nova área darealidade a que tivemos acesso com a descobertado inconsciente — descoberta que não só alar-gou nossa visão total do mundo mas, na ver -dade, a duplicou. Devemos sempre, agora, in-dagar se um fenômeno menta l é consciente ouinconsciente e, também, se um fenômeno ex-terior "real" é percebido através de meios cons-cientes ou inconscientes.

As poderosas forças do inconsciente ma-nifestam-se não apenas no material clínico mastambém no mitológico, no religioso, no artísticoe em todas as outras atividades culturais atravésdas quais o homem se expressa . Obviamente , setodos os homens receberam uma herança co-mum de padrões de comportamento emocionale intelectual (a que Jung chamava arquétipos), énatural que os seus produtos (fantasia s sim-bólicas, pensamentos ou ações) apareçam empraticamente todos os campos da atividade hu-mana. As impor tantes investigações con-temporâneas realizadas em muitos desses setoresforam profundamente influenciadas pela obrade Jung. Por exemplo, esta influência pode serpercebida no estudo da literatura, em livros co-mo Literature and Western Man, de J.B. Pries-tley, Fausts Weg zu Helena , de Gottfried Die-ner, ou Shakespeare's Hamlet, de James Kirsch.Da mesma maneira, a psicologia jungiana con-tribuiu para o estudo da arte, como nas obras deHerbert Read ou de Aniela Jaffé, nas pesquisasde Erich Neumann a respei to de Henry Moore,ou nos ensaios de Michael Tippett sobre música.Os trabalhos de história de Arnold Toynbee e osde antropologia de Paul Radin também se be-neficiaram com os ensinamentos de Jung, assimcomo as obras de Richard Wilhe lm, EnwinRousselle e Manfred Porket a respeito de si-nologia.

Ondas sonoras produzidas pelavibração de um disco de aço eregistradas fotograficamenteapresentam uma incrível semelhançacom a mandala.

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Bem entendido, isto não signif ica que oscaracteres particulares da arte e da literatura (e asua interpretação) só possam ser entendidos uni-camente a partir da sua base arquetípica. Todosesses campos têm suas próprias leis de atividade;e, como toda realização criadora, não podem teruma explicação racional defini tiva. Mas dentrodo seu campo de ação podemos re conhecer assuas configurações arquetípicas como uma ati -vidade dinâmica em segundo plano. E tambémpodemos, muitas vezes, decifrar nelas (como nossonhos) uma mensagem denunciadora de al-guma tendência evolut iva e intencional do in -consciente.

A fecundidade das idéias de Jung é mais fá-cil de entender na área das atividades culturaisdo homem: logicamente , se os arquét ipos de-terminam a nossa conduta mental, devem ne-cessariamente manifestar-se em todos estes cam-pos. Mas, imprevisivelmente, os conceitos deJung abriram novas perspectivas também no do-mínio das ciências naturais como, por exemplo,na biologia.

O físico Wolfgang Pauli assinalou que, de-vido às novas descobertas , a idéia que fazemosda evolução da vida requer uma revisão, le-vando-se em conta a área de inter-relação entre apsique inconsciente e os processos biológicos.Até uma época recente supunha-se que a mu-tação das espécies ocorria por acaso, e que só en-tão se processava uma seleção através da qualsobr eviviam as vari edad es "signif icativas" ebem adaptadas, enquanto outras desapareciam.Mas os evolucionistas modernos explicam que asseleções destas mutações devidas ao acaso teriamexigido muito mais tempo do que a idade co-nhecida do nosso planeta.

O conceito de Jung de sincronicidade podenos ser útil neste assunto pois esclarece a ocor-rência de certos "fenômenos-limites" ou acon-tecimentos excepcionais; explica-nos, assim, co-mo adaptações e mutações "significativas" po-dem ocorrer em menor prazo de tempo do que orequerido por mutações inteiramente devidas aoacaso. Hoje em dia conhecemos muitos casos emque acontecimentos significativos "acidentais"foram produzidos graças à ativação de um ar-quétipo. Por exemplo, a história da ciência com-porta inúmeros casos de invenção ou descobertasimultâneos. Um dos mais famosos diz respe itoa Darwin e sua teoria da origem das espécies. Ele

expusera a teoria em um longo ensaio e, em1844 , cuidava de desenvolvê-la em um vo-lumoso tratado. Enquanto trabalhava neste pro-jeto recebeu um manuscr ito de um jovem bió-logo, A.R. Wallace, a quem não conhecia. Omanuscrito era uma exposição mais sucinta, po-rém idêntica à de Darwin. Naquela ocasião Wal-lace estava nas Ilhas Molucas, no arquipélago daMalásia. Conhecia Darw in como naturalis ta,mas não tinha a menor idéia do gênero de tra -balho teórico em que ele se ocupava no mo-mento.

Nos dois casos, cada um dos cientistas che-gara independentemente à formulação de umahipótese que iria mudar todo o futuro da ciên -cia. E cada um deles concebera, inicialmente , asua hipótese em um "lampejo" intui tivo (maistarde reforçado por provas documentadas). Osarquétipos parecem, portanto, ser agen tes deuma creat io continua (o que Jung chama acon -tecimentos sincrônicos são, na verdade, uma es-pécie de atos de criação eventuais).

"Coincidências significativas" semelhantespodem ocorrer quando há uma necessidade vitalde o indivíduo saber, por exemplo, da morte deum parente ou de algum bem perdido. Em mui-tos casos, tais informações são obtidas por meioda percepção extra-sensorial. Tudo isto parecesugerir que podem ocor rer fenômenos pa-ranormais devidos ao acaso quando surge umanecessidade ou um impulso vital; o que, por suavez, explica por que certas espécies de animais,sob grande pressão ou grande necessidade, po-dem produzir mudanças "significativas" (masacausais) na sua estrutura orgânica.

Entretanto, o campo mais promissor parapesquisas futuras (como Jung percebeu) parece,inesperadamente, ter sido aberto em conexãocom o complexo campo da microfísica. À pri-meira vista parece pouco verossímil que se possaencontrar relação entre a psico logia e a mi-crofísica. A inter-relação destas duas ciências pe-de uma pequena explicação.

O aspecto mais evidente desta conexão re-side no fato de os conceitos básicos da física (co-mo o espaço, o tempo, a matéria, a energia, ocontínuo ou campo, a partícula etc.) terem sido,originalmente, idéias intuitivas semimitológicas,arquetípicas, dos velhos filósofos gregos — idéiasque foram evoluindo vagarosamente, tornaram-se mais precisas e hoje em dia são expressas, so-bretudo, em termos matemáti cos abstra tos . A

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noção de uma partícula, por exemplo, foi for-mulada no século IV A.C. pelo filósofo gregoLeucipo e seu aluno Demócrito, que a chamaram"átomo", isto é, "unidade indivisível". Apesarde se ter depois obtido a desintegração do áto-mo, ainda concebemos a matéria como con-sistindo de ondas e partículas (ou quanta des-contínuos).

A noção de energia e sua relação com forçae movimento foi também formulada pelos an-tigos pensadores gregos e desenvolvida pelospartidários do estoicismo. Postulavam a exis-tência de uma espécie de "tensão" criadora devida (tonos) que seria o fundamento dinâmicode todas as coisas . E evidentemente um germesemimitológico do nosso moderno conceito deenergia.

Mesmo os cientis tas e pensadores de umaépoca relativamente recente apoiaram-se emimagens semimi tológicas e arquet ípicas nacriação de novos conceitos. No século XVII, porexemplo, a absoluta validade da lei da cau-salidade parecia a René Descartes estar "pro-vada" pelo fato de que "Deus é imutável nassuas ações e decisões". E o grande astrônomogermânico Johannes Kepler assegurava que, emrazão da Santíssima Trindade, o espaço não po-deria ter nem mais nem menos do que três di-mensões.

Estes são apenas dois exemplos entre osmuitos reveladores de que mesmo os nossos con-ceitos modernos e basicamente científicos per-man ece ram dur ant e mui to tempo ligados aidéias arquetípicas procedentes, originalmente,do in co ns ci en te . Nã o ex pr es sa m ne -cessariamente fatos "objetivos" (ou pelo menosnão podemos provar que o façam), mas se ori -ginam de tendências inatas no homem — ten-

dências que o induzem a buscar explicações ra-cionais "satisfatórias" nas relações entre os vá-rios fatos exteriores e interiores de que se deveocupar. Segundo o físico Werner Heisenberg, ohomem, ao examinar a natureza e o universo,em lugar de procurar e achar qualidades ob-jetivas, "encontra-se a si mesmo''.

