caritas in veritate

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CARTA ENCÍCLICA CARITAS IN VERITATE DO SUMO PONTÍFICE BENTO XVI AOS BISPOS AOS PRESBÍTEROS E DIÁCONOS ÀS PESSOAS CONSAGRADAS AOS FIÉIS LEIGOS E A TODOS OS HOMENS DE BOA VONTADE SOBRE O DESENVOLVIMENTO HUMANO INTEGRAL NA CARIDADE E NA VERDADE INTRODUÇÃO 1. A caridade na verdade, que Jesus Cristo testemunhou com a sua vida terrena e sobretudo com a sua morte e ressurreição, é a força propulsora principal para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade inteira. O amor « caritas » é uma força extraordinária, que impele as pessoas a comprometerem-se, com coragem e generosidade, no campo da justiça e da paz. É uma força que tem a sua origem em Deus, Amor eterno e Verdade absoluta. Cada um encontra o bem próprio, aderindo ao projecto que Deus tem para ele a fim de o realizar plenamente: com efeito, é em tal projecto que encontra a verdade sobre si mesmo e, aderindo a ela, torna-se livre (cf. Jo 8, 22). Por isso, defender a verdade, propô-la com humildade e convicção e testemunhá-la na vida são formas exigentes e imprescindíveis de caridade. Esta, de facto, « rejubila com a verdade » (1 Cor 13, 6). Todos os homens sentem o impulso interior para amar de maneira autêntica: amor e verdade nunca desaparecem de todo neles, porque são a vocação colocada por Deus no coração e na mente de cada homem. Jesus Cristo purifica e liberta das nossas carências humanas a busca do amor e da verdade e desvenda-nos, em plenitude, a iniciativa de amor e o projecto de vida verdadeira que Deus preparou para nós. Em Cristo, a caridade na verdade torna-se o Rosto da sua Pessoa, uma vocação a nós dirigida para amarmos os nossos irmãos na verdade do seu projecto. De facto, Ele mesmo é a Verdade (cf. Jo 14, 6). 2. A caridade é a via mestra da doutrina social da Igreja. As diversas responsabilidades e compromissos por ela delineados derivam da caridade, que é como ensinou Jesus a síntese de toda a Lei (cf. Mt 22, 36-40). A caridade dá verdadeira substância à relação pessoal com Deus e com o próximo; é o princípio não só das micro-relações estabelecidas entre amigos, na família, no pequeno grupo, mas também das macro-relações como relacionamentos sociais, económicos, políticos. Para a Igreja instruída pelo Evangelho , a caridade é tudo porque, como ensina S. João (cf. 1 Jo 4, 8.16) e como recordei na minha primeira carta encíclica, « Deus é caridade » (Deus caritas est): da caridade de Deus tudo provém, por ela tudo toma forma, para ela tudo tende. A caridade é o dom maior que Deus concedeu aos homens; é sua promessa e nossa esperança. Estou ciente dos desvios e esvaziamento de sentido que a caridade não cessa de enfrentar com o risco, daí resultante, de ser mal entendida, de excluí-la da vida ética e, em todo o caso, de impedir a sua correcta valorização. Nos âmbitos social, jurídico, cultural, político e económico, ou seja, nos contextos mais expostos a tal perigo, não é difícil ouvir declarar a sua irrelevância para interpretar e orientar as responsabilidades morais. Daqui a necessidade de conjugar a caridade com a verdade, não só na direcção assinalada por S. Paulo da « veritas in caritate » (Ef 4, 15), mas também na

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  • 1. CARTA ENCCLICACARITAS IN VERITATE DO SUMO PONTFICEBENTO XVIAOS BISPOSAOS PRESBTEROS E DICONOSS PESSOAS CONSAGRADAS AOS FIIS LEIGOSE A TODOS OS HOMENS DE BOA VONTADE SOBRE O DESENVOLVIMENTOHUMANO INTEGRALNA CARIDADE E NA VERDADE INTRODUO1. A caridade na verdade, que Jesus Cristo testemunhou com a sua vida terrena e sobretudo com asua morte e ressurreio, a fora propulsora principal para o verdadeiro desenvolvimento de cadapessoa e da humanidade inteira. O amor caritas uma fora extraordinria, que impele aspessoas a comprometerem-se, com coragem e generosidade, no campo da justia e da paz. umafora que tem a sua origem em Deus, Amor eterno e Verdade absoluta. Cada um encontra o bemprprio, aderindo ao projecto que Deus tem para ele a fim de o realizar plenamente: com efeito, em tal projecto que encontra a verdade sobre si mesmo e, aderindo a ela, torna-se livre (cf. Jo 8, 22).Por isso, defender a verdade, prop-la com humildade e convico e testemunh-la na vida soformas exigentes e imprescindveis de caridade. Esta, de facto, rejubila com a verdade (1 Cor 13,6). Todos os homens sentem o impulso interior para amar de maneira autntica: amor e verdadenunca desaparecem de todo neles, porque so a vocao colocada por Deus no corao e na mentede cada homem. Jesus Cristo purifica e liberta das nossas carncias humanas a busca do amor e daverdade e desvenda-nos, em plenitude, a iniciativa de amor e o projecto de vida verdadeira queDeus preparou para ns. Em Cristo, a caridade na verdade torna-se o Rosto da sua Pessoa, umavocao a ns dirigida para amarmos os nossos irmos na verdade do seu projecto. De facto, Elemesmo a Verdade (cf. Jo 14, 6).2. A caridade a via mestra da doutrina social da Igreja. As diversas responsabilidades ecompromissos por ela delineados derivam da caridade, que como ensinou Jesus a sntese detoda a Lei (cf. Mt 22, 36-40). A caridade d verdadeira substncia relao pessoal com Deus ecom o prximo; o princpio no s das micro-relaes estabelecidas entre amigos, na famlia, nopequeno grupo, mas tambm das macro-relaes como relacionamentos sociais, econmicos,polticos. Para a Igreja instruda pelo Evangelho , a caridade tudo porque, como ensina S.Joo (cf. 1 Jo 4, 8.16) e como recordei na minha primeira carta encclica, Deus caridade (Deuscaritas est): da caridade de Deus tudo provm, por ela tudo toma forma, para ela tudo tende. Acaridade o dom maior que Deus concedeu aos homens; sua promessa e nossa esperana.Estou ciente dos desvios e esvaziamento de sentido que a caridade no cessa de enfrentar com orisco, da resultante, de ser mal entendida, de exclu-la da vida tica e, em todo o caso, de impedir asua correcta valorizao. Nos mbitos social, jurdico, cultural, poltico e econmico, ou seja, noscontextos mais expostos a tal perigo, no difcil ouvir declarar a sua irrelevncia para interpretar eorientar as responsabilidades morais. Daqui a necessidade de conjugar a caridade com a verdade,no s na direco assinalada por S. Paulo da veritas in caritate (Ef 4, 15), mas tambm na

2. direco inversa e complementar da caritas in veritate . A verdade h-de ser procurada,encontrada e expressa na economia da caridade, mas esta por sua vez h-de ser compreendida,avaliada e praticada sob a luz da verdade. Deste modo teremos no apenas prestado um servio caridade, iluminada pela verdade, mas tambm contribudo para acreditar a verdade, mostrando oseu poder de autenticao e persuaso na vida social concreta. Facto este que se deve ter bem emconta hoje, num contexto social e cultural que relativiza a verdade, aparecendo muitas vezesnegligente seno mesmo refractrio mesma.3. Pela sua estreita ligao com a verdade, a caridade pode ser reconhecida como expressoautntica de humanidade e como elemento de importncia fundamental nas relaes humanas,nomeadamente de natureza pblica. S na verdade que a caridade refulge e pode serautenticamente vivida. A verdade luz que d sentido e valor caridade. Esta luz simultaneamente a luz da razo e a da f, atravs das quais a inteligncia chega verdade natural esobrenatural da caridade: identifica o seu significado de doao, acolhimento e comunho. Semverdade, a caridade cai no sentimentalismo. O amor torna-se um invlucro vazio, que se podeencher arbitrariamente. o risco fatal do amor numa cultura sem verdade; acaba prisioneiro dasemoes e opinies contingentes dos indivduos, uma palavra abusada e adulterada chegando asignificar o oposto do que realmente. A verdade liberta a caridade dos estrangulamentos doemotivismo, que a despoja de contedos relacionais e sociais, e do fidesmo, que a priva deamplitude humana e universal. Na verdade, a caridade reflecte a dimenso simultaneamente pessoale pblica da f no Deus bblico, que conjuntamente Agpe e Lgos : Caridade e Verdade,Amor e Palavra.4. Porque repleta de verdade, a caridade pode ser compreendida pelo homem na sua riqueza devalores, partilhada e comunicada. Com efeito, a verdade lgos que cria di-logos e,consequentemente, comunicao e comunho. A verdade, fazendo sair os homens das opinies esensaes subjectivas, permite-lhes ultrapassar determinaes culturais e histricas para seencontrarem na avaliao do valor e substncia das coisas. A verdade abre e une as inteligncias nolgos do amor: tal o anncio e o testemunho cristo da caridade. No actual contexto social ecultural, em que aparece generalizada a tendncia de relativizar a verdade, viver a caridade naverdade leva a compreender que a adeso aos valores do cristianismo um elemento til e mesmoindispensvel para a construo duma boa sociedade e dum verdadeiro desenvolvimento humanointegral. Um cristianismo de caridade sem verdade pode ser facilmente confundido com umareserva de bons sentimentos, teis para a convivncia social mas marginais. Deste modo, deixariade haver verdadeira e propriamente lugar para Deus no mundo. Sem a verdade, a caridade acabaconfinada num mbito restrito e carecido de relaes; fica excluda dos projectos e processos deconstruo dum desenvolvimento humano de alcance universal, no dilogo entre o saber e arealizao prtica.5. A caridade amor recebido e dado; graa (chris). A sua nascente o amor fontal do Paipelo Filho no Esprito Santo. amor que, pelo Filho, desce sobre ns. amor criador, pelo qualexistimos; amor redentor, pelo qual somos recriados. Amor revelado e vivido por Cristo (cf. Jo 13,1), derramado em nossos coraes pelo Esprito Santo (Rm 5, 5). Destinatrios do amor deDeus, os homens so constitudos sujeitos de caridade, chamados a fazerem-se eles mesmosinstrumentos da graa, para difundir a caridade de Deus e tecer redes de caridade.A esta dinmica de caridade recebida e dada, prope-se dar resposta a doutrina social da Igreja. Taldoutrina caritas in veritate in re sociali , ou seja, proclamao da verdade do amor de Cristona sociedade; servio da caridade, mas na verdade. Esta preserva e exprime a fora libertadora dacaridade nas vicissitudes sempre novas da histria. ao mesmo tempo verdade da f e da razo, nadistino e, conjuntamente, sinergia destes dois mbitos cognitivos. O desenvolvimento, o bem- 3. estar social, uma soluo adequada dos graves problemas scio-econmicos que afligem ahumanidade precisam desta verdade. Mais ainda, necessitam que tal verdade seja amada etestemunhada. Sem verdade, sem confiana e amor pelo que verdadeiro, no h conscincia eresponsabilidade social, e a actividade social acaba merc de interesses privados e lgicas depoder, com efeitos desagregadores na sociedade, sobretudo numa sociedade em vias de globalizaoque atravessa momentos difceis como os actuais.6. Caritas in veritate um princpio volta do qual gira a doutrina social da Igreja, princpioque ganha forma operativa em critrios orientadores da aco moral. Destes, desejo lembrar dois emparticular, requeridos especialmente pelo compromisso em prol do desenvolvimento numasociedade em vias de globalizao: a justia e o bem comum.Em primeiro lugar, a justia. Ubi societas, ibi ius: cada sociedade elabora um sistema prprio dejustia. A caridade supera a justia, porque amar dar, oferecer ao outro do que meu ; masnunca existe sem a justia, que induz a dar ao outro o que dele , o que lhe pertence em razo doseu ser e do seu agir. No posso dar ao outro do que meu, sem antes lhe ter dado aquilo quelhe compete por justia. Quem ama os outros com caridade , antes de mais nada, justo para comeles. A justia no s no alheia caridade, no