cariocas

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Cariocas; e ludovicenses Postado por Ronald Robson Moro há pouco tempo no Rio e, para mim, que venho de São Luís, cidade que também tem algo de aristocracia decaída, tudo o que Pedro Sette- Câmara sintetizou neste texto é muito evidente. Vejo cariocas invocarem a ira dos deuses porque a margarina estava sem o preço na prateleira do supermercado. Subitamente abandonarem com violência uma lanchonete porque um garçom lhes apontou a mesa mas não os conduziu até lá. A recíproca idem: o comerciante carioca não vende – apenas consente, a contragosto, em sentir-se roubado. O empresário carioca se acha um mártir do capitalismo: sente cada ato seu, para que uma moeda lhe caia no bolso, como uma tortura. Aqui o padeiro nordestino pode ser identificado pela sua boa disposição (até indiscrição) em atender. E o paulista é aquele cara que sempre ficará para trás na guerra campal para conseguir pegar um táxi ou entrar em um ônibus – e que às vezes perguntará, sem que ninguém entenda do que diabos ele fala: “Cadê a fila? Ei, cadê a fila?” A fila seria uma boa idéia, mas... A princípio, tive a impressão terrível de que o carioca é uma versão concentrada da alcovitaria maledicente que, no geral, é uma marca do brasileiro (o brasileiro jamais será capaz de considerar um problema político tão a sério quanto considera a vida do vizinho – o que é muito bom e muito ruim, sob diferentes aspectos). Via pessoas se tratarem com uma docilidade constrangedora, cheias de ademanes (é a palavra certa) e prestezas, e, ao darem as costas umas às outras, acusarem-se das maiores baixezas. A primeira impressão é que seja um caso quase patológico de falsidade. Mas não é falsidade. O carioca trata muito bem seu interlocutor, caso esteja em uma situação “não mediada” (se não estiver em causa uma relação comercial, por exemplo); enquanto o faz, o faz com toda a sinceridade. Com toda a idêntica sinceridade com que em seguida o chamará de mau caráter, aproveitador e sabe Deus o quê – a mesma, mesmíssima sinceridade, com que será capaz de num terceiro momento voltar a tratar o mau caráter em questão como um rei que recebe, com todas as honras, um estrangeiro em seu paço imperial. O carioca quer tudo mesmo quando não pode quase nada; age com base nisso. Ele diz e desdiz e não está nem aí. “Afinal, para que permanecer rígido em uma mesma posição, uma mesma idéia?” – é o que todo carioca parece dizer. A sua disciplina é de outra ordem. Ainda não sei exatamente de qual. A propósito, mas mais a propósito do que disse no primeiro parágrafo, encontro noDicionário Universal de Citações (verbete “Rio de Janeiro”) de Paulo Rónai o trecho de Genolino Amado que segue. O estilo é ruim, mas tem sua verdade: “Nas cidades tristes, nevoentas, como Londres, ou mesmo como São Paulo, o esforço do trabalho está somente em trabalhar. Mas, no Rio, o

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Cariocas; e ludovicensesPostado porRonald Robson

Moro h pouco tempo no Rio e, para mim, que venho de So Lus, cidade que tambm tem algo de aristocracia decada, tudo o que Pedro Sette-Cmara sintetizouneste texto muito evidente. Vejo cariocas invocarem a ira dos deuses porque a margarina estava sem o preo na prateleira do supermercado. Subitamente abandonarem com violncia uma lanchonete porque um garom lhes apontou a mesa mas no os conduziu at l. A recproca idem: o comerciante carioca no vende apenas consente, a contragosto, em sentir-se roubado.O empresrio carioca se acha um mrtir do capitalismo: sente cada ato seu, para que uma moeda lhe caia no bolso, como uma tortura. Aqui o padeiro nordestino pode ser identificado pela sua boa disposio (at indiscrio) em atender. E o paulista aquele cara que sempre ficar para trs na guerra campal para conseguir pegar um txi ou entrar em um nibus e que s vezes perguntar, sem que ningum entenda do que diabos ele fala: Cad a fila? Ei, cad a fila? A fila seria uma boa idia, mas...