Devido às implicações deste ponto de vista,Wolfgang Pauli e outros cientistas começaram aestudar o papel do simbol ismo arquetípico nodomínio dos conceitos científicos. Pauliacreditava que devíamos conduzir nossas pes -quisas de objetos exteriores paralelamente a umainvestigação psicológica da origem interior dosnossos conceitos científicos. (Esta investigaçãopoderia trazer nova luz a um conceito de grandeenvergadura que será discutido pouco adiante —o conceito de "unicidade" entre as esferas físicae psicológica, aspectos quant itativos e qua-litativos da realidade.)

Ao lado desta relação evidente entre a psi -cologia do inconsciente e a física existem outrasconexões ainda mais fascinantes. Jung (em es-treita colaboração com Pauli) descobriu que apsicologia analítica viu-se forçada , por in-vestigações no seu próprio campo, a criar con-ceitos que mais tarde se revelaram incrivelmentesemelhantes àqueles criados pelos físicos ao seconfrontarem com fenômenos micro físicos. Umdos mais importan tes conceitos da físi ca é anoção de complementaridade de Niels Bohr.

A micro física moderna descobriu que só sepode descrever a luz através de dois conceitoscomplementares, mas logicamente contraditó-rios : a onda e a part ícul a. Em termos ab-solutamente simples, pode-se dizer que sob cer-tas condições de experiência a luz e manifesta co-mo se composta por partículas, e em outras co-

A física norte-americana MariaMayer, Prêmio Nobel de Física de1963. Sua descoberta — a respeitoda constituição do núcleo atômico— foi obtida, como tantas outrasdescobertas científicas, comoresultado de um lampejo intuitivo(provocado por uma observaçãoocasional de um colega). Sua teoriamostra que o núcleo consiste deconchas concêntricas: a mais centrecontém dois prótons ou doisnêutrons, a seguinte contém oito,de um ou de outro, e assim pordiante, numa progressão que elachama de"números mágicos" —20, 28, 50, 82, 126. Há uma relaçãoevidente entre esta estrutura e osarquétipos da esfera e dos números.

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mo se fora uma onda. Descobriu-se também quese pode observar detalhadamente ou a posiçãoou a velocidade de uma partícula subatômica —mas não ambas ao mesmo tempo. O observadordeve escolher o seu plano experimental, mas aofazê-lo exclu i (ou, antes, "sacr ifica") outrospossíveis planos e resultados. Além disso, o me-canismo de avaliação deve ser incluído na des-crição dos acontec imentos porque exerce in-fluência decisiva, mas incontrolável, nas con-dições da experiência.

Pauli declara: "A ciência da microfísica,devido à 'complementaridade' básica das si-tuações, enfrenta a imposs ibilidade de eliminaros efeitos da intervenção do observador por meiode neutral izantes determinados e deve portanto,abandonar em princípio qualquer compreensãoobjetiva dos fenômenos físicos. Onde a físicaclássica ainda vê o determinismo das leis causaisda natureza nós agora só buscamos leis es -tatís ticas de probabilidades imedia tas.' '

Em outras palavras, na microfísica o ob-servador interfere na experiência de um modoque não pode ser exatamente calculado e que,portanto, não se pode também eliminar . Ne -nhu ma lei natural deve ser formulada dizendo -se "tal coisa acontecerá em tal circuns tância" .Tudo o que o microfísico pode afi rmar é que"de acordo com as probabili dades estat ísticas,ta l fenômeno deve aco ntece r" . Ist o, na-tural men te, repre senta um probl ema con-siderável para o nosso pensamento clássico a res-peito da física. Exige que, na experiência cien-tífica, se leve em conta a perspectiva mental doobservador-participante. Verifica -se, então, queos cientistas já não podem pretender descreverquaisquer aspectos dos objetos exteriores de mo-do totalmente "objet ivo".

A maioria dos físicos modernos aceitou ofato de que o papel representado pelas idéiasconscientes de um observador em todas as ex-periências microfísicas não pode ser eliminado.Mas não se preocuparam estes cientistas com apossibilidade de que as condições psicológicastotais do observador (tanto as conscientes quan-to as inconscientes) também estivessem en-volvidas na experiênc ia. Como observa Pauli ,não existem razões apriori para rejeitar esta pos-sibil idade, mas preci samos considerá-la comoum problema ainda inexplorado e não so -lucionado.

A idéia de Bohr a respeito da com-plementaridade é especialmente interessante pa-ra os psicólogos jungianos, pois Jung percebeuque o relacionamento entre o consciente e o in-consciente forma também um par completivo decontrários. Cada novo conteúdo que vem do in-consciente é alterado na sua natureza básica aoser parcialmente integrado na mente conscientedo observador . Mesmo os conteúdos oníricos(quando percebidos) são, deste ponto de vista,semi-inconscientes. E cada ampliação do cons-cie nte do obs ervado r pro vocada pel a in -terpretação dos sonhos tem, novamente, uma re-percussão e uma influência inestimáveis sobre oinconsciente. Assim, o inconsciente só pode seraproximadamente descrito (como as partículasda microfísica) através de conceitos paradoxais.O que existe realmente no inconsciente "em si"não o saberemos jamais, assim como jamais des-cobriremos o que há na matéria "em si"

Para conduzirmos ainda mais longe a com-paração entre a psicologia e a microfísica: aquiloa que Jung chama arquétipos (ou esquemas docomportamento emocional e mental do homem)também se poder ia chamar , empregando-se ostermos de Pauli, "probabilidades dominantes"das reações psíquicas. Como já foi acentuadoneste livro, não existem leis que governem a for-ma específica em que o arquétipo vai emergir doinconsc iente. Exis tem "tendências" (ver pág.67) que, mais uma vez, nos permitem apenas di-zer que é provável acontecer um certo fenômenoem determinadas situações psicológicas.

Como observou o psicólogo norte-america-no William James, a noção de inconsciente podeser comparada ao conceito de "campo", na fí-sica. Poderíamos dizer que, assim como em umcampo magnético as partículas se distribuem emuma certa ordem, também os conteúdos psi-cológicos aparecem ordenados dentro da áreapsíquica a que chamamos inconsciente. Quandoo nosso consciente decide que alguma coisa é"racional" ou "significativa" e aceita esta qua-lificação como uma "explicação" satisfatória, istoprovavelmente se deve ao fato de nossa ex-plicação consciente estar em harmonia com al-gumas constelações pré-conscientes dos conteú-dos do nosso inconsciente.

Em outras palavras, nossas representaçõesconscientes são por vezes ordenadas (ou ar-ranjadas em um esquema ) antes de tomarmos

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consciência delas. O matemático alemão do sé-culo XVIII, Karl Friedrich Gauss, nos dá umexemplo desta ordenação inconsciente de idéias.Declara ter descoberto uma determinada regrade teoria dos números "não devido a pesquisasexaustivas, mas, por assim dizer, pela graça di-vina. O enigma resolveu -se por ele mesmo, co-mo um raio, sem que eu mesmo pudesse dizerou mostrar a conexão entre o que eu sabia an-teriormente , os elementos utilizados na minhaúltima experiência e aquilo que produziu o su-cesso final". O cientista francês Henri Poincaré éainda mais explícito a respeito deste fenômeno;descreve como durante uma noite insone assistiua suas representações matemáticas praticamentechocando-se de encontro a ele, até que algumasdelas "conseguiram uma combinação mais es-tável. Parece, neste caso, que estamos assistindoao trabalho do nosso próprio inconsciente, tor-nando-se a sua ativida de parcialmen te per -ceptível à consciência sem perder o seu caráterpeculia r. Em tais momentos damo-nos conta,vagamente , da diferença entre os mecanismosdos dois egos".

Como exemplo final da evolução paralelada micro física e da psicologia, podemos con-siderar o conceito de Jung de significado. Onde,anteriormente, os homens buscavam explicaçõescausais (isto é, racionais) dos fenômenos, Jungintroduziu a idéia de procurar-se o signif icado(ist o é, o "propósi to") . Vale dizer que, em lu -gar de perguntar por que alguma coisa acontece(o que a caus ou) Jung pergunta: Para que elaacontece? Esta mesma tendência aparece na fí-sica: inúmeros físicos modernos procuram nanatureza mais as "conexões" do que as leiscausais (o determinismo).