s no um caminho alternativo ou paralelo caridade, mas inseparvel da caridade [1], -lhe intrnseca. A justia o primeiro caminho dacaridade ou, como chegou a dizer Paulo VI, a medida mnima dela[2], parte integrante daqueleamor por aces e em verdade (1 Jo 3, 18) a que nos exorta o apstolo Joo. Por um lado, acaridade exige a justia: o reconhecimento e o respeito dos legtimos direitos dos indivduos e dospovos. Aquela empenha-se na construo da cidade do homem segundo o direito e a justia. Poroutro, a caridade supera a justia e completa-a com a lgica do dom e do perdo[3]. A cidade dohomem no se move apenas por relaes feitas de direitos e de deveres, mas antes e sobretudo porrelaes de gratuidade, misericrdia e comunho. A caridade manifesta sempre, mesmo nasrelaes humanas, o amor de Deus; d valor teologal e salvfico a todo o empenho de justia nomundo.7. Depois, preciso ter em grande considerao o bem comum. Amar algum querer o seu bem etrabalhar eficazmente pelo mesmo. Ao lado do bem individual, existe um bem ligado vida socialdas pessoas: o bem comum. o bem daquele ns-todos , formado por indivduos, famlias egrupos intermdios que se unem em comunidade social[4]. No um bem procurado por si mesmo,mas para as pessoas que fazem parte da comunidade social e que, s nela, podem realmente e commaior eficcia obter o prprio bem. Querer o bem comum e trabalhar por ele exigncia de justia ede caridade. Comprometer-se pelo bem comum , por um lado, cuidar e, por outro, valer-se daqueleconjunto de instituies que estruturam jurdica, civil, poltica e culturalmente a vida social, quedeste modo toma a forma de plis, cidade. Ama-se tanto mais eficazmente o prximo, quanto maisse trabalha em prol de um bem comum que d resposta tambm s suas necessidade reais. Todo ocristo chamado a esta caridade, conforme a sua vocao e segundo as possibilidades que tem deincidncia na plis. Este o caminho institucional podemos mesmo dizer poltico da caridade,no menos qualificado e incisivo do que o a caridade que vai directamente ao encontro doprximo, fora das mediaes institucionais da plis. Quando o empenho pelo bem comum animado pela caridade, tem uma valncia superior do empenho simplesmente secular e poltico.Aquele, como todo o empenho pela justia, inscreve-se no testemunho da caridade divina que,agindo no tempo, prepara o eterno. A aco do homem sobre a terra, quando inspirada esustentada pela caridade, contribui para a edificao daquela cidade universal de Deus que a metapara onde caminha a histria da famlia humana. Numa sociedade em vias de globalizao, o bemcomum e o empenho em seu favor no podem deixar de assumir as dimenses da famlia humanainteira, ou seja, da comunidade dos povos e das naes[5], para dar forma de unidade e paz cidadedo homem e torn-la em certa medida antecipao que prefigura a cidade de Deus sem barreiras. 4. 8. Ao publicar a encclica Populorum progressio em 1967, o meu venerado predecessor Paulo VIiluminou o grande tema do desenvolvimento dos povos com o esplendor da verdade e com a luzsuave da caridade de Cristo. Afirmou que o anncio de Cristo o primeiro e principal factor dedesenvolvimento [6] e deixou-nos a recomendao de caminhar pela estrada do desenvolvimentocom todo o nosso corao e com toda a nossa inteligncia[7], ou seja, com o ardor da caridade e asapincia da verdade. a verdade originria do amor de Deus graa a ns concedida que abreao dom a nossa vida e torna possvel esperar num desenvolvimento do homem todo e de todos oshomens [8], numa passagem de condies menos humanas a condies mais humanas [9], quese obtm vencendo as dificuldades que inevitavelmente se encontram ao longo do caminho.Passados mais de quarenta anos da publicao da referida encclica, pretendo prestar homenagem ehonrar a memria do grande Pontfice Paulo VI, retomando os seus ensinamentos sobre odesenvolvimento humano integral e colocando-me na senda pelos mesmos traada para os actualizarnos dias que correm. Este processo de actualizao teve incio com a encclica Sollicitudo reisocialis do Servo de Deus Joo Paulo II, que desse modo quis comemorar a Populorum progressiono vigsimo aniversrio da sua publicao. At ento, semelhante comemorao tinha-se reservadoapenas para a Rerum novarum. Passados outros vinte anos, exprimo a minha convico de que aPopulorum progressio merece ser considerada como a Rerum novarum da poca contempornea ,que ilumina o caminho da humanidade em vias de unificao.9. O amor na verdade caritas in veritate um grande desafio para a Igreja num mundo emcrescente e incisiva globalizao. O risco do nosso tempo que, real interdependncia doshomens e dos povos, no corresponda a interaco tica das conscincias e das inteligncias, daqual possa resultar um desenvolvimento verdadeiramente humano. S atravs da caridade,iluminada pela luz da razo e da f, possvel alcanar objectivos de desenvolvimento dotados deuma valncia mais humana e humanizadora. A partilha dos bens e recursos, da qual deriva oautntico desenvolvimento, no assegurada pelo simples progresso tcnico e por meras relaesde convenincia, mas pelo potencial de amor que vence o mal com o bem (cf. Rm 12, 21) e abre reciprocidade das conscincias e das liberdades.A Igreja no tem solues tcnicas para oferecer [10] e no pretende de modo algum imiscuir-sena poltica dos Estados [11]; mas tem uma misso ao servio da verdade para cumprir, em todo otempo e contingncia, a favor de uma sociedade medida do homem, da sua dignidade, da suavocao. Sem verdade, cai-se numa viso empirista e cptica da vida, incapaz de se elevar acima daaco porque no est interessada em identificar os valores s vezes nem sequer os significados pelos quais julg-la e orient-la. A fidelidade ao homem exige a fidelidade verdade, a nicaque garantia de liberdade (cf. Jo 8, 32) e da possibilidade dum desenvolvimento humano integral. por isso que a Igreja a procura, anuncia incansavelmente e reconhece em todo o lado onde amesma se apresente. Para a Igreja, esta misso ao servio da verdade irrenuncivel. A sua doutrinasocial um momento singular deste anncio: servio verdade que liberta. Aberta verdade,qualquer que seja o saber donde provenha, a doutrina social da Igreja acolhe-a, compe numaunidade os fragmentos em que frequentemente a encontra, e serve-lhe de medianeira na vida semprenova da sociedade dos homens e dos povos[12]. CAPTULO I A MENSAGEM DA POPULORUM PROGRESSIO 5. 10. A releitura da Populorum progressio, mais de quarenta anos depois da sua publicao, incita apermanecer fiis sua mensagem de caridade e de verdade, considerando-a no mbito domagistrio especfico de Paulo VI e, mais em geral, dentro da tradio da doutrina social da Igreja.Depois h que avaliar os termos diferentes em que hoje, diversamente de ento, se coloca oproblema do desenvolvimento. Por isso, o ponto de vista correcto o da Tradio da fapostlica[13], patrimnio antigo e novo, fora do qual a Populorum progressio seria um documentosem razes e as questes do desenvolvimento ficariam reduzidas unicamente a dados sociolgicos.11. A publicao da Populorum progressio deu-se imediatamente depois da concluso do ConclioEcumnico Vaticano II. A prpria encclica sublinha, nos primeiros pargrafos, a sua relao ntimacom o Conclio[14]. Vinte anos depois, era Joo Paulo II que destacava, na Sollicitudo rei socialis,a fecunda relao daquela encclica com o Conclio, particularmente com a constituio pastoralGaudium et spes[15]. Desejo, tambm eu, lembrar aqui a importncia que o Conclio Vaticano IIteve na encclica de Paulo VI e em todo o sucessivo magistrio social dos Sumos Pontfices. OConclio aprofundou aquilo que desde sempre pertence verdade da f, ou seja, que a Igreja,estando ao servio de Deus, serve o mundo em termos de amor e verdade. Foi precisamente destaperspectiva que partiu Paulo VI para nos comunicar duas grandes verdades. A primeira que aIgreja inteira, em todo o seu ser e agir, quando anuncia, celebra e actua na caridade, tende apromover o desenvolvimento integral do homem. Ela tem um papel pblico que no se esgota nassuas actividades de assistncia ou de educao, mas revela todas as suas energias ao servio dapromoo do homem e da fraternidade universal quando pode usufruir de um regime de liberdade.Em no poucos casos, tal liberdade v-se impedida por proibies e perseguies; ou ento limitada, quando a presena pblica da Igreja fica reduzida unicamente s suas actividades scio-caritativas. A segunda verdade que o autntico desenvolvimento do homem diz respeitounitariamente totalidade da pessoa em todas as suas dimenses[16]. Sem a perspectiva dumavida eterna, o progresso humano neste mundo fica privado de respiro. Fechado dentro da histria,est sujeito ao risco de reduzir-se a simples incremento do ter; deste modo, a humanidade perde acoragem de permanecer disponvel para os bens mais altos, para as grandes e altrustas iniciativassolicitadas pela caridade universal. O homem no se desenvolve apenas com as suas prprias foras,nem o desenvolvimento algo que se lhe possa dar simplesmente de fora. Muitas vezes, ao longoda histria, pensou-se que era suficiente a criao de instituies para garantir humanidade asatisfao do direito ao desenvolvimento. Infelizmente foi depositada excessiva confiana em taisinstituies, como se estas pudessem conseguir automaticamente o objectivo desejado. Na realidade,as instituies sozinhas no bastam, porque o desenvolvimento humano integral primariamentevocao e, por conseguinte, exige uma livre e solidria assuno de responsabilidade por parte detodos. Alm disso, tal desenvolvimento requer uma viso transcendente da pessoa, tem necessidadede Deus: sem Ele, o desenvolvimento ou negado ou acaba confiado unicamente s mos dohomem, que cai na presuno da auto-salvao e acaba por fomentar um desenvolvimentodesumanizado. Alis, s o encontro com Deus permite deixar de ver no outro sempre e apenas ooutro [17], para reconhecer nele a imagem divina, chegando assim a descobrir verdadeiramente ooutro e a maturar um amor que se torna cuidado do outro e pelo outro [18].12. A ligao entre a Populorum progressio e o Conclio Vaticano II no representa um corte entreo magistrio social de Paulo VI e o dos Pontfices seus predecessores, visto que o Conclio constituium aprofundamento de tal magistrio na continuidade da vida da Igreja[19]. Neste sentido, noajudam clareza certas subdivises abstractas da doutrina social da Igreja, que aplicam aoensinamento social pontifcio categorias que lhe so alheias. No existem duas tipologias dedoutrina social uma pr-conciliar e outra ps-conciliar , diversas entre si, mas um nicoensinamento, coerente e simultaneamente sempre novo[20]. justo evidenciar a peculiaridade deuma ou outra encclica, do ensinamento deste ou daquele Pontfice, mas sem jamais perder de vistaa coerncia do corpus doutrinal inteiro[21]. Coerncia no significa recluso num sistema, mas 6. sobretudo fidelidade dinmica a uma luz recebida. A doutrina social da Igreja ilumina, com uma luzimutvel, os problemas novos que vo aparecendo[22]. Isto salvaguarda o carcter quer permanentequer histrico deste patrimnio doutrinal[23], o qual, com as suas caractersticas especficas, fazparte da Tradio sempre viva da Igreja[24]. A doutrina social est construda sobre o fundamentoque foi transmitido pelos Apstolos aos Padres da Igreja e, depois, acolhido e aprofundado pelosgrandes Doutores cristos. Tal doutrina remonta, em ltima anlise, ao Homem novo, ao ltimoAdo que Se tornou esprito vivificante (1 Cor 15, 45) e princpio da caridade que nuncaacabar (1 Cor 13, 8). testemunhada pelos Santos e por quantos deram a vida por CristoSalvador no campo da justia e da paz. Nela se exprime a misso proftica que tm os SumosPontfices