A princpio, tive a impresso terrvel de que o carioca uma verso concentrada da alcovitaria maledicente que, no geral, uma marca do brasileiro (o brasileiro jamais ser capaz de considerar um problema poltico to a srio quanto considera a vida do vizinho o que muito bom e muito ruim, sob diferentes aspectos). Via pessoas se tratarem com uma docilidade constrangedora, cheias deademanes( a palavra certa) e prestezas, e, ao darem as costas umas s outras, acusarem-se das maiores baixezas. A primeira impresso que seja um caso quase patolgico de falsidade. Mas no falsidade. O carioca trata muito bem seu interlocutor, caso esteja em uma situao no mediada (se no estiver em causa uma relao comercial, por exemplo); enquanto o faz, o faz com toda a sinceridade. Com toda a idntica sinceridade com que em seguida o chamar de mau carter, aproveitador e sabe Deus o qu a mesma, mesmssima sinceridade, com que ser capaz de num terceiro momento voltar a tratar o mau carter em questo como um rei que recebe, com todas as honras, um estrangeiro em seu pao imperial. O carioca quer tudo mesmo quando no pode quase nada; age com base nisso. Ele diz e desdiz e no est nem a. Afinal, para que permanecer rgido em uma mesma posio, uma mesma idia? o que todo carioca parece dizer. A sua disciplina de outra ordem. Ainda no sei exatamente de qual.

A propsito, mas mais a propsito do que disse no primeiro pargrafo, encontro noDicionrio Universal de Citaes(verbete Rio de Janeiro) de Paulo Rnai o trecho de Genolino Amado que segue. O estilo ruim, mas tem sua verdade:

Nas cidades tristes, nevoentas, como Londres, ou mesmo como So Paulo, o esforo do trabalho est somente em trabalhar. Mas, no Rio, o primeiro e grande esforo est somente em ir para o servio, em aceitar a pequenez de um destino burocrtico ou proletrio, quando vem dos panoramas, inundando o corao da gente, a imagem de tantas grandezas, a sensao do mundo em festa. (Os Inocentes do Leblon)

Um parntese.

Certa vez um estrangeiro que viveu no Brasil observou que a pergunta cuja resposta todo brasileiro deve saber Quem descobriu o Brasil? no faz o menor sentido para um ingls ou um italiano. Ningum descobriu a Europa. A Europa sempre esteve l e de l os europeus vieram. E ento passam, os europeus, a discutir o quanto a Europa tem de Israel, de Grcia, de Roma, de Bizncio ou de ndia. Vocs conseguem imaginar um brasileiro discutindo o quanto o Brasil tem de ibrico, mediterrneo ou rabe? H bons livros a respeito e algumas figuras excntricas, como um amigo meu que, vendo Afonso I se materializar no ar, diz, punho em riste, ser brasileiro h mais de 800 anos , principalmente quanto aos elementos indgena e africano; mas esse tipo de especulao definitivamente no esporte nacional.