Pauli esperava que um dia a idéia do in-consciente haveria de expandir-se além da "te-rapêutica" para passar a influenciar todas asciências naturais que se ocupam dos fenômenosda vida em geral. Desde então esta sugestão en-controu eco em alguns físicos interessados na no-va ciência da cibernética — isto é, no estudocomparativo do sistema de "controle" formadopelo cérebro, o sistema nervoso e os sistemas decontro le e de informação mecânica ou ele-trônica, como os computadores. Em resumo, co-mo o exprimiu o cient ista francês Oliver Costade Beauregard, a ciência e a psicologia devem nofuturo ' 'estabelecer um ativo diálogo".

Esta inesperada analogia de idéias na psi -

cologia e na física sugere, como Jung assinalou,uma possível "unicidade" final em ambos oscampos de realidade que a física e a psicologiaestudam — isto é, uma unidade psicofí sica detodos os fenômenos da vida. Jung estava real-mente convencido de que o que ele chama deinconsciente liga-se, de uma certa maneira, àestrutura da matér ia inorgânica — uma uniãoque o problema das doenças chamadas''psicossomáticas" também parece indicar. Esteconceito de uma idéia unitária de realidade(ado tada por Pauli e por Erich Neumann) erachamado por Jung de unus mundus (o mundoúnico, no qual a matéria e a psique ainda nãoestão discriminadas ou atualizadasseparadamente). Jung preparou caminho paraeste ponto de vista unitário ao indicar que umarquétipo mostra um aspecto "psicóide" (isto é,não puramente psíquico, mas quase materia l)quando aparece dentro de um acontecimentosincrônico — pois tal acontecimento é, comefeito, um acordo significativo entre fatospsíquicos interiores e exteriores.

Em outras palavras, os arquétipos não ape-nas se ajustam a situações exteriores (tal como ospadrões animais de comportamento se ajustamao seu meio) mas, no fundo, tendem a ma-nifestar-se em um "arranjo" sincronizado queinclui tanto a psique quanto a matéria. Mas estasconstatações contentam-se apenas em sugerir al-guns caminhos a serem palmilhados no futuronestas investigações dos fenômenos da vida.Jung achava que devíamos , de início, aprenderainda muito mais a respeito da inter-relação des-tas duas áreas (matéria e psique) antes de noslançarmos em uma série de especulações abs-tratas a seu respeito.

O campo que parecia a Jung mais fértil parainvestigações futuras é o estudo dos axiomas bá-sicos da matemát ica — a que Pauli chama"intuições matemáticas primord iais" e entreas quais menciona, especificamente, as noçõesde uma série infini ta de números , na aritmét ica,ou de um continuum na geometr ia etc. Comodisse o autor germânico Hannah Arendt, "na suamodernização, a matemát ica não expande só oseu conteúdo ou alcança o infini to aplicando-seà imensidade de um universo de crescimento ede expansão ilimitados, mas cessacompletamente de se preocupar com asaparências. Ela já não é o princípio primeiro dafilosofia ou a "ciência'' do Ser na sua verdadeiraaparência, mas torna-se a

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ciência da estrutura da mente humana. (Umjungiano perguntaria logo: que mente, a cons -ciente ou a inconsciente?)

Como vimos em relação às experiências deGauss e de Poincaré, os matemáticos des-cobriram também que nossas representações são"ordenadas" antes de nos tornarmos conscientesdelas. B. L. van der Waerden, que cita váriosexemplos de intuições matemáticas essenciaisvindas do inconsciente , conclu i: ".. .o in-consciente não é capaz apenas de associar e decombinar, mas é capaz, também, de julgar. Éum julgamento intuitivo mas, em circunstânciasfavoráveis, absolutamente correto. ''

Entre as muitas intuições matemát icas pri-mordiais, ou idéias a priori, as mais interessantesdo ponto de vista psicológico parecem ser os"números naturais". Não servem apenas às nos-sas operações cotidianas para contar e medir masforam, durante séculos, a única maneira exis-tente de "ler" o significado das antigas formasde adi vin haç ão com o a ast rologia , a nu-merologia, a geomancia etc. — todas elas ba-seadas em cálculos aritméticos e todas in-vestigadas por Jung em termos da sua teoria dasincronicidade. Além disso, os números naturais— examinados de um ângulo psicológico — de-vem ser certamente representações arquetípicas,pois somos forçados a pensar a seu respeito demaneira definida. Ninguém, por exemplo, podenegar que 2 é o único primeiro número par jáexistente, mesmo que nunca tenha pensado a es-te respeito de modo consciente. Em outras pa-lavras, números não são conceitos conscientes in-ventados pelo homem com o propósi to de cal-cular: são produtos espontâneo s e autônomosdo inconsciente, como o são outros símbolos ar-quetípicos.

Mas os números naturais são também qua-lidades pertencentes aos objetos exteriores: po-demos assegurar e contar que aqui existem duaspedras ou três árvores acolá. Mesmo se des-pojarmos os objetos de outras qualidades comocor, temperatura, tamanho etc. ainda resta a sua"quantidade" ou multiplicidade especial. Noentanto , estes mesmos números também fazemparte indiscutível da nossa própria organizaçãomental — conceitos abstratos que podemos es-tudar sem nos referirmos a objetos exteriores. Osnúmeros parecem ser, portanto, uma conexãotangível entre as esferas da matéria e as da psi-que. De acordo com certas sugestões feitas por

Jung, havemos de encont rar neles um campopromissor para pesquisas futuras.

Menciono rapidamente estes difíceis con-ceitos a fim de mostra r que, na minha opinião,as idéias de Jung não constituem uma "dou -trina", mas são o começo de uma nova pers -pectiva que continuará a desenvolver-se e a evo-luir. Espero que dêem ao leitor um lampejo doque me parece essencial e típico na atitude cien-tífica de Jung. Ele vivia em permanente buscarevelando uma liberdade rara em relação aospreconceitos tradicionais e possuindo, ao mesmotempo, uma grande modéstia e precisão no seudesejo de melhor compreender os fenômenos davida. Não avançou mais nas idéias acima men-cionada s porque sentiu que ainda não tinha àsua disposição um número suficiente de fatosque lhe permit isse fazer pronunciamentos re-levantes — da mesma maneira que esperava váriosanos antes de anunciar suas novas descobertas,conferindo-as o mais possível e levantando elemesmo todas as possíveis dúvidas a seu respeito.

Portanto, o que talvez pareça ao leitor, ini-cialmente, uma certa imprecisão de idéias vemda sua atitude científica de modéstia intelectual,uma atitude que se esforça por não excluir (a-través de pseudo-explicações superficiais e pre-cipitadas ou de excessivas simplificações) a pos-sibilidade de novas descobertas, e que respeita acomplexidade do fenômeno da vida. O fe -nômeno da vida sempre foi um mistério fas-cinante para Carl G. Jung, que nunca o con-siderou, como acontece às pessoas de mente li-mitada , uma rea lidade "explicada" a respei toda qual pode-se julgar tudo conhecer.

O valor das idéias criativas está em que, talcomo acon tece com as "chaves" , elas ajudam a"abrir'' conexões até então ininteligíveis de vá-rio s fatos, permit indo que o home m penetremais profundamente no mistério da vida. A-credito firmemente que as idéias de Jung podemassim servir à descoberta e à interpretação de no-vos fatos em muitos campos da ciência (e tam-bém da vida cotidiana), levando o indivíduo, si-multaneamente, a uma visão mais equil ibrada,mais ética e mais ampla do mundo. Se o leitorsentir-se estimulado a se ocupar mais largamenteda exploração e da assimilação do inconsciente— tarefa que se inicia sempre por investigar onosso próprio inconsciente —, o propósito destaobra int rodutória terá sido plenamente al-cançado.