de guiar apostolicamente a Igreja de Cristo e discernir as novas exigncias daevangelizao. Por estas razes, a Populorum progressio, inserida na grande corrente da Tradio, capaz de nos falar ainda a ns hoje.13. Alm da sua importante ligao com toda a doutrina social da Igreja, a Populorum progressioest intimamente conexa com o magistrio global de Paulo VI e, de modo particular, com o seumagistrio social. De grande relevo foi, sem dvida, o seu ensinamento social: reafirmou aexigncia imprescindvel do Evangelho para a construo da sociedade segundo liberdade e justia,na perspectiva ideal e histrica de uma civilizao animada pelo amor. Paulo VI compreendeuclaramente como se tinha tornado mundial a questo social[25] e viu a correlao entre o impulso unificao da humanidade e o ideal cristo de uma nica famlia dos povos, solidria nafraternidade comum. Indicou o desenvolvimento, humana e cristmente entendido, como o coraoda mensagem social crist e props a caridade crist como principal fora ao servio dodesenvolvimento. Movido pelo desejo de tornar o amor de Cristo plenamente visvel ao homemcontemporneo, Paulo VI enfrentou com firmeza importantes questes ticas, sem ceder sdebilidades culturais do seu tempo.14. Depois, com a carta apostlica Octogesima adveniens de 1971, Paulo VI tratou o tema dosentido da poltica e do perigo de vises utpicas e ideolgicas que prejudicavam a sua qualidadetica e humana. So argumentos estritamente relacionados com o desenvolvimento. Infelizmente asideologias negativas florescem continuamente. Contra a ideologia tecnocrtica, hojeparticularmente radicada, j Paulo VI tinha alertado[26], ciente do grande perigo que era confiartodo o processo do desenvolvimento unicamente tcnica, porque assim ficaria sem orientao. Atcnica, em si mesma, ambivalente. Se, por um lado, h hoje quem seja propenso a confiar-lheinteiramente tal processo de desenvolvimento, por outro, assiste-se investida de ideologias quenegam in toto a prpria utilidade do desenvolvimento, considerado radicalmente anti-humano eportador somente de degradao. Mas, deste modo, acaba-se por condenar no apenas a maneiraerrada e injusta como por vezes os homens orientam o progresso, mas tambm as descobertascientficas que entretanto, se bem usadas, constituem uma oportunidade de crescimento para todos.A ideia de um mundo sem desenvolvimento exprime falta de confiana no homem e em Deus. Porconseguinte, um grave erro desprezar as capacidades humanas de controlar os extravios dodesenvolvimento ou mesmo ignorar que o homem est constitutivamente inclinado para ser mais. Absolutizar ideologicamente o progresso tcnico ou ento afagar a utopia duma humanidadereconduzida ao estado originrio da natureza so dois modos opostos de separar o progresso da suaapreciao moral e, consequentemente, da nossa responsabilidade.15. Outros dois documentos de Paulo VI, embora no estritamente ligados com a doutrina social a encclica Human vit, de 25 de Julho de 1968, e a exortao apostlica Evangelii nuntiandi, de8 de Dezembro de 1975 , so muito importantes para delinear o sentido plenamente humano dodesenvolvimento proposto pela Igreja. Por isso oportuno ler tambm estes textos em relao coma Populorum progressio. 7. A encclica Human vit sublinha o significado conjuntamente unitivo e procriativo da sexualidade,pondo assim como fundamento da sociedade o casal de esposos, homem e mulher, que se acolhemreciprocamente na distino e na complementaridade; um casal, portanto, aberto vida[27]. No setrata de uma moral meramente individual: a Human vit indica os fortes laos existentes entretica da vida e tica social, inaugurando uma temtica do Magistrio que aos poucos foi tomandocorpo em vrios documentos, sendo o mais recente a encclica Evangelium vit de Joo PauloII[28]. A Igreja prope, com vigor, esta ligao entre tica da vida e tica social, ciente de que nopode ter slidas bases uma sociedade que afirma valores como a dignidade da pessoa, a justia e apaz, mas contradiz-se radicalmente aceitando e tolerando as mais diversas formas de desprezo eviolao da vida humana, sobretudo se dbil e marginalizada [29].Por sua vez, a exortao apostlica Evangelii nuntiandi tem uma relao muito forte com odesenvolvimento, visto que a evangelizao escrevia Paulo VI no seria completa, se notomasse em considerao a interpelao recproca que se fazem constantemente o Evangelho e avida concreta, pessoal e social, do homem [30]. Entre evangelizao e promoo humana desenvolvimento, libertao existem de facto laos profundos [31]: partindo desta certeza,Paulo VI ilustrava claramente a relao entre o anncio de Cristo e a promoo da pessoa nasociedade. O testemunho da caridade de Cristo atravs de obras de justia, paz e desenvolvimentofaz parte da evangelizao, pois a Jesus Cristo, que nos ama, interessa o homem inteiro. Sobre estesimportantes ensinamentos, est fundado o aspecto missionrio [32] da doutrina social da Igrejacomo elemento essencial de evangelizao[33]. A doutrina social da Igreja anncio e testemunhode f; instrumento e lugar imprescindvel de educao para a mesma.16. Na Populorum progressio, Paulo VI quis dizer-nos, antes de mais nada, que o progresso , nasua origem e na sua essncia, uma vocao: Nos desgnios de Deus, cada homem chamado adesenvolver-se, porque toda a vida vocao [34]. precisamente este facto que legitima ainterveno da Igreja nas problemticas do desenvolvimento. Se este tocasse apenas aspectostcnicos da vida do homem, e no o sentido do seu caminhar na histria juntamente com seusirmos, nem a individuao da meta de tal caminho, a Igreja no teria ttulo para falar. Mas PauloVI, como antes dele Leo XIII na Rerum novarum[35], estava consciente de cumprir um deverprprio do seu servio quando iluminava com a luz do Evangelho as questes sociais do seutempo[36].Dizer que o desenvolvimento vocao equivale a reconhecer, por um lado, que o mesmo nasce deum apelo transcendente e, por outro, que incapaz por si mesmo de atribuir-se o prprio significadoltimo. No sem motivo que a palavra vocao volta a aparecer noutra passagem da encclica,onde se afirma: No h, portanto, verdadeiro humanismo seno o aberto ao Absoluto,reconhecendo uma vocao que exprime a ideia exacta do que a vida humana [37]. Esta viso dodesenvolvimento o corao da Populorum progressio e motiva todas as reflexes de Paulo VIsobre a liberdade, a verdade e a caridade no desenvolvimento. tambm a razo principal por quetal encclica ainda aparece actual nos nossos dias.17. A vocao um apelo que exige resposta livre e responsvel. O desenvolvimento humanointegral supe a liberdade responsvel da pessoa e dos povos: nenhuma estrutura pode garantir taldesenvolvimento, prescindindo e sobrepondo-se responsabilidade humana. Os messianismosfascinantes, mas construtores de iluses [38] fundam sempre as prprias propostas na negao dadimenso transcendente do desenvolvimento, seguros de o terem inteiramente sua disposio. Estafalsa segurana converte-se em fraqueza, porque implica a sujeio do homem, reduzido categoriade meio para o desenvolvimento, enquanto a humildade de quem acolhe uma vocao se transformaem verdadeira autonomia, porque torna a pessoa livre. Paulo VI no tem dvidas sobre a existnciade obstculos e condicionamentos que refreiam o desenvolvimento, mas est seguro tambm de que 8. cada um, sejam quais forem as influncias que sobre ele se exeram, permanece o artficeprincipal do seu xito ou do seu fracasso [39]. Esta liberdade diz respeito no s aodesenvolvimento que usufrumos, mas tambm s situaes de subdesenvolvimento, que no sofruto do acaso nem de uma necessidade histrica, mas dependem da responsabilidade humana. por isso que os povos da fome se dirigem hoje, de modo dramtico, aos povos da opulncia [40].Tambm isto vocao, um apelo que homens livres dirigem a homens livres em ordem a umaassuno comum de responsabilidade. Viva era, em Paulo VI, a percepo da importncia dasestruturas econmicas e das instituies, mas era igualmente clara nele a noo da sua natureza deinstrumentos da liberdade humana. Somente se for livre que o desenvolvimento pode serintegralmente humano; apenas num regime de liberdade responsvel, pode crescer de maneiraadequada.18. Alm de requerer a liberdade, o desenvolvimento humano integral enquanto vocao exigetambm que se respeite a sua verdade. A vocao ao progresso impele os homens a realizar,conhecer e possuir mais, para ser mais [41]. Mas aqui levanta-se o problema: que significa sermais ? A tal pergunta responde Paulo VI indicando a caracterstica essencial do desenvolvimentoautntico : este deve ser integral, quer dizer, promover todos os homens e o homem todo [42].Na concorrncia entre as vrias concepes do homem, presentes na sociedade actual ainda maisintensamente do que na de Paulo VI, a viso crist tem a peculiaridade de afirmar e justificar ovalor incondicional da pessoa humana e o sentido do seu crescimento. A vocao crist aodesenvolvimento ajuda a empenhar-se na promoo de todos os homens e do homem todo. EscreviaPaulo VI: O que conta para ns o homem, cada homem, cada grupo de homens, at se chegar humanidade inteira [43]. A f crist ocupa-se do desenvolvimento sem olhar a privilgios nemposies de poder nem mesmo aos mritos dos cristos que sem dvida existiram e existem, apar de naturais limitaes[44] , mas contando apenas com Cristo, a Quem h-de fazer refernciatoda a autntica vocao ao desenvolvimento humano integral. O Evangelho elementofundamental do desenvolvimento, porque l Cristo, com a prpria revelao do mistrio do Pai edo seu amor, revela o homem a si mesmo [45]. Instruda pelo seu Senhor, a Igreja perscruta ossinais dos tempos e interpreta-os, oferecendo ao mundo o que possui como prprio: uma visoglobal do homem e da humanidade [46]. Precisamente porque Deus pronuncia o maior sim aohomem[47], este no pode deixar de se abrir vocao divina para realizar o prpriodesenvolvimento. A verdade do desenvolvimento consiste na sua integralidade: se no desenvolvimento do homem todo e de todo o homem, no verdadeiro desenvolvimento. Esta amensagem central da Populorum progressio, vlida hoje e sempre. O desenvolvimento humanointegral no plano natural, enquanto resposta a uma vocao de Deus criador[48], procura a prpriaautenticao num humanismo transcendente, que leva [o homem] a atingir a sua maior plenitude:tal a finalidade suprema do desenvolvimento pessoal [49]. Portanto, a vocao crist a taldesenvolvimento compreende tanto o plano natural como o plano sobrenatural, motivo por que, quando Deus fica eclipsado, comea a esmorecer a nossa capacidade de reconhecer a ordem natural,o fim e o bem [50].19. Finalmente, a concepo do desenvolvimento como vocao inclui nele a centralidade dacaridade. Paulo VI observava, na encclica Populorum progressio, que as causas dosubdesenvolvimento no so primariamente de ordem material, convidando-nos a procur-lasnoutras dimenses do homem. Em primeiro lugar, na vontade, que muitas vezes descuida osdeveres da solidariedade. Em segundo, no pensamento, que nem sempre sabe orientarconvenientemente o querer; por isso, para a prossecuo do desenvolvimento, servem pensadorescapazes de reflexo profunda, em busca de um humanismo novo, que permita ao homem moderno oencontro de si mesmo [51]. E no tudo; o subdesenvolvimento tem uma causa ainda maisimportante do que a carncia de pensamento: a falta de fraternidade entre os homens e entre ospovos [52]. Esta fraternidade poder um dia ser obtida pelos homens simplesmente com as suas 9. foras? A sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas no nos faz irmos. A razo,por si s, capaz de ver a igualdade entre os homens e estabelecer uma convivncia cvica entreeles, mas no consegue