O que esporte pelo menos provincial, ao menos em minha provncia, So Lus, enobrecer-se pela discusso de quem descobriu a terrinha; ou qualquer outra discusso similar. Uns tantos de ns ludovicenses (ludovicense > Ludovicus > Lus XIII o rei menino que se homenageou com o nome da ilha) separamos todo dia 8 de setembro, aniversrio oficial da cidade, para fazer alguns inimigos. Uns so partidrios de que na data realmente se deve comemorar a fundao de So Lus; ou seja, de que foi fundada pelos franceses de Daniel de La Touche em 8 de setembro de 1612. Outros so partidrios de que a data no esta; ou seja, de que foi fundada pelos portugueses de Jernimo de Albuquerque, em algum momento de 1615 ou 1616, aps expulsarem os franceses. Sou do primeiro time, e me ufano de s-lo, mas aviso a possveis adversrios que no discutirei isso aqui. Independentemente de quem estiver certo (mas eu estou, disso eu sei), o fato que o partido lusitano sofre da mesma inclinao que acusa nos oficialistas pr-franceses: querer enobrecer a cidade com uma fundao mtica; no caso, com a ascendncia em um nobre que, no bastasse ser francs, era ainda pirata e huguenote, a trazer consigo capuchinhos que deixariam os melhores relatos (melhores inclusive literariamente) sobre uma misso no Brasil nos primeiros sculos; coisa que tornaria So Lus bastante excntrica frente ao resto da colonizao brasileira. O partido lusitano, por sua vez, enobrece a fundao por outro meio: atribuindo-a a Jernimo de Albuquerque, um homem de guerra j sexagenrio, aclimatado terra, filho de portugus e de ndia, que se casou pag e cristmente com uma nativa e teve dezenas de filhos, experimentado em diversas guerras de mata cerrada ao longo do litoral nordestino. Uns, ento, querem o exotismo europeu; outros, o exotismo autctone; mas ambos queremos algum tipo de extravagncia, e So Lus realmente uma cidade muito extravagante. Porque a nobreza extravagante, mais ainda se decadente. E por isso que depois de secas todas as garrafas, depois que o Brasil for uma gigantesca So Paulo, continuar sendo uma questo de honra, e bem mais interessante que decidir o que h de ibrico ou no no brasileiro, determinar se foram os franceses ou os portugueses que fundaram So Lus.

Fecha parntese.

O aristocrata decadente que o carioca, contudo, infelizmente um tipo que j rareia entre os mais jovens. Basta observar o comum de sua fala hoje; entre eles o portugus de baile funk que se dissemina. A tendncia natural a realizar uma elevao tonal ao fim de frases ditas com nfase (o que d a impresso de que o carioca quase usa de falsete ao terminar de dizer algo que lhe indigna) acabou debordando em uma fala ao mesmo tempo de ritmo lento e melodia de repentista (variaes tonais sempre retornando a um mesmo ponto). um fenmeno curioso, que eu agora no saberia descrever de forma muito objetiva, que dir tcnica. Mas assim que a insensatez quixotesca de determinadas posturas vai se tornando simplesmente m educao, deboche e indiferena num portugus terrvel, numa lngua de pau. Esta o produto mais aparente do carioca que deixa de ser aristocraticamente voluntarioso para ser toscamente queixoso.

Termino apenas lembrando e esta uma observao meio errtica, ligada apenas ao fato de que nasci e cresci num lugar e hoje vivo noutro, ambos com alguma remota marca aristocrtica que a pessoalidade das relaes do carioca no nada se comparada necessidade vital do ludovicense j no digo de driblar a impessoalidade das relaes democrticas, mas de ter boas relaes francamente mafiosas. Se os cariocas tiveram os bajuladores de D. Pedro II, ns ludovicenses tivemos e temos os bajuladores de Sarney I (nesse quesito a ser substitudo por um Flvio Dino ou outro qualquer o que pena, pois tambm nos levar do voluntarismo queixa). E nos muito mais intragvel que a eles que o rei seja, como escreveu Tolsti, escravo da Histria. Histria, com a gente, mesmo com h minsculo e suscetvel de ser atirada ao mar. Somos todos uns reizinhos, mas reizinhos que efetivamentemandamna histria; no temos satisfao alguma a prestar a essa disciplina de plebeus de ctedra. Por isso o ludovicense chama o parente sulista para ver o maior prdio em azulejaria da Amrica Latina ou ver missa em alguma igreja do sculo XVII, mas no tem o mnimo pudor em carregar alguns azulejos e relquias para sua prpria casa. Amamos nossa cidade epor issonos achamos no direito de saque-la e depred-la sem piedade.

Mas no conheo nenhum ludovicense to folgado quanto o carioca mdio. Nenhum.