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Notas

Chegando ao inconsciente — Carl G. Jungpág. 37 — A criptomnésia de Nietzsche é discutida na obra de Jung "Onthe Psycology of So-called Occult Phenomena", no volume I das ObrasCompletas. A passagem a respeito do diário de bordo e o trechocorrespondente redigido por Nietzsche são os seguintes: De J. Kerner,Blätter aus Prevorst, vol. IV, p. 57, sob o título "Extrato de SignificaçãoAmedrontadora. .. " (1831-37): "Os quatro capitães e um comerciante,Mr. Bell, desembarcaram na ilha do Monte Stromboli para caçar coelhos.Às três horas reuniram o equipamento para regressar a bordo quando,para seu indizível espanto, viram dois homens voando velozmente no arem sua direção. Um estava vestido de preto, outro de cinza. Passaramperto deles em grande velocidade, e para ainda maior susto seu desceramna cratera do terrível vulcão. Reconheceram-nos como dois conhecidos deLondres."

De F. Nietzsche, Thus Spake Zarathustra (Assim falou Zaratustra),1883, capítulo XL, "Grandes Acontecimentos" (Tradução de Common, p.180, ligeiramente modificada): "Nesta época em que Zaratustra residianas Ilhas Happy, aconteceu de um navio ancorar na ilha onde fica ovulcão fumegante e a tripulação descer à terra para caçar coelhos. Aomeio -dia, no entanto, quando o capitão e seus homens se haviam reunidonovamente, viram, de repente, um homem que vinha pelo ar em suadireção e uma voz que dizia nit idamente: 'Ê tempo, é mais que tempo!'

Mas quando a figura aproximou-se deles, passando rápido como umasombra em direção ao vulcão, reconheceram com grande espanto que eraZaratustra. .. 'Vejam!' , disse o velho timoneiro, 'vejam Zaratustra quevai para o inferno!' ''38 — Robert Louis Stevenson discute o seu sonho a respeito de Jekyll eHyde em "A Chapter on Dreams", de Across the Plain. 56 — Maioresdetalhes sobre o sonho de Jung estão em Memórias, Sonhos, Reflexões deC. G. Jung, de Aniela Jaffé (Edição Nova Fronteira).63 — Exemplos de idéias e imagens subliminares podem ser encontradosnas obras de Pierre Janet.93 — Outros exemplos de símbolos culturais estão em de Mircea Eliade,Der Schamanismus, Zurich, 1947.

Ver também Obras Completas de Carl G. Jung, vols. I — XVIII;Londres, Routledge Sc Kegan Paul; New York, Bollingen-Pantheon.

Os Mitos Antigos e o Homem Moderno — Joseph L. Henderson108 — A propósito da finalidade da ressurreição de Cristo: o cristianismoé uma religião escatológica, isto é, tem um fim em vista que se tornousinônimo do Julgamento Final. Outras religiões, nas quais subsistemelementos de caráter matriarcal vindos de uma cultura tribal (como oorfismo), são cíclicas como o demonstra Eliade em O Mito do EternoRetomo, Coleção Debates, Editora Perspectiva.112 — Ver Paul Radin, Hero Cycles of the Winnebago, IndianaUniversity Publications, 1948.113 — A propósito de Hare, observa o Dr. Radin: "Hare é um heróitíp ico conhecido cm todo o mundo, tanto o civilizado quanto o detradição oral, desde os mais remotos períodos da História."114 — Os deuses guerreiros gêmeos dos Navajo são comentados porMaud Oakes em Where the Two Carne to their Father, A Navaho WarCeremonial, New York, Bollingen, 1943.117 — Jung discute Trickster em "On the Psychology of the TricksterFigure", Obras Completas, vol. IX.118 — O conflito entre o ego e a sombra é tratado em "The Battle forDeliverance from the Mother, de Jung, Obras Completas, vol V.125 — Para a interpretação do mito do Minotauro, ler a novela de MaryRenault , The King Must Die, Pantheon, 1958.125 — O simbolismo do labirinto é discutido por Erich Neumann emThe Orieins and History ofConsciousness, Bollingen, 1954.!2§ — A respeito do mito Navajo do coiote, ler The Pollen Path deMargaret Schevill Link e J. L. Henderson, Stanford, 1954.128 — A emergência do ego é discutida por Erich Neumann, op. cit; porMichael Fordham, New Developments in Analytical Psychology, London,Routledge Sc Kegan Paul, 1957; e por Esther M. Harding, TheRestoration ofthe Injured Archetypal Image (edição limitada), NewYork, 1960.129 — O estudo de Jung sobre a iniciação está em "AnalytycalPsychology and the Weltanschauung," Obras Completas, vol. VIII. Verigualmente The Rites of Passage, de Arnold van Gennep, Chicago, 1961.132 — As provas iniciatórias femininas de força são discutidas por ErichNeumann em Amor and Psyche, Bollingen, 1956.137 — O conto "A Bela e a Fera" aparece em The Fairy Tale Book deMm. Leprince de Beaumont, New York, Simon Sc Schuster, 1958. 141 —O mito de Orfeu pode ser encontrado em Prolegomena to the Study ofGreek Religion, de Jane E. Harrison, Cambridge University Press, 1922.Ver também Orpheus and Greek Religion, de W.K.C. Guthrie,Cambridge, 1935.

142 — As observações de Jung sobre o ritual católico do cálice estão em"Transformation Symbolism in the Mass," Obras Completas, vol. XI.Ver também Myth and Ritual in Christianity, de Alan Watts, VanguardPress, 1953.145 — A interpretação de Linda Fierz-David sobre o ritual de Orfeu estáem Psychologische Betrachtungen zu der Freskenfolge der Villa dei Misteriin Pompeji, ein Versuch von Linda Fierz -David, (edição limitada), Zurich,1957.148 — A urna funerária romana da Colina Esquilina é discutida por JaneHarrison, op. cit.149 — Ver "The Transcendent Function" de Jung, Student'sAssociation, Carl G. Jung Institute, Zurich.151 — Joseph Campbell discute o xamã em The Symbol withoutMeamng, Zurich, Rhein - Verlag, 1958.152 — Ver "The Waste Land" de T. S. Eliot nos seus CollectedPoems,London, Faber and Faber, 1963.

0 processo de individuação — M.-L. von Franz160 — Uma detalhada análise da estrutura em "meandro" dos sonhosencontra-se nas Obras Completas de Jung, vol. VIII, pp. 23 e 237-300(especialmente p. 290). Ver outro exemplo no vol. XII, parte 1. Tambémem Studies in Ana lytical Psychology, de Gerhard Adler, Londres, 1948.161 — A respeito do self ver Obras Completas, vol. IX, pane 2, pp. 5,23 ; vol. XII, pp. 18, 41, 174, 193.161 — Os Naskapi são estudados por Franz G. Speck em Naskapi: theSavage Hunter of the Labrador Península, University of Oklahoma Press,1935.162 — O conceito da totalidade psíquica é discutido por Jung em suasObras Completas, vol. XIV, p. 117, e vol. IX, parte 2, pp. 6, 190.Ver também vol. IX, parte 1, pp. 275, 290.163 — A história do carvalho foi reproduzida de Dschuang Dsi; Daswahre Buch vom südlichen Blütendland, de Richard Wilhelm, Jena,1923., pp. 33 4.163 — Jung trata da árvore como símbolo do processo de individuaçãoem "Der philosophische Baum", Von den Wurzeln des Bewusstseins,Zurich, 1954.163 — O "deus local" a quem se ofereciam sacrifícios sobre um altar depedra corresponde, em muitos aspectos, ao antigo genius luci. Ver LaChine antique, de Henri Maspéro, Paris, 1955, p. 140 (Informação devidaà gentileza de Miss Ariane Rump.)164 — Jung assinala a dificuldade de descrever o processo de individuaçãoem Obras Completas, vol. XVII, p. 179.165 — A breve descrição da importância dos sonhos infantis fundamenta -se sobretudo no livro Psychological Interpretation of Children's Dreams(notas e conferências), E.T.H. Zurich, 1938-9 (edição limitada). Oexemplo comentado pertence a uma pesquisa, PsychologischeInterpretation von Kindertrãumen, 1939-40, p. 76. Ver também "TheDevelopment of Personality", Obras Completas, vol. XVII, de Jung; TheLife of Childhood', de Michael Fordham, London, 1944 (especialmente'p. 104); The Origins and History of Consciousness, de Erich Neumann;The Inner World of Consciousness, de Francês Wickes, New York -London, 1927; e Human Relationships, de Eleanor Bertine, London,1958.166 — Jung discute o núcleo psíquico em ''The Development ofPersonality", 'Obras Completas, vol. XVII, p. 175, e vol. XIV, p. 9.167 — A respeito dos esquemas dos contos de fada referentes ao motivodo rei enfermo, ver Anmerkungen zu den Kinder -und Hausmàrchen derBrüder Grimm, dejoh. Bolte e G. Polivka, vol. 1, 1913 -32, p. 503 —são variações do conto de Grimm "O Pássaro Dourado".168 — Outros detalhes a respeito da sombra podem ser encontrados nasObras Completas de Jung, vol. IX, parte 2, capítulo 2, e no volume XII,p. 29; também em The Undiscovered Self, London, 1958, pp. 8-9. Verainda The Inner World of Man, de Francês Wickes, New York-Toronto,1938. Um bom exemplo da realização da sombra figura, também, emKomplexe Psychologie und Körperliches Symptom, de G. Schmalz,Stuttgart, 1955.170 — Encontram-se exemplos do conceito egípcio sobre o mundosubterrâneo no livro The Tomb of Ramses VI, Bollingen, série XL,partes1 e 2, Pantheon Books, 1954.172 — Jung trata da natureza da projeção no vol. VI das suas ObrasCompletas, Definit ions, p. 582; e no vol. VIII, p. 272. 175 — O Alcorão(Qur'an) foi traduzido para o inglês por E. H. Palmer, Oxford UniversityPress, 1949. Ver também a interpretação de Jung da história de Moisés eKhidr no vol. IX, p. 135, das suas Obras Completas.175 — A história hindu Somadeva: Vetalapanchavimsati foi traduzidapor C. H. Tawney, Jaico-book, Bombay, 1956. Ver também a excelenteinterpretação psicológica de Henry Zimmer em The King and the Corpse,Bollingen, série LX, New York, Pantheon, 1948.176 — As referências ao mestre do zen -budismo são de Der Ochs und