fundar a fraternidade. Esta tem origem numa vocao transcendente deDeus Pai, que nos amou primeiro, ensinando-nos por meio do Filho o que a caridade fraterna. Aoapresentar os vrios nveis do processo de desenvolvimento do homem, Paulo VI colocava novrtice, depois de ter mencionado a f, a unidade na caridade de Cristo que nos chama a todos aparticipar como filhos na vida do Deus vivo, Pai de todos os homens [53].20. Abertas pela Populorum progressio, estas perspectivas permanecem fundamentais para daramplitude e orientao ao nosso compromisso a favor do desenvolvimento dos povos. E aPopulorum progressio sublinha repetidamente a urgncia das reformas[54], pedindo para que, vista dos grandes problemas da injustia no desenvolvimento dos povos, se actue com coragem esem demora. Esta urgncia ditada tambm pela caridade na verdade. a caridade de Cristo quenos impele: caritas Christi urget nos (2 Cor 5, 14). A urgncia no est inscrita s nas coisas,no deriva apenas do encalar dos acontecimentos e dos problemas, mas tambm do que est emjogo: a realizao de uma autntica fraternidade. A relevncia deste objectivo tal que exige anossa disponibilidade para o compreendermos profundamente e mobilizarmo-nos concretamente,com o corao , a fim de fazer avanar os actuais processos econmicos e sociais para metasplenamente humanas.CAPTULO II O DESENVOLVIMENTO HUMANO NO NOSSO TEMPO21. Paulo VI tinha uma viso articulada do desenvolvimento. Com o termo desenvolvimento ,queria indicar, antes de mais nada, o objectivo de fazer sair os povos da fome, da misria, dasdoenas endmicas e do analfabetismo. Isto significava, do ponto de vista econmico, a suaparticipao activa e em condies de igualdade no processo econmico internacional; do ponto devista social, a sua evoluo para sociedades instrudas e solidrias; do ponto de vista poltico, aconsolidao de regimes democrticos capazes de assegurar a liberdade e a paz. Depois de tantosanos e enquanto contemplamos, preocupados, as evolues e as perspectivas das crises que foramsucedendo neste perodo, interrogamo-nos at que ponto as expectativas de Paulo VI tenham sidosatisfeitas pelo modelo de desenvolvimento que foi adoptado nos ltimos decnios. Ereconhecemos que eram fundadas as preocupaes da Igreja acerca das capacidades do homemmeramente tecnolgico conseguir impor-se objectivos realistas e saber gerir, sempreadequadamente, os instrumentos sua disposio. O lucro til se, como meio, for orientado paraum fim que lhe indique o sentido e o modo como o produzir e utilizar. O objectivo exclusivo delucro, quando mal produzido e sem ter como fim ltimo o bem comum, arrisca-se a destruir riquezae criar pobreza. O desenvolvimento econmico desejado por Paulo VI devia ser capaz de produzirum crescimento real, extensivo a todos e concretamente sustentvel. verdade que odesenvolvimento foi e continua a ser um factor positivo, que tirou da misria milhes de pessoas e,ultimamente, deu a muitos pases a possibilidade de se tornarem actores eficazes da polticainternacional. Todavia h que reconhecer que o prprio desenvolvimento econmico foi e continuaa ser molestado por anomalias e problemas dramticos, evidenciados ainda mais pela actualsituao de crise. Esta coloca-nos improrrogavelmente diante de opes que dizem respeito sempremais ao prprio destino do homem, o qual alis no pode prescindir da sua natureza. As forastcnicas em campo, as inter-relaes a nvel mundial, os efeitos deletrios sobre a economia realduma actividade financeira mal utilizada e maioritariamente especulativa, os imponentes fluxos 10. migratrios, com frequncia provocados e depois no geridos adequadamente, a exploraodesregrada dos recursos da terra, induzem-nos hoje a reflectir sobre as medidas necessrias para darsoluo a problemas que so no apenas novos relativamente aos enfrentados pelo Papa Paulo VI,mas tambm e sobretudo com impacto decisivo no bem presente e futuro da humanidade. Osaspectos da crise e das suas solues bem como de um possvel novo desenvolvimento futuro estocada vez mais interdependentes, implicam-se reciprocamente, requerem novos esforos deenquadramento global e uma nova sntese humanista. A complexidade e gravidade da situaoeconmica actual preocupa-nos, com toda a justia, mas devemos assumir com realismo, confianae esperana as novas responsabilidades a que nos chama o cenrio de um mundo que temnecessidade duma renovao cultural profunda e da redescoberta de valores fundamentais paraconstruir sobre eles um futuro melhor. A crise obriga-nos a projectar de novo o nosso caminho, aimpor-nos regras novas e encontrar novas formas de empenhamento, a apostar em experinciaspositivas e rejeitar as negativas. Assim, a crise torna-se ocasio de discernimento e elaborao denova planificao. Com esta chave, feita mais de confiana que resignao, convm enfrentar asdificuldades da hora actual.22. Actualmente o quadro do desenvolvimento policntrico. Os actores e as causas tanto dosubdesenvolvimento como do desenvolvimento so mltiplas, as culpas e os mritos sodiferenciados. Este dado deveria induzir a libertar-se das ideologias que simplificam, de formafrequentemente artificiosa, a realidade, e levar a examinar com objectividade a espessura humanados problemas. Hoje a linha de demarcao entre pases ricos e pobres j no to ntida como nostempos da Populorum progressio, como alis foi assinalado por Joo Paulo II[55]. Cresce a riquezamundial em termos absolutos, mas aumentam as desigualdades. Nos pases ricos, novas categoriassociais empobrecem e nascem novas pobrezas. Em reas mais pobres, alguns grupos gozam dumaespcie de superdesenvolvimento dissipador e consumista que contrasta, de modo inadmissvel,com perdurveis situaes de misria desumanizadora. Continua o escndalo de desproporesrevoltantes [56]. Infelizmente a corrupo e a ilegalidade esto presentes tanto no comportamentode sujeitos econmicos e polticos dos pases ricos, antigos e novos, como nos prprios pasespobres. No nmero de quantos no respeitam os direitos humanos dos trabalhadores, contam-se svezes grandes empresas transnacionais e tambm grupos de produo local. As ajudasinternacionais foram muitas vezes desviadas das suas finalidades, por irresponsabilidades que seescondem tanto na cadeia dos sujeitos doadores como na dos beneficirios. Tambm no mbito dascausas imateriais ou culturais do desenvolvimento e do subdesenvolvimento podemos encontrar amesma articulao de responsabilidades: existem formas excessivas de proteco do conhecimentopor parte dos pases ricos, atravs duma utilizao demasiado rgida do direito de propriedadeintelectual, especialmente no campo sanitrio; ao mesmo tempo, em alguns pases pobres, persistemmodelos culturais e normas sociais de comportamento que retardam o processo de desenvolvimento.23. Temos hoje muitas reas do globo que de forma por vezes problemtica e no homognea evoluram, entrando na categoria das grandes potncias destinadas a jogar um papel importante nofuturo. Contudo h que sublinhar que no suficiente progredir do ponto de vista econmico etecnolgico; preciso que o desenvolvimento seja, antes de mais nada, verdadeiro e integral. Asada do atraso econmico um dado em si mesmo positivo no resolve a complexaproblemtica da promoo do homem nem nos pases protagonistas de tais avanos, nem nos paseseconomicamente j desenvolvidos, nem nos pases ainda pobres que, alm das antigas formas deexplorao, podem vir a sofrer tambm as consequncias negativas derivadas de um crescimentomarcado por desvios e desequilbrios.Depois da queda dos sistemas econmicos e polticos dos pases comunistas da Europa Oriental edo fim dos chamados blocos contrapostos , havia necessidade duma reviso global dodesenvolvimento. Pedira-o Joo Paulo II, que em 1987 tinha indicado a existncia destes blocos 11. como uma das principais causas do subdesenvolvimento[57], enquanto a poltica subtraa recursos economia e cultura e a ideologia inibia a liberdade. Em 1991, na sequncia dos acontecimentos doano 1989, o Pontfice pediu que o fim dos blocos fosse seguido por uma nova planificaoglobal do desenvolvimento, no s em tais pases, mas tambm no Ocidente e nas regies do mundoque estavam a evoluir[58]. Isto, porm, realizou-se apenas parcialmente, continuando a ser umaobrigao real que precisa de ser satisfeita, talvez aproveitando-se precisamente das opesnecessrias para superar os problemas econmicos actuais.24. O mundo, que Paulo VI tinha diante dos olhos, registava muito menor integrao do que hoje,embora o processo de sociabilizao se apresentasse j to adiantado que ele pde falar de umaquesto social tornada mundial. Actividade econmica e funo poltica desenrolavam-se emgrande parte dentro do mesmo mbito local e, por conseguinte, podiam inspirar recproca confiana.A actividade produtiva tinha lugar prevalentemente dentro das fronteiras nacionais e osinvestimentos financeiros tinham uma circulao bastante limitada para o estrangeiro, de tal modoque a poltica de muitos Estados podia ainda fixar as prioridades da economia e, de alguma maneira,governar o seu andamento com os instrumentos de que ainda dispunha. Por este motivo, aPopulorum progressio atribua um papel central, embora no exclusivo, aos poderes pblicos[59].Actualmente, o Estado encontra-se na situao de ter de enfrentar as limitaes que lhe soimpostas sua soberania pelo novo contexto econmico comercial e financeiro internacional,caracterizado nomeadamente por uma crescente mobilidade dos capitais financeiros e dos meios deproduo materiais e imateriais. Este novo contexto alterou o poder poltico dos Estados.Hoje, aproveitando inclusivamente a lio resultante da crise econmica em curso que v ospoderes pblicos do Estado directamente empenhados a corrigir erros e disfunes, parece maisrealista uma renovada avaliao do seu papel e poder, que ho-de ser sapientemente reconsideradose reavaliados para se tornarem capazes, mesmo atravs de novas modalidades de exerccio, de fazerfrente aos desafios do mundo actual. Com uma funo melhor calibrada dos poderes pblicos, previsvel que sejam reforadas as novas formas de participao na poltica nacional e internacionalque se realizam atravs da aco das organizaes operantes na sociedade civil; nesta linha, desejvel que cresam uma ateno e uma participao mais sentidas na res publica por parte doscidados.25. Do ponto de vista social, os sistemas de segurana e previdncia j presentes em muitospases nos tempos de Paulo VI sentem dificuldade, e podero senti-la ainda mais no futuro, emalcanar os seus objectivos de verdadeira justia social dentro de um quadro de forasprofundamente alterado. O mercado, medida que se foi tornando global, estimulou antes de maisnada, por parte de pases ricos, a busca de reas para onde deslocar as actividades produtivas abaixo custo a fim de reduzir os preos de muitos bens, aumentar o poder de compra e deste modoacelerar o ndice de desenvolvimento centrado sobre um maior consumo pelo prprio mercadointerno. Consequentemente, o mercado motivou novas formas de competio entre Estadosprocurando atrair centros produtivos de empresas estrangeiras atravs de variados instrumentos taiscomo impostos favorveis e a desregulamentao do mundo do trabalho. Estes processosimplicaram a reduo das redes de segurana social em troca de maiores vantagens competitivasno mercado global, acarretando grave perigo para os direitos dos trabalhadores, os direitosfundamentais do homem e a solidariedade actuada nas formas tradicionais do Estado social. Ossistemas de segurana social podem perder a capacidade de desempenhar a sua funo, quer nospases emergentes, quer nos desenvolvidos h mais tempo, quer naturalmente nos pases pobres.Aqui, as polticas relativas ao oramento com os seus cortes na despesa social, muitas vezesfomentados pelas prprias instituies financeiras internacionais, podem deixar os cidados 12. impotentes diante de riscos antigos e novos; e tal impotncia torna-se ainda maior devido falta deproteco eficaz por parte das associaes dos trabalhadores. O conjunto das mudanas sociais eeconmicas faz com que as organizaes sindicais sintam maiores dificuldades no desempenho doseu dever de representar os interesses dos trabalhadores, inclusive pelo facto de os governos, porrazes de utilidade econmica, muitas vezes limitarem as liberdades sindicais ou a capacidadenegociadora dos prprios sindicatos. Assim, as redes tradicionais de solidariedade encontramobstculos cada vez maiores a superar. Por isso, o convite feito pela doutrina social da Igreja, acomear da Rerum novarum[60], para se criarem associaes de trabalhadores em defesa dos seusdireitos h-de ser honrado, hoje ainda mais do que ontem, dando antes de mais nada uma respostapronta e clarividente urgncia de instaurar novas sinergias a nvel internacional, sem descurar onvel local.A mobilidade laboral, associada generalizada desregulamentao, constituiu um fenmenoimportante, no desprovido de aspectos positivos porque capaz de estimular a produo de novariqueza e o intercmbio entre culturas diversas. Todavia, quando se torna endmica a incertezasobre as condies de trabalho, resultante dos processos de mobilidade e desregulamentao,geram-se formas de instabilidade psicolgica, com dificuldade a construir percursos coerentes naprpria vida, incluindo o percurso rumo ao matrimnio. Consequncia disto o aparecimento desituaes de degradao humana, alm de desperdcio de fora social. Comparado com o quesucedia na sociedade industrial do passado, hoje o desemprego provoca aspectos novos deirrelevncia econmica do indivduo, e a crise actual pode apenas piorar tal situao. A excluso dotrabalho por muito tempo ou ento uma prolongada dependncia da assistncia pblica ou privadacorroem a liberdade e a criatividade da pessoa e as suas relaes familiares e sociais, causandoenormes sofrimentos a nvel psicolgico e espiritual. Queria recordar a todos, sobretudo aosgovernantes que esto empenhados a dar um perfil renovado aos sistemas econmicos e sociais domundo, que o primeiro capital a preservar e valorizar o homem, a pessoa, na sua integridade: com efeito, o homem o protagonista, o centro e o fim de toda a vida econmico-social [61].26. No plano cultural, as diferenas, relativamente aos tempos de Paulo VI, so ainda maisacentuadas. Ento, as culturas apresentavam-se bastante bem definidas e tinham maiorespossibilidades para se defender das tentativas de homogeneizao cultural. Hoje, cresceramnotavelmente as possibilidades de interaco das culturas, dando espao a novas perspectivas dedilogo intercultural; um dilogo que, para ser eficaz, deve ter como ponto de partida uma profundanoo da especfica identidade dos vrios interlocutores. No entanto, no se deve descurar o factode que esta aumentada transaco de intercmbios culturais traz consigo, actualmente, um duploperigo. Em primeiro lugar, nota-se um ecletismo cultural assumido muitas vezes sem discernimento:as culturas so simplesmente postas lado a lado e vistas como substancialmente equivalentes eintercambiveis umas com as outras. Isto favorece a cedncia a um relativismo que no ajuda aoverdadeiro dilogo intercultural; no plano social, o relativismo cultural faz com que os gruposculturais se juntem ou convivam, mas separados, sem autntico dilogo e, consequentemente, semverdadeira integrao. Depois, temos o perigo oposto que constitudo pelo nivelamento cultural ea homogeneizao dos comportamentos e estilos de vida. Assim perde-se o significado profundo dacultura das diversas naes, das tradies dos vrios povos, no mbito das quais a pessoa seconfronta com as questes fundamentais da existncia[62]. Ecletismo e nivelamento culturalconvergem no facto de separar a cultura da natureza humana. Assim, as culturas deixam de saberencontrar a sua medida numa natureza que as transcende[63], acabando por reduzir o homem asimples dado cultural. Quando isto acontece, a humanidade corre novos perigos de servido emanipulao.27. Em muitos pases pobres, continua com risco de aumentar uma insegurana extrema devida, que deriva da carncia de alimentao: a fome ceifa ainda inmeras vtimas entre os muitos 13. Lzaros, a quem no permitido como esperara Paulo VI sentar-se mesa do ricoavarento[64]. Dar de comer aos famintos (cf. Mt 25, 35.37.42) um imperativo tico para toda aIgreja, que resposta aos ensinamentos de solidariedade e partilha do seu Fundador, o Senhor Jesus.Alm disso, eliminar a fome no mundo tornou-se, na era da globalizao, tambm um objectivo aalcanar para preservar a paz e a subsistncia da terra. A fome no depende tanto de uma escassezmaterial, como sobretudo da escassez de recursos sociais, o mais importante dos quais de naturezainstitucional; isto , falta um sistema de instituies econmicas que seja capaz de garantir umacesso regular e adequado, do ponto de vista nutricional, alimentao e gua e tambm deenfrentar as carncias relacionadas com as necessidades primrias e com a emergncia de reais everdadeiras crises alimentares provocadas por causas naturais ou pela irresponsabilidade polticanacional e internacional. O problema da insegurana alimentar h-de ser enfrentado numaperspectiva a longo prazo, eliminando as causas estruturais que o provocam e promovendo odesenvolvimento agrcola dos pases mais pobres por meio de investimentos em infra-estruturasrurais, sistemas de irrigao, transportes, organizao dos mercados, formao e difuso de tcnicasagrcolas apropriadas, isto , capazes de utilizar o melhor possvel os recursos humanos, naturais escio-econmicos mais acessveis a nvel local, para garantir a sua manuteno a longo prazo. Tudoisto h-de ser realizado, envolvendo as comunidades locais nas opes e nas decises relativas aouso da terra cultivvel. Nesta perspectiva, poderia revelar-se til considerar as novas fronteirasabertas por um correcto emprego das tcnicas de produo agrcola, tanto as tradicionais como asinovadoras, desde que as mesmas tenham sido, depois de adequada verificao, reconhecidasoportunas, respeitadoras do ambiente e tendo em conta as populaes mais desfavorecidas. Aomesmo tempo no deveria ser transcurada a questo de uma equitativa reforma agrria nos pasesem vias de desenvolvimento. Os direitos alimentao e gua revestem um papel importante paraa consecuo de outros direitos, a comear pelo direito primrio vida. Por isso, necessrio amaturao duma conscincia solidria que considere a alimentao e o acesso gua como direitosuniversais de todos os seres humanos, sem distines nem discriminaes[65]. Alm disso, importante pr em evidncia que o caminho da solidariedade com o desenvolvimento dos pasespobres pode constituir um projecto de soluo para a presente crise global, como homens polticos eresponsveis de instituies internacionais tm intudo nos ltimos tempos. Sustentando, atravs deplanos de financiamento inspirados pela solidariedade, os pases economicamente pobres, para queprovejam eles mesmos satisfao das solicitaes de bens de consumo e de desenvolvimento dosprprios cidados, possvel no apenas gerar verdadeiro crescimento econmico mas tambmconcorrer para sustentar as capacidades produtivas dos pases ricos que correm o risco de ficarcomprometidas pela crise.28. Um dos aspectos mais evidentes do desenvolvimento actual a importncia do tema do respeitopela vida, que no pode ser de modo algum separado das questes relativas ao desenvolvimento dospovos. Trata-se de um aspecto que, nos ltimos tempos, est a assumir uma relevncia sempremaior, obrigando-nos a alargar os conceitos de pobreza [66] e subdesenvolvimento s questesrelacionadas com o acolhimento da vida, sobretudo onde o mesmo de vrias maneiras impedido.No s a situao de pobreza provoca ainda altas taxas de mortalidade infantil em muitas regies,mas perduram tambm, em vrias partes do mundo, prticas de controle demogrfico por parte dosgovernos, que muitas vezes difundem a contracepo e chegam mesmo a impor o aborto. Nospases economicamente mais desenvolvidos, so muito difusas as legislaes contrrias vida,condicionando j o costume e a prxis e contribuindo para divulgar uma mentalidade antinatalistaque muitas vezes se procura transmitir a outros Estados como se fosse um progresso cultural.Tambm algumas organizaes no governamentais trabalham activamente pela difuso do aborto,promovendo nos pases pobres a adopo da prtica da esterilizao, mesmo sem as mulheres osaberem. Alm disso, h a fundada suspeita de que s vezes as prprias ajudas ao desenvolvimento 14. sejam associadas com determinadas polticas sanitrias que realmente implicam a imposio de umforte controle dos nascimentos. Igualmente preocupantes so as legislaes que prevem a eutansiae as presses de grupos nacionais e internacionais que reivindicam o seu reconhecimento jurdico.A abertura vida est no centro do verdadeiro desenvolvimento. Quando uma sociedade comea anegar e a suprimir a vida, acaba por deixar de encontrar as motivaes e energias necessrias paratrabalhar ao servio do verdadeiro bem do homem. Se se perde a sensibilidade pessoal e social aoacolhimento duma nova vida, definham tambm outras formas de acolhimento teis vidasocial[67]. O acolhimento da vida revigora as energias morais e torna-nos capazes de ajudarecproca. Os povos ricos, cultivando a abertura vida, podem compreender melhor as necessidadesdos pases pobres, evitar o emprego de enormes recursos econmicos e intelectuais para satisfazerdesejos egostas dos prprios cidados e promover, ao invs, aces virtuosas na perspectiva dumaproduo moralmente sadia e solidria, no respeito do direito fundamental de cada povo e de cadapessoa vida.29. Outro aspecto da vida actual, intimamente relacionado com o desenvolvimento, a negao dodireito liberdade religiosa. No me refiro s s lutas e conflitos que ainda se disputam no mundopor motivaes religiosas, embora estas s vezes sejam apenas a cobertura para razes de outrognero, tais como a sede de domnio e de riqueza. Na realidade, com frequncia hoje se faz apelo aosanto nome de Deus para matar, como diversas vezes foi sublinhado e deplorado publicamente pelomeu predecessor Joo Paulo II e por mim prprio[68]. As violncias refreiam o desenvolvimentoautntico e impedem a evoluo dos povos para um bem-estar scio-econmico e espiritual maior.Isto aplica-se de modo especial ao terrorismo de ndole fundamentalista[69], que gera sofrimento,devastao e morte, bloqueia o dilogo entre as naes e desvia grandes recursos do seu usopacfico e civil. Mas h que acrescentar que, se o fanatismo religioso impede em alguns contextos oexerccio do direito de liberdade de religio, tambm a promoo programada da indiferenareligiosa ou do atesmo prtico por parte de muitos pases contrasta com as necessidades dodesenvolvimento dos povos, subtraindo-lhes recursos espirituais e humanos. Deus o garante doverdadeiro desenvolvimento do homem, j que, tendo-o criado sua imagem, fundamenta de igualforma a sua dignidade transcendente e alimenta o seu anseio constitutivo de ser mais . O homemno um tomo perdido num universo casual[70], mas uma criatura de Deus, qual quis dar umaalma imortal e que desde sempre amou. Se o homem fosse fruto apenas do acaso ou da necessidade,se as suas aspiraes tivessem de reduzir-se ao horizonte restrito das situaes em que vive, se tudofosse somente histria e cultura e o homem no tivesse uma natureza destinada a transcender-senuma vida sobrenatural, ento poder-se-ia falar de incremento ou de evoluo, mas no dedesenvolvimento. Quando