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sein Hirte (tradução para o inglês de Kóichi Tsujimura), Pfullingen,1958, p. 95.177 — Para maiores detalhes a respeito da anima, ver as Obras Completasdejung, vol. IX, parte 2, pp. 11-12, e capítulo 3; vol. XVII, p. 198;vol. VIII, p. 345; vol. XI, pp. 29 -31, 41, 476 etc. ; vol. XII, parte 1. Vertambém Animus and anima, Two Essays de Emma Jung, The AnalyticalClub of New York, 1957; Human Relationships, de Eleanor Bertine, parte2; Psychic Energy, de Esther Harding, New York, 1948, passim, e outros.177 — O xamanismo dos esquimós foi descrito por Mircea Eliade em DerSchamanismus, Zurich, 1947, especialmente p. 49; c por KnudRasmussen em Thulefahrt, Frankfurt, 1926, passim.178 — A história do caçador siberiano é de Rasmussen, em Die Gabe desAdlers, Frankfurt a. M., 1926, p. 172.179 — A "donzela venenosa" aparece em Die Sage vom Giftmãdchen,de W. Hertz, Abh. der k bayr. Akad. der Wiss., 1 Cap. XX, vol. 1, Abt,Munique, 1893.179 — A princesa assassina é abordada por Chr. Hahn em Griechischeund Albanesische Marchen. vol. 1, Munique-Berlim, 1918, p. 301: DerJãger und der Spiegel der alies sieht.180 — "Loucura de amor" causada pela projeção da anima é examinadapor Eleanor Bertine em Human Kelationships, p. 113 e scg. Ver tambémo excelente estudo do Professor H. Strauss, "Die Anima ais Projection-erlebnis", manuscrito não editado, Heidelberg, 1959.180 — Jung discute a possibilidade de integração psíquica através daanima negativa nas suas Obras Completas, vol. IX, p. 224; vol. XI p. 164e segs.; vol. XII, pp. 25, 110, 128.185 — Para os quatro estágios Aí anima ver Jung, Obras Completas, vol.XVI, p. 174.186 — Hypnerotomachia de Francesco Colonna foi interpretado porLinda Fierz-David em Der Liebestraum des Poliphilo, Zuric h, 1947.186 — A citação que descreve a natureza da anima é de AuroraConsurgens I, traduzido por E. A. Glover. Edição alemã por M.-L. vonFranz, em Mysterium Coniunctionis , dejung, vol. 3, 1958.187 —Jung estuda o culto cavalheiresco à dama nas suas ObrasCompletas, vol. VI, pp. 274 e 290. Ver também Die Graalslegende inpsychologischer Sicht, de Emma Jung e M. -L. von Franz, Zurich, 1960.189 — A respeito do aparecimento dz anima como uma "convicçãosagrada" ver Two Essays in AnalyticalPsychology, dejung, London,1928, p. 127 e segs.; Obras Completas, vol. IX, cap. 3. Ver também, deEmmajung, Animus and anima, pass im; de Esther Hard ing, Woman'sMysteries, New York, 1955; de Eleanor Bertine, Human Relationships, p.128 e segs.; de Toni Wolff, Studien zu Cari G. Jung's Psycbologie,Zurich, 1959, p. 257 e segs.; de Erich Neumann, Zur Psycbologie desWeiblichen, Zurich, 1953.189 — O conto de fadas cigano pode ser encontrado em Der Tod AisGeliebter, Zigeuncr-Mãrchen. Die Mârchen der Weltliteratur, de F.von der Leyen e P. Zaunert, Jena, 1926, p. 117.194 — O animus como fonte de valiosas qualidades masculinas éestudado por Jung nas suas Obras Completas, vol. IX, p. 182; e em TwoEssays, Cap. 4.196 — Para o conto austríaco da princesa negra, ver "Die schwarzeKönigstochter'', Mârchen aus dem Donaulande, Die Màrcben derWeltli teratur, Jcna, 1926, p. 150.196 — O conto esquimó do Espírito da Lua é tirado de ' 'Von einer Fraudie zur Spinne wurde", traduzido de Die Gabe des Adlers, de K.Rasmussen, p. 121.196 — As várias personificações do self'Ao estudadas nas ObrasCompletas dejung, vol. IX, p. 151.200 — O mito de P'an Ku pode ser encontrado em Myths of China andJapan, de Donald A. MacKenzie, London, p. 260, e em Le Taoisme deH. Maspéro, Paris, 1950, p. 109. Ver também Universismus, de J. J. M.de Groot, Berlim, 1918, pp. 130-31; Stmbolik des ChinesischenUniversismus, de H. Koestler, Stuttgart, 1958, p. 40; e MysteriumConiunct ionis de J ung, vol. 2, pp. 160-61.200 — A respeito de Adão como o Homem Cósmico, ver Schôpfung undSundenfall des ersten Menschen, de August WUnsche, Leipzig, 1906, pp.8-9 e 13; Die Gnosis, de Hans Leiscgang, Leipzig, KrõnerscheTaschenausgabe. Para a interpretação psicológica ver MysteriumConiunct ionis, dejung, vol. 2, Cap. 5, pp. 140-99; e Obras Completas,vol. XII, p. 346. Pode também haver conexões históricas entre o P'an Kudos chineses, o Gayomart dos persas e as lendas de Adão. Ver Gayomart,de Sven S. Hartmann, Upsala, 1953, pp. 46, 115.202 — O conceito de Adão como "supcralma" e se o riginando de umatamareira é tratado por E. S. Drower em The Secret Adam, A Study ofNasoraean Gnosis, Oxford, 1960, p p . 2 3 , 2 6 , 2 7 e 3 7 .202 — A citação de Meister Eckhardt é de F. Pfeiffer, em MeisterEckhardt, London, 1924, vol. II, p. 80.