o Estado promove, ensina ou at impe formas de atesmo prtico, tiraaos seus cidados a fora moral e espiritual indispensvel para se empenhar no desenvolvimentohumano integral e impede-os de avanarem com renovado dinamismo no prprio compromisso deuma resposta humana mais generosa ao amor divino[71]. Sucede tambm que os paseseconomicamente desenvolvidos ou os emergentes exportem para os pases pobres, no mbito dassuas relaes culturais, comerciais e polticas, esta viso redutiva da pessoa e do seu destino. odano que o superdesenvolvimento [72] acarreta ao desenvolvimento autntico, quando acompanhado pelo subdesenvolvimento moral [73].30. Nesta linha, o tema do desenvolvimento humano integral atinge um ponto ainda mais complexo:a correlao entre os seus vrios elementos requer que nos empenhemos por fazer interagir osdiversos nveis do saber humano tendo em vista a promoo de um verdadeiro desenvolvimento dospovos. Muitas vezes pensa-se que o desenvolvimento ou as relativas medidas scio-econmicasnecessitam apenas de ser postos em prtica como fruto de um agir comum, ignorando que este agircomum precisa de ser orientado, porque toda a aco social implica uma doutrina [74]. Vista acomplexidade dos problemas, bvio que as vrias disciplinas devem colaborar atravs de uma 15. ordenada interdisciplinaridade. A caridade no exclui o saber, antes reclama-o, promove-o e anima-o a partir de dentro. O saber nunca obra apenas da inteligncia; pode, sem dvida, ser reduzido aclculo e a experincia, mas se quer ser sapincia capaz de orientar o homem luz dos princpiosprimeiros e dos seus fins ltimos, deve ser temperado com o sal da caridade. A aco cegasem o saber, e este estril sem o amor. De facto, aquele que est animado de verdadeira caridade engenhoso em descobrir as causas da misria, encontrar os meios de a combater e venc-laresolutamente [75]. Relativamente aos fenmenos que analisamos, a caridade na verdade requer,antes de mais nada, conhecer e compreender no respeito consciencioso da competncia especficade cada nvel do saber. A caridade no uma juno posterior, como se fosse um apndice aotrabalho j concludo das vrias disciplinas, mas dialoga com elas desde o incio. As exigncias doamor no contradizem as da razo. O saber humano insuficiente e as concluses das cincias nopodero sozinhas indicar o caminho para o desenvolvimento integral do homem. Sempre precisolanar-se mais alm: exige-o a caridade na verdade[76]. Todavia ir mais alm nunca significaprescindir das concluses da razo, nem contradizer os seus resultados. No aparece a inteligncia edepois o amor: h o amor rico de inteligncia e a inteligncia cheia de amor.31. Isto significa que as ponderaes morais e a pesquisa cientfica devem crescer juntas e que acaridade as deve animar num todo interdisciplinar harmnico, feito de unidade e distino. Adoutrina social da Igreja, que tem uma importante dimenso interdisciplinar [77], podedesempenhar, nesta perspectiva, uma funo de extraordinria eficcia. Ela permite f, teologia, metafsica e s cincias encontrarem o prprio lugar no mbito de uma colaborao ao servio dohomem; sobretudo aqui que a doutrina social da Igreja actua a sua dimenso sapiencial. Paulo VItinha visto claramente que, entre as causas do subdesenvolvimento, conta-se uma carncia desabedoria, de reflexo, de pensamento capaz de realizar uma sntese orientadora[78], que requer uma viso clara de todos os aspectos econmicos, sociais, culturais e espirituais [79]. A excessivafragmentao do saber[80], o isolamento das cincias humanas relativamente metafsica[81], asdificuldades no dilogo entre as cincias e a teologia danificam no s o avano do saber mastambm o desenvolvimento dos povos, porque, quando isso se verifica, fica obstaculizada a visodo bem completo do homem nas vrias dimenses que o caracterizam. indispensvel o alargamento do nosso conceito de razo e do uso da mesma [82] para se conseguir sopesaradequadamente todos os termos da questo do desenvolvimento e da soluo dos problemas scio-econmicos.32. As grandes novidades, que o quadro actual do desenvolvimento dos povos apresenta, exigemem muitos casos novas solues. Estas ho-de ser procuradas conjuntamente no respeito das leisprprias de cada realidade e luz duma viso integral do homem, que espelhe os vrios aspectos dapessoa humana, contemplada com o olhar purificado pela caridade. Descobrir-se-o entosingulares convergncias e concretas possibilidades de soluo, sem renunciar a qualquercomponente fundamental da vida humana.A dignidade da pessoa e as exigncias da justia requerem, sobretudo hoje, que as opeseconmicas no faam aumentar, de forma excessiva e moralmente inaceitvel, as diferenas deriqueza [83] e que se continue a perseguir como prioritrio o objectivo do acesso ao trabalho paratodos, ou da sua manuteno. Bem vistas as coisas, isto exigido tambm pela razo econmica .O aumento sistemtico das desigualdades entre grupos sociais no interior de um mesmo pas e entreas populaes dos diversos pases, ou seja, o aumento macio da pobreza em sentido relativo, tendeno s a minar a coeso social e, por este caminho, pe em risco a democracia , mas temtambm um impacto negativo no plano econmico com a progressiva corroso do capital social ,isto , daquele conjunto de relaes de confiana, de credibilidade, de respeito das regras,indispensveis em qualquer convivncia civil. 16. E ainda a cincia econmica a dizer-nos que uma situao estrutural de insegurana geracomportamentos antiprodutivos e de desperdcio de recursos humanos, j que o trabalhador tende aadaptar-se passivamente aos mecanismos automticos, em vez de dar largas criatividade. Tambmneste ponto se verifica uma convergncia entre cincia econmica e ponderao moral. Os custoshumanos so sempre tambm custos econmicos, e as disfunes econmicas acarretam sempretambm custos humanos.H ainda que recordar que o nivelamento das culturas dimenso tecnolgica, se a curto prazo podefavorecer a obteno de lucros, a longo prazo dificulta o enriquecimento recproco e as dinmicasde cooperao. importante distinguir entre consideraes econmicas ou sociolgicas a curtoprazo e a longo prazo. A diminuio do nvel de tutela dos direitos dos trabalhadores ou a rennciaa mecanismos de redistribuio do rendimento, para fazer o pas ganhar maior competitividadeinternacional, impede a afirmao de um desenvolvimento de longa durao. Por isso, h queavaliar atentamente as consequncias que podem ter sobre as pessoas as tendncia actuais para umaeconomia a curto seno mesmo curtssimo prazo. Isto requer uma nova e profunda reflexo sobre osentido da economia e dos seus fins[84], bem como uma reviso profunda e clarividente do modelode desenvolvimento, para se corrigirem as suas disfunes e desvios. Na realidade, exige-o o estadode sade ecolgica da terra; pede-o sobretudo a crise cultural e moral do homem, cujos sintomasso evidentes por toda a parte.33. Passados mais de quarenta anos da publicao da Populorum progressio, o seu tema de fundo precisamente o progresso permanece ainda um problema em aberto, que se tornou maisagudo e premente com a crise econmico-financeira em curso. Se algumas reas do globo, outroraoprimidas pela pobreza, registaram mudanas notveis em termos de crescimento econmico e departicipao na produo mundial, h outras zonas que vivem ainda numa situao de misriacomparvel existente nos tempos de Paulo VI; antes, em qualquer caso pode-se mesmo falar deagravamento. significativo que algumas causas desta situao tivessem sido j identificadas naPopulorum progressio, como, por exemplo, as altas tarifas aduaneiras impostas pelos paseseconomicamente desenvolvidos que ainda impedem aos produtos originrios dos pases pobres dechegar aos mercados dos pases ricos. Entretanto, outras causas que a encclica tinha apenaspressentido, apareceram depois com maior evidncia; o caso da avaliao do processo dedescolonizao, ento em pleno curso. Paulo VI almejava um percurso de autonomia que havia derealizar-se na liberdade e na paz; quarenta anos depois, temos de reconhecer como foi difcil talpercurso, tanto por causa de novas formas de colonialismo e dependncia de antigos e novos paseshegemnicos, como por graves irresponsabilidades internas aos prprios pases que se tornaramindependentes.A novidade principal foi a exploso da interdependncia mundial, j conhecida comummente porglobalizao. Paulo VI tinha-a em parte previsto, mas os termos e a impetuosidade com que aquelaevoluiu so surpreendentes. Nascido no mbito dos pases economicamente desenvolvidos, esteprocesso por sua prpria natureza causou um envolvimento de todas as economias. Foi o motorprincipal para a sada do subdesenvolvimento de regies inteiras e, por si mesmo, constitui umagrande oportunidade. Contudo, sem a guia da caridade na verdade, este mpeto mundial podeconcorrer para criar riscos de danos at agora desconhecidos e de novas divises na famlia humana.Por isso, a caridade e a verdade colocam diante de ns um compromisso indito e criativo, semdvida muito vasto e complexo. Trata-se de dilatar a razo e torn-la capaz de conhecer e orientarestas novas e imponentes dinmicas, animando-as na perspectiva daquela civilizao do amor ,cuja semente Deus colocou em todo o povo e cultura. 17. CAPTULO III FRATERNIDADE,DESENVOLVIMENTO ECONMICO E SOCIEDADE CIVIL34. A caridade na verdade coloca o homem perante a admirvel experincia do dom. A gratuidadeest presente na sua vida sob mltiplas formas, que frequentemente lhe passam despercebidas porcausa duma viso meramente produtiva e utilarista da existncia. O ser humano est feito para odom, que exprime e realiza a sua dimenso de transcendncia. Por vezes o homem modernoconvence-se, erroneamente, de que o nico autor de si mesmo, da sua vida e da sociedade. Trata-se de uma presuno, resultante do encerramento egosta em si mesmo, que provm se queremosexprimi-lo em termos de f do pecado das origens. Na sua sabedoria, a Igreja sempre props quese tivesse em conta o pecado original mesmo na interpretao dos fenmenos sociais e naconstruo da sociedade. Ignorar que o homem tem uma natureza ferida, inclinada para o mal, dlugar a graves erros no domnio da educao, da poltica, da aco social e dos costumes [85]. Noelenco dos campos onde se manifestam os efeitos perniciosos do pecado, h muito tempo que seacrescentou tambm o da economia. Temos uma prova evidente disto mesmo nos dias que correm.Primeiro, a convico de ser auto-suficiente e de conseguir eliminar o mal presente na histriaapenas com a prpria aco induziu o homem a identificar a felicidade e a salvao com formasimanentes de bem-estar material e de aco social. Depois, a convico da exigncia de autonomiapara a economia, que no deve aceitar influncias de carcter moral, impeliu o homem a abusardos instrumentos econmicos at mesmo de forma destrutiva. Com o passar do tempo, estasconvices levaram a sistemas econmicos, sociais e polticos que espezinharam a liberdade dapessoa e dos corpos sociais e, por isso mesmo, no foram capazes de assegurar a justia queprometiam. Deste modo, como afirmei na encclica Spe salvi[86], elimina-se da histria a esperanacrist, a qual, ao invs, constitui um poderoso recurso social ao servio do desenvolvimentohumano integral, procurado na liberdade e na justia. A esperana encoraja a razo e d-lhe a forapara orientar a vontade[87]. J est presente na f, pela qual alis suscitada. Dela se nutre acaridade na verdade e, ao mesmo tempo, manifesta-a. Sendo dom de Deus absolutamente gratuito,irrompe na nossa vida como algo no devido, que transcende qualquer norma de justia. Por suanatureza, o dom ultrapassa o mrito; a sua regra a excedncia. Aquele precede-nos, na nossaprpria alma, como sinal da presena de Deus em ns e das suas expectativas a nosso respeito. Averdade, que dom tal como a caridade, maior do que ns, conforme ensina Santo Agostinho[88].Tambm a verdade acerca de ns mesmos, da nossa conscincia pessoal -nos primariamente dada ; com efeito, em qualquer processo cognoscitivo, a verdade no produzida por ns, massempre encontrada ou, melhor, recebida. Tal como o amor, ela no nasce da inteligncia e davontade, mas de certa forma impe-se ao ser humano [89].Enquanto dom recebido por todos, a caridade na verdade uma fora que constitui a comunidade,unifica os homens segundo modalidades que no conhecem barreiras nem confins. A comunidadedos homens pode ser constituda por ns mesmos; mas, com as nossas simples foras, nunca poderser uma comunidade plenamente fraterna nem alargada para alm de qualquer fronteira, ou seja, nopoder tornar-se uma comunidade verdadeiramente universal: a unidade do gnero humano, umacomunho fraterna para alm de qualquer diviso, nasce da convocao da palavra de Deus-Amor.Ao enfrentar esta questo decisiva, devemos especificar, por um lado, que a lgica do dom noexclui a justia nem se justape a ela num segundo tempo e de fora; e, por outro, que odesenvolvimento econmico, social e poltico precisa, se quiser ser autenticamente humano, de darespao ao princpio da gratuidade como expresso de fraternidade. 18. 35. O mercado, se houver confiana recproca e generalizada, a instituio econmica que permiteo encontro entre as pessoas, na sua dimenso de operadores econmicos que usam o contrato comoregra das suas relaes e que trocam bens e servios entre si fungveis, para satisfazer as suascarncias e desejos. O mercado est sujeito aos princpios da chamada justia comutativa, queregula precisamente as relaes do dar e receber entre sujeitos iguais. Mas a doutrina social nuncadeixou de pr em evidncia a importncia que tem a justia distributiva e a justia social para aprpria economia de mercado, no s porque integrada nas malhas de um contexto social e polticomais vasto, mas tambm pela teia das relaes em que se realiza. De facto, deixado unicamente aoprincpio da equivalncia de valor dos bens trocados, o mercado no consegue gerar a coeso socialde que necessita para bem funcionar. Sem formas internas de solidariedade e de confianarecproca, o mercado no pode cumprir plenamente a prpria funo econmica. E, hoje, foiprecisamente esta confiana que veio a faltar; e a perda da confiana uma perda grave.Na Populorum progressio, Paulo VI sublinhava oportunamente o facto de que seria o prpriosistema econmico a tirar vantagem da prtica generalizada da justia, uma vez que os primeiros abeneficiar do desenvolvimento dos pases pobres teriam sido os pases ricos[90]. No se tratavaapenas de corrigir disfunes, atravs da assistncia. Os pobres no devem ser considerados um fardo [91] mas um recurso, mesmo do ponto de vista estritamente econmico. H que considerarerrada a viso de quantos pensam que a economia de mercado tenha estruturalmente necessidadeduma certa quota de pobreza e subdesenvolvimento para poder funcionar do melhor modo. Omercado tem interesse em promover emancipao, mas, para o fazer verdadeiramente, no podecontar apenas consigo mesmo, porque no capaz de produzir por si aquilo que est para alm dassuas possibilidades; tem de haurir energias morais de outros sujeitos, que sejam capazes de as gerar.36. A actividade econmica no pode resolver todos os problemas sociais atravs da simplesextenso da lgica mercantil. Esta h-de ter como finalidade a prossecuo do bem comum, do qualse deve ocupar tambm e sobretudo a comunidade poltica. Por isso, tenha-se presente que causade graves desequilbrios separar o agir econmico ao qual competiria apenas produzir riqueza do agir poltico, cuja funo seria buscar a justia atravs da redistribuio.Desde sempre a Igreja defende que no se h-de considerar o agir econmico como anti-social. Deper si o mercado no , nem se deve tornar, o lugar da prepotncia do forte sobre o dbil. Asociedade no tem que se proteger do mercado, como se o desenvolvimento deste implicasse ipsofacto a morte das relaes autenticamente humanas. verdade que o mercado pode ser orientado demodo negativo, no porque isso esteja na sua natureza, mas porque uma certa ideologia pode dirigi-lo em tal sentido. No se deve esquecer que o mercado, em estado puro, no existe; mas toma formaa partir das configuraes culturais que o especificam e orientam. Com efeito, a economia e asfinanas, enquanto instrumentos, podem ser mal utilizadas se quem as gere tiver apenasreferimentos egostas. Deste modo possvel conseguir transformar instrumentos de per si bons eminstrumentos danosos; mas a razo obscurecida do homem que produz estas consequncias, no oinstrumento por si mesmo. Por isso, no o instrumento que deve ser chamado em causa, mas ohomem, a sua conscincia moral e a sua responsabilidade pessoal e social.A doutrina social da Igreja considera possvel viver relaes autenticamente humanas de amizade ecamaradagem, de solidariedade e reciprocidade, mesmo no mbito da actividade econmica e noapenas fora dela ou depois dela. A rea econmica no nem eticamente neutra nem denatureza desumana e anti-social. Pertence actividade do homem; e, precisamente porque humana,deve ser eticamente estruturada e institucionalizada.O grande desafio que temos diante de ns resultante das problemticas do desenvolvimento nestetempo de globalizao, mas revestindo-se de maior exigncia com a crise econmico-financeira 19. mostrar, a nvel tanto de pensamento como de comportamentos, que no s no podem sertranscurados ou atenuados os princpios tradicionais da tica social, como a transparncia, ahonestidade e a responsabilidade, mas tambm que, nas relaes comerciais, o princpio degratuidade e a lgica do dom como expresso da fraternidade podem e devem encontrar lugardentro da actividade econmica normal. Isto uma exigncia do homem no tempo actual, mastambm da prpria razo econmica. Trata-se de uma exigncia simultaneamente da caridade e daverdade.37. A doutrina social da Igreja sempre defendeu que a justia diz respeito a todas as fases daactividade econmica, porque esta sempre tem a ver com o homem e com as suas exigncias. Aangariao dos recursos, os financiamentos, a produo, o consumo e todas as outras fases do cicloeconmico tm inevitavelmente implicaes morais. Deste modo cada deciso econmica temconsequncias de carcter moral. Tudo isto encontra confirmao tambm nas cincias sociais enas tendncias da economia actual. Outrora talvez se pudesse pensar, primeiro, em confiar economia a produo de riqueza para, depois, atribuir poltica a tarefa de a distribuir; hoje tudoisto se apresenta mais difcil, porque, enquanto as actividades econmicas deixaram de estarcircunscritas no mbito dos limites territoriais, a autoridade dos governos continua a ser sobretudolocal. Por isso, os cnones da justia devem ser respeitados desde o incio enquanto se desenrola oprocesso econmico, e no depois ou marginalmente. Alm disso, preciso que, no mercado, seabram espaos para actividades econmicas realizadas por sujeitos que livremente escolhemconfigurar o prprio agir segundo princpios diversos do puro lucro, sem por isso renunciar aproduzir valor econmico. As numerosas expresses de economia que tiveram origem eminiciativas religiosas e laicas demonstram que isto concretamente possvel.Na poca da globalizao, a economia denota a influncia de modelos competitivos ligados aculturas muito diversas entre si. Os comportamentos econmico-empresariais da resultantespossuem, na sua maioria, um ponto de encontro no respeito da justia comutativa. A vidaeconmica tem, sem dvida, necessidade do contrato, para regular as relaes de transaco entrevalores equivalentes; mas precisa igualmente de leis justas e de formas de redistribuio guiadaspela poltica, para alm de obras que tragam impresso o esprito do dom. A economia globalizadaparece privilegiar a primeira lgica, ou seja, a da transaco contratual, mas directa ouindirectamente d provas de necessitar tambm das outras duas: a lgica poltica e a lgica do domsem contrapartidas.38. O meu antecessor Joo Paulo II sublinhara esta problemtica, quando, na Centesimus annus,destacou a necessidade de um sistema com trs sujeitos: o mercado, o Estado e a sociedadecivil[92]. Ele tinha identificado na sociedade civil o mbito mais apropriado para uma economia dagratuidade e da fraternidade, mas sem pretender neg-la nos outros dois mbitos. Hoje, podemosdizer que a vida econmica deve ser entendida como uma realidade com vrias dimenses: emtodas deve estar presente, embora em medida diversa e com modalidades especficas, o aspecto dareciprocidade fraterna. Na poca da globalizao, a actividade econmica no pode prescindir dagratuidade, que difunde e alimenta a solidariedade e a responsabilidade pela justia e o bem comumem seus diversos sujeitos e actores. Trata-se, em ltima anlise, de uma forma concreta e profundade democracia econmica. A solidariedade consiste primariamente em que todos se sintamresponsveis por todos[93] e, por conseguinte, no pode ser delegada s no Estado. Se, no passado,era possvel pensar que havia necessidade primeiro de procurar a justia e que a gratuidadeintervinha depois como um complemento, hoje preciso afirmar que, sem a gratuidade, no seconsegue sequer realizar a justia. Assim, temos necessidade de um mercado, no qual possamoperar, livremente e em condies de igual oportunidade, empresas que persigam fins institucionaisdiversos. Ao lado da empresa privada orientada para o lucro e dos vrios tipos de empresa pblica,devem poder-se radicar e exprimir as organizaes produtivas que perseguem fins mutualistas e 20. sociais. Do seu recproco confronto no mercado, pode-se esperar uma espcie de hibridizao doscomportamentos de empresa e, consequentemente, uma ateno sensvel civilizao da economia.Neste caso, caridade na verdade significa que preciso dar forma e organizao quelas iniciativaseconmicas que, embora sem negar o lucro, pretendam ir mais alm da lgica da troca deequivalentes e do lucro como fim em si mesmo.39. Na Populorum progressio, Paulo VI pedia que se configurasse um modelo de economia demercado capaz de incluir, pelo menos intencionalmente, todos os povos e no apenas aquelesadequadamente habilitados. Solicitava que nos empenhssemos na promoo de um mundo maishumano para todos, um mundo no qual todos tenham qualquer coisa a dar e a receber, sem que oprogresso de uns seja obstculo ao desenvolvimento dos outros [94]. Estendia assim ao planouniversal as mesmas instncias e aspiraes contidas na Rerum novarum, escrita quando pelaprimeira vez, em consequncia da revoluo industrial, se afirmou a ideia seguramente avanadapara aquele tempo de que a ordem civil, para subsistir, tinha necessidade tambm da intervenodistributiva do Estado. Hoje esta viso, alm de ser posta em crise pelos processos de abertura dosmercados e das sociedades, revela-se incompleta para satisfazer as exigncias duma economiaplenamente humana. Aquilo que a doutrina social da Igreja, partindo da sua viso do homem e dasociedade, sempre defendeu, hoje requerido tambm pelas dinmicas caractersticas daglobalizao.Quando a lgica do mercado e a do Estado se pem de acordo entre si para continuar no monopliodos respectivos mbitos de influncia, com o passar do tempo definha a solidariedade nas relaesentre os cidados, a participao e a adeso, o servio gratuito, que so realidades diversas do darpara ter , prprio da lgica da transaco, e do dar por dever , prprio da lgica doscomportamentos pblicos impostos por lei do Estado. A vitria sobre o subdesenvolvimento exigeque se actue no s sobre a melhoria das transaces fundadas sobre o