202 — Para o estudo de Jung sobre o Homem Cósmico, ver ObrasCompletas, vol. XI, e Mysterium Coniunctionis, vol. 2, p. 215. Vertambém Esther Harding, Journey into Self London, 1956, passim. 202— Adão Kadmon é discutido em Major Trends injewish Mysticism,1941, de Gershom Sholem; e em Mysterium Coniunctionis, dejung, vol.2, p. 182.204 — O símbolo do casal real é estudado nas Obras Completas de Jung,vol. XVI, p. 313, cm Mysterium Coniunctionis, vol. 1, pp. 143, 179;vol. 2, pp. 86, 90, 140, 285. Ver também Symposium de Platão e oHomem-deus dos Gnósticos, o Antropos.205 — Para a pedra como símbolo do self, ver Von den Wurzeln desBewusstseins, dejung, Zurich, 1954 pp. 200, 415 e 449.206 — O ponto em que a necessidade de individuação é conscientementerealizada está discutido nas Obras Completas dejung, vol. XII, passim,Von den Wurzeln des Bewusstseins, p. 200; vol. IX, parte 2, pp. 139,236, 247, 268 ; vo l. X VI , p. 164. Ver t ambé m o vo l. VI II , p . 2 5 3 ; e , d eToni Wolff, Studien zu C. G. Jung's Psychologie, p. 43. Consultarespecialmente Mysterium Coniunctionis, dejung, vol. 2, p. 318.207 — Para um estudo mais amplo da "imaginação ativa" ver "TheTranscendent Function", nas Obras Completas dejung, vol. VIII.207 — O zoólogo Adolf Portmann descreve a "interioridade" animal emDas Tier ais soziales Wesen, Zurich, 1935, p. 366.209 — Antigas crenças germânicas a respeito de pedras tumulares sãodiscutidas em Das altgermanische Priester wesen, de Paul Herrmann,Jena, 1929, p. 52; e em Von den Wurzeln des Bewusstseins, dejung, p.198.210 — A descrição de Morienus da pedra filosofal está citada nasObras Completas de Jung, vol. XII, p. 300, nota 45.210 — A máxima dos alquimistas de que é necessário o sofrimento para seencontrar a pedra pode ser verificada no vol. XII, p. 280, das ObrasCompletas dejung.210 — Jung discute a relação entre a psique e matéria em Two Essays onAnalytical Psychology, pp. 142-46.211 — Para uma explicação completa da sincronicidade, ver"Synchronicyty: an Acausal Connecting Principie", no vol. VIII dasObras Completas, p. 419.212 — A respeito dos pontos de vista dejung sobre o inconsciente e asreligiões orientais ver "Concerning Mandala Symbolism", nas ObrasCompletas, vol. IX, parte 1, p. 335; vol. XII, p. 212 (e também, domesmo volume, pp. 19 , 42 , 9 1 , 101, 119, 159, 162).212 — As citações do texto chinês são do Lu K'uan Yii, Charles Luk,Ch'an and Zen Teaching, Londres, p. 27.216 — O conto do Balneário Bâdgerd é de Marchen aus Iran, DieMarchen der Weltli teratur, Jena, 1959, p. 150.217 —Jung examina o sentimento atual de sermos apen as uma "cifraestatís tica" em The UndiscoveredSelf, pp. 14, 109-220 — A interpretação dos sonhos em nível subjetivo é discutida nasObras Completas dejung, vol. VIII, p. 266 e vol. XVI, p. 243.220 — A afirmação de que o homem está instintivamente "sintonizad o"com o seu meio ambiente é estudada por A. Portmann em Das Tier aissoziales Wesen, p. 65 epassim. Ver também A Study of Instinct, de N.Tinbergen, Oxford, 1955, pp. 151 e 207.221 — El. E. E. Hartley discute o inconsciente das massas emfundamentais of Social Psychology, New York, 1952. Ver também, deTh. Janwitz e R. Schulze, Neue Richtungen in der Massenkommunikationforschung, Rundfunk und Fernsehen, 1960, pp. 7, 8 epassim, Também,ibid., pp. 1-20, e Unterschwellige Kommunikation, íbtd. 1960, Heft3/4, p. 283 e p. 306. (Informação devida à gentileza de Mr. RenéMalamoud.)224 — O valor da liberdade (pari criar algo de útil) é acentuado por Jungem The Undiscovered Self, p. 9.224 — A respeito de figuras religiosas que simbolizam o processo deindividuação, ver Obras Completas dejung, vol. XI, p. 273 epassim, eibid., parte 2 e p. 164.225 — Jung discute o simbolismo religioso nos sonhos atuais cm ObrasCompletas, vol. XII, p. 92. Ver também ibid., pp. 28, 269, 207 e outras.225 — A adição de um quarto elemento à Trindade é examinada porJung em Mysterium Coniunctionis , vol. 2, pp. 112, 117, 123; e ObrasCompletas, vol. VIII, p. 136 e 160-62.228 — A visão de Black Elk (o alce negro) é de Black Eli Speaks, ed.John G. Neihardt, New York, 1932.228 — A história do fes tival da águia dos esquimós é de Die Gabe desAdlers, de Knud Rasmussen, pp. 23 e 29.228 — Jung discute a reformulação dos elementos mitológicos originaisnas Obras Completas, voí. XI, p. 20, e na Introdução do vol. XII.229 — O físico W. Pauli descreveu os efe itos das modernas descobertascientíficas, como a de Heisenberg, em Die Philosophische Bedeutung der

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Idee der Komplementaritãt , "Exper ientia", vol. VI/2, p. 72; e emWahrscheinlichkeit und Physik, "Dialéctica", vol. VIII/2, 1954, p. 117.

O Simbolismo nas artes plásticas — Aniela Jaffé234 — A afirmação de Max Ernst c citada em Contemporary Sculpture,de C. Giedion-Welcker, New York, 1955.234 — O estudo de Herbert Kuhn a respeito da ane pré-histórica está emseu Die Felsbilder Europas, Stuttgart, 1952.236 — A respeito dos dramas No, ver de D. Seckel, Einfuhrung in dieKunst Ostasiens, Munique, 1960, figs. 1 e 16. Quanto à máscara deraposa usada no dra ma No, ver G. Buschan, Tiere in Kult undAberglauben, Ciba Journal, Bale, nov. 1942, nP 86.237 — Sobre os atributos animais de vários deuses, ver G. Buschan, op.cit.238 — Jung trata do simbolismo do unicórnio (um dos símbolos deCristo) em Obras Completas, vol. XII, p. 415.240 — O nascimento de Buda está no Lalita Vis/era, do sânscrito, cercado ano 600 a 1000 da era crista. Trad. Paris, 1884.240 — Jung estuda as quatro funções do consciente no vol. VI das ObrasCompletas.240 — As manda/as do Tibete sào discutidas e interpretadas no vol. IXdas Obras Completas.242 — A imagem, da Virgem no meio de uma árvore circular é o painelcentral do Triptyque du Buisson Ardent, 1476, Catedral Saint-Saveur,Aix-en-Provence.242 — Exemplos de edifícios sagrados baseados na forma da mandala:Borobudur, Java; o Taj MahaT; a Mesquita de Ornar, em Jerusalém.Edifícios seculares : Castel dei Monte, construído por Frederico II (1194-1250) em Apúlia.242 — A respeito da mandala na planta de vilas primitivas e locaissagrados ver Das Heilige und das Profane, de Mircea Eliade, Hamburgo,1957.242 — A teoria de que quadrata significa ' 'quadripartita '' foi formuladapor Franz Altheim, um erudito clássico berlincnse. Ver K. Kerenyi,Introduction to Kerenyi-Jung, Einfuhrung in das Wesen der Mythologie,Zurich, p. 20.242 — A outra teoria, segundo a qual a urbs quadrata se refere àquadratura do círculo, é de Kerenyi, loc. cit.243 — Sobre a Cidade Celeste, ver o Apocalipse, XXI.243 — A citação de Jung é do seu Commentary on the Secret of theGolden Flower, London-New York, 1956, 10? ed.243 — Exemplos da cruz equilateral: crucificação deEvangelienharmonie, Viena, Nat. Bib. Cod. 2687 (Otfried vonWeissenberg, século 9); cruz Gosforth, século 10; cruz Monasterboice,século 10; ou a eiuz Ruthwell.245 — O estudo sobre as modificações nos edifícios eclesiásticos estábaseado no ensaio de Karl Litz, Die Mandala, ein Beispiel derArchitektursymbolik, Winterthur, novembro 1960.247 — A natureza -morta de Matisse faz parte da Coleção Thompson,Pittsburgh.247 — O quadro de Kandinsky com bolas ou círculos coloridos chama-seBlurred White, 1927, e pertence i Coleção Thompson.247 — Event on the Downs de Paul Nash pertence à coleçío da Sra. C.Neilson. Ver Meaning and Symbol, de George W. Digby, Faber & Faber,London.249 — O estudo de Jung a respeito dos discos voadores está cm FlyingSaucers: A Modern Myth of Things Seen in the Skies, London-New York,1959.250 — A citação de Notes sur Iapeinture d'aujourd'hui (Paris, 1953), deBazaine, figura em Dokumente zum Verstãndnis der moderne»malerei, de Walter Hess, Hamburgo, 1958 (Rowohlt), p. 122.Inúmeras citações neste capítulo foram tiradas desta excelente compilação,a que nos vamos refer ir daqui em diante como Dokumente.250 — A declaração de Franz Marc está em Briefe, Aufzeichnungen undaphorismen, Berlim, 1920.250 — A respeito do livro de Kandinsky, ver a sexta edição, Berna, 1959-(Primeira edição, Munique, 1912.) Dokumente, p. 80.250 — Maneirismo c modismo são discutidos por Werncr Haftmann cmGlanz und Gefèhrdung der Abstrakten Malerei, em Skizzenbuch zurKultur der Gegenwart, Munique, 1960, p. 111. Ver também deHa ftmann, Die Malerei im. 20. Jahrhundert, 2? edição, Munique, 1957;e A Concise History of Modern Painting, de Herbert Read, London,1959, e numerosos estudos individuais.251 — O ensaio de Kandinsky "ÍJber die Formfragc" está em Der blaueReiter, Munique, 1912. Vrer Dokumente, p. 87.253 — Os comentários de Bazaine a respeito do descanso de garrafas deDuchamp são de Dokumente, p. 122.253 — A declaração de Joan Miro é àcjoan Miro, Horizont Collection,Arche Press.