intercmbio, nem apenassobre as transferncias das estruturas assistenciais de natureza pblica, mas sobretudo sobre aprogressiva abertura, em contexto mundial, para formas de actividade econmica caracterizadaspor quotas de gratuidade e de comunho. O binmio exclusivo mercado-Estado corri asociabilidade, enquanto as formas econmicas solidrias, que encontram o seu melhor terreno nasociedade civil sem contudo se reduzir a ela, criam sociabilidade. O mercado da gratuidade noexiste, tal como no se podem estabelecer por lei comportamentos gratuitos, e todavia tanto omercado como a poltica precisam de pessoas abertas ao dom recproco.40. As actuais dinmicas econmicas internacionais, caracterizadas por graves desvios e disfunes,requerem profundas mudanas inclusivamente no modo de conceber a empresa. Antigasmodalidades da vida empresarial declinam, mas outras prometedoras se esboam no horizonte. Umdos riscos maiores , sem dvida, que a empresa preste contas quase exclusivamente a quem nelainveste, acabando assim por reduzir a sua valncia social. Devido ao seu crescimento de dimenso e necessidade de capitais sempre maiores, so cada vez menos as empresas que fazem referimento aum empresrio estvel que se sinta responsvel no apenas a curto mas a longo prazo da vida e dosresultados da sua empresa, tal como diminui o nmero das que dependem de um nico territrio.Alm disso, a chamada deslocalizao da actividade produtiva pode atenuar no empresrio osentido da responsabilidade para com os interessados, como os trabalhadores, os fornecedores, osconsumidores, o ambiente natural e a sociedade circundante mais ampla, em benefcio dosaccionistas, que no esto ligados a um espao especfico, gozando por isso duma extraordinriamobilidade; de facto, o mercado internacional dos capitais oferece hoje uma grande liberdade deaco. Mas verdade tambm que est a aumentar a conscincia sobre a necessidade de uma maisampla responsabilidade social da empresa. Apesar de os parmetros ticos que guiamactualmente o debate sobre a responsabilidade social da empresa no serem, segundo a perspectivada doutrina social da Igreja, todos aceitveis, um facto que se vai difundindo cada vez mais a 21. convico de que a gesto da empresa no pode ter em conta unicamente os interesses dosproprietrios da mesma, mas deve preocupar-se tambm com as outras diversas categorias desujeitos que contribuem para a vida da empresa: os trabalhadores, os clientes, os fornecedores dosvrios factores de produo, a comunidade de referimento. Nos ltimos anos, notou-se ocrescimento duma classe cosmopolita de gerentes, que muitas vezes respondem s s indicaes dosaccionistas da empresa constitudos geralmente por fundos annimos que estabelecem de facto assuas remuneraes. Todavia, hoje, h tambm muitos gerentes que, atravs de anlises clarividentes,se do conta cada vez mais dos profundos laos que a sua empresa tem com o territrio outerritrios, onde opera. Paulo VI convidava a avaliar seriamente o dano que a transferncia decapitais para o estrangeiro, com exclusivas vantagens pessoais, pode causar prpria nao[95]. EJoo Paulo II advertia que investir tem sempre um significado moral, para alm de econmico[96].Tudo isto h que reafirm-lo vlido tambm hoje, no obstante o mercado dos capitais tenhasido muito liberalizado e as mentalidades tecnolgicas modernas possam induzir a pensar queinvestir seja apenas um facto tcnico, e no humano e tico. No h motivo para negar que um certocapital possa ser ocasio de bem, se investido no estrangeiro antes que na ptria; mas devem-seressalvar os vnculos de justia, tendo em conta tambm o modo como aquele capital se formou e osdanos que causar s pessoas o seu no investimento nos lugares onde o mesmo foi gerado[97]. preciso evitar que o motivo para o emprego dos recursos financeiros seja especulativo, cedendo tentao de procurar apenas o lucro a breve prazo sem cuidar igualmente da sustentabilidade daempresa a longo prazo, do seu servio concreto economia real e duma adequada e oportunapromoo de iniciativas econmicas tambm nos pases necessitados de desenvolvimento. Tambmno h motivo para negar que a deslocalizao, quando compreende investimentos e formao,possa fazer bem s populaes do pas que a acolhe o trabalho e o conhecimento tcnico so umanecessidade universal ; mas no lcito deslocalizar somente para gozar de especiais condies defavor ou, pior ainda, para explorao, sem prestar uma verdadeira contribuio sociedade localpara o nascimento de um robusto sistema produtivo e social, factor imprescindvel para umdesenvolvimento estvel.41. Dentro do mesmo tema, til observar que o esprito empresarial tem, e deve assumir cada vezmais, um significado polivalente. A longa prevalncia do binmio mercado-Estado habituou-nos apensar exclusivamente, por um lado, no empresrio privado de tipo capitalista e, por outro, nodirector estatal. Na realidade, o esprito empresarial h-de ser entendido de modo articulado, comose depreende duma srie de motivaes meta-econmicas. O esprito empresarial, antes de tersignificado profissional, possui um significado humano[98]; est inscrito em cada trabalho, vistocomo actus person [99], pelo que bom oferecer a cada trabalhador a possibilidade de prestara prpria contribuio, de tal modo que ele mesmo saiba trabalhar por conta prpria [100].Ensinava Paulo VI, no sem motivo, que todo o trabalhador um criador [101]. Precisamentepara dar resposta s exigncias e dignidade de quem trabalha e s necessidades da sociedade queexistem vrios tipos de empresa, muito para alm da simples distino entre privado e pblico. Cada uma requer e exprime um esprito empresarial especfico. A fim de realizar uma economiaque, num futuro prximo, saiba colocar-se ao servio do bem comum nacional e mundial, convmter em conta este significado amplo de esprito empresarial. Tal concepo mais ampla favorece ointercmbio e a formao recproca entre as diversas tipologias de empresariado, com transfernciade competncias do mundo sem lucro para aquele com lucro e vice-versa, do sector pblico para ombito prprio da sociedade civil, do mundo das economias avanadas para aquele dos pases emvias de desenvolvimento.Tambm a autoridade poltica tem um significado polivalente, que no se pode esquecerquando se procede realizao duma nova ordem econmico-produtiva, responsvel socialmente e medida do homem. Assim como se pretende fomentar um esprito empresarial diferenciado noplano mundial, assim tambm se deve promover uma autoridade poltica repartida e activa a vrios 22. nveis. A economia integrada de nossos dias no elimina a funo dos Estados, antes obriga osgovernos a uma colaborao recproca mais intensa. Razes de sabedoria e prudncia sugerem queno se proclame depressa demais o fim do Estado; relativamente soluo da crise actual, a suafuno parece destinada a crescer, readquirindo muitas das suas competncias. Alm disso, existemnaes, cuja edificao ou reconstruo do Estado continua a ser um elemento-chave do seudesenvolvimento. A ajuda internacional, precisamente no mbito de um projecto de solidariedadeque tivesse em vista a soluo dos problemas econmicos actuais, deveria sobretudo apoiar aconsolidao de sistemas constitucionais, jurdicos, administrativos nos pases que ainda no gozamde tais bens. A par das ajudas econmicas, devem existir outros apoios tendentes a reforar asgarantias prprias do Estado de direito, um sistema de ordem pblica e carcerrio eficiente norespeito dos direitos humanos, instituies verdadeiramente democrticas. No preciso que oEstado tenha, em todo o lado, as mesmas caractersticas: o apoio para reforo dos sistemasconstitucionais dbeis pode muito bem ser acompanhado pelo desenvolvimento de outros sujeitospolticos de natureza cultural, social, territorial ou religiosa, ao lado do Estado. A articulao daautoridade poltica a nvel local, nacional e internacional , para alm do mais, uma das vias mestraspara se chegar a poder orientar a globalizao econmica; e tambm o modo de evitar que estamine realmente os alicerces da democracia.42. Notam-se s vezes atitudes fatalistas a respeito da globalizao, como se as dinmicas em actofossem produzidas por foras impessoais annimas e por estruturas independentes da vontadehumana[102]. A tal propsito, bom recordar que a globalizao h-de ser entendida, sem dvida,como um processo scio-econmico, mas esta sua dimenso no a nica. Sob o processo maisvisvel, h a realidade duma humanidade que se torna cada vez mais interligada; tal realidade constituda por pessoas e povos, para quem o referido processo deve ser de utilidade edesenvolvimento[103], graas assuno das respectivas responsabilidades por parte tanto dosindivduos como da colectividade. A superao das fronteiras um dado no apenas material mastambm cultural nas suas causas e efeitos. Se a globalizao for lida de maneira determinista,perdem-se os critrios para a avaliar e orientar. Trata-se de uma realidade humana que pode ter, nasua fonte, vrias orientaes culturais, sobre as quais preciso fazer discernimento. A verdade daglobalizao enquanto processo e o seu critrio tico fundamental provm da unidade da famliahumana e do seu desenvolvimento no bem. Por isso preciso empenhar-se sem cessar por favoreceruma orientao cultural personalista e comunitria, aberta transcendncia, do processo deintegrao mundial.No obstante algumas limitaes estruturais, que no se ho-de negar nem absolutizar, aglobalizao a priori no boa nem m. Ser aquilo que as pessoas fizerem dela [104]. Nodevemos ser vtimas dela, mas protagonistas, actuando com razoabilidade, guiados pela caridade e averdade. Opor-se-lhe cegamente seria uma atitude errada, fruto de preconceito, que acabaria porignorar um processo marcado tambm por aspectos positivos, com o risco de perder uma grandeocasio de se inserir nas mltiplas oportunidades de desenvolvimento por ele oferecidas.Adequadamente concebidos e geridos, os processos de globalizao oferecem a possibilidade dumagrande redistribuio da riqueza a nvel mundial, como antes nunca tinha acontecido; se mal geridos,podem, pelo contrrio, fazer crescer pobreza e desigualdade, bem como contagiar com uma crise omundo inteiro. preciso corrigir as suas disfunes, tantas vezes graves, que introduzem novasdivises entre os povos e no interior dos mesmos, e fazer com que a redistribuio da riqueza no severifique custa de uma redistribuio da pobreza ou at com o seu agravamento, como uma mgesto da situao actual poderia fazer-nos temer. Durante muito tempo, pensou-se que os povospobres deveriam permanecer ancorados a um estdio predeterminado de desenvolvimento,contentando-se com a filantropia dos povos desenvolvidos. Contra esta mentalidade, tomou posioPaulo VI na Populorum progressio. Hoje, as foras materiais de que se pode dispor para fazeraqueles povos sair da misria so potencialmente maiores do que outrora, mas acabaram por se 23. aproveitar delas prevalentemente os povos dos pases desenvolvidos, que conseguiram desfrutarmelhor o processo de liberalizao dos movimentos de capitais e do trabalho. Por isso a difuso dosambientes de bem-estar a nvel mundial no deve ser refreada por projectos egostas, proteccionistasou ditados por interesses particulares. De facto, hoje, o envolvimento dos pases emergentes ou emvias de desenvolvimento permite gerir melhor a crise. A transio inerente ao processo deglobalizao apresenta grandes dificuldades e perigos, que podero ser superados apenas se sesouber tomar conscincia daquela alma antropolgica e tica que, do mais fundo, impele a prpriaglobalizao para metas de humanizao solidria. Infelizmente esta alma muitas vezes abafada econdicionada por perspectivas tico-culturais de impostao individualista e utilitarista. A