254 — A referência à "obsessão" de Schwitter é de Werner Haftmann,op. cit.254 — A declaração de Kandinsky é de Selbstbetrachtungen, Berlim,1913. Dokumente, p. 89.254 — A citação de Cario Carrà é de W. Haftmann, Paul Klee, Wegebildnerischen Denkens, Munique, 1955, 3? ed., p. 71.254 — Klee, em We ge des Naturstudiums, Weimar, Munique, 1923.Dokumente, p. 125.254 — A observação de Bazaine é de Notes sur Ia peinture d'aujourd' huiParis, 1953. Dokumente, p. 125.254 — A declaração de De Chirico está em SuWArte Metafís ica, Roma,1919. Dokumente, p. 112.255 — As citações da Memorie delia mia Vita, de De Chirico, são deDokumente, p. 112.255 — A citação de Kandinsky a respeito da morte de Deus está no seuUeber das Geistige in der Kunst, op. cit.255 — Ver mais particularmente Heinrich Heine, Rimbaud c Mallarmé.255 — A citação dejung está em suas Obras Completas, vol. XI, p. 88.257 — Encontramos manichini nas obras de Cario Carrà, A. Archipenko(1887-1964), e Giorgio Morandi (1890-1964).257 — O comentário sobre Chagall por Herbert Read é do seu ConciseHist ory of Modern Painting, London, 1959, pp. 124, 126, 128.257 — As declarações de André Breton são de Manifestes du Surrealisme,1924-42, Paris , 1946. Dokumente, pp. 117, 118.258 — A citação de Ernst de Beyond Painting (New York, 1948) é deDokumente, p. 1Í9 .259 — As referências a Hans Arp são baseadas em Hans Arp, de CarolaGiedion-Welcker, 1957, p. 16.259 — As referências ã Historie Naturelle de Ernst estão em Dokumente,p. 121.260 — A respeito dos românticos do século XIX c i ' 'caligrafia danatureza" ver Novalis, Die Lehrlinge zu Sais; E. T. A. Hoffmann, DasMirchen vom Goldnen Topf; e G. H. von Schubert, Symbolik desTraumes.260 — O comentário de Kassner sobre George Trakl é do Almanach de IaLibrairie Flinier, Paris, 1961.262 — As declarações de Kandinsky pertencem, respectivamente, aRuckblicke (citado por Max Bill na sua Introduction to Kandinsky's Ueberdas Geistige.,. ., op. ci t,); aSelbstdarstel lung, Berlim, 1913(Dokumente, p. 86); e a Malerei im. 20 Jahrhundert. deHaftmann.262 — As declarações de Franz Marc pertencem, respectivamente, aBris fe , Aufzeichnungen und Aphorismen, op. ci t; Dokumente, p. 79; ea Haftmann, op. ci t. , p. 478.262 — As declarações de Klee pertencem a Ueber die moderne Kunst,Lecture, 1924. Dokumente, p. 84.262 — As declarações de Mondrian pertencem a Neue Gestaltung,Muniq ue, 1925. Dokumente, p. 100.263 — As declarações de Kandinsky pertencem, respectivamente, a Ueberdas Geistige. ■., op. cit., p. 83; a Ueber die Formfrage, Munique, 1912(Doiu mente , p. 88); eiAufs ãtze, 1923-43 (Dokumente , p. 91).263 — A declaração de Franz Marc é citada em Vom Sinn der Paralleleem Kunst und Naturform, de Georg Schmidt, Bale, 1960.263 — As declarações de Klee pertencem, respectivamente, a Ueber diemoderne Kunst, op. cit. (Dokumente, p. 84); a Tagebucher, Berlim,1953 (Dokumente, p. 86); a Haftmann, Paul Klee, op. cit., pp. 93 e 50;a Tagebucher (Dokumente, p. 86); e a Haftmann, p. 89.264 — As referências à pintura de Pollock estão cm Haftmann, Malereitm 20. Jahrhundert, p. 464.264 — As declarações de Pollock pertencem a My Painting Possibilities,New York, 1947. Citadas por Herbert Read, op. cit., p. 267.264 — A citação Je Jung é do vol. IX, p. 173 das Obras Completas.265 — A citação de Klee, feita por Read, é de Concise History. .., op.ci t., p. 180.265 — A declaração de Marc é de Briefe, Aufzeichnungen undAphorismen. Dokumente, p. 79-265 — O diálogo de Marini é de Dialogue uber Kunst, Insel Vcrlag,1960, de Edouard Roditi (a conversação é dada aqui em forma bastanteabreviada).268 — As afirmações de Mancssier são de W. Haftmann, op. cit., p. 474.268 — O comentário de Bazaine é do seu Notes sur Ia peintured'aujourd'hui, op. cit. Dokumente, p. 126.270 — As declarações de Klee são de Paul Klee, de W. Haftmann, p. 71.270 — A respeito da arte moderna nas igrejas, ver W. Schmalenbach, ZurAusstellung von Alfred Manessier, Zurich Art Gallery, 1959.Símbolos em uma análise individual — Jolande Jacobi273 — O palácio dos Sonhos: ilustração do século XVI, para a Odisseiade Homero, Livro XIX. No nicho central está a deusa do sono segurando

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um buque de papoulas. À sua esquerda, a Porta dos Chifres (com acabeça cornífcra de um boi ao alto). Desta porta, vêm os sonhosverdadeiros. À sua direita a Porta de Marfim, com uma cabeça de elefanteao alto; desta vêm os sonhos falsos. Ao alto, à esquerda, a deusa da lua,Diana; ao alto, à direita, a Noite, com seus filhos, o Sono e a Morte.277 — A importância do primeiro sonho em uma análise está indicadapor Jung em Modem Man in Séarch of a Soul, p. 77.290 — A respeito do Sonho do Oráculo , ver o / Ching or Book ofChanges, trad. de Richard Wilhelm (com introdução de C. G. Jung),Routledge and Kegan Paul, London, 1951, vols. I e II.292 — O simbolismo das três linhas superiores do sinal Meng — o"portão" — é mencionado no vol. II, p. 299, op. ci t. , que també mdeclara que este sinal ".. . é um desvio, significa pequenas pedras, portase aberturas. . . eunucos e guardas, dedos. .." Para o sinal Meng, vertambém vol. I, p. 20.

292 — A citação do / Ching está no vol. I, p. 23.292 — A respeito de uma segunda consulta ao / Ching, Jung escreve (Nasua Introdução à edição inglesa): ' 'Uma repetição da experiência éimpossível pela simples razão que a situação original não pode serrecriada. Portanto, a cada vez haverá sempre uma primeira e únicaresposta. ''292 — Sobre o comentário a respeito do sinal Li, ver op. cit. vol. I, p.178; e uma referência no vol. II, p. 299.293 — O mot ivo "cidade sobre uma montanha" é tratado por K.Kerenyi em Das Geheimnis der hohen Stãdte, Europàische Revue, 1942,núme ros de julho-agosto; e em Essays on a Science ofMythology,Bollingen Series XXIII, p. 16.294 — Observações de Jung a respeito do motivo do número quatro estãoem Ohras Completas, vols. IX, XI, XII e XIV; entretanto, na realidade oproblema do quatro e todas a s suas implicações estão entremeados de umamaneira constante, como se fora uma linha vermelha, através de toda asua obra.297 — Para alguns dos significados simbólicos atribuídos âs canas dejogar, ver Handwõrterbuch des Deutschen Aberglaubens, vol. IV, p. 1.015vol. V, p. 1.110.297 — O simbolismo do número nove está discutido, entre outras obras,em Medieval Number Symbolism, de F. V. Hopper, 1938, p. 138.299 — A respeito do esquema de uma ' 'viagem marítima noturna '' nestesonho, verj. Jacobi, "The Process of Individuat ion", Journal ofAna/ytical Psycho/ogy, vol. III, nº 2, 1958, p. 95.300— A crença primitiva no poder das secreções do corpo humano estáestudada em Origins of Consciousness (edição alemã), de E. Neumann,p. 39.

A Ciência e o inconsciente — M. -L. von Franz304 — Os arquétipos como núcleos da psique são discutidos por W. Pauli emAufsätze und Vortrâge úber Physik und Erkenntnis-theorie, VcrlagVieweg Braunschweig, 1961.304 — A respeito das forças inibidoras ou inspiradoras dos arquétipos, verC. G. Jung e W. Pauli , Naturerklârung und Psyche, Zurich 1952, p. 163e p assim.306 — A sugestão de Pauli a respeito da biologia está em Aufsãtze undVortr3ge, op. cit., p. 123.

306 — Para maior explicação a respeito do tempo necessário à mutação,ver Pauli, op. cit., pp. 123-25.306 — A história de Darwin e Wallace pode ser encontrada em CharlesDarwin, de Henshaw Ward, 1927.307 — A referência a Descartes está mais amplamente estudada por M. - L.von Franz, em "Der Traum des Descartes", em Studien des C. G. JungInstituís , chamados "Zeitlose Dokuments der Seele".307 — A afirmativa de Kepler é discutida por Jung e Pauli emNaturerklârung und Psyche, op. cit., p. 117.307 — A frase de Heisenberg está citada por Hannah Arendt, cm TheHuman Condition, Chicago Univ. Press, 1958, p. 26.307 — A sugestão de Pauli a respeito de estudos paralelos cm psicologia efísica está em Naturerklârung, op. cit., p. 163.307 — A respeito das ideias de Niels Bohr sobre a complementaridade,ver seu Atomphysik und menschliche Erkenntmis, Braunschweig, p. 26.308 — Momentum (de uma partícula subatômica) diz -se, em alemão,Bewegungsgrõsse.308 — A declaração de Pauli foi citada por Jung cm "The Spirit ofPsychology", nos Co/l. Papers ofthe Eranos Year Book de Jos. Campbel ,Bollingen Series XXX, 1, New York Pantheon Books, 1954, p. 439.308 — Pauli discute as ' 'possibilidades primárias em Vortrâge, op.ci t., p. 125.308 — A comparação entre os conceitos da microfísica e da psicologiaencontra-se também em Vortrâge. A descrição do inconsciente por,paradoxos, pp. 115-16; os arquétipos como "possibilidades primárias", p.115 ; o inconsciente como um "campo", p. 125.309 — A citação de Gauss é traduzida do seu Werke, vol. X, p. 25, cartaa Olbers, e é citada na obra de B. L. van der Waerden, Einfa ll undUeberlegung: Drei kleine Beitrâge zur Psychologie des mathematischenDenkens, Basel, 1954.309 — A declaração de Poincaré é citada em ibid. , p. 2.309 — A crença de Pauli de que o conceito do inconsciente afetaria todaa ciência natural está em Vortrâge, p. 125.309 — A ideia da possível unicidade de todos os fenómenos de vida foiretomada por Pauli, ibid., p. 118.309 — Para as ideias de Jung sobre a noção de "arranjo sincronizado"inc luindo a matéria e a psique, ler "Synchronic ity: an AcausalConnectin g Princip ie", Obras Completas, vol. VIII.309 — As ideias de Jung a respeito do unus mundus apóiam-se em certasteorias filosóficas da escolástica medieval (John Duns Scotus etc.): unusmundus era o conceito total ou arquétipo do mundo no espír ito de Deusantes de ele torná-lo realidade.309 — A citação de Hannah Arendt figura em The Human Condition,op. cit., p. 266.309 — Para estudo mais detalhado das ' 'intuições matemáticasprimárias" ver Pauli, Vortrâge, p. 122; também Ferd. Conseth, "Lesmathémat iques et Ia réalité", 1948.310 — Pauli, seguindo Jung, assinala que nossas representaçõesconscientes são "ordenadas" antes de se conscientizarem; Vortrâge, p.122. Ver também Conseth, op. cit.310 — A declaração de B. L. van der Waerden está no seu Einfallund Ueberlegung, op. cit., p. 9.

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Fontesiconográficas

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Page 311: Carl g. jung -o homem e seus símbolos

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Strasbourg, 70; Volkswagen Ltd., 36. Collection of Walker ArtCenter, Minneapolis, 260(BL); Wiener Library, © AuschwitzMuseum, Poland, 94(BR); courtesy the Wellcome Trust, 69,246(TL), 286(BR); Wide World, 117(BR); Gahan Wilson,49(BL); Wuthering Heights (director: William Wyler), U.S.A.,1939, 190(T). Yale University Art Gallery, James Jackson JarvesCollection, 180(TL). Zentralbibliothek, Zürich, 249(BR); ©Mrs. Hans Zinsser, from G. F. Kunz, The Magic of Jewels andCharms, 207(ML); Zentralbibliothek Zürich, 248(TR).

Fotógrafos

Ansel Adams, 208(BL); Alinari, 46; David G. Allen, BirdPhotographs Inc., 68(T); Douglas Allen, 222(ML). WernerBischof, 22(BL), 269; Joachim Blauel, 261(B); Leonardo Bonzi,135(BL); Edouard Boubat, 212(BL); Mike Busselle, 28(BR),93(BL), collages 121(BL)(BR), 135(BR), 180( TR), 181(B),183(TR)(BR), montages 190(T), 207(TL), 212(BR), 219(BR);Francis Brunel, 239(TR). Robert Capa, 194(TMR), 198(B);Cartier -Bresson, 34, 172(T); Chuzeville, 276(B); FrancoCianetti, 264(BL); Prof . E. J. Cole, 258(BR); J. B. Collins,35(ML) (MC); Ralph Crane, 117(BL). N. Elswing, 242(TR).John Freeman, 105, 107(BL), 171(TR), 195(TL), 197(TL),259(MR), 281, 298(BL). Ewing Galloway, 82(BL); MareeiGautherot, 213; Georg Gerster, 109(BR); Roger Guillemot, 89.Ernst Haas, 146(BR); Leon Herschtritt, 84; Hinz, Basle, 127(L),219(BC), 258(T). Isaac, 35(BL). William Klein, 86(BL).Lavaud, 97(T), 159, 241 (BL); Louise Leiris, 261 (BL); Dr. IvarLissner, 149(BR); Sandra Lousada at Whitecross Studio,175(BR); Kurt & Margot Lubinsky, 149(BL). Roger Mayne,164(BR); Don McCullin, 287; St. Anthony Messenger, 143(B);Meyer, 29; John Moore, 72(R), 238(BL), 252(BL). JackNisberg, 256(TR). Michael Peto, 164(BL); Axel Poignant, 95,128, 130, 131, 204(MR). Allen C. Reed, 74, 214(T). Sabat,65(BR); Prof. Roger Sauter, 243( BL); Kees Scherer, 35(BR);Émil Schulthess, 201 (TC); Carroll Seghers, 98(TR); BrianShuel, 55(BR), 129(BR); Dennis Stock, 238(T); DavidSwann, 21 , 48(B), 53(BL), 54(M), 66 , 109(T)(BL),HO(BL), 115(T)(BL), 133, 136, 155(T), 163, 174(BR),186(BL), 188(BL), 190(BL), 198(TR), 203(BR)(ML), 206(ML),264(BR), 302, 303. Felix Trombe, 234(TC). Vil lani & FigliFrl., 80(BL). Yoshio Watanabe, 232(B); Hans Peter Widmer,305).

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